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1
CLÓVIS TREZZI
A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO
MÉDIO: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE RICOEUR
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
2
CLÓVIS TREZZI
A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO
MÉDIO: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE RICOEUR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Cidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profª Draª Margaréte May Berkembrock-Rosito.
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
3
Ficha elaborada pela Biblioteca Prof. Lúcio de Souza. UNICID
T818e
Trezzi, Clóvis. A educação estética na formação de professores no ensino médio: um estudo sobre a contribuição de Ricoeur / Clóvis Trezzi --- São Paulo, 2010. 112 p.; anexos Bibliografia Dissertação (Mestrado) - Universidade Cidade de São Paulo. Orientadora Profª.Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito 1. Formação docente. 2. Educação estética. 3. Ricoeur, Paul. I. Berkenbrock-Rosito, Margaréte May. II. Titulo.
371.12
a
4
_________________________________
_________________________________
_________________________________
COMISSÃO JULGADORA
5
Dedico este trabalho à minha
mãe, Maria, ao meu pai, Atílio, já
falecido, a meus irmãos Pedro e
Beatriz, e a todos aqueles que
confiaram em mim.
6
AGRADECIMENTOS
À Doutora Margaréte May Barkembrock-Rosito, pelas horas de paciência
dedicadas à orientação deste trabalho, e pelo muito que me ensinou ao longo
destes quase dois anos.
À Doutora Mary Rangel e ao Doutor Júlio Gomes Almeida, que participaram da
banca examinadora, que leram este trabalho com espírito crítico, e me
ajudaram a buscar o melhor.
Aos Doutores Potiguara Pereira, Ecleide Furlanetto, Edileine Vieira, Jair Militão
e João Gualberto, que juntamente com o Doutor Julio e a Doutora Margaréte
foram meus professores, pelo incentivo e pelo muito que aprendi com eles.
À Doutora Ecleide Furlanetto, pela confiança em mim depositada desde a
primeira entrevista.
Aos Irmãos Lassalistas que comigo conviveram durante o tempo de mestrado,
e que suportaram minhas ausências.
À família lassalista, de maneira especial aos Irmãos, que me acolheram e me
apoiaram.
Ao professor Marcos Luciano Corsatto, pela revisão feita.
Aos colegas com os quais convivi neste período, pelas preciosas contribuições
que deram para meu trabalho.
7
Não consigo abandonar-me, quero saber quem sou. Uma
coisa percebo com clareza. As memórias que emergiram
desde o início daquilo que penso ser meu coma são
obscuras, nebulosas e estão dispostas como um mosaico,
com soluções de continuidade, incertezas, lacerações,
fragmentações (por que não consigo recordar o rosto de
Lila?). As de Solara, e as de Milão depois do despertar no
hospital, são, ao contrário, claras, escorrem segundo uma
sequência lógica, posso reordenar frases temporais,
posso dizer que encontrei Vanna no largo Cairoli antes de
comprar os testículos de cão naquela banquinha no
Cordusio (...). É assim que fazemos também na vida
normal: podemos supor que estamos sendo enganados
por um gênio maligno, mas para poder seguir adiante nos
comportamos como se tudo aquilo que vemos fosse real.
Se nos abandonássemos, se duvidássemos da existência
de um mundo fora de nós, não agiríamos mais, e na
ilusão produzida pelo gênio maligno cairíamos das
escadas ou morreríamos de fome.
ECO, Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana.
Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 417
8
RESUMO
O presente trabalho traz como estudo a formação inicial de professores na
modalidade normal em nível médio, à luz da concepção de identidade narrativa
de Paul Ricoeur. O material analisado foi o Parecer CNE/CEB 01/1999, que
estabelece as diretrizes curriculares nacionais para o curso de formação de
professores na modalidade normal em nível médio. Partimos do seguinte
problema: o sentido de estética presente no Parecer CNE/CEB nº 1, de 29 de
janeiro de 1999, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso
de formação de professores na modalidade normal em nível médio. A
pesquisa qualitativa, na abordagem hermenêutica, permite fazer uma
interpretação baseada em Ricoeur, Schiller, La Salle e Freire, buscando
estabelecer um diálogo para situar a identidade narrativa em Ricouer no
contexto da educação estética no ensino médio. A partir deste referencial
extraímos elementos teóricos para analisar o Parecer CNE/CEB nº 01/1999,
que conduzem à problemática da formação de professores no citado nível de
ensino. O objetivo deste estudo foi apontar a estética como experiência que
reverbera na identidade narrativa em Ricoeur, contribuindo para a reflexão da
teoria e prática de formação de professores. O estudo enfatiza que o
documento analisado é uma experiência estética do labirinto. As atribuições de
sentidos e significados que emergiram da interpretação do documento apontam
a narrativa autobiográfica como saída desse labirinto. Com isso, demonstra-se
que as narrativas, nos processos formativos, iluminam a presença da educação
estética como fundamento da formação da identidade, no curso de formação
de professores em nível médio.
Palavras-chave: Identidade narrativa, formação inicial do professor, educação estética, labirinto.
9
ABSTRACT
This report presents an analysis of the initial training of teachers at the High
School level, based on the conception of narrative identity by Paul Ricoeur. The
analysis was made through the document “Parecer CNE/CEB 01/1999,” which
establishes the national curriculum guidelines for teachers‟ initial training at the
High School level. The starting point was the meaning of „aesthetic‟ present in
the document cited above. The qualitative research, in a hermeneutic approach,
allowed us to make an interpretation based on Ricoeur, Schiller, La Salle and
Freire, creating a dialogue that situated the narrative identity of Ricouer in the
context of aesthetic education in High School. The purpose of this research was
to show how the aesthetic experience is reflected in the concept of narrative
identity, offering a contribution for the better understanding of teachers‟
education. This report stresses that the document analyzed is a labyrinthine
aesthetic experience. The attributions of meaning that emerged from the
interpretation of the document show that autobiographical writing is the way out
of this labyrinth. Therefore, the narratives in the educational process point out
aesthetic education as fundamental for identity formation in the courses for
teachers‟ training at the High School level.
Keywords: Narrative identity, teachers‟ initial training, aesthetic education, labyrinth.
10
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS .................................................................................. 12
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13
1 CONTEXTUALIZANDO O SENTIDO HERMENÊUTICO DA NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA .............................................................
16
1.1 O pesquisador e sua história: uma justificativa para os caminhos da pesquisa .....................................................................
16
1.2 Percursos formativos: um círculo hermenêutico da narrativa autobiográfica ..................................................................
25
1.3 Identidade narrativa: onde o ser humano se encontra consigo mesmo ................................................................................
29
2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E IDENTIDADE NARRATIVA: QUESTÕES ENTRELAÇADAS ......................................................................................
41
2.1 Trajetória de Ricoeur em direção à identidade narrativa ....... 41
2.1.1 Início do percurso: Aristóteles e Santo Agostinho ..... 42
2.1.2 Fim ou início do percurso: Benjamin e o narrador ...... 47
2.2 Ricoeur, Schiller, Freire e La Salle: um diálogo sobre Educação estética ............................................................................
52
2.2.1 Ricoeur: A identidade narrativa como educação estética . 66
2.2.2 Formação estética do professor ................................... 69
3 A CASA DO SER NARRATIVO: A ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO MÉDIO EM ESTUDO ................................
80
3.1 Penetrando no labirinto: uma visão histórica da formação de educadores ..................................................................................
83
3.2 Buscando caminhos: a formação de professores no Brasil... 88
3.1.2 A formação de professores no Brasil – pós 1971 ........ 89
3.1.3 – A Lei 9394/96 ................................................................ 91
3.3 Seguindo o fio condutor: o Parecer CNE/CEB 01/1999 .......... 92
3.4 Buscando uma saída: Identidade do curso de formação de professores na modalidade normal em nível médio .....................
93
3.4.1 A identidade do professor ............................................. 96
3.5 O desenrolar do fio: a identidade narrativa como estética no Parecer CNE/CEB 01/99 ...................................................................
99
3.6 Uma luz no final do labirinto: elementos conclusivos ........... 102
11
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 105
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 108
ANEXO 1 .................................................................................................... 113
ANEXO 2 .................................................................................................... 140
12
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Representação do círculo de compreensão de Gadamer ... 27
FIGURA 2: Representação do Círculo de Compreensão na forma de círculos concêntricos.................................................................................
28
FIGURA 3: O entrelaçamento da identidade narrativa ............................. 68
13
INTRODUÇÃO
No presente estudo, queremos ter presente a educação estética no
documento que estabelece diretrizes curriculares nacionais para a formação de
professores na modalidade normal, em nível médio, conhecido como Parecer
CNE/CEB 01/1999. Perguntamos: que relação existe entre a identidade
narrativa e a dimensão estética na formação inicial de professores em nível
médio? Buscamos a compreensão do sentido da estética presente na
abordagem autobiográfica.
O problema de pesquisa emerge desse contexto do lugar do
pesquisador como formador de professores no Ensino Médio.
Propõe-se como problema de pesquisa o sentido de estética presente no
Parecer CNE/CEB nº 1, de 29 de janeiro de 1999, que define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores na
modalidade normal em nível médio, a partir da matriz conceitual identidade
narrativa em Ricoeur.
Propõe-se como hipótese de estudo que a identidade narrativa é um
elemento da educação estética como processo formativo, visando à autonomia
do sujeito. O grande desafio no contexto da identidade narrativa de Ricoeur é
a compreensão da mesma como um labirinto, capaz de romper com o
paradigma da educação linear e da alienação do sujeito de sua própria
formação, abrindo caminho para a formação humana do sujeito.
Elege-se como objetivo apontar a estética como experiência do labirinto
no Parecer CNE/CEB 01/1999, que reverbera na identidade narrativa em
Ricoeur, apontando a narrativa autobiográfica como saída desse labirinto, e
contribuindo para a reflexão da teoria e prática de formação de professores na
perspectiva da Educação Estética.
Pensar a formação humana para o curso de formação docente no ensino
médio na perspectiva de Ricoeur justifica-se no fato de o mesmo ter-nos
provocado à reflexão da relação Identidade-Narrativa, um ensaio desenvolvido
pelo autor a partir da obra “Tempo e Narrativa”, no qual discute a formação da
identidade pessoal a partir das narrativas.
Assumir o conceito de identidade narrativa em Ricoeur no campo da
formação de educadores é ter o compromisso de fundamentar projetos
14
formativos. Frequentemente a narrativa é deixada de lado ou ignorada quando
se trata de formação de pessoas. Contudo, atualmente, podemos contar com
pesquisas, por exemplo, na linha das histórias de vida1, que geraram o trabalho
das narrativas (auto)biográficas.
A abordagem ricoeuriana da formação da identidade mostra que uma
formação docente, dentro de uma ótica estética, não pode acontecer distante
da ética; formar o educador como um ser humano é formar para o pensar e ser
capaz de confrontar-se a si mesmo, com o outro e com o contexto.
Justifica-se esta pesquisa pela necessidade premente de um estudo que
trará uma contribuição à reflexão sobre a formação inicial de professores, em
nível médio, mas se estende à formação inicial de professores em nível
superior. Hoje são poucos os cursos que preparam professores em nível
médio, podendo até ser considerados uma raridade. Apenas alguns estados,
como é o caso do Paraná, oferecem-no na rede pública estadual. Por ser uma
alternativa ao ensino superior, e não ter tantos pré-requisitos para ingresso,
diversas pessoas preferem-no como porta de entrada para algum emprego na
área de educação. Mas o que torna realmente o trabalho relevante é o fato de
haver poucos estudos referentes a este curso especificamente. Pelo fato de a
lei 9394/96 dar preferência aos professores com ensino superior, pouco se fala
sobre a formação em nível médio, e esta passa despercebida e mesmo sendo
ignorada por boa parte da população.
Percebemos que um curso que prepara professores em nível médio não
merece ter menos importância que outro que prepara em nível superior. Por
este estar legalmente embasado, e por existir, ou sobreviver, ainda, em vários
locais, preparando professores que vão atuar em classes, principalmente, de
educação infantil, temos consciência de que essas professoras e professores
precisam receber uma formação decente e humana, não apenas técnica, para
terem reais condições de aprender a serem professores.
A Análise Documental é o procedimento adotado para análise e coleta
do material a ser estudado no presente trabalho. O foco do estudo, como nos
referimos anteriormente, é o Parecer CNE/CEB nº 01, de 29 de janeiro de
1 ASIHVIF - Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação. Página na Internet:
http://www.asihvif.com. Existe ainda Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, criada em setembro de 2008.
15
1999, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de
formação docente no Ensino Médio, realizando uma crítica propositiva visando
ao compromisso com a formação humana.
A análise dos dados da pesquisa de cunho bibliográfico e as
inferências obtidas implicam uma compreensão filosófica que consiste na
exposição dos esforços sucessivos para captar a realidade do objeto de
pesquisa.
A adoção do enfoque hermenêutico como compreensão filosófica na
perspectiva de Gadamer torna-se adequada para esta investigação que
pretende abranger realidades do conhecimento filosófico, desvelando sentidos
e construindo significados. Compreender significa uma apreensão de sentido.
Isso implica uma contínua disposição de crescimento, uma noética - tal como
vista por Aristóteles como doutrina do entendimento (Dussel, 1997, p.11).
Uma visão hermenêutica ajuda a compreender a relação que existe
entre o pensado e o vivido. Conscientes de que em toda compreensão estão
imbuídos os pré-conceitos e os afetos do autor, buscamos, com essa visão
hermenêutica, mostrar que é possível ao ser humano encontrar na própria
história os elementos necessários para assumir a sua identidade, com todo o
seu vivido.
O presente estudo tem, como estrutura, no primeiro capítulo, a
apresentação da história de vida do autor, uma visão acerca do enfoque
hermenêutico que será utilizado na pesquisa – no caso, a hermenêutica de
Gadamer – e a apresentação da identidade narrativa de Ricoeur, que será a
base, o pano de fundo de todo o trabalho.
No segundo capítulo, teremos outros aportes teóricos que dão
sustentação ao trabalho, especialmente no campo da educação estética, com
autores como Schiller e Freire, dialogando entre si e com Ricoeur.
No terceiro capítulo, analisaremos mais detidamente a formação de
educadores em nível médio – objeto de estudo deste trabalho – e,
especificamente, o Parecer CNE/CEB 01/1999 e as diretrizes curriculares
nacionais para o curso de formação de educadores na modalidade normal em
nível médio, sempre na perspectiva da identidade narrativa de Ricoeur.
16
1 CONTEXTUALIZANDO O SENTIDO HERMENÊUTICO DA NARRATIVA
AUTOBIOGRÁFICA
As narrativas, autobiográficas ou não, são essencialmente históricas. A
vida do autor aparece de maneira “viva”, entremeada, porém, de pré-conceitos.
Nos discursos aparecem elementos de ficção ou não-ficção no dito, às vezes
de maneira clara, às vezes velada. É importante para o hermeneuta saber
desvelar o dito no não-dito ou o não-dito no dito.
Falar de identidade narrativa é recordar que a vida é mais que uma
sucessão de acontecimentos; é formada por acontecimentos que podem ser
narrados, e assim reforçar a própria identidade.
A proposta deste capítulo é contar a própria experiência com o tema
Identidade Narrativa presente na minha história de vida. Conto o percurso que
me levou ao problema desta pesquisa; neste caminho, apresento os autores
que sustentam a teorização de minha experiência. Nesta narrativa descubro a
vinculação do problema desta pesquisa com a minha história pessoal e
profissional.
1.1 O pesquisador e sua história: uma justificativa para os caminhos da
pesquisa
Começarei por contar algo da minha história, que está relacionada com
o tema da minha pesquisa. Partindo da interrogação ricoeuriana de que
não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito? E estas «histórias da vida» não se tornam elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicadas modelos narrativos - as intrigas - extraídas da história e da ficção (drama ou romance)? (RICOEUR, 2000, p. 2
2),
tratarei de trazer para este trabalho parte da minha vida na forma narrativa.
Isso se justifica, segundo Josso (2004), porque
A narrativa de um percurso intelectual e de práticas de conhecimento põe em evidência os registros da expressão dos desafios de conhecimento ao longo de uma vida. Esses registros são
2 O artigo, que é uma tradução feita por Carlos João Correia, não segue a paginação original;
por isso, sempre que o citar, usarei a numeração de páginas do texto publicado na internet.
17
precisamente os conhecimentos elaborados em função de sensibilidades particulares em um dado período. Se as disciplinas que constituem as ciências do humano podem servir de referenciais para a auto-interpretação, é porque são objetivações coletivamente construídas a partir das tomadas de consciência do que constitui as nossas potencialidades humanas (JOSSO, 2004, p. 43).
A narrativa tem a capacidade de trabalhar a dimensão do simbólico, e a
partir dele compreender melhor o real. É essa compreensão que busco ao
trabalhar aqui o elemento narrativo. Acredito, como Furlanetto (2008), que “com
base nesse princípio, é possível olhar para a complexidade do real,
percebendo-o, não como uma sequência de fatos lineares, mas como um
campo relacional” (FURLANETTO, 2008, p. 92).
Posso definir, por assim dizer, duas atividades que me ajudaram a
conhecer e pensar minha vida a partir do elemento narrativa. A primeira foi
quando, ainda no curso de Filosofia, fui convidado a escrever minha
autobiografia acadêmica. A segunda, e mais importante, ocorreu no Programa
de Mestrado, na disciplina “Educação Estética e Formação de Professores”.
Esta disciplina aproximou-me do conceito de estética. Durante a mesma, a
professora Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito propôs a construção da
“Colcha de Retalhos”, como um método desenvolvido por ela mesma como
professora de um curso de Pedagogia. O método consiste em resgatar a
memória e a história de vida na perspectiva de Josso (2004), identificando os
momentos marcantes e divisores de águas; a seguir, após assistir ao filme
“Colcha de Retalhos”, cada um constrói um retalho de tecido (podendo ser
pintado, bordado, recortado...) a partir da própria vida. Depois de construído o
retalho, a história é contada ao grupo, ao mesmo tempo em que os diferentes
retalhos são costurados, formando uma colcha. Berkenbrock-Rosito (2008)
assim descreve a proposta do método:
História tecida no retalho pressupõe aprender a ser sensível para captar da carga vivencial, a palavra e metáfora-chave de abertura daquilo que faz sentido para o outro, narrar e renarrar a História de Vida como processo de autoria. Acompanhar a formação traz desafios para a docência. Com que aspectos da vida a pessoa se identifica e quais a motivam e estimulam a abrir-se para o diálogo com o outro? Como afetar e lidar com o ser afetado? (BERKENBROCK-ROSITO, 2008, p. 6).
Percebi, assim, a minha imensa relação afetiva com a minha casa,
especialmente a proximidade com o fogão a lenha, e as histórias que ao redor
18
dele se contavam. Era também ao redor do fogão a lenha que eu lia meus
livros e fazia meus desenhos. Curiosamente, o desenho mais repetido naquele
tempo era uma casa, e este desenho eu reproduzi no retalho que compôs a
colcha.
Narro, assim, parte da minha vida que surgiu como importante para mim
após a confecção da colcha. É a parte que tem algum significado na
construção da pesquisa, pois mostra a influência das narrativas na minha vida
e no meu desejo de ser educador.
Esta influência tem início na infância. Sou de uma família de pequenos
agricultores da região Sudoeste do estado do Paraná. Como a maioria das
famílias que viviam no campo, nos anos 80, éramos pobres e não tínhamos
energia elétrica em casa. Trabalhávamos de arrendatários em terras de outros
produtores.
Meu interesse pelos estudos despertou logo cedo. Tinha eu quatro anos
de idade e já queria ir à escola, como faziam meus irmãos. Na minha família, já
então, cultivava-se um ambiente de amor aos livros e à cultura, mesmo meus
pais tendo poucos estudos. Talvez isso se deva ao fato de que minha mãe
tinha, quando jovem, um desejo não realizado de ser professora, de acordo
com seus relatos.
Como eu ainda era muito pequeno para ir à escola, que ficava a mais de
um quilômetro de distância de casa, a minha mãe teve uma ideia: disse que eu
só poderia ir à escola quando aprendesse a ler. A partir de então, todos meus
esforços foram nessa direção, e meses depois eu estava lendo. Aprendi por
vontade própria, com a ajuda de papai. Era assim: eu olhava para os sacos de
adubo da lavoura e perguntava a meu pai, letra por letra, o que estava escrito.
Assim, fui memorizando as letras e fazendo associações. Foi então, segundo a
promessa de minha mãe, que comecei a ir à escola, logo me destacando como
uma espécie de fenômeno, pois aos cinco anos de idade lia fluentemente
qualquer texto que me dessem, chegando a ser fotografado e entrevistado para
um jornal da cidade.
Foi nessa mesma época que ganhei um presente que revolucionou
minha vida: um livro. Recordo-me com clareza que era o livro “Aventuras de
19
uma andorinha”, de Alice Landau3. Li-o não sei quantas vezes, até memorizá-
lo. Depois desse livro, que foi o primeiro, passei a ler muito. Na verdade, lia
tudo que me caía à mão: recortes de jornais e revistas velhas, livros de
literatura, revistas em quadrinhos, e até mesmo os livros didáticos de meus
irmãos mais velhos, calhando de eu chegar à série seguinte sabendo já o
conteúdo por ter lido os livros didáticos.
Nesse tempo, meus pais tiveram uma ideia, se não inédita, pelo menos
bastante original. Já nessa época, a família tinha o costume de reunir-se à
noite, após o jantar, para conversar. Era um costume bastante comum entre as
famílias de agricultores que não tinham energia elétrica em casa. Após um
tempo de bate-papo, fazíamos as orações da noite e íamos dormir, geralmente
cedo, para acordar logo no dia seguinte e fazer os trabalhos da lavoura.
Nessas “sessões de bate-papo”, geralmente os pais falavam e os filhos
escutavam. Eles faziam verdadeiros relatos de vida, recordando os tempos de
juventude. Contavam a sua história de vida, e era aí que nós, filhos,
aprendíamos a amar e respeitar ainda mais nossos pais.
O interessante nisso é o quanto o fato de ouvir os relatos dos meus pais
contribuiu para a minha identidade. Ouvindo-os, e eram eles mesmos
personagens da história, e colocando-me em contato com as narrativas, fui
adquirindo, a partir das histórias deles, elementos que ajudaram a construir a
minha identidade. Pode-se dizer que passei a ser eu mesmo personagem da
minha história, a partir das características dos personagens das histórias
contadas por meus pais.
Pois bem, aqui é que aparece a ideia original: como já dito, não
tínhamos energia elétrica, e a casa era iluminada por lamparina de querosene,
que deixava um cheiro forte e marcas de fumaça nas paredes e no teto. Um
dia, minha mãe teve uma ideia: já que não tínhamos acesso às novelas,
teríamos nossa própria novela. Assim, nós pegávamos livros na biblioteca da
escola e levávamos para casa. À noite, sentávamos em volta do fogão a lenha,
e fazíamos leitura em voz alta dos romances, para a família toda ouvir. Eram
momentos muito bonitos de reunião familiar, mas também de incentivo à leitura
e de convivência com as narrativas.
3 Editora do Brasil, 1980.
20
Como é comum acontecer, as narrativas orais precederam as escritas
na minha vida. Podemos perceber, a partir daqui, uma inversão de papéis.
Num primeiro momento, os pais narravam, oralmente, e os filhos ouviam.
Agora, quando os filhos já têm capacidade para narrar, estes narram e os pais
ouvem. Mudou o modelo de narrativa, mas não mudou a ideia principal. Tanto
as reuniões familiares para relatos orais quanto para leitura, serviram para
desenvolver em mim esse contato mais forte e próximo com as narrativas e
histórias de vida, e também uma facilidade bastante grande de narrar e
escrever.
Estes momentos de leitura em família desenvolveram em mim uma
espécie de compulsão pela leitura. Tudo que eu fazia nas horas vagas era ler.
Porém, quando passei para o ensino médio, o antigo Magistério, apesar de ser
em uma escola estadual, para retirar livros da biblioteca era necessário pagar,
como uma locação de filmes. Eu não tinha dinheiro para isso, então nos
recreios ia à biblioteca e lia lá mesmo. Até que a bibliotecária, percebendo,
perguntou por que eu não levava livros para casa e eu disse que era por não
ter dinheiro. Assim, ela liberou os empréstimos gratuitamente para mim.
Costumo dizer que esse foi um marco na minha vida de estudante, pois
consegui, de certa forma, realizar um sonho da minha adolescência, que era ter
uma biblioteca só para mim. Nesse tempo eu lia cerca de dois livros por
semana.
Essa minha relação com as narrativas, tanto de ficção quanto históricas,
orais, se estendeu por boa parte da minha vida. O que considero belo nisso, é
que eu lia desde os clássicos, como Vitor Hugo, até autores de menor
expressão. Curiosamente, quando eu tornei-me professor, aos 18 anos,
comecei a abandonar essa paixão. Durante vários anos li muito pouco, e
escrevi pouco também. Depois de alguns anos, já com o curso superior
concluído, é que me dediquei mais a isso. Por um lado, a falta de tempo
decorrente da vida de professor, com o dia voltado para a preparação de aulas,
correção de cadernos, de trabalhos, e outras atividades, tiraram-me a
motivação para a leitura. Por outro lado, percebo uma acomodação diante das
dificuldades exigidas pelo ensino superior e pelas aulas.
Antes de dar o passo seguinte e discorrer sobre a origem do problema
de pesquisa, dedicarei algum espaço à minha formação acadêmica, pois a
21
mesma desempenha um papel importante na minha relação com o tema de
pesquisa.
Terminando o ensino médio em 1992, ingressei numa Congregação
Religiosa, dos Irmãos Lassalistas, e permaneci por cinco anos e meio sem
fazer algum curso acadêmico, apenas seguindo o programa de formação da
Congregação. Em 1998, no segundo semestre, iniciei o curso de Filosofia na
Universidade Católica de Brasília. Embora não tivesse sido minha primeira
opção, acabei cursando Filosofia porque a Congregação assim o exigia. O meu
interesse inicial era a Pedagogia. Isso não impediu que eu me dedicasse
bastante ao curso, destacando-me em algumas áreas: Metafísica, Estética,
Filosofia da Linguagem, Lógica, e nas disciplinas da área de educação.
Durante esse período, tive, como acontece muitas vezes, alegrias e
decepções com o ensino superior. Uma das decepções foi com professores
despreparados, incapazes de trabalhar os conteúdos a eles confiados. Outra
decepção foi em relação à pesquisa nessa etapa. Embora o ensino superior
não tenha como objetivo maior a pesquisa, mas o ensino, eu esperava mais. O
fato é que, em matéria de pesquisa, apenas no último semestre tivemos uma
leve introdução ao tema, depois do qual cada um foi convidado a escolher um
assunto e desenvolver uma monografia. Nisso uma nova decepção: o professor
que aceitou orientar meu trabalho negligenciou completamente a sua função, a
ponto de dizer que monografia de graduação não tem qualquer valor e que ele
não iria perder tempo lendo o que eu escrevia; bastava escrever qualquer coisa
que ele me daria nota máxima. Essa sua atitude levou-me a trocar de
orientador. Este conjunto de fatores despertou em mim certa reserva em
relação ao ensino superior e, principalmente, à pós-graduação, tendo em vista
que esses professores eram todos pós-graduados.
Nem tudo, porém, foi tristeza e decepção no primeiro contato com o
ensino superior. Houve momentos que vale a pena recordar. Um deles, na
disciplina de Didática, quando a professora orientou todos a escrevermos a
autobiografia formativa. Foi meu primeiro contato com o mundo das narrativas
autobiográficas. Além dessa, o professor de Estética, que era um grande
incentivador da atividade científica, especialmente a elaboração de artigos. Na
verdade, esses artigos e a narrativa autobiográfica podem ser considerados
22
minhas primeiras produções escritas, as quais posso dizer que influenciaram
minha vida na capacidade de escrever e narrar.
Apesar de não ter sido a minha opção inicial, o curso de Filosofia foi o
que mais marcou minha vida. Hoje, as leituras e temas de escrita tendem para
a área filosófica. Depois de concluir o curso de Filosofia, iniciei um bacharelado
em Ciência da Educação, que não concluí devido a políticas internas da
Congregação Religiosa, que fizeram com que fosse transferido de Brasília para
São Paulo, antes de concluir o curso. Algum tempo depois, morando no
Paraná, na cidade de Toledo, ingressei no curso de Pedagogia, que era meu
antigo sonho. Como já havia concluído Filosofia, pelo sistema de
aproveitamento de disciplinas, concluí o mesmo em dois anos. Encontrei na
nova Universidade problemas que já havia encontrado na antiga, como
professores despreparados, alguns mesmo sem pós-graduação; porém, já
estava preparado para estes problemas, sabendo que eles existem e que não
são determinantes no tipo de formação que eu buscava. Encontrei, ao mesmo
tempo, situações que não havia encontrado na Universidade anterior. Esta, por
estar localizada em uma cidade do interior e por ser muito menor que a outra,
tinha uma relação de proximidade muito boa entre alunos, professores,
serviços e direção. Essa relação favoreceu o desenvolvimento pessoal.
Considero que neste período minha relação com a Universidade foi muito mais
de autoria que de submissão, ao contrário do que aconteceu no anterior curso
de Filosofia.
Posso dizer com segurança que as narrativas tiveram um papel
importante na minha formação. Muito embora eu tenha demorado a dar-me
conta disso, foi somente ao tomar conhecimento das ideias de Paul Ricoeur,
que trabalha justamente a formação da identidade narrativa, que passei a
perceber a influência das mesmas. Esse primeiro contato com a obra de
Ricoeur deu-se na Itália, em Roma, no ano de 2007, quando eu participava de
um curso de formação e atualização. Durante uma das aulas, o professor
Robert Comte, francês, discípulo de Ricoeur, apresentou-nos uma síntese da
ideia da identidade narrativa, o que despertou em mim o interesse pela
pesquisa na área. Inicialmente, pretendia pesquisar a importância das
narrativas no desenvolvimento da identidade do educando, mas, tendo em vista
23
a formação de professores, resolvi desenvolver minha pesquisa a partir dessa
perspectiva.
Já passei pelas diferentes etapas do curso de formação de professores
em nível médio, desde aluno do antigo Magistério, no final dos anos 80 e início
dos anos 90, até coordenador do agora denominado Curso de formação de
professores na modalidade normal em nível médio, no ano de 2009. No
intervalo entre ser estudante do curso e ser coordenador do mesmo, houve
mudanças significativas na estrutura da educação brasileira, especialmente
com a promulgação da lei 9394/96. Essas mudanças abrangeram todos os
níveis e modalidades de ensino. Contudo, estar no mesmo curso antes e
depois da lei, fez-me perceber que as mudanças foram, em grande parte,
estruturais, ao passo que algumas necessidades, que vão além do aspecto
físico, continuam sendo tratadas do mesmo jeito.
Trabalhando como coordenador, percebi que no currículo predominam
disciplinas e atividades técnicas, em detrimento das humanas. É uma maneira
reducionista de pensar a formação de professores levando em conta que, para
que haja uma formação coerente com a missão do professor, não se pode
priorizar a dimensão técnica sem um pensar ético e estético, pois se trata de
aspectos do humano de ser professor.
Essa preocupação somou-se à acima citada conferência em Roma, com
Robert Comte, que apresentou as ideias acerca da identidade narrativa de
Ricoeur. Ouvindo Comte, despertou em mim o interesse em fazer uma ligação
com o mundo da educação. Aparentemente não era tão fácil, tendo em vista
que o objeto da pesquisa de Ricoeur não é o educador.
Relendo, porém, textos de Paul Ricoeur, especialmente o artigo
Identidade Narrativa, percebemos que ele afirma que narrativas podem ser ou
não autobiográficas; mas que em todas elas entra a vida do autor. Entrando em
contato com as pesquisas na linha da História de Vida, no III Congresso de
Pesquisa (Auto) Biográfica, em 2008, na cidade de Natal/RN, foi possível
verificar que Ricoeur traz uma contribuição filosófica interessante para a
pesquisa (Auto) Biográfica.
Josso afirma que “formar-se é integrar-se numa prática o saber-fazer e
os conhecimentos (...). Aprender designa, então, mais especificamente, o
próprio processo de integração” (JOSSO, 2004, p. 39). Mais adiante, a autora,
24
com as seguintes palavras: “ser humano é também criar as histórias que
simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida” (op. cit., p. 43), coloca a
questão da humanidade e das histórias, ou seja, do simbolismo que permeia a
nossa vida enquanto seres humanos.
As lacunas em relação a esses aspectos da formação no curso em que
atuei, e que observei para realizar esta pesquisa, em uma escola privada da
Zona Leste de São Paulo4, podem ser comprovadas no plano de curso,
elaborado em 2003 e aprovado pela Diretoria Regional de Ensino Leste IV,
inteiramente baseado em competências e habilidades.
Um curso de formação de professores, que tenha caráter técnico, pode
trazer complicações que emergem em sala de aula: problemas de
relacionamento dos alunos entre si, e com os professores, que muitas vezes
não sabem como lidar com situações de conflito. Entram aqui questões éticas e
estéticas, muito bem apresentadas por Freire:
A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. (...) a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência e de pureza (...). É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador (FREIRE, 2003, p. 32-33).
Além disso, pensar ética e esteticamente a formação de professores tem
implicações maiores. Como diz Freire, as duas dimensões andam juntas, e
uma formação ética naturalmente é também estética. Uma formação
excessivamente técnica tende a perder seu aspecto ético – e
consequentemente também o estético, por mais coloridas que sejam as aulas –
porque está dando uma falsa ilusão de que os professores concluirão o curso,
preparados para enfrentar as dificuldades que surgirão, quando na verdade
pode até ser que estejam, mas se estiverem, provavelmente não terá sido o
4 A escola é privada, mas o curso de formação de professores é gratuito. Importante citar que o
curso tem lugar no Centro Educativo e de Assistência Social La Salle, particularidade importante, porque na pesquisa não se falará de todos os cursos de formação de professores no ensino médio, mesmo analisando o Parecer CNE/CEB nº 01/99. Os dados aqui citados serão referentes a esta realidade específica. Também é importante dizer que La Salle, que dá nome à escola, e que nesta pesquisa merecerá um espaço, é reconhecidamente o fundador da Escola Normal.
25
curso que os preparou. Nesse caso, a estética também vai para o lixo,
juntamente com a ética.
1.2 Percursos formativos: um círculo hermenêutico da narrativa
autobiográfica
Um dos grandes problemas, quando se fala em narrativas, é chegar a
uma definição. Por vezes, fala-se em narrativa como toda história contada.
