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sala preta 276 R evisitando a dança educativa moderna de Rudolf Laban I sabel A. Marques V Doutora em Educação pela USP, diretora do Caleidos Cia. de Dança e do Caleidos Arte e Ensino. Autora do livro Ensino de Dança Hoje (São Paulo: Ed. Cortez, 2001, 2 a ed.). 1 Neste artigo não discutiremos o binômio modernidade–pós-modernidade em Rudolf Laban. Para tan- to, veja Marques, 1999. Revisitando Rudolf Laban araljai vereknyei esliget falyi Laban Rezso Keresztelo szent Janos Attila, ou Rudolf Laban, como mais tarde ficou mundialmen- te conhecido, começou seu trabalho de pes- quisa e criação na Europa, no início do século XX. Seu carisma, senso de humor, dedi- cação e entusiasmo, aliados à sua intuição, avi- dez intelectual e observação, fizeram dele não somente um grande ‘mestre’ da dança, mas uma pessoa muito querida e admirada por seus con- temporâneos. Para o público brasileiro, no entanto, após um século, o trabalho e as contribuições de Rudolf Laban para as áreas de arte e ensino ainda são abstrações carregadas de jargões, de idéias inacabadas, de conceitos mal definidos. Mé- todo e técnica, dança e educação contrapõem- se e confundem-se; os caminhos percorridos pelos princípios e idéias de Laban no Brasil desde a dé- cada de 1940 carecem ainda de um olhar mais crítico, contextualizado, contemporâneo. Os estudos e as propostas de Laban tra- zem consigo marcas de uma época, de um modo de pensar e de agir característicos da modernidade européia. Em plena ‘pós-moder- nidade’, é mister que seja revisitado, não somente para compreendê-lo em seu contexto sócio-po- lítico-cultural, mas principalmente para que pos- sa ser inserido de forma não ingênua no con- texto artístico e educacional brasileiro. 1 O estudo aprofundado e minucioso so- bre o movimento humano empreendido por Laban tem até hoje oferecido contribuições bri- lhantes para as áreas de Dança, Teatro, Psicolo- gia, Antropologia, Sociologia, Saúde – para citar algumas. Foram, talvez, suas contribuições para a área de Educação as mais reconhecidas e am- plamente difundidas em várias partes do mundo. Por trás do professor intuitivo, dedicado e observador, no entanto, repousava primordi- almente um artista, preocupado com as ques- tões de sua época, com a expressividade do ser humano, com a espiritualidade da arte. Laban, portanto, antes de dialogar com educadores, dialogou com artistas e com o público, dedican- do-se incansavelmente a estudar a arte do movi- mento sem finalidades explicitamente edu- cacionais ou escolares. No Brasil, Laban, o artista, também che- ga às prateleiras antes do educador. Em 1978,

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R ev is i tando a dança educat iva modernade Rudol f Laban

I sabel A. Marques

V

Doutora em Educação pela USP, diretora do Caleidos Cia. de Dança e do Caleidos Arte e Ensino.Autora do livro Ensino de Dança Hoje (São Paulo: Ed. Cortez, 2001, 2a ed.).

1 Neste artigo não discutiremos o binômio modernidade–pós-modernidade em Rudolf Laban. Para tan-to, veja Marques, 1999.

Revisitando Rudolf Laban

araljai vereknyei esliget falyi Laban RezsoKeresztelo szent Janos Attila, ou RudolfLaban, como mais tarde ficou mundialmen-te conhecido, começou seu trabalho de pes-quisa e criação na Europa, no início do

século XX. Seu carisma, senso de humor, dedi-cação e entusiasmo, aliados à sua intuição, avi-dez intelectual e observação, fizeram dele nãosomente um grande ‘mestre’ da dança, mas umapessoa muito querida e admirada por seus con-temporâneos.

Para o público brasileiro, no entanto,após um século, o trabalho e as contribuiçõesde Rudolf Laban para as áreas de arte e ensinoainda são abstrações carregadas de jargões, deidéias inacabadas, de conceitos mal definidos. Mé-todo e técnica, dança e educação contrapõem-se e confundem-se; os caminhos percorridos pelosprincípios e idéias de Laban no Brasil desde a dé-cada de 1940 carecem ainda de um olhar maiscrítico, contextualizado, contemporâneo.

