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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Renata M. Brunetti A escuta do “mundo da vida” na constituição de uma sociedade emancipatória DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Renata M. Brunetti

A escuta do “mundo da vida” na constituição de uma sociedade emancipatória

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Renata M. Brunetti

A escuta do “mundo da vida” na constituição de uma sociedade emancipatória

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para a

obtenção do título de Doutor em Psicologia

Social sob a orientação do Prof. Doutor

Antonio da Costa Ciampa.

SÃO PAULO

2007

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

O meu maior agradecimento cabe aos meus queridos filhos, Thiago e

Thomaz – hoje, meus melhores amigos. Agradeço a eles, a companhia

carinhosa e amiga nestes anos, o estímulo e a paciência nos dias mais duros,

que não foram poucos.

Agradeço aos meus pais, o apoio carinhoso que me deram. Aos meus

irmãos e familiares, a força de sempre.

Aos queridos Rony, Célia e Chico, o estímulo na busca de novos

desafios e o apoio à consolidação de minhas conquistas.

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, a

confiança que depositou em meu percurso acadêmico.

Gostaria também de agradecer à minha banca examinadora no exame

de qualificação, Prof. Dr. Mario Aquino Alves, Prof. Dr. Peter Spink e Prof. Dr.

Odair Sass, as preciosas indicações e questionamentos.

Ao meu grande amigo Carlos Carvalho, que há anos, vem me ajudando

a elaborar as “experiências” de vida.

Agradeço à dedicadíssima Amnéris Maroni, a sua especial habilidade

em compor o intelectual e o poético, que deram o contorno deste trabalho; à

querida amiga Malu Zoega de Souza, por sua dedicação, ao ler, reler meus

escritos em tantas madrugadas.

Para finalizar, gostaria de agradecer a Deus pela oportunidade que tive

de entrar em contato, durante o desenrolar deste trabalho, com a alma de

pessoas maravilhosas como Vera Cordeiro, Daniel Becker, José Pereira de

Oliveira Junior e Jailson de Souza e Silva, meus entrevistados.

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RESUMO

A escuta do “mundo da vida” na constituição de uma sociedade emancipatória

O objetivo da pesquisa que deu origem a este texto foi tentar localizar em

nossa sociedade, por meio da análise de entrevistas com alguns fellows da Ashoka –

figuras sociais –, espaços nos quais ações que promovam emancipação sejam

possíveis.

Foram questionadas algumas formas para nomear essa figura social, uma vez

que ela não se enquadra espontaneamente como um empreendedor, nem como o

conhecido militante. Poetas e poliglotas do social foram os nomes utilizados neste

trabalho para valorizar suas qualidades de escuta do social e de mediação.

A análise das entrevistas apontou que eles valorizam sobremaneira os

saberes locais, são multifocais – possuem múltiplos interesses, são incapturáveis.

Diferentemente do antigo paradigma, em vez de definir formas de produzir o mundo,

vão até lá – o mundo, o “mundo da vida” de Habermas – o escutam, o traduzem e

fazem sua mediação com o “mundo sistêmico”.

A inspiração teórica principal é do filósofo J. Habermas. Refletimos algumas

das suas recentes preocupações teóricas. Não evitamos, porém, recorrer a outros

autores e outras proposições. Interessou-nos sobremaneira dar sentido e significado

aos nossos entrevistados e, então, nesse trabalho, a teoria está a serviço do mundo

empírico. A compreensão da experiência – que fizemos com os nossos entrevistados

e aquela que os entrevistados fazem com a comunidade – foi o elemento guia que,

por assim dizer, selecionou a teoria.

Por fim, o trabalho sugere que essas figuras sociais, com suas atividades

parecem ensaiar mudanças na cultura política com fortalecimento da sociedade civil e

uma mudança no paradigma do conhecimento. Uma cultura política que implica,

antes de tudo, a conscientização de nossa responsabilidade individual e social.

Palavras chave: empreendedor social – sociedade civil – terceiro setor –

responsabilidade social – mundo da vida

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ABSTRACT

The listening to the “life-world” in the conception of an emancipating society.

The objective of the research that originated this text was, by means of the

analysis of the interviews with a few Ashoka fellows – social figure, try to identify

spaces in our society, in which actions that promote emancipation are possible. Trying

to locate models, recipes, pre-defined and replicable solutions; however, the reading

and listening during the works carried us in another direction.

Some forms of defining a name for the social figure were questioned, since

they don’t spontaneously fit as entrepreneurs, nor as the well known militant. Social

poets and polyglots were names used in this work to enhance their qualities in social

listening and mediation.

The interview analyses showed they strongly value local knowledge, are

multifocal – have multiple interests, are incapturable. Differently from the old

paradigm, instead of defining forms of producing the world, they go out there – the

world, Habermas “life-world” – listening and translating it, and mediating it with the

“systemic world”.

The main theoretical inspiration belongs to the philosopher J. Habermas. We

reflected some of his recent theoretical concerns, not avoiding however, referring to

other authors and propositions. High interests were placed in providing sense and

meaning to our interviewees. Thus in this work, theory is at the service of an empirical

world. The comprehension of the experience – performed with our interviewees as

well as that of the interviewees with their communities – was the key element, that as

such, selected the theory.

Lastly, the work suggests that these social figures, with their actions, seem to

rehearse changes in the political culture with the strengthening of civil society, as well

as a change in knowledge paradigm. The rehearsal a political culture that may results,

first and foremost, in facing our conscious individual and social responsibilities.

Key word: social entrepreneur – civil society – third sector – social

responsibility – life-world

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – O processo de transformação de minha identidade ................ 09

INTRODUÇÃO – O caminho percorrido .................................................................... 17

CAPÍTULO 1 – A emancipação – localizando brechas ............................................. 29

CAPÍTULO 2 – A redescoberta do “mundo da vida” como fonte de sentido ............. 41

CAPÍTULO 3 – À procura de um nome ..................................................................... 56

CAPÍTULO 4 – O momento originário – um novo começo ....................................... 78

CAPÍTULO 5 – Travessias da/na experiência social ................................................104

CONCLUSÃO – Mudança na cultura política: ensaiando caminhos .......................138

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 151

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“Devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”

Gandhi

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APRESENTAÇÃO: O processo de transformação de minha identidade

Esta é a segunda vez, nos últimos cinco anos, que me vejo diante da

necessidade de fazer uma apresentação formal, de fazer um escrito que relata

fatos memoráveis. Pela segunda vez, preciso organizar minha história e

selecionar fatos importantes – memoráveis – de minha vida. Como já fizera

isso na apresentação do mestrado, parecia-me lógico simplesmente dar

continuidade ao que havia começado. Localizei e abri o antigo arquivo em meu

computador, certa de que bastaria acrescentar as últimas novidades.

Ao iniciar a leitura, dei-me conta de que muitas coisas importantes

haviam mudado. O tom que usei não era o mesmo que gostaria de usar desta

vez; o formato cronológico também não me agradava mais. Percebi, além

disso, que alguns fatos relatados com grande destaque não tinham mais a

mesma medida no momento presente. Por um lado, fiquei desapontada, pois

isso significava um novo esforço; teria de trabalhar duro para elaborar este

novo memorial. Por outro lado, fiquei muito contente e orgulhosa por perceber

o movimento da vida em mim: transformações tinham ocorrido que não mais

me reconhecia na escrita.

Que bom que mudei pois, até uns dez anos atrás, acreditava ser

possível construir racionalmente uma vida estável, protegida, dentro de planos

traçados. Sobre-vivia às quebras, às mudanças de rumo, aos acertos e aos

desacertos. De alguma maneira, não os sentia. Tocava minha vida, família,

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filhos, trabalho. Via-me como uma pessoa conformada pelos altos e baixos:

não me desorganizavam e nem me abalavam no dia-a-dia. E – o mais grave de

tudo – sentia-me privilegiada por isso.

Hoje percebo, com auxílio das proposições de Walter Benjamin, em

torno da noção de “vivência” e de “experiência”1, que a estabilidade de minha

vida se dava à custa de racionalizações, mais precisamente, da resistência da

minha consciência ao novo. Essa resistência levava-me a evitar experiências

autênticas, ou seja, protegia-me dos choques. Com isso, estava apenas

sofrendo vivências. Segundo o autor, na Modernidade, a consciência produzida

pela extensiva recorrência dos choques tem servido de proteção contra os

estímulos, impedindo assim a experiência e, com ela a memória involuntária.

Dito de outra maneira, para Benjamin, traumas e choques – inerentes à

vida moderna – são tão recorrentes que os vivenciamos e não mais os

experienciamos. Ora, quando a consciência falha é que temos acesso à

experiência. É por isso que, quando só vivenciamos – quando não

experienciamos –, nossa consciência é cronológica. Cronos, o tempo da

consciência moderna, é o deus das vivências: a memória voluntária.

Os memoriais, as apresentações – inclusive a minha no mestrado –

primam pela seleção cronológica dos fatos memoráveis. Venho aprendendo,

muito aos poucos, a me abrir para os fatos inscritos na memória involuntária.

Assim, fascinada, mas também insegura com essas novas portas de

percepção (choques, falha da consciência, memória involuntária), narro os

fatos mais recentes ligados à minha carreira profissional e, para minha

surpresa, ainda uma vez, vejo-me narrando os mesmos fatos, porém sob um

novo olhar.

Formei-me em Desenho Industrial no Mackenzie em 1981 e trabalhei,

até 1995, com arquitetura de interiores, uma atividade que visava compor o

Belo para o lar de pessoas, sendo esse belo definido pelas tendências

presentes em revistas da moda. Sentia-me implantando tendências modernas

na vida de meus clientes. Quantas vezes, em nome de garantir o belo, de não

1 BENJAMIM, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire” - Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo; tradução de José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. – 1. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1989. – (Obras escolhidas; v. 3) - p. 129

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ferir a estética do ambiente, vi-me obrigada a atropelar as histórias e apegos

dessas pessoas... Sinto, hoje, que atropelava sem perceber uma de suas

almas, a que olha de dentro para fora, de acordo com a feliz expressão de

Machado de Assis em “O Espelho”. Como Jacobina – personagem do conto –,

eu só contemplava, no meu fazer, a alma exterior das pessoas, as suas

personas, as suas máscaras.

Resolvi, então, mudar de rumo. Comecei a procurar uma nova atividade

profissional que fizesse mais sentido para mim. Voltei a estudar e

paralelamente iniciei um trabalho voluntário em uma organização do Terceiro

Setor.

A idéia de realizar uma atividade profissional voltada a causas sociais

levou-me a direcionar meus estudos para a área. Participei, na época, de

diversos cursos e seminários, iniciando, assim, a construção de uma nova

carreira. Oportunidades foram aparecendo e meu envolvimento foi

aumentando. Passei a fazer parte do grupo de professores de um curso de

especialização em captação de recursos para organizações do Terceiro Setor,

da Fundação Getúlio Vargas - FGV/SP, em parceria com a Indiana University –

The Fund Raising School.

Para minha surpresa, nessa nova trajetória, percebi que começava a

questionar minhas certezas, a mudar trajetórias, errando e acertando algumas

vezes. Entretanto, ainda imaginava que esses sobressaltos fossem parte dos

últimos ajustes na conquista daquele projeto definitivo de vida.

Capacitei-me para essa nova fase, dessa vez, mais acadêmica. Fiz

mestrado na PUS/SP em Psicologia Social, no Núcleo de Identidade orientada

pelo Prof. A. C. Ciampa. Estudei não só o processo de constituição da

identidade do captador de recursos para organizações do Terceiro Setor no

Brasil – minha atual atividade profissional –, mas também o possível significado

de sua ação na formação de uma sociedade emancipatória.

Foi um trabalho de interpretação de questionários respondidos por 140

captadores de recursos; de entrevistas abertas (histórias de vida) e de dados

coletados de pessoas que tinham proximidade entre si e amplo conhecimento

de captação. A partir da análise feita, aprofundei uma discussão em torno da

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constituição da identidade desses profissionais por meio de seus processos de

metamorfose.

Nas entrevistas, os captadores – indivíduos que se deslocaram, na

grande maioria dos casos, de suas antigas áreas de atuação profissional –

mostraram-se pessoas em constante transformação. E, como tinha acontecido

comigo, foi possível também com eles perceber o processo de constituição de

suas identidades, as crises vividas, os questionamentos feitos e os novos

posicionamentos adotados. Apoiei-me na noção de identidade definida pelo

processo de busca da emancipação, a “identidade pós-convencional” do

filósofo alemão Jürgen Habermas2.

Nessa época, dei-me conta, ainda uma vez, do olhar limitado que

mantinha em relação à minha vida, da desconexão com a realidade que

minhas buscas por estabilidade e por definições me colocavam. E, só

recentemente pude perceber que o mestrado que fiz – achando que era

apenas para atender as necessidades da nova fase, ou seja, oferecer cursos

de captação de recursos para a FGV e outras instituições de ensino – de fato

serviu-me como um espaço muito rico de reflexão sobre a minha própria

história, minha própria metamorfose. A pesquisa sobre a constituição da

identidade dos captadores de recursos, os cursos que ofereci sobre o assunto,

o exercício mesmo da escrita, tudo isso me levou a uma transformação muito

grande, até pelo fato de perceber que não sou a única a enfrentar grandes

transformações na vida.

Terminado o mestrado, tive a oportunidade de fazer um curso MBA

sobre o Terceiro Setor e pesquisei alternativas que dessem conta das

carências sociais. Escolhi verificar se o Terceiro Setor poderia desenvolver

modelos de atividades de promoção social. Ao pensar em transformações que

fossem emancipatórias, acreditava ainda ser possível traçar modelos,

encontrar soluções. A tendência de pensar dessa forma sustentava-se na idéia

2HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos; tradução: Flávio Beno Siebeneichcheler. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2ª. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). A “identidade pós-convencional”, ou seja, a individuação – uma identidade formada a despeito dos papéis sociais e contra a idéia dos tipos sociais convencionais –, exige autonomia e consciência. Nas palavras do autor: “A ‘necessidade de evitar convenções petrificadas’, impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivíduo com decisões morais próprias e com um esboço individual da vida resultante de um auto-entendimento ético”. (p.217).

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de que parcerias entre as organizações da sociedade civil e os demais setores

poderiam ampliar o impacto de suas ações.

Para aprofundar a idéia de modelo fiz algumas leituras de Hannah

Arendt e Zygmunt Bauman, e continuei também estudando J. Habermas. Essas

leituras me permitiram compreender a dificuldade de sustentar a idéia, mais do

que isso, de defender a idéia de projetos, modelos, receitas, soluções.

Durante o doutorado, continuei lendo diferentes autores, diferentes

linhas de pensamento, construindo olhares múltiplos sobre os temas que

escolhia. Estudei autores modernos, pós-modernos, críticos da Modernidade...

Com eles, dei-me conta, ainda uma vez, da minha luta constante em

permanecer moderna, controlando, produzindo ordem, buscando segurança. E,

claro, fui obrigada a compreender que isso mesmo que buscava era o que

estava em questão. Ou seja, que estamos vivendo um tempo cultural marcado

pela incerteza.

A leitura de autores como H. Arendt, J. Habermas e Z. Bauman, que

trabalham com a idéia de um mundo aberto, foi, passo a passo, me contatando

com a dificuldade de sustentar, nos dias de hoje, a idéia de um projeto

(moderno) baseado em modelos. Esses autores me convidaram a lidar com

indefinições, incertezas e imprevisibilidades.

Hannah Arendt, em seu livro A Condição Humana3, trabalha com os

conceitos de “labor”, de “trabalho” e de “ação”, partindo da idéia de que o

“labor” visa satisfazer necessidades vitais e o “trabalho” visa orientar a

produção de algo. Denuncia a autora que, na Modernidade, ocorreu uma

substituição da “ação” pela “fabricação”. Argumenta que essa substituição

pretendeu libertar a humanidade da imprevisibilidade, só que, ao eliminarmos a

“ação”, eliminamos também a pluralidade e a política. Construímos uma

sociedade ancorada na idéia de “fabricação”: perdemos a espontaneidade e a

imprevisibilidade na relação comum, num espaço comum.

A crítica de Arendt à idéia de modelo aparece quando a autora mostra

que hoje não estamos mais em uma sociedade de “labor”, dando conta de

3 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª. Ed. , Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. (Licensed by The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, USA. 1958).

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nossas necessidades instintivas. Mesmo quando delas damos conta, nós o

fazemos por meio do “trabalho”: é uma sociedade de planejamento, de modelo,

uma sociedade de “fabricação”. Diz Arendt:

“O processo de fazer é inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins. A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela (‘o processo desaparece no produto’, como dizia Marx), e de que é apenas um meio de produzir esse fim. É verdade que o labor também produz para o fim de consumo, mas como esse fim, a coisa a ser consumida não tem a permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do processo não é determinado pelo produto final e sim pela exaustão do “labor power”, enquanto que, por outro lado, os próprios produtos imediatamente voltam a ser meios de subsistência e reprodução do “labor power”. No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é acrescentado ao artifício humano.”4

Já Jürgen Habermas, que propõe uma sociedade autônoma marcada

por “identidades pós-convencionais”, tendo essas identidades não

convencionais como motor da dinâmica social, faz a crítica à idéia de modelo

quando demonstra que, ao partirmos do geral, de um modelo definido a priori

ancorado no universal – pensamento metafísico de Descartes e Kant –,

perdemos a possibilidade de atingir o individual e o particular. É a teoria

dominando a prática: o logocentrismo.

Segundo o autor, a tradição da metafísica, da filosofia da consciência e

da subjetividade equaciona tudo o que há em torno da primazia do geral sobre

o individual. Essa tradição leva-nos a pensar no que existe de comum, de

geral, e não no que existe de individual. Essa crítica à idéia de modelo

consiste, justamente, em pensar que, enquanto estivermos olhando sob a ótica

da primazia do geral, estaremos desvalorizando o individual. Através do

pensamento, subsumimos o singular ao geral, conseguindo apenas ver o

individual como não idêntico.

4 ARENDT, H., op. cit., p. 156.

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Habermas encontra na “guinada lingüística” uma nova forma de unir

individualidade em unidade, pois o pensamento metafísico não nos permite

garantir essa individualidade como singularidade. O filósofo apóia-se nos

conceitos do “Eu” e do “Me” de George Mead, das interações sociais para a

formação de “identidades pós-convencionais”, e no papel do Direito para

normatizar as intervenções não convencionais e torná-las convencionais.

Em uma sociedade constituída por “identidades pós-convencionais”, de

acordo com Habermas, precisamos do Direito para normalizar as intervenções

não convencionais e torná-las convencionais. O processo, porém, não acaba

aí, uma vez que essas novas convenções devem ser questionadas por outras

identidades não convencionais e assim por diante. Identidades não

convencionais estarão sempre propondo novas normas a serem generalizadas

e tornadas convencionais.

Zygmunt Bauman faz a crítica por outro viés: critica a própria ciência

moderna que, ao aliar-se ao poder político, produziu o totalitarismo moderno.

Define o momento atual como “Modernidade Líquida”, ou seja, volátil, fluido,

diferentemente do anterior, que pretendia ser sólido e estável. Discute como o

projeto da Ciência – ordem e transparência – pretendeu (e pretende) “produzir

a realidade” e nos levou (e leva), paradoxalmente, ao alargamento progressivo

do caos e da desordem.

Na Modernidade, com o Iluminismo, pensava-se que a razão poderia dar

conta das incertezas do mundo; pretendia-se, entre outras coisas, acabar com

as mazelas sociais através da “Igualdade, Fraternidade e Liberdade” e, assim,

produzir um mundo transparente, seguro e certeiro.

Segundo Bauman, a promessa de criar a ordem pela Razão e pela

Ciência está nos levando a um novo olhar sobre nós mesmos. Com o

esgotamento do projeto moderno, na pós-modernidade – ou na “Modernidade

Líquida” – somos obrigados a conviver com a ambivalência. A velocidade e as

mudanças impostas pela Modernidade dificultam qualquer tentativa de

acomodação. O risco na pós-modernidade está em permitir que se ressuscitem

ambições de endurecimento, de busca do definitivo, de projetos, de certezas,

de ordem ... contra a ambivalência.

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O imaginário de nossa sociedade dificulta a percepção das contradições

presentes. Hoje percebo que passei muitos anos mergulhada numa coesão

ilusória que mascarava as minhas contradições e as contradições do mundo,

deixando-me protegida dos choques e, portanto, das experiências. É nesse

espaço de abertura, de incertezas que me encontro como pesquisadora:

trabalho com a idéia de pluralidade, diversidade e solidariedade; com a idéia de

uma sociedade aberta que se configura a cada momento por meio de jogos de

forças diferentes.

Como esta apresentação evidencia, estudar, para mim, não obedece

mais a uma experiência acadêmica de titulação; antes, tem me permitido

elaborar as minhas experiências, incorporando os saltos no meu andar – como

sugere W. Benjamim. Hoje consigo ver-me mais inserida no constante

processo de metamorfose e transformação, ou seja, no espírito do tempo – no

Zeitgeist5. E, nele, as identidades são, como propõe Habermas, “pós-

convencionais”.

5 Trata-se de uma expressão criada pelo historiador suíço Jacob Burckhardt para dar conta da mentalidade inscrita no tempo.

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INTRODUÇÃO: O caminho que percorremos

Frente à atual configuração da sociedade brasileira, em que a

desigualdade social vem se caracterizando como algo permanente, e dispondo

de olhares de diferentes pensadores, pretendemos com este trabalho pensar

possibilidades de ações sociais, ações da comunidade e ações de promoção

social – estas sim – de forma mais permanente.

Partimos do pressuposto de que hoje sofremos os efeitos colaterais

causados por um passado ancorado em um sistema social, econômico e

político descomprometido e, de certo modo, irresponsável6 em relação às suas

conseqüências sociais e ambientais a longo prazo. Interessa-nos, neste

momento, pensar o que fazer a partir do que já está posto. Temos clareza de

que o primeiro passo para uma mudança passa pela conscientização de nosso

papel e de nossa responsabilidade em diferentes âmbitos da sociedade; passa

pelo nosso comprometimento7.

6 Por incrível que hoje pareça, uma chaminé de fábrica soltando fumaça, na década de cinqüenta, simbolizava desenvolvimento, progresso, otimismo. 7 Em seu artigo “A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o caribenho”, Luiz Eduardo W. Wanderley confirma a necessidade desse comprometimento, ao analisar uma série de propostas mundiais para solucionar ou ao menos minimizar os efeitos dessa questão social. Diz ele: “A idéia de um compromisso social ativo, a

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As idéias de “compromisso social ativo”, “esperança” e “utopia”,

mudança da realidade social a partir da participação do individuo e do coletivo,

“cidadania” e “solidariedade” estão fortemente presentes neste trabalho.

Na seqüência, apontamos alguns passos que vêm sendo trilhados em

diferentes caminhos e que, somados, poderão ter seus resultados otimizados.

O primeiro caminho tem como pano de fundo as empresas – o setor lucrativo –,

percebemos alguns movimentos que dizem respeito a uma mudança nas

atitudes corporativas frente à sua responsabilidade sócio/ambiental. Neste,

percebemos, de um lado, algumas empresas já existentes, assumindo o

compromisso de arcar com os efeitos colaterais de suas intervenções na

sociedade e no meio ambiente – movimento conhecido como Responsabilidade

Social das Empresas ou, mais recentemente, Responsabilidade

Sócio/Ambiental das Empresas. De outro lado, vemos um esforço no sentido

de criar oportunidades de agir na formação dos novos empreendedores; de

oferecer conhecimento e ferramentas para que esses jovens criem seus

negócios visando, desde o início, tanto um retorno financeiro como um impacto

social positivo.

Em linhas gerais, o primeiro caminho possibilita minimizar – e até frear –

a produção em relação a novos danos sócio/ambientais. Embora este trabalho

não esteja focado nesse primeiro caminho, apresento a seguir algumas

considerações sobre a responsabilidade e o comprometimento das

corporações já existentes em relação ao social, e o esforço de transformar o

papel dos negócios da sociedade.

Desde o início do século XX, registram-se manifestações de

envolvimento de empresas e empresários com ações sociais concretas. Foi na

Europa, nos anos 40, que se viu o primeiro apoio empresarial explícito e

significativo em um manifesto, subscrito por 120 industriais ingleses, que

apontava a necessidade de as corporações atuarem com responsabilidade em

de ter esperança, baseada numa utopia, isto é, a possibilidade da humanidade e dos povos latino-americanos serem capazes de compreender, explicar e mudar a realidade social (...) que integre elementos objetivos e subjetivos, expressa na participação individual e coletiva de transformação social por meio de gestos concretos que cada um pode empreender, na luta cotidiana pela cidadania, na solidariedade com os injustiçados e oprimidos”.7 WANDERLEY, Luiz Eduardo W. “A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o caribenho”.

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relação aos seus funcionários e contribuírem de forma efetiva para o bem-estar

da sociedade.

No final dos anos 60, como represália à Guerra do Vietnã, iniciou-se nos

EUA um movimento de boicote à aquisição de produtos e de ações na bolsa de

valores de empresas que, de alguma forma, estavam ligadas ao conflito bélico

na Ásia. Essas manifestações, aliadas às lutas pelos direitos civis norte-

americanos, trouxeram novos e determinantes fatores para essa questão: a

participação popular, a opinião pública e a cobrança por parte da sociedade de

uma nova postura empresarial.

Nos anos 70, as empresas, com a intenção de divulgar as ações sociais

realizadas, desenvolveram balanços e relatórios dessas atividades. Tais

transformações, no âmbito dessas empresas, relacionam-se a movimentos que

envolvem a sociedade tais como a Marcha pela Paz, em abril de 1967, nos

EUA, com o slogan ‘make love, not war’; e o movimento de Maio de 1968, na

França, com o ‘é proibido proibir’. Outro fator determinante para a entrada das

empresas no universo das ações de caráter social efetivo foi a crise do Welfare

State na metade da década de 70.

No Brasil, no final dos anos 80, algumas empresas começam a atuar em

questões sociais e ambientais. Foi nesse período, também, que assistimos ao

nascimento de importantes fundações, institutos e organizações da sociedade

civil ligados ao meio empresarial, tendo como foco o comportamento

empresarial ético e responsável.

Na década de 90, foram criados prêmios, como o Prêmio Eco

desenvolvido pela Câmara Americana de Comércio, em São Paulo

(AmCham/SP), e algumas iniciativas marcantes, entre elas, a Fundação

Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social, antigo Instituto de

Desenvolvimento Empresarial; o Pensamento Nacional das Bases

Empresariais (Pnbe); o Gife – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas; a

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Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança; a campanha da Ação da

Cidadania. Em 1998, foi criado o Instituto Ethos de Responsabilidade Social. 8

Mais recentemente, presenciamos a entrada de novas disciplinas nas

escolas de administração – Gestão Sócio Ambiental9 –, e a criação de novos

modelos de negócio. A Fundação Artemísia, organização internacional que

está no Brasil desde 2004, investe no formação de jovens empreendedores de

negócios e os apóia na implementação de iniciativas que gerem recursos e

tenham um impacto social em comunidades de baixa renda. Ao investir no

aprimoramento desses novos empreendedores de negócio, socialmente

comprometidos, transforma o papel dos negócios na sociedade. 10

O segundo caminho – trata as feridas sociais e ambientais já existentes,

bem como amplia oportunidades de inclusão – remete-nos a uma determinada

figura social que colabora com a construção de uma sociedade emancipatória.

Assistimos também hoje, um movimento significativo de soma de forças,

saberes e recursos na direção de ampliar os impactos das ações sociais. Um

caminho que se vale da: “a sinergia entre instituições financeiras de fomento,

instituições de apoio tecnológico, de formação profissional, setores da

academia, organizações da sociedade civil e outros atores do processo.” A

chamada inter-fertilização11 das iniciativas da área da economia social.

Essa figura social – em alguns casos, como veremos nas entrevistas –

reconhece-se como fellow da Ashoka, fundação internacional sem fins

lucrativos, fundada em 1981 pelo norte-americano Bill Drayton, que tem como

missão contribuir para criar um setor social empreendedor, eficiente e

globalmente integrado. A Ashoka identifica e investe em indivíduos com idéias

inovadoras, criatividade e determinação para provocar mudanças sociais

positivas e de alto impacto social. Os fellows da Ashoka atuam em diferentes

8 Material desenvolvido a partir do Capítulo 2 "Responsabilidade social das empresas e balanço social no Brasil". TORRES, Ciro. Um pouco da história do Balanço Social, dissertação de mestrado disponível em: http://www.balancosocial.org.br/media/ART_2002_RSE_Vertical.pdf - Acesso em: 19 agosto 2007. 9 Disciplina oferecida pela Profa. Liége Mariel Petroni – MBA - FIA 10 Fundação Artemísia, www.artemisiafoundation.org. 11 Fonte: DOWBOR, Ladislau “Redes de apoio ao empreendedorismo e tecnologias sociais” – 23 de Novembro de 2004

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áreas: meio ambiente, educação, saúde, direitos humanos, desenvolvimento

econômico e participação cidadã. A Ashoka selecionou mais de 1.700

empreendedores sociais em todo o mundo e está presente em 62 países. No

Brasil, desde 1986, já selecionou e apoiou mais de 264 empreendedores

sociais.

Decidimos, assim, entrevistar algumas dessas figuras sociais da Ashoka

e conhecer suas vidas, suas travessias, suas experiências. Buscamos

compreender essas pessoas e verificar em que medida estão colaborando com

o desenvolvimento de práticas sociais de forma mais permanente.

Passamos agora a discutir alguns pontos do “método (caminho)

autobiográfico” ou de narrativas de “histórias de vida”. Muito embora, hoje, o

chamado “método autobiográfico” tenha se tornado bastante disseminado e a

bibliografia em torno dele seja imensa, não faremos uma discussão sistemática

dessa bibliografia; antes, partiremos de Michael Erben, pois sua proposta,

definitivamente, casa-se com os nossos interesses. 12 Este autor vale-se de

uma teoria da interpretação – a Hermenêutica – ao propor que a narrativa da

“história de vida” seja lida como um texto a ser interpretado. Sua proposta é

marcada pela articulação entre a experiência pessoal e a experiência social

e/ou cultural.

A proposta de Erben é que não haja separação entre a estrutura social e

a subjetividade uma vez que é a dialética entre o social e o individual que

interessa. Não por acaso, a vida pesquisada apresenta-se como uma “rede de

significados” (comportamentos, convicções, crenças) na qual, não raro, está

inserido também o pesquisador que a está interpretando.

O estudo de uma vida é o estudo de uma viagem no tempo, com

acontecimentos e encontros em grande parte imprevisíveis. Como ficará claro

no decorrer do trabalho, para os nossos entrevistados essa abertura para o

imprevisível, que o método propõe, é pertinente.

12 ERBEN. Michael. ¨Biografia e autobiografia. Il significato del método autobiografico¨. In.: Il método autobiográfico. Semestre sulla condizione adulta e processi formativi . Milano, Edizione Angelo Guerini e Associati, 1996.

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Aqui, vamos nos apropriar da articulação entre o pessoal e o cultural de

uma maneira toda especial. Esta apropriação só agora pôde ser pensada e

tecida, pois quando começamos a fazer as entrevistas abertas, colhendo as

narrativas dos nossos sujeitos da pesquisa, tínhamos alguma idéia, é claro, do

que buscávamos; e, todavia, como é comum na pesquisa qualitativa, nos

surpreendemos a cada passo com o que escutávamos. Nossos entrevistados

fugiam à regra: escapavam daquilo que imaginávamos encontrar; não se

configuravam de maneira tradicional, se levarmos em conta os agentes do

social, quero dizer, os indivíduos que interferem no social buscando

transformá-lo. Foi esse espanto que nos levou a uma apropriação particular do

método autobiográfico.

Ao partir do “círculo hermenêutico”13, Erben propõe a articulação entre o

pessoal e o cultural. Entretanto, nossas narrativas apontavam insistentemente

que essa articulação aparecia claramente no momento mesmo em que eclodia;

quero dizer, as narrativas nos chamavam para o momento originário dessa

articulação. Momento originário que fazia emergir, no mesmo movimento, um

determinado tipo de figura social e um determinado tipo de proposta social.

Dirigíamos nossa escuta para esse momento. As narrativas insistiam nesse

momento, momento de espanto para os próprios entrevistados, momento em

que depositamos nossa atenção, escuta, emoção e reflexão.

Para não trairmos a escuta que fazíamos de nossos entrevistados,

tivemos de aceitar, assim, um outro desafio: conciliar as contribuições teóricas

de Jürgen Habermas com um método de pesquisa14 que nos permitisse ir a

campo. Essa aproximação, todavia, não foi simples, pois exigiu cuidados e

discriminação. Não estamos supondo uma justaposição ingênua e a-crítica

entre esses diferentes campos teóricos e, todavia, não pudemos prescindir de

um instrumento metodológico para ir a campo15. Mantivemos, então, ecoando,

13 O chamado “círculo hermenêutico” é uma das contribuições fundamentais da Hermenêutica; nele, as partes e o todo se articulam, e não é possível conhecer a parte fora do contexto em que se situa. 14 MEAD, G.H. Mind, self & society. Chicago: University of Chicago Press, 1934. 15 De acordo com a Linha de Pesquisa “Identidade social como metamorfose humana”, do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa ... “podemos identificar, em linhas gerais, três grandes períodos históricos: o metafísico (ou ontológico), o epistemológico ( ou transcendental) e o semântico-hermenêutico (ou da filosofia da linguagem)”. A pesquisa, que conta com a abordagem teórica a partir de J. Habermas, e com o método autobiográfico com base na hermenêutica está de acordo com esse “terceiro período”. Aliás, como o próprio Ciampa nos permitiu compreender, a “filosofia hermenêutica e a analítica formam tradições menos concorrentes do que complementares”. Volto a citar Ciampa longamente: ... ¨O terceiro período ( filosofia contemporânea) surge da constatação óbvia de que somos seres lingüísticos, pois usamos a

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as proposições teóricas de J. Habermas com um método que valoriza

sobremaneira o “mundo da vida”. O método autobiográfico – um método antigo

que já esteve presente em outros momentos, indica-nos caminhos para

compreender as “identidades pós-convencionais”, tal como propõe Habermas,

dos nossos sujeitos de pesquisa, bem como o sentido emancipatório dessas

experiências sociais. Para a compreensão dessas “identidades pós-

convencionais”, fizemos uma escuta que valorizou as travessias, passagens,

transformações, metamorfoses de nossos entrevistados e de suas experiências

sociais.

Trabalhamos aqui não com um conceito abstrato dos nossos

entrevistados e/ ou das experiências sociais que foram e estão sendo

implementados; muito pelo contrário, facilitamos que nossos entrevistados

saltassem de seu entorno, narrando o momento originário de sua constituição.

Procuramos trazer à tona como nossos entrevistados vêem, sentem e

interpretam esse momento, tendo clareza de que eles não só fazem a escuta

do “mundo da vida” como são produto desse mesmo “mundo da vida”.

Buscamos compreender os sujeitos da pesquisa a partir de suas

motivações, seus desejos, sua capacidade de escuta interessada do “mundo

da vida”. O que mais nos chamou a atenção nas narrativas colhidas foi o

imprevisível configurando novas possibilidades. É a isto que estamos

chamando de momento originário16 e nele o sentido da experiência que, aos

poucos, se revelava para os próprios entrevistados – o que ficará claro quando

entrarmos nas narrativas. É interessante ressaltar que nossos entrevistados

ainda contam o nascer de suas experiências com emoção, com afeto pelas

linguagem como condição para produzir e transmitir conhecimentos. A ´linguagem´ surge como problema, de forma que passamos a ter um discurso sobre a linguagem ou um discurso sobre discursos. Neste período, pode-se falar em duas tradições: a analítica e a fenomenologia-hermenêutica.” É a partir dessas duas tradições que Habermas vai desenvolver a pragmática da linguagem, uma terceira posição. “Ainda que não seja simples distinguir essas tradições, a sugestão é considerar no problema a diferença entre a questão do ´valor de verdade´(verdadeiro-falso) e a questão do ´sentido´( o que significa o que é dito) de um enunciado. O sentido de um enunciado é independente de seu valor de verdade, mas isso não ocorre no caso inverso: o valor de verdade de um enunciado não é independente de seu sentido. Num primeiro caso, atribuir um valor de verdade, trata-se de ´conhecer´( descrever, explicar); no segundo, captar sentidos, trata-se de ´entender´(compreender). Entender um enunciado é uma condição necessária de todo conhecimento daquilo que ele diz. Assim, pode-se dizer que a passagem do período epistemológico para o semântico centraliza-se na antecedência lógica da questão do significado em relação à do conhecimento. A semântica ocupa o lugar central que a teoria do conhecimento ocupava¨.

16 Nome que “inventamos” para descrever o momento em que as figuras sociais que estudamos escutam os apelos do “mundo da vida” e se instituem como tal.

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pessoas que lhes indicaram os novos caminhos. Fomos obrigados a fazer a

escuta desse momento originário porque, até hoje, já passados alguns anos, os

nossos entrevistados mostram-se afetados por acontecimentos que chegaram

não se sabe de onde e os repropuseram em uma nova perspectiva.

Ora, quando vamos em busca do sentido e do significado das

experiências, estamos em pleno “círculo hermenêutico” – cruzamento da

experiência pessoal e da experiência social –, pois estamos apreendendo o

sentido e o significado no contexto. O método em questão não busca a verdade

e, sim, o sentido e o significado das experiências.

Pretendemos captar o sentido que está presente na textura da vida dos

nossos entrevistados, levando em conta que o pesquisador também é parte do

mesmo contexto social e cultural dos pesquisados, e a narrativa que daí resulta

deve ser vista como apenas uma das possíveis narrativas.

Este trabalho, despretensiosamente, oferece apenas um olhar, uma

fotografia, uma imagem, entre tantas outras possíveis, dos sujeitos

pesquisados, na busca de espaços emancipatórios. O trabalho de pesquisa – e

este em particular – é uma possibilidade, uma perspectiva, um olhar, uma

visada e, guardadas as devidas proporções, poderíamos metodologicamente

compará-lo com uma das pinturas de Monet: A Ponte. Sempre a mesma, a

ponte sofria, porém, diferentes visadas do pintor. E, se outros pintores

pudessem pintá-la, a mesma ponte sofreria ainda novas visadas.

Isso nos coloca diante da idéia de mutabilidade do olhar, do devir17,

diante da idéia de que a nossa própria narrativa, refiro-me a esta tese, é uma

entre outras, é uma perspectiva possível. Isso, porém, não significa cair no

subjetivismo, pois estamos ancorados em uma des-construção, contamos com

uma perspectiva metodológica, com rigor, porém não o rigor do pensamento

puro cartesiano de uma verdade única, que produz o mundo. Antes, nossa

narrativa reinsere o pesquisador no contexto social e cultural, reinsere o

pesquisador no “mundo da vida”.

17 Não pretendo aqui excluir a idéia de mudança do próprio sujeito observado, apenas não a estou considerando.

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Como apoio teórico para este estudo nos servimos também do conceito

de “emancipação”, e apresentamos como o tema vem sendo tratado por três

diferentes pensadores considerados modernos e pós-modernos: Jürgen

Habermas, Zygmunt Bauman e Boaventura de Souza Santos.

Esses autores, muito embora partam de filiações teóricas diferentes,

localizam a importância de redefinir o sentido de emancipação. Para

Habermas, a redefinição de emancipação está ligada à “razão comunicativa” e

às “identidades pós-convencionais”. Para Bauman, esta redefinição está ligada

à política com P maiúsculo, já que o privado invadiu o público. Para

Boaventura Santos, a emancipação há de ser concreta, então é preciso

recuperar e fortalecer as racionalidades locais e o que, o autor denomina as

“mil comunidades interpretativas”. Esse capítulo, cuja elaboração é bastante

pontual é central para o argumento da tese. A redefinição do sentido da

emancipação no atual momento nos permite, exatamente, pensar os

entrevistados em nova direção e apostar no título que demos à tese. Essa

discussão é apresentada no capítulo 1.

J. Habermas, mais do que os outros autores, inspirou-me, inquietou-me

e acabou por oferecer-me caminhos. Detive-me em alguns de seus escritos: “O

Pensamento Pós-metafísico”; “A ética da discussão e a questão da verdade”,

um debate sobre a obra Verdade e Justificação, e alguns comentários de

Claude Piché: “A passagem do conceito epistêmico ao conceito pragmatista de

verdade em Habermas “.

Em linhas gerais, a teoria de Habermas descreve uma sociedade

dividida em dois grandes mundos18: o “mundo da vida” e o “mundo sistêmico”,

dois mundos com racionalidades diferentes. O “mundo da vida”, regido pela

“razão comunicativa” orientada pela lógica da solidariedade; e o “mundo

sistêmico” regido pela “razão instrumental” e dividido em dois subsistemas: o

Governo, orientado pela lógica do poder, e o Mercado orientado pela lógica do

18 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos; tradução: Flávio Beno Siebeneichcheler. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2ª. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988)

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lucro. A compreensão desses diferentes mundos com suas diferentes lógicas

permitiu-me analisar e pensar as questões sociais.

Um outro aspecto do pensamento de Habermas, importante para esta

pesquisa, é a crítica à identidade convencional partindo do sujeito cartesiano.

O filófoso, ao criticar a metafísica moderna, vale-se da chamada “guinada

lingüística” e, então, discute o sujeito a partir da “intersubjetividade”. Para ele,

ao recuperar a teoria da subjetividade de George Mead, o sujeito fala e age

sempre em diálogo com outros sujeitos que se mostram. Habermas propõe

uma sociedade autônoma marcada por “identidades pós-convencionais”.

Afirma, ainda, – o que também me interessou sobremaneira – que uma

racionalidade apoiada na relação entre indivíduos, a “racionalidade

comunicativa”, poderia retirar a Filosofia da posição de prestar serviços à

Ciência e colocá-la no lugar de mediadora entre a Ciência e “mundo da vida”.

Propõe, assim, o “filósofo poliglota”, aquele capaz de fazer a escuta do “mundo

da vida”, de ouvir as reivindicações da comunidade e levá-las aos outros

mundos. Essa discussão constitui o capítulo 2.

No capítulo 3, apresentamos a Ashoka, organização internacional que

apóia nossos entrevistados, e depois brincamos com a idéia de como nomeá-

las.

Toda a bibliografia que consultamos insiste em nomear nossos

entrevistados de empreendedores sociais, militantes sociais, lideres sociais. O

nome é muito importante, pois ele nos direciona para um campo de significação

que também é afetivo, imaginativo, volitivo. Dar um nome é criar um mundo.

Os nomes tradicionalmente atribuídos aos nossos entrevistados,

definitivamente não nos satisfizeram e, então, no presente capítulo, buscamos

desconstruir as nomeações dadas, e localizar um novo nome mais afim com a

novidade que suas práticas e suas personalidades encerram.

Para servir de apoio na interpretação das entrevistas, apresentamos

também o que alguns pensadores têm a dizer sobre a re-valorização dos

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saberes locais, a valorização do “mundo da vida”, e sobre a força motivadora

do desejo.

No capítulo 4, narramos o momento originário, o nascimento dessas

figuras sociais, a partir mesmo da escuta das reivindicações do “mundo da

vida”. Mostramos que nossos quatro entrevistados, mais do que receptores de

uma inspiração, mais do que portadores de uma idéia genial, foram impactados

pela escuta que fizeram, e foi a partir do abalo desses impactos que emergiram

experiências sociais inovadoras. Fomos atrás do momento do espanto, daquilo

que deu origem a uma nova questão, refiro-me, à experiência social que essas

figuras sociais ajudaram a gestar.

Mostramos que, embora elas já tivessem realizado muitas coisas, algo

fez com que dessem entrada nesse novo mundo que, então, se tornou seu

mundo. Apontamos que essas figuras sociais nascem junto com o próprio

projeto social, junto com a própria escuta que estão fazendo.

No capítulo 5, descrevemos as travessias dessas figuras sociais na

realização de seus projetos, e destacamos a pluralidade de suas mentes. Vale

dizer, tem múltiplos interesses e, então, estão longe de uma vocação linear.

Recusam a profissionalização e se mostram abertos para o inusitado.

Aprendem com o outro, com a vida, coma os impasses. Estar com o outro, criar

mundos com o outro, parece ser vocação. São grandes tradutores de mundos:

traduzem um mundo para o outro: o mundo da vida para a política, o mercado

e as ongs. São poliglotas sociais. São também grandes mediadores entre-

mundos. Convivem e se deixam tocar pelo sofrimento, pelo sombrio, pelo

tenebroso. Aprendem também com isso.

São capazes de escuta e, por isso aprendem. Essa é a característica

marcante da qual as outras derivam. São plurais e inseparáveis: “identidades

pós-convencionais”, no melhor sentido habermasiano.

Finalmente, na Conclusão, nos perguntamos se essas figuras sociais

incapturáveis, além de construírem brechas emancipatórias não estão também

construibuindo para se pensar em uma mudança na cultura política

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propriamente dita. Uma cultura política em que está presente a força da

sociedade civil, a iniciativa dos cidadãos na implementação de experiências

criativas e o florescimento de novos – na verdade antigos, mas esquecidos –

sentimentos sociais: a solidariedade, a compaixão, a felicidade pública. Uma

sociedade composta por identidades pós-convencionais.

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CAPÍTULO 1 – A emancipação : localizando brechas

Neste trabalho, verificamos que o espaço em que as figuras sociais

atuam pode ser considerado uma fenda no sistema excludente e produtor de

desigualdades que nos cerca. Essa fenda pode ser, também, um espaço para

alternativas de transformação da sociedade. Nossa pesquisa, atenta ao dizer e

ao fazer dessas figuras sociais, deu particular atenção às brechas

emancipatórias aí inscritas, e aos novos valores que daí emergem na

sociedade: solidariedade, autonomia, emancipação.

Com a intenção de conhecermos um pouco do que se pensa sobre

emancipação, apresentamos neste capítulo alguns olhares sobre o tema.

Mostramos como o conceito de emancipação vem sendo tratado por diferentes

autores, considerados modernos e pós-modernos, divergentes entre si.

Apresentamos como Jürgen Habermas, filósofo alemão, redefine a questão da

emancipação; o que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, entende por

emancipação na “Modernidade Líquida”, e o que significa “emancipação

concreta” para o sociólogo português Boaventura de Souza Santos.

Embora tenha iniciado seu trabalho com a Teoria Crítica, o projeto de

Habermas vai além: pretende compreender o mundo contemporâneo e

(re)pensar a Modernidade. A proximidade da teoria de Habermas com a Teoria

Crítica está no fato de buscar uma compreensão crítica da Modernidade, como

se ela própria prestasse contas criticamente para si mesma, sobre si mesma.

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Assim pensando, Habermas faz emergir, ainda uma vez, as condições

necessárias para a formação de indivíduos e de uma sociedade autônoma,

livre e emancipada. Para Habermas, o processo de modernização e a

racionalidade instrumental ameaçam um tipo de interação social; e dessa

interação e de sua preservação depende a possibilidade de se construir, para

os indivíduos, identidades livres e, então, escolhas de projetos de vida.19

No livro Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, publicado em

198820, Habermas defende a necessidade de se repensar o que se

compreende por Razão, e sua compreensão a partir da linguagem. Nesse

sentido, aponta uma nova racionalidade, apoiada na relação entre indivíduos: a

“racionalidade comunicativa”. Propõe, assim, a “Teoria da Ação Comunicativa”,

que se preocupa com a liberdade individual, com a autonomia e com a

emancipação. Aponta, então, caminhos e as condições necessárias para a

constituição de um indivíduo autônomo e emancipado. “Ação comunicativa”,

para Habermas, é a ação orientada para o entendimento e pressupõe que,

embora os planos de ação sejam individuais, sua realização depende do outro,

da cooperação e das influências que gera no outro.

Vivemos em um mundo onde temos uma pluralidade de projetos de vida,

defensáveis e legítimos, e existe um espaço muito grande para que cada um

possa definir o seu. Porém, existem algumas condições necessárias para que

se possa escolher livremente o seu projeto, não é qualquer coisa que vale,

algumas condições devem ser cumpridas.

Afirma o filósofo que a coordenação dos planos individuais deve ser

mediada por um entendimento, por um consenso sobre as normas que vão

governar a interação. Essas normas devem atender algumas “pretensões de

validade”: a) “verdade” dos conteúdos proposicionais; b) “inteligibilidade” das

emissões ou manifestações; c) “veracidade” da intenção dos sujeitos

implicados; d) “justeza” ou “retidão” das normas subjacentes à situação de fala.

19 “Visão panorâmica da obra de Habermas”. Texto elaborado por RenataBrunetti, na época mestranda em Psicologia Social do Núcleo de Identidade da PUC-SP, a partir de uma conversa com o Prof. Luis Schwarcz, julho de 2002. 20 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução: Flávio Beno Siebeneichcheler. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2ª. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988), p. 217.

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Existem diversos universos de normas: normas de conduta, normas

gramaticais, normas que regulam o uso correto de uma expressão. Muitas

vezes, elas não estão explícitas em lugar algum: dependem do contexto. Em

toda avaliação, crítica ou julgamento há uma norma pressuposta. Ao agirmos

comunicativamente, estamos pressupondo que algumas normas estão sendo

satisfeitas, por exemplo, a “sinceridade” dos participantes, a “legitimidade” das

normas que governam a interação, a “verdade” das premissas. De fato e

dependendo do tipo de interação, o peso recai numa ou noutra dessas

pretensões. Para Habermas, o que importa é que essas normas existam, para

que se possa constantemente fazer críticas sobre a violação delas e de suas

causas. Ao concretizar esses pressupostos, em qualquer contexto, por menos

significativo que seja, a utopia da comunicação está sendo concretizada -

seriam fragmentos de emancipação21.

Para este autor, são os indivíduos no “agir comunicativo” que podem

promover mudanças na sociedade, a partir do “mundo da vida”. São mudanças

que se formalizam no Direito, e que, ao serem questionadas pelas identidades

não convencionais, são re-propostas em uma nova norma. O filósofo propõe

uma sociedade autônoma marcada por “identidades pós-convencionais”, sendo

essas identidades não convencionais o motor da dinâmica social.

Habermas, europeu que viveu o Estado do pós-guerra, mostra-se muito

cético em relação à capacidade do Estado de garantir a emancipação das

pessoas e a liberdade individual. Propõe uma sociedade autônoma que se

constrói intersubjetivamente e marcada por “identidades pós-convencionais”.

Estas se baseiam numa racionalidade de procedimento, não se apóiam em um

conteúdo determinado; pressupõe autonomia e levam a um processo ético

abrangente, uma vez que o indivíduo terá de fazer escolhas. Afirma o autor:

“A ‘necessidade de evitar convenções petrificadas’, impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivíduo com

21 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico; tradução: Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, SP: Brasiliense, 1983 (ETAS Libri, Milão, 1979 – Editora Suhrkamp, Frankfort/Meno, 1976)

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decisões morais próprias e com um esboço individual da vida resultante de um auto-entendimento ético”.22

A idéia da autoconsciência e da auto-referência são questionadas, pois

só podemos nos constituir contando com a experiência e o reconhecimento do

outro. Segundo Habermas:

“O Selbst23 da auto-relação prática não pode certificar-se de si mesmo numa reflexão direta: ele precisa partir da perspectiva de outros; e isso vale não somente do Selbst como ser autônomo, mas também como ser individuado. Neste caso, eu não dependo do assentimento deles a meus juízos e ações, mas do reconhecimento, por parte deles, de minha pretensão de originalidade e de insubstitubilidade.”24

Para Habermas, evitar convenções petrificadas implica em

sobrecarregar o Eu, que contraria o Me, ou seja, primeiro o Eu se forma a partir

do Me e depois se individualiza criticando-o e contrapondo-se a ele. Na

identidade pós-convencional temos o Eu em oposição ao Me, e na identidade

convencional temos o Eu de alguma maneira subsumido ao Me. Na identidade

convencional o Me, que é esse Eu generalizado, tem a primazia, já numa

identidade pós-convencional o Eu tem a primazia. Ainda Habermas:

“Deste modo, a relação entre Eu e Me continua sendo a chave para se analisar também a identidade-eu, pós-convencional e socialmente suposta. Neste nível, porém, inverte-se a relação de ambos”.25

Quando nos vemos em uma sociedade constituída por “identidades pós-

convencionais”, de acordo com Habermas, precisamos estar sempre propondo

novas normas a serem generalizadas. Uma posição decidida em consenso, em

uma interação comunicativa, pode se transformar em norma por incorporar

bons argumentos. Entretanto, se for transformada em norma jurídica, passa a

ter uma força de coerção maior. Essa é uma das razões do Direito ocupar um

lugar tão importante na teoria de Habermas. O Direito, para o filósofo, tem a

função de mediar os mundos: o “mundo da vida”, governado por ações

22 HABERMAS, Jürgen. op. cit. p. 217. 23 Selbts é a mesma coisa que self: algo em torno do si mesmo da consciência, o todo da consciência. 24 HABERMAS, J. op. cit. p. 220. Contamos aqui com a boa vontade do leitor nesse momento, já que a discussão que esboçamos aqui em torno das identidades pós-convencionais (Eu e Me) só ganhará consistência no capítulo seguinte. 25 HABERMAS, J. op. cit., p. 221.