Existe, também, uma visão que coloca as narrativas como as histórias de
ficção escritas. Podem, inclusive, existir outras definições, mais populares, ou
outras, mais elaboradas. Pode haver um consenso na ideia de que narrar é
fazer um relato, seja ele ficcional ou não, seja ou não escrito. Uma narrativa
pode ser um relato histórico, uma biografia, uma autobiografia ou um relato
ficcional. É arriscado dizer que um estudo científico se encaixa nesses
padrões, porém de certa forma existe nele um relato e, consequentemente,
uma narrativa, quando o cientista descreve os procedimentos para chegar às
conclusões às quais chegou. Um texto jornalístico pode também ser uma
narrativa.
Vieira (2001) diz que é possível
traçar algumas condições para que um enunciado possa (...) ser definido como uma narrativa. Em primeiro lugar, deve haver uma lógico-semântica entre funções e atores para que possa haver uma proposição narrativa. Para que tenhamos um texto narrativo coerente é preciso que os fatos denotados pelas proposições narrativas estejam ligados por uma relação cronológica e lógica. Finalmente, para que haja narrativa, é preciso, também, que haja uma transformação entre uma situação ou estado inicial e a situação ou o estado final que funcione como uma conclusão do texto narrativo (VIEIRA, 2001, p. 601).
De acordo com este autor, narrativa é um relato com começo, meio e
fim, com coerência lógica no espaço e no tempo. Essa explicação está correta,
dentro do que se pode compreender por narrativa. Entra, contudo, em certo
conflito com Decca (2000) que, reafirmando Todorov, prefere certa precaução e
distingue “o plano dos conteúdos, a história, do plano da expressão, a
narrativa”.
A história seria, portanto, o plano onde transcorrem as ações, as inúmeras relações que envolvem os personagens, a contextualização dos eventos, enquanto a narrativa seria o plano da expressão. (...)
26
Considerando-se estas precauções, não há nenhuma dificuldade em se aceitar que a história é uma narrativa de eventos humanos (DECCA, 2000, p. 20).
Uma ideia a ser percebida em Vieira (2001), e com a qual Decca (2000)
concorda, é a de que a narrativa passa por várias transformações antes de
chegar ao seu final. Ou seja, um tema inicial não chega ao final da narrativa do
mesmo jeito que começou. Continua sendo o mesmo tema, mas chega ao fim
transformado. Essa transformação ou transformações podem vir de diversos
fatores, desde uma mudança na maneira de o autor perceber o mundo até
outros fatores, como a crítica e a opinião alheias. O que importa, agora, é
perceber que o enredo passa por transformações antes do final.
Não há interpretação sem hermenêutica e não há hermenêutica sem
interpretação. Nisso os autores concordam, pois a verdade oscila entre o dito e
o não dito; contudo, essas duas realidades, o dito e o não dito, fundem-se
numa só, que é a do narrado. O narrado, por si só, muitas vezes não diz nada
para o ouvinte, ao passo que, para o narrador, seja uma narrativa de ficção ou
histórica, é um pedaço de si mesmo. Por isso, qualquer interpretação, que não
seja feita em conjunto com o narrador, pode ser perigosa; daí a importância de
juntar narrativa e vida.
A interpretação de uma narrativa pode conter armadilhas para o leitor,
justamente porque esta traz presentes os pré-conceitos. Torna-se difícil para
qualquer leitor fazer uma transposição do texto para a vida, do narrado para o
compreendido; pois o leitor, ao fazer a sua leitura de um texto narrado, também
poderá estar fazendo um julgamento que pode estar impregnado de conceitos
e pré-conceitos, mas não ter consciência de sua visão de mundo; ninguém é
totalmente neutro, tampouco nenhum texto, escrito ou não, está isento de
ideologias ou pré-conceitos.
Desse modo, Heidegger afirma, referendado por Gadamer, que “a
interpretação começa com preconceitos que devem ser substituídos por
conceitos mais adequados” (GADAMER, 2000, p. 144). Isso leva a afirmar que,
para compreender um texto, é necessário fazer um confronto com as próprias
ideias e opiniões, não ignorá-las.
Afirma ainda Gadamer que “aquele que pretende compreender, não se
entregará mais à casualidade da própria opinião” (op. cit., p. 145), pois isso,
27
sem dúvida, dificultaria ou mesmo impossibilitaria a compreensão. O autor
ainda afirma: “quem pretende compreender um texto está disposto a deixar que
o texto lhe diga algo” (id. ibid.). É essa reciprocidade, ou seja, o diálogo entre o
texto e os pré-conceitos, que vai permitir uma interpretação coerente de um
texto.
É nesse ponto que entra o que Gadamer (2000) chama de círculo de
compreensão, ou que poderíamos chamar simplesmente de círculo
hermenêutico, e que é basicamente a maneira como Ricoeur estrutura o seu
pensamento narrativo, baseado na Poética aristotélica5, de maneira circular.
Gadamer assim explica o círculo de compreensão: “O movimento da
compreensão discorre, assim, do todo para a parte e novamente ao todo”
(GADAMER, 2000, p. 141ss). Assim podemos representá-lo:
FIGURA 1: Representação do círculo de compreensão de Gadamer – do todo para as partes e de novo para o todo, sem perder as partes.
A compreensão parte do todo em direção às partes, regressando de
novo para o todo, porém enriquecido pelas partes, ou seja, por tudo aquilo que
aconteceu antes de retornar para o todo.
O que ilustra muito bem toda essa metáfora do círculo é a história de
Alice no País das Maravilhas, de L. Carrol6. Na história, por muitos conhecida,
Alice, sentada à beira de um riacho, morrendo de tédio, observou a passagem
de um coelho branco, falante. Sem nada melhor para fazer, passou a seguir o
coelho, sendo que nessa perseguição caiu num poço que parecia não ter mais
fim, tempo esse de queda no qual aproveitou para tecer uma série de
pensamentos. Após chegar ao fundo do poço, passa por uma série de
aventuras e conhece diversos personagens. Em poucas palavras, pode-se
5 A tripla mimese ricoeuriana é uma forma de círculo de compreensão: a narrativa parte da
prefiguração, passa pela configuração e chega à refiguração, sendo que esta última está no ponto de partida, ou seja, o elemento comum é a figuração, e a refiguração começa no próprio ponto de partida que é a prefiguração; contudo, sofrendo as influências de tudo o que aconteceu nesse caminho. 6 A edição usada aqui é da editora Martin Claret, coleção A Obra Prima de Cada Autor: Carrol,
L. Alice no País das Maravilhas. São Paulo, Martin Claret, 2006.
28
resumir a aventura de Alice assim: aproxima-se do buraco, cai nele até o fundo;
torna-se pequena para poder entrar no mundo que lhe abre as portas; sofre
para poder compreender esse mundo; busca ajuda de quem já o conhece, por
mais maluco que seja; descobre caminhos; participa na reelaboração desse
mundo e, no final, recebe ajuda de todos aqueles aos quais pediu essa ajuda,
para poder encontrar o caminho de volta. Alice aqui pode representar o
pesquisador, que mergulha no objeto de pesquisa muitas vezes movido pela
curiosidade. Percorre um longo caminho e, quando pensa ter chegado ao fim
da aventura (o fundo do poço), percebe que ainda há muitas coisas por
acontecer. Tudo o que acontece, desde o começo da pesquisa, é fundamental
para ir resolvendo o problema inicial. No caso de Alice, o problema era saber
quem ela era (cf. Carrol, 2006). Além de ajudar a resolver o problema, ainda
tudo colabora para que o pesquisador consiga sair do poço e retornar ao ponto
de partida.
A primeira coisa que aparece claramente nessa aventura é o itinerário
percorrido. Embora não tenha sido um itinerário elaborado, ele teve uma ordem
de acontecimentos e todos tiveram relevância no resultado final. A segunda
coisa é a percepção circular desse caminho. Tal e qual o círculo de
compreensão, ela saiu de um ponto de partida, percorreu um caminho,
aprendeu muitas coisas nesse caminho, e regressou ao ponto de partida – a
saída do poço – do mesmo jeito que entrou, contudo enriquecida com tudo que
aprendeu dentro do poço e do novo mundo que lá conheceu.
Gadamer diz que “O movimento de compreensão discorre, assim, do
todo para a parte e novamente para o todo. A tarefa é ampliar, em círculos
concêntricos, a unidade do sentido compreendido” (GADAMER, 2000, p. 141).
Assim, representando o círculo de compreensão, agora na forma de círculos
concêntricos, temos:
FIGURA 2: Representação do Círculo de Compreensão na forma de círculos concêntricos
- Ponto de partida – todo - Do todo para as partes - De volta para o todo, enriquecendo-o
29
Ricoeur priorizou, em seus escritos, a hermenêutica. Justamente por ter
nela o ponto de partida para suas obras, o tema das narrativas perpassa parte
delas.7 O importante, nisso, é perceber o que Ricoeur compreende por
narrativa, ou como trabalha o tema.
Apresentaremos agora como, para Ricoeur, estas questões acerca da
identidade narrativa ganharam importância, e como, da mesma maneira, o ser
humano encontra-se consigo mesmo através das narrativas, o que reforça a
formação da sua identidade.
1.3 Identidade narrativa: onde o ser humano se encontra consigo mesmo
Paul Ricoeur é um dos filósofos mais importantes e influentes da
segunda metade do século XX. Nascido em Valence, na França, em 1913, e
falecido em Chatenay Malabry, perto de Paris, em 2005, passou por muitos
momentos difíceis em sua vida, chegando a ficar preso num campo de
concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Outro ponto marcante na
sua vida foi o suicídio de seu filho, em 1986. De formação religiosa protestante,
dedicou-se à filosofia, e dentro dela de maneira especial ao existencialismo de
Karl Jaspers e à fenomenologia de Edmund Husserl. Partindo daí, desenvolveu
algumas ideias sobre o ser humano. Estudou o discurso simbólico e renovou
consideravelmente a hermenêutica com a linguística, a psicanálise, a
fenomenologia e a exegese bíblica. Foi professor em Louvaine, Yale (E.U.A) e
na Sorbonne. Sofreu a dura realidade de não ter sido compreendido pelos
intelectuais do seu tempo, especialmente os franceses. Passou, porém, para a
história como um dos maiores pensadores contemporâneos.
Ter passado por experiências tão fortes na vida ajudou-o a desenvolver
seu pensamento tão centrado no “ser”. Suas principais obras destinam-se a
compreender as relações do sujeito consigo mesmo, despertando para um
construir da identidade pessoal. Nelas costuma debater com diversos autores
que também trabalham o mesmo tema, como é o caso da discussão com Parfit
7 Além da acima citada obra, ainda podemos apresentar as seguintes: A metáfora viva, Tempo
e narrativa vol 1, 2 e 3, Si mesmo como um outro, entre outros.
30
no seu artigo “A Identidade Narrativa”, publicado em 19888. É um forte
debatedor e com grande espírito crítico.
Ricoeur apresenta, na sua obra Tempo e Narrativa, a tripla mimese, na
perspectiva aristotélica. Segundo esta perspectiva, uma narrativa se divide
entre muthos e mimese, ou seja, entre a intriga e a imitação. Surge, assim, a
tripla mimese, que ele chama de Mimese I, Mimese II, e Mimese III. A Mimese I
ele chama de prefiguração. É a preparação do autor para narrar a história. Esta
preparação já o ajuda a ir-se imbuindo dos acontecimentos, sejam eles de
ficção ou não. É o primeiro passo da narrativa. A Mimese II é a configuração,
ou a narração da história em si. Essa narração, que deve ter um público, seja
ele leitor ou ouvinte, ou ambas as coisas, trabalha a história. Enquanto ela vai
sendo narrada, autor e leitor vão se apropriando dela. Assim, vai-se
preparando a Mimese III, ou refiguração. Essa refiguração é o novo significado
que a realidade apresenta após a narrativa. Esse novo significado vai sendo
construído com a intriga da narrativa, e é fruto das duas coisas: do narrar e do
ouvir.
De acordo com Ricoeur (2000), isso vai dar origem à Identidade
Narrativa, que acontece com a junção da tripla Mimese. Ou seja, o fato de
trabalhar com a história, seja ela de ficção ou não, ajuda o autor e aqueles que
a lêem ou ouvem, a formar a sua identidade.
Identidade, então, para Ricoeur, é aquilo que a pessoa é, ou seja, é o “si
mesmo” (idem). Assim sendo, afasta-se do conceito tradicional aristotélico, de
que identidade é a unidade que torna os objetos idênticos. Também é diferente
da visão de Leibniz, que diz que dois objetos idênticos são aqueles que podem
substituir um ao outro sem prejuízo (cf. Abbagnano, 1998, p. 530). A visão que
o filósofo tem da identidade está mais próxima da psicologia, na qual se fala
que ela é “aquilo que permanece” (cf. Comte, 2007, p. 9). Claramente em
Ricoeur aparece essa ideia de que identidade é aquilo que permanece apesar
8 O artigo “Identidade Narrativa” faz parte de uma sequência de dois artigos publicados em
1988, após a publicação do livro “Tempo e Narrativa”, em 3 volumes. Este artigo foi divulgado na revista Esprit 7/8 (1988) pp 295-304, sob o título L’identité Narrative. A versão utilizada neste trabalho é a tradução portuguesa do Prof. Carlos João Correia, da Universidade de Lisboa, publicada na internet no seguinte endereço: metafisica.no.sapo.pt/ricoeur.html. Na obra “Tempo e Narrativa”, Ricoeur já havia iniciado o tema “Identidade narrativa”, porém com pouca profundidade, nada mais que um anexo do volume 3.
31
do tempo e ao mesmo tempo aquilo que muda com o tempo. Ou seja, é aquilo
que a pessoa é, não é aquilo que a torna idêntica aos outros.
A narrativa, de acordo com Ricoeur (1997 [tomo 1], p. 87ss), seja ela de
ficção ou histórica, passa pelos processos de prefiguração, configuração e
refiguração, que é o processo pelo qual a história é preparada, narrada e
vivenciada. É ele que vai ajudar na transformação do narrador.
Ricoeur parte do pressuposto, já por si bastante conhecido, e baseado
em Santo Agostinho e Aristóteles, de que história e vida, e tempo e narrativa,
se fundem. Essa afirmação em si não é dele, mas é o que defende em sua
obra:
It has always been known and often repeated that life has something to do with narrative; we speak of a life story to characterize the interval between birth and death. And yet assimilating life to a story in this way is not really obvious; it is a commonplace that must first be submitted to critical doubt. This doubt is the work of all the knowledge acquired in the past few decades concerning narrative, a knowledge which appears to distance narrative from lived experience and to confine it to the region of fiction
9 (RICOEUR in WOOD (org.), 2003, p.
20).
Tudo o que é narrado se passa no tempo. É isso que existe em comum
em todas as formas de narrativa, sejam relatos biográficos/autobiográficos,
históricos ou narrativas de ficção - incluindo nessas as narrativas escritas ou
não escritas, como o cinema, por exemplo (cf. Ricoeur, 2000, p. 10). Aliás,
outra ideia importante referente a isso é que não só toda narrativa se passa no
tempo, como tudo o que acontece no tempo pode ser narrado. Nesse ponto, o
autor levanta a hipótese de que um determinado evento só pode ser localizado
no tempo na medida em que pode ser narrado (id. ibid).
Além do fator tempo, o autor demonstra ainda ter outra preocupação: a
da linguagem que é empregada no texto. E para discutir isso, o ponto de apoio
é Aristóteles e a obra Poética. Uma vez que a narrativa transmite uma
experiência temporal, é necessário que a linguagem empregada seja apurada
para que possa realmente transmitir o que deseja ser transmitido. Olhando
9 “É sempre conhecido e muitas vezes repetido que vida tem algo a ver com narrativa. Nós
falamos de uma história de vida para caracterizar o intervalo entre o nascimento e a morte. Assimilar a vida à história dessa maneira não é algo muito óbvio; é lugar comum que deve ser primeiramente submetido a uma dúvida crítica. Essa dúvida é o trabalho de todo o conhecimento adquirido nas últimas décadas, concernente às narrativas, um conhecimento que aparece para distanciar narrativa de experiência vivida, e para confinar a primeira à região da ficção” (Tradução livre).
32
para a Poética, utiliza da expressão Mŷthos, que designa a trama, para indicar
a operação da elaboração da trama, que vai transformar um texto numa
narrativa, com começo, meio e fim (op. cit., p. 11ss).
O pensamento de Ricoeur é histórico10. É a história que move a dupla
reflexão sobre o tempo e as mediações. Uma coisa é o pensamento
hermenêutico, ou seja, o que significa aquilo que é contado. O outro fator,
igualmente importante, é a dimensão da história-narrativa, ou seja, o que é que
é contado, em si mesmo, livre de interpretações. No ato da narrativa, ou de
contar a história, esse segundo fator assume igual importância, pois mostra
exatamente não aquilo que o narrador quis dizer, mas aquilo que ele disse.
É importante para a nossa pesquisa compreender que, para Ricoeur, a
narrativa histórica e a de ficção têm uma origem comum (cf. Ricoeur [Tomo 1],
1997, p. 280). Segundo ele, as narrativas têm seu início no “ouvir dizer”.
“Nesse sentido, é possível dizer que todas as artes da narração e, em
qualidade eminente, as que saíram da escrita, são imitações da narrativa tal
como já é praticada nas transações do discurso comum” (id. ibid.). Diz o autor,
na já citada obra, que “a narrativa de ficção é mais rica em informações sobre o
tempo, no próprio plano da arte de compor, do que a narrativa histórica” (op.
cit, p. 283).
Essa ideia de que as diferentes formas de narrativa saem de uma
mesma origem são de fundamental importância para compreender a identidade
narrativa, que será abordada a seguir. Como veremos, ela remete ao conceito
de círculo hermenêutico aqui refletido.
Convém recordar que Ricoeur trabalha a narrativa como sendo de ficção
ou histórica, incluindo nessa segunda categoria as biografias e autobiografias,
e na primeira, além dos romances, o teatro e o cinema (cf. Ricoeur, 2000).
Apesar de fazer distinção entre os dois gêneros de narrativa, eles se
encontram, pois uma obra de ficção sempre apresenta elementos
autobiográficos e uma obra autobiográfica ou histórica sempre apresenta
elementos de ficção:
10
Mongin (p.115) usa essa expressão para indicar a preocupação de Ricoeur com a história e a narrativa, não para situar o pensamento de Ricoeur historicamente.
33
A interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada – esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia, ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p. 2).
As ideias acerca de identidade narrativa que o filósofo francês nos fez
conhecer ampliam a nossa visão do conceito de identidade. Aprofundando o
pensamento de Ricoeur, poderemos mais facilmente fazer a ligação com a
narrativa e desenvolver as questões éticas e estéticas que se desenvolvem a
partir daí.
Conforme vamos adentrando na obra de Ricoeur, percebemos uma
aproximação cada vez maior com a definição psicológica de identidade, que
traz, em si, também, elementos antropológicos. Pode-se perceber essa ideia
quando Ricoeur afirma que a sua tese é a de que “muitas dificuldades que
obscurecem a questão da identidade pessoal resultam da falta de distinção
entre os dois usos do termo identidade”11 (RICOEUR, 2000, p. 2).
Por isso, é necessária uma atenção toda especial ao ler este autor,
porque se formos levar em consideração apenas a perspectiva filosófica ou a
sociológica, teremos certa dificuldade de compreensão. Perceber que a
identidade de que Ricoeur trata é a identidade pessoal é fundamental nesse
caso.
A identidade enquanto idem é a primeira dimensão da identidade. Não é
especificamente humana, mas comum a todos os seres vivos. Refere-se àquilo
que permanece ao longo do tempo. Poder-se-ia dizer que é aquilo que
permanece enquanto tudo muda. Esse tipo de identidade está presente em
todo ser, pois ele, ao longo da vida, mantém características essenciais. O ser
humano nasce e morre humano, sem perder as características essenciais. E
todos os seres humanos possuem características que lhes são comuns,
podendo ser atribuídas tanto a um quanto a outro, assim como todos os
animais de determinada espécie, todos os vegetais ou todos os minerais
pertencentes a esta ou àquela espécie.
Comte narra por que para Ricoeur a identidade enquanto idem é menos
importante:
11
O grifo é nosso, justamente para dar destaque à questão da identidade pessoal.
34
Vista como identidade-idem, ou identidade total ou personalidade plena, é a “continuidade ininterrupta” de uma realidade. Devido ao tempo ser fator de evolução, é preciso supor que sob as aparências de mudança existe um princípio de permanência, uma substância oculta (um quê) que garante a estabilidade. Mas uma tal maneira de ver convém melhor às coisas do que às pessoas. Eis porque Paul Ricoeur se inclina para um segundo conceito de identidade (COMTE, 2007, p. 15).
Em se tratando desse tipo de identidade, não se pode dizer que seja
estático, mas sim permanente. Não é estático porque acompanha as mudanças
ocorridas na pessoa, ou no ser, mas é permanente porque apesar das
mudanças ela permanece. As características essenciais continuam. É isso que
faz com que possa ser chamada de identidade no sentido filosófico do termo,
uma vez que aqui ela é vista como algo que identifica o ser, que faz com que
os seres da mesma espécie sejam reconhecidos, apesar de haver diferenças
individuais.
De acordo com Correia,
Quando não somos capazes de discernir a diferença entre dois objectos numericamente diferentes dizemos que ele são idênticos por semelhança. Mas o facto de não sermos capazes de discernir a diferença, não significa que ela não exista. Segundo o «princípio de identidade dos indiscerníveis», formulado, por Leibniz, a consideração de duas entidades como indiscerníveis implica posicionar o mesmo ente duas vezes. O que, no limite, significa que a identidade por semelhança nunca pode ferir a identidade específica subjacente à identidade numérica (CORREIA, 2000, p. 3).
Dessa maneira, compreender a identidade enquanto idem, embora
pareça mais simples, implica reconhecer também as diferenças individuais, o
que torna as coisas não tão simples assim. Para Ricoeur, contudo, importa
mais o segundo modelo de identidade, que não apenas leva em conta essas
diferenças, como também existe porque essas diferenças acontecem.
A identidade enquanto ipse, segundo modelo de identidade, tem, para
Ricoeur, um peso maior, porque é profundamente humano. Se fôssemos
formular um conceito filosófico como no modelo anterior, poderíamos dizer que
é “o que muda enquanto tudo permanece”, ou seja, refere-se àquelas
mudanças que ocorrem no ser o tempo todo, que fazem com que ele mude,
mas mesmo assim continue sendo ele. Baseado na visão heraclitiana de
35
mundo, de que tudo muda12, traz em si o diferencial de que tudo muda, mas
essas mudanças mantêm a identidade do ser.
A palavra ipse possui significado semelhante à palavra idem. Ambas
significam “o mesmo, o próprio”13. Porém, o sentido é diferente. Em Ricoeur,
enquanto por idem podemos entender “o próprio”, por ipse entendemos o “si
próprio”. Essa pequena distinção é fundamental para que se possa
compreender o que o autor quer dizer com identidade enquanto ipseidade.
Dizer “si próprio” coloca a questão no âmbito pessoal.
Uma das grandes preocupações de Ricoeur, ao estudar a questão da
identidade, é a dimensão “tempo”. No primeiro volume da sua obra “Tempo e
Narrativa”, ele dedica um capítulo inteiro ao assunto, num estudo sobre o
capítulo XI das Confissões de Santo Agostinho14. Nesse estudo, Ricoeur faz
diversos questionamentos acerca do tempo e de suas influências na vida do
ser humano. E é justamente a partir desses questionamentos que ele chega à
identidade enquanto ipse. Até então, nas próprias palavras do autor, segundo
Correia, havia as ideias de Kant, baseadas em Aristóteles:
Todos os fenómenos contêm algo de permanente (substância) considerada como o próprio objecto e algo de mutável, considerado como uma simples determinação deste objecto, isto é, de um modo de existência do objecto (A 182, B 224). Reconheceu-se aí a primeira analogia da experiência que corresponde na ordem dos princípios, isto é, dos primeiros juízos, à primeira categoria da relação que se chama precisamente substância e cujo esquema é «a permanência do real no tempo, isto é, a representação deste real como um substrato da determinação empírica do tempo em geral, substrato que permanece enquanto tudo o resto muda» (A 143, B 183) (CORREIA, 2000, p. 4).
Para Ricoeur, é aí que começam os problemas, pois entra em questão
o tempo. Uma vez que a questão da identidade aparece como a permanência
do real no tempo, era preciso encontrar um lugar para as mudanças, para
aquilo que Kant chamava de “algo de mutável”. Assim, Ricoeur desenvolveu a
12
Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, é autor da célebre afirmação de que ninguém atravessa o mesmo rio duas vezes, porque ao mesmo tempo as águas correram, e o rio não é mais o mesmo, e também o sujeito que atravessaria o rio mudou. Essa afirmação, por sua vez, contrapõe-se à ideia de Parmênides, de que as coisas não mudam, mas permanecem sempre as mesmas. Poderíamos comparar a identidade enquanto idem à visão de Parmênides, e a identidade enquanto ipse à visão de Heráclito. 13
De acordo com FARIA, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino-português. 3ª Ed., Rio de Janeiro: MEC, 1962. 14
As páginas 19 a 54 do Tomo I são dedicadas a esse assunto.
36
ideia do ipse, que é a permanência no tempo, porém com as mudanças
advindas dessa permanência. O sujeito continua o mesmo, mas mudou.
Sobre isso, Stefani afirma:
A ipseidade concerne ao aspecto da identidade pessoal perpassada pela alteridade, mais flexiva e reflexiva. Flexiva, pois se constitui durante uma vida inteira, modificando-se de acordo com os encontros hermenêuticos que o sujeito realiza com os outros, com os textos e com os símbolos do mundo; reflexiva, pois não se põe de modo imediato (STEFANI, 2006, p. 79).
A ipseidade não se constitui de modo imediato, pois necessita do tempo,
ou seja, ela existe a partir da ação do tempo no sujeito. Num primeiro
momento, pode parecer que a ipseidade e a mesmidade, fazendo parte da
mesma pessoa, possam ser complementares e se entrecruzarem.
De acordo com Correia,
Ricoeur procura-nos mostrar a profunda diferença entre pensar-se a identidade pessoal em termos de mesmidade e de ipseidade. A identidade diz-se de duas maneiras: como «mesmidade» encontra-se subjacente a noção latina de idem que expressa a identidade alcançada a partir da permanência substancial no tempo; pelo contrário, o conceito de «ipseidade» implica um outro tipo de identidade, enquanto ipse, que se constrói a partir da temporalização de si próprio. Ora, para Ricoeur, esta diferença não é meramente semântica, na medida em que é possível surpreender uma distinção ontológica correspondente. O ser enquanto idem e o ser como ipse não são coincidentes embora se possam entrecruzar. Enquanto o idem traduz a neutralização impessoal de uma existência (o indivíduo não como uma pessoa, mas como uma entidade neutra), o ipse manifesta a presença a si próprio de uma pessoa (CORREIA, 2000, p. 3).
O entrecruzar dessas duas identidades gera o que Ricoeur chama de
“identidade narrativa”, como veremos. Assim nos diz Garrido: “A intervenção da
identidade narrativa faz-se na mediação entre ambos os pólos (...) onde o idem
e o ipse tendem a coincidir (...)” (GARRIDO, 1994, p. 139).
Chegamos, então, a um problema crucial para Ricoeur, que é a questão
da identidade narrativa. Sobre ele, o autor debruçou-se nos últimos anos de
sua vida, e dedicou diversos artigos e livros, vários dos quais citamos no
presente trabalho. Cabe perguntar: por que o autor dá tanta importância a esse
tema? Ou, ainda, o que seria exatamente a identidade narrativa?
Num primeiro olhar, não é difícil perceber que Ricoeur dedicou bastantes
energias na discussão desse tema. Assunto, aliás, que só surgiu após a
37
publicação dos três volumes de Tempo e Narrativa (Temps et recit, em francês
no original), conforme o próprio autor nos conta:
Confrontei-me com este problema no fim de Temps et récit III, quando me interroguei, no termo de uma longa viagem através da narrativa histórica e da narrativa de ficção, se existia uma experiência fundamental capaz de integrar os dois grandes conjuntos de narrativas. Formei então a hipótese segundo a qual a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado desta fusão entre história e ficção (...) (RICOEUR, 2000, p. 1).
Perceber esse contexto histórico, narrado pelo próprio autor, é
importante para melhor compreender a ideia que Ricoeur expressa ao falar em
identidade narrativa. A sua preocupação residia no fato de que, em algum
momento, realidade e ficção se cruzam; em algum ponto da história, a vida
passa a ter elementos de ficção, e a ficção passa a fazer parte da vida. É
justamente nesse cruzamento que o autor acredita haver algo de importante
que pode transformar a vida humana.
Após publicar Tempo e Narrativa, Ricoeur deparou-se com um cenário
onde se fazia uma diversidade de conjeturas acerca da identidade pessoal (cf.
Souza, 2008, p. 1ss15). Nesse contexto, apareciam autores já consagrados
como Locke e Hume, ambos precursores do questionamento acerca da
identidade humana, mas contemporaneamente Ricoeur viu-se obrigado a
dialogar com autores como John Perry e Amélie Rorty, que introduziam já
elementos psicológicos na questão filosófica da identidade.
Cesar diz que
O que constitui a diferença entre duas realidades objetivamente idênticas, dois objetos, mas principalmente duas pessoas, é sua história respectiva, o que se pode contar de cada uma delas. A narrativa tem, pois, a despeito das dificuldades de se achar um substrato identificativo, a virtude de manifestar a identidade pessoal (CESAR, 1998, p. 10).
É importante o que se pode contar. Não apenas a real história, mas de
fato o que se pode contar. Pode-se utilizar a distinção de Ricoeur (2008, p.
41ss) acerca de memória e lembrança. Ele situa a memória como algo estático,
como aquilo que de fato é, ou foi. A lembrança pode vir misturada com
elementos criados pela imaginação, ou mesclada com outras lembranças.
15
Como o texto foi retirado da internet (metafisica.no.sapo.pt/william.html), sem referência bibliográfica e sem data, citarei apenas o autor e usarei como data o ano de acesso à página, citando como número de página o referente do texto retirado.
38
Ambas são importantes, e ambas são verdadeiras, embora talvez não sejam
reais. Da mesma forma se pode falar daquilo que se pode contar acerca de
determinada pessoa ou objeto. Se aquilo que se pode contar for ficção, ainda
assim tem uma grande importância, pois Ricoeur diz que a identidade narrativa
pode acontecer justamente na fusão entre história e ficção (Ricoeur, 2000, p.
178).
Para compreender melhor o que o autor quer dizer com identidade
narrativa, é preciso retornar ao assunto já discutido neste capítulo, que é a
questão da identidade enquanto idem e enquanto ipse.
Para tratar do assunto, e poder afirmar que a identidade narrativa resulta
do entrecruzar-se do idem com o ipse,16 o autor trabalha, dialogando com
Parfit, a partir dos assim chamados puzzling cases, que são questões às quais
não se chega a uma resposta que se encaixe numa lógica aristotélica,
justamente porque nela se cruzam ficção e vida. Apresentarei um, citado por
Ricoeur, que ajudará a melhor compreender:
Suponhamos que é feita do meu cérebro e de toda a informação contida no resto do meu corpo uma réplica tão exacta que ela seja indiscernível do meu cérebro e do meu corpo reais. Suponhamos que a minha réplica é enviada sobre a superfície de qualquer planeta e que eu próprio sou «teletransportado» ao encontro da minha réplica. Suponhamos ainda que durante a viagem o meu cérebro é destruído e que eu não me encontre com a minha réplica, ou ainda que só o meu coração é danificado e que eu encontre a minha réplica intacta, a qual me prometeria tomar conta da minha família e da minha obra após a minha morte. A questão é de saber se, num caso ou noutro, eu sobrevivo na minha réplica (RICOEUR, 2000, p. 7).
É uma situação um tanto quanto embaraçosa, porque não se pode dizer
que haja uma resposta consistente, justamente porque não posso dizer que eu
sobreviveria na minha réplica, pois ficaria o questionamento: a réplica sou eu?
Ricoeur continua:
16
Pode parecer contraditório que já apresentei aqui a identidade narrativa como o ponto e encontro entre o idem e o ipse, entre história e ficção, e entre a tripla mimese. A pergunta que viria disso seria: qual das três definições está correta? Na verdade, as três. Elas não são necessariamente distintas. Entre eles acontece a mesma relação. Quando for possível que ocorra a síntese entre a configuração, a prefiguração e a refiguração, ali acontece a identidade narrativa, porque é o ponto em que a narrativa se encontra com o leitor. O mesmo podemos dizer do idem e do ipse: onde eles se cruzam, o ponto de fusão é o local onde o ser humano se encontra por inteiro. No caso do cruzamento entre história e ficção, a identidade narrativa se dá porque os elementos históricos e de ficção que existem na narrativa formam, nesse ponto, um só.
39
Como se vê, a função desses casos embaraçantes é de criar uma situação tal que seja impossível decidir se sobrevivo ou não. O choque de retorno da indecidibilidade da resposta é de minar a crença que a identidade, seja no sentido numérico, seja no sentido da permanência no tempo, deva sempre ser determinada; se a resposta é indecidível, diz Parfit, é porque a própria questão é vazia; chega então a conclusão: a identidade não é o que importa (id. ibid. p. 7).
Ricoeur, neste artigo, faz um diálogo com Parfit, com o objetivo,
justamente, de mostrar que, se para este último a identidade não é o mais
importante, ele quer provar que ela tem importância. Como o próprio autor fala,
a identidade narrativa é “o tipo de identidade à qual um ser humano acede
graças à função narrativa” (op. cit. p. 1). A narrativa, tanto de ficção quando
histórica, tem relação com a vida.
A identidade narrativa está diretamente relacionada com a tríplice
mimese, já apresentada nesse capítulo. Sendo ela alcançada graças à função
narrativa, faz-nos recordar a tripla mimese: Mimese I, ou prefiguração; Mimese
II, ou configuração, e Mimese III, ou refiguração (cf. Ricoeur, 1997 [Tomo I], p.
