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A dança «en-cena» o outro: prerrogativas para uma educação estética através do processo criativo Flávio Soares Alves * Resumo: A dança instala no corpo uma outra cena de sentidos que potencializa a ação criativa, assim, quando o corpo dança, sua percepção é aguçada em direção a estados alterados da consciência. Neste nível perceptível, instalado em meio ao processo criativo, técnica (a competência) e liberdade (a performance) se relacionam, e criam, como efeito, a dança. A partir desta evidência, que aqui será sustentada segundo um cruzamento de leituras entre a psicanálise e a filosofia, lanço-me a uma reflexão sobre a percepção corporal na dança, na tentativa de situar a atuação criativa. Assim, abro um caminho para entender o processo criativo como campo de sensibilização corporal, a partir do qual a intervenção educativa é efetivada no corpo. Palavras-chave: Dança. Cinésica. Psicanálise. Criatividade. 1 INTRODUÇÃO Alguma vez, leitor gentil, já lhe aconteceu viver uma experiência que dominasse completamente seu peito, seus pensamentos e sua mente, fazendo com que esquecesse tudo o mais? Nesse caso, sentiria um fermentar e ferver dentro de você, o sangue percorreria suas veias qual brasa ardente, colorindo vivamente suas faces. Seu olhar seria tão estranho como se quisesse apreender, no espaço vazio, formas invisíveis a qualquer outro olho, enquanto as palavras se desfariam em lúgubres suspiros Aí os amigos indagariam: “Como vai meu caro?” – E então você haveria de querer descrever a visão interior com todas as suas cores brilhantes, as sombras e as luzes, e você haveria de extenuar-se na procura das palavras para apenas começar a descrever o sucedido [...] (HOFFMAN, apud CESAROTTO, 1996, p. 29-30). Esse trecho extraído do conto “O homem de areia”, de Hoffmann, bem poderia fazer referência à dança. Trata-se, no entanto, de uma introdução narrativa que prepara o leitor para um conto fantástico. Há quem diga que a dança também é fantástica. O estado corporal de um artista à beira do processo criativo, ou de um espectador, mergulhado na emanação energética que o prende à contemplação de uma atuação artístico-corporal é um estado fantástico. A experiência fantástica de dançar é um momento de insólita percepção. Nela, é como se a unidade do Eu se evadisse revelando, na vazão deste egresso fugaz, a atuação de um corpo Outro 1 por ele próprio desconhecido. Daí seu caráter inconcebível na concretude real. Não falo aqui de uma dança específica, mas do ato de se entregar à dança, ou seja, à espontaneidade da atuação corporal. Através deste deslocamento, o corpo se coloca à disposição em relação à abertura da profundidade de si. O artista pode achar que domina a própria atuação, no entanto, aquilo que emana de sua dança é sempre mais do que a percepção calculada

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A dana en-cena o outro: prerrogativas para uma educao esttica atravs do processo criativoFlvio Soares Alves *Resumo:A dana instala no corpo uma outra cena de sentidos que potencializa a ao criativa, assim, quando o corpo dana, sua percepo aguada em direo a estados alterados da conscincia. Neste nvel perceptvel, instalado em meio ao processo criativo, tcnica (a competncia) e liberdade (a performance) se relacionam, e criam, como efeito, a dana. A partir desta evidncia, que aqui ser sustentada segundo um cruzamento de leituras entre a psicanlise e a filosofia, lano-me a uma reflexo sobre a percepo corporal na dana, na tentativa de situar a atuao criativa. Assim, abro um caminho para entender o processo criativo como campo de sensibilizao corporal, a partir do qual a interveno educativa efetivada no corpo.

Palavras-chave:Dana. Cinsica. Psicanlise. Criatividade.1 INTRODUOAlguma vez, leitor gentil, j lhe aconteceu viver uma experincia que dominasse completamente seu peito, seus pensamentos e sua mente, fazendo com que esquecesse tudo o mais? Nesse caso, sentiria um fermentar e ferver dentro de voc, o sangue percorreria suas veias qual brasa ardente, colorindo vivamente suas faces. Seu olhar seria to estranho como se quisesse apreender, no espao vazio, formas invisveis a qualquer outro olho, enquanto as palavras se desfariam em lgubres suspiros A os amigos indagariam: Como vai meu caro? E ento voc haveria de querer descrever a viso interior com todas as suas cores brilhantes, as sombras e as luzes, e voc haveria de extenuar-se na procura das palavras para apenas comear a descrever o sucedido [...] (HOFFMAN, apud CESAROTTO, 1996, p. 29-30).Esse trecho extrado do conto O homem de areia, de Hoffmann, bem poderia fazer referncia dana. Trata-se, no entanto, de uma introduo narrativa que prepara o leitor para um conto fantstico. H quem diga que a dana tambm fantstica. O estado corporal de um artista beira do processo criativo, ou de um espectador, mergulhado na emanao energtica que o prende contemplao de uma atuao artstico-corporal um estado fantstico.A experincia fantstica de danar um momento de inslita percepo. Nela, como se a unidade do Eu se evadisse revelando, na vazo deste egresso fugaz, a atuao de um corpo Outro1por ele prprio desconhecido. Da seu carter inconcebvel na concretude real.No falo aqui de uma dana especfica, mas do ato de se entregar dana, ou seja, espontaneidade da atuao corporal. Atravs deste deslocamento, o corpo se coloca disposio em relao abertura da profundidade de si.O artista pode achar que domina a prpria atuao, no entanto, aquilo que emana de sua dana sempre mais do que a percepo calculada desta atuao sob as vias do entendimento, o que faz despontar a dvida: Quem dana?Pode parecer equvoco atribuir ao Outro a atuao artstica e no ao Eu, mas o leitor danarino h de convir comigo que na dana o corpo excede a seus limites, numa estranha amplitude de atuao. Este excesso o que vaza da unidade de ser um. este excesso o que sobra do contorno da unidade. o gozo, o Outro.At aqui, arrisquei-me observao de alguns conceitos que podem parecer estranhos ao mbito da Educao Fsica. Assim, beiro desagradvel injuno de passar por incompreendido, portanto, preciso cuidado, sobretudo na forma de olhar estas consideraes, para extrair delas um sentido que instigue a leitura do texto e introduza o leitor na