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comunicativas, e o “mundo sistêmico”, da burocracia estatal e da economia de

mercado – governado por ações estratégicas e instrumentais e regulado pelas

normas.

O filósofo alemão interpreta a Modernidade como um processo maciço

de institucionalização da razão instrumental e estratégica; e, também, como o

momento em que a Filosofia perde a posição hegemônica em relação às

ciências, e passa a servir à Ciência. Partindo dessa crítica, Habermas propõe

alterar o lugar e o papel da Filosofia: a “racionalidade comunicativa” poderia

retirá-la da posição de prestação de serviços à Ciência para dar-lhe o lugar de

mediadora entre a Ciência e o “mundo da vida”. Tanto quanto a discussão da

questão do desenvolvimento do sujeito, também aquela a respeito do

desenvolvimento da sociedade aparece como relevante e indispensável para o

estudo da identidade como processo de metamorfose26.

Z. Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra desde 1971, é

considerado um dos líderes da chamada Sociologia Humanística. Em seu livro

Modernidade Líquida27, revê os cinco conceitos que compõem as narrativas da

condição humana: a emancipação, a individualidade, o tempo/espaço, o

trabalho e a comunidade. Esses conceitos sempre estarão presentes no que o

autor entende por condição humana, embora possam se transformar, sofrer

redefinições, deslocamentos sensíveis. Meu interesse incide sobre a

compreensão do conceito de emancipação na Modernidade Líquida que difere

da emancipação na Modernidade Sólida.28

A ênfase do autor recai sobre o conceito de espaço e tempo; na Modernidade Líquida, tempo/espaço dissociaram-se da prática da vida e também entre si; o tempo tornou-se instantâneo. O projeto do “Panóptico” –

26 Sob a perspectiva do paradigma da Filosofia da Linguagem, essas duas questões, ao serem tratadas

lingüisticamente, tornam-se fundamentalmente a questão do sentido do desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, que pode ser discutida (aqui de forma genérica e talvez esquemática) como a questão do sentido de emancipação humana, que aparece nas idéias de ‘vida boa’ ou de ‘uma vida que merece ser vivida’ (como discussões filosóficas sobre ética e moral) e nas idéias de ‘políticas de identidade’ ou ‘identidades políticas’ (como discussões políticas sobre formação de identidades e integração na sociedade de indivíduos e coletividades). Daí esta proposta de uma linha de pesquisa que pode ser indicada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação. CIAMPA, Antonio da Costa. “Identidade como metamorfose humana” - Anotações sobre “fundamentos filosóficos” da Linha de Pesquisa, para sistematizar a abordagem teórica adotada (02.03.05).

27 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Tradução de Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 28 Bauman considera Modernidade Líquida a modernidade atual, e a modernidade sólida a que nos precede.

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visibilidade do todo – de Jeremy Bentham29, apropriado por Michel Foucault, serve perfeitamente como metáfora moderna. Afirma Bauman decifrando esta metáfora:

“O domínio do tempo era o segredo do poder dos administradores – e imobilizar os subordinados no espaço, negando-lhes o direito ao movimento e rotinizando o ritmo a que deviam obedecer era a principal estratégia em seu exercício do poder.”30

Na Modernidade Líquida, o poder se tornou extraterritorial, não mais

limitado, nem desacelerado pela resistência do espaço. Não importa quem dá a

ordem, diferentemente da técnica de poder do Panóptico, que pressupunha

que os encarregados estivessem na torre de controle. Nas relações de poder

da era pós-panóptica, as pessoas que operam o poder podem ser inacessíveis,

não precisam estar presentes. Essa época torna-se, assim, o fim de uma era

de engajamento mútuo. Tal dissociação de tempo/espaço, na era pós-

panóptica, implica uma ruptura dos laços, pois cultivar vínculos, laços de

compromisso, impede o salto para novas oportunidades que surgem em

diferentes lugares.

A desintegração da rede social, como diz Bauman, é tanto condição

quanto resultado da nova técnica de poder. O mundo doravante deve estar livre

de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas para que o poder tenha liberdade de

fluir. A era pós-panóptica não suporta rede densa de laços sociais,

principalmente aquela que esteja enraizada territorialmente.

Outro dos cinco conceitos que compõem as narrativas ortodoxas da

condição humana é a emancipação. Este conceito será também re-significado

na Modernidade Líquida.

A Modernidade, diferentemente das demais formas históricas de

convívio humano, caracteriza-se, de um modo geral, pelo uso da razão na

busca incessante da modernização, do aperfeiçoamento. A marca da

Modernidade é a apresentação dos membros da sociedade como indivíduos,

em uma incessante “individualização”: uma produção tecnológica de

individualização com produtos e artigos individualizados. Individualizar-se 29 Filósofo, economista e legislador inglês que viveu no século XIX. 30 BAUMAN, Zygmunt. op. cit. p. 17.

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significava emancipar o indivíduo das corporações, da família, do todo. Para

Bauman, emancipação, na Modernidade, é definida pela busca de autonomia

através da razão; tanto pelo indivíduo como pela sociedade. Em suas palavras,

“A modernidade pesada era, afinal, a época de moldar a realidade como na arquitetura ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser ‘construída’ sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais que tudo projetada antes a construção.”31

Os últimos vinte anos, ou seja, a Modernidade Líquida, não é menos

moderna que a fase anterior, porém tem uma forma diferente de ação. A

Modernidade Líquida traz um novo significado para individualização.

Individualizar-se passa a significar

“transformar a identidade humana de um ‘dado’ em uma ‘tarefa’ e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização.”32

Por exemplo, não basta mais ter nascido em determinada classe social,

é necessário viver como membro dessa classe33.

Na Modernidade Líquida, a emancipação é caracterizada pela fluidez, é

incansável em se re-propor. Nela, uma das chaves do projeto de emancipação

seria, então, o indivíduo passar de indivíduo “de jure” (uma promessa) para o

indivíduo “de facto”. Na Modernidade Líquida a identidade não está posta, ela

se faz, se constrói. Bauman afirma que nela há um crescente abismo para que

um indivíduo “de jure” se torne um indivíduo “de facto”. Nas palavras do autor:

“Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais..,” (...) Transpor o abismo é a tarefa da Política com P maiúsculo.”34

Bauman supõe que esse abismo tenha crescido em função mesmo do

esvaziamento do espaço público, especialmente da ágora: lugar em que os

31 BAUMAN, Z., op. cit. p. 58. Seu termo ‘pesada’ significa ‘sólida’. 32 BAUMAN, Z., op. cit. p. 40. 33 A idéia de “dado e dar-se”, de uma identidade que pode se transformar, uma identidade que aprendeu a se metamorfosear. CIAMPA, A.C. A estória do Severino e a história da Severina, um ensaio de Psicologia Social. 6a. reimpr. São Paulo, SP: Brasiliense, 1998 (1a. ed.1987 - 2005). 34 BAUMAN, Z., op. cit., pp. 49 e 49.

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problemas privados são traduzidos em questões públicas e soluções públicas

são acordadas e negociadas.

A sociedade que entra no século XXI produz um eterno desconforto pela

insaciável sede de destruição criativa ou criatividade destrutiva, ou seja,

desmantela, destrói, reduz tudo em nome de um novo e aperfeiçoado projeto,

em nome da produtividade e da competitividade. E, todavia, há diferenças

entre o que Bauman nomeia de Modernidade Líquida e a Modernidade

enquanto tal. Segundo ele,

“A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados...”35

Na Modernidade propriamente dita, o indivíduo queria ser racional:

“penso logo sou”; e ele tinha um telos, sabia aonde queria chegar. Já na

Modernidade Líquida, não há um telos a ser alcançado, o indivíduo está

sempre se re-propondo, é uma tarefa e não sabe aonde quer chegar. A idéia

de uma sociedade justa, ideal por excelência da primeira fase da Modernidade,

fracassou.

Na Modernidade Sólida, o grande medo era que o público invadisse o

privado, o medo do totalitarismo; em relação às demandas coletivas políticas –

para que a emancipação fosse possível – montava-se uma agenda coletiva de

interesses. Na Modernidade Líquida, por sua vez, houve uma inversão, pois,

nos últimos 20 anos, o espaço privado passou a invadir o público – uma outra

chave para compreender o conceito de emancipação. Para que esta seja

possível na Modernidade Líquida, preservando as características centrais da

condição humana, é necessário que o privado crie uma agenda pública,

coletiva e, portanto, política.

Outra diferença entre a Modernidade Líquida e a primeira fase da

Modernidade refere-se a um deslocamento de ênfase no desenvolvimento

político e ético. Embora a idéia do aperfeiçoamento pela ação legislativa não

35 BAUMAN, Z., op. cit., p. 37.

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tenha sido abandonada, ela deslocou-se para a auto-afirmação do indivíduo:

“uma realocação do discurso ético/político do quadro da ‘sociedade justa’ para

o dos ‘direitos humanos’...”36 Um discurso voltado ao direito de o indivíduo ser

diferente de outro e poder escolher seus próprios modelos de vida e de

felicidade. Não há mais um líder para dizer o que fazer e se responsabilizar

pelas conseqüências de seus atos:

“no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro exemplo.”37

Buscar a emancipação humana na Modernidade Líquida seria, então,

ligar as margens desse abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo “de

jure” e a perspectiva do indivíduo “de facto”, ou seja, buscar que o indivíduo se

reaproprie das ferramentas perdidas da cidadania, melhor dizendo, recupere o

cidadão que o habita. Nas palavras do autor,

“Hoje a tarefa é defender o evanescente domínio, ou, antes, reequipar e repovoar o espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos os lados: a retirada do ‘cidadão interessado’ e a fuga do poder real para um território que, por tudo que as instituições democráticas existentes são capazes de realizar, só pode ser descrito como um ‘espaço cósmico’.”38

Para Bauman, e para a teoria crítica revisitada – que este autor, como

discípulo dos frankfurtianos, representa –, foi o sentido atribuído à

emancipação que ficou obsoleto, não a tarefa da emancipação humana em si.

Esta passa pela articulação do indivíduo “de jure” se transformando em

indivíduo “de facto”, e pelo espaço privado, que ganhou preponderância

rearticulando-se com o espaço público. A grande dificuldade está em traduzir

os problemas privados em questões públicas.

Boaventura de Souza Santos, nascido em 1940, doutor em Sociologia

do Direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de

36 BAUMAN, Z., op. cit., p. 38. 37 BAUMAN, Z., op. cit., p. 39. 38 BAUMAN, Z., op. cit., p. 49.

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Coimbra, no livro Pelas mãos de Alice39 faz uma crítica à Modernidade por um

viés específico. Parte da idéia de que a Modernidade conta com dois pilares: o

pilar da regulação e o pilar da emancipação. No pilar da regulação, estão o

Mercado, o Estado e a Comunidade; no pilar da emancipação, três tipos de

racionalidade: a racionalidade ligada à arte, a racionalidade moral e prática e a

racionalidade cognitiva.

Para este pensador, esses dois pilares estão em crise, pois no da

regulação o Mercado sobrepujou o Estado e a Comunidade, e no pilar da

emancipação, a racionalidade cognitiva sobrepujou as demais racionalidades.

Além disso, o próprio pilar da regulação sobrepôs-se ao da emancipação:

“Há, pois, que verificar uma situação, e esta é basicamente que o pilar da emancipação se transformou no duplo do pilar da regulação. As armas do pensamento crítico do paradigma da modernidade, que eram poderosas e mesmo revolucionárias, transfomaram-se com o tempo em pistolas de sabão que, como a de Woody Allen, se derretem à chuva quando com elas pretendemos forçar nossa fuga da prisão.”40

Em relação à regulação, a crise parece se dar pelo fato de o Estado ter

perdido a vontade e a capacidade política de regularizar as forças de produção

e as garantias sociais em resposta ao processo de transnacionalização. A

emancipação entrou em crise particularmente pela crise da revolução e do

socialismo como paradigma de transformação social radical. A gravidade está

no fato de que as duas crises, regulação social e emancipação, ocorrem

simultaneamente.

Boaventura de S. Santos sugere que, em função dessa crise, houve um

agravamento das injustiças sociais e devastação ecológica, uma perda da

autonomia nacional, um aumento da concentração de capital. Afirma ele:

“A acumulação das irracionalidades no perigo iminente de catástrofe ecológica, na miséria e na fome a que é sujeita uma grande parte da população mundial – quando há recursos disponíveis para lhes proporcionar uma vida decente e uma minoria da população vive numa

39 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelas mãos de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11ª. ed. , São Paulo: Cortez, 2006. 40 SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit. , p. 102.

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sociedade de desperdício e morre de abundância, na destruição pela guerra de populações e comunidades em nome de princípios étnicos e religiosos que a modernidade parecia ter descartado para sempre, na droga e na medicalização da vida como solução para um cotidiano alienado, asfixiante e sem solução – todas estas e muitas outras irracionalidades se acumulam ao mesmo tempo em que se aprofunda a crise das soluções que a modernidade propôs, entre elas o socialismo e o seu máximo de consciência teórica possível, o marxismo. As racionalidades parecem racionalizadas pela mera repetição.”41

Comenta também que a explicação de fenômenos unicamente pela

estrutura econômica – reducionismo econômico – retira dos fenômenos

políticos e culturais a vida e a dinâmica próprias. Em suas palavras ,

“...não permite pensá-los, autonomamente, nos seus próprios termos, e segundo categorias que identifiquem a sua especificidade e a especificidade da sua interação com processos sociais mais globais.”42

O autor propõe uma nova teoria da democracia e da emancipação social

ao defender que justamente o excesso de regulação e déficit de emancipação

presentes na Modernidade comprometeram de diversas maneiras uma

articulação saudável entre subjetividade e cidadania, deixando as sociedades

capitalistas contemporâneas sem alternativas emancipatórias.43 Diante da

perda de confiança epistemológica e societal, Boaventura aponta medidas

importantes e urgentes:

“Por um lado, ir às raízes da crise da regulação social e, por outro, inventar ou reinventar não só o pensamento emancipatório como também a vontade de emancipação.”44

O autor propõe o reflorescimento das racionalidades locais, das práticas

locais contra a episteme dominante, que é a racionalidade legislativa global

moderna. Apresenta a idéia de “mil comunidades interpretativas” que

colaborem com a construção de novas formas de democracia e produção

41 SANTOS, B.de S. op. cit., pp. 42 e 43. 42 SANTOS, B. de S. op. cit. , p. 38. 43 SANTOS, B., de S. op. cit., pp. 11 e 12. 44 SANTOS, B. de S. op. cit., p. 284.

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econômica. Um arquipélago de racionalidades locais adequadas às

necessidades locais:

“É possível reinventar as mini-racionalidades da vida de modo que elas deixem de ser partes de um todo e passem a ser totalidades presentes em múltiplas partes. É esta a lógica de uma possível pós-modernidade de resistência.”45

Dessa forma, podemos dizer que emancipação, para Boaventura de S.

Santos, significa fortalecer as comunidades locais interpretativas. Como

denomina o autor, é a “emancipação concreta.”

A partir da intenção que temos em localizar espaços, brechas em que

ações “emancipatórias” sejam possíveis, verificamos durante este trabalho se

as figuras sociais entrevistadas valeram-se da “razão comunicativa” de

Habermas; da rearticulação do espaço público baseada na articulação entre o

indivíduo “de jure” e indivíduo “de facto” proposta por Bauman, e do

fortalecimento das “comunidades locais interpretativas” de Boaventura.

45SANTOS, B. de S. op. cit., p. 102.

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41

CAPÍTULO 2 – A re-descoberta do “mundo da vida” como fonte de sentido

Apresentamos, neste capítulo, alguns aspectos do pensamento de

Jürgen Habermas de que nos servimos com base na hipótese de que a figura

social – aquela que trata as feridas sociais e ambientais – escuta, valoriza e

atende as reivindicações do “mundo da vida” e, eventualmente, propõe

políticas que garantam o atendimento dessas reivindicações. Tal procedimento

teórico se dá porque se vislumbra, nessa figura social, uma reviravolta de

perspectivas. No paradigma moderno, a primazia era dada à teoria e, com ela,

à idéia de modelo e fabricação.

Por ter apreendido empiricamente essa reviravolta de perspectiva, voltei-

me para a leitura do filósofo Jürgen Habermas e, em sua filosofia, a mudança

de paradigma, a valorização do diálogo e a redescoberta do “mundo da vida”. A

seguir, os passos deste capítulo:

1. Apresentando Habermas – a mudança de paradigma;

2. A transição da reflexão monológica para a dialógica;

3. A crítica do paradigma epistemológico e o novo lugar da Filosofia;

4. A verdade e o “mundo da vida”;

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5. O “filósofo poliglota”.

1. Apresentando Habermas – a mudança de paradigma

Habermas defende a famosa “mudança de paradigma”, necessária para

a realização do ideal de emancipação característico da Modernidade e do

Iluminismo, mudança que implica repensar a razão, o ser humano e a

sociedade. Ao sustentar suas proposições no tripé da Modernidade – liberdade,

igualdade e solidariedade –, e diferentemente de outros estudiosos, para

compreender e pensar a Modernidade ele vai além da crítica e ensaia algumas

proposições positivas, já que discute as condições necessárias para a

formação de indivíduos e de uma sociedade autônoma, livre e emancipada.

Em seu livro Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, o filósofo é

sensível à discussão em torno da razão, da indivizibilidade do individual e da

relação entre Filosofia e Literatura. Segundo Habermas, o pensamento

metafísico vem dominando de Platão a Hegel, passando por Descartes e Kant.

A totalidade do pensamento metafísico obedece a Parmênides: “o ser é” e “o

não ser não é”. Nele, “o verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que é

pura e simplesmente geral, imutável e necessário.”46

O modo de filosofar do século XX sofreu, porém, grandes influências do

pensamento pós-metafísico, da “guinada lingüística”, da crítica da razão e da

superação do logocentrismo. O pensar cientificista imposto pela Metafísica

atribui um papel à Filosofia na produção de conhecimento como Epistemologia:

conhecimento científico que visa explicar os seus condicionamentos,

sistematizar as suas relações, esclarecer os seus vínculos, e avaliar os seus

resultados e aplicações servindo de fundamento para a Ciência; esta

subordinou a Filosofia a seus interesses.

Habermas sugere que, no humanismo moderno, o elemento primeiro, o

Ser, foi deslocado para o homem. Demonstra que, até agora, nenhum

rompimento com a Metafísica clássica ocorreu: houve apenas um

deslocamento do ponto fixo da Metafísica (do ser) para o que o autor chama de 46 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução: Flávio Beno Siebeneichcheler. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2ª. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). p. 22.

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“mentalismo/subjetividade” (o sujeito). Na proposição habermasiana, a

“mudança de paradigma” se dá com a “guinada lingüística”, pois esta substitui

a Filosofia da Consciência e/ou a Filosofia do Sujeito ao interpretar e

compreender o mundo pela “linguagem”. Nas palavras de Habermas:

“A passagem do paradigma da filosofia da consciência para o paradigma da filosofia da linguagem constitui um corte de igual profundidade. A partir deste momento, os sinais lingüísticos, que serviam apenas como instrumento e equipamento das representações, adquirem, como reino intermediário dos significados lingüísticos, uma dignidade própria. As relações entre linguagem e mundo, entre proposição e estados de coisas, substituem as relações sujeito-objeto. O trabalho de constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais”.

Inicia-se, também, um movimento de crítica radical à razão, que protesta

contra a transformação do entendimento em razão instrumental.

Para Habermas, a Filosofia da Consciência, a teoria da subjetividade, a

teoria da representação e o Humanismo podem ser usados como sinônimos.

Como fazer, então, uma proposta de mundo que realmente rompa com essa

tradição, ou seja, rompa com a Metafísica? Como conhecer algo efetivamente,

ao invés de pensar em como usar o conhecimento?

Segundo Habermas, toda a tradição da Metafísica, inclusive a Filosofia

da Consciência, e toda a Modernidade sempre equacionam tudo o que há em

torno da primazia do geral sobre o individual. A Metafísica sempre nos leva a

pensar no que existe de comum, de geral e não no que existe de individual.

Enquanto olharmos sob a ótica da primazia do geral, sempre estaremos

desvalorizando o elemento individual. As determinações qualitativas, ou seja,

as singularidades são sempre resultantes das essências e formas gerais, o que

impossibilita caracterizar o indivíduo como único. Desse modo, o máximo que

pode acontecer é o individual ser visto como não idêntico. Pelo pensamento

metafísico, só conseguimos equacionar o singular sob a primazia do geral.

O autor critica a Filosofia da Consciência de Descartes e Kant ao

mostrar que o conceito de individualidade, ao ser ligado a um sujeito

transcendental, um sujeito auto-referente e auto-consciente, não permitiu que

se pensasse em um indivíduo na sua singularidade. Habermas pretende,

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então, sair da Filosofia da Consciência, ou seja, questionar a idéia do geral

subsumindo o individual, da teoria subsumindo a ação. Para tanto, faz a crítica

da Metafísica e da Filosofia da Consciência; crítica de um sujeito

transcendental que se constrói na auto-referência e na auto-consciência. O

autor encontra na “guinada lingüística” uma nova forma de unir individualidade

em unidade, pois o pensamento metafísico não nos garante essa

individualidade; ele nos leva de volta ao geral. Afirma ele:

“...autoconsciência originária não é um fenômeno que habita no sujeito, ou que está à disposição, mas que é gerado comunicativamente”.47

Já que critica o naturalismo – a dicotomia entre espírito e corpo –, a

saída em relação à Metafísica seria o paradigma da linguagem; essa é a

solução encontrada pelo autor para enfrentar a herança metafísica. Continua:

“... Existe uma assimetria entre a força explicativa da filosofia da consciência, de um lado, que toma como ponto de partida a auto-referência de um sujeito que representa e manipula objetos, e uma teoria da linguagem, de outro lado, que toma como ponto de partida as condições de compreensão de expressões gramaticais”.48

Para enfrentar a Metafísica, é necessário questionar a dicotomia

sujeito/objeto – a Filosofia da Consciência. É pela teoria da linguagem e da

interação que Habermas enfrenta esse questionamento.

Para Habermas – que recupera a teoria da subjetividade de George

Mead e assume a “guinada lingüística” –, a “individualidade” é uma auto-

compreensão do sujeito que fala e age em diálogo com outros sujeitos que se

mostram, de forma inconfundível, como pessoa. O autor aponta que esse

sujeito que se auto-compreende não é um sujeito cognoscente e, sim, um

sujeito “imputável”, ou seja, responsável por todos os seus atos frente ao outro.

Nas palavras do autor:

“... esta autocompreensão fundamenta a identidade do Eu. Nela, a autoconsciência se articula, não como a auto-relação de um sujeito cognoscente, mas como a ‘autocertificação ética’ de uma pessoa imputável”.49

47 HABERMAS, J., op. cit., p. 211. (grifo meu). 48 HABERMAS, J., op. cit., p. 32. (grifo meu). 49 HABERMAS, J., op. cit., p. 202.

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Cito uma vez mais Habermas para deixar claro como Mead rompe o

“círculo da reflexão auto-objetivadora” por meio da passagem para o paradigma

da interação mediada simbolicamente:

“Enquanto a subjetividade for pensada como um espaço interior de representações próprias a cada um, que se abre pelo fato de o sujeito representador de objetos voltar-se, como num espelho, sobre sua atividade de representação, tudo o que é subjetivo só é acessível na forma de objetos da auto-observação ou da instropecção – inclusive o próprio sujeito, que entra nessa contemplação como um Me objetivado”.50

Ao contrário, Mead propõe um Me que só existe em contextos interativos

e a partir de um outro. Aprofundando essa questão, apresenta a idéia de um Eu

epistêmico – da teoria do conhecimento – e a idéia de um Eu prático – da ação

moral. O Eu da Modernidade é auto-referente e auto-consciente, ou seja, é

transcendental e não empírico. O Eu epistêmico de Mead é produto de

interações, vivencia a inter-subjetividade, não é auto-referente. O autor

apresenta também um Me ancorado na recordação; um Me que produz a auto-

referência epistêmica e um Me ancorado na auto-relação prática.

A guinada proposta por Mead está na “nova subjetividade”, ou seja,

numa inter-subjetividade definida por uma consciência que não é mais mediada

na auto-referência e nem é interior. Uma “nova subjetividade”, ou seja, uma

auto-consciência e auto-referência produto das relações de interação. Em suas

palavras:

“Ao contrário, a autoconsciência forma-se através da relação simbolicamente mediada que se tem com um parceiro de interação, num caminho que vai de fora para dentro. Nesta medida, a autoconsciência possui um núcleo intersubjetivo; sua posição excêntrica testemunha a dependência contínua da subjetividade face à linguagem, que é o meio através do qual alguém se reconhece no outro de modo não objetivador.”51

Mead trabalha com a idéia de que a auto-consciência se constrói na

relação de um Eu com outro Eu. O Me é a imagem de recordação do meu Eu a

respeito de si mesmo que se dá pelas reações do outro. Ou seja, não existe a

50 HABERMAS, J., op.cit., p. 206. 51 HABERMAS, J., op. cit., p. 212. (grifo meu).

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condição humana sem o outro, sem a parte que me reflete e que eu percebo no

outro.

Para Habermas, não está suficientemente clara a distinção que Mead

faz dos dois Eus, o epistêmico e o prático. Habermas preocupa-se em distinguir

o conhecer do agir, ou seja, em aprofundar a dimensão motivacional da auto-

referência para clarificar as diferenças.

No Eu epistêmico, o Me é a sede de uma auto-consciência refletida, pois

o núcleo dessa consciência é inter-subjetivo. O Me, na auto-relação prática, é

uma instância de auto-controle, o outro generalizado, aquilo que pauta o

comportamento de todos sem que nós possamos ver, são normas que

internalizamos e que nos retiram a possibilidade de agir na espontaneidade do

Eu. Esse Me se dá por meio dessa relação circular entre o Eu e o Tu, estando

presente no Eu e no Tu. O Me, que é uma instância reflexiva do auto-controle,

impede a impulsividade de Eu.

Além de Mead ter construído o conceito do inconsciente produzido

socialmente52, propõe que, para que seja possível a individualização por meio

da socialização, é necessário romper com aquilo que está institucionalizado,

para que o indivíduo não subsuma ao que é social, ou seja, a um papel social.

Trata-se de um movimento de autonomia diante do controle social53. Mead

anuncia que o Me é portador de uma consciência moral, preso às convenções

e práticas de um grupo particular. Se esse elemento individual tiver maturidade

suficiente para atingir a si mesmo, ele pode questionar a vontade coletiva

inscrita nessa consciência moral. O Me é submetido por ter internalizado

acriticamente as regras sociais.

Habermas aponta que o que Mead afirmou sobre o Eu prático coincide

com as descrições de Durkheim e de outros sociólogos clássicos. Diz que a

originalidade de Mead, nesse sentido, está na teoria da comunicação, a qual

vai revestir de um significado mais preciso os conceitos da teoria clássica. Esse

sujeito definido por Habermas, com sua individualidade e singularidade, situa- 52 “...as racionalidades, as condutas morais, éticas, antiéticas, as patologias, enfim todos os aspectos das manifestações dos indivíduos são produtos da cultura”, aponta Odair Sass em sua tese de doutorado em Psicologia Social, PUC-SP, São Paulo,1992. 53 Ver Odair Sass: “Em termos gerais, a individuação somente pode ser inteligível como processo em que a experiência do indivíduo implica a organização ideal e comportamental da pauta geral de conduta do grupo social a que pertence.” SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Mead. Tese de doutorado em Psicologia Social, PUC-SP, São Paulo,1992.

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se no mundo compartilhado, ou seja, no “mundo da vida”; a identidade do Eu

tem uma história de vida mais ou menos consciente, e tem continuidade. A

auto-compreensão desta individualidade, dessa identidade do Eu, vem da

relação com o outro. Essa é uma importante diferença entre a auto-

compreensão do sujeito habermasiano em relação ao sujeito moderno, pois,

neste último, a auto-compreensão vem dele mesmo.

Quando somos de fato uma individualidade, sabemos perante o outro

quem somos e quem gostaríamos de ser. Esse conhecimento não deixa de ser

um saber não cognitivo; trata-se de um saber performativo, de uma atuação, de

um desempenho especial, de acordo com Habermas. Ele sugere que, antes de

a individualidade poder, de fato, ser considerada o “pronome pessoal da

primeira pessoa”, é preciso criticar a idéia de que uma teoria guie a ação, ou

seja, criticar a idéia de um sujeito transcendental.54

Habermas apresenta o Eu epistêmico e o Eu prático, dois

desdobramentos do Eu. Mostra que, tanto na auto-relação prática, como na

auto-relação epistêmica, o reconhecimento é fundamental; mostra a idéia de

interação. Faz crítica a Mead, em relação à forma linear de pensar a

individualização progressiva; essa crítica é acompanhada de uma sofisticação

da análise.

O autor aponta duas grandes tendências gerais para a sociedade

convencional. De um lado, uma diferenciação funcional dos sistemas, ou seja,

os sistemas vão se tornando cada vez mais complexos, cada vez mais

especializados; de outro, a des-tradicionalização do “mundo da vida”, ou seja,

as pessoas não têm mais um formato ou um molde a seguir.

Trabalhando com a diferenciação dos sistemas e com a des-

tradicionalização do “mundo da vida”, Habermas aponta que toda a sociologia

clássica está apoiada na idéia de uma individuação progressiva, nela, perdiam-

se os laços e ganhava-se autonomia. O autor se pergunta se essa perda de

laços levaria mesmo a um ganho de autonomia e individuação. Mais adiante

refere-se ao individualismo isolacionista, uma forma equivocada de ver a

questão da individualidade.

54 HABERMAS, J., op. cit., pp. 192 até 196.

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Propõe, então, que essa des-tradicionalização do “mundo da vida”, essa

complexificação do sistema e essa individuação progressiva se dêem sem a

perda de laços sociais, de forma interativa, inter-subjetivamente. A individuação

progressiva passa pela auto-compreensão ética de uma pessoa em relação a

outra.

Vimos que, para Mead, o indivíduo se constitui intersubjetivamente. Para

explicar essa idéia, Habermas trabalhou com dois conceitos: o Eu e o Me.

Mostrou que nas identidades convencionais o Eu está subsumido ao Me e nas

identidades pós-convencionais o Eu critica o Me:

“Somente à luz da racionalização do mundo da vida é possível entender o processo de individuação dos sujeitos socializados, como algo que não se resume à liberação singularizadora de sistemas de personalidade comandados pela auto-reflexão. Mead liberou o núcleo intersubjetivo do Eu. Através disso, ele pôde explicar por que uma identidade-eu, pós-convencional, não pode desenvolver-se sem antecipar estruturas comunicativas modificadas; porém, a partir do momento em que essa antecipação se torna realidade social, não deixará intocadas as formas tradicionais de integração social”.55

2. A transição da reflexão monológica para a dialógica56

Na virada do século XVIII para o XIX, ocorre uma transição da reflexão

monológica para a dialógica, segundo Habermas, que implicou o surgimento de

uma nova forma de consciência histórica: o mundo interpretado de diferentes

modos segundo diferentes perspectivas. É somente na qualidade de diálogo

voltado ao consenso que se pode buscar um entendimento em relação ao

outro, ou seja, somos chamados a exercer a “virtude cognitiva empática”, base

da razão comunicativa proposta pelo autor: um diálogo que leva ao

deslocamento para o outro, ao reconhecimento de suas necessidades,

ajudando-o a mover-se em torno de seu próprio desejo, pois, na adoção de

55 HABERMAS, J., op. cit., p. 234. 56 O presente item foi elaborado a partir do debate entre Habermas e Alain Renaut, Alain Boyer, Aranaud Desjardin, Alban Bouvier, Patrick Savidan, Pierre Demeulenaere e Pascal Engel , em livro publicado em português com o título: A ética da discussão e a questão da verdade. HABERMAS, J. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Organização e introdução de Patrick Savidan; tradução Marcelo Brandão Cipolla. – São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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múltiplos pensamentos, exercita-se a descentralização da compreensão

egocêntrica e etnocêntrica que cada um tem de si e do mundo.

Em sua nova proposta, amparada na filosofia da linguagem, a

comunicação torna-se eixo básico da identidade moral e política: ela propõe

uma sociedade composta por indivíduos responsáveis pela validação de

normas e leis às quais eles próprios estão sujeitos. Uma sociedade em que as

ordens normativas sejam mantidas sem as garantias meta-sociais de natureza

religiosa ou metafísica.

Para justificar a prática da discussão, Habermas recorre a Kant. Apóia-

se no “imperativo categórico” deste filósofo, uma razão prática ancorada na

moral, pois percebe, nessa racionalidade, que a autonomia é determinada por

máximas que emergem da intersubjetividade compondo uma possibilidade de

universalização. Graças a uma releitura de Kant, Habermas sustenta a idéia de

uma universalidade a partir da inter-subjetividade. A autonomia não pode ser

alcançada numa subjetividade individual, comenta:

“... uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente. A idéia que quero sublinhar é a seguinte: com sua noção de autonomia, o próprio Kant já introduz um conceito que só pode explicitar-se plenamente dentro de uma estrutura intersubjetivista.”57

Habermas afirma que a razão predominante num discurso prático é

aquela que pode convencer a todos igualmente:

“...razões à luz das quais todos os participantes podem descobrir juntos, dado um assunto que precisa ser regulamentado, qual a prática que pode atender igualmente aos interesses de todos.”58

O discurso prático exige simultaneamente autoconsciência, capacidade

de assumir posições estabelecidas e cooperação uns com os outros, na busca

de razões aceitáveis para todos. Tornam-se necessárias, dessa forma, duas

condições: a primeira, que todos os participantes sejam livres para dizer sim ou

não, e a segunda, que busquem um acordo racional, em que sejam escolhidas

soluções racionalmente aceitáveis para todos. São duas condições

57 HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Organização e introdução de Patrick Savidan; tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 13. 58 HABERMAS, J., op. cit., p. 14.

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50

interdependentes – liberdade comunicativa e busca de um consenso – que

refletem o “sublime vínculo social”.

O autor propõe, como estamos insistindo, uma mudança de paradigma

que conduza a um novo conceito de razão, uma nova racionalidade, não mais

amparada no logocentrismo e na supremacia da teoria sobre a prática e, sim,

amparada na relação entre os indivíduos socializados pela comunicação. Uma

razão amparada pela linguagem como meio de comunicação entre sujeitos,

como se dá na vida cotidiana.

3. A crítica do paradigma epistemológico e o novo lugar da filosofia

O filósofo canadense Claude Piché59 propõe a discussão de duas obras

de Jürgen Habermas: Conhecimento e Interesse, dos anos 60, e Verdade e

Justificação, de 1999, que nos ajudam a compor este e os próximos itens deste

capítulo. Piché comenta que Habermas, na introdução da obra de 1999, retoma

a discussão dos problemas de filosofia teórica abordados em Conhecimento e

Interesse.

A Teoria da Comunicação de Habermas, desenvolvida em 1973 em

Wahrheinstheorien – que tem conexão com a obra Conhecimento e Interesse –

, inicialmente identificava “verdade” à “justificação”, isto é, apresentava a

“verdade” como um problema de argumentação racional, e colocava a Filosofia

a serviço da Ciência. Já na obra de 99, o autor mostra que a “verdade” não se

reduz à “justificação”, embora a comporte, e passa a buscar um novo lugar

para o filósofo e para a Filosofia.

Claude Piché constrói um esboço da transformação global que a filosofia

habermasiana sofreu ao longo das últimas décadas. Para tanto, discute três

questões fundamentais em Habermas: 1º. as duas noções de “verdade” em

Habermas; 2º. a relação de Habermas com o “mundo da vida”, e 3º. o novo

papel que ele propõe ao filósofo.

59 PICHÉ, C. “A passagem do conceito epistêmico ao conceito pragmatista de verdade em Habermas “ em ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite e BARBOSA, Ricardo José Corrêa (organizadores). Filosofia Prática e Modernidade. Ed Uerj, Rio de janeiro, 2003.

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51

Essas questões estão sustentadas pela mudança de paradigma que

discutimos no item anterior, quero dizer, pela crítica habermasiana ao

paradigma epistemológico. Nele, o lugar da Filosofia era de fidelidade às suas

origens metafísicas60 e, como tal, de fundamentação da Ciência. Portanto, a

Filosofia estava a serviço da Ciência. Dito de outra forma, a virada lingüística

proposta pela teoria da comunicação de Habermas, melhor dizendo, a crítica

de um sujeito auto-referente e auto-consciente leva o autor a questionar

também o lugar da Filosofia e o papel do filósofo.

Só uma mudança no paradigma da consciência poderia retirar da

Filosofia o caráter de guardiã da racionalidade. Habermas, como já vimos,

aponta que a Filosofia poderia exercer um papel de mediadora a partir de uma

nova racionalidade, não mais amparada no logocentrismo e na supremacia da

teoria sobre a prática e, sim, amparada na relação entre os indivíduos

socializados pela comunicação. Essa mudança de paradigma conduz, entre

outras coisas, a um novo conceito de razão: a “razão comunicativa”. Essa nova

Filosofia é atingida por pensamentos que ela mesma ajudou a configurar na

função de intérprete-mediador dos saberes dos especialistas e dos resultados

das práticas comunicativas. A responsabilidade prática do filósofo decorre de

sua própria condição humana e cidadã.

Habermas encontrou na leitura do livro de Richard Rorty, Philosophy and

the Mirror of Nature, uma crítica à Filosofia como epistemologia que, de certa

forma, o liberou da idéia de uma filosofia fundacionista e o colocou diante de

uma filosofia pragmatista. Isso lhe permitiu propor uma Filosofia não mais a

serviço da Ciência, mas sim uma Filosofia atuando como interlocutora entre o

“mundo sistêmico” – racionalidade científica – e o “mundo da vida” –

racionalidade comunicativa. É nessa interlocução que emerge o “filósofo

poliglota”.

4. A verdade e o “mundo da vida”

60 “A filosofia continuará fiel às origens metafísicas enquanto puder pressupor que a razão cognoscente se reencontra no mundo estruturado racionalmente ou enquanto ela mesma empresta à natureza ou à história uma estrutura racional, seja ao modo de uma fundamentação transcendental, seja pelo caminho de uma penetração dialética do mundo”. Habermas, 1990. p. 44.

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4.1 - As duas concepções de verdade em Habermas

A concepção de verdade defendida em Wahrheinstheorien,1973,

simplesmente a identificava à justificação racional, ou seja, uma verdade

ancorada num consenso adquirido depois de um discurso fundado em

argumentos; uma teoria discursiva da verdade, a serviço da Ciência, na qual se

consideravam verdadeiros os proferimentos que pudessem ser fundamentados.

Nas palavras de Habermas:

“As fundamentações não têm nada a ver com a relação entre enunciados particulares e a realidade, mas antes de tudo com a coerência entre enunciados no interior de um sistema lingüístico.”61

Para Habermas, a teoria da verdade inicialmente estava apoiada numa

lógica racional, e, muito embora a noção de verdade estivesse relacionada com

a realidade, esta era vista como “experiência objetiva” e funcionava como pano

de fundo de todas as teorias científicas. Funciona como pano de fundo, não

implica em correspondência entre idéia e coisa. Nas palavras de Piché:

“... é preciso constatar que esta relação (verdade e realidade) é fortemente mantida. Isso se deve à remissão à ‘experiência objetiva’ que serve de pano de fundo a todas as teorias científicas. Esta experiência objetiva é concebida como pólo fixo ao qual se reportam as diversas linguagens teóricas, que tendem a cercar da maneira mais apropriada esta experiência, mesmo se está convencido de que não é possível qualquer correspondência entre a linguagem e a coisa.”62

No livro Conhecimento e Interesse, Habermas analisa o problema da

verdade em relação às ciências. Deixa claro que seu propósito está mais ligado

à teoria da ciência do que à elucidação do conceito de verdade. Trata-se de um

momento fundacionalista da Filosofia e do filósofo, preocupado em dotar as

ciências de “conceitos fundamentais apropriados”.

Piché mostra que, na última fase de Habermas, a verdade vai além das

fronteiras da justificação racional; propõe, assim, uma nova concepção: uma

verdade pragmatista, diferente de sua proposição anterior, verdade como um

conceito epistêmico ligado ao conhecimento. Habermas não abandona a 61 J. Habermas, Wahreitstheorien, p.166, em PICHÉ, C. “A passagem do conceito epistêmico ao conceito pragmatista de verdade em Habermas “. In: ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite e BARBOSA, Ricardo José Corrêa (org), Filosofia Prática e Modernidade. Rio de Janeiro, Ed UERJ, 2003. p. 11 62PICHÉ, em Araújo, op. cit., p. 22.

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justificação racional, nessa nova fase, porém ancora a verdade na realidade,

encontrando no “mundo da vida” esse ponto de ancoragem.

A novidade em Verdade e Justificação não está, como já vimos, no

abandono da justificação racional, está, sim, no fato de a teoria discursiva da

verdade ser declarada insuficiente em virtude de seus resultados serem

hipotéticos e temporários. O autor argumenta que tais características não

condizem com o teor semântico naturalmente associado à palavra “verdade”.

Para Habermas

“O conceito de verdade em curso na vida cotidiana não é um conceito hipotético, mas categórico, poderíamos dizer. Trata-se de uma verdade ‘absoluta’.”63

No “mundo da vida”, a noção de verdade intui correspondência entre

linguagem e coisa, é absoluta e eterna, não temporária. Verdade encarnada,

obrigada a levar a realidade em conta. Eis a reviravolta.

4.2 - A relação de Habermas com o “mundo da vida”

Na elaboração da teoria da verdade, K. O. Apel e Habermas fazem um

resgaste da fenomenologia husserliana. Apel explora a noção husserliana de

“evidência”, baseado na constatação de que o conceito de verdade tem

presente uma conotação realista, uma vez que, de modo subjacente, todo

enunciado deve corresponder a alguma coisa. Habermas volta-se para Husserl

para reabilitar o conceito de “mundo da vida”, e este se transforma a partir do

momento em que abandona o paradigma da Filosofia.

Nos anos 70, na primeira fase da elaboração da teoria da verdade de

Habermas, o “mundo da vida”, na acepção husserliana, é definido como solo

nutriente das ciências, como um reservatório de sentido a serviço da Ciência,

“mais precisamente como o ‘fundamento de sentido (Sinnfundament) da

realidade objetivada pela ciência’.”64 Embora tendo um caráter fundacional e

originário, Habermas desconfia desse conceito. Define-o, nessa fase, como

refúgio da “falsa consciência” e da “ideologia”.

63 PICHÉ, em Araújo, op. cit., p. 23. 64 PICHÉ, em Araújo, op. cit., p. 18.

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Na segunda fase, a da elaboração da teoria da verdade, nas

conferências de 1990, Habermas afirma, ainda uma vez, que o “mundo da vida”

constitui o solo originário de todas as ciências, só que, dessa vez, qualifica

positivamente essa proposição. Aponta que o “mundo da vida”, com suas

certezas pré-reflexivas e não temáticas, já é, de certo modo, a “verdade”.

Nesse sentido, recolhe de Apel algo da “teoria da evidência” – a

correspondência do enunciado com a coisa. Nas palavras de Piché “... o

observador não tem de sair de si mesmo, é antes a coisa que se lhe apresenta

em sua auto-doação (selbstgegebenheit)”65 .

Habermas sensibiliza-se também com a conotação que se liga à palavra

“verdade” no seio do “mundo da vida”: sua pretensão ao incondicionado e ao

absoluto. E por isso passa a defender as pretensões do “mundo da vida”, mas

faz isso contra a cultura dos especialistas, pois entende que esses

freqüentemente constroem uma imagem distorcida deste mundo. É ainda uma

vez Piché que afirma:

“Se o conceito integral de verdade ultrapassa a simples justificação, se ele reclama um índice de realidade e se ergue uma pretensão à absolutidade, é no mundo da vida que Habermas vê satisfeitos estes dois requisitos. (...) É antes de tudo no mundo prático cotidiano que a verdade tem lugar como pretensão – implícita – de validade, e não exclusivamente no domínio da ciência. Se perguntamos então por que Habermas escolheu qualificar de ‘pragmatista’ este novo enfoque da verdade, é certamente em razão do papel central aqui desempenhado pelo mundo da vida cotidiana.”66

A novidade nessa segunda fase é que Habermas abre-se ao “mundo da

vida” como índice de realidade, renovando seu sentido, em vez de o

fundamentar transcendentalmente, como Husserl. Propõe, assim, que a

Filosofia deve abandonar sua atitude imperial em relação ao “mundo da vida” e

dar ouvido às suas reivindicações legítimas – uma valorização da prática

cotidiana.

5. O “filósofo poliglota”

65 PICHÉ, em Araújo, op. cit. , p. 16. 66 PICHÉ, em Araújo, op.cit. , pp. 21 e 22 (grifo meu).

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O “filósofo poliglota” é aquele que empresta sua voz para fazer valer as

pretensões do “mundo da vida”; faz uma escuta da verdade presente na prática

cotidiana. É importante perceber que a partir do momento em que Habermas

abandona a concepção de Filosofia como teoria do conhecimento, assume que

a prática cotidiana mantém uma relação intrínseca com a verdade e que o

“mundo da vida” tem uma autoridade cognitiva no sentido pleno do termo.

Segundo Piché,

“O mundo da vida é não somente o ‘fundamento de nossa crença na realidade do mundo exterior’ (Dilthey); é também o depositário das ‘fontes’ suscetíveis de contribuir para o processo da discussão racional sobre a verdade.”67

Habermas busca com esse novo estatuto da verdade uma teoria mais

englobante da realidade, pois tem como objetivo a democracia participativa, a

revolução do Direito e o mundo da ação. O processo tem dupla direção: o

“filósofo poliglota” exaustivamente escuta as reivindicações do “mundo da vida”

legitimando-as, autorizando-as, e tais reivindicações são submetidas a uma

discussão racional. Com ela, busca-se um consenso por meio da democracia

participativa. Uma vez obtido o consenso, essas reivindicações podem se

tornar normas jurídicas; é a revolução do Direito e, então, normas retornam ao

“mundo da vida” e nele, no mundo da ação, são assumidas pelos participantes

como absolutas e eternas, até que sejam novamente postas em questão.

Nos capítulos a seguir, amparados na teoria habermasiana,

apresentaremos algumas figuras sociais – os nossos sujeitos de pesquisa –

que estariam agindo no “mundo da vida”. A leitura que deles fizemos parece

explicitar a teoria habermasiana.

67 PICHÉ, em Araújo, op.cit. , p. 26.

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56

CAPÍTULO 3: À procura de um nome

Amparados nas teorias discutidas nos capítulos anteriores, iniciamos

esta etapa do trabalho apresentando a Ashoka, fundação internacional que

concentra figuras sociais68 – indivíduos diferenciados atuantes em espaços

onde o crescimento, a inclusão e a autonomia sejam possíveis nessa

sociedade produtora de desigualdade e de exclusão, ou seja, indivíduos que

atuam em brechas emancipatórias. Como mote para o desenvolvimento

dessas reflexões, brincamos com a idéia de procurar nomeá-los. A seguir,

discutimos a força do desejo, a valorização dos saberes locais e o poder da

escuta nessas figuras sociais.

A organização Ashoka foi fundada em 1981 por um norte-americano

chamado Bill Drayton. Sua idéia era procurar indivíduos com novas idéias de

mudança social que aliassem habilidades empreendedoras voltadas para o

impacto social positivo, e sólidos princípios éticos. Buscava pessoas com idéias

inovadoras e que tivessem determinação e criatividade para empreender essas

idéias em grande escala; pessoas que, segundo ele, deixassem a sua “marca

na história”.

68 A Ashoka os chama de “empreendedores sociais”, nome que nos parece impróprio.

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57

Antes de entrar para a Agência de Proteção Ambiental (EPA) em 1977,

Drayton estudou em Harvard, cursou economia, finanças públicas e história em

Oxford e entrou na Faculdade de Direito de Yale. Trabalhou cinco anos na

empresa de consultoria administrativa McKinsey & Company. Escolheu

especializar-se em Economia, Direito e Administração, por enxergar cada

disciplina como um instrumento-chave para mudanças sociais. Chamou alguns

colegas que ele acreditava possuir valores importantes e capacidade para

contribuir com essa instituição.

O nome Ashoka: Innovators for the Public foi escolhido por Drayton para

homenagear um imperador indiano, pioneiro em inovações, tanto em

desenvolvimento econômico quanto em bem estar social, que unificou a maior

parte do suI da Ásia no terceiro século a.C.. A palavra “ashoka”, em sânscrito,

quer dizer "ausência ativa de sofrimento". Para simbolizar sua instituição,

Drayton escolheu a imagem de um carvalho,

“não apenas por ser uma árvore forte, resistente à seca com raízes longas e profundas, mas também por ser uma árvore ‘maravilhosa e expansiva’ que produz muita sombra, e que freqüentemente é usada como ponto de encontro nas aldeias.”69

Hoje a Ashoka opera em mais de 60 países na Ásia, África, Américas e

Europa; já investiu em 1.700 empreendedores sociais, financiando-os em

quase 40 milhões de dólares em fundos diretos. Analisa suas estratégias,

oferece assistência profissional e empresta credibilidade aos seus esforços.

Escolhemos estudá-los por parecerem capazes de furar as oportunidades

dadas, melhor dizendo, capazes de ir além do instituído socialmente: produzem

saltos sociais, se contrapõem às organizações e intervenções mais

tradicionais, e se empenham em configurar outras formas de organização.

A escolha dos fellows da Ashoka se deu também por ser uma

organização cujos valores coincidem com o que penso, o que já estudei e com

a minha atividade profissional de consultora elaborando projetos sociais em

organizações não-governamentais; ainda, pela proximidade que tenho com a 69 BORNSTEIN, David. How to change the world: social entrepreneurs and the power of new ideas. Published by Oxford University Press, Inc., New York, 2004. p. 15.

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organização e com seus representantes no Brasil, e por ser a única que tem

monitorado ativamente esse fenômeno no mundo há mais de vinte anos.

Neste capítulo, na busca do nome que melhor traduza essas figuras

sociais, questionamos algumas alternativas. Em um primeiro momento, parece

mais fácil apontar o que essas figuras sociais não são. Sabemos que não são

figuras governamentais, sabemos também que não têm a lucratividade como

fim; enfim, sabemos que não representam o outro, o povo, o cidadão. Não são

empreendedores de negócios, não são militantes e não representam ninguém.

Sabemos apenas que suas atividades fazem parte do que se entende por

Terceiro Setor.