Os estudos e as propostas de Laban tra-zem consigo marcas de uma época, de ummodo de pensar e de agir característicos da

modernidade européia. Em plena ‘pós-moder-nidade’, é mister que seja revisitado, não somentepara compreendê-lo em seu contexto sócio-po-lítico-cultural, mas principalmente para que pos-sa ser inserido de forma não ingênua no con-texto artístico e educacional brasileiro.1

O estudo aprofundado e minucioso so-bre o movimento humano empreendido porLaban tem até hoje oferecido contribuições bri-lhantes para as áreas de Dança, Teatro, Psicolo-gia, Antropologia, Sociologia, Saúde – para citaralgumas. Foram, talvez, suas contribuições paraa área de Educação as mais reconhecidas e am-plamente difundidas em várias partes do mundo.

Por trás do professor intuitivo, dedicadoe observador, no entanto, repousava primordi-almente um artista, preocupado com as ques-tões de sua época, com a expressividade do serhumano, com a espiritualidade da arte. Laban,portanto, antes de dialogar com educadores,dialogou com artistas e com o público, dedican-do-se incansavelmente a estudar a arte do movi-mento sem finalidades explicitamente edu-cacionais ou escolares.

No Brasil, Laban, o artista, também che-ga às prateleiras antes do educador. Em 1978,

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mesma data em que Lisa Ullmann, discípula deLaban por mais de vinte anos, veio ao Brasil, olivro Domínio do Movimento, publicado pelaprimeira vez em 1950, é traduzido e publicadoem português. Somente em 1990, com 42 anosde atraso em relação à Inglaterra, o público bra-sileiro pôde conhecer o educador Laban, com apublicação de Dança educativa moderna.

A difusão e desenvolvimento dos traba-lhos e das idéias de Laban no Brasil, portanto,fizeram-se principalmente pelo corpo-a-corpo,pelos contatos e buscas individuais de artistas eeducadores: termos foram cunhados, interpre-tações pessoais foram passadas adiante nemsempre com o rigor necessário, práticasfreqüentemente foram alicerçadas em conceitosimprecisos, deixando hiatos teóricos e práticosque persistem ainda hoje. Essas lacunas torna-ram-se questões que sugerem um caminho dediscussão:

• Laban é só Educação?• existe mesmo um “método Laban”?• até que ponto os estudos de Laban são

uma “técnica”?

Dicotomia entre a arte e a educação

A sistematização do trabalho educacional deRudolf Laban começa a ser esboçada em livroem 1926, sendo abortada pelo governo Nacio-nal Socialista da Alemanha em 1930. Nessa épo-ca, eram inúmeras as escolas baseadas nos prin-cípios de Laban em toda a Europa. Labanvisitava suas escolas no máximo uma vez pormês, confiando a seus ex-alunos e performers –portadores ou não do “Laban Diploma” – acontinuidade de seu trabalho. Em 1936, as pro-postas de Laban contra os treinamentosginásticos e a padronização de corpos em prolda expressão individual do ser humano são con-sideradas adversas às do regime nazista, resul-tando no fechamento de suas escolas e na parti-da de Laban para a Inglaterra.

Somente em 1948, portanto dez anos an-tes de sua morte, já na Inglaterra, é que Labanescreve Dança educativa moderna, com a intenção

de sistematizar melhor suas idéias e conheci-mentos para pais e professores. Nesse livro,Laban deixa clara sua devoção e crença na edu-cação através da arte do movimento – ou dadança – associada à liberdade de comunicação eexpressão e, portanto, fonte e caminho para avida, como diria Laban.

Em meados de 1940, Maria Duscheneschega ao Brasil após breve estada na Inglaterra,onde tomou contato com os princípios deLaban (de 1937 a 1939), difundindo-o essenci-almente nos meios educacionais que freqüenta-va. Assim, mesmo tendo sido utilizado na pro-dução de espetáculos na década de 1970 e naeducação de alguns profissionais de dança,Laban acaba entrando no Brasil – via MariaDuschenes – pela porta da Educação, criandoalianças profundas com o ensino-aprendizado ecom os processos escolares e terapêuticos (Navase Dias, 1992). Essa talvez seja uma das razõespelas quais até hoje o senso comum ainda rezeque “Laban é Educação” e, principalmente, edu-cação para crianças.

Por outro lado, já nos primeiros capítu-los de Dança educativa moderna, o próprioLaban estabelece a grande dicotomia entre a Artee a Educação. Reforçado por Lisa Ullmann, noposfácio de 1963, os dois afirmam com intensi-dade que a função da dança na escola não é for-mar artistas, ou mesmo “danças sensacionais”,mas pessoas livres e capazes de expressar ematitudes criativas e conscientes o fluxo natural domovimento humano (Ullmann, 1990, p. 108-10).