perspectiva que o autor assume.Pensando neste cuidado, preciso deixar claro, primeiramente, o entendimento que norteia o ponto de vista do sujeito clssico, uma vez que este entendimento que a cincia moderna assume como referencial, por meio do qual se constitui a ordem do pensamento racional.Descartes instala sobre o corpo a figura do sujeito universal enquadrando, nas formas da cincia moderna, o dualismo platnico. Sobre esse enquadramento, Descartes pergunta sobre o que possvel saber, uma vez instalado definitivamente a fratura cartesiana na ptica do pensamento. Assim, distingue-se o possvel saber circunscrito nos limites da representao daquilo que no se pode reduzir no campo do conhecimento.O clebre aforismo cartesianoPenso, logo existodeixa claro o ponto de vista da cincia moderna. Sob esta perspectiva, o sujeito deve saber que no compreende a experincia em sua totalidade para poder ser um sujeito do saber. Assim, possvel lidar com as funes que operam na faculdade do entendimento, convencionando-se que no existe entre elas uma indeterminao (GAUFEY, 1996, p. 22).Visto dessa forma, no cabe observar a dana como uma experincia fantstica, uma vez que as vias desse entendimento no alcanam, ou melhor, no admitem esta adjetivao, pois ela no se sustenta no real como evidncia passvel de determinao (ALVES, 2006).Neste nvel de verificao, o pensamento racional circunscreve a experincia segundo uma estrutura de entendimento que s apreende aquilo que da experincia admite determinao. Assim, moda cartesiana, o saber condicionado s prerrogativas de um entendimento lgico que descarta tudo que a ele ao entendimento se mostra impalpvel, como a experincia fantstica, por exemplo. Desta maneira, possvel tomar a dana como objeto de estudo e suspend-la frente ao pesquisador como recurso metodolgico que garante a objetividade analtica. Todavia, a, falta a magia, a espontaneidade, a fantasia, justamente devido essncia inapreensvel dessas evidncias (ALVES, 2006).O achado do sujeito do inconsciente deu novas perspectivas crticas a esta construo hegemnica do saber. A releitura cartesiana feita por Freud resgata a noo de sujeito, instalando uma discusso bastante intrigante que ser fundamental para entender o deslocamento analtico proposto neste texto. Segundo Freud, para alm de um sujeito que afirma:Penso, logo existo condicionando, assim, sua existncia a um movimento de pensamento logicamente estruturado (sustentado sob a gide de uma autoria que chama a responsabilidade das experincias vividas na circunscrio do Eu) h um outro movimento de pensamento que constitui o Eu nos interstcios desta unidade possvel de se inscrever como ser. neste enquadramento que Freud introduz o conceito de sujeito do inconsciente, para mostrar que tambm h pensamento, sem a presena de um Eu que cogita (GAUFEY, 1996, p. 11). neste engodo, isto , neste pensamento forjado2, que se observa o Outro em cena, dando uma nova perspectiva de verificao da dana.Se o sujeito clssico reclama pela unidade do ser, a dana no se encontra a, seno na sua reduo especular, pois, na unidade, a dana o relato unssono de um Eu afirmativo que toma para si a autoria da atuao.No se trata aqui, caro leitor, de reafirmar a dualidade platnica, mas alar-se sobre esta fratura como recurso pertinente instalao de uma outra cena, que potencialize a ao criativa e no o que dela se especula. Este desvio consiste em amainar as pretenses coercivas do Ego, para que a espontaneidade possa se ver livre na criao.Ora, se na intensidade de sentidos em curso na vazo da espontaneidade que o corpo se abre sua dimenso criativa de ser, no estaria a o grande gerador de ensino e aprendizado, uma vez que somente a que o corpo se deixa afetar em profundidade? A que ponto os processos de criao da dana podem dialogar com os processos de interveno educacional no corpo? Para responder essa pergunta, deslocamos nossa investigao para a anlise da percepo corporal em meio dana. a, na regncia do Outro, que o processo criativo apresenta prerrogativas de interveno, atravs das quais torna-se possvel desenvolver uma educao esttica.Quem dana em mim quando dano? Certamente eu mesmo, s que em estados alterados da percepo. O objetivo deste texto compreender esta alterao perceptiva como indcio de um outro olhar sobre o corpo na educao.2 ESTADOS ALTERADOS DA CONSCINCIAA dana arrebata a ao motora e transforma sua efetuao numa inscrio vibrante que irrompe do corpo, sem que esse tenha um monitoramento consciente incisivo sobre a expresso.Em meio trajetria gestual no espao, o corpo comprime o tempo, pulverizando seu esquadrinhamento simtrico e amplia a dimenso do espao. Assim, potencializa no o tempo institudo, mas a sua re-criao, dando visibilidade outra temporalidade. Neste deslocamento, o sujeito-atuante altera os estados da conscincia, desbravando os canais perceptivos, para alm dos condicionamentos e determinaes da conscincia cotidiana.O estado alterado da conscincia aquele em que perdemos a noo do tempo (SOARES, 2000). O processo de criao da dana acontece em estados alterados da conscincia. Esta alterao permite a vazo criativa e a representao ativa dos gestos expressivos. Sem ela, a representao se cristaliza e o repertrio coreogrfico se reduz a uma articulao motora seriada, pois se inscreve determinada, no enquadramento linear do espao e do tempo.A espontaneidade do corpo criativo, no entanto, no permite que a arte sucumba aos imperativos da conscincia cotidiana. Assim, quando o corpo se predispe a arte, a conscincia deslocada para outros canais de expresso. como mergulhar dentro de si mesmo e perceber que, no mago da interioridade, o Eu no mais o mesmo, mas um desconhecido que atua revelia dele mesmo. Nesta alterao perceptiva, o sujeito atua num estado de transe3.O transe um estado alterado da conscincia provocado por um esforo de concentrao que vai divergindo simetricamente dentro de si mesmo e se expandindo sem perder o elo com o esforo de concentrao que lhe deu origem. No transe, o olhar penetra alm do consciente, num plano exterior e fora da rbita do controle, eclipsando o Eu espao virtual do narcisismo para adotar diferentes pontos de vista, dobrando-se perante uma interioridade estranha. Nesta outra abordagem perceptiva, a superfcie da conscincia se dilui e mostra um Outro