A aceitação pura e simples de uma identificação pelo que não é pode

incorrer em riscos. O Terceiro Setor, por exemplo, abarca, além de

organizações sociais e ambientais, todos os sindicatos, hospitais,

universidades, instituições culturais, associações de bairro, simplesmente por

serem qualificadas como não lucrativas e não governamentais. Embora as

organizações do Terceiro Setor pareçam atuar em um “espaço situado entre o

mundo doméstico, o mercado e o Estado.”, também nos questionamos: “as

organizações não-lucrativas têm, ou não, qualquer tipo de racionalidade

diferente da racionalidade que rege o mercado, de um lado, e o Estado, de

outro?" 70

Tal generalização dificulta, entre outras coisas, a implementação de

ações de maior impacto e o desenvolvimento de legislações que atendam a

todos esses envolvidos. A dificuldade em descrever positivamente esses dois

eventos – o novo personagem social e as organizações do Terceiro Setor –

indica a possibilidade de algo novo. E a decisão de brincar com a idéia de

nomeá-los ocorreu-nos para garantir esse novo.

Neste estudo, cuidaremos, como já apontamos, de indivíduos

diferenciados com capacidade de escuta do social, com capacidade de escuta

do “mundo da vida”; indivíduos que preservam seus valores e agem a partir

desses valores. Apresentamos, a seguir, apenas para um breve olhar, algumas

70 Parte de um texto acadêmico do Prof Mario Aquino Alves. “Organizações do terceiro setor e sua(s) racionalidade(s)”

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alternativas de nomes para essas figuras sociais. Nomes que foram e são

utilizados, e que, definitivamente não nos convidam, pois ocultam, exatamente,

o que queremos trazer a tona, a novidade nelas presente.

a) As limitações impostas, mesmo que metaforicamente, por alguns conceitos:

• Empreendedor:

Inicialmente veremos a definição de empreendedor e, a seguir, de

empreendedor social. Brincando com a questão, partimos do Dicionário Aurélio:

o Empreendedor [De empreender + -dor.] Adjetivo.1.Que empreende; ativo,

arrojado. Substantivo masculino. 2.Aquele que empreende. [Sin. ger.: cometedor]

o Empreender [Do lat. *imprehendere, ou em-2 + lat. prehendere.] Verbo

transitivo direto. 1.Deliberar-se a praticar, propor-se, tentar (empresa laboriosa e

difícil). 2.Pôr em execução: Só ‘empreende’ os seus projetos quando a família os

aprova;"Oswald Spengler tentou ‘empreender’ um estudo comparativo da morfologia

das culturas." (José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, p. 117). [Sin. ger.,

p. us.: interprender e interpresar.]

o Empreendimento [De empreender + -imento.] Substantivo masculino. 1.Ato

de empreender; empresa. 2.Efeito de empreender; aquilo que se empreendeu e levou

a cabo; empresa; realização; cometimento.

O Dicionário Aurélio mostra-nos que o termo empreendedor está

relacionado com a idéia de executar, pôr em prática alguma coisa. Trata-se de

um termo fortemente relacionado à idéia de projeto e de empresa. Nesse

sentido, ele não nos atende, pois buscamos nomear um indivíduo que não tem

um projeto a priori, um indivíduo que faz uma escuta e por meio dela monta

uma possibilidade. Indivíduo que – tomamos a liberdade de dizer – só se torna

diferenciado porque é capaz de escutar apelos e implementar possibilidades

junto às populações locais.

Veremos, agora, como o termo empreendedor foi tratado na literatura

clássica econômica. Nela, o termo tem implicações do imaginário capitalista, as

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60

quais se relacionam ao risco e à inovação, decorrentes do processo de

competição. O empreendedor, nesse imaginário, é a própria exaltação do

indivíduo, um indivíduo que pode e que vai fazer as coisas acontecer, corre

riscos, tem projetos e se aventura a implementá-los.

O termo empreendedorismo vem do francês entrepreneur – palavra que

estava ligada àquele que assume riscos e começa de novo71. No final do

século XVIII, o industrial e economista clássico francês Jean-Baptiste Say,

professor do Collège de France, atribuiu ao termo um importante papel na

dinâmica de crescimento econômico; conceituou o empreendedor como o

indivíduo capaz de criar e conduzir projetos e empreendimentos, capaz de

transferir recursos econômicos de uma área de baixa produtividade para uma

área em que tais recursos poderiam oferecer maior rentabilidade. O objetivo de

Say era diferenciar essa pessoa das outras que não tinham tal capacidade e

não apresentavam significativa diferença no desempenho econômico das suas

atividades.

Joseph Alois Schumpeter, economista austríaco e precursor da teoria do

desenvolvimento capitalista, acreditava que o capitalismo não sobreviveria

embora seus efeitos ruins não fossem resultantes de suas falhas, mas, sim, de

suas qualidades. Em seu livro, Teoria do Desenvolvimento Econômico72,

publicado em 1912, analisou a função do empreendedor, descrito como o

inovador que busca o lucro, e é responsável pelas constantes transformações

que fazem com que o sistema de iniciativa privada seja dinâmico, na criação do

progresso e do avanço econômico. Schumpeter via no empreendedor o herói

da “destruição criativa”, um sujeito que constantemente cria novos produtos,

novos métodos de produção e novos mercados, destruindo a ordem econômica

pela introdução dessas novidades. Sua expressão “destruição criativa”, que

assumiu várias leituras, associava o empreendedor ao desenvolvimento

econômico, à inovação e ao aproveitamento de oportunidades em negócios73.

71 CHIAVENATO, Idalberto. Empreendedorismo – Dando Asas ao Espírito Empreendedor. São Paulo: Saraiva, 2004.

72 SCUMPETER, J. L. A. Teoria do Desenvolvimento Econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e ciclo econômico. (original 1911). 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 73 Original em Inglês: http://www.gsb.stanford.edu/services/news/DeesSocentrepPaper.html . Tradução: Academia de Desenvolvimento Social (www.academiasocial.org.br) . J. Gregory Dees , Escola de Graduação em Administração

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61

Várias pesquisas indicam que, em vista das mudanças no âmbito

corporativo e no mundo do trabalho, o empreendedor será a forma buscada

pelas organizações modernas.74

Veremos, neste momento, como esse conceito, que pertencia ao

imaginário capitalista, deslizou para o Terceiro Setor e ganhou uma nova

configuração como empreendedor social, buscando compreender suas

potencialidades e seus limites dentro do campo social, aquele em que estou

trabalhando.

Peter F. Drucker, pai da administração moderna e presidente honorário

da Drucker Foundation, professor de Ciências Sociais da Claremont Graduate

University, Califórnia, EUA, e teórico do capitalismo do século XX, desenvolveu

diversas teorias sobre empreendedorismo a partir da definição de Say, embora

mais focada em oportunidades; define alguém que explora uma oportunidade

para criar valor. Para Drucker, ser empreendedor é desenvolver um negócio

inovador ou voltado para mudanças. O autor deixa claro que o

empreendedorismo não requer sempre uma finalidade de lucro75.

O deslizamento de conceitos do imaginário capitalista para o setor social

fica claro quando Drucker empenha-se pessoalmente em levar para as

organizações da sociedade civil as ferramentas desenvolvidas para o mercado.

Alerta para o fato de que as instituições sem fins lucrativos são mal

gerenciadas e deveriam ser dirigidas de forma diferente das empresas que

visam lucros, pois se trata de empresas com finalidades distintas. Para isso,

cria a Peter Drucker Foundation for Non-Profit Management.

Para Drucker, o Terceiro Setor é composto por instituições

empreendedoras sociais – não de negócios –, em que este empreendedor

identifica oportunidades para gerar mudanças sociais. O autor comenta que

(Graduate School of Business) , Universidade de Stanford (Stanford University) - 31 de Outubro de 1998 74 MALVEZZI, S. O trabalho do empreendedor. Revista de Marketing Industrial, São Paulo, v. 3, n. 7, p. 46-50. 1997 75 DRUCKER, Peter F. Estratégia empreendedora: o melhor de Peter F. Drucker sobre administração. São Paulo: Pioneira, 2000.

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62

“[...] pode ser que o espírito empreendedor social seja aquilo de que mais necessitamos – em serviços de saúde, educação, nos governos municipais [...]” 76

A Ashoka – organização que reúne as figuras sociais estudadas nesta

pesquisa, conforme dissemos – também se vale do termo empreendedor

social. Importa, portanto, pesquisar quais os significados que essa instituição

dá para o termo, muito embora não estejamos certos de que ele dê conta do

novo nessas figuras sociais. Para tanto, baseamo-nos no livro How to change

the world: social entrepreneurs and the power of new ideas, de David

Bornstein77, e nos dados nele colhidos, pois parece que falam muito próximo do

espírito presente na Ashoka.

David Bornstein, jornalista canadense, define os empreendedores

sociais da Ashoka como aqueles que solucionam problemas sociais em larga

escala. Aqueles que têm como papel criar inovações sociais: idéias poderosas

que promovam o desenvolvimento na vida das pessoas pelas cidades, países e

pelo mundo, dentro de suas distintas atividades, sejam elas médicos,

advogados, engenheiros, consultores, sociólogos, educadores, jornalistas ...78

Para Bornstein, o empreendedor social é uma pessoa obsessiva, que vê

um problema e visiona novas soluções; uma pessoa que tem iniciativa de

implementar soluções e busca superar as resistências inevitáveis até que

aquilo que antes era uma idéia se transforme em uma norma.79 Comenta

também que a diferença entre os empreendedores de negócios e os

empreendedores sociais está ligada ao papel que estes indivíduos têm na área

comercial e social, vale dizer, o termo empreendedor não incomoda o autor e

ele simplesmente aloca-o diferentemente a partir dos lugares sociais que

ocupa.

O autor percebe que a principal diferença entre empreendedores bem-

sucedidos e não tão bem-sucedidos está relacionada à qualidade de suas

76 DRUCKER, Peter F. A administração na próxima sociedade. 1ª. ed. São Paulo: Nobel, 2003. 77 BORNSTEIN, David. How to change the world: social entrepreneurs and the power of new ideas. Published by Oxford University Press, Inc., New York, 2004. 78 BORNSTEIN, David . op. cit. p.1 79 BORNSTEIN, D. op. cit p.90

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motivações, e não necessariamente ligada ao indivíduo mais confiante,

persistente ou instruído. Os mais bem-sucedidos eram mais dedicados a

atingirem objetivos a longo prazo, eram mais sistemáticos na forma de procurar

oportunidades, previam obstáculos, planejavam o futuro. Estavam mais

preocupados com a eficiência e com a qualidade e eram mais cuidadosos nas

relações pessoais com as pessoas com quem se envolviam.

Bornstein sugere seis qualidades dos empreendedores sociais bem-

sucedidos: 1- disposição de corrigir-se – nasce do apego a um objetivo e não a

um plano ou abordagem especifica; 2- disposição de dividir os créditos – a

verdadeira intenção é fazer com que a mudança aconteça e quanto mais

dividirem o crédito mais gente irá ajudá-lo; 3- disposição de se livrar das

estruturas estabelecidas – promovem mudanças redirecionando organizações

existentes; 4- disposição de cruzar fronteiras interdisciplinares – trabalham

como alquimistas sociais, criam novos compostos, reúnem idéias, experiências,

talentos, recursos; 5- disposição de trabalhar em silêncio – empregam o tempo

procurando lugares, que nem sempre são os mais óbvios, e oportunidades, que

nem sempre aparecem quando se espera; 6- forte ímpeto ético – são

motivados não pelo lucro, mas pela vontade de vencer e a alegria de criar.80

A designação “empreendedor social”, usada pela Ashoka, ganhou

popularidade recentemente com o aumento significativo do número de

empreendimentos. Por exemplo: vinte anos atrás só havia uma organização

ambiental na Indonésia, hoje são mais de 2.000; em Bangladesh, a maioria dos

trabalhos de desenvolvimento social do país são suportados por 20.000 ONGs

estabelecidas nos últimos 25 anos; entre 1988 e 1995, os países do centro

europeu se organizaram em mais de 100.000 grupos; no Brasil, nos anos 90, o

número de organizações da sociedade civil registradas saltou de 250.000 para

400.000, um aumento de 60%; nos Estados Unidos, entre 1989 e 1998, o

número de associações de serviço público registradas no Serviço de Receitas

Internas pulou de 464.000 para 734.000, outro aumento de 60%; finalmente,

80 BORNSTEIN, D. op. cit. pp. 223 até 241.

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durante a década de 90, o número registrado de “organizações cidadãs

internacionais” aumentou de 6.000 para 26.000.81

De um modo geral, o ciclo de desenvolvimento de um empreendedor

social na Ashoka tem sido de quinze anos. Atualmente, graças às crescentes

parcerias entre os setores público, privado e social, esse processo e a geração

de resultados efetivos têm ocorrido em um tempo menor.

Esse ciclo consta de três longas fases: 1- o aprendizado – quando o

empreendedor social testa sua idéia e desenvolve conhecimentos para que se

torne um especialista em seu campo de trabalho, e chega a durar oito anos; 2-

o lançamento, a decolagem – fase de implementação e demonstração da

qualidade da nova idéia, o empreendedor identifica qual será o passo histórico

de desenvolvimento de sua área de trabalho e começa a promover mudanças

sociais, dura em média 3 anos; 3- a maturidade – quando a idéia passa a ser

reconhecida e impulsiona novas idéias e/ou passa a desenvolver outros

serviços à sociedade: disseminação da inovação social.

O processo de seleção inicia-se com a pré-proposta enviada pelos

candidatos, permitindo, assim, que a Ashoka perceba se o candidato e seu

trabalho se enquadram nos critérios por eles estabelecidos. Em seguida, o

candidato apresenta uma proposta mais detalhada e passa por uma entrevista

com um representante nacional da instituição. Depois, o candidato envia cartas

de recomendação de pessoas que o conheçam e a seu trabalho, e passa por

outra entrevista, dessa vez com um representante internacional da Ashoka.

Quando aprovado nessa fase, o candidato passa por um painel de

seleção, é entrevistado por 3 empreendedores sociais e estes decidem em

consenso sua recomendação para o Conselho Internacional da Ashoka, que

por fim define sua aceitação ou não.

São 5 os critérios de seleção utilizados pela Ashoka: 1- inovação –

pessoas que tenham uma idéia inovadora, uma forma diferente, nova, de lidar

com um determinado problema; 2- impacto social – pessoas que tenham uma

idéia que possa promover mudanças significativas a longo prazo; 3- perfil 81 BORNSTEIN, D. op. cit. p. 4.

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empreendedor – pessoas motivadas pelo desejo de mudar, pessoas

visionárias, estrategistas, práticas e pragmáticas; 4- criatividade – pessoas que

apresentem em sua história de vida comprovação de terem concebido soluções

criativas para os problemas que enfrentavam; 5- postura ética – pessoas que

tenham comprovadamente uma fibra ética positiva.

De um modo geral, os empreendedores sociais, que normalmente são

líderes de suas comunidades ou líderes de uma causa social, partem de uma

inovação, que surge normalmente da identificação de um problema social que

atinge centenas ou milhares de pessoas – uma idéia inovadora capaz de

provocar mudanças de paradigma na sociedade.

Os aprovados recebem uma bolsa-salário pelo período de 3 anos para

que possam dedicar-se integralmente ao desenvolvimento de seus projetos.

Durante esse período, a Ashoka contribui também com a capacitação, promove

intercâmbio entre eles para que troquem suas experiências, acertos e erros. A

Ashoka acredita que, promovendo esse engajamento e integração de seus

fellows em redes locais, regionais e globais, acelera o impacto social de seus

empreendimentos.

Terminamos esse capítulo concluindo que o termo empreendedor social

definitivamente não nos satisfaz, pois está longe de traduzir as figuras sociais

que entrevistamos.

O uso do termo ‘empreendedor’, mesmo que ‘social’, para nomear a

figura social que estudamos possibilita que o imaginário do capitalismo

presente no termo se faça valer. Quero dizer, nos leva para uma idéia de

projeto social, nos leva para a idéia de competição, de criatividade competitiva,

de racionalidade estratégica de meios e fins, de crescimento competitivo, de

produtividade, de controle...

Essa redução – se tomarmos essa figura social como uma “identidade

pós-convencional” de Habermas – descaracterizaria, assim, a beleza do novo

que a comporta, o novo presente nessas identidades que se constroem

intersubjetivamente, que se constroem nas relações.

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A seguir, voltamos ao Dicionário Aurélio para definirmos outros termos

que, embora já utilizados por outros autores, são também passíveis de

questionamento, já que não traduzem o novo inscrito no agir dessas figuras

sociais pesquisadas.

• Militante:

o Militante [Do lat. militante.] Adjetivo de dois gêneros. 1.Que milita;

combatente. 2.Que atua; participante. 3.Que funciona ou está em exercício.

Substantivo de dois gêneros. 4.Membro ativo; apóstolo: militante de um partido.

Substantivo masculino. 5.Ant. Soldado, guerreiro. 6.Aquele que pertence a alguma das

organizações apostólicas da Igreja.

o Militância [De militante + -ia2, seg. o padrão analógico.] Substantivo

feminino.

1.Ação de militante; exercício, prática, atuação: militância política. [Cf. militança.]

o Militar1 [Do lat. militare.] Adjetivo de dois gêneros. 1.Relativo à guerra, às

milícias, aos soldados. 2.Relativo às três forças armadas (Marinha, Exército e

Aeronáutica): chefes militares; organizações militares; Tribunal Superior Militar.

3.Restr. Relativo ao exército: Academia Mili-tar das Agulhas Negras. ~ V. base —,

casa —, gota1 —, hierarquia —, honras —es, inquérito policial-militar, polícia —, região

—, serviço —, sorteio —, tambor — e testamento —. Substantivo masculino.

4.Soldado, combatente. 5.Aquele que segue a carreira das armas.

o Militar2 [Do lat. militare.] Verbo intransitivo. 1.Seguir a carreira das armas;

servir no exército. 2.Fazer guerra; combater: Foram condecorados os que militaram na

grande batalha. 3.Ser membro de um partido; seguir e defender as idéias dum grupo

político. 4.Ter força; prevalecer, vogar. 5.Fazer guerra; combater. 6.Pugnar, lutar:

Militava por um ideal muito nobre. Verbo transitivo indireto. 7.Seguir carreira em que

se defendam idéias e/ou doutrinas: "Até morrer, militou Gonzaga Duque na imprensa."

(Rodrigo Otávio [filho], Velhos Amigos, p. 56.) 8.Fazer guerra; combater; pugnar; opor-

se: Militou contra inimigos poderosos. [Pres. subj.: milite, etc. Cf. mílite.]

O termo ‘militante’, como ficou esclarecido pelo dicionário, remete à idéia

de pertencer a uma organização, pertencer a uma igreja; remete também às

idéias de política e de guerra. O termo está fortemente marcado pela idéia de

ação, mas de uma ação guerreira, vinculada à milícia, ao militar, à polícia. Será

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que nos convém chamar essa nova figura social de ‘militante’? Em termos

históricos, militância pressupõe entrega, seriedade, compromisso com um

trabalho de longo prazo. O militante reorganiza sua vida, abre mão de muita

coisa transformando sua própria vida em prática militante. Nesse sentido, não

poderíamos considerar o termo adequado para nomear nossa figura social?

Porém, precisamos lembrar que esse militante – herdeiro do Iluminismo

francês, da Filosofia alemã, da Economia Política inglesa, nascido em meio à

preparação da Revolução Russa de 1917 – era extremamente ideologizado.

Era soldado de uma causa, submetido a uma disciplina partidária: no pior dos

casos, a seus representantes, Lenin, Stalin, Mao, e outros: "melhor errar com o

partido do que acertar sem ele", era o seu slogan. Era um homem que

acreditava que o fim – a perspectiva de uma nova sociedade – justificava

quaisquer meios; era capaz do heroísmo extremado de dar a própria vida em

nome da causa justa.

O militante político, figura marcante do século XIX e XX – e que, agora,

no século XXI ganha um certo ar nostálgico, foi a encarnação da razão

instrumental onde os fins justificam os meios e esteve, bem pouco a vontade,

com a razão comunicativa proposta por Habermas. A figura romântica e

heróica do militante político – cuja forma acabada foi dada pela esquerda – deu

definitiva forma para a idéia de projeto político – o fim justificou todos os

desatinos, simples meios.

Por tudo que já dissemos, ensaiamos um caminho em outra direção e,

então, abrimos mão também desta nomenclatura. Será que essa forma de agir,

essa forma guerreira de agir, nos convém?

• Ator:

o Ator (ô) [Do lat. actore.] Substantivo masculino. 1.Agente do ato. 2.Teatr.

Cin. Telev. Aquele que representa em peças teatrais, filmes e outros espetáculos;

comediante, intérprete; artista, astro: "quem é mais artista do que o ator? A matéria

plástica a que ele imprime a sua concepção, o seu sentimento criador, não é menos

digna do que o mármore, por ser o conjunto das expressões humanas." (Joaquim

Nabuco, Escritos e Discursos Literários, p. 40). 3.Fig. Homem que sabe fingir. [Fem.:

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68

atriz; pl. atores (ô). Cf. atores, do v. atorar.] Ator de feira. Teatr. 1. Ator de teatros

ambulantes. 2. Deprec. Mau ator.

o atuar1 [Do lat. actu + -ar2.] Verbo intransitivo. 1.Exercer atividade, ou estar

em atividade; agir. Verbo transitivo indireto. 2.Exercer influência; influir: "A luz lírica da

Lua / atua em qualquer ser, em qualquer cousa atua." (Gilca da Costa Melo Machado,

Poesias, p. 194.) 3.Fazer pressão; pressionar: Atuou sobre a testemunha para evitar-

lhe o depoimento. Verbo transitivo direto. 4.Dar atividade a; pôr em ação. [Fut. pret.:

atuaria, etc.; pret. imperf. ind.: atuava, .... atuáveis, atuavam; part.: atuado, fem.

atuada. Cf. atuária, atoada, atoar, autuar e atuáveis, pl. de atuável.]

o atuar2 [De a-2 + tu + -ar2.] Verbo transitivo direto. Verbo pronominal.

1.Tutear. [Fut. pret.: atuaria, etc.; pret. imperf. ind.: atuava, .... atuáveis, atuavam; part.:

atuado, fem. atuada. Cf. atuária, atoada, atoar, autuar e atuáveis, pl. de atuável.]

o atuação [De atuar1 + -ção.] Substantivo feminino. 1.Ato ou efeito de atuar1.

2.Filos. Atualização (2). [Cf. autuação.]

A idéia de ‘ator’, mesmo que metaforicamente, também está ligada a

uma ação, porém fortemente marcada pela idéia da representação, um agir

ligado à arte, ao teatro, um agir em nome do outro. Será que podemos ver

nessa nova figura social a idéia tão forte de representação?

A idéia de representação está ligada à política – particularmente à

democracia representativa de Jonh Lock – onde são eleitas algumas pessoas

para representar o povo. Uma idéia que veio da representação teatral, de

alguém que está atuando em nome de outros, com uma expressão diferente da

sua. A expressão do ator não importa; o que importa é seu papel ao

representar um personagem. Da mesma forma na política: representante fala e

age em nome do povo. Não nos parece que essas figuras sociais que estamos

estudando se signifiquem a partir da idéia de representação, quero dizer que

elas não se dizem pelo representar um grupo, um segmento, uma categoria

social.

Fecho este item reforçando quão insatisfatórios são esses conceitos que

migraram para o setor social. Não nos satisfaz a idéia do empreendedor social,

porque pré-supõe que esteja comprometido com o imaginário capitalista; não

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nos satisfaz a idéia do militante social, por pré-supor comprometimento com

uma ação guerreira, uma ação ligada às armas, uma ação de militância

política; não nos satisfaz a idéia do ator social, porque suas atividades não

estão ligadas à representação: nem política, como representante do povo, nem

artística, ligada ao teatro e a arte. Não é dentro de nenhuma dessas formas

dadas que vemos essa figura social; ela nos parece, o que Habermas chama

de uma “identidade pós-convencional”.

Encerro este item reforçando quão insatisfatórios são esses conceitos

que migraram para o setor social. Não nos satisfaz a idéia do empreendedor

social, porque pré-supõe que esteja comprometido com o imaginário capitalista

e não nos satisfaz a idéia do militante social, por pré-supor comprometimento

com uma ação guerreira, uma ação ligada às armas, uma ação de militância

política. Não é assim que vemos essa figura social, ela mais parece ser o que

Habermas chama de uma “identidade pós-convencional”.

Mais do que insatisfatórios, o uso inconseqüente desses termos poderia,

em certa medida, comprometê-los com outros valores. Melhor explicando, para

a proposição habermasiana, saber quem eu sou é resultado e não um a priori.

O autor aponta que a auto-compreensão ética depende do reconhecimento

através de destinatários. E, então, continuamos sem conseguir nomear essas

figuras sociais que entrevistamos. São ainda inomináveis.

Adiantamos que no decorrer deste trabalho reconstituiremos o momento

originário82 dessas figuras sociais através de uma escuta do “mundo da vida”.

Partimos da idéia de que essas figuras sociais se instituem como tal no preciso

momento em que, através dessa escuta, dão forma, conformam um desejo e

um saber-fazer inusitado ou não previsto. Enfatizamos um antes e um depois:

antes dessa escuta essa figura social não existia; ela passa a existir (com)

junto à escuta que é capaz de fazer.

A seguir, apresentamos algumas discussões sobre a valorização do

“mundo da vida”, do senso comum, a força do desejo e o poder da escuta, que 82 Relembramos que é o momento em que, através de uma escuta diferenciada, as figuras sociais que estudamos se instituem como tal.

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são aspectos constitutivos dessa figura social – ainda um sem nome –, nosso

objeto de estudo.

b) A re-valorização dos saberes locais

Alguns autores, ligados às ciências sociais, passaram a valorizar o que

elas pouco tempo atrás desprezavam. Estamos nos referindo à abertura que

esses cientistas demonstram ter em relação ao senso comum, às múltiplas

racionalidades inscritas na esfera social, ao saber local, à interpretação no

lugar da explicação causal, ao casamento entre ciência, literatura e arte, à re-

valorização do “mundo da vida”.

No decorrer do século XIX e parte do século XX, o divórcio entre a

ciência e o “mundo da vida” não chegava a perturbar a paz dos cientistas83. É

curioso observar, agora, essa guinada das Ciências Sociais, em relação a

temas e considerações antes negadas. Os cientistas sociais, refiro-me aos

autores de ponta dessa área:

“não só questionam os mecanismos que garantem a objetividade das ciências, senão que vão além ao suspeitar que tal ideal seja possível para as ciências sociais; segundo, se afastam de separações que contrapõem sujeito e objeto, fato e interpretação, fins e meios; terceiro, duvidam que possa existir algo assim como uma estrutura que subjaz aos fenômenos sociais e que fora o objeto do indagar científico; quarto, desvelam o caráter etnocêntrico e epistemocêntrico de muitas teorias e conceitos empregados pelas ciências sociais para abordar seus objetos de estudo ( incluídos os conceitos marxistas); e, finalmente, realizam uma forte crítica da noção mesma de conhecimento, insinuando que parece haver uma cisão radical ( Pierre Bordieu) que explica todas as deficiências e que tem a ver com a separação do conhecimento e da ocupação...”84

José Dario Herrera, em sua tese, trabalha com diversos autores que

estão fazendo esse movimento de re-valorização do que alguns chamam de

83 HERRERA, José Darío. Elementos Hermenéuticos en la Autocomprension de las Ciencias Sociales .Tesis de grado para optar por el título de Doctor en Filosofía , Universidade Nacional de Colombia . Director: Prof. Dr. Carlos B. Gutiérrez. 84 HERRERA, J. op. cit. p.24

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“mundo da vida” e que outros autores, que a seguir discutiremos, chamam de

“senso comum” (Cliffod Geertz), “saberes locais”, “racionalidades locais”

(Boaventura de Sousa Santos), “habitus” (Pierre Bordieu).

Herrera apresenta a forma como Geertz, antropólogo americano, propõe

essa revalorização ao buscar compreender a vida de outros povos como um

conjunto de signos a ser decifrados, e não mais imaginá-la como uma soma de

comportamentos a ser descrito. Para Geertz, a Antropologia deve fazer

traduções, que nesse caso significa expor, apresentar, mediante nossas

locuções, a lógica de vida que outros povos têm.

O trabalho da Antropologia seria decifrar o outro, traduzir o outro e,

depois, re-significá-lo com o propósito de compreender e, então, interpretar – e

não entender para, então, explicar causalmente – a cultura de um outro povo; é

a isto que Geertz chama de “tradução das culturas”. 85

Para este autor, a forma de compreender o que expressam os signos de

uma cultura é a contextualização social na qual os signos são produzidos. A

ênfase é, pois, no local como critério de interpretação da cultura, na

contextualização social. Recusa, pois, todo e qualquer paradigma esquemático,

todo e qualquer sistema normativo, todo e qualquer sistema abstrato que

independentemente do contexto no qual se produzem os signos tente explicar

(cientificamente) uma cultura. Dessa forma, Geertz reforça a renovadora

atenção ao saber local, e, neste, o senso comum: diferentes culturas

engendram diferentes construções do que chamamos de senso comum. 86

Herrera se vale também de Boaventura de Souza Santos, politólogo

português, para mostrar que as Ciências Sociais em crise apresentam

diferentes soluções de renovação e, de novo, essa renovação está ligada à

revalorização do “mundo da vida”, dessa vez baseada na construção de “mil

comunidades interpretativas” a partir das racionalidades locais.

Boaventura Santos, como os demais autores citados, ao fazer a crítica à

Modernidade se vê diante da crise das Ciências Sociais. Segundo o autor, 85 HERRERA, J. op. cit. p. 22 86 HERRERA, J. op. cit. p. 26

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essa crise se manifesta de várias maneiras, entre elas, pela rapidez com que

ocorrem os fenômenos e transformações sociais. Os recursos teóricos e

metodológicos de que as Ciências Sociais dispõem para compreender as

mudanças, hoje, são insuficientes ao que sucede. As transformações são tão

rápidas e o saber que as Ciências Sociais produzem não dá conta delas: é o

caso da transformação das identidades sociais, das relações tradicionalmente

vinculadas à noção de território.

Com a intensificação das inter-relações e inter-dependências

ocasionadas pelo movimento em escala planetária, as relações sociais se

desterritorializam e as novas formas são difíceis de compreender segundo os

esquemas tradicionais da ciência social. A realidade passa a se sobre-sair à

teoria87. Novas tensões aparecem com dimensões nunca antes vistas: a tensão

entre o global e o local, a identidade e o consumo, entre a cultura e o mercado.

Nessa transição paradigmática é difícil distinguir entre o econômico, o

político e o cultural. Cada vez mais os fenômenos são ao mesmo tempo

econômicos, políticos e culturais; separar essas dimensões é problemático

hoje. Daí, as Ciências Sociais organizadas rigidamente em disciplinas e

especializações tornam-se impotentes. Trata-se da crítica dos paradigmas das

Ciências Sociais e, então, da perda da confiança epistemológica.88

Para Boaventura, o paradigma hegemônico das Ciências Sociais na

Modernidade, para se instituir, exerceu um verdadeiro epistemicídio, vale dizer,

precisou levar à morte as diversas epistemes locais. Boaventura brinca com

essa questão dizendo que o epistemicídio foi muito mais devastador do que o

genocídio: onde o paradigma moderno dominante se instituía, antes

precisavam levar ao aniquilamento, submetendo, subordinando,

marginalizando e ilegalizando práticas que ofereciam ameaças à expansão

capitalista. Reforça que a gravidade do epistemicídio está na dimensão de sua

87 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelas mãos de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11ª. Ed. – São Paulo: Cortez, 2006. p. 15 88 SANTOS, B. op. cit. p. 283

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abrangência, já que abarcou trabalhadores, indígenas, negros, mulheres,

minorias em geral, étnicas, religiosas, sexuais. 89

Boaventura Santos nos convida para a construção de um “novo saber

social” e neste novo saber a interpretação cobra um papel central. Sua

proposta eco-socialista e o que ele denomina “nova democracia” pressupõem a

constituição de “mil comunidades interpretativas” que façam resistência aos

modelos dominantes de explicação.

As “mil comunidades interpretativas” que doravante devem ser

preservadas e fortalecidas pelo novo paradigma do conhecimento, se

organizam a partir das “racionalidades locais”. São formas de conhecimento

local que devem ser fortalecidos. Tal proposta tem a ver com o que o autor

chama de “emancipação concreta” que resiste aos mecanismos da

globalização. O fortalecimento das comunidades interpretativas não deve ser

lido como fragmentação do mundo atual, pois, como deixa claro Boaventura

Santos, a fragmentação destrutiva nos foi legada pela Modernidade. A tarefa

atual é a de reconstruir um “arquipélago de racionalidades locais” adequadas

às necessidades locais. Tal proposta pressupõe uma grande reviravolta já que

o saber social deixa de ser patrimônio exclusivo da Sociologia.

Se se quiser fazer das “interpretações locais” o ponto de partida de um

novo paradigma, impõe-se o seu fortalecimento. Para isso, não basta que

façamos etnografias para compreendê-las, é necessário fortalecê-las, trabalhar

a partir delas e com elas na construção de cenários e propostas de resistência.

Insistimos nessa questão proposta por Boaventura Santos porque a nossa

pesquisa também vai nessa direção: não queremos só apresentar e interpretar

nossos entrevistados para o mundo acadêmico, queremos fortalecer a

perspectiva que aí encontramos; um modo de se ligar ao social, uma

racionalidade sensível, uma forma de escuta, a maneira que eles têm de

enfrentar e resolver os problemas.

Herrera demonstra que a revalorização do “mundo da vida” tem sentido,

tem uma lógica, uma racionalidade ancorada nas práticas. A idéia de

89 SANTOS, B. op. cit. p. 35

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logocentrismo, da teoria pura sobre as práticas, está em questão. Para esses

des-construtores do paradigma moderno, no melhor dos casos, a ciência

moderna é uma das narrativas possíveis – está deixando de ser a única

narrativa legítima. Também, está sendo questionada a idéia de um sujeito que

não se implica no experimento, a idéia de uma racionalidade universal, de uma

razão legislativa. Nesse sentido a Ciência, a partir de alguns autores tenta hoje

fazer a re-conexão com o “mundo da vida”, com diferentes linguagens, re-

conexão com o mundo das práticas, com o senso comum.

A proposta de Herrera, já insistimos, é que a ciência moderna seja vista,

hoje, não como a narrativa, mas como mais uma narrativa entre outras; mais

uma interpretação possível. Uma narrativa a mais que se soma à poética, à

narrativa do senso comum; a proposta é que a ciência não se outorgue mais

um lugar de primazia. Como diz Habermas, é preciso que ela deixe de ser

imperial; este lugar ela já não pode habitar.

Nós já vimos que Habermas também faz propostas nessa direção ao

reconciliar os dois mundos – “mundo da vida” e “mundo sistêmico” – ao pensar

no papel da Filosofia e do filósofo na Modernidade. Em sua proposta, a

Filosofia e o filósofo, trabalhando a serviço da renovação do sentido do “mundo

da vida”, devem atuar como interlocutores entre ambos. O novo papel do

filósofo proposto por Habermas, o “filósofo poliglota”, é o de emprestar sua voz

para fazer valer as pretensões do “mundo da vida”. Para ele, a ciência deve

abandonar a atitude “imperial” perante o “mundo da vida” e as demais

“especialidades” e dar ouvidos à verdade inscrita nas práticas cotidianas.

Todo esse item e a discussão desses autores tem um claro objetivo para

esta tese: mostram que nas ciências sociais, autores passam a ecoar

propostas de crítica do paradigma dominante do conhecimento. Habermas não

está sozinho nesta discussão.

c) A força do desejo e o poder da escuta nessa figura social

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A seguir, vamos reconstituir o momento originário dessas figuras sociais;

neste momento, arrisco-me a avançar numa definição: elas, as figuras sociais,

se definem pelo desejo e pelo poder da escuta. O desejo, todos nós sabemos,

está relacionado ao que nos falta: não desejamos o que temos, desejamos o

que nos falta.90 Essas figuras sociais, como veremos, escoram os primeiros

pilares de suas ações em um lugar vazio, partem de uma falta, portanto, de um

desejo91. Walter Benjamin, em Sobre alguns temas em Baudelaire92,

demonstra que o desejo pertence à categoria da experiência:

“Quando se projeta um desejo distante no tempo, tanto mais se pode esperar de sua realização. Contudo, o que nos leva longe no tempo é a experiência que o preenche e o estrutura. Por isso o desejo realizado é o coroamento da experiência. (...) É o contrário daquele tempo infernal, em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o que foi começado.”93

É nesse sentido que ouso comparar a trajetória dessas figuras sociais a

“experiência” benjaminiana. Essas figuras sociais parecem estar cientes, nas

suas trajetórias, de que alguma coisa está faltando e estrutura seu agir na

tentativa de suprir essa falta, de preencher esse vazio. Em outras palavras:

quando o que nos move é o desejo, a experiência, um lugar vazio, uma

pergunta, mobilizamos forças psíquicas e mentais não previsíveis; mobilizamos

o mundo externo a nosso favor, fazemos aprendizagens que se acumulam e

somos capazes de grandes travessias. Segundo Maroni,

“É curioso pensar que uma vez feita a pergunta, a pergunta nos tem. Ou seja, não podemos mais nos livrar dela; sofremos, a partir daí, uma espécie de seqüestro pela pergunta-sem-resposta, pelo lugar vazio da alma.” 94

90 Para Platão, em O Banquete, “o que deseja, deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente. [...] Pois, por ventura desejaria quem já é grande ser grande, ou quem já é forte ser forte? [...] como qualquer outro que deseja, deseja o que não tem, o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é próprio e o que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo e amor, não é?” (Platão, O Banquete. 200b e 200e)

91 Antonio da Costa Ciampa ao trabalhar com a idéia de que o desenvolvimento da identidade depende da articulação entre a subjetividade e a objetividade, aponta que o desejo está ligado à subjetividade – nega o homem, como dado –, enquanto que o trabalho está ligado à objetividade – o objetiva. Nesse sentido, o homem é desejo e é trabalho: “o desejo o nega, enquanto dado; o trabalho é o dar-se do homem, que assim transforma suas condições de existência, ao mesmo tempo que seu desejo é transformado.” (Ciampa, 1987/2005, p.201). 92 BENJAMIM, Walter, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo; tradução de José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. , Obras Escolhidas v. 3, São Paulo: Brasiliense, 1989. 93 BENJAMIM, Walter. op. cit. p. 129.

94 MARONI, Amnéris, Re-inventando os caminhos de pesquisa: psicanálise e ciências sociais. 2006. p. 5.

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Essa figura social, cuja qualidade apontada por alguns autores é a

perseverança, o enfrentamento, por vezes, de situações destrutivas e aversivas

aos seus projetos, parece-nos também ter sido seqüestrado pelo seu desejo –

por uma pergunta – de transformação social, tamanho o empenho que

demonstram na continuidade de suas ações.

Estamos supondo também que essa figura social define-se pelo poder

da escuta95. Nesse sentido, praticam o que alguns autores chamam de “virtude

cognitiva empática”. Ao escutar assim, apreende as razões do outro, o seu

modo de ser, as suas emoções, para depois retornar e reavaliar suas primeiras

proposições, agora relativizadas pelo confronto com o outro. Faz uma escuta

que não está mais comprometida com infindáveis explicações científicas, mas

uma escuta que permite que o “mundo da vida” volte a ser ouvido.

Estamos vivendo um momento cultural que recusa certezas e dogmas,

até mesmo científicos, um momento que pede

“que ensaiemos, juntos, um novo caminho, e nele a escuta poética do outro, todos os outros, da sociedade, do nosso corpo, do próprio divino, há de ter um novo lugar...”96.

Ao empatizarmos com o outro, todos os outros, entramos em contato

com a diferença e criamos inúmeros pontos de vista:

“A escuta poética é, assim, escuta sensível do real, escuta que não exclui, pelo contrário, valoriza a ambigüidade, a ambivalência; escuta que não exclui, mas valoriza o paradoxo; escuta capaz de abrir-se para o caos, a desordem, o obscuro, o sombrio, a incerteza, o imprevisível, o indeterminado; escuta do silêncio: silêncio que grita de dor.”97

Essa “escuta poética” do “mundo da vida” que, estamos supondo, essa

figura social é capaz de fazer, casa-se com a proposta de razão, enunciada por

Habermas:

95 As entrevistas que fizemos no mestrado e que estamos fazendo no doutorado nos autorizam a pensar isso.

96 MARONI, Amnéris. “A escuta poética do social”. In: FAGUNDES, Felipe. E por que não? Tecendo outras

possibilidades interpretativas. S.P.. Ed. Idéias e letras, (no prelo) 2007.

97 MARONI, Amnéris. op. cit. (no prelo)

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“O interesse da razão tende à progressiva execução revolucionário-crítica, mas sempre a título de ensaio a saber: para a realização das grandes ilusões da humanidade; nelas os motivos recalcados têm sido burilados em fantasias de esperança.”98

A razão legislativa, razão convencional (kantiana e cartesiana), silenciou

o mundo, e a escuta poética é uma forma de convidar o “mundo da vida” de

novo a falar; por isso, trata-se de uma escuta política que ensaia ou pode vir a

ensaiar uma “razão comunicativa” – para me valer de Habermas. Melhor

explicando, essa figura social é vista por nós como capaz de fazer a escuta e

depois agir a partir do “mundo da vida”; como alguém que “sequestrado pela

pergunta” e movido pelo desejo é capaz de promover “saltos sociais”: uma

constante quebra de paradigmas através da ação.

* * *

E para concluir este capítulo, que nome dar a essa figura social?

Nenhum dos nomes por nós analisados nos atendeu, pois nossa figura social

não está no Mercado fazendo empreendedorismo, não está no Estado fazendo

representação, não está no Partido exercendo-se como militante; e sim,

reforçamos, enuncia uma nova possibilidade. Elas são tanta coisa ao mesmo

tempo em que não se enquadram em nenhuma alternativa que conhecemos.

Optamos, até aqui, por mantê-la sem nome, para não incorrermos no

risco de reduzi-la ao antigo. Essas figuras sociais além de fazer a escuta do

“mundo da vida” e de trazer novas possibilidade à tona, pertence a esse

mesmo mundo e também é inter-mundos falando metaforicamente várias

línguas. São tradutoras de mundos e mediadoras inter-mundos. Vamos chamá-

las, informalmente, neste trabalho, de poliglotas do social, de poetas do social.

98 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico; 1983. p. 301, apud Ciampa, 1987/2005, p. 208. Segundo Ciampa, Habermas quer dizer ‘ sem certeza totalitária’.

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CAPÍTULO 4: O momento originário – um novo começo

Neste capítulo, buscamos apreender qual foi o momento originário99,

aquele que trouxe à luz, as figuras sociais que estudamos. Compreendemos

que só poderíamos encontrar o sentido da experiência100 de nossos poetas

poliglotas do social se fôssemos ao encontro daquilo que os animou, do que

lhes deu ânimo e, então, alma.

Conforme apontamos, o cientificismo, na busca da verdade, tratou de

forma inadequada aspectos culturais e sociais em seus estudos, entre outros.

No entanto, algumas correntes no século XIX e XX recusaram essa

dissociação e re-ligaram, de muitas maneiras, a ciência ao “mundo da vida” – o

próprio Habermas volta-se para essa direção. Por meio da “guinada lingüística”

ancorada na “razão comunicativa”, Habermas oferece um novo lugar à

Filosofia. Um lugar que parte da re-valorização do senso comum e do papel do

filósofo redefinido – o filósofo poliglota – interlocutor entre a ciência e o “mundo

da vida”. 99 Só para retomar, é nome que “inventamos” para explicar o momento em que as figuras sociais dão forma, conformam um desejo e um saber-fazer inusitado ou não previsto. Ela passa a existir (com) junto à escuta que é capaz de fazer. 100 Termo que empresto de Walter Benjamim em Sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhidas; v. 3, 1989.

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Aqui nos valemos do “método auto-biográfico” de M. Erben, pois nos

ajudou a caminhar na mesma direção, a da re-ligação da ciência com o “mundo

da vida”. Ao recuperarmos o momento originário – e, então, a articulação entre

o pessoal e o cultural – recuperamos a experiência propriamente dita desses

novos agentes do social. O relato da experiência nas narrativas não é ainda

propriamente pensado: ao narrar, a experiência é re-vivida afetivamente.

Passados tantos anos, as nossas figuras sociais – os poetas poliglotas do

social – revivem esse momento originário como sendo da ordem pré-reflexiva.

Suas narrativas não são uma experiência pensada, refletida; narram

afetivamente as experiências antes de estarem separados dela própria.

A re-ligação da ciência e do “mundo da vida” não passa pela renúncia

dos estudos científicos sobre o problema, não passa pela renúncia do

entendimento; antes, pressupõe esses estudos científicos e o nível de seu

entendimento. Quero dizer que o “método auto-biográfico” pressupõe a

explicação científica e racional, muito embora não se reduza a ela. Exige um

outro passo, uma nova passagem: a interpretação e, nela, a compreensão.

Para que essa re-ligação seja possível é preciso ter presente que ambos

fazem parte do contexto social e cultural. No caso de nossa pesquisa, é preciso

insistir que ambos fazem parte do mesmo contexto e têm uma percepção

sensível que é anterior ao juízo e ao conceito, pois ambos têm uma vida para

além da pesquisa: têm uma vida social e anímica, têm uma vida familiar,

política, espiritual. Assim, é preciso recuperar o momento originário e nele o

sentido da experiência, como dissemos; resgatar o significado dessa

experiência imediatamente vivida, base para sua compreensão.

Assim, é preciso recuperar o momento originário e nele o sentido da

experiência, como dissemos; resgatar o significado da experiência

imediatamente vivida, base da compreensão. Preocupamo-nos em apreender

como os entrevistados construíram o mundo, o seu mundo, como o vestiram de

significados e como infundiram nesse mundo construído suas emoções. Nossa

intenção foi, então, de captar o sentido e o significado presentes na textura da

vida dos entrevistados.

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Para este trabalho, como já comentamos, entrevistamos quatro fellows

da Ashoka. Daniel Becker, pediatra especializado em saúde pública, professor

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1993 criou o Cedaps. José

Pereira de Oliveira Júnior, nasceu em Ramos, bairro de um subúrbio do Rio

que na época era um local tranqüilo. Fundou o AfroReggae em 1993. Vera

Cordeiro trabalhou como médica clínica-geral e fundou o Setor de Medicina

Psicossomática do Hospital da Lagoa, do qual foi diretora até 1996. Em 1991,

com o apoio dos funcionários desse Hospital e membros da sociedade civil,

fundou a Associação Saúde Criança Renascer. Jaílson de Souza e Silva, de

família católica, trabalhou na Pastoral da Juventude, na Pastoral Carcerária e

filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT). Fez Faculdade de Geografia e em

2003 funda a organização social Observatório de Favelas.

Apresentamos a seguir nossa narrativa, nossa leitura daquilo que nos foi

narrado como sendo o momento originário desses poetas poliglotas do social.

“Eu vou lá em cima ver quem está jogando criança no rio” – Daniel Becker

A narrativa a seguir é produto da entrevista que fizemos com Daniel, de

palestras a que assistimos e de artigos escritos por ele e sobre ele. Pediatra

especializado em saúde pública, fundou, em 1993 no Rio de Janeiro, o Cedaps

– Centro de Promoção da Saúde e, através desta, estimula o desenvolvimento

da comunidade partindo da percepção de seus problemas sociais. Procuramos

localizar quais valores o moveram e o movem, quais eventos o impactaram;

qual foi, enfim, a sua experiência imediatamente vivida, o momento originário

que lhe permitiu nascer como poeta do social.

De família judaica, Daniel teve uma infância sofrida e conturbada. Seus

pais viviam um casamento conflituoso, embora fossem amorosos e dedicados.

Sua única irmã saiu de casa aos dezoito anos para fazer uma experiência em

Israel e não voltou: “ela praticamente fugiu da nossa família”.

Menino tímido, filho de mãe super-protetora e um pai que, embora um

pouco ausente, muito o marcou com seus princípios e bondade, Daniel falou-

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nos da forte relação com o pai e o avô na infância. Foi através da educação

judaica que Daniel desenvolveu valores como solidariedade, compaixão:

“O que realmente definiu a minha vida, o que mudou o meu caminho, foi

a participação no chamado movimento juvenil, que é uma prática, uma

característica da comunidade judaica no Brasil e em outros países do mundo

também. São movimentos ligados a partidos socialistas de Israel.”

Nesse grupo, Daniel entrou em contato com seu papel social.

Trabalhou com gestão de organizações e lideranças, com valores socialistas:

solidariedade e ajuda, igualdade e liberdade. Ligou-se pessoalmente ao PCB –

Partido Comunista Brasileiro, embora não fosse um ativista e não tenha se

envolvido diretamente com militância. Fez parte de um grupo de estudos

considerando-se, em termos ideológicos, mais à esquerda, o que aumentou a

tensão em casa, uma vez que seu pai era, em suas palavras, “um cara muito

de direita”: “Nós discutíamos muito nessa área política, mas ele era um sujeito

de princípios, um sujeito íntegro.”

Na Faculdade de Medicina, passou por alguns confrontos entre os

grupos de direita e de esquerda e, como era bom aluno e sabia transitar bem

nesses espaços políticos, acabou sendo orador da sua turma de formatura. No

último trimestre da faculdade, estimulado por uma namorada, resolveu fazer

pediatria, embora nunca tenha se interessado pela idéia de ter criança como

paciente “porque criança não fala e eu tinha medo de criança.” Para sua

surpresa, depois de dois plantões, começou a ser abraçado por criancinhas

chorando e, ali, sentiu todo um sentimento de paternidade. Decidiu ser pediatra

começando por clínica médica, embora não gostasse: “odiava a clínica,

detestava doença, nunca gostei de doença, gosto de saúde, e na clínica você

só vê doença.” Daniel perdeu uma irmã de doença congênita quando tinha

quatro anos:

“Eu me lembro dela sempre cercada. Tinha uma doença congênita,

metabólica e com um ano e meio morreu. Esse evento marcou minha família e

talvez minha escolha da medicina tenha a ver com isso. Eu passar pela

pediatria, talvez seja influência desse evento.”

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Embora odiasse a doença, sempre quis ser médico. Estudou muito,

passou na residência e começou a trabalhar. Nessa fase, ocorreu um fato que

parece tê-lo impactado: a entrada de uma menina praticamente morta no

hospital. Essa experiência de Daniel parece-nos ter constelado algo que

depois, muito depois, viria (e veio) a ser uma proposta social. Essa

constelação, no momento em que aconteceu, como nos contou Daniel, foi

vivida sem que ele tivesse consciência dela.

Joyce, a menina, chegou com infecção generalizada, quase morta.

Daniel e sua equipe fizeram de tudo, valendo-se de todos os recursos da

época, laboratório e antibióticos caríssimos; ela começou a se recuperar.

Depois de dois meses de internação, sorriu pela primeira vez: “o sorriso de

uma criança é o primeiro sinal de saúde. Ela começa a se recuperar, começa a

sorrir.”

Joyce ficou boa, ganhou oito quilos e foi para casa. Era uma criança

limitada para sempre, mas estava viva e saudável. Mas, para espanto de

Daniel, “dois meses depois ela voltou ao hospital em situação totalmente

parecida. Dois meses depois!” Joyce ficava mais tempo no hospital do que em

casa e, pior, aquilo se repetia e se repetia:

“Eu dizia, não é possível. Tem aquela história do rio: dois caras

pescando no rio e aí começa a passar criança afogada. Eles vão se jogando e

começam a tirar as crianças do rio; em seguida vem outra se afogando, o cara

se joga de novo e a tira. Aquilo se repete, até que um deles se levanta e diz,

‘não, espera aí, dá licença, tchau’. ‘Por que você vai embora, cara. Está cheio

de criança se afogando, vamos ficar aqui e ...’ ‘Eu vou lá em cima ver quem

está jogando criança no rio.’”