85ss; Comte, 2007, p. 17ss). A prefiguração é quando a história vai
acontecendo, mas ainda não tem forma. Ou, como diz Comte, está esperando
para ser contada. Já a configuração é quando damos forma à história, e
damos-lhe uma maior coerência por colocá-la na forma narrativa. A refiguração
é o terceiro passo, e é o que vem depois da história narrada. É o que acontece
depois, as mudanças ocorridas com o sujeito. Comte assim explica:
Nossa identidade não somente toma forma ao ser narrada, mas ela se transforma em outras narrativas que a vêm enriquecer e descortinar novos horizontes para ela (pode adotar outra forma ou figura; pode ser refigurada). Para construir nossa identidade, temos que pô-la em ressonância com outras narrativas para que ela possa enriquecer-se com elas (COMTE, 2007, p. 19).
Refigurar é dar nova forma. E isso acontece quando a narrativa não se
perde em si mesma. Ao contar minha história de vida, posso fazê-lo
simplesmente para me exaltar. Ou então, para colocá-la em comparação com
outras histórias, reais ou de ficção, e com elas aprender algo sobre a minha
vida. Nos dois casos, um tipo de identidade estará se consolidando a partir da
narrativa. No segundo caso, contudo, as chances de dar um redirecionamento
a alguns aspectos da minha vida são maiores.
40
A identidade narrativa, então, não são as mudanças que ocorrem na
vida do narrador ou do leitor/ouvinte a partir da narrativa. Elas fazem parte do
processo. A identidade narrativa é a maneira como o narrador ou o
leitor/ouvinte posiciona sua vida ou assume sua própria história tendo como
meio a função narrativa.
41
2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E IDENTIDADE NARRATIVA: QUESTÕES
ENTRELAÇADAS
No presente capítulo vamos tratar a questão da educação estética em
sua relação com a identidade narrativa. Trataremos de buscar em Schiller o
conceito de educação estética, colocando-o em diálogo com Freire e com La
Salle. Em Freire, daremos maior importância a duas de suas obras: Pedagogia
da Autonomia (2003) e Medo e Ousadia (1986).
Pensar a educação estética nesta pesquisa supõe também retomar e
aprofundar as ideias de Ricoeur já apresentadas, no anterior capítulo, sobre
identidade narrativa, e colocá-las em diálogo com os conceitos de educação
estética.
É fundamental, ao pensar a dimensão estética da formação, conceber a
vida como uma obra de arte – que pode ser narrada. Por outro lado, é
importante também compreender que não é apenas o fato de poder ser
narrada que faz da vida uma obra de arte, mas o fato de ela estar em
permanente construção. A narração da vida é a expressão da vida enquanto
obra de arte.
O ato de trazer presente a educação estética quer contribuir para uma
reflexão mais profunda sobre educação. Formação de educadores combina
com arte, do mesmo jeito que a arte combina com a vida.
2.1 Trajetória de Ricoeur em direção à identidade narrativa
Olhar para Ricoeur como sendo o autor e principal expoente da
identidade narrativa faz-se muito importante aqui. Como já descrevemos em
que consiste a identidade narrativa, passaremos agora à trajetória seguida pelo
autor até aqui.
Os grandes responsáveis pela sua descoberta, ou, se preferirmos, pela
sua aprendizagem de que o ser humano pode ser narrado, pode narrar e pode
narrar-se, e de que isso interfere na sua formação e na descoberta da sua
identidade, são Santo Agostinho e Aristóteles. Embora a ideia da identidade
narrativa seja fruto de muitos anos de estudos e do amadurecimento de várias
outras ideias, é nestes dois autores que ele encontrou as dúvidas.
42
Partindo de Santo Agostinho e de todas as aporias do tempo, em
confronto com Aristóteles e a problemática da narrativa, chegou à conclusão de
que tempo e narrativa se cruzam em algum momento, e esse cruzamento
atravessa novamente a questão da identidade. Benjamin também revelou ser
um importante ponto de apoio na questão da identidade do narrador.
Precisamos, contudo, estendermo-nos um pouco mais em cada um dos
autores para que a compreensão possa ser maior.
2.1.1 Início do percurso: Aristóteles e Santo Agostinho
Em períodos distintos, duas ideias aparentemente sem ligação
chamaram a atenção de Ricoeur: a influência do tempo na vida humana e a
questão das narrativas. Sobre o primeiro assunto, encontrou questionamentos
em Santo Agostinho, e sobre o segundo, em Aristóteles. Por isso, traremos
aqui ideia que serviram de base para o desenvolvimento questão da identidade
narrativa, e que se pode dizer que marcaram o início do percurso do autor no
sentido de compreender a relação entre, num primeiro momento, tempo e
narrativa, e num segundo momento, entre narrativa e identidade. Embora
Ricoeur não tenha lido exclusivamente esses dois autores, foram eles, sem
dúvida, os mais importantes.
No primeiro volume do livro Tempo e Narrativa (1997), o autor apresenta
uma primeira discussão com as aporias da experiência do tempo, encontradas
no Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Uma das aporias é a questão
do ser do tempo. O argumento mais usado é o de que o tempo não tem ser,
pois o instante que é, já não é mais. O presente se transforma em passado
antes que seja possível percebê-lo, de modo que o passado não é mais, o
presente não permanece e o futuro ainda não é. Contudo, falamos no tempo
como tendo um ser. “Dizemos que as coisas por vir serão, que as coisas
passadas foram e que as coisas presentes passam” (RICOEUR, 1997 [Tomo
1], p. 22). O próprio Santo Agostinho exprime, na forma de angústia, essa
incerteza diante do tempo:
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei. (...) De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –,
43
se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente que passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? (SANTO AGOSTINHO, 1975, p. 244).
Outra aporia é a questão da medida do tempo. E esta questão
transforma-se em aporia, quando dizemos que medimos o tempo que passa.
Como se pode medir algo que não é? Em relação a esta aporia, Agostinho
refuta todos os argumentos que dizem que o tempo pode ser medido contando
os dias, ou medindo a trajetória dos astros no céu, ou de qualquer outra
maneira. Reconhece a sua pequenez diante do fato e conclui: “Como posso
fazer isso, se ignoro o que seja o tempo? (...) Ai de mim, que nem ao menos
sei o que ignoro!” (op. cit. p. 251).
Estas e outras dificuldades em relação ao tempo levaram Ricoeur a
investigar o assunto. As outras dificuldades são resumidas por ele através de
exemplos: “seja um som que começa a ressoar, que ressoa ainda e que cessa
de ressoar. Como falamos disso?” (RICOEUR, 1997 [Tomo 1], p. 34). Como
situar este som no tempo e no espaço? Em que momento ele soou? Ou ainda:
Eis um outro som que ressoa: suponhamos que ressoe ainda (adhuc): „Meçamo-lo enquanto (dum) ele ressoa.‟ (...) Onde está então a dificuldade? Resulta da impossibilidade de medir a passagem quando continua no seu „ainda‟ (adhuc). É preciso, com efeito, que algo cesse, para que exista um começo e um fim, logo, um intervalo mensurável (id. ibid. p. 36).
Para Ricoeur, a aporia da medida do tempo pode ser resolvida se
levarmos em conta, primeiro, que o que medimos não é o tempo, mas a sua
espera e a sua recordação (cf. Ricoeur, 1997 [Tomo 1], p. 40].
Enfim, neste capítulo de Tempo e Narrativa, Ricoeur percorre o Livro XI
das Confissões, aprofundando todas as questões que encontra nele. Não é
nosso interesse aqui fazer um resumo do capítulo, o que não caberia no
presente trabalho, mas sim apontar algumas das aporias que geraram em
Ricoeur os questionamentos que culminaram com a conceituação de
identidade narrativa. Tampouco queremos falar sobre todo o livro das
Confissões, pois isto Ricoeur já o fez. Contudo, é importante frisar que Santo
Agostinho ainda coloca em contraste o tempo e a eternidade, apontando a
44
estabilidade da eternidade e a instabilidade do tempo, sendo esta própria uma
experiência negativa.
Na questão da identidade narrativa, podemos encontrar a questão do
tempo nas definições de idem e ipse, aquilo que passa e aquilo que permanece
na identidade do ser humano.
Depois de discutir a polêmica do tempo em Agostinho, Ricoeur coloca as
questões apresentadas em confronto com Aristóteles, na Poética. É de
Aristóteles que ele extrai as categorias denominadas Mimese, fundamentais na
construção da identidade narrativa. Dedica um capítulo inteiro a isso17,
analisando principalmente a maneira como Aristóteles trabalha a questão da
intriga (muthos) e da imitação (mimese) dentro da poesia. Ricoeur explica essa
questão da intriga e da imitação:
Por ocasião da epopéia e da tragédia, Aristóteles elaborou sua noção de „pôr em intriga‟ (muthos) visando à „representação‟ (mímesis) da ação. (...) Uma implicação importante dessa operação configuradora diz respeito diretamente, a saber, que a colocação em intriga não é menos a dos personagens – dos „caracteres‟ – que a das ações. É o personagem aquele que faz a ação na narrativa. A categoria do personagem é, pois, também uma categoria narrativa, e seu papel na narrativa depende da mesma inteligência narrativa que a própria intriga: o personagem, pode-se dizer, é ele próprio colocado em intriga (RICOEUR, 2006, p. 114-115).
Ao afirmar que o personagem da narrativa é, ele mesmo, colocado em
intriga, o autor afirma um ponto central da identidade narrativa: o entrecruzar-
se ficção-realidade.
Ricoeur (1997 [Tomo 1], p. 56) percebe em Aristóteles um completo
silêncio acerca do caráter temporal na poética. Ou seja, embora seja
importante que esta tenha relação com a vida, não existe qualquer referência à
sua localização no tempo. Contudo, é graças a esse silêncio que o autor
consegue extrair aquilo de que mais necessita, e também graças a ele que não
fica preso a este autor; apenas utiliza-se dos conceitos de muthos-mimese, ou
seja, da tessitura da intriga e da atividade mimética (mimese=imitação). Será
este, aliás, o eixo norteador de Ricoeur ao falar sobre as narrativas,
especialmente da Identidade Narrativa. Ele não faz uma imitação de
17
O capítulo 2 do Tomo 1, intitula-se O tecer da intriga: uma leitura da Poética de Aristóteles.
45
Aristóteles, mas apropria-se dos conceitos acima citados para, assim,
desenvolver a sua pesquisa.
Aristóteles fala de poesia como sendo imitação. Já o Capítulo I leva o
título: “Poesia é imitação. Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o
meio de imitação”. Partindo desse início, o autor discorre sobre as obras de
poetas conhecidos, como Homero e Empédocles18, para demonstrar que a
poesia faz parte do ser humano, pois poesia é imitação, e imitar é da natureza
humana (cf. Poética 13ss).
Ricoeur, comentando a Poética, cita a imitação como Mimese (cf.
Ricoeur, 1997 [Tomo 1], p.55ss)19. Isso, porque a narrativa é a imitação da
ação, ou imitação da vida. Essa mimese é que dá origem à narrativa, mas não
é a narrativa em si, pois esta última é a expressão da imitação, como fica claro
na seguinte passagem:
E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações, daí vem por conseqüência o serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter (Poética 30).
É possível perceber, neste parágrafo, que o autor diferencia as ações de
acordo com a pessoa que as vive. Esse detalhe é importante, porque na
concepção de identidade narrativa apresentada por Ricoeur, a individualidade
precisa ser respeitada. O que vai dar origem à identidade narrativa é o
cruzamento da ficção com a realidade, e é nesse cruzamento que a
individualidade tem lugar.
18
Recordemos que era muito comum, para a época, o gênero de narrativa em forma de poesia. A Odisseia, de Homero, é um bom exemplo disso. Muitos anos mais tarde, mesmo tendo-se popularizado a narrativa em prosa, houve autores, como Camões, que utilizaram este gênero de narrativa. Por isso Aristóteles não está falando pura e simplesmente da poesia em si, mas de todo o gênero literário que era mais usado então. 19
A esse respeito, afirma Gazoni: Há grande controvérsia quanto ao sentido de mímese em Aristóteles, o que se reflete nas escolhas para a tradução do termo. As edições mais antigas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Bruna, Gallavotti) vertem o termo por „imitação‟. Dupont-Roc e Lallot (cujo livro sobre a Poética é de 1980) chamaram atenção para a inconveniência dessa tradução e optaram por „representação‟. Há ainda a possibilidade de deixar o termo como no original, „mímese‟. Halliwell procede assim e essa é a solução adotada aqui, ainda que isso deixe o texto pouco fluente quando é o caso de traduzir o verbo correlato: „mimetizar‟ não é do português corrente, e „realizar a mímese‟, outra opção possível, torna a leitura carregada. A solução não compromete o tradutor com nenhuma tese a respeito do que seria mímese, o que é uma estratégia escrupulosa em se tratando de um termo controverso (GAZONI, 2006, p. 36).
46
É necessário distinguir ficção de história, e é uma das preocupações de
Ricoeur. Ao falar de narrativa, ele reporta-se a essa distinção, porém
colocando-as num nível semelhante, ao afirmar que nas duas aparecem
elementos pessoais do autor e nas duas aparece ficção (cf. Ricoeur, 2000,
p.178). Essa ideia é importante na hora de estabelecer a identidade narrativa,
pois esses dois elementos (realidade e ficção) são o que vai constituir essa
identidade. É possível, contudo, ir além dessa ideia. Citando White, autor que
afirma que história e narrativa se confundem, Decca diz que, embora história e
ficção literária pertençam ao campo das narrativas, “existem diferenças nos
seus modos de enunciação” (DECCA, 2000, p. 18). Se a história fosse
narrativa, segundo o autor, precisaria ser lida de acordo com a crítica literária.
Em determinado momento, Ricoeur (1997) e Decca (2000) combinam.
Ricoeur afirma que, embora estejam num nível semelhante, a narrativa
histórica e a narrativa de ficção colocam-se em campos distintos, pois partem
de referenciais diferentes, mesmo ambas referindo-se à ação humana.
Partindo daí, retornamos à questão da memória. Aristóteles reporta-se
ao problema, anteriormente citado, que é enfatizado por Bosi (2003), das
“falhas” na memória. Ele assim o faz quando fala sobre problemas críticos da
poesia. Afirmando que
O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porém, ele representa mediante uma elocução que compreende palavras estrangeiras e metáforas, e que, além disso, comporta múltiplas alterações, que efetivamente consentimos ao poeta (Poética 161),
o autor reconhece que a arte de narrar recebe inúmeras interferências, seja de
ordem pessoal ou de ordem externa, que Aristóteles chama de erros essenciais
ou acidentais. O erro é essencial quando ocorre por incapacidade do poeta de
fazer a imitação como deveria ser; e é acidental quando o poeta não consegue
representar, por descuido, a realidade tal como ela é. Por esse lado caímos na
mesma observação já feita por Benjamin e Ricoeur, de que a memória sofre
interferências, seja de distrações, seja de outras memórias, seja de outras
pessoas. Aristóteles, porém, prefere “o impossível que persuade ao impossível
que não persuade” (Poética 177). Isso confere a Ricoeur legitimidade para
47
afirmar que na narrativa, ficção e realidade se entrecruzam e são ambas
importantes na formação da identidade do indivíduo que narra ou que é
narrado.
Enfim, é em Aristóteles, mas não só, que Ricoeur busca inspiração para
escrever e para desenvolver a teoria da identidade narrativa. É o par mimese-
muthos, juntamente com as aporias do tempo, de Santo Agostinho, que lhe dão
as bases para a sustentação para seus estudos. Percebe-se, tanto em
Aristóteles, quanto em Santo Agostinho, como também em Benjamin e Ricoeur
uma forte preocupação com a estética no movimento narrativo. E é justamente
por isso que precisamos compreender os conceitos de estética e,
posteriormente, de educação estética. No próximo capítulo dedicaremos
espaço para isso.
2.1.2 Fim ou início do percurso: Benjamin e o narrador
Outra figura igualmente importante para compreender o entrelaçamento
da narrativa e da identidade é Benjamin. Importante pensador da Escola de
Frankfurt, ele enfrentou os horrores do nazismo, tendo perdido (ou tirado) a
vida devido aos sofrimentos impostos a ele e a outros. Destacou-se, contudo,
pela sua obra mais conhecida, que se chama O Narrador.
Benjamin (1975) tem como foco de sua obra o narrador. Seu trabalho
mais conhecido, que leva esse nome, é um ensaio com observações acerca da
obra de Nicolai Lescov20. Neste ensaio, o autor começa lamentando a
dificuldade cada vez maior de encontrar boas narrativas. Chega a afirmar que
“a arte narrativa se aproxima gradativamente do fim” (BENJAMIN, 1975, p. 63).
Segundo ele, isso acontece pelo distanciamento progressivo entre o ser
humano e a experiência. O distanciamento entre o narrador e a experiência
vivida faz com que esta perca muito de seu valor.
Andando na contramão da teoria literária, Benjamin diferencia romance
de narrativa. Dentro da teoria literária, encontramos uma definição técnica para
narrativa em Vieira (2001, p. 601), que diz ser possível dizer que narrativa é
20
Nicolai Lescov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895 em São Petesburgo. Revela certo parentesco com Tolstoi, mas é mais ligado a Dostoievski. Escreveu romances, e, no fim da vida, contos, sendo estes a parte mais importante de sua obra (cf Benjamin, 1975 p. 63).
48
todo texto que tenha uma sequência cronológica e lógica. Não é assim que
pensa Benjamin. Ele faz uma diferenciação importante. Para ele, uma das
características principais da narrativa é poder se valer da tradição oral
(Benjamin, 1975, p. 64ss). O romance, porém, carece dessa característica,
distinguindo-se da narrativa. Isso entra em conflito com o que Vieira e outros
autores, incluindo Ricoeur (1997) defendem como sendo narrativa. Este último
(1997 [Tomo 1] p. 137ss; 2000, p. 177ss) coloca as narrativas de ficção e as
históricas no mesmo patamar, incluindo na ficção os romances, filmes, peças
de teatro entre outras.
Esse conflito de Benjamin com os romances é assim visto por Ewald:
Talvez a questão de Benjamin em relação ao romance possa ser entendida mais especificamente em função da interiorização que ele provoca, mantendo-se numa esfera individual e afastado dos conselhos e do senso prático das narrativas, os quais para Benjamin carregam a sabedoria, que, por sua vez, constituiria o lado épico da verdade. Mas, na continuação deste trajeto, ele parece imiscuir o romance com a imprensa, que carrega uma nova forma de comunicação: a informação, a qual passou a influenciar decisivamente as formas épicas, devastando a narrativa e ameaçando o próprio romance. Neste ponto parece haver um embaraço entre a ameaça latente no romance e na imprensa, dando uma impressão de que uma seria, de certa forma, extensão do outro
(EWALD, 2008, p. 03).
Claro é, então, para Benjamin, que é necessário valorizar a experiência
vivida. Nem é necessário que essa experiência venha de longe. Uma vivência,
por mais simples que seja, tem tanto valor quanto algo vivido em outras terras.
As tradições e histórias do próprio país têm valor, embora seja comum valorizar
mais aquilo que vem de fora.
De acordo com Benjamin (1975, p. 65), “o narrador é uma espécie de
conselheiro de seu ouvinte”. E, ser conselheiro “significa muito menos
responder a uma pergunta do que fazer uma proposta sobre a continuidade de
uma estória que neste instante está a se desenrolar” (id., ibid.). Por isso, para
ser conselheiro, “é necessário, antes de mais nada, saber narrar a estória”(id.,
ibid.). Colocar o narrador como conselheiro é valorizar ainda mais a sua
pessoa, é colocá-lo mais conectado com a vida, pois a princípio ninguém
deveria saber mais sobre ela do que quem a narra.
49
Outra característica da narrativa é que ela “não se gasta. Conserva todo
o seu vigor e durante muito tempo é capaz de desenvolver-se” (BENJAMIN,
1975, p. 68). Acerca disso, o autor recorda o conto “Psamenita”, narrado por
Heródoto no capítulo 14 de seu livro de Histórias, sobre Cambises, rei dos
persas, que derrotou e prendeu Psamenita, rei dos egípcios, colocando-o
amarrado na beira da estrada, onde podia ver sua filha passando como
escrava, assim como seu filho sendo levado para a execução. Ao ver passar
seus filhos, Psamenita manteve-se forte, porém ao ver passar seu criado
entrou em desespero. Essa história acaba aí, sem qualquer explicação de
Heródoto. Porém, muitos séculos depois, Montaigne buscava resposta a esse
fato, chegando à conclusão de que Psamenita manteve-se forte, porém como
uma represa foi-se enchendo e, ao ver o criado, transbordou. Poderia, porém,
ser qualquer outra a explicação. Heródoto não dá o motivo, mas o fato de, tanto
tempo depois Montaigne ainda se ocupar da narrativa demonstra o quanto esta
permaneceu viva e continua causando comoção e perplexidade. Essa é uma
característica da verdadeira narrativa.
Para o autor, não existe narrativa separada da vida. Em Benjamin vamos
encontrar a seguinte afirmação:
A narrativa, tal como se desenvolve durante muito tempo no círculo dos ofícios mais diversos – do agrícola, do marítimo e, depois, do urbano -, é, por assim dizer, uma forma artesanal de comunicação. Sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do conteúdo, como o faz uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio. Assim, a narrativa revelará sempre a marca do narrador, assim como a mão do artista é percebida, por exemplo, na obra de cerâmica (BENJAMIN, 1975, p. 69).
Esse pensamento está de acordo com a ideia, presente em Ricoeur, de
que toda obra de ficção tem um pouco de autobiografia, e toda autobiografia
tem um pouco de ficção (cf Ricoeur, 2000, p. 128). A narrativa não pode ser
desvinculada da vida em nenhum aspecto, mesmo quando é transformada em
história em ficção, pois se houver essa separação corre-se o risco de fazer a
narrativa desaparecer.
A interação narração-vida é o ponto forte da obra de Benjamin. Ao longo
do ensaio ele defende essa ideia, de que não existe narrativa sem que a vida
50
do narrador esteja presente. Ou mesmo a morte, como parte integrante da vida
(cf. Benjamin, 1975, p. 75). O envolvimento, além de fundamental, é
praticamente inevitável. O narrador não consegue dissociar completamente o
que está contando da própria vida.
Em Scholze (2008), encontramos justamente essa ideia: o texto é
resultado da intertextualidade, através da qual o sujeito vai recompor a própria
história, autonarrando-se. A autora diz que pensa “ser possível analisar como,
através do texto, o que está em constante fazer, desfazer e refazer, numa
perspectiva foucaltiana” (SCHOLZE, 2008, p. 97).
“Fazer, desfazer e refazer” remete ao círculo de compreensão, ou círculo
hermenêutico, na perspectiva de Gadamer, já descrito no capítulo introdutório
do presente trabalho. Embora Benjamin não situe a questão do narrador numa
perspectiva hermenêutica, da maneira como ele trabalha o tema pode-se
depreender isso, especialmente quando aproxima tão veementemente
narração e vida.
Um dos auxiliares mais importantes do narrador é a memória. Isso se dá
porque, como já vimos, para Benjamin a narrativa apoia-se na transmissão
oral. O autor recorda que “a musa dos autores épicos era, entre os gregos,
Mnemosina, aquela que se recorda” (BENJAMIN, 1975, p. 73). Assim como
Ricoeur (2008), Benjamin distingue memória e recordação. Contudo, é uma
distinção muito sutil, quase imperceptível. Ele se refere à recordação como a
historiografia, e à memória como o elemento formador do épico – que passou a
se mostrar diferente, quando o romance começou a abandonar a obra épica e
transformar-se em mera elaboração de uma história sem relação necessária
com a vida. Já em Ricoeur (2008) encontramos a mesma distinção, porém
muito mais elaborada. Este autor faz diversas distinções, entre memória,
imaginação, lembrança, entre outras. Segundo este autor, a memória está no
singular, ou seja, ela permanece, sem sofrer efeitos externos, ao passo que a
recordação pode estar entremeada de elementos que não são
necessariamente históricos. Ambos, porém, diferentemente de Benjamin, têm
igual importância na narrativa, que sempre apresenta elementos de ficção
entrelaçados com elementos da vida, elementos históricos.
Sobre a memória, Bosi (2003) afirma que ela pode ser muito
interessante, mas “corre o risco de cair numa „ideologização‟ da história do
51
quotidiano, como se esta fosse o avesso oculto da história política homogênea”
(BOSI, 2003, p. 15). É que a autora, ao contrário de Ricoeur e Benjamin, não
faz o mesmo tipo de diferenciação. Ela trata tudo como memória. Quando
Benjamin relata a importância da tradição oral para a narrativa, ou melhor, a
necessidade da mesma, ele não está se referindo apenas à memória histórica,
como o faz Bosi. Ele se refere, sim, à memória do “contar histórias”, e aí a
fidelidade aos fatos não é tão importante. Ricoeur, pelo contrário, dá valor à
memória histórica, que, quando não é fiel aos fatos, é tratada como
“lembrança” ou “recordação”. São os elementos de ficção que, para ele,
compõem a narrativa, seja ou não histórica, e que possuem fundamental
importância na composição da identidade narrativa.
Ricoeur (1997 [Tomo 1] p. 138) apresenta assertiva igual à de Benjamin,
a do eclipse da narrativa, especialmente na historiografia francesa e na
epistemologia neopositivista. Apoiado em Benjamin, o autor (1997 [Tomo 3] p.
45), apresenta um possível fim, uma morte, da arte de contar. Contudo, a visão
de Ricoeur é mais ampla. Segundo ele, esse declínio, essa morte da narrativa
tal qual a conhecemos não impede que novas formas de narrativas estejam
nascendo. “Elas atestarão que a função narrativa pode se metamorfosear, mas
não morrer. Pois não temos qualquer idéia do que seria urna cultura em que
não se soubesse mais o que significa narrar” (op. cit. p. 46).
A narrativa, como a vida, é dinâmica. Ricoeur assim o reconhece. E o
coloca da seguinte maneira:
A problemática do reconhecimento de si atinge simultaneamente dois pontos culminantes com a memória e a promessa. Uma se volta para o passado, a outra para o futuro. Mas elas têm de ser pensadas conjuntamente no presente vivo do reconhecimento de si, graças a alguns traços que possuem em comum (RICOEUR, 2006, p. 123).
É colocando a memória e a promessa juntas, que o autor considera a
possibilidade de a narrativa renascer sob forma diversa, não conhecida. O
mesmo se dá com o ser humano, a partir das narrativas: o resgate da memória
e a promessa do futuro.
E se Ricoeur vê a narrativa de maneira positiva, que, como a Fênix,
renasce das próprias cinzas, Benjamin vê na narrativa uma maneira realista de
prolongar a própria vida; dessa maneira, ao vislumbrar um possível fim da
52
narrativa, ambos têm motivos diferentes. Mas o objetivo é o mesmo: fazê-la
renascer.
2.2 Ricoeur, Schiller, Freire e La Salle: um diálogo sobre Educação
estética
À primeira vista, falar em conceito de estética pode soar um tanto quanto
inútil, tendo em vista que, para diversas pessoas, ela é simplesmente sinônimo
de belo. Por outro lado, estética pode ter diferentes significados, não sendo a
associação com o belo definitivamente necessária. Para uma melhor
compreensão, podemos retomar sua concepção original que, segundo Iser
(2001), sofreu mudanças ao longo do tempo, e que na era moderna está
ressurgindo:
A natureza da estética, contudo, mudou ao longo do tempo, e para compreender seu ressurgimento precisamos antes retornar em sua história. Baumgarten definiu a estética (1735) como „a ciência de como as coisas podem ser conhecidas [cognise] pelos sentidos‟, implicando, com isso, que ela tinha um componente tanto cognitivo quanto emotivo (ISER, 2001, p. 35).
Esse conceito, tido por Iser como original, foi adotado por autores que se
seguiram. Outros, porém, preferiram seguir outra linha, como foi o caso de
Hegel (1974ab), um dos mais importantes autores sobre estética da época.
Para justificar a sua maneira de ver a estética, ele afirmou que “a toda ciência
cabe o direito de se definir como queira” (HEGEL, 1974a, p. 87). Esta
afirmação serve para justificar esta outra, apresentada pelo autor na
apresentação de sua obra: “Esta obra é dedicada à estética, quer dizer, à
ciência do belo, e, mais precisamente, do belo artístico, pois dela se exclui o
belo natural” (id. ibid.). A exclusão do belo natural da estética é, para o autor,
objeto da filosofia, e não apenas escolha sua. Isso porque, segundo ele, “o belo
artístico é superior ao belo natural, por ser um produto do espírito que, superior
à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e, por conseguinte,
à arte” (id. ibid.).
Hegel, assim, não comunga exatamente das mesmas ideias de
Rosemberg, apesar de ter estudado estética ainda no final do mesmo século
(XVIII) e começo do seguinte (XIX). Neste trabalho, contudo, trabalharemos a
53
partir da visão de outro autor, contemporâneo aos anteriormente citados, e
igualmente importante quando se trata de estética. Trata-se de Schiller (2002),
poeta, filósofo e dramaturgo alemão, nascido em 1759 e falecido em 1805.
Escreveu, entre outras obras, A Educação Estética do Homem, em 1795.
Adotamos o conceito de educação estética em Schiller por entendermos que a
sua postura tem paralelo com a visão ricoeuriana, especialmente no que diz
respeito a uma mudança na pessoa a partir da estética. Também adotamos
Schiller por ser ele pioneiro na utilização do conceito de educação estética.
No que diz respeito ao conceito estético schilleriano, pode-se dizer que
ele assume uma postura profundamente arraigada no ser humano. Contempla
a estética como um elemento capaz de provocar mudanças. E defende uma
estética que pode ser aprendida e apreendida.
Vale recordar aqui que a palavra estética “deriva do grego aisthésis e
significa sensação, sentido, liberdade” (ISSE, 2007, p. 11). Começou a ser
concebida como ciência a partir de Baumgarten, no século XVIII, como a
ciência do que pode ser apreendido pelos sentidos. Popularizou-se como a
ciência do belo e passou a ser identificada com a arte. “A estética, contudo,
não se restringe ao campo da arte, mas diz respeito à natureza física como um
todo no ser humano” (id. ibid.).
Igualmente a Hegel (1974), Schiller contempla a estética como a arte do
belo. Vai além, porém, no sentido de contemplar o belo natural, e o belo no ser
humano, mostrando a importância da influência do mesmo para que haja
beleza; além disso, partindo do conceito original de aisthésis, afirma a
possibilidade de aprendizagem do belo, e as mudanças que essa
aprendizagem pode trazer para quem o aprende.
Schiller parte da visão kantiana de estética, na qual a noção de belo
estava ligada à faculdade do juízo e da criação do gosto. “Por outro lado, a
estética kantiana visa definir os limites da sensibilidade na forma dos conceitos
de espaço e tempo, que antecedem a toda experiência sensível” (SILVA, s/d).
Para Kant, o conhecimento pode acontecer a priori ou a posteriori. Ele coloca a
estética na área do conhecimento a priori, ou seja, ela antecede o juízo.
Em Schiller, o conceito de beleza se alcança graças ao equilíbrio entre
sentimento e entendimento, entre forma e matéria. Ele apresenta duas forças
opostas, que chama de impulsos, e os denomina de impulso sensível e impulso
54
formal. O sensível “parte da existência física do homem ou de sua natureza
sensível” (SCHILLER, 2002, p. 63), e limita o homem, pois não permite que seu
espírito saia do mundo sensível. O impulso formal “parte da existência absoluta
do homem ou da sua natureza racional e está empenhado a mantê-lo em
liberdade” (id. ibid.). De acordo com o autor, onde domina o impulso formal, o
objeto puro age em nós, compreendendo o objeto puro como o bem ou a
determinação moral em fazer o bem. A beleza acontece quando estes dois
impulsos não são opostos, mas se complementam gerando um fator comum de
equilíbrio.
Esse equilíbrio é fundamental para compreender o conceito de beleza,
no sentido de que, tanto o filósofo que se deixa levar pelos sentimentos, quanto
o que baseia tudo no entendimento, não conseguirão chegar a um conceito de
beleza (cf. Schiller, 2002, p. 70ss).
Apesar de apresentar o belo num contexto mais amplo, para além da
obra de arte, afirma Schiller:
A beleza não é nem estendida a todo âmbito do que é vivo nem se encerra nele. Um bloco de mármore, embora seja e permaneça inerte, pode mesmo assim tornar-se forma viva pelo arquiteto e escultor; um homem, conquanto viva e tenha forma, nem por isso é uma forma viva. Para isso seria necessário que sua forma fosse viva e sua vida, forma. Enquanto apenas meditamos sobre sua forma, ela é inerte, mera abstração; enquanto apenas sentimos sua vida, esta é informe, mera impressão. Somente quando essa forma vive em nossa sensibilidade e sua vida se forma em nosso entendimento o homem é forma viva, e este será sempre o caso quando o julgamos belo (SCHILLER, 2002, p. 77-78).
Percebemos, então, que para o autor, o conceito de beleza (ou de
estética) reside na síntese entre sentimento e entendimento. Isso posto, não
podemos aqui deixar de abrir parênteses para anotar uma aproximação com a
questão da identidade narrativa de Ricoeur. Olhando na perspectiva
schilleriana, a identidade narrativa não deixa de ser uma experiência estética,
pois, tal como o belo de Schiller, situa-se na síntese entre idem e ipse, entre
aquilo que permanece e aquilo que muda, e, por que não, entre sentimento e
entendimento. E, da mesma maneira, tende a provocar uma mudança, sendo
que para Schiller a descoberta do belo gera a liberdade (cf Schiller, 2002, p.
99) e para Ricoeur, a identidade (cf. Ricoeur, 2000, p. 177ss).
55
É aqui que entra a questão da educação estética. Para Schiller (2002), a
estética pode ser aprendida, e essa aprendizagem se dá aos poucos, dentro do
já citado equilíbrio entre sentimento e entendimento. Note-se aqui uma sutil
diferença entre a abordagem schilleriana e a abordagem pedagógica da
educação estética, que, ao tratar do assunto, traz à tona uma escola bonita,
uma educação bela (cf Perissé, 2009). Na visão filosófica, apresentada por
Schiller, é mais visível uma educação para o belo.
Na sua obra A Educação Estética do Homem, Schiller chega à
conclusão da necessidade de aprender o belo depois de perpassar diversos
campos da vida humana, como a política, demonstrando que o belo faz parte
da vida do ser humano tanto quanto as demais dimensões, e está presente
tanto na questão humana, ou seja, no físico, no psíquico e no espiritual, mas
também nas demais atividades exercidas pelo ser humano.
A dita necessidade se apresenta, segundo o autor, da seguinte maneira:
Não é suficiente, pois, dizer que toda a ilustração do entendimento só merece respeito quando reflui sobre o caráter; ela parte, em certo sentido, do caráter, pois o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração. A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento (SCHILLER, 2002, p. 47).