atuante constitutivo deste mesmo Eu que delibera (CESAROTTO, 1996).Qualquer esforo racional em situar esta sintonia desloca-a, fazendo esvaecer sua essncia inapreensvel. O Eu se d conta de que no outro, seno ele prprio atua e reclama pela autoria da performance, por isso, o transe permanece no localizvel. Nada garante sua vazo, s a predisposio espontnea que d visibilidade a esta dimenso perceptiva. A promoo deste estado se d no desarranjo da conscincia, na ampliao de um estado de concentrao que esvazia o Eu dos imperativos da conscincia, liberando-o para uma outra dimenso experimental.O esvaziamento pode ser provocado atravs de exerccios que possibilitem esse deslocamento perceptivo. a que a atuao esttica se aproxima de uma atuao educativa, pois, atravs desses exerccios, o corpo vai aprofundando seu campo de sensibilizao e usando suas habilidades e capacidades fsicas em funo de uma projeo original de si. No curso dessa projeo, o corpo vai constituindo sua tcnica corporal e tecendo sua linguagem. Todavia, tal processo s se faz quando o laboratrio de criao abre caminho para a sensibilizao corporal e este trabalho s alcanado em estados alterados da conscincia. a que reina o processamento criativo.Para chegar aos domnios deste processamento, grupos de experimentao corporal desenvolvem experincias coletivas que instalam no corpo um caminho de sensibilizao. Este mtodo chamado de Instalao, e consiste em instalar no corpo experincias rituais que se repetem a cada incio de trabalho, para aclamar os estados energticos corporais, gerando um campo magntico no corpo, que favorea a alterao perceptiva, com isso, o corpo se torna mais receptivo estimulao sensvel.O trabalho coletivo favorece este deslocamento, pois a experincia relacional gera uma energia coletiva e cria um campo unificado que envolve todos num mesmo limiar de percepo. A experincia coletiva, portanto, amplia o potencial criativo do corpo. O Outro em mim, em contato com a alteridade dos outros na instalao amplia as possibilidades relacionais. O transe esvazia o sujeito das condies que orientam a conscincia cotidiana, potencializando outras maneiras de ser na coletividade, ampliando o trabalho criativo, em detrimento da falncia dos imperativos sociais, na vigncia da instalao.A Instalao fundamental para predispor o sujeito a esta atuao, que se inscreve na suspenso da existncia consciente, na vazo do estado de transe. Nesta outra abordagem do ser, o Eu descobre que no est s dentro de si e, em meio a um e outro esforo de se identificar, estranha a si mesmo na ao de outros Eus emersos da obscuridade da inconscincia.O ato performativo4surge neste nvel de percepo. No momento em que a dana est em processo, o contorno da composio gestual vai se delineando neste movimento performtico e produzindo o repertrio coreogrfico.3 O ARRANJO EM DESARRANJOO processo criativo essencialmente performativo. A apresentao desse processo como produo define o grau de representao5ativa da composio. Quanto mais preocupado com a forma, nas suas dimenses de simetria no tempo e no espao, mais cristalizada a atuao se mostra. Mesmo a, o momento de apresentao ainda recupera resqucios de uma intensidade espontnea, suscitada no momento da re-criao da composio pelo corpo e a que esses resqucios fazem toda diferena.O processo de construo gestual associa signos visuais, corporais e sonoros, numa composio no figurativa de impacto sensorial e emocional. Assim, a composio em dana est sempre sujeita re-estruturao formal, pois, no momento da atuao, h uma tenso primordial que contrape a potncia subjetiva e o esboo da composio gestual em enunciao pelo artista.O potencial subjetivo do intrprete tem o poder de re-figurar a interpretao, na medida em que coloca na atuao algo de si para animar a performance. Quanto maior a vazo deste potencial, mais aberta a obra aos desarranjos do Outro. Na medida em que o Eu se identifica com algumas frases de movimento identificaes imaginrias a obra se torna mais fechada, mas mesmo a ainda est suscetvel a remanejamentos, pois, no momento em que a composio vem tona, sua efetuao sai fora do controle racional e se entrega ao Outro.A arte que se desenvolve por este processo movida por um estmulo pulsante e o pulsar aqui uma imagem potica para o estmulo que instiga celebrado como energia perene, em eterno retorno na vazo do processo criativo. Dependendo da maneira com a qual se quer organizar a performance, se intensifica ou se canaliza esta energia, estabelecendo parmetros e limites a este vigor energtico que sustenta a atuao.Todavia, seja qual for o nvel de organizao proposto, o inconsciente que faz transparecer o sujeito do discurso (ou seja, aquele que atua) para alm das identificaes imaginrias, fazendo com que o sujeito aparea como efeito significante. Para Lacan, a significao est em constante deslocamento na ordem do significante. O advento de sentido efeito significante na linearidade do acontecimento (LACAN, 1978, p. 233).No somos alheios, no entanto, aos nossos interesses, exatamente na curiosidade que o desejo mais se evidencia (CESAROTTO, 1996). O que nos intima a criar, a curiosidade de fazer valer outra maneira, sempre outra a cada vez o que d dinmica ao intangvel desejo, fazendo-nos mergulhar na pesquisa de movimento e no processo criativo. graas a este motim que nos mobilizamos criao e no esgotamos as possibilidades numa nica obra. A forma como se organiza a criao um mero detalhe, desfigurado a cada nova proposta de trabalho.O que preciso deixar claro que, no importa a maneira como se organiza a performance. Desde a mais estvel composio, inscrita num linear metricamente codificado, at a performance mais aberta em processo a atuao sempre passa pelos crivos da eventualidade, que marca os desvios e a vontade de outras possibilidades expressivas. Eis a a face subversiva da dana. este arranjo (tcnica) em desarranjo (liberdade) que d luminosidade performance, assegurando seu carter fantstico.4 LIBERDADE E TCNICAO corpo treinado e habilidoso de um artista usa suas capacidades fsicas e sua genialidade para operar as habilidades tcnicas adquiridas a seu favor, no s para atestar sua competncia tcnica, mas para potencializar a vazo de sua capacidade criativa sobre este contorno sistmico da motricidade o desempenho lingustico