A capacidade de fazer uma escuta diferenciada fica clara em Daniel. O

episódio de Joyce não lhe passa desapercebido; não o vê apenas como um

caso triste entre tantos outros, que, com certeza, eram vistos todos os dias. O

caso de Joyce o impacta: mobiliza-o nem ele mesmo sabe para onde; naquele

momento “a minha sensação era de que eu precisava fazer alguma coisa, mas

eu não tinha a menor idéia do que fazer. Aí eu comecei a procurar alternativas.”

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Daniel compreendeu que não queria fazer saúde pública, não queria

ficar atrás de escrivaninha, estatística, epidemiologia... Queria trabalhar com

pessoas, não ficar, porém, atendendo em hospital. Queria ir para a Europa,

queria ir para a Ásia... Começou a buscar, a procurar sem saber exatamente o

que buscava e o que procurava; só sabia o que não queria, e já era muito: “eu

tinha uma fantasia: eu queria ir para o Himalaia me iluminar.”

Foi para Paris e lá se candidatou para um trabalho com os Médicos Sem

Fronteiras, na Ásia. Tudo correu de forma espantosamente sincronizada: tinha

exatamente o lugar que ele queria no tempo certo e como pediatra: um campo

de refugiados cambojanos. No momento de ir para o Camboja, seu pai faleceu

no Brasil e ele voltou por quinze dias. “Foi um momento muito intenso na minha

vida.”

Passou um ano no campo de refugiados e, ali, mais uma vez, a coisa se

repete; era uma população que vinha de uma tragédia social inacreditável, de

guerras e massacres: “O que aconteceu com o povo cambojano não existe...

Um terço da população foi extinta.” Mais uma vez, Daniel via a mesma coisa.

Via crianças sofrendo por doenças, por violência, ao serem recrutadas pelo

exército guerrilheiro do Camboja. Mais uma vez, escutou-as; a dor dessas

crianças e dessas famílias, mais uma vez, impactou-o.

Nessa ocasião conheceu Barnabás, um refugiado cambojano que tinha

criado naquele campo uma espécie de ONG. Ele trabalhava com música

cambojana, ervas medicinais e com a religião budista. Organizava atividades

com as famílias dos refugiados, resgatando um pouco a auto-estima e

cuidados com as crianças. Desenvolvia um trabalho direcionado à saúde, à

educação, e oferecia o que estivesse a seu alcance para aquelas famílias que

iam chegando desesperadas. Daniel contou-nos:

“E foi uma coisa que me encantou completamente. Disse assim: ‘é

óbvio.’ E você via aquelas crianças melhorarem; as famílias saindo do buraco.

Foi uma realização para mim, uma descoberta. É óbvio que isso que ele está

fazendo torna as pessoas mais saudáveis. Saúde é por aí, não é aqui na

ponta do hospital. É antes, muito antes.”

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A experiência com Barnabás ajudou muito Daniel: pôde entender a

dificuldade que as pessoas têm de serem atendidas no posto de saúde. No

SUS, Daniel foi criticado por olhar no rosto dos pacientes, por perder tempo

com eles. Chegou a ouvir coisas como: “por que você trata esses caras como

gente, um absurdo isso. Parece até que eles são gente.”

O encontro com Barnabás já começa a dar contornos para a sua busca,

para a experiência social que ele, Daniel, vislumbra. Sem ainda saber o nome,

começa a ganhar uma moldura, a experiência nascida a partir da escuta que

fez dos apelos das crianças cambojanas, semelhante ao apelo de Joyce.

Volta ao Brasil e é convidado a trabalhar em um ‘postinho’ ligado a uma

fundação americana, que tinha sido aberto numa favela na zona sul do Rio.

Dessa vez, sentiu-se animado; gostava da idéia de trabalhar naquele ambiente

e poder fazer alguma coisa. Ali, comenta Daniel, as pessoas atendiam direito,

olhavam no rosto, examinavam com respeito... só que com a mesma rotina de

um hospital. Tratava-se, porém, de um posto de saúde. Nessa hora Daniel se

pergunta: “O que a gente está fazendo aqui? Por que a gente não usa essa

oportunidade para fazer alguma coisa diferente? Inventar uma forma diferente

de agir.”

Depois de muito estudar, ler, conversar, Daniel e um grupo de colegas

desenvolvem uma forma nova de atuação dos médicos naquele postinho

comunitário: a atuação como Médicos de Família. Ele não teve uma idéia

genial e pôs em execução – como faria um executivo da promoção social;

também não estudou o problema como faria um sociólogo do planejamento.

Não, não foi esse seu movimento. Antes, ele se deixou tocar pelo apelo do

outro; deixar-se tocar produziu abertura e recepção. Sua primeira ação foi uma

não ação. Deixando-se tocar, ele busca, sem saber o quê e acaba por achar, já

que a própria busca gesta a possibilidade.

O que mais nos chamou atenção no caminho de Daniel é que ele pôde

escutar: primeiro, os apelos da Joyce; depois, os apelos das crianças

cambojanas; escutou também as pessoas pobres do SUS. Daniel, o poeta, é

capaz, até mesmo, de escutar o silêncio, o silêncio das meninas, como mostra

seu texto “O silêncio das meninas”:

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“Dia de sol e céu claro no Rio. A bordo de um táxi rumo ao Complexo do

Alemão, ouço as notícias no rádio: meninos sem relação com o tráfico, muitos

deles participantes de programas sociais, estão sendo recrutados para lutar na

anunciada guerra pelo poder na Rocinha. Faço as contas: a escravidão foi

abolida há 115 anos e a Declaração dos Direitos do Homem é de 1948 — 56

anos atrás.

Mas hoje é dia de festa: vai ser inaugurada a primeira unidade do Programa de

Saúde da Família no Complexo, um programa de atenção à saúde que pode

realmente contribuir para mudar a qualidade de vida dos moradores do

Alemão. Sem messianismo, mas com compromisso, trabalho e continuidade.

Na chegada ao Complexo do Alemão passamos pela Estrada do Itararé, uma

das principais artérias da Leopoldina. São literalmente dezenas de indústrias

fechadas, enormes galpões abandonados, fábricas que viraram esqueletos.

Milhares de empregos pulverizados em poucos anos.

Na pesquisa participativa sobre a situação de crianças e adolescentes no

Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro, realizada pelo Centro de Promoção da

Saúde com patrocínio da Unicef, um dos problemas que surgem com mais

força é o trabalho — ou a sua ausência.

Em nossas comunidades, a falta de perspectivas de emprego é a maior

preocupação. Os índices de desemprego chegam a 60%. Com escassas

oportunidades de qualificação, os que conseguem trabalho estão em sua

grande maioria na informalidade, ou são mal remunerados. E quando

perguntamos o que o morador pode fazer para melhorar de vida, a resposta é

quase um grito uníssono: ‘Trabalhar’!

Diante das fábricas abandonadas, surge a imagem da autofagia: uma cidade

que se devora a si própria, que se autodestrói. A violência do crime organizado

— alimentada não pelo morador, mas pelo político corrupto e fisiológico, pelos

policiais e juízes da “banda podre” e pela indiferença de sucessivos governos

— afasta a favela da sociedade, e extingue as possibilidades de trabalho

formal. Extingue-se a própria ordem, as leis sociais e a ética se “adaptam” a

uma realidade com regras próprias.

Para a sociedade, tanto melhor — parece que o crime fica mais restrito ao

‘gueto’. Mas aos poucos somos despertados desta ilusão. Nas sábias palavras

de um líder comunitário, a cidade ‘está virando um grande favelão’. Segregar

as favelas só aprofunda a iniqüidade: a causa central dos problemas de nossa

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cidade e do nosso país. Permitir que populações enormes sejam sujeitas a

todo tipo de violência só faz multiplicá-la e promover sua extensão a todas as

partes da cidade.

Na inauguração da unidade de Saúde da Família, no Complexo, após os

discursos de coordenadores, secretário e prefeito, a comunidade se mobiliza.

Agentes comunitários, moradores qualificados que percorrem a comunidade

para conhecê-la, apresentam uma peça de teatro sobre a história do Alemão —

um libelo contra a violência e, em especial, contra o estigma que associa o

morador do Complexo a algo ruim, delinqüente, marginal. Na pesquisa, uma

das principais reivindicações é esta: que a imprensa e a sociedade abram os

olhos para o que existe de bom nas comunidades. Sua gente, sua resistência,

sua criatividade para enfrentar os problemas na ausência quase absoluta do

Estado, seu enorme esforço para melhorar a vida e encontrar poesia e beleza

em meio à escassez, ao esgoto a céu aberto e à violência.

Mas prefeito, secretários, deputados e vereadores já haviam partido há muito.

E a imprensa se fazia notar pela sua ausência. A comunidade não pode

mostrar o que preparou para seus visitantes “ilustres”. Resta uma platéia

afetuosa de moradores, de coordenadores e técnicos da Secretaria de Saúde,

profissionais de saúde da unidade, lideranças comunitárias.

Depois da apresentação teatral, um grupo de doze meninas da comunidade se

prepara para dançar balé. Quando iniciam sua apresentação, o som começa a

grunhir e arranhar, até se extinguir por completo. Mas as meninas — lindas em

seus vestidos brancos, entre 4 e 12 anos, e com uma incrível diversidade

étnica — continuam seus movimentos sem qualquer hesitação. Inicialmente

tenso, o público começa a sorrir. Os movimentos perfeitos e simétricos, os

sorrisos compenetrados em meio ao eloqüente silêncio são de uma infinita

poesia. A platéia, emocionada, agradece em fortes aplausos.

Talvez aquele silêncio seja o mesmo que emana das fábricas vazias. Ou da tão

simbólica ausência das autoridades e da imprensa, ou da indiferença da

sociedade. Mas em meio ao silêncio, as meninas dançavam, lindamente.

A comunidade dança, apesar do silêncio. E quem sabe, se formos uma platéia

mais generosa, mais participativa, inclusiva e cuidadosa, a cidade pode

começar a ensaiar movimentos mais harmônicos”.

Daniel foi delineando um contorno para a experiência social da qual

seria um dos principais protagonistas. O toque – o apelo – talvez tenha aberto

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um novo caminho para ele. Esse momento originário – (com)junto com o outro

– fez emergir o sentido do seu fazer: a promoção da saúde é anterior a

doença. Foi então que Daniel organizou o Cedaps, que será discutido no

próximo capítulo.

“Meu maior mérito é que ouço muito” – José Junior

José Júnior, também carioca, é o fundador e o diretor-executivo do

AfroReggae – organização não-governamental empenhada em dar

oportunidade a jovens que estejam na ociosidade, envolvidos direta ou

indiretamente com a criminalidade.

Outro poliglota do social – o mais poliglota, como veremos, de nossos

entrevistados –, Júnior nasceu em Ramos e cresceu no centro da cidade do

Rio de Janeiro, lugar de muita corrupção, criminalidade e tráfico. Junior

considera que ter nascido e crescido nesse meio marginal foi muito

enriquecedor, pois nas ruas – e das ruas – vêm sua cultura e sua ética. Ali

cresceu e aprendeu tudo o que sabe na vida, e orgulha-se disso: “A escola não

forma ninguém como cidadão. Nunca formou e nunca formará. O que te forma

é tua casa, tua família, teus amigos.”

Aos dezoito anos, percebeu que onde morava era o mais velho; os

outros estavam presos, tinham sumido... Ele se diz fruto desse ambiente que

freqüentou no passado. Sua mãe, divorciada do pai, foi e é até hoje quem lhe

dá apoio. Comenta sobre aquele momento que

“Mesmo no meio do crime, da marginalidade, na época de 70 havia

muita ética, né, jogo de bicho, e ali, para mim, foi a fonte de formação para a

educação e qualificação.”

Junior fazia festa funk até 1992, quando então o funk foi proibido no Rio

de Janeiro. Nessa ocasião, como já havia vendido um bom número de

ingressos para uma festa funk, acabou trocando-o pelo reggae. Conheceu,

então, Plácido, mais tarde um dos fundadores do AfroReggae, e pôde aprender

muita coisa sobre a cultura afro-brasileira: “Comecei a me politizar com esse

cara, através da música ”. Eles fizeram outra festa, só de reggae. Como o lugar

era muito violento colocaram o nome de um mantra – Loka Govinda – que quer

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dizer “O Mundo de Krishna”. Foi nessa época que descobriu Shiva e várias

divindades hindus que o acompanham até hoje.

Junior percebia que tinha alguma coisa diferente dos outros: ele nunca

bebeu, nunca experimentou bebida alcoólica. Seu pai bebia muito e batia em

sua mãe. Comenta que, diante desse modelo visto em casa, para não se

revoltar, espiritualizou-se, desde os 14 anos de idade. Hoje se diz eclético:

freqüentou o Candomblé, a Umbanda, a igreja Messiânica. Freqüenta também

a igreja Evangélica, o Hare Krishna, o Budismo. Para ele, Deus é o mesmo em

todos os lugares.

Junior afirma ter aprendido tudo o que sabe na própria vida: nunca

estudou e, nesse sentido, seu depoimento é um misto de orgulho e

ressentimento:

“Você quer ver outra coisa que é um problema? Eu não estudei. O que

acontece? Quando tenho um pesadelo na minha vida, estou me vendo numa

sala de aula como aluno, eu estudando o dia inteiro, eu fico na merda, isso é

pesadelo. Quando eu sonho que estou numa sala de aula, como aluno, pois a

minha visão de uma sala de aula é da década de 80, carteira. Não é essa sua

universidade, onde se faz pós-graduação, não é isso. Aí fico me vendo como

aluno, eu tenho pesadelo, eu passo mal.”

A escola de sua imaginação é um pesadelo: uma ordem que não lhe é

familiar. Supomos que, para ele, a escola seja um misto de obediência e

autoridade (carteiras enfileiradas), submissão a um saber que não se relaciona

diretamente com a vida e com as ruas. Uma ação forçada: o contrário de sua

experiência, de sua formação, nas ruas, no ritmo da vida e da música.

Junior, como ele mesmo disse várias vezes, reage aos impactos que

sofre sempre pelo negativo, pelo oposto. Cresceu no meio de bebida, drogas,

crime e, todavia, não bebe, não fuma, não usa droga. Junior aprendeu e –

parece aprender ainda – pelo negativo.

Recusa fortemente o instituído e, ao mesmo tempo, faz um uso

inteligente desse instituído. Ele é suficientemente inteligente para fazer uma

recusa do instituído e se valer dele de forma inteligente quando lhe convém.

Rebelde, não ama a ordem – cuja metáfora são as carteiras escolares – mas,

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quando faz uma mediação entre os traficantes para ajudar a acabar com um

conflito nas favelas, usa o tênis certo, de marca, de grife, valendo-se dos

valores instituídos, pois sabe melhor do que ninguém que esse é o imaginário

das favelas: quem trafica, e os próprios traficantes mesmo, fazem isso porque,

no entender de Junior, querem ter um tênis de grife. Então, ele exibe um, e é

como se dissesse: “vem cá meu irmão, vem para o movimento cultural que eu

promovo e você também terá seu tênis de grife.” É dessa maneira que o

movimento cultural que ele lidera compete com o tráfico:

“Na sociedade consumista, tu vale o que tu veste, os produtos que tu

usa. Eu uso isso também ao contrário. Por exemplo, quando vou mediar

conflito, quando vou tirar pessoa do tráfico, eu me visto como o sonho do cara,

como é o sonho de consumo do bandido. Aí ele diz, ‘quero ver qual o tênis que

ele tem. Quero ver esse tênis aí. Ele tem o tênis que eu quero, ele tem a calça

que eu quero, a camisa que eu quero e não é bandido’!”

O AfroReggae, comenta Junior, “é um trabalho que vem do mal, que

vem de coisa ruim.” Junior não tem papas na língua, não doura a pílula: o

movimento cultural que organizou, o AfroReggae, nasceu do ódio, não é fruto

da consciência de um líder. Quem deu à luz a essa proposta são os

sobreviventes da chacina, são os filhos da exclusão organizada de maneira

global:

“Se não tivesse havido chacinas, se não tivesse morrido tanta gente, não

existiria AfroReggae. Quer dizer, vem de uma coisa ruim e vira uma coisa boa.

Não é que vem de uma coisa boa; vem de uma coisa ruim, vem do ódio. Dizer

que vem do espírito positivo não é verdade! Vem com raiva, puto da vida,

entendeu, não aconteceu porque eu me conscientizei.”

Deixa claro que seu agir não é fruto da consciência; antes, nasce da

catástrofe e tem como origem e alimento o ódio e a raiva:

“Nem sei se me conscientizei, nem sei quando me conscientizei. Sabe,

esse papo bonitinho, politicamente correto: ‘Não, porque, certo dia, eu estava

na minha casa e ...’ Mentira! Eu nunca pensei assim. Nem sei se estou

consciente, até hoje.”

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A aprendizagem pelo negativo está de novo presente em sua narrativa.

Aliás, o orgulho e a auto-estima de Junior parecem vir exatamente daí, de sua

habilidade em trocar as polaridades, das trevas para a luz:

“Quando fizemos esse movimento, queríamos apenas fazer um

barulhinho e acabou sendo um barulhão. O impacto na hora foi muito maior do

que todo mundo esperava. Se a gente queria atingir 10, atingimos um milhão.

Ninguém estava preparado, ninguém estava equipado, ninguém experiente,

nem estrutura, nem estratégia. A coisa aconteceu, muito porque tinha que

acontecer, nada acontece por acaso.”

Junior cresceu num lugar muito violento, não era favela, mas tão violento

que quase todos os seus amigos morreram. Lá, ele tinha duas opções:

“Ou eu brigava bem, ou eu roubava; e eu decidi brigar bem. Eu era muito

violento e, ao mesmo tempo que eu era muito violento fisicamente falando, eu

também era cada vez mais ‘espiritualizado’. No meu caso, era como se fosse

um vulcão. A coisa explodia. É uma mistura de frustração, fracasso, com

utopia. E isso foi muito bom. Você acaba criando um campo magnético em

torno de você...”

Interessante pensar que dos muitos movimentos que surgiram naquela

época, só o AfroReggae continuou até hoje: “O Rafael saiu, quatro ou cinco

outros morreram, o Zé, aquele que me sensibilizou, se desiludiu com o trabalho

social e saiu.” Junior contou-nos que gosta dessas causas difíceis, duras.

Conta que não teria dado certo se tivesse começado esse trabalho em outra

favela. Sentia-se motivado por essa favela, pequena, extremamente violenta,

que “quase chegou ao canibalismo, pessoas esquartejadas, era muito punk.”

Comenta que não planejou nada, simplesmente deixou fluir.

Planejamento é importante, mas nem tudo tem que ser planejado:

“O movimento – refere-se ao AfroReggae – projeto tinha tudo para dar

errado e deu muito certo. Eu acho que a intuição tem que ser a coisa mais

importante. Por mais que a gente viva num mundo ocidental, eu me sinto mais

oriental. Nem tudo tem um porquê.”

Mais uma vez, o momento originário que faz nascer o novo no social não

pressupõe planos, projetos, intenções conscientes. Difícil falar do momento

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originário para Junior, porque esse momento que deu origem ao movimento

cultural escapa das regras comuns, coletivas, instituídas. Como ele próprio nos

contou, é capaz de uma escuta incomum: ele escuta muito. Escutou o lado

sombrio da vida e se aventurou a dar-lhe luz e forma: é daí que nasceu sua

ação política e a dos seus companheiros. É incômodo dizer, mas Junior e os

outros Juniors puderam escutar os temerosos gritos da chacina. É desse

campo minado, desse ódio atroz, que nasce o sentido da nova experiência.

Tanto Junior, quanto os demais Juniors, não parecem dispostos a esquecer

disso; antes, transformam o imenso desconforto desse momento originário em

lembrança, em memória que os alimenta.

Assim, nasceu o movimento AfroReggae – que discutiremos no próximo

capítulo.

Vida de princesa-camponesa: Vera Cordeiro

A carioca Vera Cordeiro, fundadora da Associação Saúde Criança

Renascer, que tem como principal objetivo a recuperação de crianças e a

reestruturação de suas famílias, passou os primeiros dez anos de sua infância

em Bangu rodeada de pessoas muito pobres. Tinha, desde pequena, a mania

de pegar os brinquedos e as bonecas que ganhava de suas tias e dar para as

amigas, vizinhas do lado, que não tinham nada. Contou-nos que, um dia, sua

babá ficou tão desesperada que, pensando em puni-la, pegou todas as coisas

do armário e começou a distribuir também: “Ah é, você quer distribuir, então vai

ficar sem roupa.”

Mais tarde, seu pai, um executivo, ascendeu profissionalmente e eles se

mudaram de Bangu para Copacabana e, depois, Leblon. Vera, como era a filha

mais velha, foi uma espécie de mãe de seus dois irmãos: quando voltava da

escola, acabava tendo de cuidar deles, ajudar a fazer seus deveres.

Seu pai, engenheiro, era bastante comprometido, organizado e rigoroso;

estava sempre preocupado em como pagar os seus funcionários. A mãe

envolvia-se com escolas, sempre pensando em como melhorá-las. Ao

comentar isso, lembra-se de um episódio de sua infância, relacionando-o com

a casa em que funciona a sede do Criança Renascer:

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“Um dia de aniversário, meus pais fizeram uma casinha cor de rosa; o

desenho da casinha é esta casa aqui. Eu vou te mostrar a foto; um dia eu vou

recuperar essa foto com minha mãe.”

Cresceu marcada pela dualidade ser camponesa versus ser princesa,

morar em Bangu versus morar no Leblon. Naquela época, o ensino público era

muito bom: seus colegas da Medicina na Universidade Federal do Rio de

Janeiro - UFRJ não eram ricos. Seus irmãos fizeram faculdade particular e

nunca saíram da classe social a que pertenciam, e ela convivia, então, com

pessoas de vários níveis sociais. Em casa sentia-se “uma carta fora do

baralho”, conforme contou:

“Então o meu lado camponesa estava presente até na faculdade, e

Faculdade de Medicina é um soco no estômago, porque você convive com a

desgraça o tempo inteiro, com o sofrimento o tempo inteiro e o sofrimento

humano sempre me tocou.”

Vera se vê distante dos valores familiares; vai se distanciando da

realidade em que vivia, das viagens que fazia, do golfe que jogava... Formou-

se em clínica geral, fez um ano de especialização em nefrologia, trabalhou na

psicossomática e, mais tarde, na pediatria.

Nesse momento, percebe que a miséria faz parte do universo do

médico. Lidar com as dores na/da pediatria em um hospital público estava tão

pesado que seus amigos recomendavam: “Vera, sai da pediatria... Miséria,

criança. Volta para a clínica médica; vai fazer grupo de asmáticos, você sempre

fez isso com tanta alegria. Por que você foi se meter na pediatria?” Mas ela

insiste:

“Na pediatria era vida e morte com muito mais violência e com o

sofrimento infantil, que me comove profundamente, porque acho que o adulto

criou alguma forma de lidar, de resistências internas e externas para lidar com

o sofrimento, mas criança... Se eu fosse o Kofi Annan, eu começaria por ajudar

crianças miseráveis, mães com filhos doentes. Não tem sofrimento maior do

que a mãe assistir ao filho morrer a médio, longo prazo. A criança tem uma

doença crônica, tem cardiopatia e a mãe não tem o dinheiro da condução para

voltar para o hospital, não tem o analgésico para dar em casa.”

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Vera morava em um bairro de classe média alta, com marido executivo e

duas filhas. Nas férias, sempre viajava para lugares maravilhosos e, quando

voltava, tinha de lidar com o outro lado da vida. Havia o sofrimento de mães

querendo doar o filho para que ela cuidasse, e esse tipo de situação reforçava

sua posição princesa-camponesa. Queria mudar isso.

Na época em que trabalhava na psicossomática, seu papel era entender

o problema que os pacientes traziam e ajudá-los; na pediatria, foi um choque.

Imaginava que sua maior dificuldade estaria em como transmitir o trágico

diagnóstico, em como encorajar esses pais a lidarem com a doença de seus

filhos. Para sua surpresa, ouvia falas como essa:

“Dra. Vera, não perca o seu tempo, eu já entendi que ele tem que fazer

quimioterapia, eu já aceitei, eu já passei por muitos pedacinhos nesta vida. A

gente mora na roça, eu tive dez filhos. Um dia passou um trator, e um morreu.

A senhora não tem um pedacinho de lençol usado? É isso que eu quero da

senhora.”

Vera percebe que muitas vezes essas mães tinham uma força, um lastro

de vida para lidar com a morte, que ela mesma não tinha. Aquela mãe só

queria um lençol, e para quê?:

“É que eu preciso de um agasalho. Eu sou de Juiz de Fora, de Minas. Eu

estou aqui na casa de uma cunhada, na Baixada Fluminense. Eu não tenho

dinheiro para a passagem e nem tenho casaco para botar no meu filho. Se ele

ficar gripado o Dr. Geraldo vai parar a quimioterapia.”

Vera, ainda em estado de choque, pensa:

“Meu Deus, essa mulher está pedindo um agasalho, ela não quer cuidado com

a depressão. Ela sabe cuidar melhor da depressão dela e do filho do que eu. Aí

eu comecei a fazer listas na pediatria para comprar agasalho.”

Vera escutou o desamparo dessa criança e dessa mãe, e foram

justamente escutas como essa que a transformaram. Esses e outros casos

semelhantes fizeram com que ela se mobilizasse a sanar outros aspectos

intrínsecos à doença. Seus colegas, ainda indiferentes a essas carências,

começam a questioná-la:

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“Você foi clínica; aí você fundou a psicossomática, agora você anda

fazendo trabalho de passar listas para conseguir recursos para comprar

prótese. Você é o quê? Você é irmã de caridade?”

Ao que ela responde:

“Você quer que eu seja muito sincera? Eu não sei mais quem eu sou.

Eu só sei que eu trabalhei, estou aqui no hospital há doze anos, mas na

pediatria eu não sei quem eu sou. Eu não posso explicar, então. Aí eu comecei

a conceber como seria uma associação que desse conta disso.”

Vera constata que algumas crianças não se recuperam, ou voltam

doentes depois de pouco tempo de alta, por diversas razões: fome, frio... enfim,

inúmeras razões; não necessariamente por bactérias. Havia 60% de

reincidência em menos de seis meses de alta. Alguma coisa teria de ser feita.

Começaram rifando um lençol. Mais tarde, funcionários do hospital e

voluntários começaram a se encontrar no Parque Lage, no Jardim Botânico,

em um espaço onde antes se guardavam cavalos, cedido gratuitamente. O

grupo juntava dinheiro, todos os meses, para comprar remédios e

mantimentos, que eram distribuídos às famílias.

“Fazíamos uma caixinha para mães sustentarem crianças que tinham

alta. Uma delas se internava repetidamente com pneumonia. Fui investigar e

percebi que tinha goteiras na casa. Mas se o médico prescreve o remédio e a

psicóloga lida com o emocional, quem lida com a miséria?”

Contamos a seguir a história de Jorginho, um caso emblemático do Criança

Renascer:

Jorginho nasceu doente, com má formação congênita: má formação

cardíaca, má formação do esôfago e uma outra que Vera não se lembra mais.

De qualquer forma tratava-se de um caso bastante sério e com várias

indicações cirúrgicas. Na época com cinco, seis anos, morava na periferia do

Rio com a mãe e o pai – que estava envolvido com o tráfico de drogas,

acabando, mais tarde, por ser assassinado – e com quatro irmãos. Sua mãe,

além de ter que lidar com o fato do marido ter sido assassinado, de Jorginho

ser tão doente e de ter mais quatro filhos para cuidar, tinha sofrido

recentemente um estupro.

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Como Jorginho não tinha esôfago, era alimentado por gastrostomia – um

acesso direto do estômago ao meio externo criado artificialmente por uma

cirurgia. O complicador, além dos outros fatos já citados, era que moravam

numa casa sem a menor condição de higiene, o que comprometia

sobremaneira a recuperação de Jorginho. Vera sofria só em imaginar uma

criança debilitada, sendo alimentada externamente por ampolas nesse

ambiente infectado:

“Meus Deus do céu, essa criança jamais vai conseguir fazer todas as

cirurgias que precisa e sair ilesa disso com essa moradia. Fora que eles não

tinham dinheiro para transporte, para chegar ao hospital. Ele ficava 3 dias

internado, fazia uma parte das cirurgias reparadoras, depois tinha que voltar

para casa e voltava outra vez para o hospital...”

A preocupação de Vera não pára aí, vai além: afinal, quem cuidaria dos

irmãos menores para essa mãe poder acompanhar Jorginho?:

“Caramba, essa mãe não dá conta. Tem que levar esse filho para o

hospital toda hora, sem dinheiro para pagar a condução, porque ela não gera

renda. E os outros filhos...”

Mais uma função para o Criança Renascer, percebe Vera. Conseguem,

assim, encaminhar os outros filhos para uma espécie de orfanato. Eles

cuidavam das crianças durante a semana e nos finais de semana elas ficavam

com a família. Só dessa maneira, essa mãe poderia se dedicar a Jorginho.

Tratava-se de uma pessoa especialmente esforçada: “para gerar uma renda

corria nos intervalos e fazia uma ou outra faxina.” E o Criança Renascer

complementava dando comida, vale transporte, medicação... Era a única

alternativa para eles, comenta Vera:

“Ela não tem condições higiênicas em casa, não tem condições de

cuidar dos outros filhos, que vão acabar indo para a rua virar bandido. O

marido já foi morto. Ela tinha um amor enorme por esse filho doente, e ele vai

acabar morrendo.”

O maior risco que Jorginho corria não estava nos procedimentos

hospitalares, estava no pós-alta. Esse caso reforçou mais ainda a razão de ser

do Criança Renascer. Essa família foi amparada em tudo, foi praticamente

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construído um projeto em profundidade de apoio a eles, um projeto no qual se

recupera a estrutura familiar inteira.

Hoje, Jorginho estuda e está praticamente dentro do exército. Esteve na

festa de 15 anos do Criança Renascer, dia 25 de outubro de 2006, e Vera

contou-nos emocionada: “Hoje ele está praticamente empregado, é um

homem, tem um metro a mais do que eu.”

No projeto Criança Renascer , a alta só é dada quando todas as

crianças da família estiverem na escola e, pelo menos, um adulto conseguir

renda entre R$ 180 e R$ 250, além do dinheiro para o aluguel. É a passagem

da miséria para a pobreza. O objetivo não parece grandioso, porém representa

muito para quem participa do projeto social:

“A gente estuda muito, faz seis anos de Medicina, toda a residência, e o

ato médico não tem sentido. O Renascer deu sentido ao ato médico, quer

dizer, o Renascer não deu sentido somente para aquelas famílias.”

Na narrativa de Vera Cordeiro, fica claro que o momento originário do

projeto social que ela fundou e preside foi precedido pela sua própria

transformação: de impasse em impasse, abrindo mão de seu papel social como

médica, papel social que é vivido por muitos, de forma onipresente, Vera vai se

transformando.

Dá-se conta de que o mundo não funciona como lhe ensinaram, que

suas tentativas de intervenção são idéias infrutíferas; dá-se conta de que os

pacientes dos hospitais públicos pedem socorro e, todavia, não encontram

acolhimento, pois ninguém escuta, ninguém cuida. Vera já não sabe quem ela

é. Esse esvaziar-se de seu papel social lhe permite, supomos, uma escuta a

apelos aos quais outros profissionais mantêm-se indiferentes. Afinal não lhes

cabe ser governo. A ela também não cabe e, todavia, é nessa direção que ela

vai: na direção das políticas públicas, de cuidar das famílias miseráveis.

Quando nem mesmo ela sabe para onde está indo, o sentido emerge: para que

haja saúde é preciso muito mais que um hospital público.

Nasce a Associação Saúde Criança Renascer – uma ONG que busca

interromper o ciclo vicioso “miséria-doença-internação-reinternação-morte” de

crianças pobres e suas famílias, que discutiremos no próximo capítulo.

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“Eu era muito agressivo e me refugiava nas leituras” – Jaílson

Jailson, geógrafo e doutor em Sociologia da Educação, fundou a

organização social Observatório de Favelas, que tem como eixo central a

formação de pesquisadores intelectuais com amplo conhecimento a respeito de

favela.

Filho de imigrantes nordestinos, Jailson nasceu na periferia do Rio,

numa favela hoje chamada Brás de Pina. Aos 11 anos, sua família mudou-se

para perto do Irajá, também um bairro de periferia, mais próximo da Penha.

Seu pai, cabo dos fuzileiros navais e único provedor da família de oito filhos,

aposentou-se prematuramente em razão de dois enfartes. Criou os filhos

homens para a carreira militar: seriam oficiais da Marinha. Apesar de ser

homem de personalidade forte, e conservador, bebia muito. Nunca pedia nada

a ninguém e tinha horror à classe política e aos governantes. Sempre dizia,

conta Jailson, que “quem tem que se meter com política são os poderosos, que

eles estão sempre por cima”.

Seu pai teve 16 irmãos e nenhum deles estudou. Talvez por essa razão

fizesse questão que seus filhos terminassem o segundo grau; não deixou

ninguém trabalhar até os 18 anos. Jailson aprendeu a ler muito cedo, com

cinco ou seis anos. Sempre leu muito, tinha mesmo uma compulsão pela

leitura. Passou a infância jogando bola e lendo.

Contou-nos que “era muito agressivo: tinha uma resposta agressiva para

tudo”. Não era provocador e arrogante, mas suas respostas eram agressivas:

“No ambiente popular em que eu vivia, criança tinha de dar uma resposta muito

viril”. Nesse sentido, via na leitura uma forma de se refugiar, de fugir da

realidade que o cercava, o que acabou levando-o a se tornar um ótimo aluno.

No entanto, sentia-se contraditório: por um lado, era muito agressivo; por outro,

muito bom aluno. Acabou obrigado a ser monitor de classe, “um papel horrível”

: “Era o cara que apagava os quadros, anotava as aulas...”.

Com 14 anos, começou a freqüentar a igreja, entrando em um grupo de

jovens – seu primeiro grupo social – e, embora não fosse religioso, envolveu-se

com esse grupo. Naquela época estouraram muitos grupos jovens nas igrejas

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católicas da periferia, que se constituíram como espaços de formação. Sua

família não era religiosa, mas sua mãe, embora não freqüentasse a igreja,

torna-se muito religiosa; seu pai era próximo do espiritismo e sua tia, que

ajudou a criá-los, era mãe-de-santo. Ninguém tinha nenhum envolvimento com

a igreja católica.

Ele tinha fama de ser muito cruel nas brigas, e nos conta que “... uma

vez eu briguei com um menino. Eu raspei a cabeça dele contra um muro

chapiscado. Fiquei com fama muito ruim e não precisei mais brigar...” Brigou

pela última vez com 17 anos, ”com um cara imenso, que era muito folgado.

Acabou virando até amigo. Era um cara muito grande, um metro e noventa,

forte, mas personalidade muito fraca, muito infantil. Folgado, o Ivo. Foi a última

vez que briguei na vida.”

Comenta que depois disso mudou muito, passando a ser aquela pessoa

que “está sempre querendo arredondar”. De tanto ler, ia se instruindo e, com

isso, diferenciando-se e afastando-se da realidade difícil que o cercava. Na

universidade, fez parte do movimento estudantil e descobriu o pensamento e a

ação política de esquerda:

“Até os 19 anos, eu nunca tinha visto uma pessoa de esquerda, nunca

tinha conversado com uma. Eu ia fazer História, porque gostava. Eu queria ser

professor. Desde os 14 anos eu queria ser professor.”

Quando passa a freqüentar a igreja, seu comportamento muda. Ele se

envolve com atividades coletivas, na coordenação. Ao assumir o papel de

liderança, percebe que sua fala se torna cada vez mais forte. Quando entra na

política “sua raiva e agressividade vão se ‘arredondando’.” Na igreja,

desenvolveu uma consciência muito crítica ao mundo capitalista. Ele queria ser

; não, ter. Seu pai valorizava muito o conhecimento, os livros... , lia muito,

mesmo só tendo estudado até a terceira série primária.

No percurso de Jailson, fica claro que ele tinha uma família muito bem

estruturada, uma família movida pela esperança:

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99

“Nós damos muita força a nós outros, estamos sempre juntos. O

sentimento familiar é muito forte. Meus pais tinham um projeto muito bom para

os filhos. A partir da concepção da construção de um projeto do futuro, seja

pessoal ou coletivo, você pode transformar sua vida ou a vida coletiva.”

Jailson queria sair da condição de culpado diante do mundo. Leu alguns

livros de J. P. Sartre e se identificou com o existencialismo em alguns aspectos

fundamentais:

“Primeiro com a idéia de que a vida não tem nenhum significado em si

mesmo; quem dá significado a ela é você. Isso me ajudou a romper com a

lógica de devedor do mundo. Eu ainda tenho, mas eu tento fugir ao máximo

dela. Eu não me sinto culpado diante do mundo, mas tenho obrigação diante

das pessoas. O que eu faço em termos de militância social é que dá

significado.”

Dando sentido para sua vida..., no plano ético e político não se conforma

com a sociedade existente. Não consegue compreendê-la, não entende por

que as pessoas valorizam coisas tão banais, como ter um carro cada vez mais

luxuoso, um apartamento em Paris, um apartamento em Roma:

“É um ter que não tem fim. O grande produto do capitalismo, aprendi

cedo na igreja, é a carência. Você produz a carência; você produz a

obsolescência... Então vai gerando uma produção excessiva de carência. Está

sempre na busca de construir um padrão de vida através de bens distintivos

que estabeleçam novas hierarquias sociais. E você no topo. E isso vai gerar

inclusive a valorização da vida diferenciada.”

Jailson afirma que quer ser feliz desde já; quer ser pleno, e, para

isso, tem de colocar em questão sua vida:

“Por isso eu busco tanto meu caminho pessoal, meu caminho

profissional. Ter uma vida digna, ganhar um salário justo, viver de forma justa,

buscar o que eu acho certo. Nunca tive um discurso, como um amigo meu

dizia, que era impossível às pessoas viverem enquanto houvesse pobreza. Isso

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é uma maluquice. A felicidade é estar no caminho, é buscar cada vez mais ser

uma pessoa intensa, plena, que viva de forma coerente com o que acredita.”

Jailson queria ser professor e foi, então, para a faculdade. Seu pai

achava um absurdo ele fazer uma universidade; caso fosse, deveria fazer

Direito. Jailson falava muito bem e gostava de falar, seria um ótimo advogado,

dizia. Só que ele queria ser professor, e não advogado, e sendo um ótimo

professor conseguiria ter uma vida digna. Na década de 70, ainda dedicado à

Teologia da Libertação, ingressa na Faculdade de Geografia e vai se

politizando:

“Na minha militância vai se colocando um sentimento de afirmação da

minha identidade, que foi se conformando também no processo e, quando eu

entro na PUC, isso fica muito claro. A PUC foi uma experiência muito boa para

mim porque eu sempre tive horror ao sectarismo, uma posição sectária.”

Na pós-graduação, pesquisou os favelados que ingressam na

universidade, e essa pesquisa transformou-se em um livro cujo título é Favela:

alegria e dor na cidade. Quando entrou no Partido dos Trabalhadores - PT,

tinha consciência de que o mundo estava dividido em duas partes:

“O povo da esquerda era generoso, altruísta, aberto, queria transformar

a humanidade, defendia práticas coletivas, enquanto o povo da direita era

conservador, era um povo que não tinha consciência coletiva, era egoísta.”

Jailson ficou por dez anos no Partido, foi um dos dirigentes do PT, até

que em 90 tem de optar:

“Eu saio. Estava muito insatisfeito com o PT. O que acontece com o PT

hoje já começava a acontecer no início da década de 90. Falei, eu tô fora; não

vou entrar nessa. Saio do PT e aposto na carreira acadêmica, justamente

envolvido com a sociedade civil...”.

Na faculdade, lê um livro que seu irmão havia recebido como prêmio

num jogo de futebol na TV Excelsior, Cartas do Cárcere, de Gramsci:

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101

“Eu fiquei tão impressionado por esse cara ser tão importante, mas tão

importante, que até as cartas que mandou da cadeia foram publicadas no livro.

Para mim uma coisa sagrada, o livro... Virei gramsciano101”.

Comenta que sua trajetória com Gramsci foi muito solitária e que se

identificou com a idéia do “intelectual orgânico” em sua experiência de

educação popular:

“Ele, como eu, era um cara que lutava pelo que acreditava; valorizava a

escrita e essa coisa rebelde dele, essa identidade com seus conceitos. Eu

sempre fui, no plano da luta política, muito mais culturalista; sempre achei que

não bastaria só a mudança das forças produtivas. A mudança da cultura para

mim é fundamental.”

Gramsci trabalhava com a idéia de bloco histórico, de aliança, e com uma

idéia de Estado que muito interessou Jailson: “Eu fui construindo minha

caminhada com Gramsci de uma forma muito próxima.” Jailson era muito

crítico, muito contra o sistema:

“Gramsci me permitiu temperar a minha origem popular e as mediações

que eu buscava trabalhar na vida com a dimensão cultural, do comportamento

e da lógica da necessidade de mediação.”

Jailson foi marcado por um conjunto de autores e obras que, junto com

Gramsci, foram determinantes em sua trajetória. Sobre isso contou-nos:

“Fernão Capelo Gaivota, que li mais de dez vezes, e o Existencialismo e

Humanismo, de Sartre, são os dois textos que mais me definem no campo da

subjetividade. E a discussão do intelectual orgânico de Gramsci também define

muito a minha inspiração no projeto educativo”.

Depois dessa leitura, seu interesse por Gramsci aumentou ainda mais,

uma vez que suas teorias aproximavam-se muito da perspectiva religiosa da

Teologia da Libertação, que dava importância ao valor e à ética, e propunha

uma mudança da cultura, uma mudança do comportamento da sociedade, via

101 Antonio Gramsci (1891 – 1937), comunista italiano, filósofo e cientista político, desenvolve a idéia do intelectual orgânico em que cada classe social cria um bloco de hegemonia cultural.

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transformação cultural. As teorias de Gramsci valorizavam muito a ação

humana, o comportamento do indivíduo e do coletivo, e menos as

determinações econômicas. Jailson comenta que “... quando se é do Partido,

descobre-se que ideologia é uma coisa, caráter é outra, práticas individuais são

outras. Então isso me ajudou a romper com o sectarismo.”

Localizamos, na surpresa do encontro com as cartas de Gramsci, seu

momento originário. Contou-nos Jaílson que “...com perspectiva de mudança

pessoal e coletiva, via a capacidade de construir uma nova hegemonia. Isso foi

formando um caldo de cultura onde fui me constituindo.”

Jailson se vê, a partir desse momento originário, como um “intelectual

orgânico da classe operária”. Percebe que está fazendo uma “política

orgânica”, uma política que é fruto dessa classe a que pertence. Essa

percepção, a força dessa percepção redefine-o politicamente. Deixa assim o

PT.

Visivelmente, Jailson vive um processo de ascensão econômica e

cultural. E, todavia, por intermédio de Gramsci, compreende qual é o seu lugar,

na medida em que não abandona suas origens, suas raízes sociais e

econômicas. Este parece ser o sentido inscrito no seu momento originário e

presente na organização que preside: o Observatório de Favelas. A proposta

do Observatório de Favelas é mudar o olhar que se tem sobre a favela e o

favelado. Mostra as favelas como um lugar complexo, e não só de violência e

pobreza; pretende, também, mudar o olhar da mídia, chamar a atenção para

seus equívocos, como o que relatou:

“Quando teve a guerra Vidigal x Rocinha, o que teve de editoriais,

jornalistas falando absurdos. A proibição dos direitos de ir e vir do morador da

Barra, era impressionante. Acontece muito aqui no Rio de Janeiro; tem tiroteio

na favela. A notícia que aparece é esta: moradores de Ipanema não

conseguiram dormir por causa do tiroteio no Cantagalo. E os moradores da

favela, conseguiram dormir? Ou então: o pessoal lá está acostumado a tapar

o ouvido. Esse tipo de juízo é muito comum. Você trabalha valorizando ao

extremo alguns indivíduos e outros, não.”

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Jailson idealizou e montou o Observatório de Favelas que discutiremos

no próximo capítulo.

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104

CAPÍTULO 5 : Travessias da/na Experiência Social

O que dizer dessas novas figuras sociais, desses poetas poliglotas do

social? O que dizer sobre suas experiências, travessias? Algumas pistas –

metáforas provenientes das narrativas – nos permitiram as considerações que

seguem.

O que os constitui – e isso é comum para todos os entrevistados – é a

escuta social que foram capazes de fazer. Uma escuta cuidadosa que

considera os valores e saberes locais, que valoriza o “mundo da vida”. É dessa

reviravolta que decorrem todas as outras marcas que nos permitem

estabelecer diferenças em relação às identidades ditas convencionais.

Enfatizamos a idéia de reviravolta porque todos os entrevistados

parecem, de alguma maneira, grandes conhecedores, verdadeiros intelectuais

e, todavia, não propõem, não dirigem, não planejam. Propor, dirigir, planejar,

produzir, fabricar, moldar a realidade, como se sabe, são as atribuições dos

intelectuais no paradigma moderno. Ao contrário disso, os nossos

entrevistados fazem uma escuta (poética) do social e só partem para a ação –

muita ação, diga-se de passagem – para atender apelos, demandas sociais,

gritos de dor. Todos eles abrem mão da especialização de suas funções –

outra marca do paradigma científico moderno – e se tornam, em suas

travessias, multi-referenciais. Nossos entrevistados provam que a vida – uma

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vez que é com a vida que estão preocupados – não se deixa cuidar de forma

especializada, demanda referências múltiplas.

Pluralidade de interesses

Daniel, quando pela primeira vez se propõe a ser fellow da Ashoka, é

reprovado porque não tem foco. Na entrevista, aliás, isso ficou muito claro:

gravamos durante um almoço em um restaurante incrivelmente barulhento,

interrompidos por um ou dois celulares que o chamavam, e Daniel respondia

em várias línguas. Além disso, ele transborda idéias, associações, lembranças

felizes – momento em que ri – outras nem tanto. O fato é que ele transborda:

daí, possivelmente, provém sua ausência de foco. É difícil para ele estar aqui,

ficar aqui. E, todavia, essa ausência de foco, que poderíamos traduzir em uma

pluralidade de interesses, parece ser o trunfo de nossas figuras sociais. Eles

parecem compor o que Habermas chama de “identidades pós-convencionais”,

identidades que se constroem intersubjetivamente e passíveis de

transformação.

Essa pluralidade de interesses parece ser o que permite a Daniel uma

mobilidade psíquica, um cruzamento de idéias pouco comum na subjetividade

moderna, que é centrada em um único foco, fixa, idêntica, consciente e

transparente para si mesma. Exatamente por ser assim, uma psique plural,

Daniel demonstrava imenso prazer quando, na entrevista, dizia ”ter encontrado

a sua praia”, ter descoberto o ”seu clube”, ter o sentimento de pertencimento.

Sem dúvida, ter se tornado fellow da Ashoka lhe possibilitou sair da solidão e

encontrar os seus pares.

A solidão existencial, que de tempos em tempos experienciam esses

poliglotas sociais, desvelou-se como algo novo. Estão muito longe dos

militantes políticos de esquerda – como cantava Geraldo Vandré, na música

Disparada, estavam “com a história na mão”; estão também longe dos

representantes políticos – senadores, deputados, vereadores – que se

propõem a representar o povo; como também estão longe do inventivo

empreendedor capitalista, mais preocupado em gerar empregos para os

trabalhadores sem, todavia, deixar-se tocar por esses mesmos trabalhadores

que, em função da lógica do lucro, multiplicaram suas carências. No alvorecer

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do século XXI, um novo tipo de identidade parece estar ganhando contorno,

uma identidade pós-convencional, aquela dos poliglotas sociais,

Ressalto ainda outra característica desses poetas do social, presente em

todos os entrevistados e, particularmente, em Daniel. Eles são – parece

mesmo ser uma qualidade de todos eles – incapturáveis. Todos os nossos

entrevistados parecem ter medo de ser capturados e, então, aprisionados.

Daniel deixa isso claro quando diz que ”ter um chefe, obedecer a um chefe” é o

que mais teme. Não cair nessa armadilha – um enquadramento funcional e

também existencial – não se deixar seduzir por essa armadilha parece ser

tarefa de vida e de morte.

O horror que esses poetas do social revelam frente à captura, à

possibilidade de serem capturados (pelo sistema) é evidente. O que, afinal,

isso quer dizer?

Não nos parece que, por trás desse horror à captura, essas figuras

sociais estejam em busca dos bens almejados pelos homens comuns: riqueza,

poder, prestígio. Temos um palpite diferente: capturados e escravizados por

qualquer um desses almejados bens, passariam a ser algo, a estar em algum

lugar definido – seriam localizáveis e, então, teriam uma identidade fixa. É

justamente esse enquadramento que temem; como “identidades pós-

convencionais” têm necessidade de evitar convenções petrificadas, impostas

pela sociedade. Só se sentem confortáveis em casa: na sua pluralidade

psíquica, num acontecer inventivo, criativo, relacional e volátil. Gostam de criar-

mundos-com-os-outros. Mundos novos, mundos não projetados nem

imaginados, vários mundos com vários outros, mundos que nascem do diálogo

com o outro.

Tradução e mediação dos mundos

Outra característica de nossas figuras sociais é a capacidade que têm

em traduzir mundos. Eles conhecem – metaforicamente – várias línguas e,

então, traduzem um mundo para o outro mundo. Traduzem do “mundo da vida”

– seus desejos, suas carências, seus apelos, suas necessidades – para o

mundo das outras organizações, para as instituições financiadoras nacionais e

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internacionais, para o mundo político, para o mundo empresarial. São

tradutores, excelentes tradutores: poliglotas sociais. Vivem entre mundos:

traduzem um mundo para o outro e, então, não representam o outro: não se

fazem passar pelo outro; não têm uma verdade a ser ofertada para o outro,

nesse sentido não militam; não empreendem no sentido de promover uma ação

criativa a partir de si mesmos. Facilitam, traduzem e fazem mediações entre

mundos. Como o “filósofo poliglota” de Habermas, eles querem mediar

mundos: o “mundo da vida” – “razão comunicativa”, solidariedade – e o “mundo

sistêmico” – “razão instrumental”.

Todos os entrevistados têm muita habilidade em intermediar, em atuar

no entre: são hábeis em estabelecer diálogos pontuais, pois as questões entre

as comunidades, o poder público, as universidades, as outras organizações da

sociedade civil e do mercado nunca se esgotam. As narrativas que

apresentamos a seguir são pródigas ao mostrar como esses poliglotas sociais

agem: quantas línguas foram obrigados a aprender. É no mundo do entre que

parece habitar a nova qualidade desse movimento social autônomo,

organizado a partir da sociedade civil. É interessante, então, prestar atenção

em nossos entrevistados quando afirmam que não querem ser coadjuvantes e

sim protagonistas.

Estar entre mundos, por vezes, é enfrentar a violência e, neles, a

mediação é risco. É exatamente este o caso de Júnior, fundador do movimento

AfroReggae.

O caos e a ordem

Mais do que conviver com o caos e a ordem, essas figuras sociais, em

suas travessias, se inspiram em Shiva – divindade hindu, deus da destruição e

da transformação.

Para Júnior, sua travessia tem uma cara, a cara da ”conexão Shiva”.

Nascido da destruição, o movimento AfroReggae ajudou a transformar a cultura

da favela Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Em nenhum outro entrevistado ficou

tão claro o lado sombrio e destrutivo inscrito no mundo e na ação. Em nenhum

outro entrevistado ficou claro também o lado luz e transformador: o movimento

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cultural como verdadeira antítese da violência e da destruição. Junior, o

mediador de mundos, entre-mundos, o da violência: de um lado agentes da

ordem – a polícia – contra o tráfico e os traficantes, em meio ao “mundo da

vida” dos moradores da favela, cidadãos comuns.

A narrativa do mediador é crua e dura, acostumado com a violência e a

destruição, não doura a pílula, como já dissemos. Esse contato com o lado

sombrio, duro e violento da vida, mas também luminoso, redentor e

esperançoso faz desses mediadores identidades diferenciadas.