Esta assertiva, presente na carta VIII, é a primeira desta obra na qual ele
defende diretamente a necessidade de uma educação estética, ou, como aqui
ele chama, de formação da sensibilidade. Deste ponto em diante é contínua a
sua insistência em que o ser humano se forme para o belo. Uma afirmação
bem explícita sobre essa necessidade encontra-se na Carta XX:
Sem que tomemos em consideração alguma lei ou fim, ele (o homem21
) pode aprazer-nos na mera contemplação e apenas por seu modo de aparecer. Nesta última qualidade, julgamo-lo esteticamente. Existe, assim, uma educação para a saúde, uma educação do pensamento, uma educação para a moralidade, uma educação para o gosto e a beleza. Esta tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de nossas faculdades sensíveis e espirituais (SCHILLER, op. cit, p. 103).
21
Explicação nossa, tendo em vista que o sujeito oculto na frase (o homem) só aparece citado anteriormente.
56
A relação entre estética e formação é apresentada pelo autor ao longo
da obra, num crescendo. Primeiro apresenta a questão política e alguns males
que dela advêm. Procura, depois, mostrar que o ser humano é responsável
pelos males. Passa a explicar os dois impulsos que direcionam os seres
humanos que são o sensível e o formal, para chegar à questão da educação
estética.
Os dois impulsos, o sensível e o formal, aparentemente são opostos,
pois um exige mudanças e o outro imutabilidade (cf. Schiller, op. cit, p. 67). Por
isso mesmo, faz-se necessário um terceiro impulso que, em princípio, é
impensável, pois os dois primeiros esgotam o conceito de humanidade. Dessa
maneira, “a eficácia de cada um ao mesmo tempo funda e limita o outro; (...)
cada um encontra sua máxima manifestação justamente pelo fato de que o
outro é ativo” (SCHILLER, op. cit, p. 73). É justamente no equilíbrio entre esses
dois impulsos que surge um terceiro, que Schiller chama de impulso lúdico. A
importância do lúdico está em alcançar a beleza através do jogo de equilíbrio,
onde o sensível e o racional se equilibram. O autor contempla isso como um
jogo, e nos remete ao conceito de liberdade. “O impulso lúdico é o equilíbrio
que o homem consegue quando se libera das limitações da sensibilidade e da
razão, a partir de um salto dialético que supera esta oposição” (VERÁSTEGUI,
2007, p. 4).
O impulso lúdico ajuda o ser humano a aprender a apreciar o belo, pois
este, como os outros gostos, é aprendido. Ele serve como intermediário na
passagem do estado passivo da sensibilidade para o estado ativo do
pensamento (cf. Schiller, 2002, p. 113). E esse é o principal fruto da educação
estética: a formação do homem sensível. O sensível aqui não se refere apenas
à sensibilidade artística, mas ao todo da existência humana:
Pela disposição estética do espírito, portanto, a espontaneidade da razão é iniciada já no campo da sensibilidade, o poder da sensação é quebrado já dentro dos próprios domínios, o homem físico é enobrecido de tal maneira que o espiritual, de ora em diante, só precisa desenvolver-se dele segundo as leis da liberdade. O passo do estado estético para o lógico e moral (da beleza para a verdade e o dever) é, pois, infinitamente mais fácil que o do estado físico para o estético (da vida meramente cega para a forma) (SCHILLER, 2002, p. 114).
57
Em Schiller, estética e ética caminham juntas. Elas convergem porque a
estética garante o equilíbrio do indivíduo de tal maneira que ele pode aspirar ao
político, que é o princípio da autonomia (cf. Verástegui, 2007, p. 8). Da mesma
maneira, a estética conduz ao conceito de liberdade; este, por sua vez, é um
dos princípios éticos fundamentais. De modo que Freire, que diz que na escola
é preciso “decência e boniteza de mãos dadas” (FREIRE, 2003, p. 32), está
reafirmando um princípio estético de Schiller, com a diferença que para Freire,
a estética e a ética caminham ao mesmo tempo, e para Schiller,a estética gera
necessariamente uma ética.
Antes de aprofundarmos a compreensão de Freire acerca da estética na
formação de professores, queremos ter presente a sua visão estético-
hermenêutica. Trata-se de um trecho no qual o autor demonstra como
compreende as coisas, e por que assim as compreende:
Nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro, têm por trás de si uma única razão. Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocados por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso é que a mim me interessou muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si (FREIRE, 2008, p. 18).
É uma visão estética do mundo, que ajudou o autor a estabelecer a sua
compreensão acerca das coisas. Ela aparece constantemente ao longo da obra
“Pedagogia da esperança”, e de maneira mais sutil nas suas outras obras. É
ela que vai delinear a sua compreensão de formação de professores, e
também o perfil que ele almeja para os professores.
Na vida de Freire, as suas teorias sobre formação foram se delineando
aos poucos, e não necessariamente a partir dos seus estudos e leituras. Muitas
vezes foi na prática, no dia a dia, no contato com as pessoas simples que ele
foi construindo o pensamento e a hermenêutica. Para ilustrar, podemos citar
um fato, por muitos conhecido, relatado por ele, do qual transcrevemos
algumas partes. O fato aconteceu após uma conferência na cidade do Recife
(PE):
Ao terminar, um homem jovem ainda, de uns 40 anos, mas já gasto, pediu a palavra e me deu talvez a mais clara e contundente lição que já recebi em minha vida de educador. (...) Pediu a palavra e fez um
58
discurso que jamais pude esquecer, que me acompanha vivo na memória do meu corpo por todo este tempo e que exerceu sobre mim enorme influência. (...) „Agora, eu queria dizer umas coisas ao doutor que acho que os meus companheiros concordam.‟ Me fitou manso mas penetrantemente e perguntou: „Dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de cada um de nós?‟ (...) Falou da falta de recursos para as mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor. Da proibição que lhes era imposta de ser felizes. De ter esperança. (...) „Agora veja, doutor, a diferença. O senhor chega em casa cansado. (...) Mas – continuou ele – uma coisa é chegar em casa, mesmo cansado, e encontrar as crianças tomando banho, vestidinhas, limpas, bem comidas, sem fome, e outra é encontrar os meninos sujos, com fome, gritando, fazendo barulho. (...) Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites não é porque a gente não ame eles não. É porque a dureza da vida não deixa muito pra escolher‟ (FREIRE, 2008, pp. 25-27).
Essa passagem ajuda a compreender como Freire aprendeu com os
“acontecimentos, fatos, feitos” da vida. É essa capacidade de aprender com as
coisas do dia a dia que torna o educador mais forte na sua identidade. Assim, a
formação não acontece apenas de maneira formal, mas também informal.
Pode-se dizer que esse contato com a realidade é uma experiência estética,
que às vezes pode ser a experiência estética da contrariedade, como se pode
depreender do texto de Freire acima citado. Acontece, após uma conferência,
de o autor esperar ter agradado ao público, e que os aplausos sejam a reação
positiva das pessoas àquilo que ele disse. Quando ocorre um questionamento
de alguém do público, é que acontece a experiência estética da contrariedade.
Que, como toda experiência estética, tem a função de levar o sujeito a um
crescimento pessoal.
Freire tem uma importante contribuição para a educação estética. Isso
acontece ao longo de toda a sua obra, mas aparece de maneira mais clara na
“Pedagogia da autonomia” (2003), e em uma entrevista concedida a Ira Shor,
publicada sob o título “Medo e ousadia” (1986). Nestes trabalhos, Freire
trabalha a estética do ponto de vista de um educador – muito embora sua
formação inicial tenha sido na área do Direito.
A relação que Freire faz entre educação e estética tem pontos em
comum e, em outros, difere da visão schilleriana. Em Freire, é mais visível a
educação como uma obra de arte, ou como processo criador:
Ensinar é assim a forma como toma o ato de conhecimento que o(a) professor(a) necessariamente faz na busca de saber o que ensina
59
para provocar nos alunos seu ato de conhecimento também. Por isso, ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico. A curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em ação, se encontra na base do ensinar-aprender (FREIRE, 2008, p. 81).
É como processo criador que ela se transforma em obra de arte. Para
este autor, tudo o que acontece na sala de aula, desde o relacionamento
professor-aluno, até o tom de voz do professor, os gestos utilizados, os
exemplos, tudo isso faz parte da estética da sala de aula:
Creio que a partir do momento em que entramos na sala de aula, do momento que você diz aos alunos: „Olá, como vão?‟ você inicia, necessariamente, um jogo estético. (...) Assim a educação é, simultaneamente, uma determinada teoria do conhecimento posta em prática, um ato político e um ato estético (FREIRE; SHOR, 1986, p. 146).
Vale a pena apontarmos outra ideia, que reforça a questão da sala de
aula como obra de arte:
Outro ponto que faz da educação um momento artístico é exatamente quando ela é, também, um ato de conhecimento. Conhecer, para mim, é algo de belo! Na medida em que conhecer é desvendar um objeto, o desvendamento dá “vida” ao objeto, chama-o para a “vida”, e até mesmo lhe confere uma nova “vida”. Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto estudamos (FREIRE, SHOR, 1986, p. 145).
É aí que se desenham as semelhanças e diferenças entre Freire e
Schiller. Se, para o segundo, a arte e a boniteza precisam ser ensinadas na
escola, para o primeiro elas precisam mais ser vividas do que ensinadas.
Contudo, para ambos, elas caminham lado a lado com a vida do educador e do
educando, e vão fazer a diferença em cada um. Além disso, importante, como
já fizemos anteriormente, destacar a proximidade – e inseparabilidade – da
ética e da estética nos dois autores.
Em Freire (2003), o educador precisa encontrar na própria escola
condições estéticas de trabalho (cf. FREIRE, 2003, p. 66). Estas condições
caminham de mãos dadas com a maneira como o professor trabalha, pois na
medida em que se exige dele uma postura de decência e boniteza, a escola
também deve ser assim.
60
Para este autor, é impossível educar sem fazer uma experiência
estética. O professor, em qualquer que seja o nível, é um auxiliar no processo
de formação. Contudo, para Freire, em entrevista a Shor (1986), este processo
é necessariamente um processo artístico. Assim sendo, a educação é, por sua
própria natureza, um exercício estético. Isso não significa que esse processo
estético ocorra o tempo todo. Ele acontece na medida em que se estabelece
uma relação com os alunos. Aí o professor é visto como um artista. Na mesma
obra-entrevista, questionado por Shor sobre a estética crítica do professor-
artista, Freire responde que concorda plenamente em que se chame o
professor de artista (cf. Freire; Shor, 1986, p. 145).
A ideia da formação como construção e como obra de arte em Freire
parte do fato de que o ser humano é inconcluso. É um ser que busca o
aprimoramento, o crescimento, que tem necessidade de aprender, e isso até o
fim do dia. É nessa concepção antropológica que se baseia a pedagogia de
Paulo Freire. Segundo ele, para ser educador é necessário curiosidade para
descobrir, humildade para aprender, respeito aos saberes dos outros, reflexão
crítica sobre a prática, e, principalmente, “consciência do inacabamento” (cf.
Freire, 2003).
O ser humano, ao contrário dos animais, sabe-se inacabado (cf. Freire,
1987). Para Freire, as raízes da educação estão aí, pois ela só é necessária a
partir do momento em que o ser humano reconhece que ainda precisa crescer.
Os animais não precisam da educação. Esse é também um dos motivos pelo
qual Freire (1987) critica a educação chamada “bancária”. É porque ela não
contribui para o crescimento do ser humano. Limita-se a transferir os
conhecimentos de uma cabeça para a outra, sem qualquer outra contribuição.
A beleza da educação está na educação em si. Esta relação é
importante perceber em Freire. Não existe estética dissociada de qualquer
elemento da vida. Embora a relação ou a experiência estética não aconteçam o
tempo todo na escola, assim como não acontecem o tempo todo para Schiller,
esta experiência é fundamental para a pessoa que dela participa, educador e
educando.
Na confecção de uma obra de arte, o artista aprende fazendo. Para
Freire, o educador é o artista e a educação a obra de arte. A relação que se
61
estabelece é a mesma afirmada por Schiller (2002), ao defender a necessidade
de uma educação estética.
Do ponto de vista da formação de professores, é importante recordar do
educador francês João Batista de La Salle que, embora não fale
necessariamente em educação estética, traz, nos seus escritos e na sua
concepção de escola e de formação, uma semelhança muito grande com as
ideias de Freire (1986). Nascido em Reims, na França, no ano de 1651, de rica
e influente família local – seu pai, Luis, era um dos conselheiros de Luis XIV –,
tornou-se padre muito cedo. Vale a pena recordar que ser sacerdote era motivo
de status naquele tempo.
Já ordenado padre, auxiliado por um educador de Rouen, chamado
Adrien Nyel, fundou algumas escolas gratuitas para os garotos pobres, que não
tinham acesso à educação. Com as inovações introduzidas por ele na área da
educação e da formação de professores, as escolas cresceram, tornando-se
uma rede nacional na França. Para mantê-las, La Salle fundou o Instituto dos
Irmãos das Escolas Cristãs, uma congregação religiosa que tinha por missão
manter as escolas de La Salle, chamadas de Escolas Cristãs.
Os Irmãos das Escolas Cristãs são na verdade os primeiros professores realmente formados para um ensino popular nas cidades. Eles inventam um material pedagógico padronizado, popularizam os grandes quadros impressos com letras e sílabas, distribuem a todos os alunos manuais idênticos, dividem a aprendizagem obedecendo uma progressão rigorosa, organizam exames mensais dirigidos por um Irmão inspetor que decide se o aluno pode ou não passar para uma classe superior (CHARTIER, 1997, p. 6).
Morales (2001) afirma que nos tempos de La Salle existiam na França
cinco tipos de professores: as congregações religiosas femininas, que eram
bem preparadas para atender às meninas; os sacerdotes professores, que
atendiam as escolas paroquiais e “clericalizavam” a imagem do professor; os
professores leigos, em geral preceptores de famílias abastadas; os professores
calígrafos, que ensinavam principalmente a caligrafia; os professores
elementares, um grupo disperso e com formação deficiente, mas que vinha
crescendo dia a dia, devido à crescente demanda. Esses professores eram
selecionados pelo município, pela assembleia de habitantes de uma cidade,
pelo padre ou por alguém que fundasse uma escola. Dependendo do tipo de
62
escola é que era feita a seleção dos professores, que recebiam um salário
razoável, suficiente para viver.
O que La Salle apresentou de novidade para a educação foi a criação da
primeira escola normal, chamada “seminário de mestres”. Esse fato é
reconhecido por diversos autores, entre eles Saviani (2005), Justo (2006),
Vieira e Gomide (2008), Chartier (1997). Se antes havia algum tipo de
formação para professores, não havia uma escola específica para isso. Justo
relata qual era a formação oferecida no seminário para formação de mestres:
Qual o programa e qual a duração dos estudos no seminário de mestres de São João Batista de La Salle? Em suas escolas normais ensinavam-se as seguintes disciplinas, segundo as informações fragmentárias de que dispomos: Catecismo, Leitura, Escrita, Ortografia, Gramática, Aritmética, sistema de pesos e medidas e Cantochão
22. A relação é seguramente incompleta por não
compreender as matérias de Pedagogia e Civilidade, às quais o Santo ligava muita importância, a ponto de escrever manuais específicos sobre o assunto para os seus mestres: o „Guia‟ (Conduite) e o „Tratado de Civilidade Cristã‟ (JUSTO, 2006, p. 307).
La Salle descreve pessoalmente como era o seminário de mestres, num
opúsculo intitulado “Memorial sobre o hábito”, no qual descreve para o pároco
local o motivo pelo qual o Instituto por ele fundado era composto por leigos
consagrados e não por sacerdotes, e por que eles usavam não a túnica
sacerdotal nem a roupa específica dos professores, mas um hábito próprio
criado por ele:
Ocupam-se os membros desta comunidade em dirigir gratuitamente as escolas, apenas em cidades, e em explicar diariamente o catecismo, inclusive aos domingos e festas. Formam-se também nela mestres-escolas para o povo, num prédio separado da comunidade, que chamamos de seminário. Os que aí se formam permanecem apenas por alguns anos (...). Quando transferidos para a aldeia, já não têm relacionamento com a comunidade a não ser o que a cortesia postula. Mas são sempre acolhidos em casa quando vêm fazer algum retiro (LA SALLE apud GALLEGO, 1993, p. 83).
A Comunidade a que La Salle se refere é a residência onde vivem os
Irmãos das Escolas Cristãs, ou seja, o Instituto Religioso encarregado de
cuidar das escolas gratuitas e do seminário para formação de mestres.
Percebe-se que havia uma boa integração entre os mestres em formação e a
22
Segundo o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, cantochão é “Canto tradicional da Igreja, também chamado canto gregoriano, por ter sido coordenado, completado e fixado por São Gregório, o Grande”.
63
escola, na qual provavelmente praticavam o que aprendiam23. Eles viviam em
regime de internato no próprio seminário, de onde saíam apenas quando o
curso estava completo, diretamente para as escolas das aldeias. Isso
provavelmente representou um avanço significativo na qualidade do ensino nas
escolas rurais, uma vez que, se nem nas cidades havia mestres preparados,
nas aldeias muito menos.
A visão de educação que La Salle possuía era profundamente voltada
para a vida cristã, como não podia deixar de ser, tendo em vista ser ele
sacerdote e também o poder da Igreja na Idade Média. O pensamento era
teocêntrico. Contudo, tinha também os pés no chão, para saber que a escola é
o lugar onde as crianças devem passar a maior parte do dia, e onde devem
sentir-se bem. De acordo com Morales (2001), as contribuições de La Salle
para a pedagogia são grandes. Uma delas foi considerar a missão do professor
como vocação. Com isso, valorizava-os, tendo em vista que era uma das
profissões de menor prestígio na época. “Fue su tarea prioritaria: dignificar al
maestro, y tan alto lo elevó, que lo colocó a la altura de la „función apostólica de
obispos y grandes pastores de la Iglesia‟”24 (MORALES, 2001, p. 156).
Em relação à conduta dos educadores, La Salle desenvolveu a ideia das
doze virtudes de um bom educador: gravidade (dignidade, decoro), silêncio,
humildade, prudência, sabedoria, paciência, moderação, mansidão, zelo,
vigilância, piedade e generosidade (cf. Morales, 2001). Vale observar que eram
virtudes essencialmente cristãs, tendo em vista o caráter religioso da escola.
Mas, ao mesmo tempo, eram profundamente pedagógicas. O professor que
fosse capaz de observar estas doze virtudes, muito provavelmente teria
sucesso nos seus objetivos enquanto educador.
A preocupação de La Salle era que a escola fosse bem. Por isso pensou
tudo, desde a formação de professores até o dia a dia na sala de aula.
Organizou um calendário escolar com 200 dias letivos (cf. Gallego, 1993). Além
disso, escreveu o livro Conduite des Ècoles Chretiennes (Guia das Escolas
Cristãs), no qual descreveu nos mínimos detalhes como deveria ser a escola,
23
Provavelmente, porque não há registros de que assim o fosse. Supomos que praticavam a aprendizagem na escola pela proximidade que havia entre o seminário de mestres e a escola de La Salle. Contudo, não há sérios motivos para crer que a formação se desse nos moldes de hoje, com estágios em escolas. Em relação a isso, não sabemos muita coisa. 24
Foi sua tarefa prioritária: dignificar o professor; e tão alto o elevou, que o colocou à altura da „função apostólica de bispos e grandes pastores da Igreja.
64
desde o comportamento do professor até a organização da sala de aula. Este
livro servia de base para todas as escolas. É um guia prático, no qual não há
qualquer menção à formação dos mestres, o que leva a crer que era usado
como complementação ao seminário.
Percebe-se que, na formação de educadores e na pedagogia de La
Salle, a preocupação com a estética estava ligada ao estético da escola, ou
seja, uma escola que fosse bonita, e funcionasse devidamente. A única
preocupação com a arte que transparece nas suas escolas é a aprendizagem
do canto; contudo, este destina-se sobretudo a ser usado nas orações e
celebrações da missa, o que não deixa de ser uma preocupação estética.
A noção de estética aparece ainda na organização. Segundo o Guia das Escolas, a escola deve ser organizada; os professores não devem falar muito, para evitar maiores barulhos; deve haver um professor por classe, para que possa conhecer os alunos (e esse professor deve acompanhá-los no ano seguinte, até que saíssem da escola); os alunos têm determinadas funções que deveriam ser cumpridas; os professores utilizam-se do “sinal”, um aparelhinho pedagógico existente na época, para chamar a atenção dos alunos sem usar palavras; enfim, o livro descreve com clareza como deve ser
uma escola „bonita‟ (TREZZI, 2009, p. 7).
Ao valorizar a missão do professor como vocação, La Salle valorizava
também a história pessoal, uma vez que vocação tem a ver com a história. É
dessa maneira que se pode dizer com certa propriedade que La Salle (1997),
Schiller (2002), Freire (2001) e Ricoeur (1997), mesmo não tendo seguido as
mesmas linhas de pesquisa, possuem algo em comum: a importância da
formação enquanto possibilidade de mudança. Menciono aqui a formação sem
explicitar o tipo; ela aparece nos mais variados aspectos: formação estética,
pedagógica, narrativa, pessoal. Em todos estes âmbitos, ela pode ser fator de
formação da identidade, e tem potencial de transformação, como toda
aprendizagem.
Tomando-se por base essa consideração, da formação como potencial
transformador, podemos imaginar também o reverso da medalha: a pessoa
com potencial para deixar-se transformar. Em Freire estas duas realidades são
consideradas, e é isso que veremos a seguir.
Na escola, não são suficientes a relação sensível ou racional com a
educação. O terceiro impulso apontado por Schiller, o impulso lúdico, é
fundamental. Ele se estabelece a partir das possibilidades de aprendizagem
65
que a escola oferece, que vão ajudando a formar a pessoa do educando – e,
por que não, do artista, do educador.
Do ponto de vista da educação como obra de arte, a educação estética
proposta por Schiller faz todo o sentido e também a diferença. Uma vez que é
possível estabelecer esse tipo de relação, concordamos com Freire que a arte,
ademais de ensinada, precisa ser vivida.
Como já afirmamos anteriormente, Freire (2008) refere-se à historicidade
das coisas e à sua capacidade, enquanto históricas, de serem narradas, e de
buscar na narrativa os momentos fortes. Quando olhamos a questão por esse
ângulo, percebemos que reconhecer e aceitar a própria história de vida é
fundamental para buscar elementos que ajudem na própria formação. Isso
pode até ser chamado de autoformação (cf. Josso, 2004). Contudo, é mais que
isso: é a capacidade de buscar, nos acontecimentos da vida, elementos que
levem ao crescimento pessoal.
Diante da tripla mimese ricoeuriana, que é um dos elementos básicos
para a constituição da identidade narrativa, percebemos que há uma
convergência com essa ideia acima citada de Freire. Isso porque para Ricoeur,
independentemente de outros fatores, as narrativas são um elemento chave
para a formação e o crescimento pessoal. A capacidade de narrar ou narrar-se,
que aparece num antes, durante e depois (Mimese I ou prefiguração, Mimese II
ou configuração e Mimese III ou refiguração), tem como vantagem principal a
possibilidade de descobrir e descobrir-se. Falamos em possibilidade, pois o ato
de descobrir-se com a narrativa não é um fenômeno necessário, ele pode ou
não acontecer. Para que aconteça, a partir da refiguração, é importante que os
passos anteriores (prefiguração e configuração) tenham acontecido realmente.
Percebamos que ideia muito semelhante aparece em Schiller (2002), ao
desenvolver o conceito de lúdico. Para o autor, a transição do sensível para o
formal (racional) passa por um terceiro elemento, que é o lúdico. Neste terceiro
elemento existe maior capacidade de descoberta, tendo em vista que é um
meio termo entre o puramente sensível e o puramente formal. Nessa ponte, ou
passagem, habita o flexível, o jogo, a capacidade de diálogo e de
compreensão. Poderíamos afirmar que também a capacidade da narrativa, pois
numa pura contemplação da obra de arte, ou numa explicação racional, não
66
existe muito espaço para narrar. É por isso que habita no lúdico a potência da
mudança.
Em Freire, percebemos essa mesma assertiva, proposta, porém, em
outras palavras e de outra maneira. Ela é possível de ser percebida na própria
narrativa de sua formação, na já citada obra “Pedagogia da esperança”.
Nesta narrativa estão presentes os elementos acima citados. Quando o autor
fala na humildade como condição necessária para a formação, supõe também
o conhecimento necessário de si para assumir a sua condição de humildade.
Partindo das premissas acima citadas, é-nos possível estabelecer um
diálogo com Ricoeur, do ponto de vista da identidade narrativa, colocando a
narrativa como um momento estético, e o narrador como um artista. Nas
páginas que seguem buscaremos essa relação.
2.2.1 Ricoeur: A identidade narrativa como educação estética
A questão da identidade narrativa pode ser colocada também na
perspectiva da educação estética, ou, se preferirmos, da formação enquanto
obra de arte. As narrativas também provocam fascinação, repulsa ou
indiferença; também permitem momentos de êxtase, também mexem com o
interior humano.
A identidade narrativa se dá no encontro do idem com o ipse, conforme
já explicado em capítulo anterior. De acordo com Ricoeur (2000), pode-se dizer
que ela se dá também no encontro da história com a ficção, e nesse encontro
se dá o conhecimento de si:
o conhecimento de si próprio é uma interpretação, - a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, - esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p.2).
É aqui que aparece a dimensão do encontro, que, como já vimos, é
necessária na educação estética. Se a identidade narrativa se dá no entrelaçar-
se da história com a ficção, podemos dizer que é no cruzamento entre narrativa
e vida. Quando narrativa e vida se fundem, ambas se enriquecem, mas é nesta
67
última que ocorrem as maiores transformações. Isso é confirmado em Ricoeur,
quando diz que “a narrativa constrói o carácter durável de um personagem, que
se pode chamar a sua identidade narrativa, construindo o tipo de identidade
dinâmica própria à intriga que faz a identidade do personagem” (RICOEUR, 2000,
p.8). Assim, é a narrativa que age na vida; o contrário também acontece, segundo
Benjamin: “Assim a narrativa revelará sempre a marca do narrador, assim como a
mão do artista é percebida, por exemplo, na obra de cerâmica” (BENJAMIN, 1975,
p. 69). Contudo, se formos colocar em categorias de importância, a ação da
narrativa sobre a vida humana é mais importante do que o contrário, porque ela
provoca mudanças na existência humana antes de tudo. Ajuda o ser humano a se
descobrir.
Vamos tratar de duas formas de narrativa que são trabalhadas por
Ricoeur (1991; 2000): a narrativa histórica e a narrativa de ficção. A primeira
refere-se aos fatos que aconteceram, e a segunda a fatos que estão na
imaginação do seu autor. Segundo o mesmo autor, nas obras supracitadas,
ambas possuem um elemento comum que é o fato de que na ficção há
elementos da vida, da autobiografia, e na autobiografia há elementos de ficção.
Quem escreve ficção, inegavelmente inserirá, mesmo
inconscientemente, elementos da sua vida. Não é raro que se possa identificar
o autor pela maneira como ele escreve, pelos seus personagens, pelo enredo
do romance ou do conto. Quando isso acontece, é porque importantes
elementos autobiográficos aparecem, ainda que de maneira sutil, e ainda que o
próprio autor não o perceba. Por outro lado, ao escrever uma autobiografia, ou
uma biografia, haverá quem diga que a história passou-se de maneira
diferente, pois há inúmeros fatores que interferem diretamente na elaboração
da história.
É assim que se percebe a dimensão da arte na identidade narrativa, arte
como encontro e entrelaçamento: ficção e história que se entrelaçam com a
vida.
68
Nesta figura, que representa o entrelaçamento da identidade narrativa,
percebemos que história e ficção encontram-se entre si e com a vida. Contudo,
nenhuma envolve completamente as outras duas. A narrativa de ficção possui
elementos históricos (autobiográficos), que por sua vez possui elementos de
ficção, e ambas se envolvem com a vida. Esta, contudo, não recebe influência
da narrativa em sua totalidade, nem está totalmente revelada na narrativa. E a
identidade narrativa surge daí: do ponto em que as três convergem e do
resultado dessa convergência.
Considerando a identidade narrativa na perspectiva da educação
estética, vamos perceber que o labirinto gerado pelo entrelaçamento
representado na figura acima, apresenta nos diversos cruzamentos elementos
comuns. Ele gera um labirinto, porque não se restringe a um simples entrelaçar
história, ficção e vida (ou narrativa e vida), mas cada uma das nuances da vida
se entrelaça, por si só, com outras nuances da própria vida e da narrativa, de
maneira a nunca se isolarem uma da outra.
Desta forma, a identidade narrativa vai sendo construída como uma obra
de arte. Por um lado, pelo motivo acima exposto, do entrelaçamento, e por
outro porque vai sendo moldada aos poucos. A tripla mimese apresentada por
Ricoeur (1997 [Tomo 1]) é exemplo claro de que ela não acontece,
simplesmente, mas vai sendo moldada. A prefiguração, a configuração e a
refiguração são etapas da moldagem da identidade narrativa, que tem na
refiguração seu ponto principal, onde ela começa a delinear-se.
Ficção
História Vida
Figura 3: O entrelaçamento da identidade narrativa
69
Do ponto de vista schilleriano, a identidade narrativa e a educação
estética caminham juntas. Embora Schiller, tendo vivido muitas décadas antes
da criação do conceito de identidade narrativa por Ricoeur, os dois conceitos
se aproximam. Enquanto experiência estética, a narrativa é uma obra de arte.
E é necessário que ela seja aprendida, ou educada. Ricoeur (1997[Tomo 1];
1991; 2000) não diz ser ela algo inato no ser humano, mas que se desenvolve,
da mesma maneira que a experiência estética. Assim, a narrativa aproxima-se
daquilo que Schiller (2002) chama de lúdico, que é a mediação entre a
sensibilidade e o pensamento, entre o moral e o intelectual (cf. Schiller, 2002,
p. 113ss). A narrativa desempenha esse papel: o ser humano tem a
oportunidade de, entrando no labirinto que é a própria vida, utilizar-se da
experiência estética do lúdico, que está dentro de si mesmo, e, assim, melhor
compreender-se e despertar a própria identidade.
2.2.2 Formação estética do professor
Passaremos agora a tratar da educação estética. Após a apresentação
do estético em Schiller e Freire, e do diálogo com Ricoeur, traremos o estético
na educação.
Um autor contemporâneo, Perissé (2009), concorda com Schiller e
Freire ao dizer que a arte educa. Ela educa na medida em que mexe com os
nossos sentidos “atraindo nossa visão, encantando nossa audição, agindo
sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência” (PERISSÉ, 2009,
p. 36). Da mesma maneira que a arte mexe com os sentidos, ela ajuda a
pessoa a compreender-se e a buscar respostas. Ao visitar um museu, por
exemplo, uma pessoa queda-se extasiada diante de determinada obra de arte.
Num primeiro momento, ela pode nem dar-se conta do que está acontecendo.
E pode também ser que outra obra, que a maioria das pessoas considera mais
bonita, não lhe chame a atenção. Isso não acontece à toa. E, caso o sujeito dê-
se conta desse processo, vai procurar respostas. Essas respostas
provavelmente estarão ligadas à sua própria vida, em sua história.
Todo esse processo, que em parte é automático, mas em parte é
educado, pode passar despercebido pelo sujeito. Ele pode simplesmente
sentir-se extasiado diante da obra de arte e nunca buscar respostas. Ou buscá-
70
las e não encontrá-las. Na psicologia profunda, a busca é tratada como algo
inato no ser humano, um desejo de se encontrar com o novo, contrapondo-se a
isso o temor do desconhecido, a possibilidade do fracasso e o risco de perder-
se em áreas não exploradas, sem deixar marcas pelo caminho (cf. Imoda,
1996, p. 36).
Berkenbrock-Rosito (2008), reafirmando BOIS (2008), diz que a
experiência estética é uma experiência do sensível:
A experiência do sensível é aquilo que faz sentido para si no ouvir o estrangeiro. Ao experimentar a descoberta do já sabido por alguns, o eu tem a sensação de que foi ele quem inventou tal conhecimento. A novidade está precisamente na sensação única de afetar o profundo do eu, provocando um novo olhar para si e para o outro (BERKENBROCK-ROSITO, 2008, p. 6).
Para a autora, esta sensação do eu é uma experiência estética. O
sujeito descobre algo a partir dos sentidos, e essa descoberta remete a outros
elementos, que não necessariamente são ligados ao bom e ao belo:
Como exemplo, lavar uma lata de leite condensado para ser reciclada pode ser uma educação dos sentidos, a possibilidade de „tomada de consciência‟ do movimento interno que opera nos sentidos para aquele gesto banal e a percepção de que esse gesto tem relação com os rios, que, poluídos, próximos da morte, podem encontrar, pela sensibilidade e trabalho, a esperança de viver ou reviver, reencontrando a sua limpidez (id. ibid.)
A educação estética, nesse sentido, se dá através da percepção de que
lavando a lata de leite condensado o sujeito estará contribuindo para a
construção de um mundo mais bonito. Freire (2003) afirma que a ética e a
estética devem caminhar sempre de mãos dadas. É nesse sentido que elas
estão juntas: o pensar estético na construção de um pensar ético e vice-versa.
No caso específico da lata de leite condensado, o mundo bonito, que será
criado a partir de um rio mais limpo, será melhor para se viver. Embora a
experiência estética de lavar a lata de leite condensado não seja
necessariamente boa e bela (lavar a lata dá trabalho e suja as mãos), ela
contribui para um mundo no qual viver seja bom e belo.
Perissé (2009) afirma que a experiência estética pode alegrar ou
assustar. Isso acontece porque ela mexe com aquilo que está escondido, e
isso costuma gerar insegurança. Contudo, a partir dela o sujeito não fica
71
passivo, mas tende a assumir as mudanças que possam ocorrer a partir da
experiência.