sobrepondo-se competncia lingustica.Trocando em midos, trata-se da relao entre liberdade e tcnica. A liberdade o que faz a tcnica ser mais que mera proposio, uma energia percebida no ato que aponta e mostra um fim provisrio do gesto. A liberdade o que permite o lapidar da tcnica na impetuosidade do ato performtico. No h desempenho sem esta relao dual entre liberdade e tcnica, pois a tenso entre ambas que permite a evoluo da performance. esta tenso que d luminosidade ao gesto artstico, o que sobra, para alm das proposies tcnicas, seja no nvel esttico de organizao da performance (de estrutura narrativa e linear), seja no nvel da presena cnica (de estrutura plural, em devir). A diferena entre ambas est na maneira como se desenvolvem os processos energticos, responsveis em tornar ativa esta tenso no gesto artstico.Estes processos desestabilizam a funo reguladora da conscincia, abrindo caminho para a criao. Sua vazo brota da implicao entre a tcnica e a liberdade fazendo alargar as margens da conscincia, possibilitando o resgate de imagens6, imersas na obscuridade inconsciente, na efetuao da dana, ou seja, na tenso produtiva entre tcnica e liberdade.A tenso produzida pela atuao desses processos energticos sentida como algo que precisa ser descarregado. A dana um canal de descarga dessa energia.O artista atua na fruio energtica que emana de suas aes corporais, preenchendo a composio a partir deste estmulo energtico que lhe acomete e no a partir de algo imposto, exterior ao corpo.Quando o artista organiza esta vazo de maneira linear e narrativa, mais estveis os graus de atuao energtica, acentuando os graus de monitorao consciente e mais previsvel o desencadeamento da composio, ofuscando a natureza pulsante dessa emanao energtica. Por outro lado, quando a performance se organiza de maneira plural, valorizando a atuao no espao-tempo em que se d como evento, maior os riscos de remanejamento estrutural da composio, dando performance seu carter eminentemente processual.De qualquer maneira, o estado de transe mais intenso no processo de criao da dana, no momento em que o corpo se d imprevisibilidade da improvisao, do que no ato de sua apresentao performtica, visto que os elos que agregam os gestos numa composio limitam sua capacidade representacional a uma ideia de organizao (seja ela esttica ou presena cnica).Se esta apresentao tomada como um trabalho em processo, mais ativos os graus de representao desta composio eventual. Todavia, mesmo a mais indita e intensa apresentao gestual no processo de criao, no mais do que um referente, ou seja, uma possibilidade de representao despertada num estado alterado de conscincia. Cabe ao artista manter ativo este ndice de representatividade, mantendo sua atuao artstica o mais prximo possvel do estado de transe. Quanto mais o corpo est receptivo ao estado de transe, mas facilmente est predisposto ao processo criativo.A receptividade corporal favorece a instalao de uma outra cena no corpo, que atravessa as dimenses da fisicalidade e penetra no interior deste organismo funcional, verificando o que ali pulsa no limite entre o fsico e o psquico, despertando os domnios da inconscincia com os estmulos da instalao. Esta atuao se d como efeito na relao entre o fsico e o psquico, entre a tcnica e a liberdade, entre Dionsio e Apolo sintetizando-se aqui, a tenso dual entre opostos que possibilita a expresso.5 A DINMICA DO DESEJOOs caminhos desta experincia forjada no so bem trilhados, pois so extenses da conscincia embevecida, em busca dos processos inconscientes. O que aparece razo sempre efeito especular, isto , configura-se como enunciado, em defasagem em relao enunciao dada no momento da atuao.Segundo Lacan, a defasagem entre enunciado e enunciao vem do achado do sujeito do inconsciente que instala, necessariamente, uma relao elptica entre o Eu lugar de desconhecimento e o Outro o atuante do discurso. Devido a esta injuno, o sujeito da enunciao pode faltar no enunciado, pois no cabe nesta sntese unvoca e especular (LACAN, 1978).A enunciao corre por conta do inconsciente. A quem reclama a autoria da enunciao o Eu resta o retorno especular do discurso o enunciado (Lacan, 1978). Da a pergunta de Lacan: Quem fala? Esta resposta no poderia vir do Eu, se ele no sabe o que diz, nem mesmo que fala(LACAN, 1978, p. 283). O sujeito se eclipsa a, sustentando-se entre a verdade a saber.Ora, em que este saber psicanaltico pode contribuir na verificao sobre a dana? bem verdade que a psicanlise lacaniana se fecha no mbito da oralidade, todavia, possvel deslocar termos do discurso psicanaltico, num vis paralelo que traa relaes de similaridade entre este discurso e a experincia da dana.Para Lacan, a letra seria esse suporte material que o discurso concreto empresta linguagem (LACAN, 1978, p. 225). Assim, se considerarmos a letra lacaniana neste deslocamento proposto, tal estrutura lxica pode ser interpretada como a clula de movimento, ou mesmo a frase que compe a composio coreogrfica e, a partir da, dar sequncia a este desdobramento.L, onde o corpo se move, na fruio energtica que o atravessa, se d a enunciao. Quando uma composio gestual se esboa e se traa uma ligao, mais ou menos estvel entre gestos, formando um linear coreogrfico, o corpo memoriza esta inscrio num enunciado (cogito). A imagem/gesto memorizada tem a funo da letra, um processo de codificao que se estabelece para organizar a expresso.A tendncia do enunciado se apagar, ou seja, o linear cinemtico de uma composio, na ordem do enunciado, tende a uma estrutura ausente, desconexa, sem sentido. Para Lacan, a letra (o enunciado) mata, enquanto que o esprito da ordem do inconsciente vivifica (LACAN, 1978). A enunciao, portanto quem reabilita o enunciado. Esta converso entre enunciado e enunciao, no entanto, no pode ser controlada, pois corre por conta do trabalho inconsciente.Sintetiza-se a a determinao do desejo, pois o sujeito anseia por diluir a defasagem entre enunciado e enunciao, alcanando, enfim, a verdade do sujeito e rompendo com a elipse que o mantm fadado a penarentreuma verdade por vir. Todavia, este fim no lhe possvel, pois no ele, mas Outro, faz retornar eternamente essa injuno, da o constante escoamento de significantes que deem conta de uma necessidade de expresso sempre em pulsao.