A convivência com a pluralidade e com a diferença é motivo de orgulho

para o movimento AfroReggae. Dele fazem parte: homossexuais,

heterossexuais, ex-policiais, ex-traficantes, homem que bate em mulher,

evangélicos e religiosos, contou-nos Junior. Psiques plurais, movimentos

culturais plurais: essa convergência é possível.

A conexão Shiva – o movimento AfroReggae – é especialista em fazer

ligações que pareceriam impossíveis: ligam destruição e transformação, ligam

o social e o cultural. Fazem, também, como vimos, ligação entre os diferentes.

Com eles a diversidade – de gênero, de raça, de condição sócio-econômica, de

cultura e temperamento – torna-se realidade. São mestres em ligar o diverso.

As travessias desses poliglotas sociais partem da intuição e do faro.

Quando tudo parece perdido, uma sincronicidade pode socorrê-los. É assim

que age Vera Cordeiro, a mais multi-referenciada de nossos entrevistados.

Médica pediatra especializada em psicossomática e fundadora do Criança

Renascer, conforme já visto, Vera conta em sua travessia, tanto pessoal como

da organização que preside, com o I Ching, com a astrologia, com as

sincronicidades que não param de se dar, com sua intuição, com seu faro e,

por que não dizer, com sua capacidade de amar. Inspirando-se em Goethe,

Vera confia que, quando há compromisso “todo o universo conspira a nosso

favor”. Eis a maneira como a esperança – elemento intrínseco para se pensar

em uma mudança na cultura política – entra no mundo: pelas mãos da

espiritualidade.

É Junior quem afirma:

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“Eu acho que as coisas vão melhorar. E vou estar vivo para ver a

mudança. Não vai demorar tanto. Tudo isso é uma catástrofe para vir o

positivo. Quando você fala em AfroReggae para algumas pessoas, você fala

em esperança, mudança.”

Mais uma vez Shiva na vida do AfroReggae.

Daniel e o Cedaps

Daniel, como já vimos, fez pediatria, não queria fazer clínica, pois nela a

doença prepondera e detestava doença. Só sabia uma coisa com certeza,

gostava de saúde. Em 1993, funda o Cedaps – Centro de Promoção da Saúde

– que estimula o desenvolvimento local a partir da percepção dos problemas

sociais.

Nas favelas, áreas esquecidas pela sociedade em geral, a pobreza, a

violência e o crime, as condições sanitárias e a poluição comprometem a saúde

e a vida de seus habitantes. As favelas têm um rápido crescimento

demográfico e sofrem a escassez de serviços e de transporte público, a falta de

opções de lazer, a ausência de profissionais de saúde, o que dificulta atrair e

manter estes profissionais na área. É, então, neste cenário que o Cedaps foca

suas ações.

O Cedaps oferece aos moradores de uma determinada comunidade

condições para desenvolver seus próprios projetos, e promove uma série de

oficinas participativas para que eles façam um diagnóstico dos problemas de

sua comunidade e criem um Grupo Gestor. A partir daí, o Cedaps dá

acompanhamento na elaboração de projetos e viabilização dos mesmos,

estabelecendo parcerias com outros setores da sociedade, inclusive

autoridades públicas e iniciativa privada, e estimula o desenvolvimento

sustentável.

O projeto termina quando o problema foi resolvido e as pessoas foram

beneficiadas. Para estimular que essas práticas se espalhem, Daniel

desenvolve o Caderno das Melhores Práticas do ISC – Instituto de Saúde

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110

Coletiva102, que descreve detalhadamente essas experiências, podendo assim

inspirar novas idéias às autoridades e, quem sabe, serem replicadas e

ampliadas beneficiando um número maior de pessoas.

Um dos fatores que garante o bom resultado das intervenções do

Cedaps é o fato de estar concentrado em apreender e estimular a troca da

sabedoria que circula nas comunidades, constituindo redes de ação. Dessa

forma, um conjunto de pessoas, iniciativas e instituições se complementam e

compartilham conhecimentos e soluções e, mais importante ainda, o fazem de

dentro para fora, a partir de suas percepções, de seus saberes, de suas

experiências e reflexões.

Importante reforçar que o Cedaps nasceu da escuta de Daniel. Nasceu

da metáfora: “eu vou lá em cima ver quem está jogando criança no rio”; e foi

ela, a metáfora, que deu a Daniel a sensação de que precisava fazer alguma

coisa, embora ainda não soubesse o quê. Nasceu também da escuta de

Barnabás, o refugiado cambojano que tinha criado uma espécie de ONG no

campo dos refugiados, e ensinou a Daniel que a medicina não constitui em si

uma garantia de boa saúde. Dignidade, música, religião e meditação podem

contribuir também, e às vezes até mais, para uma boa saúde. Essas práticas

podem ser tão importantes como o trabalho de um médico em um hospital ou

em uma clínica. Essa escuta de Daniel pode ser traduzida na idéia-chave: “a

promoção da saúde é anterior à preocupação com a doença”.

Foi quando trabalhou no SUS, antes de fundar o Cedaps, que Daniel

pôde compreender a dificuldade que as pessoas tinham de ser atendidas em

um posto de saúde. Naquele momento, como vimos, ele era uma referência no

posto por ser um médico que sabia escutar. Nessa época, foi convidado e

começou a trabalhar num posto de saúde que acabara de ser inaugurado em

uma favela, na zona sul do Rio. Nele, Daniel promoveu mudanças radicais,

substituiu o grupo de especialistas por um clínico geral: médico de família, que

102 O ISC - Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) é um centro de formação avançada que busca desenvolver uma perspectiva inovadora de ensino na área de Saúde Coletiva.

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trabalhava com o apoio de um agente comunitário de saúde e de uma

assistente social. Segundo Daniel:

“O médico de família é um generalista, que tem que atender a todo

mundo na família, atender a comunidade toda e, portanto, conhecer melhor as

pessoas, a comunidade. Cria-se um prontuário de família, onde as informações

de cada membro estão inseridas. O médico tem assim acesso às informações

da família toda no mesmo prontuário. O médico pode, então, entender o

contexto social daquela pessoa e conhecer também melhor a comunidade. A

gente criou o tal do Agente Comunitário da Saúde, só que urbano.”

Esse projeto foi tão bem sucedido que se transformou em política de

saúde oficial – Programa de Saúde Familiar, que em seis anos beneficiou

200.000 pessoas no Rio de Janeiro e 45 milhões em todo o país.

É ainda Daniel quem nos conta:

“O ministério comprou essa idéia e em 94 lançou o Programa Saúde e

Família. Hoje em dia o Programa Saúde e Família é a maior política de saúde

no Brasil. Não é mais nem programa, já é a maneira de se fazer retenção

básica de saúde ambulatorial e já tem milhares de pessoas sendo cobertas por

essa experiência. É uma história muito importante na minha vida, ter

participado desse movimento que sem dúvida nenhuma mudou a cara da

saúde nesse país, uma coisa da qual eu me orgulho. Não tenho esse crédito,

meu nome não aparece nas reprises de cinema, mas para mim está posto.”

Como um trabalho de comunidade, a proposta do Cedaps é muito

particular, pois seu foco acabou sendo, ao longo dos anos, um fortalecimento

da sociedade civil nos territórios de pobreza: “Isso não é política pública, esse é

um trabalho de sociedade civil”. O Cedaps se propõe a criar canais de gestão

participativa das unidades de saúde próximas da comunidade, intermediando o

encontro entre o poder público e a comunidade, para que esta possa

efetivamente participar das decisões que afetam suas próprias vidas.

Daniel se vê como um facilitador desses encontros entre mundos.

Exemplo disso é o trabalho com jovens das comunidades na perspectiva de

autonomia, tentando encontrar algum tipo de modelo que pudesse criar

atividades para adolescentes de comunidades de baixa renda, aproveitando os

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recursos lá existentes, que deveriam ser mantidos pelo setor público. Outra fala

de Daniel que enfatiza esse trabalho:

“... fazer com que os agentes de prevenção, que são na verdade as

mulheres que trabalham nas comunidades, possam ser inseridas como

agentes do SUS, e possam também receber algum tipo de remuneração por

isso, como os agentes comunitários recebem. Mas isso também é um sonho e

vai ser muito difícil sua realização.”

Uma proposta inteligente, mas de difícil realização porque a tendência é

que todas as tarefas se acumulem nas mãos dos agentes comunitários do

Programa Saúde e Família, evitando novos custos.

O Cedaps é composto por uma equipe bem variada: psicólogos sociais,

gente com muita experiência de trabalho em comunidade, em favelas, pessoas

com uma leitura muito boa do mundo, do universo da pobreza urbana. Daniel

foi se tornando o único médico ali, conta-nos ele:

“Em vez de escolher médicos, a gente escolhia quem já trabalhava com

os pobres. Essa era a única capacidade exigida. Por quê? Porque elas

geravam projetos sistemáticos. Você ajudava as pessoas a organizarem sua

própria ação a partir de um problema. Você ajudava a pessoa a focalizar

aquele problema o suficiente, para poder intervir com os recursos que ela tinha,

evitando a paralisia. O Cedaps foi orientando para que as comunidades

fizessem isso na perspectiva da promoção da saúde e não da assistência

médica só. Organizar ações nos postos de saúde, para dentro das

comunidades pobres, até que começamos a atuar nas próprias comunidades

com essa metodologia.”

Uma vez que o modelo estava consolidado, foram convidados pela

Secretaria Municipal a abrir uma unidade do Cedaps na ilha de Paquetá. Nessa

época, Daniel foi fazer mestrado, buscando campos do conhecimento que

explicassem um pouco o que estava fazendo. Acabou caindo em uma área que

se chamava Promoção da Saúde, um campo da Saúde Pública que trabalha

exatamente essa perspectiva da determinação social da saúde no sentido de

promovê-la, ou seja, pensar nos fatores que levam as pessoas a se tornarem

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mais saudáveis. Para ele esse momento foi maravilhoso, conforme nos

contou:

“Esse campo de conhecimento existia. Eu comecei a ler sobre a coisa e

ficava fascinado porque tinha gente explicando o que eu estava fazendo. É

uma sensação maravilhosa. Eu pertenço a algo, esse aqui é meu clube. Achei

minha praia.”

Na época em que o Cedaps foi criado, a Aids tinha começado a chegar

às favelas, um espectro muito assustador para as comunidades. O grupo do

Cedaps – assistentes sociais, psicólogos, funcionários da área social, como já

apontado – utilizaram a metodologia que desenvolveram para oferecer a um

grupo da comunidade um trabalho de prevenção da Aids. Continua ele,

“Primeiro eles recrutaram, identificaram algumas parcerias com

organizações comunitárias e essas organizações foram capacitadas na

questão de Aids, sexualidade, prevenção, etc. e, a partir daí, a gente começou

a usar a metodologia para ajudar essas comunidades a desenvolverem elas

mesmas ações de prevenção que tivessem a ver com a sua problemática

local.”

O Cedaps trabalha basicamente com associações de mulheres, evitam-

se associações de moradores porque, em parte, estavam contaminadas pelo

tráfico ou por políticos de “quinta categoria”, como nos contou Daniel:

“Eram mulheres, a maioria delas, muito cruas, que tinham experiências

iniciais muito intuitivas. Queriam ajudar as crianças. Faziam programinhas de

capacitação para jovens, organizavam trabalhos com idosos e tinham essa

preocupação com a Aids.”

Criaram algo chamado Pacote de Desenvolvimento Local Integrado

Sustentado. Começaram a estudar e transformaram a abordagem do plano

social de saúde numa abordagem de desenvolvimento, com foco na saúde,

que envolvia a organização comunitária, a recreação, o esporte, o lazer, a

cultura e a geração de renda.

Daniel descobriu a Ashoka por leituras. Procurou, na época, a Mônica,

diretora geral, no Rio, que lhe pediu que escrevesse uma carta. Ele precisou

refazer a tal carta algumas vezes. Na primeira usou quinze páginas – foi

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rejeitada; depois fez outra de cinco páginas, ainda muito confusa, conforme nos

contou: “Eu falava de tudo, mas não falava de nada”. Mônica respondia:

“Daniel, você tem que ter foco. Foco Daniel, passe o que você quer dizer em

menos palavras.”

Daniel achava muito difícil, afinal “promoção da saúde pode ser tudo”,

pois “se tudo determina a saúde”, “qualquer ação social pode ser vista como

promoção da saúde”. Foi recusado na primeira tentativa de se tornar fellow da

Ashoka, e recomendado para se preparar melhor e tentar outra vez em dois

anos. Lembrou-se ele:

“Eu chorei. Porque quando eu li sobre a Ashoka... Eu nunca tinha sido

reprovado antes... todos os concursos e provas. Foi a primeira vez que eu fui

reprovado. Mas tentei de novo e na segunda vez entrei e tem sido muito legal.”

A Ashoka teve um papel muito importante no início, primeiro dando a

bolsa e, com isso, mais condição de desenvolver o trabalho. Muito embora o

Cedaps tenha muitas filiações, participar da Ashoka deu a Daniel o sentimento

de pertencimento. O Cedaps tem filiações nacionais, e no campo da promoção

da saúde está junto das universidades e redes de comunidades; tem também

filiações internacionais, relações com a Abong e outras organizações.

Daniel sempre teve, do ponto de vista de sustento, uma situação

satisfatória, privilegiada mesmo em relação à maioria de seus colegas.

Trabalha no Cedaps e também tem seu consultório particular, com uma

clientela que o procura por seu trabalho com medicina alternativa, com

homeopatia, por seu olhar alternativo. Tem uma ótima parceria com uma

mulher francesa que trabalha com parto, oferecendo cursos de gestante para

as famílias: “Foi um encontro anímico, tivemos muita identidade em relação aos

cuidados das crianças e então começamos uma interessante troca.”

Daniel é uma pessoa assim: alguém que navega, a partir de uma

diversidade de focos, e conta com uma capacidade incrível de tradução e

mediação. Fala cinco línguas, metaforicamente fala muito mais línguas do que

imagina e, então, faz mediações. Acho que se forjou em Daniel um outro tipo

de personagem social que é esse mediador, esse tradutor das necessidades e

facilitador das relações entre mundos. Em suas palavras,

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“Eu sempre tive muita dificuldade em lidar com as instituições pesadas.

Desde a época que eu era funcionário de hospital, depois funcionário do setor

público, privado, funcionário de universidade, eu sempre tive dificuldades. São

armações que me encerram muito. Eu fico muito preso, tenho dificuldade de ter

chefe, obedecer a chefe. Sem nenhuma arrogância, e não porque eu saiba

mais o que fazer, não é isso. Tenho dificuldade em me relacionar com pessoas

que me dizem, me dão tarefas, me aprisionam em determinadas tarefas.”

Sobre as dificuldades, Daniel comenta que “teve momentos em que

parecia que as coisas estavam ruindo”. Segundo ele, esses momentos têm a

ver com duas coisas: com a in-confiabilidade das ações quando o parceiro é o

governo, “temos convênio e os pagamentos atrasam”, e com a incapacidade

administrativa, que os deixa sujeitos a fraudes, a erros, “como já erramos no

pagamento de previdência”. O que o ajudou a sair dessa fase difícil foi a

criação de bons e novos relacionamentos, bons e novos parceiros.

Outra questão difícil, comenta, é a das renovações dos contratos. Os

projetos normalmente são fechados e negociados por um ano, tempo muito

curto para, de fato, implantar e conseguir gerar resultados. E o pior, segundo

Daniel, é a preocupação com a renovação das parcerias públicas,

principalmente “essa coisa da renovação anual é muito complicada. Os

parceiros não desembolsam imediatamente, então você acaba um projeto em

dezembro, manda relatório em janeiro, fevereiro e então de dezembro a abril

você fica sem recursos.”

Junior e o AfroReggae

Pode-se dizer que o movimento AfroReggae, com as características

sociais que tem hoje, é decorrente da indignação de Junior diante de um

episódio ocorrido na favela Vigário Geral, conforme já dissemos, em agosto de

1993: vinte e uma pessoas, entre elas crianças e idosos, foram mortas durante

a represália de um grupo de oficiais de polícia.

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A partir desse momento, Junior, que já tinha criado o Grupo Cultural

AfroReggae, reforçou os aspectos sociais da ação do projeto. Iniciou um

programa para adolescentes ligados, de alguma forma, ao massacre de Vigário

Geral. O Grupo oferece formação artística e cultural como alternativa para tirar

do tráfico de drogas jovens moradores de favelas. Trabalham com oficinas de

música, capoeira, teatro, dança, histórias em quadrinhos.

“Conexões Urbanas”, um dos programas do Grupo, é um espetáculo

mensal gratuito, que conta sempre com a presença de artistas como Rappa,

MV Bill, Gabriel o Pensador. O grupo tem atuado em diversos países da

Europa, América Latina e Oriente Médio. Em 2004, apresentou-se no Carnegie

Hall de Nova Iorque como convidado de Caetano Veloso.

Uma das principais características do movimento é a diversidade nele

presente. Diversidade de gênero, de camadas sociais, de religiosidade, do lado

sombrio e do lado luz. Segundo Junior, o Grupo “têm homens, mulheres e

homosexuais de diferentes religiões e crenças; têm policiais, têm ex-

presidiários, tem de tudo”.

O Grupo AfroReggae tem um rígido código de conduta, atuam como

embaixadores culturais contra a violência; seus integrantes não podem fumar,

beber ou usar drogas, bem como não podem possuir armas de fogo e nem

participar de nenhum tipo de manifestação violenta. O slogan do AfroReggae –

“Da Favela ao Mundo” – fortalece a idéia de demonstrar a energia criativa, o

talento e a esperança que emana das favelas do Rio.

Traduzir mundos, mediar mundos, mais uma das atividades do

AfroReggae, é um risco, comenta Junior:

“Duas favelas estão em guerra, Comando Vermelho e Terceiro

Comando. É sentar com os chefes do tráfico e mediar aquela paz, assim.

Resumindo, é isso. Você corre todos os riscos, de bala perdida, de ser mal

interpretado, ser morto.”

A crença do movimento é que a maneira mais eficiente de promover o

desenvolvimento do país começa por criar oportunidades para aqueles que

estão em situação de risco pessoal, a fim de que eles possam deixar de ser

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mais um número nas estatísticas de pobreza e violência para se tornarem

cidadãos que contribuem para a construção de riquezas, e, na justa medida,

possam também ter o direito de usufruir as mesmas.

Talvez o que mais explique o movimento AfroReggae seja o

documentário “Favela Rising” de Jeff Zimbalist e Matt Mochary, com Anderson

Sá e Zuenir Ventura, que ganhou 24 prêmios internacionais e foi semifinalista

do Oscar em 2006. O filme retrata a vida de seu principal vocalista, Anderson

de Sá, que antes do AfroReggae atuava no tráfico de drogas. Comenta Junior:

“Quase que esse filme chamou-se Conexão Shiva, porque conta várias

histórias de destruição e transformação e essa divindade hindu tem

exatamente esse perfil, ela destrói depois transforma.”

O AfroReggae, que começou seu trabalho na favela Vigário Geral em

1993, como apontamos, até 1995 só estava presente na mídia em páginas

policiais, ligado a cenas de violência, seqüestro, tráfico, truculência, gente

esquartejada, gente que explodia... A partir daí tal realidade foi mudando, a

favela recebeu a visita de artistas como Caetano Veloso e Regina Case. De lá

para cá, está sempre presente nos cadernos de cultura:

“Hoje você vai a Vigário Geral, e é uma favela que não tem nada a ver

com outras favelas do Rio. Você vê tudo grafitado. Tem tráfico, tem violência,

mas tem outra cultura. Os ídolos lá não são os bandidos, são os caras do

AfroReggae. A polícia respeita. É outro lance, outra relação, criou-se uma

tatuagem, uma proteção naquele lugar, uma marca que é como um campo

magnético que atrai tudo. Todo dia tem gente do mundo inteiro em Vigário

Geral, todo dia. Vietnam, Estados Unidos, Canadá, Austrália, todo dia. Se a

gente permitir, e não permite, todo dia tem gente do mundo todo.”

A cara da travessia de Junior é a Conexão Shiva – destruição e

transformação. A travessia é feita também de intuição e de faro. A travessia vai

acontecendo, sem planejamento, seguindo intuitivamente: “Não passamos do

funk para o reggae de forma planejada.”

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Hoje, quando você fala em AfroReggae para algumas pessoas, você fala

em esperança, em mudança. O AfroReggae pode ser até um caminho para

aparecer na mídia. Junior exemplifica isso quando nos conta que o AfroReggae

ganhou um prêmio na Globo de Personalidade do Ano 2006 e que a festa foi

no Copacabana Palace. Ao nos mostrar a foto, aponta para o fato de estar de

camisa aberta, displicente e, mesmo assim, todo mundo bate palma, aplaude

em pé. Comenta que todos estavam achando o máximo, e em seguida reflete:

“Pô, se a gente passasse ali, anos atrás, eles chamavam a polícia. E agora o

prêmio máximo quem ganha é a gente.”

Uma característica marcante do AfroReggae é estar muito

frequentemente na mídia; o que pode parecer um fator positivo mas deve ser

questionado e cuidado. Junior comenta que discutiu em uma reunião com

representantes da Unesco sobre o papel da mídia, sobre sua influência. Tentou

mostrar que foi a própria mídia quem criou os garotos do tráfico. Segundo ele,

esses garotos pensam: “’Eu nunca apareci na televisão, só quando eu vou

preso, quando eu morro ou se for um jogador de futebol ou pagodeiro. O que é

mais fácil, o cara ser jogador de futebol ou bandido? Bandido.”

O AfroReggae também é muito reconhecido no exterior. Só este ano,

2007, estiveram no Texas, na Índia e em Bogotá; são sempre convidados a

levar o lado artístico e a metodologia de ação cultural, social, artística, e

mediação de conflitos. Continua:

“Eles têm uma cultura gigantesca lá fora, só que não conseguem fazer

um trabalho como no Brasil, onde você liga o social e cultural. Têm diversidade

cultural interessante, mas não junto com o social. O desafio é fazer o link.”

Essas palavras de Junior reforçam mais uma vez a idéia de conexão: o

que dá certo é fazer o link entre o cultural e o social, fazer uma conexão entre

toda essa diversidade – a Conexão Shiva. Fazem parceria com o Estado e

com a sociedade civil; Junior está sempre conversando com o pessoal da

Fiesp, da TV Globo, da Folha, do governo.

Fazem também ligação com outras organizações co-irmãs. Criaram a F-

4, quatro grandes Ongs de favelas do Rio: AfroReggae, CUFA – Central Única

de Favelas, Nós do Morro e Observatórios de Favelas. É uma conexão

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articulada tanto para mediar conflitos como para buscar parceria e

patrocinadores, “... a Globo patrocina a gente, a gente bota a Globo para

patrocinar eles também.”

O movimento reforça a esperança em mudança. Recentemente, Junior

deu consultoria para a Fundação Roberto Marinho sobre a violência:

“Malucos como eu hoje são ouvidos. Eu com a diretoria lá, dando curso.

Quando que um cara que nem eu, há 15 anos atrás ia dar discurso lá na

Fundação Roberto Marinho.”

Hoje o AfroReggae estruturou-se: trabalham com planejamento tocado

por um comitê gestor. Junior sempre teve, desde o início, a preocupação de

estruturar o movimento para que caminhe independente dele. Faz questão de

dizer que o AfroReggae não é ele:

“Desde o começo eu pensei em sucessor. Tem um cara que entrou no

AfroReggae com treze para quatorze anos, o Altair, que já está preparado. Já é

o cara. E é um cara melhor qualificado. Se eu morrer ou sair do AfroReggae,

ele assume, fácil. Tem 12 anos a menos: mais energia. Eu o considero superior

a mim de verdade, numa porrada de quesitos.”

A gestão da holding é feita por um comitê de sete pessoas. Há

departamentos e setores específicos, e funciona como um triângulo: no alto, o

Grupo Cultural AfroReggae – uma ONG; e embaixo a AfroReggae Produções

Artísticas Limitada – uma empresa, e o GAS, o Grupo de Ação Social – uma

Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). Tanto a empresa

quanto a Oscip foram planejadas e estruturadas para gerar recursos para o

Grupo Cultural. Hoje, eles têm uma folha de pagamento com 176 pessoas.

Parece uma holding sociocultural.

Tem uma área de comunicação, de coordenação de projetos especiais,

tem o núcleo comunitário de cultura, que conta com uma equipe técnica:

assistente social, psicólogo, pedagogo, mediadores de conflito e educadores

sociais. Tem o departamento artístico com dez bandas de música, duas trupes

de circo, um grupo de teatro, um grupo de dança. Tudo na favela.

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Hoje, o AfroReggae quer virar uma empresa social, gerar lucro, mas

lucro para outros investimentos. Atualmente, 30% de sua receita vem da venda

shows, venda de CD, venda de filme, palestras, work shops:

“Esses trabalhos na mídia rendem recursos. Trabalho na Inglaterra

rende grana. Trabalho na Colômbia rende grana. Show rende grana. A nossa

meta é sermos um dia auto-sustentados.”

O AfroReggae já patrocina Ongs de favelas de São Paulo, de favela do

sul do país, de favela em Belo Horizonte. Comenta Junior:

“Uma Ong patrocinando outra? A gente faz isso. Com quê? Com o

nosso dinheiro. Show, palestra, direitos autorais, a gente vende produtos.

Então a gente quer na verdade inverter alguns conceitos. Fazer o dinheiro

circular, tem que democratizar. O que não dá é hoje você ser o protagonista de

uma ação e ser tratado como coadjuvante. Como acontece com o carnaval do

Rio. O carnaval do Rio é todo da favela. Todo mundo ganha dinheiro às custas

da favela. Todo mundo ganha dinheiro da favela.”

Vera e o Criança Renascer

Vera funda o Criança Renascer em 1991 enquanto trabalhava na

pediatria de um hospital público do Rio de Janeiro, o Hospital da Lagoa. Essa

organização estende assistência a crianças pobres depois que recebem alta de

hospitais públicos. A iniciativa de Vera, como já comentamos no capítulo

anterior, se deu a partir de sua inconformidade diante do ciclo “hospitalização,

reinternação e morte”. Pensava: “O que eu vim fazer no hospital se eu não

estou preparada para ajudar.” Essas contradições diárias estavam se tornando

insustentáveis, para ela.

Começou a ler. Sempre lia muito, lia filosofia, lia sobre todas as religiões.

Embora não seguisse formalmente nenhuma, acreditava em leis cósmicas e na

existência de toda uma vida não decifrável por trás do que vemos. Estudou

astrologia, leu sobre Gandhi, sempre num esforço de conseguir lidar com esse

sofrimento, pois não se satisfazia com o respaldo da medicina e da psicanálise.

Um dia ganhou de uma amiga psicóloga com quem trabalhava o I Ching, um

oráculo chinês prefaciado por C. G. Jung.

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Na época com 41 anos de idade, vendo sua vida pessoal e familiar mais

estabilizada, e tomada de uma inquietação descontrolada já idealizando algum

caminho, decidiu consultar o I Ching para saber em que fase de sua vida

estava. O oráculo respondeu com o hexagrama Estagnação. Vera desanimou,

pois não encontrou naquele momento uma saída. Correu para as linhas do

hexagrama que dizia: “o projeto será abençoado e várias famílias serão

abençoadas por isso.” Assim, contou-nos Vera: “Eu fui para casa com o meu I

Ching, porque após diversas lutas o oráculo dizia que a vitória estava

garantida.” Criança Renascer deve também seu nascimento ao oráculo.

Para Vera, um tratamento hospitalar que ignore a condição sócio-

econômica de seus atendidos, embora seja a regra hoje em dia, não faz

sentido e precisa ser modificado: “Para que haja saúde é preciso muito mais do

que um Hospital Público – está faltando aqui um ator fundamental, o social, e

sem isso o resto não faz sentido.” Assim nasceu o Criança Renascer em 1991.

Esse nascimento aconteceu quando Vera escreveu um projeto mais ou

menos nesses termos: é preciso melhorar a moradia das pessoas, dar comida

e remédio, ajudar as famílias a se profissionalizarem, melhorar a educação e...

Depois de pronto levou o projeto para o chefe do serviço social do hospital em

que trabalhava, pediu para que ele desse uma olhada e opinasse. Ele disse:

“Você enlouqueceu, esse é um programa de governo. Você entende o

que você escreveu, esse é um programa de governo, isso não é para você

fazer.”

E Vera respondeu: “Enlouqueci sim. Eu não quero ser governo. Ou

melhor, o governo que eu quero é esse: o governo da sociedade civil. Ele olhou

para mim e disse: Ah não, não vou discutir mais com você.”

Hoje, olhando para trás, Vera acha que foi extremamente ousada, pois

tinha zero em conta bancária, zero em modelo anterior. Veio do nada.

Em outubro de 91, reuniu uns 50 amigos e colegas (psicólogos,

enfermeiras, a própria Vera e sua mãe) no playground de seu prédio,

apresentou o projeto, rifou um jogo de lençol bordado pela mãe, arrecadou US$

100,00 e iniciou a Associação Saúde Criança Renascer.

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O Parque Lage, local onde está sediado o Criança Renascer, pertencia a

uma cantora de ópera, muito conhecida, cujo marido era armador. A primeira

sede do Criança Renascer foi no local onde no passado eram cavalariças

desse parque. Hoje está instalada no mesmo Parque Lage, a cinco minutos do

Hospital da Lagoa, em uma casa cor-de-rosa que, nos contou Vera

emocionada, é semelhante à casinha cor de rosa de um desenho de sua

infância.

O objetivo do Criança Renascer era ajudar as mães dessas crianças em

estado de saúde vulnerável a evitar recaídas. Seu trabalho tinha início no

momento exato em que as crianças recebiam alta nos hospitais públicos. Vera

oferecia suplementos nutricionais e medicamentos por seis meses como

incentivo para as mães que participassem do programa.

Na primeira visita que faziam ao escritório do Criança Renascer, as

mães eram entrevistadas para que informações como renda familiar, moradia,

água corrente, banheiro, teto estável, camas e roupas, fossem obtidas. Mais

tarde, tornou-se política da organização fazer vistas domiciliares para verificar

as informações. Nos meses seguintes, a equipe do Criança Renascer

desenvolvia, junto com as mães, um plano de tratamento e recuperação de

natureza diversa: consertar o telhado, repensar a dieta, ferver água, montar

uma cama, organizar as documentações necessárias para conseguir apoio do

governo. Vera comenta:

“No fundo a gente trabalha com a família inteira. A criança é só a isca

para uma metodologia de inclusão social. O que é o Renascer? É uma

metodologia de diminuir o gueto social neste país. Transformar miserável em

pobre, se eu tivesse que resumir diria isso para vocês.”

As crianças pobres que vão a um hospital público estão condenadas à

morte, com pneumonia, com desnutrição, e por trás tem o pai alcoólatra,

inexistente, tem uma mãe com cinco filhos, chove dentro da casa... O médico

trata da pneumonia, da desnutrição, e isso, todavia, é só a ponta de um

iceberg.

O próprio nome Renascer foi dado por Vera por apresentar a idéia de

quebrar o ciclo “hospitalização, reinternação e morte” a que estão presas as

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crianças pobres. E o Criança Renascer obteve sucesso: em 99, o diretor da

pediatria do Hospital da Lagoa comprova uma queda de 60% nas recaídas de

91 a 97 graças ao trabalho da Associação.

No início, o Criança Renascer não tinha nada, não se sustentava. Vera

não hesitou em fazer o projeto acontecer. Tirava dinheiro do orçamento de

casa e usava seu motorista para visitar as comunidades de onde vinham as

crianças internadas. Mudou as filhas do curso de inglês para poder ter o

motorista mais tempo disponível para a Associação. Como seu marido viajava

muito, demorou para perceber as loucuras que Vera estava fazendo.

No dia que ele descobriu, conta Vera, mandou o motorista embora, deu

um soco numa mesa de vidro, disse: “eu sustento uma família, duzentas

famílias em não sustento. Se você quer sustentar duzentas famílias você vai

arranjar mais emprego.” Foi assim que Vera se viu diante da necessidade de

achar outros caminhos. O patrocinador doméstico estava esgotado.

Vera nos contou que foi eleita fellow da Ashoka em 1992 e começou a

ganhar a bolsa em 1993. É assim que vê a Ashoka:

“O Criança Renascer e a Ashoka para mim são uma coisa só. Se não

fosse a Ashoka não tínhamos chegado até onde chegamos. Para mim a

Ashoka é como se fosse um anjo da guarda que está assim por trás. A

instituição (Ashoka) acompanha nosso crescimento e sabe exatamente a nossa

necessidade. A gente faz um esforço, eles abrem as portas.”

Conta que um dia chegou uma estagiária da Ashoka lhe mostrando um

discurso de Nelson Mandela que dizia algo assim:

“Quando você não mostra a sua própria luz, você não faz bem nenhum

para ninguém, nós somos todos criaturas do universo. Quando você mostra a

sua luz você abre vários espaços para muita gente mostrar a própria luz.”

Sobre as dificuldades, Vera nos contou que houve um momento crucial

em que ela estava exausta; foi ainda no início do Criança Renascer. Na época,

a sede da organização era na antiga cavalariça do Parque Lage e em um final

de semana saiu no jornal “Renascer fecha o Parque Lage nos feriados”. Essa

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notícia foi um baque para Vera pois, como ela dizia: “Nós não tínhamos força

nem para fechar a porta do estábulo, quanto mais de um parque público.”

Tinham que se defender, e sabiam que certas novidades incomodam;

era o caso do Renascer: uma organização social dentro de um espaço

elitizado. Havia uma escola de artes que queria que eles saíssem de lá, e Vera

recorreu a Betinho (1994), que estava no auge, para ajudá-la a mostrar o

trabalho que o Criança Renascer fazia. Eles desenvolveram um filme

institucional que, entre outras coisas, contava a história do Jorginho com

depoimento de Betinho.

Mesmo assim eles tiveram que sair das cavalariças. Vera alugou um

trailler e tendas para não sair do Parque Lage e instalou o Criança Renascer,

enquanto tocava a obra da sede nova. A obra foi embargada e nesse

momento Vera se viu desesperada, ou melhor, desesperançada:

“Meu Deus, não é possível que para ajudar crianças com Aids, com

tumor cerebral, que a gente quer multiplicar Brasil afora, o senhor vá impedir

que aconteça, pois na última instância, o senhor é a autoridade máxima. Estão

empurrando a gente para fora do parque. O que mais? Se eu for para um lugar

distante não vamos ter visibilidade, como vamos multiplicar?”

Nessa hora, Vera pediu uma prova de que Deus existe. Ela tem muita fé,

venera a filosofia oriental, sempre consulta o oráculo I Ching, mas dessa vez:

“Não estou com paciência nem para consultar o I Ching. Eu sei que a

gente pode até brigar com Deus, e eu estou tão desesperada que não sei o

que fazer nessa situação. Eu vou perder a alma do Renascer. Eu quero uma

prova de que eu deva continuar essa obra. Aí, um carro me cruzou na rua com

o adesivo do Renascer no vidro. Então eu tenho que continuar na luta”.

Não conformada, Vera foi ao encontro do então Presidente da

República, Fernando Henrique Cardoso, pedir para que ele assinasse um

decreto autorizando-os a ficar no parque. Para ela, estar naquela região

privilegiada do Rio era estratégico; iria precisar muito do apoio dessa mesma

comunidade. Precisaria de voluntários, parceiros, mantenedores... Afinal o

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Criança Renascer era mais do que uma instituição, viria a ser um movimento

na sociedade civil.

“Foi enlouquecedor o processo, mas nós conseguimos, Fernando

Henrique assinou, agora é lei. Dona Ruth Cardoso chorou, ficamos todos

emocionados e não saímos do parque.”

Quatro meses depois, com a primeira dama, D. Ruth Cardoso, diversas

autoridades daquela época e quatrocentas pessoas, foi inaugurada a sede

atual, a Casa Cor-de-Rosa dos Sonhos, dos desenhos da infância de Vera.

Contou-nos que quando fundou o Criança Renascer sua filha mais nova tinha

10 anos, chorava de esguicho. “Ela dizia, ‘mamãe, eu odeio o Renascer.

Porque eu perdi você’. Aos dez anos ela sabia que uma parte dessa mãe louca

ela tinha perdido.” Quando inauguraram a sede, depois de alguns anos, sua

filha lhe disse: “ ‘Agora eu entendo, mas continuo sem te perdoar.’ Agora ela

entendia que a primeira dama do país estava aqui, então não deveria ser uma

loucura tão grande.”

Esses poetas do social sacrificam relações pessoais ao serem tocados

pelos apelos do outro. Eles não se sentem donos de si mesmos – fazem um

certo sacrifício do pessoal, do familiar; eles têm consciência disso, mas não

controlam. Daí a impressão de que eles vão: vão se doando, vão escutando os

apelos e respondendo a esses apelos. Parecem estar organizados

psiquicamente para agir dessa maneira. Vera conta que é um sacrifício pessoal

muito grande e é uma posição algo desconfortável. Mas por outro lado são

pessoas vitais, vivas, acordadas.

A história do Criança Renascer para Vera é a história de uma constante

sincronicidade. Um dia recebeu a visita de uma adolescente que não queria ser

voluntária, mas só queria dar um presente. E deu a Vera uma poesia, que está

até hoje pendurada na parede, bem na entrada. Um texto atribuído a Goethe:

“Enquanto não estivermos compromissados, haverá hesitação e a

possibilidade de recuarmos e sempre a ineficácia. Em relação a todos os atos

de iniciativa e criação, existe uma verdade elementar, cuja ignorância mata

inúmeros planos e idéias esplêndidas: que, no momento em que

definitivamente nos comprometemos, a Providência divina também se põe em

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movimento. Todos os tipos de coisas ocorrem para nos ajudar, as quais, em

outras circunstâncias, nunca teriam ocorrido. Todo um fluir de acontecimentos

surge a nosso favor como resultado da decisão, todas as formas imprevistas de

coincidências, encontros e ajuda material, que nenhum homem jamais poderia

ter sonhado encontrar em seu caminho...Qualquer coisa que você possa fazer

ou sonhar, você pode começar. A coragem contém em si mesma a força e a

magia”.

"Quando uma criatura humana desperta para um grande sonho e sobre

ele lança toda a força de sua alma, todo o universo conspira a seu favor."

Cada vez estava mais claro para Vera que a medicina tradicional não

tem sentido para a classe social miserável. Com essa psique plural, Vera não

se atém ao conhecimento linear, tradicional, especializado para fazer seu

trabalho. É como se a medicina tradicional não fosse suficientemente ampla

para ela. Ela precisa do I Ching, ela precisa de tudo, afinal de que adianta dar

uma receita médica a quem não tem nem o que comer?

Como o trabalho do Criança Renascer é muito apoiado por voluntários,

Vera acabou por desenvolver uma capacidade enorme de percepção do

potencial de cada um e de como motivá-los. Conta: “Eu não tenho opção, tenho

muita criança doente, o staff é muito reduzido. Eu tenho que confiar no meu

discernimento.”

Deu-nos o exemplo de uma voluntária psicóloga, que ela, sem muito

explicar, encaminhou para a enfermaria para sentar com uma criança com

leucemia. Depois a moça a procurou e disse: “Vera, você está louca, você sabe

muito pouco de mim e como você me manda sentar uma tarde inteira com

aquela criança?” Hoje essa moça é diretora e faz parte do Conselho do Criança

Renascer.

Como é que essa Associação, que nasceu rifando lençol em um

playground, passou para uma organização que hoje tem um orçamento em

torno de um milhão de dólares por ano? Da rifa de lençóis, começaram a

receber doações mensais (em 1994 recebiam quatro mil dólares por mês).

Começaram a receber bolsas de fundações, fazer parceria com empresas e

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desenvolver projetos e novas parcerias para atender às necessidades de cada

momento. Segundo conta Vera:

“Rifei vários objetos pessoais para poder pagar os primeiros custos da

instituição e hoje em dia... Eu nunca imaginei que a gente fosse chegar a isso,

mas com tudo isso, eu tenho um milhão de dólares, mas eu tenho que voar

para quatro países para captar recursos porque faltam seiscentos mil para

fechar o budget de 2007.”

Como comenta Vera, instituições como o Criança Renascer são instituições que vivem na contra-mão da história. É uma aberração existir o

Renascer!

Na situação atual que vivemos, em um país que vive praticamente em

guerra civil, acreditar que nessa pequena trincheira pessoas como Vera estão

fazendo algo significativo do ponto de vista social é incrível. O retorno disso

tudo, de tanto sofrimento, de tanta angústia, de tanto cansaço e desgaste,

também contrariando a tudo é, segundo Vera, extremamente prazeroso. Nada

melhor do que falar com uma mãe que teve alta: “Eu digo, vale a pena, vale a

pena fazer tudo que a gente está fazendo. Continuar fazendo, matando um

leão por dia.”

O grupo do Criança Renascer se emociona e se satisfaz ao ouvir sobre

gente que está conseguindo se empoderar e transformar suas vidas. O Criança

Renascer, trabalhando nesse sentido, já levou seu trabalho para 14 hospitais

públicos no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, beneficiando 20 mil crianças.

Até 2002 já tinha atendido 6 mil crianças de 1740 famílias, e seus

“replicadores” já tinham atendido outras 10 mil pessoas. Um estudo realizado

em 2002 mostrou que o risco das crianças atendidas caiu de 42 para 10% e a

renda dessas famílias aumentou 58%.

Vera também vê na imprensa uma forte aliada na multiplicação e

disseminação da nova forma de atuação da medicina em comunidades

carentes. Mesmo assim, já tendo ganhado mais de dezoito prêmios, o Brasil

sabe pouco do Criança Renascer. Os Estados Unidos e a Suíça sabem mais.

Vera foi eleita pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil uma das dez

mulheres do ano em 2001, e uma das vinte maiores líderes sociais do país.

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128

Mais tarde, ganhou um prêmio da Fundação Schwab de Empreendedorismo

Social, um prêmio da rede de Desenvolvimento Global. Em 96 e 97 ganhou

medalha do SESC, do SESI, medalha Tiradentes, troféu Beija-flor, prêmio Bem

Eficiente, prêmios dos governos do Rio de Janeiro, de Washington, D.C., do

IVY Inter-American Foudation Award e outros.

Jailson e o Observatório de Favelas

O Observatório de Favelas, como comentamos, foi criado por Jailson a

partir do IETS – Instituto de Estudos, Trabalho e Sociedade, programa focado

em influenciar políticas públicas. Esse projeto está sediado na favela da Maré,

a maior do Rio de Janeiro, que conta com um total de 132 mil habitantes.

A Favela, tema sempre presente na vida de Jailson e foco do

Observatório de Favelas, é também tema central do livro que ele e Jorge Luiz

Barbosa publicaram em 2005, Favela: alegria e dor na cidade. Nele, os autores

mostram como a favela vem sendo considerada na política habitacional

brasileira desde o período de pós-escravatura, e apontam fatores que explicam

a permanência e a ampliação do processo de favelização no Rio de Janeiro. O

livro mostra que a favela sofre ainda hoje os mesmos preconceitos da época de

seu aparecimento, antes escravista e hoje racista e elitista, um cenário de

carência de bens materiais, culturais e de direitos. Muito embora, como Jailson

deixa claro logo abaixo, a favela não se resume a isso.

Jailson, que como dissemos se interessou muito por Gramsci, tem como

proposta investir na mudança da cultura e do comportamento para que haja

transformação cultural. Valoriza muito a ação humana, o comportamento do

indivíduo e do coletivo, valoriza menos as determinações econômicas.

Afirma que a favela é pensada sempre a partir do paradigma da

ausência, é sempre pensada a partir da carência: ‘porque na favela não tem

água, não tem luz, não tem esgoto, não tem creche, não tem educação, não

tem saúde, não tem cidadania; é o caos, é a falta de regra’. Só que, afirma

Jailson:

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“A favela não é assim; é um espaço muito mais complexo, sofisticado,

com regras sofisticadas. É vista como território inimigo do Estado. É por isso

que eles invadem com blindado, com a polícia, tratando a população civil como

inimiga, e acham natural tratar os traficantes como inimigos a serem eliminados

sumariamente. Essa é a concepção de sujeito, concepção de cidade. O nosso

projeto é caminhar noutra direção.”

Um exemplo é a postura da mídia e dos órgãos de segurança, que é

bem diferente diante da violência sofrida por um morador da periferia ou por

uma pessoa da classe média ou alta, e pior, a culpa da violência sofrida por

este último geralmente é atribuída a alguém da periferia.

A sociedade não vê a favela como parte da cidade, portanto suas regras

não se estendem até lá. O Observatório de Favelas, criado em 2001, pretende

entre outras coisas acabar com a separação que existe entre ela e cidade,

mostrando sua outra face. Trabalha no sentido de formar pessoas e reverter o

conhecimento produzido na universidade para as periferias, possibilitando

assim unir essa cidade segregada, a favela.

Os meios de comunicação também aumentam e muito o problema do

preconceito ao associarem sempre a imagem dos moradores da periferia com

criminosos em potencial. Nesse sentido, o Observatório de Favelas criou uma

agência de notícias para ajudar a mudar essa realidade. Nessa agência, os

problemas da favela são pensados, não do ponto de vista da classe média,

mas sim de seus moradores.

O Observatório de Favelas possui quatro núcleos de trabalho. O primeiro

tem como objetivo construir e socializar conhecimentos sobre as favelas e

estimular a participação em rede de estudantes, moradores das comunidades

populares, pesquisadores, mestrandos e doutorandos na identificação de

problemas e soluções. Esse núcleo desenvolve o projeto Conexão de Saberes

que recebeu o Prêmio da Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social de

2005. São selecionados 25 bolsistas, entre os jovens interessados que se

cadastraram por meio de critérios sócio-econômicos. O Núcleo Conexões de

Saberes iniciou suas atividades na Universidade Federal Fluminense e em 7

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comunidades populares. Um ano depois, o projeto foi lançado nacionalmente,

em parceria com o Ministério da Educação - MEC, e adotado por 5

Universidades em 4 Estados. Em 2005, foi para 14 Universidades e, em 2006,

será adotado por 40 Universidades em todo país, com o apoio do MEC, que

investirá R$ 9 milhões nesta replicação.

O segundo núcleo trabalha com a formação de jovens pesquisadores e

lideranças oriundas das favelas, estudando e sistematizando dados sobre as

comunidades populares que podem servir de subsídio para a criação de

políticas públicas. O Núcleo tem um boletim informativo mensal e coloca à

disposição informações sobre favelas no site Infovias das Favelas.

O terceiro está focado na compreensão da violência urbana. Com base

nas pesquisas que realiza, o “Rotas de Fuga” implementa ações para crianças

e jovens empregados pelo tráfico de drogas como apoio às famílias

socialmente vulneráveis e um trabalho de sensibilização da sociedade.

E o quarto tem como objetivo produzir cultura que valorize a vida nesses

espaços da periferia. O objetivo é a escola estimular nesses jovens o exercício

da cidadania, através de diferentes atividades como: produção cultural e

comunicacional (impressa, internet); produção em Vídeo, em Fotografia e em

rádio comunitária; cursos de aprofundamento cultural e educacional. Neste

núcleo são desenvolvidos dois programas: Escola de Fotógrafos Populares,

que forma jovens no ofício da fotografia e articula seu ingresso no mercado de

trabalho; e Agência Imagens do Povo, que produz e difunde imagens dos

moradores de favelas e periferias em sua luta por educação, paz, trabalho,

moradia e emprego.

O Observatório de Favelas pretende consolidar seu trabalho em todo o

Brasil, através das parcerias com a Universidade e com o Ministério da

Educação. O Importante é desenvolver e implementar estratégias de acordo

com a realidade brasileira e fazer com que essas estratégias sejam adotadas

pelo poder público, que é o grande parceiro para fazer com que se consiga

obter escala e ampliar o impacto das ações.

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Hoje, apenas 50% dos estudantes permanecem nas universidades e

conseguem se formar; este é um problema fundamental. O Observatório de

Favelas é o único programa de extensão que o MEC tem para trabalhar a

permanência do estudante na universidade pública. O Observatório de Favelas

está em muitas universidades federais e recebe subsídios do MEC para esse

projeto. Esse tipo de parceria tem como princípio mudar a forma como a

Universidade se relaciona com os estudantes de origem popular. É o tipo de

programa que mais agrada Jailson, já que pode ser convertido em política

pública.

“Por isso que a gente vai ter uma reunião com governador para mostrar

tudo. É uma proposta radical, de mudança na intervenção do Estado nas

favelas. E isso me agrada fazer (...) Mesmo que o governo não aceite isso hoje,

fica uma semente. Quem sabe daqui a cinco, dez, quinze anos (...) Hoje a

minha aposta é mais isso. O nosso papel é estar produzindo formulações,

proposições, de forma coerente, que levem em conta as necessidades da

maioria da população. Esse é o meu papel, é isso que eu me proponho a

fazer.”

Jailson, que ficou no PT quase 10 anos e foi secretário geral, viu que

cada vez mais estava saindo da sua origem, da profissão de geógrafo; então

pede afastamento da secretaria geral. Conta que foi um momento radical em

sua vida.

“Primeiro me apropriei da idéia de que a vida não tem nenhum

significado em si mesma; quem dá significado a ela somos nós. Isso me ajudou

muito, porque me ajudou a romper com a lógica de devedor do mundo. Eu

ainda tenho essa lógica, mas eu tento fugir ao máximo dela. Eu não me sinto

culpado diante do mundo, mas tenho obrigação diante das pessoas. O que eu

faço em termos de militância social é que dá significado para minha vida. (...)

Na minha militância vai se colocando um sentimento de afirmação da minha

identidade, que foi ganhando forma e se transformando no processo. (...)

Quando estamos num movimento comunitário, concentramos ações de forma

localizada e pensamos em soluções mais concretas sobre aqueles problemas.

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No partido político, ao contrário, e preciso pensar de forma geral com a

mudança da estrutura de poder.”

O que move e sustenta Jailson não é o vínculo institucional, seja com a

igreja, com o partido, com a instituição que criou; é com a busca de ter uma

vida cada vez mais plena, porque é significativa; é estar cada vez mais

afirmando a possibilidade de ir além dos seus limites.

A trajetória de Jailson está muito marcada desde sua origem pelo

sentimento de rebeldia, de obsessão em construir uma trajetória de vida digna,

ao mesmo tempo com o compromisso radical em dar significado a ela. É isso

que o move mais do que um sentimento altruísta de querer transformar a vida

das pessoas e de não se conformar com as estruturas sociais existentes:

“Nesse sentido minha trajetória foi muito solitária. É aí, que quando eu

leio o existencialismo, já mais tarde, me identifico muito com o objetivo

existencialista, em alguns aspectos fundamentais.”

Nesse sentido, Jailson conclui que para ganhar mais plenitude é a vida

mesmo que deve ser posta em questão. Por essa razão busca seu caminho

pessoal e seu caminho profissional. Busca ter uma vida digna, ganhar um

salário justo, viver de forma justa, buscar o que acha certo. Não acredita que

seja impossível que as pessoas vivam felizes enquanto existe pobreza,

acredita que a felicidade está no caminho, que a felicidade é buscar cada vez

mais ser uma pessoa intensa, plena, que viva de forma coerente com o que

acredita: “No plano ético, no plano político, eu não me conformo com a

sociedade existente.”

Para compor uma sociedade mais fraterna, mais justa, sustentável, na

perspectiva econômica, ética, social e ambiental, é preciso redefinir quem

somos na cidade: quem somos enquanto cidadão, enquanto sujeitos:

“Meu papel é contribuir para criar políticas públicas para serem

assumidas pelo Estado. Eu quero muito é fortalecer as nossas relações com as

prefeituras. Construir políticas com as diferentes prefeituras. Se eu estiver

vinculado a um partido certamente isto vai ser muito mais difícil. Como

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sociedade civil, posso estabelecer alianças, parcerias com pessoas diversas,

apresentando proposições.”