A ênfase no processo em detrimento doproduto enfatizada por Laban e por seus segui-dores traz à tona velhas (sempre novas) ques-tões para o ensino de dança nas escolas. É pos-sível ensinar arte sem que se vislumbre oproduto? O conhecimento em arte é viável esignificativo dando-se somente pela experimen-tação de processos? As relações entre arte, indi-víduo e sociedade são possíveis sem a realizaçãodo produto estético?

Para os educadores da época de Laban, aquestão central, no entanto, era outra: “estamosensinando dança ou ensinando pessoas?” (Preston-

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Dunlop & Lahusen, 1990, p. 48). Sem sombrade dúvida, para Laban, o papel da educação eraensinar pessoas, era “[...] ajudar o ser humanopor meio da dança a achar uma relação corpo-ral com a totalidade da existência” (Ullmann,1990, p. 107). O discurso escola-novista deLaban, condizente com o dos pensadores de suaépoca, não o permitia perceber a estreita e in-dispensável relação entre a arte profissional e aarte trabalhada com leigos, principalmente emse tratando de crianças. A dicotomia entre a artee a educação era perfeitamente aceitável e atémesmo louvável, pois o mundo da dança apre-sentava-se até então altamente codificado, pron-to, inabalável, o que feria profundamente seusideais de criação e transformação do ser huma-no por meio da dança. Para Laban, assim comopara muitos educadores da época, processo cri-ativo e apreciação/produção eram mutuamenteexcludentes (Marques, 1997).

Essas idéias de Laban, datadas da primei-ra metade do século XX, deixaram marcas pro-fundas nas práticas e discursos do ensino dedança no Brasil. Não é somente Laban que acre-ditava na dissociação entre o mundo da produ-ção artística profissional e o mundo da educa-ção escolarizada: grande parte do professorado,da classe artística e do público brasileiro até hojedefendem essas idéias, ignorando a necessidadede produção artística para o alunado e de edu-cação – em seu sentido mais amplo – para osprofissionais da dança. As experiências inócuasde laissez-faire em dança que ainda hoje ocor-rem em nossas escolas (jogos com panos, cores,nariz de palhaço, “dance e seja feliz”) estão pro-vavelmente alicerçadas nos argumentos arcaicosde Laban sobre a educação, na falta de uma vi-são mais crítica em relação à dança e à educaçãonos dias de hoje.

Embora em Dança educativa modernaLaban faça constante menção aos benefícios dadança na educação do ser humano “humani-zado”, dedica quase dois terços de seu livro paraexplicar, rever e revolver a importância vital noprocesso educacional criativo da descoberta eaprendizado do fluxo do movimento, de suas

possibilidades no espaço, de suas qualidades (es-forços), formas e trajetórias. A partir da cons-ciência das possibilidades de movimento, diziaLaban, é que a criação, a transformação, a dis-solução de formas e desenhos no “jogo” da dan-ça seriam possíveis (Laban, 1990).

Percebemos que para Laban, a articulaçãode conteúdos específicos atua como elementogerador do processo criativo. Infere-se, portan-to, que a compreensão corporal e intelectual dalinguagem da dança é elemento crucial no pro-cesso de educação, quer do indivíduo, comoafirma em seu livro, quer do profissional dedança.

Poderíamos, assim, inverter esse olharpedagogizante que tomou conta das propostasde Laban se entendermos hoje seus princípiosnão somente como uma proposta de dança naeducação/escola, mas, principalmente, de edu-cação na dança. Educar-se em dança necessaria-mente implica conhecer e apropriar-se corpo-ralmente de suas estruturas formativas (sua‘sintaxe’, sua linguagem) e não somente repro-duzir seus estilos, códigos, passos, princípiosanatômicos e cinesiológicos. O conhecimentoda linguagem da dança, ou o que Laban cha-mou de “coreologia”, possibilita um entendi-mento da dança que compreende a performance,a criação, a apreciação e suas relações com a so-ciedade (Marques, 1999).

Seria extremamente ingênuo, portanto,trazermos hoje as propostas de Laban para ocontexto educacional – profissional ou não –sem que dissolvamos e datemos seus princípiosfilosóficos e educacionais. Ao contrário, suaspropostas assumem relevância somente na me-dida em que são percebidas não como métodosde ensino, mas como subtextos da dança, comolinguagem, como conteúdos educacionais. É oque veremos a seguir.

Existe mesmo um “método Laban”?