6 E POR FALAR EM DESEJO...A expresso do corpo em meio dana, portanto, um momento de inslita percepo de si, no qual o enunciado anarquizado por sua prpria enunciao, revelando, assim, a superdeterminao do inconsciente no momento da performance. O artista se coloca frente a si mesmo como num espelho, mas, na imagem, o corpo no se reconhece, embora esteja todo projetado na atuao artstica7.Esta assimetria impe a diferena no registro do idntico, forando a alteridade. Por esse vis, aquilo que seria o mais conhecido e familiar, a prpria imagem, vira estranho. Eis a a dimenso do Outro, pois excede ao controle do Eu (CESAROTTO, 1996).Desconhecendo a si mesmo, a dana se projeta na alada de um Outro, do qual s reconhecido o que se mostra semelhante a si. A sobra evade e a que a atuao artstica se ilumina e encanta, surpreende, arrebata. Este registro revela a ao criativa, aquela que deixa seus sulcos no ar, na dinmica da ao corporal no espao.L onde a dana , no momento e que ainda no foi, no vacilo do entendimento deliberado e autocontrolado, em que de nada se especula, mas s se atua, a que o Outro toma as rdeas do corpo, usando os recursos simblicos da dana para se mostrar no vigor mutante da atuao em si.A natureza deste Outro, segundo a leitura freudiana, essencialmente pulsional. Pulso o substrato motor do desejo que reclama por satisfao na efetuao da linguagem. No entanto, esta meta de satisfao inalcanvel, da seu eterno retorno na busca por satisfao.O Outro, portanto, no se revela por completo, dele s conhecemos o que veio luz na expresso da linguagem. atravs da mediao da linguagem que o Outro atende s demandas pulsionais, dando-lhe uma forma espao-temporal.O sujeito encontra-se, portanto, numa injuno existencial: s conhece quem nele atua, na efetuao da linguagem. Desta falha, brota o desejo, um desejo sem parada, em deslocamento contnuo, pois o objeto que causa o desejo o objeto pulsional, irremediavelmente perdido (SANTAELLA, 2004, p. 148).O conceito de pulso, em Freud, est estreitamente ligado dinmica energtica, pois essa dinmica a responsvel por transformar o que sentido como presso em descarga, ou seja, em gesto expressivo. A presso, no entanto, da ordem do somtico, a face positiva do desejo8e seu substrato motor, enquanto que o desejo est em nvel psquico, sentido como algo que falta e que escapa a qualquer tentativa de completude. O desejo est sempre diferindo, escapando do querer consciente, tornando-o insatisfeito. O homem investe suas aes na tentativa de suprir este algo que falta, e a que os processos energticos se evidenciam, dando forma (representao) pulso desejante (BRASILIENSE JNIOR, 1999).Se o sujeito do desejo movido por uma falta intangvel que o mobiliza na tentativa de dar conta desta falta, a dana, por sua vez, acontece em resposta necessidade humana de criar linguagens que atendam a essa falta pulsante.A dana, portanto, se observada sob o olhar freudiano uma possibilidade de fruio da energia pulsional. Todavia, sua efetuao figura no mais que uma possibilidade de representao da pulso. Isto porque a pulso no se apresenta, no temos referncias de sua existncia. Dela s conhecemos o que vem como efeito na linguagem (BRASILIENSE JNIOR, 1999).A representao uma forma de subjugar a pulso, como recurso para poder domin-la. O resultado da subjugao da pulso d origem a um representante, que pode ser a ideia (Vorstellung), ou o afeto (Affekt). Os afetos do a qualidade funcional aos representantes ideacionais (a ideia), ou seja, os afetos dizem respeito qualidade do que vem a luz como representante da pulso (BRASI-LIENSE JNIOR, 1999).Quando se trabalha com as diferentes qualidades de energias expressivas, se trabalha com as diferentes expresses dos afetos no espao cnico. O fluxo da energia afetiva o que transforma a potencia nervosa e muscular em qualidade expressiva, dando o tom ao que est sendo enunciado na atuao.7 A ANGSTIA: PROCESSO DE CRIAONa dana, verifica-se uma energia corporal observvel, mas no mensurvel, que seria o representante da pulso (os afetos). Esta energia sustenta a luminosidade do gesto. O que nos faz pensar que sua atuao desejante o fato de que, ns danarinos, no nos contentamos com uma dana. Cada dana alimenta a vontade de mais dana, de mais movimento. Esta sensao fica evidente no momento do processo criativo. Somos tomados por uma quantidade imensa de imagens que atravessam nosso corpo em forma de movimento, sem que tenhamos um controle consciente desta projeo. A expresso foge s restries do querer consciente e emerge a revelia desta deliberao.Esta efetuao, no entanto, da ordem do representativo, ou seja, faz referncia a algo que pulsa dentro do corpo e que se mobiliza em direo a uma descarga atravs da dana. Todavia, o investimento, em resposta ao pulsar, deixa sempre um resto indicando a insuficincia de qualquer investimento na satisfao deste pulso. a que sinaliza a angstia, aquele sentimento de aperto que nos consome em meio criao, atraindo todas as energias para este processo, sem, com isso, conseguir sanar a falta que nos acomete. Esta injuno mantm intocvel o desejo, e alimenta o processo criativo, na medida em que o criador afetado por esta angstia cortante.A angstia o sentimento que nos toma quando somos surpreendidos por algo estranho que vem luz na experimentao, mas que deveria estar oculto nas brumas da inconscincia. Este estranho sempre retorna, inapreensvel, pois nenhuma representao o subjuga, caracterizando-se a a constncia da pulso.Assim argumenta Cesarotto:As sensaes de aperto, de sufoco, de n na garganta decorrem do fechamento