A educação estética, afirma Perissé (2009), parafraseando Manuel de
Barros, “consiste em nos alfabetizar para avencas e Proust” (PERISSÉ, 2009,
p. 30). O autor afirma isso a partir de uma poesia de Manoel de Barros:
Tem hora leio avencas Tem hora, Proust
Alfabetizar para “avencas e Proust” significa estar aberto ao simples e ao
complexo, ao popular e ao erudito, a todas as experiências, e saber tirar delas
o importante para a vida. Se é nisto que consiste a educação estética,
precisamos compreender, na visão poética de Perissé, o que é efetivamente a
educação estética. Uma resposta podemos encontrar no mesmo autor, que nos
diz quando é que a arte educa:
A arte educa, influenciando nossa maneira de sentir e de pensar, de imaginar e avaliar. Influência forte e sutil. E renovadora. Para o bem e para o mal, não saímos incólumes de uma experiência estética verdadeira. (...) A arte educa, não porque coloque diante dos nossos olhos um manual de virtudes e de boa conduta, ou um guia que nos ajude a ser bem-sucedidos na vida. (...) O artista nos educa sem se preocupar com resultados pedagógicos ou técnicas didáticas. (...) Os professores todos, independentemente da disciplina que se preparam para ministrar, ganhariam (e com eles, seus alunos), com uma autoeducação que desse especial atenção á dimensão estética da cultura e da vida (PERISSÉ, 2009, p. 38-39).
Embora esta não seja uma resposta direta à pergunta “o que é educação
estética?”, neste trecho pode-se compreender alguns elementos. Em primeiro
lugar, a educação estética aqui é apresentada na perspectiva de Schiller, que
já apresentamos no presente capítulo. Nesta perspectiva, ela significa uma
educação para a arte, uma utilização das experiências estéticas na educação.
Não exatamente uma educação para a arte ou para a estética, mas uma
educação pela arte e pela estética. Em segundo lugar, que a educação estética
não está preocupada em buscar resultados acadêmicos. É uma educação
direcionada para a vida em primeiro lugar, preocupada em tornar o mundo um
lugar habitável, com estética e ética. Em terceiro lugar, que uma educação
estética é importante para formar pessoas mais humanas, sujeitos sensíveis
que vão atuar neste mundo estético e ético.
72
É importante aqui perceber a diferença que há entre a estética na
perspectiva filosófica e a experiência estética. Na Filosofia, a estética é tratada
como a ciência do belo, e o belo como a obra de arte (cf. Hegel 1974a). Neste
caso, ela pode ser tratada realmente como a ciência do belo, já que trata do
mesmo presente na arte. Já a experiência estética enquanto tal é aquilo que se
passa com o sujeito no momento em que entra em contato com uma
determinada realidade, que pode ser a arte, mas também pode ser uma
situação vivida, um gesto, a natureza, entre outros. A experiência estética leva
a viver todas as sensações que surgem em contato com o estético, é a
formação que surge a partir desse contato e da apreensão das sensações (cf.
Quintás, s/d).
Numa educação estética, é necessário que a experiência estética
aconteça. Como já citamos anteriormente, sem pretensões didáticas, sem
busca de resultados pedagógicos. A educação estética deve acontecer em
todos os momentos da escola. As disciplinas ligadas à educação artística, que
bem poderiam levar o nome de educação estética, são momentos e locais
privilegiados para isso; contudo, todas as disciplinas e todo o ambiente escolar
devem contribuir para que essa experiência aconteça. O belo, aliás, não reside
apenas nas obras de arte ou numa bela canção. Ele pode estar presente numa
equação matemática, numa obra de literatura, numa descoberta científica... De
certa forma, elas podem também ser consideradas obras de arte.
Perissé (2009) diz que
O dinamismo criador não pertence exclusivamente ao artista. A experiência que tenho ao ler uma obra literária de qualidade, ao ouvir uma canção comovente, ao deter meu olhar sobre um desenho engenhoso, ao assistir a um filme bem feito, ao acompanhar os diálogos de uma peça teatral... pode levar-me a uma nova compreensão da realidade e de mim mesmo, a uma compreensão lúdica, isto é, a uma interpretação que supera reducionismos, calculismos e outros „ismos‟ limitantes. Pode até despertar em mim o artista que eu não acreditava ser (PERISSÉ, 2009, p. 37).
Não apenas a arte educa, nem apenas as diferentes disciplinas podem e
devem conter elementos estéticos, ou o ambiente escolar deve transmitir estes
elementos, para que a educação seja completa. A própria formação escolar
pode ser considerada como uma obra de arte. Ela vai-se construindo aos
poucos, na medida em que os diferentes fatores vão se complementando.
73
Na analogia da formação como obra de arte, podemos notar que a obra
de arte não “acontece”, apenas. Aliás, ela acontece aos poucos, de acordo com
a inspiração do artista. Vai sendo imaginada e realizada. Embora a obra de arte
seja moldada pelo artista, as características do material empregado contribuem
para que ela fique ou não boa. No final, é o conjunto das características do
artista, do material empregado e da inspiração que vai gerar a obra de arte.
A escultura é a obra de arte que torna mais visível esta comparação.
Antes de fazer a escultura, o que existe é uma pedra bruta, ou um pedaço de
madeira, ou de qualquer outro material. Uma pessoa sem o devido senso
artístico, ou mesmo que o tenha, não vê mais do que um material em seu
estado bruto. O artista toma este material e “torna manifesto algo que estava e
não estava ali” (PERISSÉ, 2009, p. 31). Ele faz aparecer uma verdade.
Não queremos dizer com isso que o processo formativo seja
completamente passivo por parte do educando. Nem que neste processo, o
artista, no caso o formador, seja o único a impor sua marca e sua criatividade,
ou que molde o formando a seu bel prazer. É importante considerar que na
formação, tanto o “artista” quanto a “obra de arte” são seres humanos. Na
confecção de uma escultura, o material morto recebe “vida” das mãos do
escultor. E mesmo assim, as características físicas do material interferem no
processo. Uma madeira mais dura ou mais macia, uma pedra que não lasca no
lugar certo, uma tonalidade de cor diferente do esperado, enfim, a criação da
obra pode ser comprometida para melhor ou para pior. No processo formativo,
não existe material “morto”. A dinamicidade é totalmente diferente. Mas, aqui
também, a colaboração dos dois lados: do formador e do formando, é
imprescindível. Não são mais as características físicas que vão determinar o
andamento do processo, mas todo o conjunto de características. Assim, o
formando não vai sendo moldado, como é a obra de arte, mas vai tornando-se
pessoa a partir daquilo que vai aprendendo. O formando molda-se a si mesmo.
Outra maneira de conceber a formação como obra de arte é
apresentada por Perissé (2009):
Assim como a minha experiência estética nasce do encontro que estabeleço com a obra de arte, esta nasceu do encontro do artista e uma coisa, um material, um objeto, em diálogo com o qual aquele fez
74
surgir a realidade artística até então inexistente. (...) O resultado do encontro tornou-se visível: é a obra (id. ibid., p. 31).
Desta maneira, a formação nasce do encontro. Este se estabelece a
partir do momento em que o formando encontra o caminho para seu próprio eu.
O artista tem o poder de encontrar, na coisa, a transformação da sua
imaginação em realidade. A arte da formação necessita do encontro25, tanto
com o outro, quanto consigo mesmo, quanto com o mundo, ou, de acordo com
Lévinas (1993), com Deus. No entanto, qualquer evento formativo encaminha
para o encontro consigo mesmo, ainda que seja com o si mesmo enquanto
outro (cf. Ricoeur, 1996).
O necessário encontro se dá a partir da possibilidade do mesmo. Não há
encontro sem abertura. O artista, quando encontra a obra de arte na peça de
madeira, na qual ninguém mais viu arte alguma, está aberto e disposto à
transformação, assim como a obra de arte também está. Para o sujeito
encontrar-se consigo mesmo, é necessário abertura para si, e assim por diante.
E, para que haja o encontro, não é preciso estar no meio da multidão.
Encontro significa „entrelaçamento‟, intercâmbio de possibilidades. Não basta escrever uma palavra ao lado da outra para compor um texto. Não basta juntar cores para compor uma pintura. Não basta posicionar várias pessoas dentro de um palco para que nasça uma apresentação teatral. Em todos esses exemplos, o encontro exige uma relação reversível (PERISSÉ, 2009, p. 85).
O encontro acontece como num labirinto: através do entrelaçamento.
Num labirinto, todos os caminhos se cruzam em algum momento e de alguma
maneira, embora para quem está perdido nele pareça o contrário. Estar perdido
no labirinto é uma experiência estética, a experiência do medo. Quando se está
perdido num labirinto, o encontro não acontece, porque a sensação de medo
não o permite. Ao contrário, quando se começa a encontrar uma saída, a
sensação de alívio e de tranqüilidade permite que aconteça o encontro. E,
normalmente, a experiência de encontrar-se num labirinto é inesquecível, seja
pela experiência estética do medo quanto da segurança de encontrar a saída.
25
Aqui poderíamos entrar na dimensão da alteridade, de Lévinas. Mas não é o caso de fazermos isso; para entrar nesse assunto, necessitaríamos de mais um capítulo. Contudo, é importante aqui ter presente que Lévinas (1993) apresenta a alteridade, o sentido e o desejo do Outro, como fonte de ressignificação e de sentido. O Outro, aqui, pode ser Deus, o próximo, ou si mesmo (cf. Ricoeur, 1996).
75
Na escola, o encontro – e, consequentemente, uma educação
contemplada como obra de arte –, acontece quando há respeito pelo formando
e pelo seu crescimento, e quando há encorajamento em direção ao assumir
seu papel na vida. Ou então quando há “a promoção da ingenuidade para a
criticidade” (FREIRE, 2003, p. 32). É nesse sentido que a ética e a estética
devem andar de mãos dadas (id. ibid). Da mesma forma que uma obra de arte,
a formação exige consciência do inacabamento (cf. Freire, op. cit., p. 50). A
consciência de que, enquanto ser humano, sempre se está em construção,
concordando com a máxima de João Guimarães Rosa, no conhecido livro
“Grande sertão: veredas”: “Mestre não é quem ensina, mas quem de repente
aprende”.
Uma concepção de educação estética prevê também uma formação
estética do professor. Pode-se dizer que formar-se é entrar em contato com
determinados valores e assimilá-los. Para que haja educação estética na
escola, é necessário que o professor esteja educado esteticamente. Na
perspectiva schilleriana, para que aconteça o lúdico, o professor deve estar
preparado, mas não só, ele deve ter pelo menos vivenciado não o lúdico por si
só, mas como algo internalizado e como uma opção de vida.
É importante que o professor aprenda a conviver com a arte. Se ele quer
que a escola na qual atua eduque esteticamente, é necessário que ele mesmo
busque essa educação. É uma coisa que ninguém vai dar a ele, ele terá que
buscar. Um professor educado para a estética não é aquele que conhece a
estética, que sabe identificar os autores e suas épocas, e as características de
cada época e de cada autor, nem aquele que é capaz de identificar as cores e
seus matizes, de explicar os gêneros literários ou os estilos musicais; é
importante que ele “veja melhor o que está vendo, ouça melhor o que está
ouvindo, saboreie melhor o que está saboreando” (PERISSÉ, 2009, p. 53).
Em Quintás (s/d) encontramos que
Para atingir formas elevadas de unidade devemos aprender a integrar modos de realidade distintos. Essa aprendizagem constitui uma das tarefas decisivas da formação humana. Perceber uma realidade ou uma ação e descobrir nelas um valor não é difícil, sobretudo quando tal valor agrada quem o assume. Descobrir o valor de várias realidades ou ações, estabelecer entre elas uma hierarquia segundo níveis e conceder primazia aos mais elevados constitui uma dificuldade maior, antes de tudo porque supõe sacrifício, e levamos
76
dois séculos ao menos ouvindo a batida cantilena de que sacrifício implica uma repressão e esta inevitavelmente bloqueia o desenvolvimento de nossa personalidade. O que se esquece é que a repressão acontece quando alguém renuncia a algo que se apresenta como valioso e se entrega ao vazio. Se eu prescindo de um valor para conseguir outro superior, não me reprimo, não impeço o desenvolvimento normal de meu ser, estou me realizando como pessoa (QUINTÁS, s/d, s/p).
Na teoria de Schiller (2002), essa integração dos modos de realidade
citada por Quintás pode ser considerada aquilo que ele chama de impulso
lúdico, que é o que serve de ponto de equilíbrio entre o sensível e o formal.
Pode-se compreender, nesse caso, o impulso lúdico na necessidade de
estabelecer uma hierarquia de valores para a experiência estética. Para chegar
a isso é necessário a vivência do lúdico, pois este é mais flexível do que o
sensível ou o formal.
Na formação de professores, essa aprendizagem é fundamental. Não
estamos afirmando que se devam estabelecer hierarquias na experiência
sensível. Aliás, nesse tipo de experiência não existem hierarquias; a
experiência em si é espontânea, e não é a racionalidade humana que vai dizer
se ela é ou não importante, mas o pura e simplesmente o sensível. O que é
fundamental, na formação estética de professores, é a aprendizagem de lidar
com a arte, com a experiência estética. Isso é uma aprendizagem constante,
mas que, se não for vivenciada sempre, nunca acontecerá.
Na escola, o professor é o mediador no processo de aprendizagem, isso
já sabemos. Contudo, ele é mediador não apenas na aprendizagem formal; o é,
também, na informal. Com isso, supõe-se que as suas atitudes também
educam. Por atitude, entendemos aqui a sua postura perante determinadas
situações. Para que o professor possa esperar que seus alunos aprendam a
conviver com a arte, é necessário que ele tenha uma postura estética.
Isso, contudo, é uma etapa posterior àquilo que pretendemos trabalhar
aqui. Porque para ter uma postura estética, é necessário que o professor seja
educado para isso. Dessa maneira, ele poderá dar um passo que é a postura
estética na escola.
De acordo com Marin (1996), a formação de professores historicamente
tem passado por sérias dificuldades, sendo possível perceber que grande parte
dos cursos não os prepara devidamente para ingressar no mundo da
77
educação. Em sua pesquisa, percebeu problemas que refletem as defasagens
que há nesta área: professores que não dominam os conteúdos que vão
trabalhar, ou utilizando-se de concepções mecanicistas, ou com dificuldades
para compreender e identificar a sua própria missão. Muitos sequer conseguem
falar sobre o seu trabalho. Embora isso não esteja presente em todas as
escolas, é uma das realidades da educação nos tempos atuais.
Nesta pesquisa, a autora passou a analisar currículos de cursos de
formação de professores, especialmente em nível médio, e detectou neles uma
série de incoerências:
Os conteúdos específicos desses cursos são bastante desvinculados da destinação profissional de seus egressos; não há sequer citações dos professores em relação aos problemas da alfabetização; a formação fica apenas a cargo das disciplinas pedagógicas; a preocupação está para além do curso de uma forma propedêutica, ou seja, com a prestação do exame vestibular, sem focalizar também a capacidade formativa do curso em si mesmo (MARIN, 1996, p. 160).
Essa pesquisa foi realizada em 1996, portanto carece de atualidade. É
utilizada aqui para demonstrar um problema histórico na formação de
professores. Segundo a autora, já na década de 1950 há registros desses
mesmos problemas, principalmente nos cursos de magistério, que foram os
analisados por ela.
Pesquisas mais recentes, contudo, apontam para a manutenção de
alguns desses problemas, apesar de haver uma melhora na reflexão acerca da
formação como construção da identidade docente. Guimarães (2006) realizou
uma pesquisa com os cursos de formação inicial de professores, em relação à
formação da identidade docente. Uma das suas conclusões é:
O tecnicismo pedagógico, no afã de constituir um saber pedagógico e prover uma das bases para a profissionalização docente, constitui um saber técnico, eminentemente apriorístico, de caráter aplicativo, em relação à atuação do professor (GUIMARÃES, 2006, p. 49).
De certa maneira, a formação de professores transformou-se num saber
técnico, que gera professores com certa competência técnica, mas não
suficiente para o desenvolvimento da identidade docente. O mesmo autor
afirma:
Enquanto agirmos em nossos cursos de formação e em nossas escolas contentando-nos com níveis mínimos de profissionalização (qualificação mínima, descompromisso com a atualização pedagógica, autodesqualificação etc.) e de profissionalismo
78
(insensibilidade com o insucesso escolar dos alunos, má qualidade das experiências de aprendizagem dos alunos, má qualidade das experiências de aprendizagem dos alunos, rotinização e desencanto com o trabalho etc.), a luta pela ressignificação da profissionalidade se esvazia porque os professores continuarão pensando que como está, está bom (GUIMARÃES, 2006, p. 48).
Essa constatação é comum também a outros pesquisadores, que
continuam percebendo que há falhas na formação inicial de professores, e que
elas existem há muito tempo. Poderíamos nos perguntar, então: o que estamos
fazendo, se há tanto tempo percebemos os problemas, mas eles continuam
existindo? Não é essa, porém, a questão central deste trabalho nem o que
queremos discutir neste momento. O que queremos colocar em questão é se é
possível imaginar uma educação estética, quando diversos pesquisadores
apontam para este quadro na formação inicial de professores.
Perissé (2009) aponta pista de como deve ser concebida a formação
estética de professores. Ou, em outras palavras, qual a concepção de estética
que deve estar presente nesta formação:
Formação estética não é, portanto, satisfação caprichosa do gosto, busca do que me agrada pura e simplesmente. É compreensão (e relativização) até mesmo dos motivos que me levam a não gostar de determinado autor, do trabalho de determinado artista. Compreender e saber o porquê dos desgostos é um modo concreto de definir, em sentido inverso, meus critérios de escolha (PERISSÉ, 2009, p. 47).
Trata-se, assim, de aprender a valorizar a experiência estética, seja ela
qual for. Sabendo que a experiência estética é aquilo que é sentido em contato
com a obra de arte – e aquilo que é experimentado após a convivência com
esta obra –, essa aprendizagem, essa formação são adquiridas exatamente
convivendo com a arte. Muito embora não seja necessariamente na escola que
o professor vai aprender a conviver com a arte, é na escola que ele vai
aprender a conhecer a arte. Os impulsos apresentados por Schiller (2002), que
são o impulso sensível, o formal e o lúdico, também se desenvolvem mediante
aprendizagem, de modo a ser necessário algo do impulso formal para chegar
ao sensível (e vice-versa). Por isso ser necessária uma formação estética para
os professores, e não apenas uma educação estética na escola.
Para o professor, a convivência com a arte lhe possibilita a construção
de uma prática pedagógica na qual conhecimento, imaginação e expressão
79
conjugam-se dinamicamente (cf. Carvalho e Bufrem, 2010, p. 48). Isso, além
de melhorar a prática docente, é benéfico para o estudante, favorecendo nele o
exercício da imaginação e da criatividade, além de uma melhor compreensão
das aulas.
A formação estética do professor precisa ir além das leituras teóricas (cf.
Perissé, 2009, p. 49). É preciso que o professor programe seu contato pessoal
(e intransferível) com a arte. É fundamental que visite exposições, que vá ao
teatro, ao cinema, especialmente quando existem milhares de opções de lazer
e entretenimento sem sair de casa, através da internet. Quem deve fazer essa
mediação entre a arte e a vida, para o aluno, é o professor. Infelizmente este,
se não recebeu uma formação estética, não terá nenhum mediador a não ser
ele mesmo. E é uma formação que deve ser continuada, ou seja, deve ser
alimentada sempre. O risco de acomodação é muito grande.
Voltando a Quintás (s/d), lemos que
A criatividade é sempre dual, pressupõe um sujeito dotado de potências e um ambiente capaz de conceder-lhe diversas possibilidades. Uma pessoa pode ser muito bem dotada, mas sozinha não pode ser criativa. Necessita receber possibilidades de fora, quer dizer, de realidades que em princípio são distintas, distantes, externas e estranhas a ele. Quem interpreta o esquema „dentro-fora‟ como um dilema será incapaz de descobrir que é possível converter o distinto, distante, externo e estranho em íntimo sem deixar de ser distinto. Tal incapacidade impossibilita-o de assumir ativamente as possibilidades que lhe sejam oferecidas (QUINTÁS, s/d, s/p).
Daqui podemos extrair a importância da educação estética e da
formação estética de professores. O estudante não poderá ser criativo sozinho,
ou terá dificuldades para expressar a sua criatividade; encontrará no professor
alguém que lhe ajudará neste sentido. Por sua vez, o professor sozinho não
conseguirá despertar para a experiência estética e para a própria formação
estética. É importante que para tal receba a devida formação. Contudo,
importante é ter a noção de que o professor nunca está pronto (cf. Freire,
2003). Assim, a construção da formação estética acontecerá em parceria com
o seu aluno. Será importante confrontar as próprias convicções, as sensações
e as experiências estéticas com as dos alunos. Estes não sentirão a mesma
coisa que o professor sente. Fazer esse confronto dos sentimentos e
sensações será fundamental para aprimorar a formação estética do professor.
80
3 A CASA DO SER NARRATIVO: A ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO ENSINO MÉDIO EM ESTUDO
Como poderíamos adentrar na casa do ser narrativo? Até aqui vimos
diversos caminhos que convergem em uma direção: o ser humano. Estes
caminhos passam por diversos cruzamentos até chegar em um determinado
ponto, que é a identidade.
Como em todo percurso formativo, a identidade narrativa é um processo,
que se dá a partir do contato do formando com a própria narrativa, numa
experiência estética que fica registrada na sua memória.
A identidade narrativa supõe adentrar em si mesmo. Garnica (2009)
apresenta a auto-narrativa do Sr. Nivaldo Mercúrio, ex-interno de um centro de
recuperação de hansenianos. Nivaldo, numa narrativa repleta de reflexões
profundas, conta como foi parar no centro depois de ter pegado o vírus da
hanseníase da própria mãe, que também foi internada no mesmo local.
Também narra como, depois de internado, não podia mais sair ou ter contato
com as pessoas de fora, mesmo quando se supunha curado, e como, quando
recebeu alta, não conseguiu viver fora do centro, devido ao preconceito das
outras pessoas que, no mesmo emprego, descobriram que ele havia sido
hanseniano, o que o obrigou a arrumar emprego no mesmo centro em que
viveu como interno.
Esta narrativa mostra uma realidade sem saída, ou na qual uma saída é
extremamente difícil de ser encontrada, o que remonta a algumas das
situações complexas, ou paradoxos, que costumam ser apresentados em
cursos de filosofia, como por exemplo: se Deus é onipotente, ele pode fazer
uma pedra que ele mesmo não possa carregar? – o que é uma situação sem
saída, pois qualquer que seja a resposta, Deus deixaria de ser onipotente.
Remete-nos ainda aos puzzling cases, discutidos por Ricoeur (2000), no seu
diálogo com Parfit, já citados neste trabalho. Ou então faz-nos recordar as
aporias do tempo, presentes no livro XI das Confissões de Santo Agostinho
(1975), livro em que o autor faz questões acerca do tempo que não podem ser
respondidas facilmente sem que a pessoa caia em contradição.
Da mesma forma, podemos dizer que a hermenêutica é uma experiência
de labirinto, seja na forma de círculo de compreensão, na visão de Gadamer,
81
ou da maneira como é explicada por Garnica, a partir de Dilthey: “Compreender
é voltar a vivenciar, tornar a experienciar, colocando-se na posição de desejar
reviver vivências anteriores” (GARNICA, 2009, p. 74).
Contudo, antes de tudo isso, o labirinto remete-nos ao mito de Ariadne,
ou do Labirinto de Creta, remontado por Jorge Luís Borges na seguinte poesia:
O labirinto Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, 2010).
De acordo com a mitologia grega, Minos, Rei de Creta, mandou construir
um labirinto onde mandou encerrar o Minotauro (touro de Minos), animal
insaciável, meio gente meio touro, fruto de uma paixão da esposa de Minos por
um touro, que se alimentava de carne humana. Este labirinto era tão bem feito
que qualquer pessoa que nele entrasse não conseguiria mais sair. A cada nove
anos, sete rapazes e sete moças eram colocados no labirinto para serem
caçados pelo Minotauro e servirem de refeição a ele. Teseu, jovem guerreiro,
apaixonado por Ariadne, que era filha de Minos, pediu para ser incluído entre
os jovens que seriam jogados no labirinto. Contudo, recebeu da jovem princesa
um fio condutor, que, amarrado à entrada do labirinto, serviria para marcar o
caminho até a saída. Teseu penetrou no labirinto, venceu o Minotauro e fugiu
com a princesa.
A informática é repleta de labirintos. Cada caminho dá acesso a tantos
outros que, ao final, ninguém mais se lembra de onde principiou. Os hipertextos
são um exemplo claro disso: no meio de um texto, uma palavra conduz a outro
texto, que por sua vez conduz a outro e assim por diante. Em alguns momentos
eles se cruzam, mas às vezes a pessoa que segue esse trajeto sequer percebe
que está cruzando o mesmo caminho no qual estava anteriormente.
82
Utilizando-nos da metáfora do labirinto, podemos dizer que a narrativa é
um labirinto. As palavras estão em permanente diálogo, que pode ser
visualmente representado pela seguinte poesia26:
A poesia concreta é uma excelente maneira de ilustrar o labirinto de
palavras, que parecem confusas, mas aos poucos, no entrecruzar-se, têm
lógica e coerência. Tal como em um labirinto, ao penetrarmos numa poesia
concreta, ou poesia visual, a primeira sensação é o impacto. É difícil
compreender a poesia concreta. Ela pode produzir sentimentos variados:
repulsa, indignação, raiva, alegria, sensibilidade, euforia... A experiência
estética de se observar uma poesia concreta é comparável à de penetrar num
labirinto. No final, o que fica mesmo é a experiência em si, e aquilo que ela
provoca. Algumas pessoas não quererão mais penetrar no labirinto, e outras
ficarão fascinadas por ele.
26
Disponível em: http://opoetademeiatigela.blogspot.com/2009/09/labirinto.html Acesso em 20/05/2010.
83
Esse entrelaçar-se da narrativa, que forma como que um labirinto, é que
a transforma numa obra de arte. As palavras que dialogam entre si, formando
frases, que formam parágrafos, que por sua vez formam capítulos, e assim por
diante. Tudo entrelaçado. Se não houver o entrelaçamento, não há narrativa,
pois estes elementos estarão soltos dentro do emaranhado. Ou seja, eles não
conseguirão sair do labirinto. Se um desses elementos estiver solto, deslocado,
ele precisará ser retirado sob pena de ameaçar toda a estrutura textual.
Outra maneira de entrar num labirinto é entrar na própria vida. Por isso,
as auto-narrativas são uma experiência labiríntica que se entrelaçam com
outros elementos do cotidiano até a pessoa encontrar-se consigo mesma.
Na concepção ricoeuriana de narrativa, esta passa pela vida do seu
autor (cf. Ricoeur, 2000). Aqui ocorre outro entrelaçamento, não apenas das
palavras entre si, mas destas com a pessoa. Poderíamos chamar de duplo
entrelaçamento. Se fôssemos fazer uma síntese, bastante simplória, da
identidade narrativa em duas palavras, “duplo entrelaçamento” seria a
expressão correta.
Aqui queremos trabalhar a estética do labirinto no Parecer CNE/CEB
01/1999 e na formação de professores em nível médio. Vamos penetrar numa
aventura por entre os caminhos do Parecer, e nos seus diversos cruzamentos,
para descobrir diversos caminhos que perpassam a formação inicial de
professores em nível médio e fazem com que a identidade narrativa aconteça.
Como numa aventura dentro do labirinto, iniciaremos pela história da formação
de professores para chegar à identidade narrativa; deixaremos, porém, um fio
amarrado à entrada para encontrar o caminho.
3.1 Penetrando no labirinto: uma visão histórica da formação de
educadores
Seria muito interessante se pudéssemos dizer que a formação de
professores se confunde com a própria história da educação. Ainda melhor
seria se essa formação tivesse se aperfeiçoado no decorrer da história. Essa
realidade, contudo, é diversa, como veremos no presente capítulo.
Por outro lado, a formação de professores não pode estar dissociada da
formação da identidade docente. Como todo ser em formação, o educador tem
84
as suas individualidades que precisam ser respeitadas e trabalhadas, de
maneira a que cada um se conheça mais e cresça enquanto pessoa e
enquanto profissional.
Falar em formação inicial de professores pressupõe pelo menos dois
níveis: médio e superior. Por muito tempo, predominou a formação em nível
médio, com as chamadas “Escolas Normais”, que formavam as “normalistas”,
que iam depois atuar como “professorinhas”. Mais tarde, especialmente a partir
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96, a prioridade
passou a ser a formação em nível superior, nos cursos de Pedagogia e Normal
Superior, sendo que os cursos em nível médio praticamente desapareceram,
sumindo por completo em diversos estados brasileiros.
Gatti (2009) afirma que
Quando se trata de educação escolar são os professores que propiciam essa intermediação. Então, a formação de quem vai formar torna-se central nos processos educativos formais, na direção da preservação de uma civilização que contenha possibilidades melhores de vida e co-participação de todos. Por isso, compreender e discutir a formação, as condições de trabalho e carreira dos professores, e, em decorrência sua configuração identitária profissional, se torna importante para a compreensão e discussão da qualidade educacional de um país, ou de uma região (GATTI, 2009, p. 90).
Isso, em se falando de formação continuada. Na formação inicial, esse
processo é ainda mais delicado, especialmente na formação de professores em
nível médio. Embora boa parte dos que procuram esse tipo de formação sejam
pessoas adultas, já com uma certa caminhada, também há jovens e
adolescentes que estão buscando descobrir ali a sua vocação de educador. Se
a dimensão da identidade não for bem trabalhada nesse período, pode gerar
crises depois.
É preciso compreender que a dinâmica do ensino médio é diferente da
que acontece no ensino superior. O curso de formação de professores em nível
médio pertence, pois, à última etapa da educação básica. Esta etapa, de
acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000, p.
66), tem como princípio ético e estético a formação da identidade, que se
manifesta como “um permanente reconhecimento da identidade própria e
do outro” (op. cit., p. 66).
85
Quando, nos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino médio, fala-
se em construção da identidade, é relevante pensar como isso acontece na
escola, e como se dá no curso de formação de professores em nível médio.
Voltaremos a esse assunto logo adiante, ainda neste mesmo capítulo. Antes,
porém, de dar continuidade ao tema, esmiuçando a formação de professores
no decorrer da história, chegando aos dias atuais, quero lançar alguns
questionamentos: onde, além das bases legais, trabalha-se no ensino médio a
formação da identidade do aluno? Essa preocupação é repassada aos cursos
técnicos de nível médio (incluindo aqui o curso de formação de professores)?
Ao ingressar na Universidade, o jovem continua tendo direito a essa mesma
preocupação?
São questionamentos aos quais buscaremos algumas respostas ao
longo do presente capítulo. Trabalho com ensino médio porque sinto a
necessidade de pesquisa nessa área. Mas também, como documento, serão
analisadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Formação de
Professores na Modalidade Normal em Nível Médio, publicadas em 1999.
É difícil dizer em que ponto da história passou-se a falar em formação de
educadores. Já entre os gregos antigos, a educação tinha certa estrutura,
embora fosse ainda um tanto informal. Segundo Jaegger (1995, p. 23ss), a
educação grega era formada por mandamentos, tais como: honrar os deuses,
respeitar os estrangeiros. Consistia também em preceitos de moralidade e
regras de prudência.
Da educação, nesse sentido, distingue-se a formação do Homem por meio da criação de um tipo ideal intimamente coerente e claramente definido. Essa formação não é possível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser. A utilidade lhe é indiferente, ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela
é a, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do ideal (JAEGGER, op. cit., p. 24).
Essa ideia de educação organizada demonstra a existência de um
currículo, ainda que não nos moldes que hoje conhecemos ou chamamos
currículo. Ele pode até ter um pequeno grau de formalidade ou organização,
mas é muito mais informal. Observa-se, contudo, uma preocupação grande
com a formação da identidade do Homem. Mesmo que aconteça na
86
informalidade do dia a dia e não entre os muros de uma escola, ele supõe a
necessidade de uma preparação dos educadores, mesmo que ela também
informal.
Esquema semelhante – com algumas diferenças – de organização da
educação acontecia nas tribos diversas, entre elas as tribos indígenas do
Brasil.
Nas comunidades tribais as crianças aprendem imitando os gestos dos adultos nas atividades diárias e nos rituais. (...) as crianças aprendem „para a vida e por meio da vida‟, sem que ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de ensinar. (...) A formação é integral – abrange todo o saber da tribo – e universal, porque todos podem ter acesso ao saber e ao fazer apropriados pela comunidade. É bem verdade que alguns se destacam, detendo um conhecimento mais amplo ou especial – como no caso do feiticeiro –, o que, no entanto, não resulta em privilégio, mas apenas em prestígio (ARANHA, 2006, p. 35-36).
A diferença geral entre esses dois ideais de educação é que para os
gregos, além de um currículo mais ou menos organizado, a educação é
pensada, mesmo informalmente, com determinados objetivos, ao passo que na
educação tribal, a educação acontece no dia a dia, sem alguém que a pense;
ela simplesmente acontece. Não há pedagogos ou educadores, todos o são.
Nos dois modelos, porém, ela tem por objetivo formar o Homem. Além disso,
na educação grega era possível vislumbrar o papel de um pedagogo, daquele
que acompanhava o educando, que, embora não fosse o que se possa chamar
de professor, era quem acompanhava. Já na educação tribal, todos ensinavam
e todos aprendiam.
Por que estamos falando em história da educação, quando o que me
propus foi discorrer sobre história da formação de educadores? Ora, é para
entender que mesmo nesse processo informal de educação, já é possível
supor uma preparação dos educadores, ou de quem ensina. Não uma
formação no sentido atual do termo, mas um conhecimento anterior.
De acordo com Saviani, “a primeira instituição com o nome de Escola
Normal foi proposta pela Convenção, em 1794, e instalada em Paris, em 1795”.
Contudo, segundo o mesmo autor, “o primeiro estabelecimento de ensino
destinado à formação de professores teria sido instituído por São João Batista
87
de La Salle, em 1684, em Reims, com o nome de „Seminário dos Mestres‟”
(SAVIANI, 2005).
Antes de La Salle não existia nenhuma formação de professores
estruturada como um curso de formação. Ou melhor, cada um ensinava aquilo
que sabia a seus alunos. É necessário adiantar que, com La Salle, houve uma
reviravolta na maneira de se conceber a escola e também a formação de
professores.
Antes dessa fase da história da educação, por certo havia escolas e
universidades, e havia professores. Segundo Saviani (s/d.), esses professores
deviam receber algum tipo de formação.
(...) as universidades, como uma modalidade de corporação que se dedicava às assim chamadas “artes liberais” ou intelectuais, por oposição às “artes mecânicas” ou manuais, formavam os professores das escolas inferiores ao ensinar-lhes os conhecimentos que eles deveriam transmitir nas referidas escolas (id. ibid.).