Em 1948, com a finalidade de preservar as idéi-as de Laban, é publicada na Inglaterra a revistaThe Laban Art of Movement Guild Magazine,

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cuja primeira referência, escrita por Laban, di-zia que “a associação não poderá empreendercursos, escolas, negócios com fins lucrativos,nem anunciar diretamente nenhum tipo especialde método” (apud Thornton, 1971, p. 19, ênfa-se minha).

Método é um caminho, um caminhopelo qual se chega a um resultado, esperado ounão, previsto ou não. Método é um meio, umatalho, uma forma estabelecida de caminhar, dedirecionar uma ação, de olhar adiante rumo aum objetivo palpável.

Podemos falar de método (ou métodos)de ensino, de métodos de observação, métodosde análise e interpretação, mas, definitivamen-te, não podemos falar de “método Laban”.Laban, inclusive, era avesso aos métodos e aoscaminhos únicos pré-estabelecidos (Lamb, apudThornton, 1971, p. 19), e tratava de estimularcada pessoa de uma forma diferente, incentivan-do o movimento, a descoberta pessoal, o desen-volvimento da personalidade de cada um.

Em nenhum de seus livros, e menos ain-da em Dança educativa moderna, Laban estabe-lece caminhos, seqüências, procedimentos parao aprendizado da dança. Para ele, “[...] o pro-fessor deve encontrar sua própria maneira deestimular os movimentos e, posteriormente, adança [...]” (Laban, 1990, p. 33). Do mesmomodo, Laban não nos ensina como observar omovimento humano, porém aponta o que devee pode ser observado para compreensão da dan-ça, dos movimentos de trabalho, da personali-dade dos indivíduos.

Caso tivesse proposto caminho, ou ummétodo – pedagógico, artístico ou de pesquisa– teria estabelecido ele mesmo um paradoxo emsua proposta de libertar o homem de caminhosjá traçados, de danças prontas, de movimentoscodificados. “Ele queria que suas teorias e des-cobertas fossem vistas como os primeiros pas-sos na estrada para a compreensão do significa-do do movimento e não a palavra definitivasobre o assunto” (Thornton, 1971, p. 20). La-ban, acima de tudo, desejava que as pessoas con-tinuassem investigando e experimentando de

forma fluida, descobrindo formas pessoais dedançar, de ensinar, de observar e de pesquisar ofluxo do movimento humano – em última ins-tância, permitindo o fluxo da vida (Ibid.).

Apesar de suas colocações e convicções,Laban acaba discutindo em seu livro para pais eeducadores algumas posturas metodológicas di-tas benéficas ao desenvolvimento integral da cri-ança, em suas múltiplas possibilidades de cria-ção, eximindo-se, no entanto, de ditar métodosde ensino. Laban prefere aconselhar pais e pro-fessores sobre atitudes adequadas ao desenvol-vimento e cultivo da sensibilidade, da percep-ção, dos impulsos internos e da expressãoindividual de cada um. De influência claramen-te escola-novista, sugere que sejam atentos, queobservem, que aprendam junto com os alunose que, principalmente, não julguem ou interfi-ram na criação individual de cada um.

Mesmo com ênfase na criação individuale intransferível da movimentação e escolha in-dividual, Laban não deixa em momento algumde estabelecer parâmetros para criação. Comofaz questão de lembrar Lisa Ullmann no posfá-cio de Dança educativa moderna, “de maneiraalguma [a dança] deve ser caoticamente livre”(1990, p. 114). Esses parâmetros, no entanto,não são parâmetros metodológicos e sim deconteúdo. A ferramenta de trabalho que Labanoferece aos pais e professores são os temas demovimento, ou seja, a coreologia. Laban ofere-ce os elementos da linguagem para que cada umcrie sua aula, seu programa, seu currículo, suadança, sua vida, enfim.

A ênfase de Laban tanto nos processos cri-ativos em dança quanto na importância da ex-perimentação e da transformação do movimen-to consciente faz com que, para os desavisados,uma “aula Laban” seja sinônimo irrevogável deuma aula de improvisação ou, para os leigos,uma aula de “expressão corporal”. A improvisa-ção em dança, no entanto, não é reduto dos‘labanianos’, mas tão somente uma das possibi-lidades de conhecer seus princípios de movi-mento. Por outro lado, podemos pensar que osprincípios de movimento decodificados por

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Laban podem ser elementos estruturadores deuma improvisação (peso, espaço, forma, tensõesespaciais, etc.), na mesma medida que estrutu-ram uma composição coreográfica ou uma aulade técnica codificada, como veremos a seguir.