somtico dos interstcios simblicos da subjetividade, que tira o ar. O mximo de estranhamento vem da certeza de ser possvel a impossibilidade de se achar uma sada. (CESAROTTO, 1996, p. 125).A cada novo retorno do estranho, no entanto, novas imagens so suscitadas no corpo, na tentativa de dar conta desta sensao invasiva expressa em meio ao sentimento de angstia. E, aqui, tomo a liberdade de dar meu acrscimo: este investimento alimenta o processo de criao, poisa fonte da angstia no seca jamais (CESAROTTO, 1996, p. 127).Freud identifica na concomitncia desse sentimento de angstia com a sensao de estranheza um trao de comportamento por ele denominado compulso repetio (BRASILIENSE JNIOR, 1999).Quando nos entregamos experimentao do processo criativo, algo similar acontece, alguns movimentos retornam e se repetem, e no sabemos bem o porqu deste retorno. como se sua apresentao, num dado momento no tenha sido suficiente para dar conta de tudo o que, atravs daquele gesto, deveria ser expresso, da seu retorno. No seria este um indicativo da impossibilidade de plena satisfao da pulso?E o mais interessante que cada novo retorno desta imagem/gesto traz consigo novos arranjos gestuais no linear coreogrfico, como se cada frase de movimento expressasse uma perspectiva de viso daquela imagem inapreensvel.A imagem/gesto pode ser uma clula de movimento, ou mesmo uma frase (composta por vrias clulas). Seu carter compulsivo, s vezes, to intenso que a pesquisa corporal desta imagem/gesto pode, por si s, motivar o processo criativo e a produo coreogrfica. Este processo, portanto marcado pela tenso em querer dizer, atravs da dana, sem encontrar, enfim, um dizer que satisfaa plenamente este querer.H na angstia uma tenso entre a possibilidade que quer colocar-se como sntese na realidade e a liberdade que no quer se dobrar sntese, frente diversidade infinita dos possveis9. Esta tenso traz inquietao e desassossego, que so as marcas da angstia. Assim, a angstia seria a atitude limite diante da ecloso da possibilidade, que faz eclipsar a liberdade em seu esforo de evitar a sntese.A dana o processo dessa tenso. A liberdade insiste mesmo com a eminncia da sntese e esta abertura que d margem criao. Quando a possibilidade eclode como evento, se d a sua apresentao, mas algo escapa, prometendo dizer mais se for expressa de outra maneira (as infinitas possibilidades no eventuais). A cada novo investimento, no entanto, o mesmo porm acossa, re-abrindo constantemente o processo criativo. Esta injuno abre um furo na obra de arte que impede de v-la como produto, mas como algo em constante processo.Desta maneira, a angstia que envolve o processo criativo, mobiliza o escoamento de imagens/gestos como recurso de linguagem que d projeo energia da criao. Nesta dinmica, o processo criativo nunca se esgota e est sempre disposto a se re-abrir frente ao desarranjo que instiga a constante re-escrita da dana, nas infinitas possibilidades do itinerrio gestual.Este eterno retorno ao processo nos leva ao problema que estimulou a pesquisa: se na intensidade de sentidos em curso neste eterno retorno que o corpo se abre a sua dimenso criativa de ser, no estaria a o grande gerador de ensino e aprendizado, uma vez que somente a nos domnios do processo criativo que o corpo se deixa afetar em profundidade?8 CONSIDERAES FINAIS

Toda esta discusso sobre a performance na dana, a diferena entre graus ativos de energia numa atuao, o curso intempestivo da composio em dana e o trao furtivo do Outro nas relaes em ato, querem chamar a ateno para uma outra perspectiva da educao corporal. Quando se analisa estas prerrogativas de criao gestual, abrem-se as dimenses do processamento criativo e a que arte e educao encontram infinitas possibilidades de dilogo. Todavia, tal dilogo s possvel neste deslocamento do olhar, que considera a educao como um processo criativo.Atravs do processo criativo, o corpo constri para si sentidos no curso daquilo que lhe afeta em profundidade, nos domnios da sensibilidade. O que o afeta no mundo e em si mesmo o grande regente de seu processo educacional esttico. Sem esta atuao potencial, o corpo no passaria de uma mquina regrada, alienada por imperativos descorporificados, postos sobre o corpo como malha condicionante. Neste mal entendido da atuao corporal, as convenes e os determinismos sociais so priorizados em detrimento da potncia criativa, da a percepo da educao no corpo como um processo de aquisio mecnica de conhecimento. O processo criativo, no entanto, inverte este processo, proclamando o poder do corpo como agente atuante e fundamental do processo educacional. Assim sendo, a educao algo que emerge do corpo, na medida em que ele se deixa afetar.Tal deslocamento, no entanto, s possvel quando se mexe na perspectiva educacional. Antes de traar de fins serem alcanados, o prprio processo educativo deve se reconhecer como um fim em si mesmo. a que a interveno pode ser vista como um laboratrio de criao, que permite ao corpo experimentar-se ao sabor do processamento criativo. Este deslocamento no admite uma percepo dicotmica que coloca o corpo como objeto da educao. Para tanto, preciso alterar a percepo autocontrolada, segura de si e de sua capacidade de aquisio e assimilao de conhecimento. Da a necessidade em se trabalhar a dana no ato em que ela se faz como evento, para extrair da, ou melhor, para se trabalhar a, a furtiva percepo corporal que lhe prpria, campo frtil de sensibilizao e de educao esttica.A percepo corporal no momento em que a dana ato, faz surgir um atuante elptico de si mesmo, agente