O fato é que os professores, nesse período, aprendiam o conteúdo para
ensinar; não aprendiam a ser professores; e mesmo o conteúdo, aprendiam na
escola, não necessariamente para ser professores. Eles retransmitiam o que já
sabiam.
Foi assim, com essa preocupação, que os primeiros esboços de uma
formação de professores e para professores foi desenvolvido. Essa formação,
contudo, não ficava a cargo do Estado, mas de instituições privadas, como era
o caso dos Irmãos das Escolas Cristãs, instituição criada por La Salle para dar
educação às crianças e jovens e para dar formação aos professores. Segundo
Tanuri (2000, p. 62), foi só com a Revolução Francesa que se concretizou a
ideia de uma escola normal mantida pelo Estado, ideia que só encontraria
condições favoráveis no século XIX, quando se multiplicaram as escolas
normais. Saviani (2005) afirma que, após o surgimento, na França, das escolas
de formação de professores, no século XVIII, Napoleão introduziu o sistema no
Norte da Itália, ao conquistá-la em 1802, nos mesmos moldes da Escola
Normal de Paris, destinada à formação de professores para o ensino
secundário. Assim, os demais países, como Alemanha, Estados Unidos,
Inglaterra e, de acordo com Tanuri (2000), Portugal e, posteriormente, Brasil,
adotaram sistemas semelhantes de escolas.
88
A partir desse momento, os diferentes países desenvolveram seus
sistemas de formação de professores; para compreender, vou descrever a
formação de professores no Brasil, uma realidade próxima a nós e da qual é
mais fácil acompanhar a evolução histórica.
3.2 Buscando caminhos: a formação de professores no Brasil
No Brasil, a história da formação de professores segue um movimento
próprio, mas muito próximo do que acontecia no restante do mundo, até
mesmo porque o que recebemos foi herança da Europa. Por isso mesmo,
chegou no Brasil com um certo atraso, assim como a educação de um modo
geral, em relação aos demais países do mundo.
Tanuri (2000) diz que, antes de existirem escolas para formação de
professores no Brasil havia, já, critérios de seleção para escolher os que iriam
dar aulas. Datam de 1820 as primeiras escolas destinadas à formação docente,
escolas essencialmente práticas, sem base teórica, mas preocupadas com a
preparação de docentes para as primeiras letras. Pode-se dizer que eram
escolas de preparação, e não de formação, tendo em vista a ausência de
conteúdos teóricos.
Conforme Saviani (2005), a escola normal, fundada em Niterói em 1835,
teve curta existência, encerrando suas atividades em 1849. Ainda não estava
bem definido o tipo de formação que os professores deveriam receber.
Durante todo o Império essa incerteza em relação à formação dos
professores continuou, num abre-fecha de escolas normais, sem grandes ou
significativas mudanças. Só com o advento da República, por volta de 1890, é
que algumas inovações começaram a ser implantadas, especialmente com a
implantação da Escola Normal de São Paulo, cujo decreto 27 de 12 de março
de 1890 estipulava:
sem professores bem preparados, praticamente instruídos nos modernos processos pedagógicos e com cabedal científico adequado às necessidades da vida atual, o ensino não pode ser regenerador e eficaz (SÃO PAULO, 1890 apud SAVIANI, 2005).
Pode-se dizer que este tenha sido o início de um processo de reflexão
sobre a necessidade de uma formação de professores que englobasse
89
elementos práticos e teóricos. A Escola Normal de São Paulo passou, assim,
por reforma no seu currículo e na maneira de ensinar, enfatizando bem mais a
pedagogia e a didática, bem como a filosofia.
Contudo, foi apenas na década de 1930 que passou a haver mudanças
significativas na formação de professores no Brasil. Vieira e Gomide (2008, p.
3843) veem isso como uma exigência dos novos tempos, especialmente da
abertura do Brasil para o capital externo, com a crise de 1930. Essa crise teria
levado o Brasil a aprimorar a produção interna de bens de consumo,
obrigando-se a importar tecnologia, e junto com ela professores. O resultado foi
uma mudança no papel social da escola, que passou a preparar também para
o mercado de trabalho. Isso exigiu mudanças na preparação dos professores.
Por sua vez, Saviani (2005) apresenta o movimento renovador como o
grande impulsionador das mudanças na área da educação nesse período.
Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, ambos inspirados na chamada Escola
Nova, implantaram mudanças no Distrito Federal e em São Paulo, que tinham
“como pedra de toque as escolas-laboratórios que permitissem basear a
formação dos novos professores na experimentação pedagógica concebida em
bases científicas” (SAVIANI, 2005).
De acordo com Amorim Neto (2008), a partir de 1939 foram criados os
cursos de Pedagogia e Licenciatura na Universidade do Brasil e na
Universidade de São Paulo. Isso foi consequência direta da vinculação da
Escola de Professores à Universidade do Distrito Federal e posteriormente ao
Instituto de Educação da Universidade de São Paulo. Assumiu-se um modelo
de seis anos, formando-se nos quatro primeiros anos regentes do ensino
primário e nos dois últimos, professores do ensino primário (cf. Saviani, 2005).
Até 1971 vigorou esse modelo de formação de professores. Com a
promulgação da Lei 5692/71, houve mudanças significativas e a
descaracterização e consequente desaparecimento da Escola Normal.
3.1.2 A formação de professores no Brasil – pós 1971
O ano de 1971, no auge do governo militar, aconteceu a promulgação da
Lei 5692/71, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa lei trouxe
algumas mudanças na educação, incluindo a formação de professores. Essa lei
90
modificou a educação básica, pois a Lei 5540/68 já havia reformulado o ensino
superior (cf. Saviani, 2005). A principal mudança na educação básica foi a
criação do primeiro grau com oito anos e do segundo grau com três anos.
Antes disso havia um ensino primário de quatro anos e um ensino médio de
sete. O segundo grau passou a ser de caráter profissionalizante, abrindo-se
amplamente o leque de cursos de segundo grau técnicos.
Isso afetou profundamente a Escola Normal, que perdeu em grande
parte o sentido de existir, e acabaram mesmo desaparecendo, para dar lugar à
Habilitação Específica de 2º grau para o exercício do magistério de 1º grau
(HEM) (cf. Saviani, op. cit.), ou simplesmente Magistério, como ficou
conhecido.
Ao tratar, no Capítulo V, dos professores e especialistas, a Lei n.
5.692 dispôs, no artigo 29, que “a formação de professores e
especialistas para o ensino de 1º e 2º graus” implicaria níveis
distintos, com elevação progressiva, conforme especificado no artigo
30, que teve a seguinte redação:
Art. 30 – Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do magistério: a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª série, habilitação específica de 2º grau; b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª série, habilitação específica de grau superior, ao nível de graduação, representado por licenciatura de 1º grau obtida em curso de curta duração;
c) em todo o ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica obtida em curso superior de graduação correspondente à licenciatura plena (BRASIL, 1971 apud SAVIANI, op. cit.).
Com essa formação de professores de natureza técnica, e mais
acessível à população, pois passou a ser oferecido em quase todas as escolas
de ensino médio, aumentou consideravelmente o número de professores, na
grande maioria mulheres, formados para trabalhar nas séries iniciais. Se por
um lado isso foi positivo, pois era mais fácil encontrar professores habilitados
para dar aulas, aumentando, consequentemente, o acesso de crianças à
escola, por outro lado o curso perdeu sua originalidade; deixou de ser um curso
específico para formar professores para se diluir num conjunto de cursos
técnicos (cf. Saviani, 2000).
Com altos e baixos, o curso de Magistério continuou formando
professores até 1996, quando da promulgação da Lei 9394/96, a nova Lei de
91
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que reestruturou a formação de
professores, terminando com o curso de Magistério e criando novas estruturas.
3.1.3 – A Lei 9394/96
Em 1996, às vésperas de comemorar-se os dez anos da nova
Constituição da República Federativa do Brasil, foi promulgada, a 20 de
dezembro, a Lei 9394/96, estabelecendo as novas Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Esta lei veio encontrar um quadro um tanto quanto pobre
de formação de professores; praticamente toda a formação para a educação
infantil e primeiros anos do primeiro grau era feita em nível médio (cf. Saviani,
2005; Tanuri, 2000).
Diante disso, a lei teve a intenção de estabelecer que todos os
professores tivessem curso superior, determinando: “Até o fim da Década da
Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior
ou formados por treinamento em serviço” (Lei 9394/96, art. 87).
A Década da Educação, então criada, estendia-se de 1997 a 2007. A
ideia era a de fazer com que, a partir de 2007, apenas professores com curso
superior fossem admitidos. Para que isso se concretizasse, foi dado ênfase ao
Curso de Pedagogia, para a preparação de professores para as séries iniciais
do ensino fundamental (a terminologia mudou, com a nova LDB: em vez de
primeiro grau e segundo grau, passou a chamar-se ensino fundamental e
ensino médio, respectivamente). Também foi criado o Normal Superior, espécie
de Magistério, só que em nível superior. Com isso, o antigo Magistério perdeu
sua razão de existir e, por alguns anos, foi considerado extinto.
Contudo, a mesma Lei diz:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (Lei 9394/96, art. 62).
Esse artigo trouxe diversas possibilidades de interpretação, e serviu de
base para ressuscitar o antigo Magistério, agora chamado Curso de Formação
de Professores na Modalidade Normal em Nível Médio, conforme escrito na
92
Lei. Embasando essa ressurreição, em 1999 foram elaboradas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores na Modalidade Normal
em Nível Médio, através do Parecer CNE/CEB nº 01/99, de 29 de janeiro de
1999. Assim, em diversas instituições de ensino, públicas e privadas, manteve-
se este nível de formação, para atender a educação infantil e as séries iniciais
do ensino fundamental. Com isso, o Normal Superior perdeu em parte a razão
de existir, e os cursos de Pedagogia foram reforçados, para poder formar
professores com título superior. É esse o quadro que temos hoje em nível
nacional.
3.3 Seguindo o fio condutor: o Parecer CNE/CEB 01/1999
Poucos anos após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9394/96, a 29 de janeiro de 1999, a Câmara de Educação
Básica e o Conselho Nacional de Educação aprovaram o Parecer CNE/CEB nº
01/1999. Este Parecer surgiu com o objetivo de estabelecer as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores na
modalidade normal em nível médio. Ele foi elaborado em uma época em que
se faziam questionamentos sérios acerca da validade ou não do antigo curso
de magistério, conforme já explicitamos. Se por um lado, em seu artigo 87, § 4,
rezava: “Até o fim da Década da Educação somente serão admitidos
professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em
serviço”27, por outro lado, no artigo 62 afirmava-se:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (Lei 9394/96, Art. 62)
28.
A dificuldade em compreender a validade ou não do curso devia-se a
essa dupla interpretação possível a partir do afirmado nesses dois artigos da
mesma lei. Contudo, mesmo havendo essa ambiguidade, percebeu-se que era
27
A Década da Educação estendeu-se de 1997 a 2007. 28
Esse artigo foi regulamentado pelo Decreto nº 3276, de 07 de dezembro de 1999, mesmo ano em que foi aprovado o citado Parecer. Neste Decreto falava-se que a formação dos professores da educação básica far-se-ia preferentemente (grifo nosso) em cursos de licenciatura, deixando assim claro que a formação em nível médio ainda seria aceita.
93
possível enveredar por esse caminho, elaborando as diretrizes curriculares
nacionais, até chegar à regulamentação do Artigo 62 da LDB.
Após este brevíssimo resgate histórico, e necessário à compreensão do
parecer, já que este, como afirmamos, surgiu num momento de crise para a
formação de professores em nível médio, e deu identidade a um curso que
estava prestes a morrer. E é justamente esta identidade que vamos discutir
neste trabalho. Queremos entender que tipo de identidade transparece no
parecer e como os conceitos de narrativa e de estética estão presentes no
texto.
3.4 Buscando uma saída: Identidade do curso de formação de
professores na modalidade normal em nível médio
O antigo curso Normal, depois o Magistério, e agora com a nova
denominação, bastante extensa, sempre tiveram o óbvio objetivo de formar
professores para trabalhar com crianças, especialmente as mais novas em
idade e escolarização. Tempos houve em que, por falta de opção de cursos de
licenciatura, professores com Magistério lecionavam até o fim do ensino
fundamental ou mesmo no ensino médio. O fato é que ele tem sido, ao longo
dos anos, espaço propício para a aprendizagem de técnicas de trabalho com
crianças. Com a popularização dos cursos de Pedagogia, o Magistério acabou-
se tornando o “parente pobre”, ou considerado o curso que forma, mas não
forma direito.
De certa forma, o Parecer CNE/CEB 01/99 procura redimir essa falha.
Porém, citando o MEC e o Plano Nacional de Educação de 1998, o texto
afirma:
a formação em nível médio pode cumprir três funções essenciais: a primeira é o recrutamento para as licenciaturas, a segunda, a preparação de pessoal auxiliar para creches e pré-escolas, e a última, servir como centro de formação continuada (MEC. Plano Nacional de Educação. Apud BRASIL, 1999, p. 16).
Estes são, de acordo com o Plano Nacional de Educação, referendado
pelo presente Parecer, os objetivos da formação de professores em nível
médio. O fato de colocá-lo como recrutamento para as licenciaturas reforça a
ideia de que ele é apenas uma formação auxiliar, com pouco valor. Tanto
94
assim que, indo contra a própria Lei 9394/96, é aqui colocado como formação
para auxiliares de creche e pré-escola, sendo que, por lei, a formação em nível
médio é aceita para professores da educação infantil e séries iniciais do ensino
fundamental (cf. Lei 9394/96 art. 62). Além disso, essa função essencial da
formação em nível médio não aparece nessa citação que, embora não seja a
única referência ao curso de formação em nível médio no Plano Nacional de
Educação29, é a única citação do referido Plano no Parecer.
Verdade é que o Parecer não assume diretamente para si esses
objetivos, apenas os cita, deixando claro em outros momentos que quer um
curso no qual se formem professores “reais”, que possam trabalhar em sala de
aula e que saibam o que estão fazendo:
Isto ocorre na lei sem descaracterizar sua identidade. É um curso próprio para a formação de professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, que tem estrutura e estatuto jurídico específicos. Não é um ensino técnico adaptado. Sua identidade, em face do que estabelecem os dispositivos legais, é claramente definida pela contextualização da sua proposta pedagógica, no âmbito das escolas campo de estudo e das experiências educativas às quais os futuros professores têm acesso, seja diretamente, seja através dos recursos tecnológicos disponíveis. Em função dessa concepção, a formação de professores oferecida nessa modalidade requer um ambiente institucional próprio, com organização adequada à sua proposta pedagógica. No caso, os professores formadores deverão, ao longo do curso, orientar sua conduta a partir dos princípios a serem seguidos pelos futuros professores (BRASIL, 1999, p. 19-20).
Chama, aliás, a atenção o fato de, no documento, afirmar-se diversas
vezes não ser o curso um ensino técnico adaptado. Essa identidade é
importante porque mostra o tipo de curso que se quer. É de se crer que se
deseje um curso no qual os componentes curriculares consigam preparar os
professores para enfrentar o mundo que os aguarda após a conclusão do
curso.
Podemos considerar, contudo, ambicioso este projeto. Ambicioso,
porque visa um ideal bastante alto para ser alcançado em dois ou três anos,
29 O Plano Nacional de Educação não descaracteriza o Curso de Formação de Professores na
Modalidade Normal em Nível Médio, mas deixa claro que esta não é a melhor opção e deve ser usada apenas onde não for possível ensino superior para todos os professores: “Garantir que, no prazo de 5 anos, todos os professores em exercício na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, inclusive nas modalidades de educação especial e de jovens e adultos, possuam, no mínimo, habilitação de nível médio (modalidade normal), específica e adequada às características e necessidades de aprendizagem dos alunos (Plano Nacional de Educação, p. 81).
95
sendo que neste tempo ainda estuda-se as disciplinas comuns do ensino
médio. Além disso, as práticas que se tem observado em alguns dos raros
locais onde existe o curso, o ensino é, de fato, técnico. Além da observação, na
escola citada no início deste trabalho, de um currículo todo baseado em
competências e habilidades, o que por si só tecnifica-o, citamos também
afirmação de Gomide e Miguel, sobre a reimplantação do curso nas escolas de
ensino médio do estado do Paraná30:
No caso do curso de formação de professores, na modalidade normal, esta integração
31 foi definida como o diferencial da grade
curricular do curso, e está ocorrendo por meio da articulação entre os conhecimentos gerais e os específicos do curso em nível médio. Em nossa opinião, este é o desafio: formar tecnicamente os professores e supri-los de conhecimentos básicos e essenciais capazes de consolidar a sua formação inicial (GOMIDE e MIGUEL, 2009, p. 207).
Não podemos tomar um caso isolado nem uma opinião específica, como
acontece na pesquisa destas autoras, e definir como regra geral. Contudo, o
governo do Paraná definiu o curso como sendo de formação profissional, ou,
em outras palavras, profissionalizante. Embora, no Brasil, o ensino superior
seja profissionalizante, o ensino médio não o é, ou, pelo menos, de maneira
geral, não é mais. Identificar assim um curso de nível médio, especialmente de
formação de professores, leva de regresso à fase pré-LDB 9394/96.
Não podemos, conforme afirmado acima, transformar o caso do Paraná
em regra, mas, enquanto situação, não podemos deixar de citar aqui. O que
nos interessa, no entanto, é a identidade dada ao curso de formação de
professores em nível médio pelo Parecer CNE/CEB 01/99. Percebemos que
este é tratado como uma preparação real para o exercício do magistério, como
um curso completo a partir do qual os professores estarão aptos para enfrentar
30
O Paraná é um dos estados que re-implantou o curso de formação de professores em nível médio a partir de 2004. Primeiro, em 1996, havia sido o primeiro estado do Brasil a eliminá-lo das escolas, juntamente com os cursos técnicos, antes mesmo da promulgação da Lei 9394/96, que, em uma das suas interpretações, decretou o fim dos cursos técnicos de nível médio (cf. Gomide e Miguel, 2009). 31
Ao falar de integração, as autoras referem-se a anterior parágrafo do mesmo artigo, no qual
defendem para o ensino técnico, a integração entre “cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito de todos e condição de cidadania e da democracia efetivas” (GOMIDE E MIGUEL, 2009, p. 307).
96
as dificuldades do dia a dia na escola; um curso não técnico, mas humano, que
leve os professores a um crescimento intelectual e humano32.
3.4.1 A identidade do professor
Tendo em vista a identidade do curso de formação de professores no
ensino médio, buscamos verificar também que tipo de identidade de professor
o Parecer CNE/CEB nº 01/99 apresenta. Observamos que também neste
quesito o documento é bastante ambicioso.
Partimos da concepção ricoeuriana de identidade, na qual existe uma
identidade dinâmica e uma que permanece, e é possível um ponto de fusão
entre as duas. No documento é possível perceber que a maneira como o curso
é apresentado condiz com a identidade que se quer para o professor. Por um
lado, a ideia de um professor que, terminado o curso, seja capaz de atuar
numa sala de aula, ou seja, uma identidade estável, na qual ele possa dizer:
sou professor. Por outro lado, almeja um professor em formação, que não vê
no curso de formação em nível médio um ponto de chegada, mas um ponto de
partida.
O documento parte de uma realidade bem concreta: há (em 1999) uma
carência de professores formados nas escolas. A tabela a seguir mostra a
realidade à época da elaboração do documento:
Nível de Formação
Fundamental Médio Superior
Incompl. Completo C/Magist. S/Magist. C/ Licenc.
S/Licenc. Total
Região C/Magist. S/Magist.
Norte
13.911
15.211
46.369
2.967
1.684
233
75
80.450 Nordeste
60.765
38.417
189.255
9.672
20.365
2.429
503
321.406 Centro-Oeste
2.584
3.938
31.626
2.317
12.389
1.182
203
54.239 Total
77.260 57.566 267.250 14.956 34.438 3.844 781 456.095
Fonte MEC/INEP/SEEC. TABELA 1 – Funções Docentes, por Grau de Formação dos Respectivos Ocupantes, nas Quatro Séries Iniciais do
Ensino Fundamental – Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – 1996 (BRASIL, 1999, P. 24)
32
Falamos do documento e de sua abordagem do curso, e não necessariamente do que acontece nas escolas. A ideia é verificar a identidade do curso presente no documento.
97
Pelos números, recolhidos nestas três regiões do Brasil, as mais
deficitárias, compreende-se a necessidade de se pensar um curso mais voltado
para a formação humana, de professores que, além de conhecerem o
conteúdo, saibam lidar com as preocupações do dia a dia na sala de aula. E é
este o perfil esperado de um professor, de acordo com o documento ora
estudado:
(...) o curso deve formar professores autônomos e solidários, capazes de investigar os problemas que se colocam no cotidiano escolar, utilizar os conhecimentos, recursos e procedimentos necessários às suas soluções, avaliar a adequação das escolhas que foram efetivadas, e, ainda, devido às transformações por que passam as sociedades, deverão analisar as consequências dos novos paradigmas do conhecer. Implicam conhecimentos gerados a partir de um modo de refletir sobre a prática que mantém no direito do aluno aprender, no esforço nacional de construção de um projeto de educação escolar de qualidade para o país, e nas regras da convivência democrática, as referências que norteiam permanentemente a ação pedagógica (BRASIL, 1999, p. 26).
Deste ponto de vista, observa-se que o curso quer formar professores
conscientes de sua missão e de sua profissão. A autonomia como base do
projeto. Um professor autônomo, capaz de compreender a si mesmo como
educador. Capaz de perceber os novos paradigmas, e de ter visão crítica
suficiente para romper com os velhos. Capaz, também, de transformar a
informação em conhecimento, e este em saber. Em tese, é este o perfil de um
professor que conclui o curso de formação de professores na modalidade
normal em nível médio.
Como antes afirmei sobre a identidade do curso, este objetivo também é
ambicioso. Ele poderia ser colocado para um curso superior, e teria validade.
Não quero com isso afirmar que o curso normal não deva formar professores
com as características apontadas pelo documento. Ele é ambicioso na medida
em que se propõe alcançar um objetivo de certa forma distante da realidade,
tendo em vista que o curso é realizado em nível médio e o tempo de realização
do mesmo é repartido com as disciplinas que fazem parte da grade curricular
do ensino médio.
Propus-me, no título deste tópico, a discorrer sobre a identidade do
professor formado em nível médio. Todavia, partindo da premissa de Ricoeur
(1991; 1997; 2000) de que a identidade é pessoal, e desenvolve-se ao longo da
vida, não é possível dizer qual a identidade do professor neste nível de ensino.
98
Ela vai depender de uma série de fatores que devem acontecer durante a sua
vida, incluindo o próprio curso. Por isso, qualifico o perfil apresentado pelo
documento como ambicioso. Em todo o documento, fala-se do profissional que
se quer, mas não das maneiras de se trabalhar esse profissional para que ele
seja aquilo que dele se espera.
Apesar disso, merece destaque menção feita às histórias de vida como
importantes na construção da identidade:
Constroem, utilizando abordagens condizentes com o exercício da cidadania plena na sociedade contemporânea, as identidades dos alunos (futuros professores) (...). Suas histórias de vida são importantes. Aqueles que ensinam e aprendem têm uma história que se expressa em todas as suas atitudes, na postura profissional e no modo de ensinar, pensar e aprender. Ao considerar princípios éticos, políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu relacionamento com os demais durante o processo de formação (BRASIL, 1999, p. 26-27).
Reconhecer a importância das histórias de vida dos formandos é
fundamental para se compreender a construção da identidade pessoal e
docente no curso. Essa recordação mostra a nova importância dada ao curso,
e reforça a ideia de não mais considerá-lo como um curso técnico, mas sim um
curso capaz de formar pessoas.
O documento oferece as diretrizes curriculares para o curso normal em
nível médio, e as traça com bastante propriedade. Mostra um caminho
interessante a ser trilhado, e se compromete com o crescimento do profissional
da educação. Contudo, por estabelecer as ditas diretrizes, parece esquecer a
natureza prática das coisas, no sentido de que apresenta um bonito discurso,
mas não oferece meios nem elementos que ajudem as escolas que possuem o
curso a se apropriar desse discurso.
Essa omissão não é decisiva, mas pode ajudar a criar situações como a
anteriormente citada, em que o curso, mesmo sendo definido como não-
técnico, torna-se técnico em virtude de sua utilidade: formar professores que
são necessários nas escolas que não dispõem dos mesmos. E dificulta,
também, às escolas, a criação de programas que auxiliem no desenvolvimento
da identidade pessoal e profissional. Ricoeur (1997) afirma que as narrativas
são importantes elementos na formação da identidade; elas auxiliam no
99
conhecimento e na descoberta de si. O documento fala nas histórias de vida
dos formandos; contudo, ignora a dimensão da narrativa dessas próprias
histórias como momento formativo.
Traçar um perfil desejado para um profissional é importante, porque
direciona maneira de caminhar. Torna-se perigoso, no entanto, quando existe
um ponto de chegada, mas não um caminho, ou pelo menos uma indicação de
caminho. Claro que cada escola deve buscar, dentro do que é apresentado
pelas diretrizes curriculares, a melhor via de acesso ao ponto de chegada
indicado, pois do contrário não haverá criatividade nem respeito às condições
de cada realidade. Orientações, porém, pelo menos de ferramentas para se
construir o caminho são, a nosso ver, importantes, para que o objetivo não se
perca de vista.
3.5 O desenrolar do fio: a identidade narrativa como estética no Parecer
CNE/CEB 01/99
Cabe recordar que a visão de estética que adoto aqui é aquela
apresentada por Schiller (2002). Em Schiller, a estética representa o belo, a
arte, que é trabalhada pelo ser humano. O autor apresenta também a ideia
(não a expressão) de experiência estética, que são as sensações vividas pelo
ser humano em contato com uma determinada situação. Ademais disso, indica
a educação estética como fundamental para o crescimento enquanto pessoa,
introduzindo um elemento chamado lúdico, que se situa entre o formal e o
sensível. No lúdico está o jogo, a capacidade de mudar.
É a partir desta perspectiva que analiso o Parecer. Procurei no texto
referências à educação estética, ou simplesmente à palavra estética. Percebi
que não existe no texto qualquer uma dessas palavras. Existem, sim, citações
de “princípios éticos e estéticos”, relacionados a outros documentos, como no
caso a seguir:
Assim, as diretrizes curriculares para o curso Normal em nível médio deverão ser inspiradas nos princípios éticos, políticos e estéticos já declarados nos Pareceres de n
os 22/98, 04/98 e 15/98, a respeito da
educação infantil e do ensino fundamental e médio (BRASIL, 1999, p. 27).
100
Em outro caso, a recordação dos “princípios éticos e estéticos” está
relacionada à maneira de trabalhar os conteúdos:
Ao considerar princípios éticos, políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu relacionamento com os demais durante o processo de formação (BRASIL, 1999, p. 27).
Neste caso, é possível afirmar que há uma preocupação com as
dimensões ética e estética, mais relacionadas à visão de Freire (2003). Não
uma preocupação com a educação estética em si, mas com os princípios
norteadores da formação. Para que haja crescimento pessoal, é necessário
que eles sejam éticos e estéticos, uma vez que estes dois caminham juntos
(Freire, 2003), não deixando de lado o político, podendo-se aqui, sim, ver um
pouco de Schiller (2002). O estético, de acordo com o documento, está na vida
dos formandos, e aqui aparece algo de Ricoeur (1997). Para o Parecer, as
dimensões ética, política e estética presentes nas histórias de vida ajudam a
fortalecer a identidade pessoal e profissional.
O que claramente está ausente do Parecer é qualquer referência à
educação estética, no sentido mesmo schilleriano da palavra: aprender a arte,
a conviver com a arte, a sentir a arte. É uma omissão importante, pois revela o
distanciamento que há entre a educação e a arte. Se Schiller diz que a
educação estética “tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de
nossas faculdades sensíveis e espirituais” (SCHILLER, 2002, p. 103), não é
sem razão a importância que ela tem num curso de formação de professores.
Aprender a conviver com a arte é fundamental para ensinar a conviver com a
arte.
Concluo esta análise com os questionamentos feitos por Perissé (2009):
A interpretação de obras de arte contribui para o nosso aperfeiçoamento ético? Ajuda-nos a repensar nossa maneira de viver e conviver? Pode nos fazer dimensionar o quanto é perigoso ser livres e saber quem somos? Pode ser, em resumo, uma interpretação educadora? (...) é possível responder sim às perguntas (...). Pensar a experiência estética não tanto ou não só pela ótica do prazer e da distração, ou do entretenimento, mas como fonte de descobertas existenciais, de aprendizado (PERISSÉ, 2009, p. 36).
101
O Parecer CNE/CEB nº 01/1999 traz contribuições importantes para a
educação no Brasil. Existe no texto uma riqueza grande no que se refere à
formação de educadores. O que se pode perceber é que o documento
procurou seguir à risca o que a Lei 9394/96 trouxe de novo, que foi uma nova
maneira de se conceber a formação profissional, entrando nessa nova visão
também a formação de professores.
Desde o início, o texto procura reforçar a ideia de que bons educadores
são aqueles que conseguem lidar com as situações mais variadas na sala de
aula. Também afirma ser fundamental que o curso de formação de professores
em nível médio tenha presente a vida dos formandos, e saiba como partir da
vida deles para fortalecer a sua identidade enquanto professores.
O perfil de professor que se espera após a conclusão do curso é
comparável ao de um professor que concluiu o ensino superior: determinado,
independente, autônomo, solidário, conhecedor dos alunos e sabedor de como
resolver as dificuldades encontradas. Concordo plenamente com a
necessidade de termos professores com essas características. O que parece
mais problemático é saber se as escolas terão condições de oferecer um curso
que prepare dessa maneira o professor. Ou mesmo se terão interesse, pelo
menos as escolas privadas que oferecem o curso.
A crítica aqui ao documento, contudo, refere-se à ausência de
referências à dimensão estética na formação dos professores, e a uma quase
apagada referência às histórias de vida. No que se refere às narrativas, a
omissão também é total. O texto menciona as histórias de vida como elemento
importante na formação da identidade, mas não se pronuncia a respeito de o
currículo do curso utilizar as histórias de vida como método.
Apesar de trazer uma contribuição no sentido de ter boas reflexões e de
insistir na formação de um professor bem qualificado e com consciência de sua
tarefa como educador, o documento assume o risco de passar despercebido.
Embora eu não tenha material de observação nos diversos cursos que existem
no país, nem isso seria possível, no curso do qual eu era coordenador ao
começar o Mestrado em Educação, o documento é citado no plano de curso,
mas apenas citado. No restante do plano, segue-se a linha tradicional, de
formação técnica de professores. Mesmo estabelecendo diretrizes curriculares,
carece de suporte teórico e de elementos práticos para as escolas.
102
3.6 Uma luz no final do labirinto: elementos conclusivos
Após percorrer as sendas do labirinto presentes no Parecer CNE/CEB nº
01/1999, percebemos que o modelo de formação proposto por Ricoeur passa
pela própria pessoa, ou seja, segue o caminho da autoformação, proposto por
Josso (2004).
Neste percurso, as narrativas desempenham um papel fundamental na
compreensão de si. A estética presente neste percurso é, por um lado, a
estética do humano, e por outro a estética do labirinto ou, poderíamos dizer, do
ser humano interior, daquele que é agente da própria formação e da sua
autonomia enquanto sujeito.
Desde o começo, quando trabalha a questão da identidade narrativa,
Ricoeur deixa claro que o papel das narrativas é levar o ser humano a
encontrar-se consigo mesmo, de maneira a desenvolver a própria identidade.
Neste percurso, diversos fatores estão presentes, e todos igualmente
importantes, como o reconhecimento da própria trajetória. Estes elementos são
as diversas variáveis que interferem na hermenêutica, ou na compreensão dos
fatos (ou simplesmente fazem parte da hermenêutica), como são os pré-
conceitos, ou então o fator tempo – e sua ligação com a memória e as
lembranças –, enfim, elementos que reforçam ou dificultam a compreensão,
mas que não podem ser deixados de lado.
Esses elementos, que já estão interligados entre si, formam outras
ligações que ampliam o campo por onde caminhar – mas dificultam encontrar o
caminho. Quanto mais encruzilhadas há, mais difícil saber por onde chegar
onde se quer chegar. Por isso, a narração de si não é tão simples, e muito
menos simples é encontrar na narrativa elementos que ajudem na construção
da própria identidade.
Observamos que a educação estética se cruza com a identidade
narrativa a partir do momento em que ambas têm a missão de levar a pessoa a
encontrar-se consigo mesma. Seja na visão de Ricoeur, de Schiller ou de
Freire, a educação estética ou a estética na escola levam a pessoa a
reconhecer um processo de construção da própria pessoa, ou da própria
identidade. Reconhecer-se como ser em formação é importante para sentir-se
sujeito da própria história. Isso quebra o paradigma da formação linear, seja
horizontal ou vertical. Numa formação linear, o formando apenas recebe a
103
formação que vem de fora, não participa dela. Ela costuma ser de caráter
conteudista e moralista; e o sujeito, que nesse caso não é sujeito, assiste as
coisas acontecerem.
Numa formação de professores, é importante que o fio condutor do
processo sejam os elementos que conduzem a pessoa a sentir-se educador e
saber o porquê disso. Note-se que esse sentir-se educador está relacionado
com o sentir-se pessoa, e isso está ligado ao reconhecer e conviver com a
própria história de vida. Mais uma vez, os caminhos se cruzam e se
entrelaçam.
É por esse motivo que buscamos no documento que estabelece as
diretrizes curriculares nacionais para o curso de formação de professores em
nível médio – Parecer CNE/CEB 01/1999 – o sentido de estética na identidade
narrativa. Um documento que trate da formação de professores precisa deixar
claro que tipo de relação o formando terá com a própria formação. Se for uma
relação linear (horizontal ou vertical), a escola terá um determinado tipo de
comportamento; se for uma relação não linear (labirinto; circular), será
diferente.
No documento aqui analisado, percebemos que, embora sejam
respeitados elementos como a história de vida dos formandos, a formação
prossegue dentro de um padrão linear e horizontal, ou seja, os conteúdos não
são impostos, cabendo a cada unidade escolar defini-los; contudo, as diretrizes
curriculares não abrem demasiado espaço para uma formação que não seja
técnica. A educação estética, por exemplo, tão cara a Freire e a outros autores,
não aparece em momento algum.