Jailson tem para 2008 um grande projeto cultural para o país: pintar a

Av. Brasil no dia 5 de Outubro de 2008, aniversário da Constituição. Para isso é

preciso fechar a Avenida Brasil pelas duas pistas, limpá-la, pintá-la, mostrar

que a comunidade pode ir para a rua e pode agir. Esse projeto é imaginado em

parceria com a Petrobrás e o Estado:

“Então nosso desafio, como intelectuais da periferia é formular o projeto

Cidade a partir dos interesses da periferia e sem deixar de levar em conta uma

perspectiva dos outros setores. A gente não pode simplesmente cair no gueto,

não pode particularizar o gueto; tem que levar em conta os interesses da

maioria da população e pensar um projeto que envolva a todos.”

A idéia de Jailson é formar pessoas que possam interferir na

comunidade: formar intelectuais na periferia para trabalhar na produção de

conhecimentos inovadores sobre a cidade. Nossa sociedade exacerba a

desigualdade, exacerba a conservação de riquezas, o valor distintivo dos

produtos e afirma cada vez mais a hierarquia das vidas das pessoas a partir

desses processos. O grande desafio é “pensar a cidade a partir da periferia” e

que isso não seja feito do ponto de vista da classe média. O importante é

desnaturalizar esse discurso do cidadão consumidor classe média.

Segundo Jailson, estamos marcados por um processo de crise no

Estado, que faz com que nossa política não tenha mais estatura nacional. Há

muitos anos o Rio não tem mais tradição na política, pois os políticos pensam

cada vez mais de forma particular em seus projetos localizados, e isso faz com

que as pessoas tenham cada vez menos influência no debate nacional, nos

projetos de cultura, projetos turísticos, no projeto de Estado e no projeto de

cidade, comenta ele.

Jailson conta também que esteve conversando com um diretor da

Natura, que se surpreendeu ao perceber que hoje há quem se preocupe em

vender para o cidadão e não para o consumidor. A Natura é hoje uma empresa

que busca cada vez mais saber como se relacionar com o meio ambiente, com

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os cidadãos, e também é uma empresa que deixa de reforçar as lógicas

homogêneas na própria propaganda. A linha Chronus, por exemplo, baseia sua

propaganda no respeito ao direito de envelhecer. Para Jailson, trata-se de uma

empresa capitalista, que quer ter lucro, mas tem uma expectativa socialmente

responsável.

Jailson entra na Ashoka com a perspectiva de contribuir muito para que

a Ashoka se torne cada vez mais uma rede integrada, poderosa, cada vez mais

capaz de construir projetos integrados, que renove a sociedade estabelecida. O

discurso de Jailson não é um discurso sectário, provocador, no sentido

tradicional; é um discurso político, fundamentalmente humanista:

“É humanidade em construção; estou me construindo como ser humano

e aí eu fecharia com isso: a cada passo desses, eu me humanizo um pouco

mais. Esse é o desafio maior. Na vida eu quero mais é me tornar humano cada

vez mais humano, cada vez mais sensível ao outro e a mim mesmo,capaz de

ganhar maior plenitude.”

Sobre as dificuldades, Jailson comenta que estão ligadas à dificuldade

em fazer escolhas: “Eu fiz várias escolhas na minha vida. Minha vida é muito

marcada por essas escolhas”.

Jailson sempre quis ser Secretário, mas nunca quis ter um cargo eletivo.

Nove meses de governo de transição, um trabalho de 16 horas por dia, uma

máquina lenta, bastante complicada. Nesse momento, viu-se na iminência de

fazer uma escolha: “A partir daí eu percebi que era melhor ir para a sociedade

civil e contribuir para o Estado de outra forma, não mais dentro da máquina do

Estado. Nesse sentido, eu desisti. Desisti da máquina estatal”.

Em 91, ele era o Secretário Geral do partido, do PT do Rio. Mais uma

escolha: “Eu pensei, que caminho tomaria? Ou eu continuaria caminhando no

PT, uma vez que o PT estava se profissionalizando, meu caminho natural seria

chegar a um cargo executivo nacional, ou voltar e apostar na minha carreira

profissional – voltei.”

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Contou-nos Jailson que busca alinhar seus projetos, suas ambições

pessoais, como de dar mais significado para sua vida, com as instituições que

cria ou participa. Acrescentou:

“Nós não temos vocação para ‘ongueiro’, no sentido de pessoa que vive

para ter projetos, que morrem de medo que seu projeto seja anulado. Eu quero

usar a militância como mediação para melhorar a minha vida e o mundo. Quero

ser mais feliz, quero dar mais significado para a minha vida. (...) Para mim, as

organizações são mediações. Eu estou sempre buscando caminhos para me

ajudar a ampliar a minha capacidade de interferir no mundo, mas a partir de

algumas escolhas. Eu não abro mão do meu casamento, não abro mão da

minha relação com minha mulher, com meu filho.”

Jailson quer trabalhar, oferecendo um outro olhar dos fatos. Isso fica

claro no exemplo que nos contou, parte já transcrito anteriormente:

“Todos sabem que aqui no Rio de Janeiro tem muito tiroteio nas favelas.

Então aparecem as manchetes: moradores de Ipanema não conseguiram

dormir por causa do tiroteio no Cantagalo. E os moradores da favela,

conseguiram dormir? Ou será que o pessoal da favela está acostumado a tapar

o ouvido? Esse tipo de juízo é muito comum, ou seja, há um preconceito

instituído: valoriza-se ao extremo alguns indivíduos e outros não.”

* * *

Já vimos que nossos entrevistados fazem uma escuta (poética) do

social, abrem mão da especialização de suas funções, tornando-se multi-

referenciais. Porém, em que exatamente nossos entrevistados – e suas

iniciativas – se distinguem dos negócios do mercado?

Jailson deixa claro que não vê o Observatório de Favelas como um

negócio do mercado, pois pessoalmente “não tem vocação para ongueiro”. Não

é essa sua motivação: não quer ter uma Ong para viver, não vê em uma Ong

uma possibilidade de construir uma carreira sólida e estável – nem para ele

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nem para os que participam de suas iniciativas. Quer usar esse espaço – a

Ong – “como espaço de mediação para melhorar a minha vida e o mundo.” O

que Jailson vê em seu negócio é a possibilidade de interferir no mundo de

forma mais significativa.

Os projetos de nossos entrevistados podem e devem ter lucro, mas um

lucro diferenciado tanto no ganho como no uso. Um lucro gerado a partir da

criação de oportunidades para outros e não a partir da exploração de outros.

Um lucro comprometido sócio e ambientalmente com toda a sua escala de

produção e, então, com a recuperação dos resíduos que produzem. Um lucro

de inclusão.

O Afroreggae, como já mostramos, pode ser visto como uma holding

sociocultural, que hoje gera 30% da receita do Grupo Cultural e patrocina Ongs

de outras favelas do Brasil. A diferença, a nosso ver, aparece melhor na fala

de Junior, que tomamos a liberdade de repetir:

“Então a gente quer na verdade inverter alguns conceitos. Fazer o

dinheiro circular, tem que democratizar. O que não dá é hoje você ser o

protagonista de uma ação e ser tratado como coadjuvante. Como acontece

com o carnaval do Rio. O carnaval do Rio é todo da favela. Todo mundo ganha

dinheiro às custas da favela. Todo mundo ganha dinheiro da favela.”

Isso, para ele, precisa ser invertido e, então, querem dar um basta para

o coadjuvante; querem ser protagonistas, metaforicamente falando.

No Criança Renascer, essa diferença também fica clara. A criança

doente que apareceu no hospital, comenta Vera, passou a ser uma isca para a

aplicação de uma metodologia de inclusão social: “transformar miserável em

pobre”.

O Cedaps de Daniel, como já mostramos, também difere dos negócios

do mercado na medida em que o foco não está no desenvolvimento e

crescimento do negócio, e sim no desenvolvimento da comunidade que assiste.

O Cedaps, mais do que oferecer atendimento, visa transformar a abordagem

na saúde; busca o desenvolvimento com foco na saúde, e com isso envolve a

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organização comunitária, a recreação, o esporte, o lazer, a cultura e a geração

de renda. Longe estão, pois, do mercado e dos negócios. O foco de ambos é a

transformação mesmo do que seja saúde.

Hoje assistimos a significativas mudanças partindo de várias frentes.

Um Terceiro Setor lucrativo que sustenta outras ações sociais, como é o caso

do AfroReggae, até um mercado sócio e ambientalmente sustentável, como é o

caso de várias empresas que estão no mercado e fazem negócios. Um

mercado ainda regido pela lógica do lucro, porém de um lucro redefinido. Um

lucro atento aos seus efeitos colaterais, um lucro que, além de tratar, evita a

criação de novas feridas.

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CONCLUSÃO: Mudança na cultura política: ensaiando caminhos

Para pensar se esses poliglotas do social estariam de fato criando uma

forma diferente de fazer política, fomos escutá-los, conhecer seus trabalhos,

saber como pensam, o que os motiva e como reagem aos chamados que a

escuta lhes proporcionou.

Essas pessoas partem, como vimos, de uma escuta diferenciada das

reivindicações do “mundo da vida”, elas valorizam sobremaneira os

conhecimentos locais, o senso comum, e constroem suas ações tendo como

base a escuta. Elas são capazes de escutar até mesmo o “silêncio das

meninas”, presente na crônica de Daniel.

Como nosso país está estruturado para responder a esses apelos? Hoje

sabemos que o Estado tem dificuldade em atendê-los, porém, em uma

democracia, o cidadão é portador de direitos. O cidadão tem direito à vida, à

liberdade, igualdade, segurança e propriedade. É porque nossos direitos não

estão sendo atendidos, é exatamente por isso que Daniel, Vera, Junior e

Jailson existem e se exercitam tal como descrevemos.

Nossos entrevistados habitam um lugar social e político que se constitui

em função da inoperância do Estado em atender às reivindicações, aos apelos

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e demandas dos cidadãos e, também, da desistência dos cidadãos em

reivindicar do Estado seus direitos. Insisto que esse lugar social e político que

os poliglotas do social habitam é fruto de um duplo não: o não do Estado em

atender aos apelos sociais, e o não dos cidadãos frente a um Estado

inoperante.

Com isso quero dizer que esses poliglotas do social são filhos do seu

tempo cultural. Dificilmente existiriam no Estado de bem - estar social, ou seja,

quando o Estado reservava para si, no imaginário social, o monopólio de

assistência às reivindicações de saúde, educação, equipamentos coletivos etc.

Enquanto os cidadãos organizados no movimento social e político tinham no

Estado e a ele levavam suas reivindicações, exigindo políticas públicas. É

nessa brecha aberta por esse duplo não que nossos poliglotas do social

procuram existir e crescer. Estão a ensaiar caminhos porque, o movimento

social e político organizado e reivindicador em relação ao Estado está presente

e ainda faz o jogo político principal. Nossos poliglotas do social estão, só, a

ensaiar caminhos, e este presente trabalho não fez senão escutá-los,

desejando fortalecer o ensaio e os novos caminhos.

Localizamos três chaves que nos ajudam a compreender o papel de

nossos entrevistados em uma possível mudança social: o fortalecimento da

sociedade civil, uma mudança no paradigma do conhecimento e uma mudança

de atitude política de nossos entrevistados.

A primeira chave: o fortalecimento da sociedade civil, entre outras

motivações, passa pela incorporação dos valores construídos de baixo para

cima e pela descentralização do poder. Isso fica claro em trabalhos como o de

Vera, no Criança Renascer, que, como já vimos, parte da idéia de que um

tratamento hospitalar que ignore a condição sócio/econômica de seus

atendidos, embora seja a regra hoje em dia, não faz sentido e precisa ser

modificado.

O objetivo do Criança Renascer é ajudar as mães de crianças em estado

de saúde vulnerável a evitar recaídas, oferecendo, entre outras coisas,

suplementos nutricionais e medicamentos. É um projeto muito mais amplo e

visa melhorar também as condições de moradia dessas pessoas, dar comida e

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remédio, melhor qualidade na educação, ajudar essas famílias a se

profissionalizarem.

Vera contou-nos que já lhe perguntaram por que o Estado não consegue fazer

o que ela faz e, em sua opinião,

“A burocracia impede que as coisas funcionem. A pessoa tem problema

de vale-transporte, tem que ir no ‘ministério’ dos transportes; tem problema

para comprar medicamento, tem que ir no ‘ministério’ da saúde; tem problema

para cuidar dos outros filhos, ‘ministério’ da família; tem problema com a casa,

‘ministério’ das moradias. E todos esses ‘ministérios’ não se falam. No

Renascer eles estão todos juntos, trabalhando junto e com foco na família. O

Renascer visa uma família minimamente estruturada.”

O trabalho do Criança Renascer, movimento da sociedade civil

desenvolvido a partir da escuta de uma comunidade, pode ser um exemplo de

sucesso de descentralização do poder, e unificação dos serviços. Vera não

sugere que a família vá ao ministério tal e tal; antes, oferece a cura de forma

unificada. Também, eles não estão dando uma solução a priori para um

problema; ao contrário, é no agir e nos improváveis do próprio agir que a

solução aparece.

De um modo geral, os trabalhos de nossos poliglotas do social, como o

de Vera, parecem sugerir que a novidade poderia estar numa sociedade civil

de bem - estar social, uma vez que eles não criam compromisso eleitoral, não

se comprometem com partidos, não querem ter uma relação de dependência

com o governo e nem tampouco com o mercado.

Daniel, no Cedaps, também busca apreender a sabedoria presente nas

comunidades construindo suas ações a partir delas. Essa atividade também

parte da valorização do “mundo da vida” e gera ao longo dos anos um

fortalecimento da sociedade civil, tratando-se assim, segundo Daniel, de um

trabalho da própria sociedade civil.

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Eles fazem parceria, tradução de mundos, fazem mediações e, inclusive,

influenciam em políticas103; porém, seu olhar volta-se para a sociedade civil,

em sua autonomia, dela parte e nela termina. Sua ação política é plural, bem

ao gosto de Hannah Arendt. Reforçam a idéia da força de uma sociedade civil

autônoma, com “mil comunidades interpretativas” como propõe Boaventura,

uma sociedade construindo mil focos alternativos de poder.

Uma sociedade autônoma organizada autonomamente parece ser o

ideal político enunciado pelas práticas de nossos entrevistados. Uma

sociedade que não despreza o Estado; antes, faz dele parceiro. Um Estado,

também ele, redefinido, muito embora essa redefinição não apareça enunciada

no saber fazer de nossos entrevistados, a não ser pelo negativo, vale dizer, o

Estado aí aparece criticado como poder centralizador das políticas públicas,

pela inoperância das burocracias estatais, pela pouca criatividade na sua

intervenção. A sociedade autônoma descrita nas e pelas práticas dos nossos

entrevistados aparece caleidoscópica, plural, inventiva nas suas intervenções

e, por que não dizer, amorosa, já que capaz de forjar uma liderança: os

poliglotas do social, que empatizam com os apelos aí presentes e, então, são

capazes de fazer a escuta do mundo da vida.

Jailson comenta que, marcados por um processo de crise no Estado

nacional, uma saída interessante é a construção de políticas com diferentes

prefeituras. Jailson tem um olho agudo na descentralização e na pluralidade.

Afirma que, vinculado a um partido – refere-se ao Observatório de Favelas –

isso seria muito mais difícil; no entanto, como sociedade civil – ele e o

Observatório de Favelas – pode estabelecer alianças, parcerias com pessoas

diversas, apresentando proposições novas, não viciadas.

Jailson aponta para uma mudança na estrutura da sociedade e também

no paradigma dominante, uma sociedade que lê o Estado como coadjuvante: a

descentralização do poder a partir de baixo.

103 “Na prática, a dificuldade, em âmbito nacional, é articular adequadamente políticas públicas que atuem em enorme diversidade de situações, seja pela descoordenada descentralização de poderes e financiamentos, seja pelo aparecimento de estratégias locais de governos comprometidos com a temática dos direitos, seja ainda pelo simples fato social de que são a comunidade e o município os espaços públicos nos quais as pessoas efetivamente vivem e se relacionam, caracterizando-se assim como sua última linha de apoio”. (CAMAROTTI e SPINK, 2000.p. 8)

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Hoje, o Observatório de Favelas está em 33 Universidades Federais e

recebe a verba de 10 milhões de reais do MEC para esse projeto. Esse tipo de

parceria tem como princípio mudar a forma como a Universidade se relaciona

com os estudantes de origem popular; é o que mais agrada Jailson, conforme

já apontamos anteriormente, um programa que possa se converter em política

pública:

“Por isso que a gente vai ter uma reunião com o governador para

mostrar tudo. É uma proposta radical, de mudança na intervenção do Estado

nas favelas. E isso me agrada fazer.”

Mesmo que o governo não aceite isso hoje, fica uma semente. Quem

sabe, daqui a cinco, dez, quinze anos... continua Jailson:

“Hoje a minha aposta é mais isso. O nosso papel é estar produzindo

formulações, proposições, de forma coerente, que levem em conta as

necessidades da maioria da população. Esse é o meu papel, é isso que eu me

proponho a fazer.”

Jailson está, pois, a serviço da escuta e, também, a serviço da

mediação: como poliglota do social, falando várias línguas, reforça a idéia de

uma descentralização do poder, da autonomia da sociedade civil. Propõe levar

a sociedade civil organizada através do Observatório de Favelas para o

governador. Não mais vislumbramos em Jailson a imagem do antigo militante

político dos anos 70 - 80 do final do século XX, fazendo abaixo-assinados e

reivindicando com discursos radicais de esquerda direitos sociais e políticos

para os favelados. Essa prática política ainda pode permanecer válida, mas já

não enuncia a emergência do novo. Ao contrário, as novas políticas – e os

novos discursos do Observatório de Favelas – indicam outros caminhos.

Jailson dá, ainda, um tom muito mais político do que empresarial para

seu projeto, quando deixa claro que não pretende se estabelecer nesse saber

fazer : “afinal, isso não é um negócio, isso não existe para que se construam

carreiras, meu trabalho e minha motivação são outros.”

Sua postura e seu projeto político aproximam-se muito de Gramsci e sua

idéia do intelectual orgânico. Aproximam-se de configurações teóricas que

propõem mudança da cultura, mudança do comportamento da sociedade via

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transformação cultural. Na perspectiva de Jailson, Gramsci valoriza muito a

ação humana, o comportamento do individuo e do coletivo e menos as

determinações econômicas. Jailson não quer trabalhar nem para o Estado,

nem para o mercado. É uma liderança da sociedade civil.

Segundo Daniel, do Cedaps, a agenda de políticas públicas no Brasil

ainda é muito privada: tem sido elaborada a partir do interesse dos governantes

ou das instituições privadas. Comenta que no governo ninguém se

responsabiliza em garantir atendimento às necessidades da população: “nós

temos de melhorar a nossa forma de governo, isso chama governança por

metas; os governos fazem o que querem com os recursos públicos.” Nas

entrelinhas, Daniel denuncia a privatização do público, tal como Bauman.

Nossos entrevistados parecem propor uma sociedade mais autônoma,

em que o poder esteja disseminado na mão do cidadão; poder descentralizado

no lugar da centralização estatal. Parecem propor, nas palavras de Habermas,

a revalorização do “mundo da vida”, a revalorização de um espaço social

produzido pela “ação comunicativa”, aquela orientada para o entendimento. E,

como já comentamos, uma ação orientada para o entendimento, para a

compreensão pressupõe que, embora com planos de ação individual, a sua

realização dependerá do outro, assim como da cooperação e das influências

geradas no outro. Nossos entrevistados parecem estar preocupados com a

liberdade individual, com a autonomia e com a emancipação.

Já que esse tipo de trabalho parece dar tão certo, será que não bastaria

replicar essa metodologia? Criar um modelo de franquias, como no mercado?

Junior, do AfroReggae, não vê assim, a menos que certos valores estejam

presentes.

Em relação à idéia de exportar metodologia, Junior tem uma fala

pensada: “...a gente não quer virar um McDonalds. Não é a proposta.”

Comenta que seria um fracasso e explica por quê:

“o cara que é do AfroReggae dá a vida por ela. Morreria pelo

AfroReggae. Como o cara de uma franquia vai fazer isso? Será que o

franqueado vai fazer isso? Será que o franqueado vai entrar no conceito de que

a gente não aceita o patrocínio de álcool, de tabaco? Somos um grupo muito

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atípico, diferente, contra droga, que não participa de várias questões, que não

aceita qualquer patrocínio.”

Embora o AfroReggae pareça uma holding sócio-cultural e vise gerar

lucro para garantir sua sustentabilidade, Junior está sempre atento para a idéia

de que se trata de produzir riqueza para um fim social, trata-se de lucro para

aumentar a intervenção social. Hoje, o AfroReggae já patrocina outras Ongs

de favelas de São Paulo, do sul, de Belo Horizonte. Comenta ele, conforme já

apontamos:

“uma Ong patrocinando outra? A gente faz isso. Com quê? Com o

nosso dinheiro. Show, palestra, direitos autorais, a gente vende produtos. A

gente quer na verdade inverter alguns conceitos: fazer o dinheiro circular, tem

que democratizar.”

O Estado moderno sempre foi protagonista e, na década de trinta,

pretendeu mesmo ser o demiurgo da sociedade, modelando-a. Esse foi, como

se sabe, o ideário do Estado Novo de Getulio Vargas, e não deixou de estar

presente nos discursos das décadas seguintes e no projeto do governo militar.

Essa ênfase no Estado também esteve presente nos discursos e práticas da

esquerda – do Brasil e do mundo – e não por acaso os movimentos sociais e

políticos sempre tiveram o Estado como protagonista das transformações

sociais e políticas104.

Hoje isso mudou completamente, a cena é outra: enuncia-se um modo

diferente de fazer as coisas, a sociedade civil parece querer ser protagonista e

não mais coadjuvante. Ensaia-se uma sociedade autônoma e, no seu bojo,

começam a se destacar indivíduos não enquadráveis, “identidades pós-

convencionais”, que fortalecem valores como a solidariedade e a esperança.

Nosso papel na sociedade civil organizada, desvinculada de partidos políticos,

afirma Jailson, é criar políticas públicas, estabelecer alianças e parcerias com

os espaços públicos e com o mercado para a criação de uma sociedade mais

fraterna e mais esperançosa como Junior deixa claro:

“O próprio AfroReggae é uma bandeira em torno da esperança. Quando

você fala em AfroReggae para algumas pessoas, você fala em esperança, 104 Fala construída a partir de aula com a Profa. Amnéris Maroni no curso de Ciências Sociais na Unicamp oferecido pelo departamento de Antropologia, optativa intitulada “Cultura e Poder” no 1º. Semestre de 2007.

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mudança. Eu acho que as coisas vão melhorar. E vou estar vivo para ver a

mudança. Não vai demorar tanto. Tudo isso é uma catástrofe para vir o

positivo.” Mais uma vez – Shiva.

São iniciativas como essa, da sociedade civil, que podem transformar a

ordem vigente e criar uma nova ordem econômica, social e política, que não

recaia nem no modelo de empresa e nem no modelo estatal. Essa é a utopia

que pudemos escutar.

A segunda chave é a mudança do paradigma dominante, disciplinar e

especializado, para um paradigma multidisciplinar e integrador. Um novo

paradigma capaz de respeitar os saberes locais, capaz mesmo de aprender

com esses saberes – as epistemes locais.

No trabalho de Jailson, no Observatório de Favelas, essa tentativa de

recuperação dos saberes locais também fica clara quando ele trabalha para

mudar a leitura da própria favela. Em seu livro Favela: alegria e dor na cidade,

quer mostrar que naquela também existe “uma vida que vale a pena ser vivida”:

“...que a favela é pensada sempre a partir do paradigma da presença, da

ausência, aliás, sempre pensada a partir da carência. ‘Porque a favela não tem

água, não tem luz, não tem esgoto, não tem creche, educação, nem saúde;

não tem cidadania, é o caos, é a falta de regra’. E a favela não é assim. A

favela é um espaço muito mais complexo, sofisticado, com regras sofisticadas.

Agora, tem um grau de autonomização grande em relação à lógica jurídico-

formal que impera na cidade. No doutorado estou trabalhando exatamente

essas questões e discuto como é que os espaços são segregados a partir da

presença soberana do Estado em determinados setores, outros não.”

O Cedaps e o próprio Daniel parecem inseridos nesse novo paradigma

quando partem de uma escuta da comunidade, mas não só dela; Daniel fez

também a escuta de Barnabás, o refugiado cambojano que trabalhava com

saúde. Viu-o tratando as crianças e familiares dos campos de refugiados com

música, ervas medicinais tradicionais e com a religião budista; assim, aprendeu

que resgatava também um pouco a auto-estima dessas pessoas.

Completamente encantado com esse trabalho, conforme já mostramos,

comenta:

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“É obvio. Você via aquelas crianças melhores, as famílias saindo do

buraco. Foi uma realização para mim, uma descoberta. É obvio que isso que

ele está fazendo torna as pessoas mais saudáveis. Saúde é por aí, não é aqui

na ponta do hospital. É antes, muito antes.”

A metodologia utilizada pelo Cedaps também parte de uma escuta,

quando oferece oportunidades para que a própria comunidade faça um

diagnóstico de seus problemas e crie soluções. Uma metodologia que recupera

os saberes locais:

“Você ajudava as pessoas a organizarem sua própria ação a partir de

um problema. Você ajudava a pessoa a focalizar aquele problema o suficiente,

para poder intervir com os recursos que ela tinha, evitar aquela paralisia, por

hipnose, né.”

O Cedaps, que parece indicar um novo olhar, propõe a criação de canais

de gestão participativa entre as unidades de saúde, o poder público e a

comunidade, para que esta possa efetivamente participar das decisões que

afetam suas vidas.

Vera também aprendeu muito com as epistemes locais, aprendeu com a

mãe de um garoto de sete anos que tinha câncer renal, e ia fazer

quimioterapia:

“A mãe, uma mulher de classe pobre, era muito mais vivida que eu. Era

uma gigante em termos de psiquê, comparando com a minha, porque, quando

ela entendeu que eu estava ali para ajudá-la, me disse: ‘Dra. Vera, não perca o

seu tempo, eu já entendi que ele tem que fazer quimioterapia, eu já aceitei, eu

já passei por muitos pedacinhos nesta vida. A senhora não tem um pedacinho

de lençol usado? É isso que eu quero da senhora.’ Eu falei: mas lençol usado

por quê? ‘É que eu preciso de um agasalho. Eu sou de Juiz de Fora, de Minas,

eu estou aqui na casa de uma cunhada, na Baixada Fluminense. Eu não tenho

dinheiro para a passagem e nem tenho casaco para botar no meu filho. Se ele

ficar gripado, o Dr. vai parar a quimioterapia’.”

Ao escutar essa mãe, Vera compreende:

“Meu Deus, essa mulher está pedindo um agasalho, ela não quer

cuidado com a depressão. Ela sabe lidar melhor com a depressão dela e do

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filho do que eu. Saí e comecei a fazer listas na pediatria para comprar

agasalho.”

Mais tarde, com uma outra criança que tinha que amputar a mão porque

um médico trambiqueiro de subúrbio cometeu um erro, Vera novamente

escuta:

“Dra. Vera, eu já aceitei o que aquela pessoa fez comigo, agora, eu vou

sair daqui para a rua, porque a minha patroa me despediu. Eu não tenho

marido, eu não tenho nem como comprar leite para ele.”

Vera compreendeu que para que houvesse cura, outras coisas eram

exigidas e, então, começou a ver, começou a visualizar nesse momento:

próteses, agasalhos, vale - transporte, até emprego.

Dentro desse novo paradigma multidisciplinar e integrador, vemos

também a mudança do próprio significado de saúde. Tanto o trabalho de Daniel

como o de Vera reforçam essa mudança de paradigma quando apresentam um

novo significado do que é saúde e do que é atendimento. Mostram que ela não

está relacionada só com médico e com remédio, está relacionada com auto-

estima, com música e alegria, com autonomia da família do ponto de vista das

condições econômicas e sociais. O significado de saúde nesse novo paradigma

conta com múltiplos saberes, múltiplas práticas.

No trabalho do Criança Renascer, vemos uma sociedade civil que

floresce autônoma, com líderes próprios descentralizando o poder, um

paradigma multidisciplinar casado com a sociedade civil, contrário ao anterior –

cientificista, disciplinar e especializado, casado com o Estado.

Dessa forma, para que uma replicação do projeto seja possível, faz-se

necessário um olhar diferenciado, pois não se trata simplesmente de replicar

metodologia e técnica – a “razão estratégica” de Habermas; trata-se de

compartilhar os mesmos valores e significados – que o autor chama de “razão

comunicativa”. O sucesso da multiplicação passa pela idéia de construção de

uma identidade coletiva, ainda que plural, pela idéia de compartilhar

significados; é uma questão de sentido de vida.

Segundo Junior, não se trata de exportar metodologia e sim de “dar a

vida por ela”. É uma apropriação do exercício de ser cidadão, de estar junto

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com o outro, e não tem um fim instrumental. Tanto a metodologia como a

geração de recursos são apenas meios para realizar a ação final que é o bem

social: a própria organização da sociedade civil em sua autonomia.

O movimento AfroReggae, como já foi dito, visa um estar-no-mundo

diferente: sem álcool e sem tabaco mas com cultura, onde a diversidade é

aceita. Nossos entrevistados são figuras sociais produzindo um mundo novo,

uma mudança de paradigma, e não uma figura social trabalhando para esse

mundo posto.

O poder desses poliglotas do social não é nem o poder do capital e nem

o da burocracia; é o poder da solidariedade, da compaixão ao compartilhar

valores e significados. Partimos de uma inspiração habermasiana e

compartilhamos com esse filósofo a emergência de um novo ponto de vista do

social e sobre o social.

Essa mudança de paradigma, por ser multidisciplinar, tem também lugar

para a crença, para a religiosidade e a espiritualidade, para a astrologia e o I

Ching. No antigo paradigma dominante, ancorado no projeto científico, essa

convivência com práticas plurais e ancestrais era impensável.

Junior demonstra isso quando se reconhece “mais oriental” por se

espiritualizado. Ele age a partir de um saber interior, intuitivo. Observa que não

planejou nada em sua vida, simplesmente deixou fluir. Afirma que o

planejamento é importante, mas nem tudo pode ser planejado. Sobre o

AfroReggae, comenta:

“O projeto tinha tudo para dar errado e deu muito certo. Eu acho que a

intuição tem que ser a coisa mais importante. Por mais que a gente viva num

mundo ocidental, eu me sinto mais oriental. Nem tudo tem um porquê.”

Vera também lia muito, como já comentamos, lia filosofia, lia as religiões.

Embora não seguisse formalmente nenhuma delas, acreditava em leis

cósmicas e na existência de toda uma vida não decifrável por trás do que

vemos. Estudou astrologia, leu sobre Gandhi, sempre num esforço de

conseguir lidar com o sofrimento que presenciava diariamente, pois não sentia

suficiente respaldo na medicina e na psicanálise ortodoxa. Um dia, como já

contamos, ganhou de uma amiga psicóloga, com quem trabalhava, o I Ching,

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um oráculo chinês prefaciado por Jung; passou a consultá-lo e, de certa

maneira, a se guiar pelo oráculo.

Essa mudança de paradigma, que passa pela valorização do “mundo da

vida”, contempla a intuição, a recuperação das epistemes locais e as práticas

ancestrais. Não seria arriscado pensar, então, em uma redefinição do lugar da

Ciência. Nesse novo lugar, a Ciência seria uma entre outras narrativas, e não

mais a narrativa. Uma Ciência a serviço dos saberes locais, do “mundo da

vida”.

A terceira chave aponta para uma mudança de atitude política de

nossos entrevistados. Por tudo que falamos nos capítulos anteriores, creio que

demonstramos que essas figuras sociais escutam o “mundo da vida” e são

tradutores e mediadores de mundos. Elas não atuam como atores de teatro, e

não são representantes políticos. Não são também militantes políticos; também

não são empreendedores comprometidos com o imaginário capitalista. Dizer

que se trata de alguém que visa transferir recursos econômicos de uma área

de baixa produtividade para uma área de maior rentabilidade, ou de alguém

focado no que Schumpeter chamou de “destruição criativa”, também nos

parece inadequado.

O projeto moderno tinha um plano racional e científico para acabar com

as mazelas sociais; pretendia a igualdade, fraternidade e liberdade para formar

um mundo transparente, seguro e certeiro. A razão e o poder se uniram no

projeto visando instaurar a ordem e expurgar a ambivalência. Afirma Bauman:

“No reino político, expurgar a ambivalência significa segregar ou deportar os

estranhos, sancionar alguns poderes locais e colocar fora da lei aqueles não

sancionados, preenchendo assim as “brechas da lei”. No reino intelectual, expurgar a

ambivalência significa acima de tudo deslegitimar todos os campos de conhecimento

filosoficamente incontrolados ou incontroláveis. Acima de tudo, significa execrar e

invalidar o ‘senso comum’ – sejam ‘meras crenças', ‘preconceitos’, ‘superstições’ ou

simples manifestações de ‘ignorância’.105

105 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1999. p. 33.

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Olhando para esses poetas poliglotas do social, não podemos dizer que

estamos diante de um indivíduo que planeja um empreendimento social; antes,

esses indivíduos nascem no espaço social, no espaço público (com) junto à

escuta que são capazes de fazer. Ora, é exatamente isso que nos põe diante

de impasses. Esse novo nos coloca diante do imprevisto, de certo modo diante

das incertezas e da ambivalência que a Modernidade, visando nosso conforto,

pretendia eliminar.

Eles, os poliglotas do social, não se enquadram em nenhuma posição

justamente porque partem de posições diferentes, partem de uma escuta e

cada escuta é uma, cada sociedade tem seus saberes, seus valores; cada

sociedade fala uma linguagem. É justamente a partir de cada uma dessas

escutas que as ações sociais serão construídas.

Nessas brechas, nos valendo de Habermas, poderíamos contar com a

ciência, com a técnica e demais especialidades, com o mercado e com o

Estado, todos a serviço do “mundo da vida”, reforçando, assim, a idéia de uma

sociedade civil de bem - estar social. Na história da humanidade, já passamos

pela hegemonia da Igreja, pela hegemonia do Estado, uma sociedade regida

pela lógica do poder; agora podemos dizer que estamos passando pela fase de

hegemonia das empresas, uma sociedade regida pela lógica do lucro. O

momento atual nos convida a pensarmos na hegemonia do “mundo da vida”,

uma sociedade regida pela lógica da solidariedade.

Servindo-me desses poetas poliglotas do social entendo que para que

possamos “mudar o mundo” – proposta da Ashoka – antes, de acordo com as

palavras de Gandhi: “nós devemos ser a mudança que desejamos ver no

mundo”.

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- PESSANHA, José Américo Motta. Diálogos / Platão . Seleção de textos, tradução e

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- SAWAIA, Bader (org.) As artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da

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1985. (original em 1911).

- SPINK, Peter; CAMAROTTI, Ilka. Parcerias e pobreza: soluções locais e

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- TEIXEIRA, Ana Claudia Chaves. Identidade em construção: as Organizações Não-

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156

- WANDERLEY, Luiz Eduardo “ A questão social no contexto da globalização: o caso

latino-americano e o caribenho”.

- WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Seleção e

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Renata M. Brunetti

A escuta do “mundo da vida” na constituição de uma sociedade emancipatória

Anexo - entrevistas

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2007

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2

SUMÁRIO

BIBLIOGRAFIA – RATIFICAÇÃO ........................................................................... 03

ANEXO 1 ................................................................................................................... 04

ANEXO 2 .................................................................................................................. 26

ANEXO 3 ....................................................................................................................48

ANEXO 4 ...................................................................................................................68

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3

BIBLIOGRAFIA – ratificação

- ALVES, Mário Aquino. “As Organizações Sociais: garrafa velha com rótulo novo?” 1999. (Apresentação de Trabalho/Congresso). - ALVES, Mário Aquino. “Organizações do terceiro setor e sua(s) racionalidade(s)” . In: ENANPAD 2002, 2002, Salvador. Anais do ENANPAD 2002, 2002. - WANDERLEY, L. E. W. . A questão social no contexto da globalização: O caso Latino-Americano e o Caribenho. In: Mariangela Belfiore Wanderley; Lúcia Bógus; Maria Carmelita Yasbek. (Org.). Desigualdade e a Questão Social. 2a. ed. São Paulo: EDUC, 2000, v. 1, p. 51-161.

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4

ANEXO 1

ENTREVISTA DANIEL BECKER

R: Daniel, nosso trabalho é fazer um estudo dos agentes sociais, tentando compreender o papel desses agentes na construção de uma sociedade emancipatória. Para a gente interessa muito conhecer a sua história de vida, gostaríamos que você contasse quem é você, como chegou a ser o que é, como fez para desenvolver o seu trabalho. Por que você foi por esse caminho e não por outros. Depois a gente vai te cutucando, mais para frente.

Começando lá de trás mesmo. A minha infância foi vivida em uma família

muito conturbada, difícil, muito sofrida. Meus pais, muito amorosos, mas

muito canhotos na sua forma de educar os filhos e era uma família que tinha

muitos conflitos. Um casamento muito perturbado.

Tive uma infância triste, basicamente sofrida, com muitos momentos de

alegria, muitos momentos... , identifico ali como uma fonte de tensão.

Eu era um menino tímido. Minha irmã, quanto tinha dezoito anos, saiu do

Brasil. Foi fazer uma experiência em Israel e acabou ficando por lá. Ela foi

uma vez, antes, por um ano, depois acabou voltando para lá. Quer dizer, ela

praticamente fugiu da nossa família.

Uma mãe super protetora, um pai meio ausente, muita manipulação

emocional, enfim, meu perfil pessoal, eu diria que foi influenciado

negativamente pela minha formação familiar, apesar de meu pai ser um sujeito

duro. Talvez, na minha história de infância a figura mais importante tenha sido

meu pai e meu avô.

Meu pai era um sujeito de princípios, de bondade. Era um cara muito de

direita. Nós discutíamos muito nessa área política, mas ele era um sujeito de

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5

princípios, um sujeito íntegro. Uma certa coragem em defender as causas que

para ele eram importantes. Comprometido com uma comunidade.

Mas o que mudou a minha vida, na verdade eu tive também uma outra

questão na infância e adolescência, foi a educação judaica. A educação

judaica é muito baseada em valores e princípios. O judaísmo tem uma

dimensão, uma tradição judaica de solidariedade, de ajuda aos mais

necessitados que é muito intensa, muito profunda. É muito marcada. Isso é

transmitido pelas famílias, pela escola, pela religião. e então, a vivência que

eu tive, judaica, me empurraram um pouco nessa direção.

Nem sempre é determinante, já que meus amigos judeus trabalham no

mercado financeiro e não dão bola para o social.

O que realmente definiu a minha vida, o que mudou o meu caminho, foi a

participação no chamado movimento juvenil, que é uma prática, uma

característica da comunidade judaica no Brasil e em outros paises do mundo

também. São movimentos ligados a partidos socialistas de Israel. Tem origem

nos movimentos socialistas da Europa oriental, da Rússia que geraram a

migração sionista da esquerda e o movimento dos Kibutz, das colônias

socialistas de Israel. Os Kibutz já eram ligados aos partidos. Os partidos

criaram o movimento dos meninos e o movimento dos meninos se espraiaram

pelo mundo onde havia comunidades judaicas. E a idéia original era o

movimento sionista, era mobilizar a comunidade para o retorno, o

fortalecimento de Israel. Justamente para fortalecer a imigração judaica para

Israel, na época em que o país estava em formação. Então, quando eu entrei

no movimento juvenil, aqui no Rio, ainda era um movimento de características

mais tinha ainda alguma coisa de sionista.

Mas hoje Israel está aí, formado, não precisa tanto de imigrantes. Hoje em dia

esses movimentos são encontros de jovens que tem alguma coisa de

ideologia por trás, mas muito pouco.

Mas quando eu entrei lá, havia uma coisa forte de ideologia judaica, sionista

de esquerda, com toda questão socialista do Kibutz ...

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6

R: Que ano foi?

Entrei em 1971. Além disso, nós estávamos em plena ditadura, iniciando a

reação contra a ditadura. Esses movimentos têm uma característica muito

interessante, que eu estou tentando de certa forma reproduzir nas favelas

onde eu trabalho com jovens que são duas características. Primeiro é a

autonomia, no movimento você vê pouquíssimos adultos. Os adultos ficam

muito longe, tem um adulto supervisionando as idades, dando grandes linhas

de trabalho, trazendo alguma capacitação, agora, quem realiza a produção

são as crianças.

Então, quando você tem quinze anos, começa a se preparar, para quanto tiver

dezesseis começar a ser monitor de crianças de oito, dez, doze, e assim por

diante. Você vai crescendo, vai ficando mais velho e vai assumindo cargos de

monitoria de crianças mais jovens e tem todas as atividades com eles. Então,

para um menino de doze anos que entra, o madrinha dele, como a gente

chama o monitor, o facilitador, o idealizador, sei lá como chamar isso em

português, vai ser três anos mais velho. Por um lado é um menino que olha

para cima, para ele, mas que é um garoto que acabou de viver as

experiências em que ele está, que tem muito em comum.

É um universo muito encantador. Eu me apaixonei pela coisa e passei todas

as etapas possíveis desse movimento e, depois, comecei a assumir as tarefas

de gestão mesmo. Daí eu aprendi.

Então nesse grupo, o meu papel social, gestão de organizações, liderança, e

trabalhei muito com essa questão dos valores de esquerda, dos valores

socialistas, da solidariedade, da ajuda, da igualdade, da liberdade, do

trabalho.

Em uma parte das atividades tinha discussões, conversas, debates, júris

simulados, depois a gente ia brincar. As brincadeiras muitas vezes tinham a

ver com os temas sendo trabalhados. Tanto tinham temas judaicos, sionista,

como tinham temas gerais.

Como eu peguei uma época com muita ideologia e meu monitor tinha sido

torturado e preso, então era uma festa.

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7

Era um lugar onde tinha uma cobertura, então, a gente podia estar discutindo

questões que lá fora não podia discutir. Depois eu entrei na faculdade, na

medicina.

Eu passei um ano em Israel, mas foi uma experiência menor na minha

formação. Certamente foi importante na minha autonomia, que tinha

dezessete anos, dezoito para ser mais exato.

Foi muito determinante. Era festa, trabalhava no kibutz. Fui importante, como

é importante para um menino passar um ano longe de casa, ainda mais com

uma família como eu tinha, um ano despreocupado. Tinha algumas questões

de liderança que acabei desenvolvendo ali. Fraquezas no programa, eu ia lá e

exigia mudanças e tal, mas muito mais importante essa vivência em criança

aqui no Rio, no movimento juvenil, do que esse ano fora. Na volta, na

faculdade, eu comecei a me ligar com os movimentos de esquerda, que eram

recentes naquela época.

R: Que faculdade você fez?

Na UFRJ. Eu me liguei ao pessoal do partidão. Não era um ativista, mas era

muito ligado pessoalmente a eles e conversava muito, fizemos grupo de

estudo, aquela coisa. Eu nunca me envolvi em militância direta, mas eu

pertencia em termos relacionais, em termos ideológicos eu me localizava

nesse grupo mais à esquerda.

Na faculdade teve um confronto assim, entre nosso grupo e um grupo de

direita, e era um confronto num campo, eu era muito bom aluno, e era um

confronto num campo da formatura. Gozado, a formatura virou um campo de

batalha entre um grupo francamente de direita, inclusive um garoto que

trabalhava diretamente para a ditadura, denunciava as pessoas e tal e o grupo

de esquerda.

E era um confronto muito baseado na coisa do estudo, da formatura Tinha que

ser com beca para eles, formal etc. e tinha toda uma estrutura da festa e do

discurso e, o grupo da esquerda começou a se sentir completamente

atropelado.

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O processo foi totalmente antidemocrático. Formaram uma comissão,

sozinhos, formaram uma comissão de formatura e nós viramos o jogo,

começamos um movimento de reconquistar. Tava todo o mundo pagando para

esses caras não sei há quantos anos e eu tive uma figura meio protagonista

nessa época, porque toda a turma da esquerda era pessoal que colava na

prova, não queria fazer saúde publica, não queria ser médico. Existia essa

imagem e, essa imagem para o movimento de formatura não pegava bem. Aí

eu como era bom aluno, fui figura de proa para a reconquista da turma. Neste

sentido foi um movimento bem interessante. Acabei sendo o orador da turma,

também.

Aí, depois da faculdade fui fazer pediatria. Comecei fazendo clinica médica,

mas odiava a clinica, detestava doença, nunca gostei de doença, gosto de

saúde, e na clinica você só vê doença. São pessoas idosas, com doenças

crônicas que nunca ficam boas. Vai internando, internando... Aquilo me

deixava saturado. Eu odiava aquilo.

Eu ia fazer clinica médica, sete meses internado, quase no finalzinho da

faculdade. Nessa época tava todo mundo muito ansioso para chegar à aprova

da residência que é o grande vestibular do médico e todo mundo já está

estudando para a prova desde o terceiro ano da faculdade.

No último trimestre da faculdade resolvi mudar completamente e fazer

pediatria. Estava namorando uma estudante de pediatria, mais velha, comecei

a ir aos plantões dela e, em dois plantões eu me apaixonei. Nunca gostei de

pediatria. Nunca gostei de pediatria, não queria saber de criança, não tinha

interesse por criança. Achava uma coisa meio de veterinária, porque criança

não fala. Eu tinha medo de criança. É uma tendência, médico que não gosta

de pediatria é porque tem medo de criança.

Assim, em dois plantões, comecei a ser abraçado por criancinha chorando e,

senti ali, todo o meu sentimento de paternidade aflorou, disse: não, vou fazer

pediatria.

Matei-me de estudar, passei na residência e comecei a trabalhar. E me

chamava muito a atenção essa coisa, me lembro claramente de uma menina,

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Joyce. Uma menina que a gente pegou praticamente morta. Chegou ao

hospital, era um cadáver. Ela chegou em septicemia?, infecção generalizada,

quase morta. A gente entubou, botou no respirador, era sangue para todo

lado, transfusão, aquela coisa ultra sofisticada, todos os recursos da época,

laboratório, antibióticos caríssimos. Ela começou a se recuperar. Lembro-me

até hoje, após dois meses de internação, ela sorriu pela primeira vez. O

sorriso de uma criança é o primeiro sinal de saúde. Ela começa a se

recuperar, começa a sorrir.

Aí ela ficou boa, ganhou oito quilos na internação. Era uma criança que estava

limitada para sempre, mas estava viva, saudável e foi para casa. Dois meses

depois ela voltou ao hospital em situação totalmente parecida. Dois meses

depois.

Ela ficou mais tempo no hospital do que em casa. Aquilo se repetia.

Eu dizia, não é possível. Tem aquela história do rio, Dois caras pescando no

rio e aí começa a passar criança afogada. Eles vão se jogando e começam a

tirar a criança do rio. Vem outra se afogando, o cara se joga de novo e a tira.

Aquilo se repete, até que um deles se levanta e diz, não, espera aí, dá licença,

tchau.

Porque você vai embora, cara. Está cheio de criança se afogando, vamos ficar

aqui e... Eu vou lá encima ver quem está jogando criança no rio.

A minha sensação era de que eu precisava fazer alguma coisa, mas eu não

tinha a menor idéia do que fazer. Aí eu comecei a procurar alternativas.

Eu não queria ficar no Brasil, queria ter experiências de viagens, queria abrir

meus horizontes, ir para fora. E durante a residência comecei a procurar o que

ia fazer e aí surgiu uma alternativa na França. Juntava tudo o que eu queria.

Trabalho com pediatria social.

Eu não queria fazer saúde pública, atrás de escrivaninha, estatística,

epidemiologia, isso não interessava, sempre detestei isso. Queria botar a mão

na massa, trabalhar com pessoas e, não queria também ficar atendendo em

hospital, não era meu barato.

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Essa proposta na França era para fazer pediatria social, era um campo meio

novo, meio diferente. Era na França, na Europa, eu queria viver na Europa.

Tinha uma bolsa muito boa, dava para viver bem lá, eram mil dólares e tudo

certo, garantido, prometido. Acabei indo para lá.

Experiência muito limitada, porque era um instituto francês, meio sociedade

civil, meio governo, mas um trabalho muito limitado, muito voltado para

análise, pesquisa com vacina. Fui para a África com eles, fazer uma avaliação

da minha vida, me afastar de coisas que não me interessavam tanto.

Depois de um ano, minha bolsa acabou e eu continuei vivendo em Paris,

porque eu queria viver em Paris mais um ano. Arranjei um estagio hospitalar,

uma coisa que não existia no Brasil, principalmente sendo adolescente. Fiquei

um ano trabalhando lá e não queria voltar para o Brasil ainda.

Eu comecei a procurar alguma coisa que me levasse mais longe. Queria ir

para a Ásia. Eu tinha uma fantasia que eu queria ir para o Himalaia me

iluminar.

Aí eu encontrei os médicos sem fronteiras, em Paris. Fui lá fazer uma

entrevista, falar que eu queria trabalhar, mas na Ásia. E tinha exatamente o

lugar que eu queria, no tempo que eu queria. Vaga para pediatra, num campo

de refugiados cambojano.

Tudo certo. Na hora que eu ia, meu pai morreu no Brasil. Voltei. Eles me

deram um intervalo de uns quinze dias. Foi um momento muito intenso na

minha vida.

Passei um ano nesse campo de refugiados e, ali sim, foi outro momento que

marcou muito a minha vida e que definiu um pouco meus caminhos a seguir,

porque mais uma vez a coisa se repetia, era uma população que vinha de uma

tragédia social inacreditável, guerras, massacres, literalmente massacres. Não

pode viver com uma coisa que só tem paralelo no holocausto. O que

aconteceu com o povo cambojano não existe, talvez agora, essas últimas

viagens na África, uma sucessão de massacres impressionantes. Um terço da

população foi extinta.

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R: Como se chamava o regime do Camboja?

Khmer Ruge, Khmer Vermelho. Esse foi um dos regimes. Foi o pior, mas

antes do Khmer Vermelho eles tinham sido bombardeados pelo Nixon, pelo

que chamavam o Site Show do Nixon. Durante a guerra do Vietnam, o

Camboja estava dando refugio aos Vietcongs e Nixon foi lá e arrasou o país

com bombardeios. Simplesmente assim.

O país ficou todo enfraquecido, assumiu uma ditadura de direita que matou

mais um pouquinho, Então o campo se fortaleceu e a guerrilha veio.

O Khmer Vermelho tomou o poder. Quatro anos de Khmer Vermelho, eles

mataram um milhão e meio de pessoas. Massacraram, fuzilaram, mataram de

fome, de doenças, esvaziaram as cidades. Eles queriam que o país voltasse à

idade média, camponês.

R: Era de esquerda?

Maoístas. Nem o Mao conseguia conceber um regime louco, se você não

tinha a mão calejada, você levava um tiro na cabeça. Quem falava inglês

levava um tiro na cabeça. Fuzilado. Qualquer pessoa com educação era

executada. Era uma violência assim, impensável.

Depois disso, o Vietnam invade. O Vietnam era um inimigo mortal da Rússia,

eles se fortaleceram no final da guerra. Eles invadiram o Camboja. Vieram do

leste, invadindo, entrando no Camboja e expulsando milhões. Milhares de

pessoas que estavam massacradas pelo regime, só pensavam em fugir e,

foram prensadas na fronteira com a Tailândia e, na Tailândia, tinha um

exército com metralhadoras apontadas dizendo: aqui ninguém entra. Eles se

instalaram na fronteira, uma catástrofe internacional importante. A ONU veio

com tudo e instalou uma série de campos na fronteira entre o Vietnam e o

Camboja. Seiscentas mil pessoas passaram a viver ali.

Esses campos foram distribuídos nas diversas facções políticas do Camboja.

Então tinha um campo que era do Khmer Vermelho, e os infelizes que

estavam lá continuaram a ser prisioneiros do regime assassino. E o meu

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campo, era um campo dessa facção mais à direita ligada aos americanos, isso

não era muito importante, mas era o maior deles. Eram cento e oitenta mil

pessoas e eu o responsável pelo setor pediátrico, com quarenta mil pessoas

mais ou menos. Então eu via uma média de quarenta crianças por dia,

trabalhando com os cambojanos muito próximos.