potencial de criaes, na vazo da espontaneidade. A partir deste processo espontneo, o artista faz sua arte, ao mesmo tempo em que contorna um processo educativo esttico nas vias desta atuao. Visto sob esta perspectiva, a educao atravs das artes corporais s pode ser concebida num duplo movimento do olhar: ao mesmo tempo em que se projeta na vazo de sua espontaneidade, vai se constituindo, como unidade objetal passvel de ser verificada como objeto de conhecimento, no enquadramento daquilo que insistimos chamar de tcnica corporal.As negociaes sobre esta criao podem favorecer a espontaneidade no caso da arte performtica ou o contorno desta unidade a estrutura lxica constitutiva do cdigo (a forma do gesto). Quem faz a mediao desta negociao o processo criativo. atravs dele que o artista trabalha a forma do movimento como material em constante re-constituio formal. Da o eterno retorno do processo, como recurso para dar vida forma, uma vez que esta tende inevitavelmente a uma estrutura ausente, inspita de saber e sentidos.A dana, portanto, no est na estrutura linear de sua composio gestual, mas na dinmica que fora transformao deste linear, nas intensidades em curso em meio atuao. Visto sob esse olhar, no h atuante nem tcnica corporal se estes no forem observados nas relaes em ato. impossvel verificar justamente suas marcas, isto , aquilo que figura como tcnica corporal, sem que esta seja plena dinmica relacional.O processo criativo, na dana, inaugura um novo olhar sobre o itinerrio do corpo. Como o corpo organiza seu fazer? O curso deste processo revela uma metodologia que no dadaa prioricomo meio previamente estruturado, mas como fim provisrio, a cada novo investimento criativo. Assim, a inscrita do mtodo est sempre por vir nos campos de intensidade e sentidos eventualmente experimentados. no curso destas relaes eventuais, na regncia da angstia, do desejo, da vontade de expresso e transformao que o corpo vai traando seus caminhos e apreendendo uma linguagem corporal, trabalhando-a ao sabor de suas necessidades de expresso.O processo criativo na dana, portanto, pode ser considerado como um processo educativo esttico, pois permite ao danarino possibilidades de trabalhar a tcnica corporal no como algo posto e imposto frente passividade alienante de um corpo adestrado, mas como um agente potencial de criao da linguagem corporal, no trao espontneo do processamento criativo. Sob este olhar, a tcnica corporal no um objeto e/ou objetivo a ser alcanado, mas o prprio atuante furtivo em curso nos laboratrios de experimentao.Sob esse mesmo olhar, pode-se verificar o processo educativo. A cada novo investimento da atuao criativa, a dana eleva os nveis de ensino e aprendizado a novos patamares. Como efeito da interveno educativa, no vemos a atuao em si, mas os resultados os patamares em que o corpo em processo educativo se encontra. Todavia, a no est o processo educativo, seno no seu trao especular, isto , no trao mnimo possvel para se prever sua evoluo. Sendo assim, a educao se a considerarmos como o processo que afeta o corpo s pode ser justamente verificada no trao do atuante furtivo, em vigor na vazo da espontaneidade, nos laboratrios de criao. a que a educao se confunde com os caminhos da dana, inspirando os educadores a novos olhares sobre seu campo de conhecimento e sobre os modos a partir dos quais este conhecimento disseminado no processo educativo.Os processos criativos na dana nos alertam para a necessidade de abrir caminho na educao para a busca da sensibilizao corporal no trao de um Outro em cena. S ento o corpo capaz de estruturar seu caminho, sua tcnica, no curso de sua prpria interao com a linguagem corporal. na vazo destes domnios, por vir em meio ao processo, que o corpo descobre o que lhe afeta, tomando para si o aprendizado de uma linguagem corporal, para efetu-la no curso original de seus prprios desejos.The dance (on) stage(s) the Other: prerogatives for an aesthetic education through the creative process

Abstract:The dance installs in the body another scene of senses that raises the creative performance and not that can be speculated about it. There, who dance is the Other one, making the body acting of another manner, beyond the systemic contour of Ego. Without the presence of this forged performance, the body would not pass of one ruled machine in function of something and not in favor of himself, as original movement of him-self. This article intends to make a reflection about the corporal perception in the dance, trying to point out the creative performance. So, we opened a way to under-stand the process creative as field of corporal sensitization where the educative intervention is accompli-shed in the body.

Keywords: Dancing. Kinesics. Psychoanalysis. Creativeness.La danza en cena el Otro: prerrogativas para una educacin esttica con el proceso creativo

Resumen: La danza instala en el cuerpo otra escena de sentidos que levanta el funcionamiento creativo y no que se puede especular sobre l. All, quin dana es el Otro, haciendo el cuerpo actuar de otra manera, ms all del contorno sistmico del Ego. Sin la presencia de este funcionamiento forjado, el cuerpo no paso de una mquina gobernada en funcin de algo y no a favor de l, como movimiento original de l mismo. Este artculo se prepone hacer una reflexin sobre la percepcion corporal en la danza, intentando precisar el funcionamiento creativo. As pues, abrimos una manera de entender el proceso creativo como campo de la sensibilizacin corporal donde la intervencin educativa se logra en el cuerpo.