Uma questão de técnica

Consciente do poder do movimento e da dan-ça na formação do caráter, da personalidade eda cidadania, Laban propõe, já no primeiro pre-fácio de Dança educativa moderna, em 1948,que a dança, para alcançar seus objetivos de li-bertação e desenvolvimento humanos, deveriaser uma “dança livre”, ou ainda uma “técnica dedança livre”. Buscava com isso diferenciar suaspropostas das danças existentes na época, ouseja, do balé clássico e das danças de salão.

Lisa Ullmann, em 1963, acrescenta àsidéias de Laban uma explicação do que seriaexatamente essa técnica: “uma técnica de dança‘livre’, ou seja, liberada de um estilo idealizadosegundo normas específicas” (Ullmann 1990, p.114). Insiste, mais uma vez, que não é por issoque deva ser “caoticamente livre”. Para Ull-mann, a técnica é necessária à aquisição de ex-periência, mas deve estar necessariamente liga-da à compreensão do conteúdo do movimento.Ou seja, dentro de conceitos específicos deter-minados e claros – e não de formas externasimpostas de fora para dentro –, cada um podecriar e desenvolver sua própria maneira de dançar.

Ainda hoje, das práticas do balé clássicoàs da nova dança, modelos de corpo e movi-mento e, portanto, de indivíduo e de socieda-de, continuam sendo impressos no mundo apartir das técnicas codificadas de dança. Cor-pos de bailarinos e leigos continuam tomandoformas unificadas, pasteurizando também for-mas de pensar e de agir em sociedade via aulasde técnica.

Para muitos da área de dança, essas aulassão sinônimos (positivos) de aquisição de habi-lidades que, praticadas regularmente, podem sermantidas e usadas como vocabulário específicopara os trabalhos de dança (Hodgson & Preston-

Dunlop, 1990). Ao contrário disso, a “técnicade dança livre” de Laban buscava ampliar essevocabulário de dança, trazendo da experiênciade cada um novos arranjos, caminhos e possibi-lidades para dançar. Para Laban, conhecer o usode energia, de peso, das possibilidades do fluxodo movimento no espaço (etc.), era como ad-quirir um outro tipo de “habilidade”, uma ha-bilidade que abre portas e diferencia as pessoas,pois permite a expressão e a comunicação pes-soal e intransferível de cada um.

Discussões mais recentes na área de Edu-cação Somática estenderam o conceito de téc-nica para a dança, propondo-se a trabalhar maiscom os “fundamentos” do movimento – queincluem a respiração, o alinhamento, a flexibi-lidade, entre outros – em detrimento do condi-cionamento e da codificação do corpo. Em al-guns países, os princípios de Laban são tomadoscomo uma prática de Educação Somática, ladoa lado das práticas de Feldenkrais, Eutonia, en-tre outros.

Não é de se estranhar, portanto, que osbailarinos “mais técnicos”, intérpretes não cria-dores da dança, até hoje desconheçam e/ou re-pudiem as idéias de Laban, não direcionadaspara um condicionamento corporal específico,codificado, condicionamento esse supostamen-te bom para todos aqueles que almejam um lu-gar ao sol no mundo tradicional da dança.

Contemporaneamente, as propostas deLaban, se entendidas como linguagem, podemter um papel primordial até mesmo na compre-ensão e execução das próprias técnicas codifica-das, desconstruindo-as. Os estudos de Labanpermitem a observação, análise e percepção cor-poral e intelectual dos elementos de movimen-to embutidos nos diferentes estilos de dança e,conseqüentemente, dos aspectos sócio-político-culturais dessa dança. Ou seja, ao estudarmos,vivenciarmos e compreendermos a linguagemda dança, compreenderemos também suas men-sagens subliminares, pois a linguagem tem sig-nificação. Dessa forma, não mais faremos inge-nuamente uma aula de balé, ou de nova dança,ou de flamenco, mas teremos a possibilidade de

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ter uma maior consciência de como essas técni-cas estão construindo nossos corpos e nos suge-rindo que tipo de cidadania.

Para concluir

As propostas de dança e ensino de Rudolf Laban,se recontextualizadas, continuam fazendo sen-tido na formação do artista-docente-cidadão do

século XXI. Suas contribuições para a decodifi-cação da linguagem da dança, na arte da perfor-mance ou na escola, permitem olhar e viver adança sob diversos ângulos, de forma relacional,consciente e profunda. Diferentemente do laissez-faire com que foi e ainda é confundido no Bra-sil, o conhecimento das propostas de Laban nospermite vivenciar, via dança, uma cidadaniaaberta, crítica, múltipla e transformadora.

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