Percebemos que uma caminhada formativa que tenha por objetivo
formar o sujeito na sua autonomia precisa necessariamente reconhecê-lo como
pessoa e ajudá-lo a assumir a própria história. As narrativas na perspectiva de
Ricoeur são a melhor maneira de fazer com que isso aconteça, pois ao
encontrar-se consigo mesmo, ele será capaz de assumir seu próprio ser de
educador.
Apesar disso, há uma luz no final do labirinto. Não estamos perdidos. O
fio condutor – que podemos chamar fio de Ariadne – que vai levar o formando a
encontrar a saída do labirinto é justamente – e paradoxalmente – o próprio
labirinto. É a sua história, a sua narrativa, que vai conduzi-lo rumo à sua
104
identidade, ao seu ser. E mesmo que, nessa aventura por dentro do seu
labirinto, ele se perca e corra o risco de ser devorado pelo Minotauro (seus
medos, sua história, suas emoções, seus afetos), é seguindo o fio da própria
vida que ele poderá encontrar-se e sair vivo do labirinto, com força para
prosseguir viagem na aventura da vida.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste trabalho de pesquisa, percebo o quanto é necessário
caminhar para se chegar a uma formação de educadores da maneira como é
sonhada por quem deseja uma educação mais humana. Depois de fazer um
longo percurso através de autores que, para mim, até então eram
desconhecidos, descobri que meu desconhecimento era maior do que eu
suspeitava.
O ingresso no Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São
Paulo deu-se por meios não tão esperados. Desde que concluí a primeira
graduação, em 2002, decidi não fazer Mestrado. Foi uma daquelas decisões
que, uma vez tomadas, com o tempo acabam sendo alvo de arrependimento.
No meu caso, o arrependimento demorou a chegar. A ideia de ingressar num
programa de mestrado surgiu quando senti a necessidade de investigar mais a
fundo o sentido da identidade narrativa de Ricoeur na formação de educadores.
Acabei envolvendo-me mais do que imaginava e descobrindo relações que
nunca pensei que existiam.
No começo da pesquisa procurei apropriar-me das ideias de Ricoeur,
lendo diversos escritos seus, com especial atenção para “Tempo e Narrativa” e
“Identidade Narrativa”. Ricoeur é um autor rebuscado, e não foram pequenas
as dificuldades de compreensão. O que me ajudou, e na elaboração do
primeiro capítulo, foram leituras de outros autores que apresentam conceitos
de identidade e de narrativa. Com esses autores, consegui fazer um diálogo
que culminou nas páginas escritas do primeiro capítulo. Dele, concluo que a
identidade da pessoa é dinâmica. Mesmo havendo uma identidade estática,
que é a que me define como pessoa, ganha força aquela que vai sendo
moldada e me transformando cada vez mais em pessoa. Ricoeur ajudou-me
muito a compreender minha própria identidade.
O passo seguinte foi elaborar minha história de vida. Na ordem do
trabalho, ela aparece antes, mas foi elaborada depois deste primeiro momento
que acabo de descrever. Para escrevê-la, utilizei-me das lembranças que já
havia narrado na elaboração da Colcha de Retalhos, durante o programa de
Mestrado, sob a orientação da Profª Margaréte May Berkembrock-Rosito. As
lembranças surgiram primeiro a conta-gotas, depois foram jorrando de maneira
106
surpreendente. Reviver a infância e a adolescência e o que aconteceu nelas foi
uma experiência profunda, que em alguns momentos me fizeram ir às lágrimas.
É essa vivência que vem relatada no início do primeiro capítulo. Foi ali que
percebi a importância das narrativas na minha vida, e o verdadeiro motivo de
querer pesquisar este tema, bem como o porquê de a palestra do Prof. Roberto
Comte sobre identidade narrativa ter mexido tanto comigo.
A elaboração do segundo capítulo foi a que mais surpresas me trouxe.
Já havia estudado estética em tempos anteriores, no Curso de Filosofia, e
mesmo no Programa de Mestrado. Havia lido coisas sobre estética, havia
escrito. Mas foi Schiller, que até então era um ilustre desconhecido, quem me
mostrou que a dimensão estética é fundamental na vida humana. Foi também
em Schiller que descobri que o lúdico é uma experiência estética, e que não
pode ficar ausente da escola, muito menos da formação de professores.
Compreendi que enquanto eu der espaço na minha vida para o jogo, darei a
mim mesmo chance de crescer e de buscar sempre mais. A minha
incompletude se manifesta sempre, e as experiências estéticas me ajudam a
ser mais eu.
O terceiro capítulo me fez recordar elementos que havia há tempos
esquecido, especialmente no que diz respeito à formação de professores que
La Salle almejava. Mesmo tendo publicado há algum tempo um artigo sobre
este assunto, e tendo estudado este autor durante a minha formação, foi
relendo-o à luz da estética que redescobri muita coisa sobre ele. Para uma
escola ser bonita não basta uma estrutura bem feita, uma organização bem
constituída, um espaço físico amplo. É necessário pessoas, e pessoas que
saibam que são pessoas; que reconheçam o outro como gente, e que vejam
em si mesmas e no outro uma pessoa em desenvolvimento. Pessoas
inconclusas, de que Paulo Freire nos fala. Com Freire aprendi, que buscar o
crescimento é mais do que sentar-se nos bancos de uma escola e absorver
conteúdos e dinâmicas; é necessário viver esses conteúdos e essas dinâmicas,
e, mais que isso, descobrir que são as vivências, de dentro e de fora da escola,
que vão se transformar em experiências estéticas que, depois, poderão ser
narradas e ajudar a formar a identidade pessoal.
Além de aprender com estes autores, aprendi com a leitura do Parecer
CNE/CEB nº 01/1999. Ele mostrou-me que é possível elaborar um documento
107
muito bonito, com muita estética e boas teorias, e mesmo assim ele não ser
seguido da maneira correta. Para que um documento como esse seja seguido,
é necessário muito mais que belas teorias, é fundamental que seja feito com
convicção, e que abra possibilidades de ser conhecido e vivido pelas escolas.
Em relação a este Parecer, concluí que lhe faltam algumas coisas muito
importantes. Ele está bem escrito, numa linguagem facilmente assimilável,
mesmo para quem desconhece o assunto, mas dilui-se num mundo disperso,
de teorias. Falta falar de coisas fundamentais, como a questão da educação
estética. Nesse sentido, ele está incompleto. Embora seja generoso ao falar da
formação humana e da identidade do educador, e ambicioso ao descrever o
perfil do professor formado no ensino médio, pode-se dizer que ele coxeia pelo
caminho que ele mesmo trilhou.
O resultado é que os cursos de formação de professores em nível
médio, os que ainda bravamente resistem, não adquiriram a identidade que o
Parecer quis transmitir. Tornaram-se cursos técnicos, sem outra identidade,
que visam ao final de dois ou três anos ter professores diplomados que possam
atuar para suprir as carências de professores nas escolas públicas.
O papel das narrativas na formação de professores é importante.
Especialmente em se tratando das narrativas de vida. Narrar e narrar-se é uma
experiência estética fascinante, e que produz resultados fantásticos nas
pessoas. A identidade narrativa, que pode ser compreendida como a síntese
da própria pessoa, desenvolve-se e desenvolve a pessoa, a partir desta
experiência estética. A ausência de qualquer referência a isso nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores em nível
médio coloca em cheque o próprio documento e, por tabela, o curso. Quando
se fala no perfil do professor que se almeja, mas deixa-se em aberto às escolas
a maneira de conseguir esse professor, o risco que se corre é grande.
Enfim, percebo que formar professores é uma tarefa delicada. Antes de
qualquer curso, antes de elaborar um programa de formação, é preciso fazer-
se não apenas a pergunta: que professor eu quero? Mas sim perguntar-se:
com que pessoa eu vou trabalhar? De que mundo ela vem? Que pessoa eu
quero formar? Que mundo eu desejo no futuro? Dessa maneira, as ideias que
aparecem no Parecer poderão ser transformadas num programa que forma,
antes de tudo, gente.
108
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113
ANEXO I
Parecer CNE/CEB Nº 01/1999 Mantenedora/Interessado: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica – Brasília - DF Assunto: Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores na modalidade normal em nível médio. Relator(a) Conselheiro(a): Edla de Araújo Lira Soares Processo nº: 23001.000037/99-18 Parecer CEB nº: 1/99 CÂMARA OU COMISSÂO:CEB APROVADO EM:29/1/99
I – RELATÓRIO
Este Parecer dirige-se, especialmente, aos professores que, inspirados nos ideais
de solidariedade, liberdade e justiça social, pretendem exercer a docência na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, tendo como perspectiva a educação escolar, direito de todos e dimensão inalienável da cidadania plena, na sociedade contemporânea.
É por essa convicção que os estudos e as reflexões sobre a formação de docentes, encontram no pensamento do Professor Paulo Freire pontos que são fundamentais para a organização e o desenvolvimento das propostas pedagógicas das escolas.
(...) O espaço de que disponho não me permite ir além de algumas rápidas considerações em torno de um ou dois pontos que me parecem fundamentais em nossa prática. Pontos, de resto, ligados entre si, um implicando no outro. O primeiro deles é o da necessidade que temos, educadoras e educadores, de viver, na prática, o reconhecimento óbvio de que nem um de nós está só no mundo. Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educadora ou educador, significa reconhecer nos outros – os educandos no nosso caso – o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de falar que corresponde ao nosso dever de escutá-los. Mas, como escutar implica em falar também, o dever que temos de escutá-los significa o direito que igualmente temos de falar-lhes. Escutá-los, no fundo, é falar com eles, enquanto simplesmente falar a eles seria uma forma de não ouvi-los. Dizer-lhes sempre a nossa palavra, sem jamais nos oferecermos às palavras deles, arrogantemente convencidos de que estamos aqui para salvá-los, é um boa maneira
114
que temos de afirmar o nosso elitismo, sempre autoritário. Esta não pode ser, porém, a maneira de atuar de uma educadora ou de um educador cuja opção é libertadora. Quem assim trabalha, consciente ou inconscientemente, ajuda a preservação das estruturas dominadoras. O outro ponto, ligado a este, e a que eu gostaria de me referir é o da necessidade que temos os educadores e educadoras de “assumir” a ingenuidade dos educandos para poder, com eles, superá-la. Estando num lado da rua ninguém estará, em seguida, no outro, a não ser atravessando a rua. Se estou do lado de cá, não posso chegar ao lado de lá, partindo de lá, mas de cá. (...) Sejamos coerentes. Já é tempo. Fraternalmente,
Paulo Freire
São Paulo, abril de 1982.33
I N T R O D U Ç Ã O
A Lei 9131, de 20 de dezembro de 1996, que instituiu o atual
Conselho Nacional de Educação, consignou, entre as competências da
Câmara de Educação Básica – CEB, deliberar sobre as Diretrizes Curriculares
Nacionais – DCN. Nessa atribuição, a CEB identifica uma efetiva possibilidade
de suas ações contribuírem para consolidar o processo que busca um padrão
de qualidade para a educação básica no país. No encaminhamento dessa
missão, a Câmara iniciou estudos e solicitou, através de audiências públicas, a
valiosa colaboração de instituições e entidades com tradição no planejamento,
na execução e na avaliação de políticas educacionais, bem como no
desenvolvimento de pesquisas no campo educacional.
Até o momento, o processo de estudos e consultas resultou na
elaboração dos Pareceres, nos 22/98, 04/98 e 15/98 que tratam das diretrizes
norteadoras da educação infantil e do ensino fundamental e médio.
Ao serem aprovadas e homologadas, essas diretrizes adquiriram,
segundo a legislação vigente, a condição de mandatórias. Essa condição,
entretanto, não interrompeu as interlocuções que se instalaram, desde as
115
origens da sua elaboração; prosseguem as discussões e negociações, tendo
em vista traduzir as citadas diretrizes em efetivas possibilidades de articulação
das diversas propostas pedagógicas das escolas.
Sabe-se, neste caso, que o exercício das responsabilidades dos entes
federativos com a universalização da educação de qualidade, nos termos do
que estabelecem as DCN, pressupõem, simultaneamente, um efetivo regime
de colaboração e o controle público das políticas educacionais em curso no
país.
Com essa perspectiva, o presente parecer, ao propor diretrizes
curriculares nacionais para a formação de professores na modalidade Normal,
em nível médio, retoma os princípios das DCN até então aprovadas e observa
as contribuições contidas nos referenciais para formação de professores
sugeridos pela Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, as orientações da
proposta de Curso Normal Superior a distância, formuladas pela Fundação
Darcy Ribeiro e as discussões que subsidiaram o programa de formação de
professores em exercício, coordenado pela Secretaria do Ensino a Distância do
MEC. Também, como não poderia deixar de ser, este parecer foi enriquecido
pelo instigante e atual debate sobre a formação do educador. Cabe ainda
destacar as relevantes contribuições oferecidas pelos Conselheiros da CEB,
durante o processo de construção dessa proposta, em especial as dos
Conselheiros Regina Alcântara de Assis e João Antônio Cabral de Monlevade e
da ex-Conselheira Hermengarda Ludke.
PROFISSIONALIZAÇÃO DO EDUCADOR: IDENTIDADE E FORMAÇÃO
O reconhecimento da centralidade da educação escolar no contexto das
transformações que perpassam todas as dimensões da nação brasileira tem
subsidiado um fecundo debate sobre os diversos fatores que influenciam na
democratização das políticas de Estado para o setor. O Brasil, em que pese ter
assegurado o acesso de 95% das crianças e jovens, dos 7 aos 14 anos, ao
ensino obrigatório, ainda convive com milhões de analfabetos, jovens e adultos.
Além disso, suas escolas registram significativos índices de evasão e
repetência.
116
Assim, enquanto a humanidade já produziu tecnologias de ponta que
aproximam o local, o nacional e o internacional e se lança para o cosmo, o país
ainda não conseguiu cumprir a meta de universalização do ensino fundamental
de qualidade, reduzindo com isso as possibilidades de inserção de amplos
segmentos da sociedade no espaço integrado e mundial do conhecimento e
das informações. Acrescente-se, ainda, que a agenda de mudanças para o
setor educacional nem sempre contempla compromissos com a modificação da
feição excludente dos sistemas de ensino. É o caso, por exemplo, das reformas
que se processam no bojo dos programas de ajuste estrutural. Esses, por sua
vez, implicam enormes custos sociais e dão especial destaque ao capital
financeiro, repondo com mais força a necessidade de se preservar direitos
sociais já conquistados.
Por outro lado, com o avanço do processo democrático, as demandas da
população no campo educacional têm um objetivo claro. Traduzem anseios por
melhoria da qualidade de vida e exercício da cidadania plena, no âmbito da
criação ininterrupta de novos direitos e subversão contínua do estabelecido34.
Nesse aspecto, verifica-se que o reconhecimento da importância do papel do
professor nas mudanças educacionais pretendidas tem estimulado a
formulação de proposições inovadoras para os sistemas de formação de
docentes, com visibilidade na legislação educacional e nos meios de
comunicação.
Em sintonia com essas expectativas, a Lei 9394/96 toma a escola como
foco de suas preocupações (art. 12), conferindo, quando comparada às
demais, um especial destaque às incumbências dos professores (art.13). Ao
mesmo tempo que a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os
estabelecimentos de ensino (art. 9, 10, 11), os educadores são convocados,
em articulação com as famílias e a comunidade, a assumirem um compromisso
ético com os alunos e as suas diferentes histórias de vida, no contexto do
atendimento escolar sob a ótica do direito. A redescoberta do valor da escola,
do professor e da participação da sociedade, nos termos da citada lei, retira o
processo de escolarização do isolamento social e da responsabilidade
117
individual, insistindo na dimensão coletiva do trabalho pedagógico e no caráter
democrático de seus propósitos, de sua execução e avaliação.
Neste sentido, o processo de escolarização vai adquirindo um novo
significado social e cultural, claramente expresso nos princípios e fins da
educação nacional, que estão inscritos nos termos da citada lei, manifestando
a vontade da nação.
Trata-se de estimular formas de pensamentos e ações que conectem as
instituições educacionais com as organizações da sociedade civil,
possibilitando interrogar sobre as relações do cotidiano escolar, as escolhas de
conteúdos, programas e atividades à luz do jogo de interesses e respectivos
valores que moldam a educação e a sociedade.
No art. 1º do Título I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) é explicitada a concepção de educação que orienta os dispositivos do
conjunto do texto. De caráter abrangente, contempla os processos formativos
que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil e nas manifestações culturais. Por sua vez, o segundo
parágrafo do mesmo artigo consagra a dimensão socialmente contextualizada
da educação escolar, estabelecendo que deverá vincular-se ao mundo do
trabalho e da prática social. Há, portanto, o propósito social e a referência a
uma práxis. Pressupõe, simultaneamente, saber, decidir e atuar. Desvenda, a
partir de uma visão global e integrada do processo educacional, a falácia da
oposição entre saber e fazer, conhecer e aplicar. Fica definido, a partir desse
Título, que a docência supõe a competência para remeter o conhecimento à
prática e ao conjunto das situações que enfrenta o profissional da educação no
cotidiano escolar.
No Título II, o propósito social que referenda a educação, a partir do seu
vínculo com o trabalho e a prática social, é ampliado. No caso, além de
estabelecer as responsabilidades da Família e do Estado com a educação,
declara sua inspiração nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana. Com isto, possibilita a busca de espelhos e imagens
para o desenvolvimento de um projeto de educação escolar que inclua a
diversidade e elimine a discriminação em todos os níveis de ensino.
118
Por certo, essa perspectiva aponta para ambientes de aprendizagens
colaborativas e interativas. Quer se considere os integrantes de uma mesma
escola, quer se eleja atores de projetos pedagógicos de diferentes instituições,
sistemas de ensino e lugares. Abre-se, assim, um horizonte interinstitucional de
colaboração que é decisivo para a formação dos professores.
Neste particular, delineia-se um significado social para o uso de novas
tecnologias e múltiplas linguagens, tendo em vista um trabalho conjunto e
solidário, com benefícios para comunidades locais, regionais, nacionais e
intercontinentais. Numa cultura que cresce em redes de conhecimento e em
relações de escala global, numa mídia em que verdades e mentiras se
encontram justapostas, o discernimento de conhecimentos e valores não
prescinde do mestre, um mestre distinto, afeito também a uma nova cultura, a
fim de desfazer equívocos e ressaltar informações pertinentes.
Na verdade, a LDBEN dá especial destaque ao papel do professor,
tornando público (art.13,III), que a sua função social é zelar, no contexto do
dever do Estado pela educação escolar, pelo exercício do direito de aprender
de cada aluno. Ao fazê-lo, a lei interpela o profissional da educação, enquanto
um intelectual que tem poder, face às várias possibilidades de escolha, de
firmar compromissos com os interesses mais gerais do conjunto do país.
Assim, como a CEB já manifestou no Parecer 04/98, a nação brasileira, através
de suas instituições, e no âmbito de seus entes federativos, vem assumindo,
vigorosamente, responsabilidades crescentes para que a Educação Básica,
demanda primeira das sociedades democráticas, seja prioridade nacional como
garantia inalienável do exercício da cidadania plena.
De fato, no estabelecimento desses compromissos encontra-se o valor
intrínseco da atividade docente e a principal contribuição para tecer a sua
legitimidade, aproximando a dignidade da profissão dos ideais da democracia.
Como se vê, a LDBEN está distante da visão instrumental que confinava
os professores ao papel de meros executores. Estabelece, para os mesmos,
entre outras atribuições, a sua participação na elaboração da proposta
pedagógica (art. 13, I) e garante-lhes tempo remunerado para preparação e
avaliação do trabalho pedagógico (art. 67, V), no contexto de progressivos
graus de autonomia da escola (art. 15). Nesse sentido, deve-se orientar a
tarefa de repensar a formação docente, considerada em toda a sua
119
complexidade. A referida tarefa tem influenciado o estado do debate a respeito
do que se denominou “crise de identidade” dos professores. Nas últimas
décadas, essa crise, provocada principalmente pela associação de fatores
como baixos salários e multiplicação de jornadas de trabalho, reduziu a
atividade docente à simples execução de atos fragmentados de “ensinar” ou
“dar matéria”. No caso, a formação desse profissional ficou reduzida à
transmissão de conteúdos e procedimentos indispensáveis ao como fazer e o
que fazer, estabelecidos nos limites da abordagem tecnocrática. Em
decorrência, retirou-se do foco dos debates e estudos sobre a educação
escolar as questões da natureza e do propósito da escolarização, da conexão
entre escola e sociedade, da relação entre poder e ensino, da escola como
organização social e da natureza do conhecimento escolar, entre tantas,
esvaziando o domínio do educador sobre as suas condições de trabalho. Tal
entendimento, no entanto, teve que enfrentar os protestos da sociedade
democrática, que reconhece a relevância da formação desses profissionais que
desempenham tão importantes papéis, notadamente no encaminhamento de
políticas que estimulem a autonomia e valorizem a diversidade, num contexto
de responsabilidade e liberdade.
Aqui, deve-se ressalvar a contribuição das análises que circunscrevem o
reconhecimento social do magistério no campo das relações entre educação e
cultura. Nunca é demais ressaltar a interação intrínseca entre ambas, dinâmica
essa reconhecida no art. 1o da LDBEN. O mundo da cultura é o mundo das
possibilidades, de um equilíbrio que nunca se completa, um território de riscos
e ousadias, onde se conflitam o que é tido como autorizado socialmente e a
insuficiência do estatuto da tradição, para legitimar sua incorporação na
proposta pedagógica das unidades educacionais. Na verdade, “não se confere
igual valor a todos os elementos constitutivos da cultura.”
Nesse cenário, o exercício da docência pressupõe uma arrojada tarefa,
que não pode prescindir de estratégias interpretativas, na análise da
pertinência social e dos desdobramentos das escolhas que são processadas.
Assim, passa a ser configurada, no mínimo, uma dupla exigência, a partir da
competência que tem o profissional da educação inspirada nos ideais da
educação nacional.
120
Em primeiro lugar, contribuir, no exercício da atividade docente, para a
produção de conhecimentos que favoreçam as leituras e as mudanças da
realidade e, também, influenciar no processo de seleção do que representa “a
experiência coletiva e a cultura viva de uma comunidade.” Em função disso, o
educador compartilha das decisões a respeito de quais saberes e materiais
culturais deverão ser socializados, tendo em vista o exercício pleno da
cidadania. Dessa forma, o professor assume sua condição de intelectual face à
possibilidade de integrar-se no fecundo debate a respeito dos valores, das
concepções e dos modos de convivência que deverão ser priorizados, através
do currículo.
Em segundo lugar, e como desdobramento, entende-se que o direito de
aprender, assegurado inclusive pela garantia das condições do direito de
ensinar, pressupõe por parte do docente a reelaboração da ciência do sábio,
da obra do escritor ou do artista35 e, ainda, do pensamento teórico e da paixão
geradora do sonho que se queira socializar, em situações específicas e nem
sempre previsíveis. Direito de aprender, de futuros professores, que não
respondem apenas a estímulos de seus formadores, mas exercitam a liberdade
de crescer no conhecimento, aprofundar as críticas, resolver os problemas,
cultivar os desafios da prática; mas, também, o dever de se preparar para a
interlocução e para responder às mais avançadas e desafiantes perguntas que
seus alunos vão lhes propor. Alunos não idealizados, mas reais, antecipados
na trama dos ambientes de aprendizagem que se constituem durante seu
processo de formação.
Trata-se, no caso da educação escolar, de fazer face a uma situação
singular e complexa, construindo respostas que trazem, sem a exacerbação do
passado, as tonalidades do que já é conhecido e, sem o otimismo ingênuo, a
radicalidade da utopia. Há sempre algo de inesperado que é próprio de uma
sociedade instituinte, onde a vivência da subjetividade ultrapassa a abordagem
exclusivamente científica de um projeto educacional. Assim, diversos e
surpreendentes cantos podem propagar o eco da vida cidadã, abrindo-se
também para a multiplicidade e desigualdade de contextos e desafios que
fluem a partir das relações de gênero, etnia, trabalho, entre outras.
121
Neste processo, o educador compreende que os conhecimentos não
podem ser simplesmente transferidos. Ensinar e aprender é sempre um ato
único e criativo. Exige um esforço de construção através de uma atividade que
é simultaneamente teórica e prática, individual e coletiva.
Aliás, refletir sobre a prática reorientando a ação docente constitui,
segundo o art. 61 da LDBEN, um dos fundamentos da formação dos
profissionais da educação. Nesse sentido, o ensino é uma atividade complexa
que supõe uma reflexão sistemática sobre a prática, requerendo, para tanto, a
constituição de conhecimentos, valores e competências estimuladoras de uma
ação autônoma e, ao mesmo tempo, colaborativa em face da responsabilidade
coletiva, com os procedimentos que deverão assegurar o direito dos alunos
aprenderem.
Assim, no cumprimento do que estabelece o texto legal, o professor
conduz sua própria formação, pensando a prática e tomando decisões sobre
ambientes de aprendizagem que concretizam o projeto pedagógico elaborado
pelo conjunto da escola. Ao se tornar sujeito da formação, torna-se também
sujeito de sua própria valorização, no âmbito do que está posto no art. 67 da
LDBEN.
Em vista disso, sua preparação é permanente e dá concretude, na
utopia do saudoso Gonzaguinha, à beleza de ser um eterno aprendiz. Só
assim, torna-se fator determinante da dinâmica educativa, aliado inconteste das
reformas que se apresentam como alternativas de qualificação do processo
educativo e, ainda, como declaram os teóricos da educação emancipatória, o
intelectual que une, no contexto da sala de aula, a análise crítica com a
possibilidade de mudança. Dessa forma, circunscreve o exercício da docência na
inteligência maior a respeito dos problemas e das soluções encontradas coletivamente
pela sociedade, assumindo de forma solidária sua condição de profissional.
Nesta direção, os legisladores consideram que a gestão democrática é
uma das principais âncoras do processo de seleção e reelaboração que se
instala na organização dos ambientes de aprendizagem escolar. Para tanto,
retomam, no texto da LDBEN, através do que estabelecem os arts. 14 e 15, o
que está disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal (CF),
consagrando o princípio da gestão participativa e o controle público da
qualidade da educação:
122
Art. 1o
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.
CURSO NORMAL NA TRAJETÓRIA DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
A complexa relação entre a formação dos professores e a qualidade da
Educação Infantil e do Ensino Fundamental (anos iniciais), vem sendo
analisada, predominantemente, sob a ótica da „universitarização‟ da formação
inicial. É uma abordagem que, pelo seu caráter específico, tem estimulado o
debate e o surgimento de inovações a respeito dos processos educacionais.
Do ponto de vista das organizações de educadores e das entidades que
desenvolvem estudos e pesquisas sobre a formação docente, o tema vem
sendo rigorosamente tratado no contexto de uma política global que contempla,
simultaneamente, formação inicial e continuada, condições de trabalho, salário
e carreira. Com isso, formulam severas críticas às análises que privilegiam
aspectos particulares de uma problemática cuja solução pressupõe políticas de
natureza global. Vale ressaltar, no entanto, que ao abordarem explicitamente a
formação inicial pleiteiam seja a mesma desenvolvida em níveis mais
elevados, tendo em vista a complexidade que consideram inerente à tarefa de
ensinar.
No Brasil, em que pese o debate sobre a profissionalização do
magistério apontar para esse patamar de escolarização mais elevado, a
LDBEN, em seu art. 62, sem desconhecer a tendência mundial de formação
docente em nível superior, admite a preparação do professor da educação
infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, tanto em nível médio,
quanto em nível superior:
Art. 62 – A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-
á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena em
universidades e institutos superiores de educação admitida como
formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e
123
nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível
médio, na modalidade Normal.
Tal flexibilidade é compatível com o esforço dos legisladores no sentido
de contemplar a diversidade e a desigualdade de oportunidades que
perpassam a realidade educacional no país. Sem criar impedimentos formais
para a oferta dessa modalidade de atendimento educacional, de fato, a lei
desafia os sistemas a repensá-la sob novas bases. A rigor, seu
reconhecimento expressa um movimento em busca da recuperação da sua
identidade, na medida em que é a única modalidade de educação profissional
em nível médio que a lei reconhece e identifica. As políticas educacionais
haverão de respeitar essa peculiaridade e envidar esforços para dar
conseqüência à valorização do magistério em todas as suas dimensões.
Os indicadores dessas mudanças podem ser identificados no conjunto
da LDBEN. Atente-se para os dispositivos a respeito das incumbências dos
docentes (art. 13), as disposições gerais que orientam a educação básica e
também as determinações para a educação infantil e o ensino fundamental
(Seções II e III do Título V, Capítulo II). Considere-se, ainda, o estabelecido no
art. 61 sobre os fundamentos da formação e, no art. 67, sobre as condições
pertinentes à profissionalização dos docentes.
Por sua vez, a Resolução nº 03 do Conselho Nacional de Educação
(CNE), que fixa Diretrizes para os Novos Planos de Carreira e de
Remuneração do Magistério dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
retoma o que está determinado no art. 62 da LDBEN, nos seguintes termos:
Art. 4º - O exercício da docência na carreira do magistério exige, como
qualificação mínima:
I – ensino médio completo, na modalidade Normal, para a
docência na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino
fundamental.
Aproxima-se dessa linha o pronunciamento do Plano Nacional de
Educação. Encaminhado ao Congresso pela União, reafirma a contribuição do
124
curso de Magistério, propõe novas finalidades frente às demandas presentes
na sociedade e alerta para os limites do seu atual formato.
Quanto à habilitação para o magistério em nível de 2º grau, a Lei n.º
5692/71 descaracterizou o antigo Curso Normal, introduzindo o mesmo divórcio
entre formação geral e específica que já ocorria nas licenciaturas. Deve-se
observar ainda que, apesar da ênfase atribuída pela Lei de Diretrizes e Bases à
formação em nível superior, não se pode descurar da formação em nível
médio, que será, por muito tempo, necessária em muitas regiões do País. Além
disso, a formação em nível médio pode cumprir três funções essenciais: a
primeira é o recrutamento para as licenciaturas, a segunda, a preparação de
pessoal auxiliar para creches e pré-escolas, e a última, servir como centro de
formação continuada.36
Ainda que parcial, o reconhecimento do curso atribui significativa
importância a essa modalidade de formação e recomenda mudanças em seu
atual modelo de organização. Opondo-se aos efeitos da Lei 5692/71 que,
tornou obrigatória a profissionalização ao nível do 2o grau e transformou a
formação de professores em “Habilitação para o Magistério”, desprovida das
condições necessárias ao atendimento de suas reais finalidades, o PNE sugere
rever a estrutura fragmentada dos cursos, recomendando como princípio
orientador de formação, a articulação teoria e prática.
No âmbito do PNE, elaborado por diversos setores da sociedade
brasileira, ao qual foi apensa, no Congresso, a proposta da União, mantém-se
a desejabilidade da formação inicial em cursos de licenciatura, sem
desconhecer a formação admitida por lei. No caso específico dos professores,
a formação mínima exigida por lei é a modalidade Normal do ensino médio,
para o trabalho pedagógico na educação infantil e nas séries iniciais do ensino
fundamental. A formação desejável, e que será exigida a curto para médio
prazo, para todos os níveis e modalidades, far-se-á na educação superior, em
cursos de licenciatura plena.37
Ao tratar da questão em pauta, a Associação Nacional de Pós-
Graduação em Educação (ANPED) insiste em que a qualidade da formação
125
docente e a valorização da carreira devem ser consideradas de forma
integrada pelas políticas públicas. Ao mesmo tempo estabelece que essa
formação superior deve ocorrer nas universidades, pois é aí que se têm no
Brasil grande parte da pesquisa e da experiência acumulada sobre o ensino38.
Não tem sido diferente o entendimento da Associação Nacional pela
Formação dos Professores (ANFOPE) a respeito do tema. Em audiência
pública do Conselho Nacional de Educação (13/01/98 – PUC/Rio) sobre a
formação dos profissionais da educação, foi divulgado documento da entidade
que reafirmava a importância da universidade nesse processo e reconhecia a
tendência mundial de elevar a níveis cada vez mais superiores, a formação
inicial dos quadros do magistério39.
Em certo sentido, identificam-se, no bojo de tais análises, abordagens
que se diferenciam quanto ao reconhecimento, no momento, do papel histórico
do curso Normal. Convergem, por sua vez, quanto ao entendimento de que a
formação inicial está situada no trajeto do desenvolvimento profissional
permanente tendo, em função disso, que manter vinculações efetivas com o
processo de formação continuada. Também revelam-se estreitamente afinadas
com a preocupação de favorecer um processo de transição que deverá ocorrer,
no arco da diversidade que se configura no país, sem impedir a expansão da
educação infantil e a universalização do ensino fundamental.
Isto não prejudica, obviamente, o reconhecimento que os atuais
dispositivos legais conferem ao atendimento educacional através dessa
modalidade de educação profissional. Contudo, é preciso lembrar que diversos
setores do poder público e da sociedade em geral, ao acolherem essa
determinação, identificam nos citados dispositivos uma alternativa
essencialmente provisória. Ademais, a nova LDBEN também incorpora a
tendência mundial de formação do professor, em nível superior, independente
da etapa de sua atuação na educação básica.
Dessa forma, considera, sobretudo, que desde as origens do curso
Normal o debate sobre a qualidade da educação nunca se afastou do
126
entendimento que propugna por graus mais elevados de preparação dos
profissionais que vão exercer a docência. Por certo, este era o fundamento dos
cursos de especialização que ao lado dos dois ciclos do ensino Normal40, eram
previstos no Decreto-Lei nº 8530/46 que instituiu a Lei Orgânica dessa
modalidade de ensino. Verifique-se que o acesso a tais cursos, definido no art.
22, estava vinculado ao exercício prévio da docência, situando-se na
perspectiva da formação continuada41.
Em função disso, o que vai sendo observado ao longo da legislação
subseqüente é, cada vez mais, a perspectiva de preparação do professor em
níveis mais elevados. Em nome de uma formação mais sólida para o
magistério, os cursos normais de 4 e 5 anos, primeiro ciclo, para regentes do
ensino primário, bem como os estudos adicionais, foram extintos.
Posteriormente, a supressão das licenciaturas curtas traduziram, no
ordenamento jurídico, uma compreensão condizente com as novas
competências requeridas do professor, numa sociedade perpassada por
vertiginosas mudanças e crescente complexidade.
Mais recentemente, o curso Normal, em nível médio, foi inserido numa
trajetória cujo horizonte é traduzido, na sua forma mais atual, através dos arts.