Palabras clave: Baile. Cinsica. Psicoanlisis. Criati-vidad.REFERNCIASBRASILIENSE, L. S.O desejo da psicanlise. Porto Alegre: Sulina, 1999.BRITTO, A. B.O inconsciente no processo criativo do ator:por uma cena dos sentidos. Dissertao (Mestrado). Escola de Comunicao e Artes da USP. So Paulo, 2001.CESAROTTO, O.No olho do Outro.So Paulo: Iluminuras, 1996.COHEN, R.Performance como linguagem: criao de um espao-tempo de experimentao. So Paulo: Perspectiva, USP, 1989.DEVEREUX, O.Xamanismo e as linhas misteriosas. Lisboa: Estampa, 1993JUNG, G. C.O Esprito da Arte e na Cincia.Petrpolis, RJ: Vozes, 1991.KATZ, H. Com sofisticao, Cena 11 investiga o movimento. In:O Estado de So Paulo,So Paulo,Caderno 2. Dana Crtica; 6 jul. 2005.LACAN, J.Escritos.Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.NIETZSCHE, F.Trechos escolhidos. So Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleo Os Pensadores).PIGNATARI, D.O que comunicao potica.Cotia: Ateli, 2004SANTAELLA, L.Corpo e Comunicao: sintoma da cultura. So Paulo: Paulus, 2004.SOARES, M. V.Tcnica Energtica: fundamentos corporais de expresso e movimento criativo. Tese (Doutorado). Instituto de Artes. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2000.NOTAS* Graduado em Educao Fsica (Licenciatura) pela UNESP. Mestre em Artes pela Unicamp. Cursando Doutorado em Educao Fsica rea de concentrao: Pedagogia do Movimento Humano na Escola de Educao Fsica e Esportes da USP. So Paulo, SP, Brasil. E-mail:[email protected] O Outro no Eu diz respeito alteridade radical, que no se confunde com o semelhante. Corresponde ao registro simblico, no qual se desenvolve a Linguagem, ou o Inconsciente (LACAN, 1998).2 Freud reduz estas impresses na ordem do sintoma (GAUFEY, 1996, p. 11). Esta verificao no interessa para este ensaio. Foi em Freud que o achado do sujeito do inconsciente teve sua expresso inaugural, todavia, so os desdobramentos que da decorreram revelando novas dimenses sobre o conceito de inconsciente que inspira a um cruzamento de leituras atento aos objetivos deste estudo.3 A palavra transe vem do latim transitus que quer dizer passagem. Segundo a anlise de Devereux, sobre o Xamanismo, o transe inter-relaciona os nveis psquico e fsico, liberando energias reprimidas e reintegrando o homem com uma dimenso divina (DEVEREUX, 1993, p. 129).4 Referncia arte de Performance, na qual o artista desloca o valor da obra para o momento de criao, rompendo com a representao elaborada e valorizando a expresso cnica em sua relao espao-temporal. Neste deslocamento, a arte s se justifica e s significa no momento de sua criao, isto , o significante artstico s significa no contexto em que foi criado e este espao tempo de criao justifica a obra (COHEN, 1989).5 O termo representao, aqui empregado, remete concepo de representao na arte de vanguarda, na qual no possvel conceber um sentido comum ao que representa, como objeto definido e idntico ao referente. Tanto o atuante quanto os espectadores (os interpretantes) entram no processo de delimitao desta representao, mas cada qual na sua individualidade, interpretando o que o afeta na apresentao. Assim, entre a representao e o referente, h um terceiro, o interpretante, que constri sentidos. Da o carter plural e no linear da representao, pois afeta a sensibilidade do interpretante, cada qual mediante seu ponto de sensibilizao (Cf. BRITTO, 2001).6 O termo imagem est sendo utilizado segundo a leitura de Jung que toma o conceito de imagem verificando-o como possibilidade de ideias inatas, ou seja, como possibilidade de uma imagem arquetpica que irrompe dos processos inconscientes na atividade consciente no constante escoamento imagtico dessa imagem primordial intangvel (JUNG, 1991).7 A abordagem de Lacan sobre o estgio do espelho, inspirou-me a esta parfrase que tange dana. Para Lacan, o Eu constitui a si mesmo na imagem do prprio corpo, que se mostra ao Eu como um outro semelhante a ele. O Eu se forma atravs da imagem do outro (o semelhante). o outro que possui sua imagem e no ele prprio, por isso a ideia de que o Eu um lugar de desconhecimento. Sintetiza-se a o estgio do espelho (LACAN, 1978, p. 251-252; SANTAELLA, 2004, p. 144-145).8 Freud nunca estruturou uma teoria do desejo usando o termo em si, embora no falasse de outra coisa seno do desejo (como querer inconsciente, fora do alcance do querer consciente). Lacan quem faz uso desse termo para situar sua releitura de Freud (BRASILIENSE JNIOR, 1999, p. 115).9 A relao de tenso entre possibilidade e liberdade na angstia foi conceituada pelo filsofo Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855). As reflexes sobre a angstia presentes neste texto esto baseadas nos estudos sobre Angstia realizados quando participei como ouvinte da V Jornada Corpolinguagem Angstia: o afeto que no engana, evento promovido pelo grupo Sema-Soma, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) de 19 a 21 de outubro de 2005, na Unicamp. Especialmente sobre a angstia em Kierkegaard, foi fundamental as anotaes realizadas durante a palestra ministrada pela Profa. Dra. Silvia Saviano Sampaio, do Depto. de Filosofia da PUC de So Paulo (sesso plenria: Kierkegaard e a psicossomtica).