Eu tinha uma equipe de agentes de saúde e me relacionava muito com eles.

Alem disso tinha uma equipe, uma equipe francesa, onde eu era praticamente

o único que falava inglês. E mais uma vez eu assumi meu papel de

protagonista, eu era o contato do comando central com o restante do, ...... eu

era o que melhor falava inglês.

Foi um momento muito legal. Mais uma vez, ali eu via a mesma coisa. Via

crianças sofrendo por doenças, por violência, porque eram recrutadas pelo

exército guerrilheiro do Camboja.

Entravam clandestinamente no Camboja para fazer contrabando de seda,

traziam coisas para vender, traziam um pouco de dinheiro, porque circulação

de dinheiro, não tinham produção econômica, eram só rações que eles

recebiam ,que eram insuficientes. Muito contrabando, muita coisa clandestina.

E a gente via muitas crianças sofrendo, adoecendo continuamente, pelas

condições de onde eles vinham pela história que eles tinham e pelas

condições das famílias. Famílias destituídas, massacradas. Muita violência

doméstica, muito suicídio. As crianças iam e vinham para o hospital. Aí eu

conheci um sujeito chamado Barnabás, que era um refugiado, que tinha criado

uma espécie de ONG naquele campo. O cara tinha inventado uma ..

R: Qual era a nacionalidade?

Ele era um cambojano. Era um refugiado. Estava morando no campo. Era

uma espécie de onguezinha, mesmo. E ele trabalhava com música tradicional

cambojana, ervas medicinais tradicionais e Budismo, religião budista.

Pegou uns monges e fazia atividades com as famílias, resgatando um pouco a

auto-estima, cuidados com as crianças e o trabalho com a saúde, a educação

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tradicional, trabalhos manuais. E as famílias que iam chegando, com

tentativas de suicídio, a gente mandava para ele.

E foi uma coisa que me encantou completamente. Disse assim: é obvio. E

você via aquelas crianças melhores, as famílias saindo do buraco. Foi uma

realização para mim, de uma descoberta. É obvio que isso que ele está

fazendo torna as pessoas mais saudáveis. Saúde é por aí, não é aqui na

ponta do hospital. É antes, muito antes.

Até que eu voltei para o Brasil, por um acaso, uma sorte, eu voltei. Eu tinha

uma situação, na época o INAMPS, o Ministério da Saúde, a assistência

médica, eu comecei a trabalhar num posto de assistência médica no subúrbio.

Foi muito bom esse período de trabalho no SUS, porque eu pude entender a

dificuldade que as pessoas têm de serem entendidas no posto de saúde.

Porque eu convivia com funcionários da saúde da pior qualidade e eu passava

a ser um referencia no posto. Não porque eu era bom médico, mas porque era

gente.

Olhava na cara da pessoa, perguntava pro cara o que tinha e os outros me

criticavam por causa disso. Cheguei a ouvir falar tipo - porque você trata esses

caras de gente, parece até que eles são gente.

Esquema de profissionais completamente alienados e tratando as pessoas

literalmente como animais. Tipo: O que é? To receitando aqui um analgésico,

pode ir. Próximo. Aquela mesinha na sala vazia, uma mesa e uma cadeira. O

médico sentado na cadeira, a pessoa entra, o cara nem olha para a pessoa,

quanto mais examina. Então dá uma receitinha de analgésico e manda o cara

embora. O papa fila.

Então eu conheci um pouco esse lado, o que é o SUS de verdade. Hoje em

dia parece que está um pouco diferente, mas ainda tem isso.

Fui convidado por amigos, na época, a trabalhar num postinho que estava

abrindo numa favela, na zona sul do Rio. Aí, agradou logo, porque eu queria

muito trabalhar nesse ambiente, poder fazer alguma coisa. E esse posto era

ligado a uma fundação americana. Pequena fundação que tinha ali um

postinho de saúde, possivelmente um trabalho caritativo.

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A gente montou uma equipe, eu era o pediatra do posto. Só que com a minha

amiga, que era coordenadora desse programa, essa pequena unidade, a

gente começou a pensar: vem cá, a gente está aqui, tem um médico, um

pediatra, um clínico. As pessoas iam, atendiam. Atendiam bonitinho, olhava na

cara, examinava, aquela coisa, mas atendia do mesmo jeito que a gente

atendia no hospital, no posto de saúde. O que a gente está fazendo aqui? Por

que a gente não usa essa oportunidade para fazer alguma coisa diferente?

Inventar uma forma diferente de agir.

Essa minha amiga estava envolvida com a universidade, com os estudos e

soube que no Ceará tinha um agente comunitário que tinha acabado de

ganhar um prêmio da Unicef . Isso em 1992, 1990.

A gente inventou, conversamos com um monte de gente, lemos, então

inventamos um modelo de atuação naquele postinho comunitário que a gente

chamou de médico de família. Então a gente trocou os especialistas por um

médico só, inspirados no médico de família cubana, no inglês.

Generalista, que tem que atender a todo mundo na família, atender a

comunidade toda e, portanto, conhecer melhor as pessoas, a comunidade.

Cria-se um prontuário de família, onde as informações de cada individuo

estavam inseridas no prontuário da família dele. Para o médico poder

entender o contexto social daquela pessoa e conhecer também melhor a

comunidade. A gente criou o tal do agente comunitário saúde, só que urbano.

No Ceará era rural, então a gente inventou isso na cidade. E a coisa começou

a andar muito bem. Caiu o custo. A gente pôde abrir um segundo posto numa

outra favela e começamos a trabalhar neste modelo. Só que a gente começou

a identificar outras pessoas trabalhando nesse mesmo modelo, nessa mesma

direção.

Tinha Niterói, tinha S. Paulo, Rio Grande do Sul. Conhecemos um pessoal da

Inglaterra que ajudou esse grupo a se juntar, fazer uma espécie de frente e

levamos isso para o ministério da saúde.

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Essas pessoas tinham articulações com o ministério. O ministério comprou

essa idéia e em 94 lançou o programa saúde e família. Hoje em dia o

programa saúde e família é a maior política de saúde no Brasil.

Não é mais nem programa, já é a maneira de se fazer retenção básica de

saúde ambulatorial e já tem 90 milhões de pessoas sendo coberta por essa

experiência.

É uma história muito importante na minha vida, ter participado desse

movimento que sem duvida nenhuma mudou a cara da saúde nesse país,

uma coisa da qual eu me orgulho.

Não tenho esse crédito, meu nome não aparece nas reprises de cinema, mas

para mim está colocado.

Como eu não era do serviço público, nem da universidade, eu era de uma

ONG, de um posto de saúde, a gente não aparecia. Quem aparecia eram

outros, os acadêmicos que publicavam seus artigos ou então os gestores

públicos que adotavam esse programa.

Nessa época a gente criou o CEDAPS que é o centro de promoção da saúde,

na época como Centro de Apoio e Desenvolvimento do Programa de Saúde.

Depois a gente mudou o nome, porque primariamente o objetivo dele era

trabalhar nessa questão de assistência à saúde, desenvolvimento de modelos

adequados, apropriados a essa população.

Só que na época do desenvolvimento dessa idéia do modelo de atenção

básica, ou geração primaria de atenção da saúde da família, encontramos

pessoas de uma instituição basicamente de assistência social. Eram

psicólogos sociais. Gente com muita experiência de trabalho em comunidade,

que vivia na favela, fazendo vários tipos de atividades, que tinha uma leitura

muito boa do mundo, do universo da pobreza urbana.

Essas meninas começaram a trabalhar junto com a gente. Começamos a

formar equipes, baseados na agregação dessas pessoas. Aí o Cedaps

começou a ficar com uma equipe mais variada. Rapidamente fui me tornando

o único médico ali.

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Uma vez que o modelo estava consolidado, fomos convidados pela secretaria

municipal, e fechamos essas unidades que eram financiadas pela fundação. A

fundação não queria mais bancar isso e o setor público assumiu. Abrimos uma

unidade na ilha de Paquetá, eu comecei a coordenar isso pela Prefeitura, e o

Cedaps era uma espécie de intermediário e aquelas duas unidades foram

assumidas pela Prefeitura mais tarde.

Nessa época fui fazer meu mestrado. Foi outro momento importante na

formação do profissional. No mestrado, paralelamente a esse processo onde

eu estava começando a ter esse trabalho com as meninas da área social, eu

comecei a procurar no as áreas que explicassem um pouco o que eu estava

fazendo e cai numa coisa chamada promoção da saúde, que é um campo da

saúde pública que trabalha exatamente essa perspectiva da determinação

social da saúde, das comunidades no sentido de promover a produção social

da saúde, não é nem prevenção.

Prevenção você trabalha com riscos. Diabetes têm risco de ter um quadro. As

crianças têm risco de contrair doenças infecciosas, então vamos vaciná-las. A

vacinação é uma atividade de prevenção.

Na promoção da saúde não. Ela pensa nos fatores que levam as pessoas a

ficar saudáveis, tornarem-se mais saudáveis. As comunidades mais

saudáveis. Foi quando essa abordagem mais ampla, outras metodologias,

outras ideologias.

O campo existia. Eu comecei a ler sobre a coisa e ficava fascinado porque

tinha gente explicando o que eu estava fazendo. É uma sensação

maravilhosa. Eu pertenço, esse aqui é meu clube. Achei minha praia.

Ao mesmo tempo as coisas não se coadunam a toa. Ao mesmo tempo a

fundação lá nos Estados Unidos que me pagava um salário, a maior parte do

salário, modesto, mas era muito importante, veio me dizer, olha, acabou o

programa de atenção primária, mas nos queremos que você continue

trabalhando com a gente, agora numa outra perspectiva. Nós estamos

começando a fazer um programa baseado numa metodologia que nós

inventamos, numa universidade americana, (Solução de Problemas na Área

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da Saúde), e a idéia é utilizar os elementos dos métodos científicos de

investigação, para ajudar médicos a fazerem pesquisas na universidade.

Fizemos um seminário aqui, achei um saco. Era bacana, legal, era simples,

era inteligente, mas eu não tinha saco para ficar ajudando médico a fazer

pesquisa. Não estava interessado.

Mas aquela metodologia tinha uma seqüência muito inteligente e a gente

começou a sacar. Tinha uma figura guia, a mesma menina que me convidou

para trabalhar na favela. A gente estava trabalhando na fundação e ela era

uma pessoa muito visionária. Eu sou um empreendedor social, mas eu não

tenho essa capacidade de ser tão visionário como identifico na Silvia, nessa

figura, no Jailson, outro visionário. São os que conseguem enxergar mais

longe do que a realidade imediata e conseguem se inserir no futuro de uma

maneira mais estratégica. Eu não tenho essa capacidade. Eu lido muito

melhor com as questões do presente.

A Silvia começou a dizer, olha talvez pudesse usar isso para outra coisa.

A gente começou a usar aquela mesma metodologia para trabalhar, primeiro

com a ONG. Em vez de pegar médicos, a gente pegava quem trabalhava com

pobres. A única capacidade exigida.

Por quê? Porque elas geravam projetos sistemáticos. Você ajudava as

pessoas a organizarem sua própria ação a partir de um problema. Você

ajudava a pessoa a focalizar aquele problema o suficiente, para poder intervir

com os recursos que ela tinha evitar aquela paralisia, por hipnose, né.

O problema era tão grande. Eu dizia: pega aqui um pedacinho que você

consegue fazer. Dá o primeiro passinho, organiza uma ação, faz um

planejamento estratégico, executa e avalia teus resultados.

Aquilo foi um barato. Isso foi um universo, na época. ONGs ou pessoas que

trabalhavam com serviço de saúde, com médicos em postos de saúde,

enfermeiros, conseguiu-se organizar ações e a gente foi orientando para que

eles fizessem isso na perspectiva da promoção da saúde e não da assistência

médica só. Organizar ações nos postos de saúde, para dentro das

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comunidades pobres, até que a gente começou a atuar nas próprias

comunidades com essa metodologia.

R: Isso tudo via centro de promoção da saúde?

É. Já era pelo centro. O centro foi criado em 93. A partir de 93 todas as

atividades eram ligadas à ONG que recebia financiamento dos Estados

Unidos em parte e já fazia vários convênios com o setor público. Aí a gente

começou a desenvolver, na verdade, uma metodologia para trabalhar com

comunidades pobres.

Na época a Aids, começando a chegar às favelas, já um espectro muito

assustador para as comunidades.

Essas meninas, principalmente assistentes sociais, psicólogas, funcionários

da área social, utilizaram a metodologia para oferecer para um grupo de

comunidades um trabalho de prevenção da Aids. Primeiro elas recrutaram,

identificaram algumas parcerias com organizações comunitárias e essas

organizações foram capacitadas na questão de Aids, sexualidade, prevenção,

etc. e, a partir daí, a gente começou a usar a metodologia para ajudar essas

comunidades a desenvolverem elas mesmas ações de prevenção que tivesse

a ver com a sua problemática local.

R: Isso eram associações de bairros?

Basicamente associações de mulheres. A gente evitava associações de

moradores, porque estão contaminadas em parte pelo tráfico ou por políticos

de quinta categoria.

R: E essas associações de mulheres eram independentes ou ligadas à igreja?

Não. Não tinha muita gente ligada à igreja. Tinha algumas associações cristãs,

pouca gente católica. Elas trabalham em favelas muito pobres e a igreja não

chega lá dentro. A igreja evangélica chega mais.

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R: Até um tempo atrás eram comunidades de bairro. Aqui não?

Aqui sim. Tinha uma rede de comunidades eclesial de base bastante forte,

mas que dos anos noventa para cá, foram se enfraquecendo.

Eu acho que talvez algumas dessas mulheres sejam remanescentes desses

movimentos, mas a maioria não. São lideranças comunitárias meio

espontâneas não capacitadas por igrejas.

Eram mulheres, a maioria delas, muito cruas. Que tinham experiências iniciais

muito intuitivas. Queriam ajudar as crianças. Faziam programinhas de

capacitação para jovens, organizavam trabalhos com idosos e tinham essa

preocupação com a Aids. O trabalho com a Aids foi mobilizando essas

mulheres. Alguns homens também. E ao mesmo tempo em que aquilo

mobilizava a comunidade, que efetivamente ali se constituía, se conformava

uma proposta de intervenção brasileira, adequada em um território conhecido,

que não se configurava na idéia do não transe, só use camisinha, abstinência,

etc...

Ao mesmo tempo em que isso ia mobilizando os territórios, também

fortalecendo as organizações, elas se legitimavam lá dentro e a gente

começou a ampliar o trabalho de capacitação na área.

Mas só a Aids? Eu falei: a Aids está ligada à saúde, a Aids é uma doença, que

a vulnerabilidade da Aids é uma vulnerabilidade social. Então vamos olhar

para o resto, vamos tratar isso como uma questão de desenvolvimento.

A gente foi desenvolvendo essa metodologia, agregando elementos... Paulo

Freire, planejamento estratégico eu tinha perdido o mestrado.

A gente formatou uma coisa chamada Pacote de Desenvolvimento Local

Integrado Sustentado. Começamos a estudar isso e transformar a abordagem

do plano social de saúde numa abordagem de desenvolvimento, com foco na

saúde, mas desenvolvimento, que envolvia organização comunitária,

recreação, esporte e lazer, cultura, geração de renda. Fizemos tentativas de

programas nessa área. Mobilizamos algumas comunidades, depois

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começamos a trabalhar com jovens, enfim, abrimos essas frentes que temos

hoje.

A Ashoka entrou nesse movimento um momento também muito importante. Eu

estava começando a criar essa idéia do desenvolvimento local, ampliar o

atendimento de saúde para intervenção e desenvolvimento mais ampliado, e

foi muito bom. Primeiro a gente tenta um pouco e segundo, a rede tinha uns

contatos e seminários de capacitações e reflexões sobre a importância, sobre

o papel das Ongs na área da sociedade civil. Muito bacana.

R: Você que procurou?

Eu descobri a Ashoka por leituras. Foi um amigo que fez uma parceria. Ah! eu

sou da Ashoka, você tem toda a cara de fellow.

Eu procurei na época a Mônica aqui no Rio. Ela falou: escreva uma carta. Eu

escrevi. Na época eu era completamente confuso, meu trabalho ainda estava

por esquematizar. Eu escrevi uma carta de quinze páginas. Ela ficou maluca.

Ela pediu uma carta de cinco páginas.

Eu falava de tudo, mas não falava de nada. Ela dizia: Daniel você tem que ter

foco. Ela me ajudou muito nisso.

Foco Daniel, passar o que você quer dizer em menos palavras.

Isso era muito difícil. Promoção da saúde é um campo muito amplo, não é à

toa que estou nele. Eu gosto dessa diversidade. É meu prato de comida. A

promoção da saúde é um campo que pode ser tudo. Se tudo determina a

saúde, qualquer ação social pode ser vista como promoção da saúde.

Os Cedaps em atividades também muito abertas, falta um pouco de foco.

Enfim, essa a cara do empreendedor, é a cara da organização. A gente vai

juntando as pessoas que pensam como a gente.

E a primeira vez que fiz a seleção, fui recusado. Se você foi recusado pelo

painel, você não pode se reapresentar. Se não foi aceito, daqui a dois anos

você se reapresenta.

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Eu chorei. Porque quando eu li sobre a Ashoka, eu nunca tinha sido reprovado

antes. Todos os concursos e provas. Foi a primeira vez que eu fui reprovado.

Eu fui reprovado exatamente pela turma que eu acreditava ser a minha turma.

O programa da saúde que tinha sido a minha praia, a Ashoka tinha sido a

praia da minha turma. Minha turma dizendo, você não, você não pertence, foi

muito duro. Mas tentei de novo e na segunda vez entrei e tem sido muito legal.

Outra coisa que foi muito legal para mim, e faz uma diferença enorme na

minha vida, é a perspectiva internacional. Eu já acho que o Jailson não vai

deixar, apesar de eu nunca ter aproveitado ao máximo esse meu potencial, eu

falo cinco línguas, tenho facilidade em praticar outras línguas e isso abriu

muitos caminhos.

Não tanto para o Cedaps, querendo potencializar isso. O Cedaps hoje é um

ator em iniciativas internacionais, graças à minha possibilidade de me

comunicar. Já participei em frentes de advocacis? Isso ainda não tem um

retorno efetivo do ponto de vista da sustentação da organização. Isso está

fazendo muita falta porque a situação financeira do Cedaps não é das

melhores.

Sempre foi muito delicada, sempre foi em cima da linha, a fundação parou de

funcionar praticamente.

Nos últimos dois anos, com muito pouco recurso e, o Cedaps está se

ressentindo muito dessa falta e a gente nunca ampliou a nossa captação.

Eu espero poder fazer isso agora apesar de o cenário internacional não estar

muito fácil. Já estamos tentando.

Então essa coisa de falar outras línguas foi fundamental na minha vida. Eu

preciso muito dessa vivência cosmopolita, conhecer gente de outras culturas.

Isso sempre foi muito importante para mim.

Meu trabalho permite isso. Continuar tendo essa dimensão. Viajar, conhecer

pessoas, realidades, culturas e trabalhos diferentes.

Trabalhei em duas instituições na UFRJ, uma é o instituto de pediatria, onde

fiz minha residência, trabalhei como pediatra, e já tem o hospital e com

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dificuldade de se abrir para fora. De fazer atividades de extensão. Isso é

compreensível.

E aí eu consegui minha transferência para o instituto de saúde coletiva, onde

eu imaginei que iria encontrar um pouco mais de sensibilidade. Mas não, não

tem sensibilidade, não tem linha de pesquisa, não tem gente trabalhando

nessa área. É um lugar extremamente complicado. Mas assim, eu nunca vi

nada parecido. Fogueira de vaidades.

R: Daniel, mas você trabalha com pesquisa na pós-graduação, não?

Eu trabalhei na graduação durante um tempo. Afastei-me porque não

conseguia trabalhar com as pessoas que começaram a coordenar o curso.

Senti-me muito mal, acabei saindo e agora estou trabalhando com residência.

A residência é em saúde coletiva, onde estou trabalhando com a linha mais de

formação mesmo. Agora que estou trabalhando com residência, não trabalho

com mestrado.

Todo mundo tem doutorado, posso orientar, já comecei a orientar algumas

pessoas, mas tem dois problemas: tenho pouco tempo na universidade, meu

foco é muito mais fora. Na verdade tenho vinte horas só, das quais, no

máximo oito horas por semana, faço alguma coisa em casa. Mas esse é um

tempo muito limitado.

É muito difícil encontrar um campo profícuo. Agora, com os residentes, que

são na realidade meninos que acabam indo para o mestrado, muitas vezes, eu

acho que vou poder começar a desenvolver linhas de pesquisas com eles.

Porque tem gente se interessando pelo caso.

Estão me ouvindo falar, vendo material biográfico, estou orientando

seminários, então eles começam a se interessar. Na graduação (não) dá para

fazer isso. Na residência já dá. Então, eventualmente, tem lá mais uma ou

outra pessoa que são amigos, pessoas com quem eu consigo trabalhar bem e

que tem alguma identidade em termos de linha de trabalho com essa questão

da promoção. Então, dali para diante, pode ser que a gente consiga avançar.

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O que eu consigo, pelo menos é, minimamente, implantar na cabeça desses

futuros estudantes de medicina, cada graduação eu tinha essa satisfação, era

botar um pontinho de interrogação na cabeça deles, pois a formação médica é

completamente fechada para a doença. Não se pergunta de onde vem. Mas é

uma coisa impressionante.

Tem uma charge muito bonitinha, que é um cara olhando o microscópio...

(pesquisa e saúde), e três sujeitos negros vindo com três sacos enormes:

influências sociais, influências econômicas e influências ambientais. E o cara

do microscópio diz, sai daqui, não é para ficar olhando para essas coisas, não.

R: É muito especializada a formação acadêmica, e isso leva que eles não vejam o são, não é isso? Isso que significa o microscópio.

É isso, você está vinculado a um tipo de pesquisa que tem muitos motivos

para faculdades, escolas de medicina, se restringirem a esse olhar da doença.

Uma delas é a influência das indústrias. De equipamentos, da indústria

farmacêutica, que querem que a medicina apenas trabalhe a doença.

Interessa o curativo. O curativo é que dá dinheiro para essas indústrias

especificamente.

Existe muito estímulo dentro da cultura médica para que não se olhe para

esses outros lugares.

Mas é um pecado que o estudante de medicina não tenha a oportunidade da

mínima abertura para essa questão. Eles literalmente têm um ponto cego na

formação. Eles só vêm a partir do momento em que a doença é criada.

O que acontece. Ele sai da faculdade achando que pobre tem que correr e

comer azeite de oliva extra virgem e alface e que, dona Maria, a senhora fica

comendo lingüiça, vai ficar doente mesmo!

Fica culpabilizando as vítimas por n questões que..., o máximo que ele

consegue aprender é isso. Que comer gordura e açúcar e não fazer exercício

e fumar dá enfarte.

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Agora, porque as pessoas fumam e comem gordura, que as condições sociais

que impõem estilos, eles não estão nem preocupados.

No mínimo a gente consegue botar uma sementinha e perguntas na cabeça

deles. No espaço de duas semanas, um semestre às vezes, mas vale a pena.

R: Daniel, você falou da Joice, falou dos campos de refugiados cambojanos, falou do Barnabas e de alguns acasos, da Silvia que foi te levando para um caminho. Você é um homem do presente e você é um homem de mediações. Parece que você faz ligações com a língua, você faz traduções de mundos.

É, exatamente, eu faço pontes. Eu trabalho no consultório. No consultório

pediátrico ainda. Vou continuar trabalhando, porque eu gosto disso. Mas o que

eu trabalho com os pais das famílias, não é muito diferente disso.

Eu não gosto de criança doente no consultório. Então faço tudo para elas não

adoecerem.

Isso ainda tem um complicador, do sustento pessoal. Eu tenho família, meus

filhos, que eu quero que tenham uma vida o melhor possível. Eu quero poder

oferecer a eles uma boa educação.

Eu sempre me senti privilegiado, porque eu tenho, por um lado, meus amigos

que ficaram na medicina, dando plantão em hospital, se esfolando para

ganhar um salário muito mirrado do serviço público. Os pediatras trabalhando

com um convênio, se arrebentando também de trabalhar no consultório e eu,

por outro lado, dirigindo uma ONG. Não ganho nada no Cedaps, onde sou

presidente. Legalmente não posso receber dinheiro. Há somente reembolsos,

privilegiozinhos, pagar táxi, não sei o que, mas eu sempre recebi apoio dessa

fundação, que dava para segurar bastante bem, sempre representou entre um

terço e metade da minha renda pessoal. E o consultório, justamente por eu ter

esse olhar ampliado, começou a dar muito certo.

Então, no consultório, eu tenho uma clientela que me procura porque trabalho

um pouco com medicina alternativa, com homeopatia, tem um pouco esse

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olhar alternativo. E tem um encontro muito bom, outro personagem muito legal

na minha vida, que é uma mulher, uma francesa, que trabalha com parto, com

cursos de gestante de famílias. Foi um encontro anímico, muita identidade em

termos de tudo que se refere ao cuidar da criança. Então começou a me

mandar muitas clientes.

Eu não faço trabalho de partos porque não posso fazer tudo, é todo um campo

muito cirúrgico onde tem um conhecimento de intervenção muito especifico e

eu não quero me meter nisso, não quero fazer uma coisa mal, botar em risco a

vida de criança. Apesar de que na velha Europa as crianças nascem bem e

não precisaria ter pediatra ali. Na verdade o pediatra intervém muito para fazer

o mis-an-cene.

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ANEXO 2

ENTREVISTA JOSÉ PEREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR

R: Estou fazendo doutorado em psicologia social e estudando o empreendedor social, mesmo sem saber se trabalho com o termo empreendedor ou não, e o papel dessas pessoas na mudança do paradigma da sociedade.

A nossa idéia não é fazer um trabalho sobre o empreendimento em si, nem a idéia seria pedir para você contar só do empreendimento. A gente queria saber de onde você veio, onde nasceu, onde estava situado e o que isso contribuiu para ser o que você é.

Então ta. Eu nasci em Ramos, cresci no centro da cidade, aqui no Rio de

Janeiro, lugar de muita corrupção, muita criminalidade, muito tráfico e cresci

nesse meio marginal. Pra mim foi muito rico. Rico no aspecto cultural, no

aspecto de ética. Mesmo no meio do crime, da marginalidade, na época de 70

havia muita ética, né, jogo de bicho, e ali, para mim, foi a fonte de formação

para a educação e qualificação. Não estudei, não tenho nem o segundo grau,

nem doutorado, só estive boa parte do tempo com eles. Alguns estão presos,

outros morreram de AIDS, sumiram, não tenho mais referências.

Então, o trabalho que faço é totalmente influenciado por esse passado. Não

era uma favela, mas era um lugar tão ou mais violento que a favela naquela

época. Em 70, 78 até 1986. Então ali foi um lugar em que eu na verdade me

formei. Até hoje tiro todas as minhas inspirações.

R: Quantos anos você tem agora?

Agora, 38.

R: Nesse período, quantos anos você tinha?

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Eu tinha entre 10 e 18 anos. Fiquei mais tempo lá, mas nesse período acho,

foi o processo de amadurecimento. Aos vinte e um anos. Foi quando eu

percebi que era o cara mais velho onde eu morava. Dos outros o mais velho

tinha 16. Outros estavam presos, tinham sumido.

R: Mas a educação era na rua?

Não a educação, a formação era na rua. Formação de vida não é. A escola

não forma ninguém como cidadão. Nunca formou e nunca formará. O que te

forma é tua casa, tua família, teus amigos. Não é o papel da escola formar as

pessoas dessa forma. Na verdade a escola Dom Pedro era uma escola boa,

Liceu de Artes e ofício. Mas não era a escola, na verdade era a rua, como até

hoje. Você pega, por exemplo, boa parte desses jovens dessa classe social, a

sua formação é dentro de casa ou pelos amigos, no ambiente que freqüenta..

Então, esse ambiente que freqüentei no passado é que me fez como sou hoje.

R: Por curiosidade, você tem mais irmãos?

Tenho três irmãs. Elas são mais velhas que eu, mas na verdade não me

influenciaram muito. Quem me influenciou, foi minha mãe. Minha mãe,

separada, ela foi meu grande pilar. Até hoje minha mãe me dá cobertura.

Eucasei em 2000 e tenho dois filhos.

R: Quando você começou o trabalho? O que você pode dizer que constituiu ...... da AfroReggae?

O processo embrionário foi em 92, mas o surgimento foi em janeiro de 93.

Então, há 14 quatorze anos.

Eu fazia festa Funk. Funk ficou proibido no Rio de Janeiro e em 1992, eu tinha

vendido os ingressos, acabei trocando o Funk pelo Reggae. Eu não gostava

de Reggae, né, e uma pessoa se aproximou de mim, que é o Plácido?, que é

um dos fundadores do AfroReggae, não está mais, ele começou a me passar

muita informação sobre cultura afro-brasileira.

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Por exemplo, em 92 eu não sabia o que era um Olodum, o que era Indiae?, eu

não sabia. Ele foi meio que um mentor, um irmão mais velho, nesse segmento

social. Eu não entendia de ONG nenhuma. É que ONG no Brasil não existia.

Começou a existir pós 92.

Tinha as antigas, de Base e outras, mas não era uma coisa como hoje.

Quase que uma em cada esquina. E ele foi uma pessoa que começou a me

falar sobre Bob Marley, Peter Toche, e eu não sabia, por exemplo, que o Egito

era negro, para mim era branco. Aí que eu descobri, ouvindo música do

Olodum, então eu vi que naquela região era impossível todo mundo ser

branco.

Então eu comecei a me politizar com esse cara, através da música. E aí,

fizemos outra festa, só de Reggae. Tenho até um texto que escrevi hoje, vou

te mandar, em que falo desse período, porque quando eu troquei o Funk pelo

Raggae, o nome que eu botei no Funk Reggae foi o Loka Govinda, o lugar era

muito violento, e Loka Govinda quer dizer “O Mundo de Krishna”. O lugar era

tão violento que eu coloquei o nome de mantra na festa de Reggae. Foi

quando eu comecei a descobrir Shiva, descobrir várias divindades Hindus que

me acompanham até hoje. E depois fizemos outra festa, depois o jornal

AfroReggae notícias. Aí começa o grupo cultural AfroReggae.

A minha relação toda é espiritual, como é até hoje igual. Eu sou eclético, sou

uma pessoa que freqüentou muito o Candomblé e a Umbanda como a igreja

Messiânica. Freqüento muito a igreja Evangélica, o Hari Krishna, o Budismo.

Para mim Deus é o mesmo em todos os lugares. Na realidade a cultura, a

religião é que muda. Você pega, por exemplo, vamos fazer uma analogia do

cristianismo com a trindade Védica, que é a trindade Hindu. Tem pontos

parecidos. Você pega gravuras de um período que você vê um homem igual a

Jesus Cristo, na época em que ele sumiu, na Índia. Pode ser, pode não ser,

mas tem muita coisa que se parece. Como tem a questão do Candomblé

também, com o Judaísmo, a questão do Holocausto, a questão da adoração a

Oxalá. Quer dizer, quem é eclético como eu, vê analogia em tudo, mesmo

onde não tem analogia.

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Você pega,o movimento rastafári, o reggae. O movimento rastafári tem uma

relação muito forte com Haile Selassie, que era o presidente da Etiópia e se

dizia descendente da Rainha de Sabá com o Rei Salomão. O movimento

rastafári surge exatamente com a Rainha de Sabá e o Rei Salomão e dá no

Reggae séculos depois. Se você pegar a cultura rastafári, eles falam nisso o

tempo inteiro. A foto mais famosa do Bob Marley era assim. Esse anel que ele

está usando aqui nesse dedo era do Rei Salomão, que o Haile Selassie

herdou da Rainha de Sabá e deu para Bob Marley.

O Bob Marley financiou, na década de 70, ao Zimbábue.Tem muitas coisas

que as pessoas não sabem. Algumas sabem se interessam pela cultura negra,

pela cultura africana, jamaicana, e aí você vê as culturas todas.

No meu caso específico eu faço a cultura Reggae, cujos laços são muito fortes

com a deusa Hindu chamava Shiva que é a deusa da destruição e da

transformação.

Tem um documentário AfroReggae, que ganhou 24 prêmios internacionais.

Ganhou prêmio no festival latino americano. Na época eu tinha ganhado 7,

ele ganhou 24. Esse filme aqui chegou à semifinal do Oscar e foi considerado

pela International Documentary Association, que é a maior instância do

mundo, como o melhor documentário do mundo, em 2005.

Quase que esse filme chamou-se Conexão Shiva, porque conta várias

histórias de destruição e transformação e essa divindade hindu têm

exatamente esse perfil, ela destrói depois transforma. Tudo foi destruído,

como Vigário Geral, Padre Lucas, Favela do Alemão e transformamos,

mudamos a realidade.

Você pega a Vigário Geral, fizemos uma pesquisa de 95 para traz, são só

páginas policiais, só violência, seqüestro, tráfico, truculência, gente

esquartejada, gente que explodia. Pega de 95 para cá, caderno de cultura?

Nós começamos em 93, mas o efeito transformador foi em 95. Aí chegou o

Caetano lá, a Regina Casé, a mídia começa a olhar de maneira diferente, a

polícia passa a respeitar mais, o tráfico também, você começa a mudar.

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Hoje você vai a Vigário Geral, e é uma favela que não tem nada a ver com

outras favelas do Rio. Você vê tudo grafitado, cultuando o tambor? Tem

tráfico, tem violência, mas tem outra cultura. Os ídolos lá não são os bandidos,

são os caras do AfroReggae. A polícia respeita. É outro lance, outra relação,

criou-se uma tatuagem, uma proteção naquele lugar, uma marca que como

um campo magnético, atrai tudo. Todo dia tem gente do mundo inteiro em

Vigário Geral, todo dia. Vietnam, Estados Unidos, Canadá, Austrália, todo dia.

Se a gente permitir, e não permite, todo dia tem gente do mundo todo.

Semana retrasada a ABC ficou uma semana lá dentro. Não mostrando o

tráfico não, mostrando a gente. Claro que deve ter lá coisas do tráfico, não

tem como não falar.

Então o trabalho nosso é esse, essa conexão é meio por aí, muito forte. Tem

gente que é protestante, tem macumbeiro, tem de tudo. Muito homossexual,

mulher, heterossexual, muito homem que era traficante, muito homem que

batia em mulher, esse é o AfroReggae. Tem ex-presidiário, ex-traficantes, até

policial tem no AfroReggae, coisa que nunca teve. Muitos, muitos.

R: E o que você acha que os trouxe para lá?

Eu acho que hoje o AfroReggae é um grupo que está na mídia, muito na

mídia. É um grupo que hoje começa o ano com três impactos fora do Brasil.

Um impacto enorme no Texas, foi em Janeiro, a ação que eles fizeram lá, em

seguida para a Índia e sábado agora o grupo estava em Bogotá se

apresentando para oitenta mil pessoas num evento. Estamos voltando para

fazer um trabalho em Cali, tem uma ação de uma parceria gigantesca, que

começou em 2006 e vai até 2012. Voltaremos para a Índia em Outubro, para

seis cidades, exportando a metodologia do AfroReggae, exportando esse

trabalho de mediação de conflitos, vou fazer um trabalho grande em

Hannover, quer dizer, fora o trabalho que a gente faz aqui no Rio e outras

praças do Brasil.

Então acho que na verdade as pessoas também estão muito abertas, porque

essa questão da violência no Rio de Janeiro é muito forte no Brasil, mas no

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mundo inteiro tem problemas. Lá na Índia mesmo, a violência doméstica é

uma coisa que não acaba, é uma epidemia. Eu estava numa favela em que no

dia anterior um pai tinha estuprado a filha de 4 anos e, lá isso rola direto, e a

mulher não pode denunciar, tem medo de ser agredida.

Como a lei protege muito mais o homem que a mulher, então a coisa no Brasil

funciona assim: se o cara não pagar a pensão, vai preso, pode ser até

famoso, mas vai. Lá não, lá ele não só não paga a pensão, como ainda

continua morando com ela sem dar um tostão em casa. Ela tem que se virar.

Essa é a cultura lá, a mulher não é nada. Eu conheci um grupo de mulheres

numa Action Índia e foi uma coisa assim absurda o que elas relataram para a

gente.

R: Essa sua viagem para a Índia, foi por que razão? Levar o lado artístico do AfroReggae ou ....

Somos sempre convidados para levar o lado artístico e a metodologia de ação

cultural, social e artística e mediação de conflitos. A fundação Ford que

montou esse programa e estamos indo agora em Outubro fazer um trabalho.

Eles têm uma cultura gigantesca lá, só que não conseguem fazer um trabalho,

como no Brasil, onde você liga o social e cultural. No Brasil há uma

experiência riquíssima, lá não tem. Eles têm uma experiência cultural

riquíssima, mas não social, juntos. Têm diversidade cultural interessante, mas

não tem cultural. O desafio é fazer o link. Usar o cultural como atrativo e vice

versa. É fazer o link, a conexão.

R: Você me conta que quando tinha uns quatorze anos, começou a se ligar espiritualmente a alguma coisa e olhar. O que você percebe diferente na sua estrutura, desde pequeno, que fez você ter um curso diferente de um amigo seu, como por exemplo, dos amigos que você falou que não estão mais aqui?

Para mim tudo o que eles viveram. A diferença que eu nunca bebi, nunca

experimentei um copo de álcool, tipo cerveja, vinho, porque meu pai bebia

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muito e batia em minha mãe e minha mãe fumava muito depois da surra, e

geralmente as pessoas que vivem isso acabam utilizando também. Comigo foi

o contrário. Eu acho isso espiritual. Historicamente, os pais de meus amigos

bebiam e batiam em suas mães e, eles bebiam, fumavam e usavam drogas,

eu nunca usei, nunca experimentei, nem tive desejos. Acho que isso é uma

coisa minha. Todo o mundo usava, ia pelo caminho contrário. Eu não usei,

não tive nem curiosidade.

R: E suas irmãs?

Bebem, algumas bebem, algumas fumam, minha mãe fuma. Não tem nada a

ver com minha família. Não tem explicação. Porque no mundo ocidental tudo

tem explicação, no mundo oriental não. Eu nunca tive interesse nisso. Sou

casado com uma mulher que nunca bebeu, que nunca fumou, não tem

nenhuma influência minha sobre isso. Sei lá, tem coisas que rolam, que

acontecem.

R: Uma coisa que eu queria entender, quando você começou o movimento, você estava numa dança e passou para outra, do Funk para o Reggae, e se nesse momento você já enxergava o papel do social. Quando você enxergou isso, casando?

Nada foi planejado. Não tinha percebido. Percebi quando tudo já estava

acontecendo, mas não foi uma coisa produzida, elaborada. Intuitivamente foi

acontecendo.

R: Tenho curiosidade em saber qual foi o papel da Ashoka na tua história. Como ela apareceu, ela veio por quem?

A Ashoka no começo era uma coisa quase que inalcançável, as pessoas que

eram da Ashoka. Eu conheci a Ashoka em 94, um ano depois de ter

começado o AfroReggae, as pessoas eram muito Vips, não Vips, mas nomes

muito cultuados, João Jorge, Olodum, Sueli Carneiro do DD 10, tinham muitas

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pessoas que eram assim, lá em cima. Só grife, cada um era uma grife. Aí botei

na minha cabeça que ia tentar, tentei, me dei bem. Uma pessoa com o meu

perfil, na Ashoka, tentando um 94, dificilmente passaria, porque a Ashoka era

muito diferente do que é hoje. Essa Ashoka de hoje é muito diferente da de

94. Eu sou um fellow muito antigo. O grau de exigência era maior, era outra

história. Eu era muito novo, as pessoas da Ashoka tinham mais de 30 anos,

eu estava com 24 ou 25, nem lembro. O Bill Drayton não acreditava em mim,

ele achava que a minha proposta, primeiro que eu imitava o Olodum e

segundo que o que eu propunha era uma coisa que não ia dar certo. Acho que

quebrou a cara, não?

R: Não ia dar certo?

Isso. Mas acho isso normal. Depois me afastei da Ashoka e quando a Célia

entrou me aproximei de novo. Ela é muito habilidosa e me trouxe de volta. Eu

me afastei porque achava que a Ashoka entrou num rumo que eu não

concordava, também nunca dependi da Ashoka.

A Ashoka entrou na minha vida, na verdade não sei se a Ashoka ou a Cinde

Lessa, porque na verdade, nessas instituições, há uma coisa muito pessoal.

Acho que a Cinde teve importância na minha vida e era da Ashoka. Quando a

Cinde sai da Ashoka, para mim, a Ashoka meio que... Eu não sei se me

afastei da Ashoka ou a Ashoka que me afastou. E ai, das pessoas até

gostava, a Mônica mesmo eu gostava muito e a Célia me procurou quando

entrou, e acho que ela deu um outro rumo para a Ashoka, muito melhor. Acho

que ela, se ela sair da Ashoka, acho que não sai, então a Ashoka irá perceber

quanto ela fez essa instituição melhorar. Ela resgatou muita ovelha

desgarrada, que já era fellow, como eu. Uma coisa que peço, eu sou de várias

instituições, me convidam para tudo, e eu tenho um pacto, um acordo, que é o

seguinte:

Com todas elas. Quer que eu fique na parada, nunca me convide para uma

reunião, nunca me convide com essa gente, não vou participar. Eu não

acredito nessa gente. Mas acho importantíssimo.

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Mas que rede você não acredita? Tem umas reuniões que eu acho

chatíssimas, perdas de tempo e viciadas no terceiro setor. Eu estou fora. Não

participo mais. Não me chame que não vou.

Eu já participei de pouquíssimas e todas só tinham esse conceito. Então, não

participo. Agora, já conheci a Rosa Maria exatamente numa reunião da Avina.

Uma das melhores coisas da minha vida foi conhecer a Rosa Maria. Eu amo a

Rosa Maria, sou seu fã, gosto dela pra cacete, às vezes ela me pede coisas

que nem posso, tipo venha até aqui. Eu posso estar até fora do Brasil que eu

antecipo minha viagem ou dou um jeito, porque eu gosto dela. Ela é uma

pessoa que me cativou, então o que ela me pede, eu faço. Agora não gosto da

rede, eu tenho um acordo na Avina. A Avina hoje, às vezes me convida, mas

eu tenho um acordo: ó gente, nunca me cobre nada!

Às vezes vou a um encontro, como já fui num hotel fazenda em Bragantino, S.

Paulo. Eu tinha um acordo. Eu vou, mas não me cobre horário nem presença

em reunião. Vou na reunião que quiser. Daquela que não gostar, vou embora.

Quer que eu vá, é assim. Então participei muito pouco. Eu acabo não

produzindo nesse encontro. Fui para um evento na Chapada dos Viadeiros e,

tinha hora que eu ia, se não gostava saía, ia embora. Quer eu vá eu vou, mas

se não me sentir bem, vou embora. Porque não é a minha. Não sou pessoa de

ficar fechada. Não é a minha proposta. Esse negócio de seminário aqui no

prédio, vou mandar o Carlos, ele gosta.

Agora, vamos fazer uma ação numa favela. Eu vou, eles vão. Ó vamos falar

com um grupo de gente fudida.. Não tem caixinha, não tem nada. Vou

felicíssimo.

Claro que hoje também mudou muito. Eu tenho uma parceria com a Fiesp, lá

em S. Paulo, que nem grupo em S. Paulo tem. Eu sou do Rio e tenho uma

reunião com a Fiesp em São Paulo hoje, que nem ONG de São Paulo tem.

Estou sempre lá. Recebi hoje um email me convidando para uma reunião que

vai ter na Fiesp dia 28 agora, com o Geraldo Alckmim. Tenho uma parceria

com eles muito forte, muito forte.

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As reuniões da Fiesp eu gosto. Loucura isso. Eu vou. Eu gosto, de lá eu gosto,

entendeu.

Tem reunião, por exemplo, essa Rosa Maria Fischer, eu vou a todas. É USP,

CEATS, eu vou, eu gosto, vou lá, mas tem coisa que não gosto.

O que eu deveria gostar mais que é o terceiro setor, eu não gosto, não

consigo. Vou a seminário, pô, eu chego não fico cinco minutos. Às vezes

tenho que ir, pô, parceiro, patrocinador. Mesmo assim, se não gostar, vou

embora. Eu chego, fico 5 minutos. Não gosto, vou embora.

Eu falo antes, não estou te enganando. Não consigo. É da minha cultura. Você

quer ver outra coisa que é um problema? Eu não estudei. O que acontece?

Quando tenho um pesadelo na minha vida, estou me vendo numa sala de aula

como aluno, eu ....... o dia inteiro, eu fico na merda, isso é pesadelo. Quando

eu sonho que estou numa sala de aula, como aluno, pois a minha visão de

uma sala de aula é da década de 80, carteira. Não é essa sua universidade,

onde se faz pós-graduação, não é isso. Aí fico me vendo como aluno, eu

tenho pesadelo, eu passo mal. Seminário para mim é isso, entendeu. Ah, eu

não curto. Agora eu acho importante, eu invisto aqui, mas eu invisto para você

para ele, para ele, mas não para mim, eu não gosto.

R: Junior, você disse que as coisas iam acontecendo e você foi acontecendo junto com elas, sem planejar nada, sem pensar, apenas intuição e acontecimento. Continua sendo assim?

Continua. Hoje tem planejamento, hoje tem uma estrutura, a gente tem

pessoas muito gabaritadas no AfroReggae. O próprio professor Carlos aqui,

ele era diretor da escola de circo, que era a escola mais importante da

América Latina. Ele era o gestor. Tem o João Madeira, que é o diretor de

parcerias institucionais, que foi o homem forte da Shell na década de 70 e 80

e meados de 90, na área de patrocínio. Veio trabalhar conosco como

voluntário, voluntário de 40 horas semanais. Trabalha todo dia. Temos hoje o

Chico Jr., que cuida da comunicação. Foi secretário de comunicação do

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governo Chagas. Foi chefe de redação do Jornal O Globo, hoje no

AfroReggae. Então as coisas mudaram.

Shiva foi uma analogia que deu certo. Isso aqui é Ogum, eu sou de Ogum.

Não, eu sou de Ogum e Xangô. Eu tenho uma relação forte com Jesus Cristo,

com o Zoroastro, eu tenho uma relação forte com Nossa Senhora de Fátima.

Hoje o AfroReggae é tocado por um comitê gestor. É formado por algumas

pessoas que tocam a instituição, não sou eu. Inclusive hoje, quando chegam

alguns convites, eu não vou. Exemplo: Hoje havia reunião com a ministra, eu

não fui.

R: Você delega?

Não. Não é só delegar é mostrar, eu sempre fiz isso. O AfroReggae não é

assim, eu sou diferente de algumas pessoas, por exemplo, você pega

algumas instituições, é a pessoa. O AfroReggae não é eu. Se houver um

cliping de reportagem, você vai ver que eu não dei uma entrevista de

televisão, mês passado, e que tem trinta pessoas diferentes que deram.

Por exemplo, eu tive rápidos momentos de contato com o Betinho, que é uma

pessoa com quem aprendi muito, mas era uma coisa assim, a associação de

base era o Betinho, o AfroReggae não é eu. Algumas instituições são a

pessoa. Isso na época era o máximo, hoje está por fora. Todo mundo queria,

agora ninguém quer mais. Sabe por quê? Porque dá mais despesa para a

empresa, porque se ele fica no escritório, quinhentos puxa-sacos ficam em

volta dele, consumindo luz, não tendo o que fazer; ociosos, ele vai ter

problema no futuro, de saúde. Então assim, os conceitos mudam. Quando eu

tiro o meu da reta, um dos prêmios mais importantes, de direitos humano, que

a Unesco deu o ano passado, quem foi receber? Não fui eu, eu não quis. Eu

pedi para o Vitor ir. A AfroReggae ganhou até hoje mais de 40 prêmios, eu

pessoalmente fui em quatro ou cinco. Não é me fazer de difícil não. Às vezes

eu vou, mas não recebo. Mando outra pessoa receber. Não quero alimentar

essa coisa, por mais que eu tenha participação, então vou colocando outras

pessoas.

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Desde o começo eu pensei em sucessor. Tem um cara que entrou no

AfroReggae com treze para quatorze anos, o Altair, que é o cara que já está

preparado. Já é o cara. E é um cara melhor qualificado. Se eu morrer ou sair

da AfroReggae, ele assume mole, fácil, com a diferença de 12 anos a menos.

Mais energia, entendeu. Eu o considero superior a mim de verdade, numa

porrada de quesitos. Por exemplo, ele tem muito mais administração

financeira do que eu. É mais paciente. Ele perde para mim como liderança, ele

perde no empreendedorismo, mas empata na coragem, empata numa porrada

de coisas, e é melhor em outras. Eu reconheço isso numa boa. E quero que

ele seja melhor do que eu , porque ele foi preparado para assumir o lugar de

um fundador. Pode ser que algum dia eu queira sair, que eu morra, tem um

cara que é puro sangue, não é um dos executivos de uma Ong que vou

contratar, não, é um cara que foi formado na base, para assumir. Ele entrou

como aluno e hoje ele é o presidente do AfroReggae. Eu sou o coordenador e

ele é o executivo.

R:Tinha uma coisa que eu queria te perguntar. Aspectos políticos seus. Por exemplo, você optou por fazer o seu papel político via arte, via música...

Social,, arte, música, cultura porque a gente trabalha com circo, teatro,

música.

R: Você pensa em se meter com política?

Já fui convidado várias vezes, ano retrasado, inclusive. Três grandes

empresários paulistas falaram se eu não queria ser candidato. Paulistas, a

campanha é no Rio. Eles financiariam cem por cento da minha candidatura. E

eram empresários assim. Eu não tenho interesse.

R: Mas você acredita que disso tudo que você faz, alguma coisa faria sentido ser direcionada para essa área de política?

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Olha só, eu tenho uma reunião quinzenal com o governador do Rio. Ele me

recebe de quinze em quinze dias, para passar coisas para ele. Eu tenho uma

relação muito forte com o atual governo dele. Tenho uma relação muito forte

com a prefeitura do Rio, uma relação muito boa com o governo federal,

preparação de um executivo. O Sérgio Cabral, governador do Rio, a gente vai

implantar várias ações com o governo do Estado, vou fazer um trabalho muito

forte lá em S. Paulo com a prefeitura, com a guarda civil metropolitana. Era

para ter começado em março, vamos começar nem sei quando.

O AfroReggae tem setenta projetos. Tem 10 bandas de música, dois grupos

de circo, um teatro, um de dança, tem um centro multi-cultural de informática,

está construindo um centro de cultura, anfiteatro, um montão de coisas, e é

convidado para montar bases no Brasil inteiro e no exterior. Na Índia, temos

uma proposta para montar uma base na Índia, tudo financiado. Para montar

uma base na Inglaterra, na Holanda, no Haiti. Só que a gente não quer virar

McDonalds. Não é a proposta.

Se a gente quisesse hoje, em S. Paulo, a gente teria o patrocínio da FIESP,

do governo do Estado, da prefeitura, teria patrocínio de várias instituições.

No nosso caso acho que seria um fracasso. Por que um fracasso? Porque o

cara que é da AfroReggae dá a vida por ela. Morreria pelo AfroReggae. Como

o cara de uma franquia vai fazer isso? Será que o franqueado vai fazer isso?

Será que o franqueado vai entrar no conceito de que a gente não aceita o

patrocínio de álcool, de tabaco. Somos um grupo muito atípico, diferente,

contra droga, que não participa de várias questões, que não aceita qualquer

patrocínio.

Olha, mediar conflito, hoje o Rio de Janeiro tem 800 favelas, divididas em

facções do narcotráfico, e eu acho que além do AfroReggae e da Cufa

nenhuma outra Ong entra nas favelas para mediar guerra.