62, 63, I e 87, IV da LDBEN. Estes, preconizam sua abertura para o curso
Normal superior e para as licenciaturas, sem conferir, no entanto, amparo legal
às iniciativas de curso Normal que possam vir a ser definidas fora do que está
determinado nos níveis aqui especificados. Isto ocorre na lei sem
descaracterizar sua identidade. É um curso próprio para a formação de
professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental,
que tem estrutura e estatuto jurídico específicos. Não é um ensino técnico
adaptado. Sua identidade, em face do que estabelecem os dispositivos legais,
é claramente definida pela contextualização da sua proposta pedagógica, no
âmbito das escolas campo de estudo e das experiências educativas às quais
os futuros professores têm acesso, seja diretamente, seja através dos recursos
tecnológicos disponíveis. Em função dessa concepção, a formação de
127
professores oferecida nessa modalidade requer um ambiente institucional
próprio, com organização adequada à sua proposta pedagógica. No caso, os
professores formadores deverão, ao longo do curso, orientar sua conduta a
partir dos princípios a serem seguidos pelos futuros professores. Exige,
também, o nível de estudo do ensino médio, voltado para a educação, nos
termos propostos pela LDBEN, nos arts. 21 e 22, enquanto direito de todos e
dimensão inalienável da cidadania, na sociedade contemporânea.
Aliás, a importância da educação básica foi enfatizada de forma clara,
na Emenda Constitucional 14/96, cujo texto declara o compromisso nacional
com a progressiva universalização do ensino médio gratuito, etapa conclusiva
do primeiro nível da educação no país. Assim, suas finalidades estão postas na
perspectiva da educação enquanto direito, numa sociedade que estabelece, do
ponto de vista formal, a possibilidade de universalização da Educação Básica
de qualidade, instaurando, sem dúvida, o campo histórico da luta para sua
tradução ao nível das condições concretas.
Sob essa ótica, o Parecer 04-98 da Câmara da Educação Básica do
CNE (CEB-CNE) contextualizou as diretrizes curriculares para o ensino
fundamental no âmbito da educação básica e, ao fazê-lo, associou a conquista
da cidadania plena, fruto dos direitos e deveres reconhecidos na Carta Magna,
à garantia desse patamar educacional.
Posteriormente, através das diretrizes curriculares para o ensino médio,
Parecer 15/98, a Câmara reafirmou essa perspectiva, atribuindo a esta etapa
da educação básica, a prerrogativa de direito de todo o cidadão. Ainda, com
base na legislação vigente, definiu que a sua natureza de formação básica e
comum para todo os cidadãos, mesmo incluindo a preparação básica para o
trabalho, não pode ser ajustada ou aligeirada face a outros objetivos, mas deve
estabelecer permanentemente a relação teoria e prática.
Sem dicotomizar, o citado parecer estabeleceu a diferença entre os
estudos de formação básica e os de natureza estritamente profissionalizante.
Aos primeiros, reservou, para assegurar o que está disposto nos arts. 35 e 36
da Lei 9394/96, 2.400 horas de trabalho pedagógico, distribuídos no período de
três anos letivos com, no mínimo, 200 dias para cada um. Também
estabeleceu que não há impedimentos, salvo a exigência de um limite
máximo de 25% da carga horária mínima deste nível de ensino
128
(estabelecidas no Decreto 2208/97), para aproveitamento de tais estudos em
cursos profissionais. O inverso não tem suporte legal.
Assim, é apropriado dizer que a formação geral inerente ao ensino
médio circunscreve-se no horizonte da cidadania de cada um e de todos. E,
neste sentido, é componente do curso Normal médio que subassume essa
etapa da educação básica com função habilitadora.
Com isto, o curso Normal, forma docentes para atuar na educação
infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, tendo como perspectiva o
atendimento a crianças, jovens e adultos, acrescendo-se às especificidades de
cada um desses grupos, as exigências que são próprias das comunidades
indígenas e dos portadores de necessidades especiais de aprendizagem.
Assim, além de assegurar titulação específica que habilita, o curso tem também
a validade do ensino médio brasileiro, para eventual prosseguimento de
estudos.
Na verdade, a legislação instaura um campo de tensão entre o instituinte
e o instituído. Ao acenar com a formação inicial, no horizonte da
“universitarização”, a perspectiva confronta-se com as dificuldades de uma
realidade que não dá conta, por inteiro, das condições necessárias à
implementação da inovação proposta. Depende, portanto, de negociações e
decisões que deverão contemplar as especificidade locais e os procedimentos
que fundamentam a convivência democrática.
Certamente, cabe ao poder público, como gestor das políticas
educacionais, “universalizar” o atendimento imediato do ensino obrigatório de
qualidade e responder, simultaneamente, às exigências que favoreçam a
transição do estágio atual para um novo padrão de formação inicial e
continuada do professor. Atingir este patamar pressupõe, por sua vez, a
possibilidade de ampliar o acesso às Instituições de Educação Superior, bem
como o desenvolvimento de pesquisas que tenham seu foco nas necessidades
das escolas e seus respectivos contextos.
Entende-se, com o atendimento dessas exigências, que é possível
ampliar o potencial de articulação a ser alcançado entre a melhoria da
Educação Básica e as Instituições de Ensino Superior, reduzindo-se os riscos
das mesmas transformarem-se em locus de investigação e produção de
conhecimentos voltados para a especialização exclusiva de seus próprios
129
docentes. Louvem-se, então, as iniciativas em curso que se anteciparam no
engajamento das citadas IES com as demandas dos sistemas de ensino.
Trata-se, como se vê, de um patamar a ser alcançado e de
condições a serem criadas, num país que ainda conta com um grande
contingente de professores leigos, com escolarização no nível do Ensino
Fundamental ou do Ensino Médio, sem a habilitação de Magistério. Exercem a
docência nas redes estaduais e municipais ( tabela 1), exigindo,
particularmente em algumas regiões, uma política de formação continuada que
assegure a curto e médio prazo, condições mínimas para o exercício
profissional.
TABELA 1 – Funções Docentes, por Grau de Formação dos Respectivos
Ocupantes, nas Quatro Séries Iniciais do Ensino Fundamental – Regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste – 1996
Nível de Formação
Fundamental Médio Superior
Incompl. Completo
C/Magist. S/Magist. C/ Licenc.
S/Licenc. Total
Região C/Magist. S/Magist.
Norte
13.911 15.211 46.369 2.967 1.684 233 75 80.450
Nordeste
60.765 38.417 189.255 9.672 20.365 2.429 503 321.406
Centro-Oeste
2.584 3.938 31.626 2.317 12.389 1.182 203 54.239
Total
77.260 57.566 267.250 14.956 34.438 3.844 781 456.095
Fonte MEC/INEP/SEEC
Face a essa realidade, mecanismos disciplinadores da aplicação de
recursos na manutenção e no desenvolvimento do ensino obrigatório admitem
a possibilidade de financiamento para a formação de professores leigos em
exercício. É o caso da Lei 9424/96 que dispõe sobre o Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e da Valorização do Magistério,
que em seu art. 7o, parágrafo único, estabelece: Nos primeiros cinco anos, a
contar da publicação desta lei, será permitida a aplicação de parte dos
recursos da parcela de 60%, prevista neste artigo, na capacitação de
professores leigos.
130
Na verdade, tanto do ponto de vista legal, quanto da diversidade que
perpassa a realidade educacional do país, considera-se que o ensino médio na
modalidade Normal, incorporadas as contribuições advindas da legislação
educacional e dos estudos recentes a respeito dessa habilitação, representa,
no trajeto da profissionalização do educador, uma das alternativas a serem
consideradas na definição de políticas integradas para o setor.
Desse modo, a oferta do curso Normal atende o que prescreve a lei e,
além de tudo, possibilita ao poder público proceder à passagem da formação
inicial de nível médio para a de nível superior, sem prejuízo da expansão da
educação infantil e da universalização do ensino fundamental. Para tanto,
deverá, no mínimo, cumprir os requisitos de qualidade exigidos para
profissionais que têm a atribuição de definir, no exercício da atividade
pedagógica, o quê e como ensinar.
Sobre o caráter autônomo dessa atividade, vale também observar, seu
compromisso com o princípio da liberdade e com o estatuto da convivência
democrática nos sistemas de ensino, ambos inspirados na LDBEN. Contudo,
seu significado maior está dado, na mesma lei, pelos ideais de solidariedade
e pela capacidade de vincular o mundo da escola ao do trabalho e da
prática social. Para tanto, no curso Normal em nível médio, os princípios que
fundamentam o projeto pedagógico e as práticas escolares que concretizam os
ambientes de aprendizagens deverão também ser coerentes com os princípios
que iluminam as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(DCNEM), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
(DCNEF) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
(DCNEI).
BASES PARA AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS
... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam
ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas
131
O curso Normal, em função de sua natureza profissional, requer um
ambiente institucional próprio com organização adequada à identidade de sua
proposta pedagógica. À luz da legislação educacional, deverá prover a
formação de professores, em nível médio, para atuar como docentes na
educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Na LDBEN as
incumbências dos professores estão claramente definidas no art. 13. e, nesse
dispositivo, a atividade docente é essencialmente coletiva e contextualizada
numa gestão pedagógica cuja pretensão maior é provocar, apoiar e avaliar o
processo de aprendizagem dos alunos.
Tendo como horizonte essa perspectiva, o curso deve formar
professores autônomos e solidários, capazes de investigar os problemas que
se colocam no cotidiano escolar, utilizar os conhecimentos, recursos e
procedimentos necessários às suas soluções, avaliar a adequação das
escolhas que foram efetivadas, e, ainda, devido às transformações por que
passam as sociedades, deverão analisar as conseqüências dos novos
paradigmas do conhecer. Implicam conhecimentos gerados a partir de um
modo de refletir sobre a prática que mantém no direito do aluno aprender, no
esforço nacional de construção de um projeto de educação escolar de
qualidade para o país, e nas regras da convivência democrática, as referências
que norteiam permanentemente a ação pedagógica.
Assim, as diretrizes curriculares para o curso Normal em nível médio
deverão ser inspiradas nos princípios éticos, políticos e estéticos já declarados
nos Pareceres de nos 22/98, 04/98 e 15/98, a respeito da educação infantil e do
ensino fundamental e médio. Na organização das propostas pedagógicas, as
escolas deverão assumi-los como ponto de partida e foco de iluminação para
todo o percurso da formação dos professores:
I - Na efetivação desses princípios, as práticas educativas
desenvolvidas no curso Normal são constitutivas de sentimentos e
consciências. Constroem, utilizando abordagens condizentes com o exercício
da cidadania plena na sociedade contemporânea, as identidades dos alunos
(futuros professores), que deverão vivenciar situações de estudos e
aprendizagens nas quais são consideradas as especificidades do processo de
pensamento, a realidade sócio-econômica, a diversidade cultural, étnica, de
religião e de gênero.
132
II – No exercício da autonomia, as escolas normais de nível médio
deverão elaborar propostas pedagógicas mobilizadoras de mentes e
afetos, propiciando, na perspectiva da cidadania plena, a conexão entre
conhecimentos, valores norteadores da educação escolar e experiências
que provêm das realidades específicas de alunos e professores. Suas
histórias de vida são importantes. Aqueles que ensinam e aprendem têm uma
história que se expressa em todas as suas atitudes, na postura profissional e
no modo de ensinar, pensar e aprender. Ao considerar princípios éticos,
políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e
modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e
assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu
relacionamento com os demais durante o processo de formação.
Ensinar/aprender é, portanto, um movimento sensível ao inesperado e aberto,
numa sociedade instituinte, à singularidade dos pensamentos e sentimentos.
Pressupõe, nesse sentido, a competência dos professores para tomar decisões
que nem sempre constam do elenco de saberes e experiências já vistos e
conhecidos, por inteiro.
III – A clareza a respeito das competências e capacidades
cognitivas sociais e afetivas pretendidas como objetivos do curso normal
de nível médio, é decisiva para o diálogo entre os integrantes da
comunidade escolar, o conjunto da sociedade e entre as áreas
curriculares na relação com os múltiplos aspectos da vida cidadã, com
vista ao desenvolvimento da proposta pedagógica. Na verdade, o diálogo é
proposto como a base do ato pedagógico, caracterizando o princípio da
autonomia da escola através de um modelo de gestão que é, de um lado, um
convite para “sair do isolamento e romper fronteiras” e, de outro, um esforço
especulativo e questionador da versão social do que vem sendo considerado e
aceito como aprendizagens significativas, num determinado contexto. De fato,
o diálogo reveste de especial importância, dada a repercussão que tem na
formação de futuros professores, a experiência vivida na condição de alunos do
curso Normal.
IV – Na estruturação das propostas pedagógicas, a ênfase dada ao
diálogo em todas as suas formas deverá preparar os professores para
lidar com um paradigma curricular que articule conhecimentos e valores,
133
em áreas ou núcleos curriculares que interagem no processo de
constituição de conhecimento, valores e competências necessárias ao
exercício da docência na educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental. Dessa forma, as áreas ou núcleos curriculares possibilitarão a
formação básica geral e comum, a compreensão da gestão pedagógica no
âmbito da educação escolar contextualizada e a produção de conhecimento a
partir da reflexão permanente sobre a prática. O diálogo também deve ser
instalado entre as áreas de conhecimento e o modo particular de inserção dos
alunos (do curso normal) na vida social, considerando, nos termos das DCN
para a educação infantil e o ensino fundamental, os diversos aspectos da vida
cidadã.
V – A formação básica, geral e comum, considerada direito
inalienável e condição necessária ao exercício da cidadania plena, deverá
assegurar, no curso Normal, os conhecimentos e competências previstos
para a terceira etapa da educação básica, nos termos do que estabelece a
Lei 9394/96, nos arts. 35 e 36, explicitados, posteriormente, no Parecer no
15/98 da CEB-CNE. Enquanto dimensão do processo integrado de formação
de professores em nível médio, sua abordagem é remetida aos ambientes de
aprendizagem planejados e desenvolvidos na escola campo de estudo e
investigação. Nesse sentido, além de contemplar conteúdos e competências de
caráter geral, incluirá as áreas que integram o currículo destinado à educação
infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental em níveis de abrangência e
complexidade indispensáveis à (re)significação de conhecimentos e valores
nas situações pedagógicas em que são (des)construídos/(re)construídos por
crianças, jovens e adultos. Assim sendo, é necessário em articulação com as
demais áreas que constituem o curso, expor os estudantes a situações do
cotidiano escolar que sejam estimuladoras das competências e capacidades
cognitivas sociais e afetivas que serão exigidas, posteriormente, no exercício
da docência.
Por isso, o professor formador, independente de sua área de atuação
levará em consideração as influências do processo de comunicação na
formação dos docentes, pautando suas ações pelos mesmos princípios que
orientam a inserção dos alunos no conjunto das atividades do projeto
pedagógico das escolas campo de estudo.
134
VI – A reflexão sistemática sobre o saber do fazer de cada professor
e da escola como um todo é impulsionadora do processo de produção do
conhecimento que se instaura como uma atividade crítica desde as
origens da formação do professor. No curso Normal, a reflexão sistemática
sobre a prática deve conferir validade aos estudos e às experiências a que são
expostos alunos e professores. Ao eleger o fazer como o objeto da reflexão, a
formação é concebida a partir do envolvimento dos alunos e professores em
situações complexas, cuja intervenção exige a explicitação de conhecimentos e
valores que referenciam competências afinadas com uma concepção de
professor reflexivo, dotado da capacidade intelectual, autonomia e postura
ética, indispensáveis ao questionamento das interpretações que apoiam,
inclusive, suas intervenções no exercício da atividade profissional. O professor,
nesse caso, é sujeito do seu conhecimento e se define como intelectual no
âmbito de sua atividade profissional que é reconhecidamente „prática e
contextualizada‟.
VII – As escolas, com seus desafios e soluções, ao se tornarem
campo de estudo e investigação dos alunos do curso Normal, devem
enriquecer a sistematização da reflexão sobre a prática, submetendo-se a
um processo de avaliação permanente que identifique a adequação entre
as pretensões do curso e a qualidade das decisões que são tomadas pela
instituição. A educação escolar, espaço de igualdade e de direitos, é uma
prática social que se viabiliza sob a responsabilidade da Família e do Estado.
Enquanto atividade pública, que pretende assegurar as condições necessárias
ao exercício de um direito socialmente conquistado e legalmente constituído,
deverá, através da proposta pedagógica da escola, incorporar representantes
de todos os segmentos da escola, alunos da escola campo de estudo, futuros
professores, bem como as respectivas famílias, grupos sociais e comunidade,
num processo de avaliação que envolva todas as dimensões dessa proposta.
A perspectiva é construir a qualidade da educação escolar, ancorando-
se, para tanto, nos princípios da gestão democrática, nos termos da CF e da
LDBEN, garantindo o controle público das políticas dispostas.
VIII – A gestão pedagógica, no âmbito da educação escolar
contextualizada, deverá, em diálogo com as demais áreas ou núcleos
curriculares da proposta pedagógica, desenvolver práticas educativas
135
que integram os múltiplos aspectos constitutivos da identidade dos
alunos (futuros professores), que se deseja sejam afirmativas,
responsáveis e capazes de protagonizar ações autônomas e solidárias no
universo das suas relações. Nessa abordagem, a problematização das
escolhas e dos resultados que demarcam a identidade da proposta pedagógica
das escolas nas quais a gestão pedagógica da educação escolar observada é
vivenciada, tomam como objeto de análise a escola como instituição social
determinada e determinante, a legislação educacional e os diversos sistemas
de ensino no horizonte dos direitos dos cidadãos e do respeito ao bem e à
ordem democrática, os alunos em suas diversas etapas de desenvolvimento e
suas relações com o universo familiar, comunitário e social, o impacto dessas
relações sobre as capacidades, habilidades e atitudes dos alunos em relação a
si próprios, seus companheiros e aos objetos e materiais de estudo. Na
formação dos futuros docentes isto pode ser aprendido através de conteúdos
da sociologia educacional, psicologia educacional, antropologia cultural,
história, comunicação, informática, artes e cultura, entre outras. Valendo-se dos
conhecimentos específicos dessas e de outras áreas, os professores poderão,
ao tratá-los de forma integrada, fazer escolhas a partir do estudo crítico de
diferentes orientações teórico-metodológicas. Portanto, as práticas educativas
levam em consideração, não só a realidade cultural, social, econômica, de
gênero e de etnia, mas também a centralidade da educação escolar no
conjunto das prioridades consensuadas no país.
IX – A prática, circunscrita ao processo de investigação e
participação dos alunos no conjunto das atividades que se desenvolvem
na escola campo de estudo, é instituída no início da formação,
prolongando-se ao longo do curso e com duração mínima de 800 horas.
Em função da sua natureza, a prática antecipa situações que são próprias da
atividade dos professores no exercício da docência, gerando conhecimento,
valores e uma progressiva segurança dos alunos do curso normal , no domínio
da sua futura profissão. Na verdade, deve estabelecer o contato dos alunos
com o mundo do trabalho e a prática social, conforme determina o art. 1o da
LDBEN. A tematização da prática oferece informações para a compreensão
dos problemas que emergem do cotidiano escolar, gerando conhecimentos
para a formulação de soluções originais e adequadas. Nesse processo, a
136
proposta pedagógica da escola, utilizando os instrumentos tecnológicos
disponíveis deve oportunizar o acesso dos alunos, ao espaço mundial e
integrado de conhecimentos a respeito da qualidade social da educação
escolar.
X – O curso, considerada a flexibilidade da LDBEN, tem, a critério
da proposta pedagógica da escola, amplas e diversas possibilidades de
organização. Sua duração, no entanto, será de no mínimo 3.200 horas,
distribuídas em 4 (quatro) anos letivos. A possibilidade de cumprir a carga
horária mínima em 3 (três) anos, fica condicionada ao desenvolvimento do
curso em período integral, contemplando o que está previsto nos termos da
formação geral, básica e comum, estabelecida para o ensino médio que será,
por sua vez, desenvolvida no contexto das incumbências do professor da
educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental.
Assim, a formação inicial pressupõe conhecimentos e competências
referenciados às condições de profissionalização de educadores capazes de
estimular procedimentos e desenvolver práticas educativas que sejam
constituidoras de indivíduos autônomos e protagonistas da construção mais
significativa do processo educativo: o exercício da sua liberdade no contexto
das relações éticas que propugnam por uma trajetória da humanidade no
horizonte da democracia.
II – VOTO DA RELATORA
À luz do exposto e analisado, em obediência ao artigo 9º da Lei 9131/95
que incumbe à Câmara de Educação Básica a deliberação sobre Diretrizes
Curriculares Nacionais, a relatora vota no sentido de que seja aprovado o
texto ora proposto como base do Projeto de Resolução que fixa as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Curso Normal em nível médio.
Brasília(DF), 29 de Janeiro de 1999.
Conselheira Edla de Araújo Lira Soares
Relatora
137
III –DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica acompanha, unanimemente, o voto da
Relatora e aprova o Projeto de Resolução que se segue.
Brasília, 29 de janeiro de 1999.
Ulysses de Oliveira Panisset
Presidente da CEB/CNE
Francisco Aparecido Cordão
Vice-Presidente da CEB/CNE
Notas
1 GADOTTI, M. 1996. Paulo Freire – Uma Biobliografia.
2 LEFORT, Claude. 1987. A invenção democrática – os limites do
autoritarismo.
3 FORQUIN, Jean-Claude. 1993. Escola e cultura.
4 MEC. 1998. Plano Nacional de Educação.
5 Plano Nacional de Educação. Proposta da sociedade brasileira. 1997.
6 ANPED. 1997.
7 ANFOPE. 1997.
8 Um dos ciclos estava voltado para a formação de regentes de ensino
primário, em quatro anos, e o outro, o curso de formação de professores
primários, era desenvolvido em três anos, após o ginasial.
9 Art. 22 – Os candidatos à matrícula em cursos de especialização de
magistério primário deverão apresentar diploma de conclusão do curso de
segundo ciclo e prova de exercício do magistério primário por dois anos, no
mínimo; os candidatos à matrícula em cursos de administradores escolares, ou
funções auxiliares de administração, deverão apresentar igual diploma, e prova
do exercício do magistério por três anos no mínimo.
138
BIBLIOGRAFIA: ANFOPE. VIII Encontro Nacional. Documento gerador. Formação de
profissionais da educação. Desafios para o século XXI. Goiânia, 1996. (mimeo).
ANPED BRASIL Constituição da República Federativa. 1988. _______. Emenda Constitucional nº 14 de 12 de setembro de 1996. _______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – nº 9394/96. _______. Lei nº 9424, de 24 de dezembro de 1996. _______. Leis Orgânicas do Ensino. O Ensino Normal. 1946. _______. Plano Nacional de Educação. 1998. Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação e Diretrizes
Curriculares para a Educação Básica. 1998. COLL, César. Psicologia y Currículum. Barcelona: Paidós, 1991. _______. Desenvolvimento Psicológico e Educação – Psicologia da Educação,
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. Educação, carinho e
trabalho. Petrópolis: Editora vozes, 1997. CURY, Horta e Vera Lúcia. Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB
e Plano Nacional de Educação. São Paulo, Ed. Brasil, 1997. DOWBOR, Ianni e Rezende (orgs.) Desafios da globalização. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997. FERNANDES, Florestan. A formação política e o trabalho do professor. In
Universidade, Escola e Formação de Professores. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986.
FORQUIN, Jean-Claude. Educação e Cultura. 1993. GADOTTI, M.: Paulo Freire: uma bibliografia. 1996. GATTI, Bernadete Angelina. Formação de professores e carreira: problemas e
movimentos de renovação – Coleção formação de professores. Campinas, São Paulo, Autores Associados, 1997.
GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais: ruma a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
GONÇALVES, Carlos Luiz e PIMENTA, Selma Garrido. Revendo o ensino de 2º grau: propondo a formação de professores. São Paulo, Ed. Cortez, 1997.
KINCHELVE, Joe L. A formação do professor como compromisso político. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
LEFOR. C. A invenção democrática – os limites do autoritarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987
MEC/SEF/COEDI – Por uma Política de Formação do Profissional de Educação Infantil. Brasil, 1994.
MEC/SEF – Referenciais curriculares para a formação de professores. 1998
139
NÓVOA, Antônio. Para um estudo sócio-histórico e desenvolvimento da profissão docente. In: Teoria e Educação. Porto Alegre, Ed. Panorâmica, 1991.
PERRENOUD, Phillippe. Formar os professores do primeiro grau à Universidade: aposta de Genebra. Universidade de Genebra, Mimeo, 1996.
____________. Ensinar Saberes ou desenvolver competências. Universidade de Genebra. Mimeo.
PIMENTA, Garrido Selma. Didática e Formação de Professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. São Paulo, Ed. Cortez, 1997.
Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira. 1997 ROMANELLI, Oliveira O. História da Educação no Brasil. Petrópolis, Vozes,
1978. TORRES, Rosa Maria. Formación Docente: Clave de la reforma educativa.
Texto apresentado no Seminário “Nuevas formas de aprender y de enseñar: Demandas a la formación inicial del docente”. CIDE/UNESCO-OREALC/UNICEF, Chile, Santiago, Mimeo, 1985.
_______. Profesionalización o Exclusion: Los educadores frente a la realidad actual y los desafios futuros. Texto apresentado na Conferência Internacional de Educação, organizada pela Confederação de Educadores da América (CEA), México, Mimeo, 1997.
140
ANEXO II
RESOLUÇÃO CEB Nº 2, DE 19 DE ABRIL DE 1999
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em nível médio, na modalidade Normal.
O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação, de conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea “c”, da Lei
9.131, de 25 de novembro de 1995, nos artigos 13, 26, 29, 35, 36, 37, 38,
58, 59, 61, 62 e 65 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em
vista o Parecer CEB/CNE 1/99, homologado pelo Senhor Ministro da
Educação em 12 de abril de 1999,
RESOLVE:
Art. 1º O Curso Normal em nível Médio, previsto no artigo 62 da Lei
9394/96, aberto aos concluintes do Ensino Fundamental, deve prover, em
atendimento ao disposto na Carta Magna e na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, LDBEN, a formação de professores para atuar como
docentes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
acrescendo-se às especificidades de cada um desses grupos as exigências
que são próprias das comunidades indígenas e dos portadores de
necessidades educativas especiais.
§ 1º O curso, em função da sua natureza profissional, requer ambiente
institucional próprio com organização adequada à identidade da sua proposta
pedagógica.
§ 2º A proposta pedagógica de cada escola deve assegurar a
constituição de valores, conhecimentos e competências gerais e específicas
necessárias ao exercício da atividade docente que, sob a ótica do direito,
possibilite o compromisso dos sistemas de ensino com a educação escolar de
qualidade para as crianças, os jovens e adultos.
141
Art. 2º Nos diversos sistemas de ensino, as propostas pedagógicas das
escolas de formação de docentes, inspiradas nos princípios éticos, políticos e
estéticos, já declarados em Pareceres e Resoluções da Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação a respeito das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e
Médio, deverão preparar professores capazes de :
I - integrar-se ao esforço coletivo de elaboração, desenvolvimento e
avaliação da proposta pedagógica da escola, tendo como perspectiva um
projeto global de construção de um novo patamar de qualidade para a
educação básica no país;
II - investigar problemas que se colocam no cotidiano escolar e construir
soluções criativas mediante reflexão socialmente contextualizada e
teoricamente fundamentada sobre a prática;
III - desenvolver práticas educativas que contemplem o modo singular de
inserção dos alunos futuros professores e dos estudantes da escola campo de
estudo no mundo social, considerando abordagens condizentes com as suas
identidades e o exercício da cidadania plena, ou seja, as especificidades do
processo de pensamento, da realidade sócio-econômica, da diversidade
cultural, étnica, de religião e de gênero, nas situações de aprendizagem;
IV - avaliar a adequação das escolhas feitas no exercício da docência, à
luz do processo constitutivo da identidade cidadã de todos os integrantes da
comunidade escolar, das diretrizes curriculares nacionais da educação básica e
das regras da convivência democrática;
V - utilizar linguagens tecnológicas em educação, disponibilizando, na
sociedade de comunicação e informação, o acesso democrático a diversos
valores e conhecimentos.Art. 3º Na organização das propostas pedagógicas
para o curso Normal, os valores, procedimentos e conhecimentos que
referenciam as habilidades e competências gerais e específicas previstas na
formação dos professores em nível médio serão estruturados em áreas ou
núcleos curriculares.
§ 1º As áreas ou os núcleos curriculares são constitutivos de
conhecimentos, valores e competências e deverão assegurar a formação
142
básica, geral e comum, a compreensão da gestão pedagógica no âmbito da
educação escolar contextualizada e a produção de conhecimentos a partir da
reflexão sistemática sobre a prática.
§ 2º A articulação das áreas ou dos núcleos curriculares será
assegurada através do diálogo instaurado entre as múltiplas dimensões do
processo de aprendizagem, os conhecimentos, os valores e os vários aspectos
da vida cidadã.
§ 3º Na observância do que estabelece o presente artigo, a proposta
pedagógica para formação dos futuros professores deverá garantir o domínio
dos conteúdos curriculares necessários à constituição de competências gerais
e específicas, tendo como referências básicas:
I - o disposto nos artigos 26, 27, 35 e 36 da Lei 9.394/96;
II - o estabelecido nas diretrizes curriculares nacionais para a educação
básica;
III - os conhecimentos de filosofia, sociologia, história e psicologia
educacional, da antropologia, da comunicação, da informática, das artes, da
cultura e da lingüística, entre outras.
§ 4º A duração do curso normal em nível médio, considerado o conjunto
dos núcleos ou áreas curriculares, será de no mínimo 3.200 horas, distribuídas
em 4 (quatro) anos letivos, admitindo-se:
I – a possibilidade de cumprir a carga horária mínima em 3(três) anos,
condicionada ao desenvolvimento do curso com jornada diária em tempo
integral;
II – o aproveitamento de estudos realizados em nível médio para
cumprimento da carga horária mínima, após a matrícula, obedecidas as
exigências da proposta pedagógica e observados os princípios contemplados
nestas diretrizes, em especial a articulação teoria e prática ao longo do curso.
Art. 4º No desenvolvimento das propostas pedagógicas das escolas, os
professores formadores, independente da área ou núcleo onde atuam,
pautarão a abordagem dos conteúdos e as relações com os alunos em
formação, nos mesmos princípios que são propostos como orientadores da
143
participação dos futuros docentes nas atividades da escola campo de estudo,
bem como no exercício permanente da docência.
Art. 5º A formação básica, geral e comum, direito inalienável e
condição necessária ao exercício da cidadania plena, deverá assegurar, no
curso Normal, as competências gerais e os conhecimentos que são previstos
para a terceira etapa da educação básica, nos termos do que estabelecem a
Lei 9394/96 - LDBEN, nos arts. 35 e 36, e o Parecer CEB/CNE 15/98.
§ 1º Enquanto dimensão do processo integrado de formação de
professores, os conteúdos curriculares dessa área serão remetidos a
ambientes de aprendizagem planejados e desenvolvidos na escola campo de
estudo.
§ 2º Os conteúdos curriculares destinados à educação infantil e aos
anos iniciais do ensino fundamental serão tratados em níveis de abrangência e
complexidade necessários à (re)significação de conhecimentos e valores, nas
situações em que são (des)construídos/(re)construídos por crianças, jovens e
adultos.
Art. 6º A área ou o núcleo da gestão pedagógica no âmbito da educação
escolar contextualizada, em diálogo com as demais áreas ou núcleos
curriculares das propostas pedagógicas das escolas, propiciará o
desenvolvimento de práticas educativas que:
I – integrem os múltiplos aspectos constitutivos da identidade dos
alunos, que se deseja sejam afirmativas, responsáveis e capazes de
protagonizar ações autônomas e solidárias no universo das suas relações;
II – considerem a realidade cultural, sócio-econômica, de gênero e de
etnia, e também a centralidade da educação escolar no conjunto das
prioridades sociais a serem consensuadas no país.
Parágrafo Único. Nessa abordagem, a problematização das escolhas e
dos resultados que demarcam a identidade da proposta pedagógica das
escolas campo de estudo toma como objeto de análise:
I - a escola como instituição social, sua dinâmica interna e suas
relações com o conjunto da sociedade, a organização educacional, a gestão
144
da escola e os diversos sistemas de ensino, no horizonte dos direitos dos
cidadãos e do respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II - os alunos nas diferentes fases de seu desenvolvimento e em suas
relações com o universo familiar, comunitário e social, bem como o impacto
dessas relações sobre as capacidades, habilidades e atitudes dos estudantes
em relação a si próprios, aos seus companheiros e ao conjunto das iniciativas
que concretizam as propostas pedagógicas das escolas.
Art. 7º A prática, área curricular circunscrita ao processo de investigação
e à participação dos alunos no conjunto das atividades que se desenvolvem na
escola campo de estudo, deve cumprir o que determinam especialmente os
artigos 1° e 61 da Lei 9.394/96 antecipando, em função da sua natureza,
situações que são próprias da atividade dos professores no exercício da
docência, nos termos do disposto no artigo 13 da citada Lei.
§ 1º A parte prática da formação, instituída desde o início do curso, com
duração mínima de 800 (oitocentas) horas, contextualiza e transversaliza as
demais áreas curriculares, associando teoria e prática.
§ 2º O efetivo exercício da docência na educação infantil e nos anos
iniciais do ensino fundamental, pelos alunos em formação, é parte integrante e
significativa dessa área curricular.
§ 3º Cabe aos respectivos sistemas de ensino, em cumprimento ao
disposto no parágrafo anterior, estabelecer a carga horária mínima dessa
docência.
Art. 8º Os cursos normais serão sistematicamente avaliados,
assegurando o controle público da adequação entre as pretensões do curso e a
qualidade das decisões que são tomadas pela instituição, durante o processo
de formulação e desenvolvimento da proposta pedagógica.
Art. 9º As escolas de formação de professores em nível médio na
modalidade Normal, poderão organizar, no exercício da sua autonomia e
considerando as realidades específicas, propostas pedagógicas que preparem
os docentes para as seguintes áreas de atuação, conjugadas ou não:
I – educação infantil;
145
II – educação nos anos iniciais do ensino fundamental;
III – educação nas comunidades indígenas;
IV – educação de jovens e adultos;
V – educação de portadores de necessidades educativas especiais.
Art. 10. Cabe aos órgãos normativos dos sistemas de ensino, em face
da diversidade regional e local e do pacto federativo, estabelecer as normas
complementares à implementação dessas diretrizes.
Art. 11. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 12.Revogam-se as disposições em contrário.
ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET
Presidente da Câmara de Educação Básica