AfroReggae e Cufa são organizações co-irmãs, assim, o Celso e o Bill, é

engraçado isso, porque quanto tem duas organizações parecidas e fortes, a

idéia é concorrer. A gente é unida, um consórcio. Ó, a gente tem um

patrocinador aqui, a gente vai passar para patrocinar vocês também.

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R: Também é cultural?

A diferença é que a linha é Hipe-Hope. A nossa linha é música, dança, circo e

teatro. Nesse aspecto concorrem os mesmos financiadores. Igual, neste ponto

concorrem. Concorrem com mídia. Só que por exemplo, a Globo patrocina a

gente, a gente bota a Globo para patrocinar eles também.

Eles são melhores. Então é uma parceria. Nós criamos agora o F-4. As quatro

grandes Ongs de favelas do Brasil se juntaram. AfroReggae, Cufa, Nós do

Morro e Observatórios de Favelas. As quatro concorreriam. Essa visão é

diferente.

O que acontece, historicamente falando, as Ongs no Brasil , não vou citar

nomes aqui, mas vocês conhecem, as Ongs com o mesmo perfil sempre

disputaram. Essas quatro Ongs, que são as maiores, nunca disputaram. Elas

se amam. Amam-se mesmo, juntaram-se, e um fortalece o outro. Ninguém

entende isso.

Então, por exemplo, se eu não tenho uma relação com uma fundação tal e

quero ter, e eles têm, eles me colocam. E vice versa. Os quatro se fortalecem.

É uma outra visão. E ao mesmo tempo a gente tem uma meta, hoje no

AfroReggae, de quer virar uma empresa social. Gerar lucro, mas lucro por alto

investimento. Nós geramos hoje, trinta a quarenta por cento das nossas

receitas vêm da venda shows, venda de CD, venda de filme, palestras, work

shops. Esses trabalhos na mídia rendem recursos. Trabalho na Inglaterra

rende grana. Trabalho na Colômbia rende grana. Show rende grana. A nossa

meta é sermos um dia auto sustentados. Vamos pegar um case que nos

inspira muito. O time do Barcelona, time de futebol, é o único time de futebol

do mundo que nunca botou anúncio na camisa. Inovou agora, botou a marca

da Unicef e paga quase cinco milhões de euros. Além de não botar marca de

ninguém, ele escolhe a marca que quer colocar e ele paga.

O orçamento é muito parecido com o nosso. A gente quer ser auto-rentável e

queremos apoiar algumas Ongs. Tem Ongs hoje, de S. Paulo, de favela, no

sul, em Belo Horizonte o AfroReggae patrocina. Pô, uma Ong patrocinando

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outra? A gente faz isso. Com que? Com o nosso dinheiro. Show, palestra,

direitos autorais, a gente vende produtos. Começamos uma grife inclusive,

agora em junho, e quem está desenhando a grife é o Marcelo Sonda,

entendeu. É entrar no mercado. Existe um mercado aberto. Primeiro, nós

somos de uma cidade, de um país, que é um grande pólo de entretenimento,

mal utilizado. A gente sempre está viajando para o exterior, como disputar o

prêmio Nova York. O diretor nos deu vários convites para assistir espetáculos

no Broadway. Eu vou te falar o seguinte, se você for ver uma peça de Recife,

é melhor do que muita coisa da Broadway. Só que não tem a mesma

condição. Se você pegar, por exemplo, um Anjo do Morro do Vidigal é melhor

do que muita coisa da Broadway. Mas porque não faz sucesso mundial?

Porque não tem o investimento que um produto da Broadway tem.

Então a gente quer na verdade inverter alguns conceitos. Fazer o dinheiro

circular, tem que democratizar. O que não dá é hoje você ser o protagonista

de uma ação e ser tratado como coadjuvante. Como acontece com o carnaval

do Rio. O carnaval do Rio é todo da favela. Todo mundo ganha dinheiro às

custas da favela. Todo mundo ganha, dinheiro da favela. Eu não sei inverter

esses conceitos.

R: Dê-me um exemplo de mediação.

Duas favelas estão em guerra, comando vermelho e terceiro comando. É

sentar com os chefes do tráfico e mediar aquela paz, assim. Resumindo, é

isso. Você corre todos os riscos, de bala perdida, de ser mal interpretado, ser

morto.

R: Mas eles aceitam a mediação?

Têm aceitado desde os quatorze anos. Nunca morreu ninguém do AfroReggae

fazendo isso. Não sei até quando. Isso é uma coisa muito instável. Isso é

mediar conflito. É você estar numa guerra e nessa guerra ser um interlocutor

da paz, sem tomar partido, nem de A, nem de vermelho nem de terceiros.

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R: Como você se intitula como pessoa?

Nunca pensei nisso. Nunca penso nisso nem faço questão de pensar. Estou

sendo sincero.

Às vezes, assim, quando vou a um hotel, produtor cultural, mas só para botar.

Boto produtor cultural, estou tranqüilo. Vou botar empreendedor social? Eu

nem sei o que que é isso.

É assim tranqüilo, nunca cheguei a pensar, a gente está num momento muito

bom em nossas vidas. Então, seja, título, rótulo, sim, eu sou produtor

executivo do AfroReggae mas, não estou nessa, tem coisa que não me

preocupo pensando. Não sinto necessidade de pensar nisso. Tenho outras

prioridades de pensamento. Posso chegar aqui e dizer, então ta, então sou tal

coisa, só para responder para vocês e ficar livre da pergunta, mas não penso,

entendeu, sou sincero. Nunca fiz questão disso.

R: Ta, é que a gente conversou ontem com o Daniel Becker, que é da Ashoka também e hoje com a Vera Cordeiro....

Eu não tenho nada a ver com o pessoal da Ashoka, se deu para perceber

isso. Eu não tenho nada a ver. Veja, a Vera, sou fanzaço dela, adoro, amo a

Vera. Mas não tenho nada a ver com nenhum deles, entendeu? É diferente.

Não tenho nada a ver com eles. É outra história. Não estou dizendo que é

melhor nem pior, mas não tenho nada a ver com essa galera. Acho que não

sei, talvez o Bill, quando viu, achou que não dava certo na história do ........,

talvez seja por isso. Porque ele achou que esses caras não tinham nada a ver

com a gente. Só que eu posso não ter nada a ver, a o que eu fiz deu certo. Eu

acho bacana, eu respeito, adoro várias pessoas, não tenho discriminação

porque é branco, porque é intelectual. A Rosa Maria eu amo. Pô, ela me liga e

diz assim, você pode vir aqui amanhã. Não posso, mas dou um jeito, porque

eu gosto dela.

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Eu acho que a Ashoka é bacana, com os fellows, e a Célia é a figura que vai

costurando. Se a Célia sair, eu não sei. Eu já tive o patrocínio da Coca Cola, é

um exemplo disso. A Coca Cola tinha um patrocínio comigo, tudo certo. Toda

semana chegavam caixas e caixas de Coca Cola. O cara saiu. Nunca mais se

viu uma água. Então a relação não era da empresa. Era do cara. E eu acho

que tudo é assim. Se hoje tu tens uma relação com esse governo, se o

governador sair, não que dizer que o próximo vá manter. Geralmente, não

mantém. Então esse negócio de relação, sinceramente, mais pessoal do que

institucional. Pelo menos a minha experiência de vida, à frente do AfroReggae,

a única relação institucional, foi com a fundação Ford. Com um contrato onde

mudam as pessoas, mas a relação fica ali cada vez mais forte. Mas tirando a

fundação Ford, nunca vi isso. Sempre que muda uma pessoa, a relação muda.

Às vezes melhora, às vezes piora, nunca mantém.

O que acontece, quando eu falo das relações institucionais, é assim: hoje a

Vivo está patrocinando uma escola aqui. Vamos lá, exemplo, aí sai o

português lá da Vivo e entra o espanhol, ele não mantém as paradas. Mas

você falou outra coisa, não tem nada a ver com o que estou dizendo. Com as

instituições o que acontece, talvez por essa relação mais ocidentalizada,

algumas questões como intuição, sei lá, alguma coisa menos de matemático.

Eu tenho pessoas que se preocupam mais com isso. Eu continuo sendo

intuição pura. Eu continuo, mas no AfroReggae, eles planejam. Eles hoje têm

uma relação com uma empresa que é a Timus, do Ricardo Guimarães, que

está preocupado com a marca, é preciso isso mesmo. A gente sempre tem

problemas de prestação de contas aqui, sempre. Não é que alguém roubasse

dinheiro, desviasse não. É que a equipe era ruim. No ano passado a gente

decidiu, não, chega. Contratamos uma empresa que faz toda a gestão

financeira e administrativa. Nunca mais tivemos problemas com a prestação

de contas. Eu gasto uma grana, mas resolvi o problema. Sabe, você consegue

ver o que sobrou, então assim, para algumas coisas você precisa ter pessoas

muito técnicas, qualificadas. Para outras coisas, não. Por exemplo, para

trabalhar com criatividade, é difícil, hoje eu estava pensando, a gente diz

assim, tem uma semana para fazer um repertório. Como, é difícil. Para

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escolher repertório tudo bem, mas para criar música, para criar um espetáculo,

é difícil. Então a gente lida muito com isso. Eu acho que as pessoas do

AfroReggae são cada vez mais muito mutantes.Vai mudando muito, eu vou

mudando, as pessoas vão mudando. Há vinte anos atrás quem furava as

orelhas era veado, hoje todo mundo tem as orelhas furadas.

R: Então, acho que já conseguimos alguma coisa para aproveitar. Obrigada pela disponibilidade.

Vou te falar uma coisa. Eu tenho muito carinho, por mais que eu esteja

ocupado, eu atendo. Depende, assim, depende muito, porque todo dia eu

recebo em média quase 800 emails, para mim, não para o AfroReggae, e

sempre tem cinco ou seis que são ligados à universidade, pedindo uma

entrevista, dinheiro, coisa e tal. Eu olho. Se eu achar, esse aqui é legal se

outra puder fazer, eu passo. Depende muito e não tem nada a ver porque é

amigo da Célia e calhou também porque achei que dava para fazer, coisa e

tal.

Eu estou muito enrolado, porque acabei de vir da Índia, e agora vou montar

um programa na Colômbia e, neste caso, esse programa depende de mim.

R: Para Bogotá você vai?

Para Bogotá, Medelin e Cali, quer dizer, é uma coisa, com o Chaves. A gente

vai no campo, vai nas guerrilhas. Tem um ex-guerrilheiro que veio aqui

anteontem, entendeu, que está aqui no Brasil com amigos. Tem um filósofo

que é o Bernardo Toro que está fazendo essa coisa com a gente, é um cara

que faz aquele programa de pacificação em Bogotá.

A gente está envolvido assim, a gente acabou de lançar um programa de

televisão, vai passar no canal futura, e três programas de rádio. Então é muita

coisa. As coisas estão acontecendo e acho que é por aí. A gente também está

querendo um veículo de comunicação, sabendo que com veículo de

comunicação a gente tem poder. Como a gente quer ter poder, ser ouvido,

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ficar mais visível, a gente tem uma mídia espontânea muito grande hoje, mas

a gente quer a nossa mídia agora. Quer relançar um jornal, a gente quer muita

coisa. Produção de conhecimento, dando voz para quem nunca teve,

resgatando quem teve e foi esquecido. Porque tem muita gente aí que bum! e

hoje em dia nêgo deletou a pessoa. A gente está resgatando alguns deletados

que tem muito a contribuir. Tem muitas pessoas assim. Meu maior mérito é

que, eu leio pouco, mas eu ouço muito. Por exemplo, tem coisa que nêgo não

dá valor. Eu dou muito valor a pessoas muito mais velhas e adoro ouvir. Tem

um cara, chamado seu João Pinto, é um analfabeto intelectual, não tem para

ninguém. É conselheiro do AfroReggae e é porteiro de uma faculdade talvez

há cinqüenta anos, não sei. Então ele é um cara assim ....... é gente boa que

nego não dá valor. Quando a gente dá valor, as pessoas passam a dar valor

também. Então a gente passa a dar valor às figuras que merecem.

Isso é a maior sacanagem do mundo. Quer ver, eu lembro quando fui levar o

projeto do AfroReggae, precisava de carta de apresentação. Não tem que ter

carta de apresentação nenhuma. Estou querendo trabalhar porque é bom.

Então hoje é assim, a gente tem que chamar a pessoa para estar perto e

valorizar a pessoa, que é errado. Agora, porque isso, porque o nosso trabalho

é bom? Não, é porque a gente está na mídia. É verdade. Se nosso trabalho

fosse bom, mas a gente não estivesse na mídia, o olhar para nós seria

diferenciado.

R: Mas também porque seu trabalho é bom.

Sim, mas olhe só, estou sendo sincero, às vezes eu vejo trabalhos que não

são bons, de Ong que está na mídia. Mas eu vejo trabalhos maravilhosos que

não estão e outros maravilhosos que estão.

Existem pessoas que tem muito talento e que nunca apareceram na mídia.

Então mídia é tudo. Na sociedade consumista, tu vale o que tu veste, os

produtos que tu usa. Eu uso isso também ao contrário. Por exemplo, quando

vou mediar conflito, quando vou tirar pessoa do tráfico, eu me visto como o

sonho do cara, como é o sonho de consumo do bandido. Aí ele diz, quero ver

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qual o tênis que ele tem. Quero ver esse tênis aí. Ele tem o tênis que eu

quero, ele tem a calça que eu quero, a camisa que eu quero e não é bandido.

Você que ver uma coisa. Esses ataques aqui no Rio de Janeiro, eu não quis

dar entrevista para ninguém. Todo dia o jornal da Globo me liga, vamos fazer.

Não quero, porque aí é um oportunismo do mal. Eu aparecer ali, estou sendo

perverso. Dessa forma eu não quero aparecer. Para mim é ruim.

O que acontece, hoje, quando você fala em AfroReggae para algumas

pessoas, você fala em esperança, mudança. Claro que eu vou continuar me

anunciando, mas hoje eu tive uma reunião com a Marlova da Unesco. Eu

disse para ela, Marlova quem criou essa idolatria dos garotos do tráfico foi a

mídia. O Rei do Rio apareceu Beira Rio. Esse mesmo cara de S. Paulo, do

PCC, esse Marcola, pô tem fã clube o homem compadre. Eu nunca apareci na

televisão, só quando eu vou preso, quando eu morro ou se for um jogador de

futebol ou pagodeiro. O que é mais fácil, o cara ser jogador de futebol ou

bandido. Bandido.

A imprensa tem um papel sobre isso também. Eu converso muito sobre isso. E

hoje sim tenho acesso a pessoas muito legais, com o próprio José Roberto

Marinho, a Ângela da TV Globo, a Laura Capriole, da Folha, converso muito

com as pessoas. Eu acho que isso já mudou, que hoje se vê certa mudança,

que hoje as pessoas estão mais abertas. Por causa do medo.

Não por uma reação positiva, por uma reação negativa. Porque se você

pensar bem, mesmo o nosso trabalho sendo muito legal, é um trabalho que

vem do mal, que vem de coisa ruim. Se não tivesse havido chacinas, se não

tivesse morrido tanta gente, não existiria AfroReggae. Quer dizer, vem de uma

coisa ruim e vira uma coisa boa. Não é que vem de uma coisa boa, vem de

uma coisa ruim, vem do ódio. Dizer assim, vem do espírito positivo. Não, vem

com raiva, puto da vida, entendeu, não é porque eu me conscientizei. Nem sei

se me conscientizei, nem sei quando me conscientizei. Sabe esse papo

bonitinho, politicamente correto. – Não, porque um certo dia eu estava na

minha casa e ... Mentira. Eu nunca pensei assim. Nem sei se estou

consciente, até hoje.

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Tinha um parceiro meu, estava com um trabalho lindo, pô o maluco sempre foi

alienado, como eu era alienado, e ele, não porque a minha politização veio

quando e vi ... Eu falei. Pô, para mentir cara. Depois eu falei, deixei ele falar,

e depois falei. Pô para de mentir. Ele quer contar a história bonita, sabe. Eu

não. Eu fala. Eu era alienado mesmo, não estudei, sabe. Para mim, isso hoje

é até bacana. Nunca menti para fazer média contigo, com ninguém.

E acho que talvez um dia a gente caia também, pode ser. E se cairmos, tenho

certeza que iremos levantar. Nos preparamos para o sucesso e para o

fracasso. Nós éramos um grupo de pessoas fracassadas antes do

AfroReggae.

R: Qual é o seu valor principal?

Como assim professora?

R: A liberdade, o amor, a esperança?

Acho que a esperança. Eu acho que as coisas vão melhorar. E vou estar vivo

para ver a mudança. Não vai demorar tanto. Tudo isso é uma catástrofe para

vir o positivo. Todo mundo ta otimista. Com Sergio Cabral, com Lula, com

Serra. Ta todo mundo otimista. Por um lado, por outro tão com medo.

Você pode blindar seu carro, mas não pode blindar seu coração, seus olhos.

O medo ta do outro lado. Quem tem dinheiro está com medo. Mudou. Malucos

como eu hoje são ouvidos. Outro dia dei consultoria para a Fundação Roberto

Marinho sobre a violência. Eu com a diretoria lá, dando curso. Quando que um

cara que nem eu, há 15 anos atrás ia dar discurso lá na Fundação Roberto

Marinho. O ano passado o AfroReggae ganhou um prêmio na Globo de

Personalidade do Ano. Um prêmio máximo que a Globo dá. Se pegar o

histórico de quem ganhou... Outro dia um prêmio no Copacabana Palace. Pô,

se a gente passasse ali, anos atras, eles chamavam a polícia. E agora o

prêmio máximo quem ganha é a gente. Olha a foto aqui. Cara de camisa

aberta. Todo mundo bonitinho. Aplaude de pé, acha o máximo.

Eu acho que as pessoas hoje estão mais abertas, estão se abrindo. E isso é

positivo. Até essa violência vir para o asfalto é positiva. Enquanto os negros

nordestinos se matavam dentro da favela, ninguém esquentava a cabeça.

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Agora no meio da rua.... Opa, péra ai. Espero que no futuro quando a gente

se encontrar de novo, as coisas já mudaram.

O Rio de Janeiro tem uma coisa parecida com a Inglaterra. Quando a

Inglaterra era bombardeada o povo da ilha se unia. O Rio é assim. Eu li a

auto-biografia do Churchil, eu gosto de ler auto-biografia. Li a do Roberto

Marinho, do Che. Ele falava muito nisso, quanto mais a Inglaterra era

bombardeada, mais o povo se unia.

O Rio é a cidade menos segregada, porque a favela, é no meio de Ipanema,

no meio do Leblon, no meio dos lugares mais lindos. Tem favela e tem praia.

Nas praias do Rio tu vê nego da favela, tu vê estilista de moda internacional,

tu vê o movimento gay, o movimento de punk, tu vê tudo. Onde tem isso no

Brasil?

Os gays falando: o Rio é a maior capital democrática do mundo. As praias são

livres e não têm, como em qualquer lugar do mundo espaços reservados para

os gays. Aqui tu vê Caetano, tu vê Chico. Eles não andam de segurança e

nem são assediados.

Então é isso.

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ANEXO 3

ENTREVISTA VERA CORDEIRO

R: Eu estava te contando do mestrado que eu fiz com a captação. E agora o trabalho que eu estou desenvolvendo no doutorado é estudar alguns atores sociais. Qual é o papel desses atores sociais na construção de uma sociedade emancipatoria.

Avise-me o dia de sua defesa, porque o teu olhar tem alguma coisa parecida

com a minha história de vida. Eu sou médica, mas eu trabalhei com medicina

psicossomática, sempre me interessei muito mais pela pessoa por trás do

doente. Fiz faculdade nacional de medicina, na época era dificílimo entrar. Eu

me formei em clinica geral, fiz um ano de especialização em nefro.

Disse assim, meu Deus, a mim não interessa tanto se a terceira ou quarta

bulha, se o fígado desabar da minha borda costal. A mim interessa saber por

que essa pessoa enfartou, o que está acontecendo com ela.

E a psicossomática com Abraam, com Forestero? estava florescendo em 75

quando eu me formei e, acho que foi ali que senti que era o meu caminho.

Quando eu cheguei na pediatria, e depois o resto foi uma conseqüência, já

comecei a achar que o ator ausente na psicossomática, não era à toa, era o

social, era o biopsicossocial. As pessoas falavam psicossomática porque já

tinha um estrutura de poder dentro dos hospitais públicos, de médicos e

psicólogos trabalhando, mas a miséria e a pobreza era território de ninguém.

Então, depois de trabalhar muitos anos, 20 anos, jogar minha vida na

psicossomática, nos três primeiros anos como clínica eu descobri que não

podia seguir trabalhando com criança. Falei, está faltando aqui um ator

fundamental, o social, e sem isso o resto não faz sentido.

Foi aí que eu fundei o Renascer. Então esse teu olhar de entender a

psicologia que está por traz das pessoas sempre foi uma grande motivação de

vida para mim.

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Vou começar pelo final, uma frase que talvez mais tarde você acabe me

perguntando, mas eu me lembro que quando fundei o Renascer eu estava

completamente indignada.

Meu marido era diretor da IBM, naquela época eu tinha duas filhas pequenas.

Moro na Barra da Tijuca. Então, financeiramente, venho de um pai que era

diretor da fábrica de tecidos Bangu, no Rio, que era muito conhecida. Agora

virou um Shopping.

Meu pai dirigia 4.000 empregados. Quando eu fundei o Renascer em 91 eu

me lembro que escrevi um projeto, melhorar a moradia das pessoas, dar

comida e remédio, ajudar as famílias a se profissionalizarem, melhorar a

educação, que abrangiam cinco áreas, e levei para o chefe do serviço social

do hospital onde eu trabalho. Esse cara disse, você enlouqueceu, esse é um

programa de governo. Eu disse enlouqueci sim. Esse governo que eu quero é

o governo da sociedade civil. Eu não tinha vontade nenhuma de ser deputada,

não tinha nada. Pode ser que um dia enverede por minha vida, não vou dizer

que não. Mas não estava nos meus planos mesmo. Neste momento ......

nunca esteve..... não descarto, porque pode ser que um dia enxergue, a longo

prazo, que vai ser tão impactante para o que eu quero fazer, onde estou

focada, entrar para vida pública, um dia entro. Mas nunca foi um desejo. Até o

dia de hoje nunca foi um desejo.

Eu me lembro até hoje que eu não tinha noção da loucura onde estava me

metendo. “Você entende o que você escreveu, esse é um programa de

governo isso não é para você fazer”. Ai eu me lembro que eu estava assim

muito, não sei que espírito que baixou na minha cabeça, é um programa de

governo sim, mas eu quero a sociedade civil fazendo esse programa de

governo. Eu não quero governo. E aí eu fiquei impressionada, porque em abril

de 91, eu levei mais, eu só fundei a Renascer em 25 de outubro de 91, no

Play Ground do prédio onde eu morava.

Eu comecei a passar pela parte de convencimento dos médicos e enfermeiras

do hospital, entendeu. Mas é o convencimento de uma coisa, eu coloquei

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varias ações que levaram anos para a gente implementar aqui, que era o

plano das idéias, mas eu nunca duvidei que essas idéias seriam

implementadas.

Hoje em dia eu tenho a impressão que realmente eu estava extremamente

ousada. Para quem tinha zero em conta bancária, zero em modelo anterior,

era do nada. Comecei a rifar objetos da minha casa. Eu não tinha dinheiro,

mas tinha motorista que era para levar, eu trabalhava meio expediente no

hospital e de tarde o motorista ia levar a minha filha na aula de inglês.

Comecei, ao invés de levar na aula de inglês, botei aula de inglês particular

perto de casa, e eu peguei o motorista, meu pobre marido viajava muito, para

visitar as comunidades de onde vinham as crianças internadas.

Até o dia que meu marido descobriu que eu estava fazendo loucuras, tirar

dinheiro dele, o orçamento da Renascer vinha, tirava do dinheiro, que ele não

controlava muito o orçamento doméstico. Quem controlava era eu, então eu

comecei a financiar a instituição. No mesmo dia ele mandou o motorista

embora, deu um soco numa mesa de vidro, disse, eu sustento uma família,

duzentas famílias em não sustento. Se você quer sustentar duzentas famílias

você vai arranjar mais empregos.

Então não vai por esse caminho, vou ter de arranjar outros patrocinadores,

esgotei o meu. O doméstico está esgotado.

Eu fiz muitos anos de terapia. Fiz doze anos de terapia, depois ..... energética,

morei longe .... na Freud, .............depois conheci o Lowen , ..... depois tentei

aplicar todos os conhecimentos no hospital da lagoa, onde fazia grupos de

hipertensos. Alguns exercícios de fibro energética que eu tinha aprendido com

Lowen, lá a vida me deu uns presentes enormes ...........................foram os

últimos seis meses que eu fiquei estudando na minha vida. ........ eu fiquei

trabalhando, não fui para a área acadêmica não.

Mas lá em Londres eu fui num lugar onde o Michael Barantz?, não sei se já

ouviu falar, ai que máximo, eu fui lá na .......porque eu fazia grupos básicos no

hospital para estudar histórias de vida dos pacientes e, então, comecei a

reunir várias, ao longo da minha experiência médica atuando em hospital

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publico, reuni, fui agrupando, várias experiências, que fui aprendendo. Até 89

trabalhei com adultos. Eu fazia grupos de asmáticos, grupos de

colostomizados, grupos de hipertensos, usando diversos saberes, diversos

conhecimentos que a vida...... fui fazer grupos de estudos sobre Freud, sobre

Young com o meu psicanalista, enfim, eu transitei em muitas áreas.

Eram assim cursos não acadêmicos, porque uma vez resolvi que ia ser

psicanalista e fui fazer umas entrevistas na sociedade do Rio de Janeiro.

Achei tão engessado, falei não, por aqui não vou. Aí comecei a fazer todos os

cursos, assim, off sider. É uma mudança política dentro do Renascer e quando

eu tinha minhas filhas, muito pequenas, eu fiquei muito aflita, porque sabe,

criança pequena adoece, tem febre.

Eu fiquei muito aflita de entrar na pediatria, porque eu já sofria com medo de

minhas filhas adoecerem ou morrerem naquela época e tal. Mas eu sabia,

como era chefe da psicossomática, tinha umas quinze ou vinte pessoas

trabalhando comigo, eu não podia mais só trabalhar com adulto, algum dia eu

tinha que entrar na pediatria. E ouve uma mudança política dentro do hospital

e resolvi que eu ia naquele momento, e as minhas crianças estavam entrando

na adolescência. Falei então, agora em casa está mais calmo, a Laura tinha

dez e a Mariana tinha treze anos. Disse, agora eu vou para a pediatria. E na

pediatria, enquanto se trabalha com adulto, se ele virou adulto ele comeu,

alguma coisa, ele não morreu de fome.

Na pediatria era vida e morte com muito mais violência e sofrimento infantil,

que me comove profundamente, porque acho que o adulto criou alguma forma

de lidar, de resistências internas e externas para lidar com o sofrimento, mas

.... criança.

É um mundo de desamparo, fora que a mãe .... depois eu comecei a perceber

que as próprias mães .... se eu fosse o Cofi Anan, eu começaria por ajudar

crianças miseráveis, com filhos doentes. Não tem sofrimento maior, porque a

mãe assiste ao filho morrer a médio, longo prazo, por que a criança tem .........

uma doença, assim doença crônica, ........cardiopatia .... e a mãe não tem o

dinheiro da condução para voltar para o hospital, o analgésico para dar em

casa. Na pediatria era um choque e, ter a psicossomática, o meu papel era

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entender a depressão, ajudar. Por exemplo, Herald era um clínico, era um

cirurgião, mas trabalhava na quimioterapia também e ele dizia, Vera, prepara

essa criança para fazer quimioterapia, você que é da psicossomática, por que

vai cair cabelo ...... e você vai ter que ajudar essa criança, essa mãe a

entender como a quimioterapia vai funcionar.

Eu pensava assim: Se não estou preparada, como vou preparar. Eu não

podia, como chefe de um setor que eu tinha inventado, fundado, não fazia

sentido a psiquiatria, a psicologia não fazia sentido, então o que fazia sentido

para mim era a psicossomática que já era a união de mente e corpo.

O que eu vim fazer no hospital se eu não estou preparada ajudar. Eu comecei

a ler, sempre li muito, de filosofia, de todas as religiões, não tem religião

nenhuma, assim específica, mas eu acredito que existem leis cósmicas e

acredito que existe toda uma vida não decifrável por traz do que a gente vê. E

que existem leis que governam isso.

Nessa época uma amiga psicóloga que veio trabalhar comigo me deu um I

Ching. Adoro o I Ching prefaciado pelo Young e o I Ching, eu li a autobiografia

do ............. eu tinha lido sobre o Gandi e para lidar com este sofrimento eu

não sentia respaldo nem na medicina personal, nem na psicanálise.... eu

comecei a estudar astrologia, fiz quatro anos de astrologia que ........ ciclos de

Plutão, tudo que tem a ver.

Plutão explica. Eu tenho uma visão mais afastada, sem ser trágica da

mitologia grega. Comecei a estudar um pouco. E comecei a perceber o que

podia, de noite em casa, me alimentar para no dia seguinte estar com a

criança com câncer.

Estar com a mãe com câncer. A mãe tinha que dizer para a filha, que era

loirinha, pequenina, linda, que os cabelos, não falando louro, mas podia ser

negra, linda, mas que esta criança era linda, parecia um anjo com os cabelos.

E a mãe, eu fui chamada para dar o diagnostico de leucemia e que a menina

ia, e era uma leucemia grave, hoje em dia é mais seguro, naquela época não

tinha muita cura.

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E eu falava e falava e a mãe não absorvia, ela não entendia. A única coisa

que me acalmou e acalmou a mãe, era estar olhando para esse corredor onde

nós estamos, sua filha, nós também não vamos estar, não tem ninguém mais

que vai estar aqui. Então eu comecei a aprofundar para essa mãe ..............

agüentar o diagnóstico.

E eu fui dar um diagnóstico, ajudar a falar, ajudar um garoto com sete anos

que tinha câncer renal, que ia fazer quimioterapia e, a mãe era muito mais

vivida que eu.

De classe pobre, e eu acho que a mãe é uma gigante em termos de a psique

dela, comparando com a minha, porque quando ela entendeu que eu estava

ali para ajudá-la ...

Dra. Vera não perca o seu tempo, eu já entendi que ele tem que fazer

quimioterapia, eu já aceitei, eu já passei por muitos pedacinhos nesta vida.

Eu disse, me conta uns pedacinhos.

Ah, um filho meu, a gente mora na roça, eu tive dez filhos, passou um trator,

ele morreu.

Eu senti que ela tinha um background para lidar com a morte que eu não

tinha. Ela disse, a senhora não tem em pedacinho de lençol usado.

É isso que eu quero da senhora.

Eu falei, mas lençol usado por quê?

É que eu preciso de um agasalho. Eu sou de Juiz de Fora, de Minas. Eu estou

aqui na casa de uma cunhada, na baixada fluminense. Eu não tenho dinheiro

para a passagem e nem tenho casaco para botar no meu filho. Se ele ficar

gripado o Dr. Herald vai parar a quimioterapia.

Meu Deus, essa mulher está pedindo um agasalho, ela não quer cuidado com

a depressão. Ela sabe cuidar melhor com a depressão dela e do filho do que

eu. Aí eu comecei a fazer listas na pediatria para comprar agasalho.

Logo depois teve uma criança que tinha que amputar a mão. Chegou com a

mão necrosada e eu fui chamada na psicossomática para ajudar uma criança

de um ano a aceitar que ela ia amputar a mão, por uma barberagem médica.

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Um médico fez um erro, um trambiqueiro de subúrbio, e a criança tinha que

amputar a mão e ela tinha que ter uma prótese.

Eu tinha voltado dos Estados Unidos nesta época e, se fosse um país do

primeiro mundo, era muito mais fácil ajudar essa mãe, dizendo olha, o seu

filho vai amputar, mas nós temos uma prótese, ele vai poder ser encaminhado

para o seguro...

A mãe disse para mim, chorando muito, no dia da amputação da mão, lá no

centro cirúrgico Dra. Vera, eu já aceitei o que aquela pessoa fez comigo,

Agora, eu vou sair daqui para a rua, porque a minha patroa me despediu, eu

não tenho marido. Eu não tenho nem como comprar leite para ele. Foi uma

série de fatores que foram acontecendo. Eu comecei a ver: eu preciso de uma

prótese, agasalho, vale transporte, comecei a visualizar emprego.

Comecei a ver que as pessoas, esses meus amigos médicos, eles conviviam

com isso com a melhor carapaça, que para mim, uma só enfermeira ........

você foi clinica, aí você fundou a ..... psicossomática, agora você anda

fazendo trabalho de passar listas para conseguir recursos para comprar

prótese. Você é o que? Você é irmã de caridade?

Eu disse assim, olha, eu não sei. Você quer que eu seja muito sincera? Eu

não sei mais quem eu sou. Eu só sei que eu trabalhei, estou aqui já a doze

anos de hospital, mas na pediatria eu não sei quem eu sou. Eu não posso

explicar, então. Só sei que eu não estou aqui....

Aí eu comecei a conceber como seria um associação que desse conta disso.

Mas paralelo a isso, eu tinha separado do meu marido. Tinha passado quatro

anos, sozinha, com duas filhas, com poucos recursos financeiros, porque eu

estava separada e muito fragilizada na minha vida pessoal, meu marido foi

morar em Recife.

Quando ele voltou para casa, eu senti que havia uma burguesia pairando no

ar que talvez tenha sido uma das diversas causas da nossa separação. De um

status quo que a maior parte das pessoas vivem, por não viverem em

hospitais públicos, por não terem esses valores de confrontação de vida e

morte, miséria e doença e que, portanto, não podem ter valores internos

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profundos, e que se eu não mudasse a minha vida também, para um outro

patamar, para um outro nível, eu continuaria ..... não separar de novo, podia

separar ou não separar, mas que toda a saúde mental da minha família estaria

em jogo.

Então alguma coisa tinha que mudar. Que não adiantaria repetir o que eu

tinha feito. Porque apesar de ser uma pessoa muito engajada, participava de

...., para você ter uma idéia, o Lula foi na minha casa, assim que ele perdeu

para o Collor, eu já tinha sido vice-presidente da Associação dos Servidores

do Hospital da Lagoa. Sempre fui uma pessoa com atuações coletivas, mas

nunca havia pensado em fundar, em fazer parte de movimentos sociais.

O Lula foi lá a casa porque eu era médica do marido da Benedita, o primeiro

marido da Benedita. Ele era hipertenso. Então a Benê me pediu, assim que

ele perdeu para o Collor, para eu fazer um jantar na minha casa.

Quer dizer, tinha uma coisa coletiva que transpassava, que passava por tudo

quanto era lugar na minha vida. Mas eu fui tão acuada ao longo do tempo, na

verdade eu fui me acuando, eu fui pegando cada vez dores mais difíceis de

lidar, até chegar à dor de uma criança por doença crônica e uma mãe

assistindo.

E hoje é a pior das realidades, num país, como a Dra. Ruth Cardoso fala, que

o milionário não fala com o rico, o rico não fala a classe média, a classe média

não fala com pobre, o pobre não fala com o miserável.

O miserável tem uma cor, mulher da raça negra, tenho a impressão que quem

mais sofre é a mulher da raça negra com filho doente, porque é miserável,

está tudo doente. E esse seguimento está no Brasil inteiro, e no mundo inteiro,

muito abandonado. Porque mulher não é, ficam ancorada né, porque vou

contratar uma babá. É trabalhar como. Uma media de quatro filhos.

É complexa essa situação. Eu tinha lido muito Young. Quando eu fiz quarenta

anos, eu fundei o Renascer quando tinha quarenta e oito, aquele livro do

Young, Memória, Sonhos e Reflexões. Eu estava muito impressionada, cada

vez mais, com essa história por traz da história, ele falando que era um

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inconsciente que se revelou, que viveu plenamente. As pessoas vivem o seu

inconsciente inconscientemente.

Eu tinha lido a vida do Gandhi. Essa minha amiga tinha dado o I Ching, um

oráculo chinês, e me lembro que consultei o I Ching.

Quando eu escrevi o plano do Renascer, consultei o I Ching para saber o que,

em que fase da minha vida eu estava me metendo. E o I Ching deu uma

estagnação que é o numero doze, eu acho que as linhas do I Ching .... as

linhas têm um poder preponderante em relação ao nome do hexagrama.

Quando deu a estagnação eu falei, então é para não fazer associação

nenhuma.

Se eu acredito que o I Ching é um oráculo, que traduz o inconsciente então...

mas a linha era assim: esse projeto será abençoado e várias famílias serão

abençoadas por isso.

Eu, como já consultava há muito tempo e o I Ching era um instrumento de

análise do próprio caráter, mais do que uma coisa do futuro, era um

instrumento de alto conhecimento que a mim fazia muito sentido, depois da

psicanálise, da bioenergética. Não que seria menor, é até mais poderoso, era

uma coisa que não dependia tanto de outras pessoas.

Se você fosse bastante honesta com você mesma, você poderia manipular o

livro, você poderia enxergar muita coisa. Eu fiquei muito apoiada, porque eu

me lembro, quando a gente estava expulso, que eu já contei para você a briga

política do Renascer, que um dia um conselheiro da instituição, que é medico,

me sacudiu assim, na pediatria, segurou o meu corpo e falou assim: Vera,

você está perdendo voluntários porque você esta com essa mania de

paquilagem?

Agora você está expulsa você esta num trailer, não está nem nas cavalariças

onde ficavam os cavalos. Está dentro de um trailer. Você tem de alugar um

espaço, eu sou conselheiro da instituição.

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Eu fui para casa com o meu I Ching, porque após diversas lutas a vitória está

garantida. E voltei para o hospital para trabalhar né. E aí tomou a decisão,

está vendo preços para mudar.

Eu falei não. Após diversas lutas a vitória está garantida. Ele olhou para mim e

disse: Ah não, não vou discutir mais com você.

E quatro meses depois Dona Ruth Cardoso, Pio Borges que era o presidente

do BNDES, a Rosinha que não era governadora, diversas autoridades daquela

época e, aqui, quatrocentas pessoas neste estacionamento, nós estávamos

inaugurando essa primeira sede.

E ao longo, tem uma poesia do Goethe que está bem na entrada, eu botei

vários quadros e a poesia do Goethe, quando vocês forem embora vou

mostrar, que no inicio do Renascer eu não tinha nada.

Não tinha comida, não tinha sede, não tinha dinheiro para remédio, a gente

ajudava cada família. Bom, essa família vai ser ajudada, essa outra também

vai ser ajudada. A gente ia passo a passo.

E um adolescente chegou para mim e disse assim: Vera, eu não gosto de ver

criança pobre doente. Eu não quero ser voluntário, mas eu tenho uma poesia

para te dar. Eu disse, me dá essa poesia. E era a poesia do Goethe, a qual

dizia que quando você se põe em movimento uma série de coincidências

acontecem, porque a sincronicidade, a força ... a coragem tem a força e o

poder da magia?

Se você pegar quinze anos da história do Renascer, a sincronicidade

acompanhou a instituição a cada momento. Hoje vocês vão ficar arrepiados.

Nós estávamos com uma série de chuveiros dentro das cavalariças, tinha um

computador, a divisão, hoje em dia temos vinte e cinco, trinta computadores

em várias sedes e ninguém sabia, eu não sabia mexer em computador e

chega uma voluntária à noite, olha, eu não sei para que sirvo. Eu sei que isso

aqui é uma ONG que ajuda crianças, mas eu sou analista de sistema.

Senta. Chegou o primeiro computador. E assim a instituição foi se

constituindo. Eu não sei se ficou claro como isso foi fundamental para mim,

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esse apoio de uma pauta que foi sendo construída e ao mesmo tempo sendo

abalizada, autorizada.

É assim que acontecia, que era uma coisa praticamente cientifica, era só

esperar.

R: Que foi legitimada, naturalmente.

Legitimada e dava ânimo, porque como a gente estava na contra mão da

cultura, do status quo, acho que todo mundo que está trabalhando nesta área

social de forma muito profunda, está na contra mão da historia, porque tudo

leva a outro perfil de comportamento. Apesar de ter mudado, a mudança é

mínima perto do esforço que a gente tem que fazer para manter a qualidade

das instituições.

Um esforço sobre-humano, quando o Renascer tiver, quando tinha um lençol,

eu comecei o Renascer fazendo rifa de um lençol, no playground, onde eu

morava.

Rifei vários objetos pessoais para poder pagar os primeiros custos da

instituição e hoje em dia ganha a Renascer em torno de um milhão de dólares

por ano. Eu nunca imaginei que a gente fosse chegar a isso, mas com tudo

isso, eu tenho um milhão de dólares, mas eu tenho que voar para quatro

paises para captar recursos porque faltam seiscentos mil para fechar o Budget

de 2007.

Quer dizer, são instituições que vivem na contra mão da história. É uma

aberração existir o Renascer. No status quo e na situação que o país vive hoje

em dia, porque o país vive na guerra civil, e eu tenho que acreditar que é

nessa pequena trincheira que a gente esta fazendo o nosso papel. É

extremamente prazeroso quando eu converso com qualquer mãe atendida

aqui. Eu digo, vale a pena, vale a pena fazer tudo que a gente está fazendo.

Continuar fazendo, matando um leão por dia.

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As histórias que você houve na praça de que a gente está conseguindo

emponderar e transformar a vida dessas famílias é o que nos move. Mas ao

mesmo tempo, como é cansativo. Como é desgastante.

Isso era para ser o obvio. Quando a (alguém importante cujo nome ela não

lembrou) foi no programa da Marilia Gabriela, eu não assisti, mas muita gente

assistiu, o chefe da pediatria viu, a Marilia Gabriela perguntou, mas o que

fazer contra a violência no Rio de Janeiro, contrata mais policiais? Ela falou:

não, faz mais Renasceres.

Mas a partir disso não aconteceu nada, entende. Pelo contrário, eu vou ter

que continuar rodando pratos para não cair a qualidade, o patrocinador não

largar um projeto que está consagrado lá fora.

A gente ganhou dezoito prêmios, ganhamos dois prêmios importantíssimos.

Nos Estados Unidos sabem mais do Renascer, a Suíça sabe mais do valor do

Renascer do que no Brasil.

No Brasil, a Veja faz uma entrevista com a concorrente daquela cantora, como

é, aquela que tem o irmão e a irmã. A Sandy e Jr. que ganhou um prêmio que

foi a concorrente dela, a Vanessa alguma coisa ....

A gente tentou fazer uma entrevista nas páginas amarelas da Veja. Não só

para solidificar a estrutura da instituição mas para ajudar a multiplicar o

Renascer pelo Brasil afora. Mas não houve interesse. A Veja é uma revista de

vanguarda, é uma revista que tem força. Não sou a favor nem contra, mas eu

acho que mostra o que interessa à mídia, mas enfim .....

O preço que eu pago pela minha posição, é a qualidade de vida da minha

família, de meus entes mais queridos.

Eu me lembro que a Laura, quando eu fundei a Renascer a minha filha tinha

10 anos, chorava de esguicho. Ela chorava assim. Ela dizia, mamãe, eu odeio

a Renascer. Porque eu perdi você. Aos dez anos ela sabia que uma parte

dessa mãe louca ela tinha perdido.

Quando ....... veio aqui inaugurar esta sede, ela veio de carro comigo, uns sete

anos depois, nove anos. Ela disse assim, agora eu entendo, mas continuo

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sem te perdoar. Agora ela entendia que a primeira dama do país estava aqui,

então não deveria ser uma porcaria tão grande.

Então o que me faz ficar é a espiritualidade. É só a espiritualidade. Porque eu

acredito que está tudo interligado, ninguém vai ser feliz se os outros não forem

felizes.

Felicidade individual não existe e acho que ser um semeador, eu sou uma

semeadora que eu não vai ver o desdobramento disso, ao mesmo tempo eu

tenho certeza do desdobramento. Tenho certeza que esta metodologia que a

gente criou vai se multiplicar Brasil afora e mundo afora. Não é por mérito

meu, é porque esta metodologia foi criada por mais de quinhentas pessoas

que passaram por esta instituição. Voluntários, funcionários, instituições,

empresas. Foi muita gente dedicada. Muito dedicada. E ela dá certo, dá muito

certo.

Nós fizemos um fórum há pouco tempo atrás e um dos nossos conselheiros

falou: Renascer, o Caminho do Meio. E ele fez uma palestra brilhante no

fórum que o Leonardo Boff abriu, o Pitangui abriu, depois mostro as fotos, de

toda a rede Saúde Criança. São dezessete instituições que copiaram o

modelo e a gente ganhou o prêmio ...... e agora foi para BH para virar política

pública. Agora em BH, em S. Paulo, tem dezenove maternidades e a

possibilidade de copiar o modelo. Quer dizer, eu já em vida estou

presenciando muita coisa. Mas eu sei que vai acontecer muito mais no futuro.

A minha dúvida sempre, é o direito que eu tenho de fazer o que atrapalha os

outros. As vezes até a Denise, eu até enlouqueço a Denise, não sei como a

Denise me agüenta, e a Manuela, pessoas que vivem perto de mim aqui na

instituição, porque eu sou um trator, eu atropelo. O tempo das pessoas, a

saúde das pessoas.

A minha filha, a que mora em S. Paulo, que a minha neta nasceu, diz, mamãe,

venha passar o fim de semana, mas não fale em Renascer, não me venha

com Renascer, venha para curtir a sua neta. Aí tá tudo por nada. Passa três

dias ...... Aí aconteceu o escândalo do Renascer em Cristo, roubando. Eu tive

que dar uma entrevista na casa da minha filha. Quando eu cheguei ............

não me fale que a Senhora está com uma jornalista dentro da minha casa.

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Falei, Marina, tem o Renascer em Cristo, tenho que dizer que nós não somos

o Renascer em Cristo.

Quando eu vejo, minha vida está permeada e, até que ponto eu tenho o direito

de fazer isso com as pessoas. Com a minha vida eu posso fazer o que eu

quiser. Em se tratando dos que estão em volta, até que ponto. Como eu acho

que todo trabalho social que fica é um trabalho de formiguinha, não adianta

crescer rapidamente. O que adianta é o passo a passo, como o Betinho dizia,

pelas dores do crescimento institucional.

Pelas dificuldades financeiras, pelas brigas internas, pelos traumas, assim

como qualquer coisa viva passa por um processo longo de amadurecimento,

você tem de passar. Simbiose, paranóia, depressão de um ano, uma

instituição é um corpo vivo que tem de passar por todas essas dores, se

quiser fazer um trabalho sério e multiplicar essa mania que os fellows da

Ashoka têm.

Então eu acho que tenho de trabalhar a minha saúde mental e física todo dia e

achar esse caminho do meio. É dificílimo. Para você ter uma idéia, eu estava

indo para BH segunda-feira. Falei, estou maluca, porque isso é uma coisa que

eu devia delegar a outra pessoa, porque eu estou indo para Oxford, para a

Califórnia, para o Chile e para Seatle nesse próximo um mês e meio. Então eu

não devia ter ido, devia ter delegado a alguém, ainda mais que era uma

viagem cansativa de um dia. E de manhã cedo, antes de pegar o avião, dizia,

ainda vou desistir.

Aí consultei o I Ching. Deu suprema boa fortuna. E eu fui. Por que tem certas

coisas que não dá para delegar ainda. Era uma reunião muito importante,

vários secretários de BH, da saúde, da educação. Estão querendo fazer uma

coisa que é a cara do Renascer.

É um sacrifício pessoal muito grande e é uma posição muito desconfortável.

Mas por outro lado, se você não entra em ego triple, você tem que estar muito

atenta para não entrar em ego triple, em vaidade, porque é fácil. Robert

Redford vai te dar um prêmio em Oxford, você acha que o premio é teu e não

é teu. Ele é de quinhentas pessoas que fizeram a instituição.

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Também não ser movida a prêmio. Porque prêmio é bom para dar dinheiro,

traz visibilidade. Eu sou captadora de recursos da instituição. Mas o maior

reconhecimento é das famílias daqui, é perceber que aquelas famílias..... Eu

ainda me emociono, quinze anos depois, quando vejo uma família ter alta e a

minha vida não teria sentido ..... quero abraçar a senhora para agradecer,

quero abraçar a voluntária que me atendeu para agradecer, eu tinha morrido

se não fosse a Renascer. Você vê que foi fundo na história de vida daquela

família. É um trabalho.

Olhe, eu acho que o ganho..... voltei para a terapia. A minha amiga diz assim:

Vera, você acha que tem conserto?

Eu falei, acho que não. Mas a gente tenta melhorar. Eu acho que existe

aquela oração da serenidade, que diz: Senhor concedei-me serenidade,

aceitar as coisas que eu não posso modificar, coragem para modificar aquelas

que posso, e sabedoria para perceber as diferenças. Eu acho que coragem

para modificar é uma coisa que eu fui construindo em toda a minha vida, não é

o meu lado mais difícil.

Eu tenho que trabalhar muito a serenidade e a sabedoria, a vida inteira.

Trabalhar as relações com as pessoas, os desafios que a vida me traz, porque

sem serenidade e sem trabalhar isso, não dá para ser do jeito que sou.

Às vezes eu mesma pergunto, eu não sei ser de outra forma, eu não quero ser

dessa forma que eu sou, nem melhor nem pior do que os outros, muito

desconfortável, porque aí eu erro. Eu erro comigo, com quem está à minha

volta, com minhas filhas, com a instituição. Então tenho que estar muito atenta

para continuar me trabalhando.

Estou fazendo isso. Especificamente agora, voltei para a ioga, voltei para a

terapia e procuro conversar muito com meus amigos mais íntimos, para ver

onde que ...... e planejar, também, porque a instituição criou músculos

institucionais e se eu morrer amanhã acho que o Renascer não morre mais.

E isso foi meu grande objetivo. Não queria que a instituição morresse. Era

para perdurar e continuar. E acho que nos últimos quatro, cinco anos eu tenho

pensado muito em como trazer recursos de pessoal, dinheiro, para que a

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instituição caminhe. Eu ficando numa posição mais estratégica e menos

operacional.

Agora, me separar da instituição não vou nunca mas, o que cansa é o

operacional, e hoje em dia eu ainda tenho três chapéus no Renascer. O

chapéu do staff: eu tenho que botar a mão na massa para ver se o relatório

chegou. Porque são cento e quarenta voluntários, trinta e sete funcionários, e

é muito trabalho operacional. E tenho que trabalhar com o chapéu do .........

tem o chapéu do ....... que eu estou planejando para daqui a dois anos no

Renascer e tem o papel do conselho consultivo que é, daqui a cinco anos

onde que a gente tem que estar.

Esses três papeis ao longo do tempo cansa muito. Disse, Vera, não tem muita

saída, você tem que assumir esses três papéis. Agora, você tem que preparar

a instituição para você ficar na estratégia. Também vai chegar um momento

em que se eu não vejo as pessoas assumirem todas essas posições de luta,

de empreendedorismo ..... é uma forma de invalidar a instituição, porque fica

muito personalista. Fica baseado numa pessoa só. Não é isso que eu sonho

para a Saúde e Criança Renascer.

Daí estou preparando, uma vez por mês tenho uma reunião com esse

funcionário que está preparando a governança da instituição para os próximos

cinco, sete anos.

Eu fico pensando assim, grandes santos para mim são guias. Os santos são

uma coisa tão distante, porque são tão perfeitos que eu não tinha intimidades,

assim como S. Francisco de Assis, Gandhi. Mas S. Terezinha diz que a gente

pode ser muito frágil, basta acreditar que é frágil. E pedir ajuda para esse lado

frágil. Então, eu penso que em sociedade, quando Gandhi fez um movimento

na Índia, como era santo, no meu ponto de vista, ele percebeu, ele teve a

capacidade de ir para uma vida muito simples, ficar enroladinho na tanga, toda

a cultura indiana que é diferente de cultura ocidental, já nasceu numa cultura

que permite a simplicidade. Eu vim de uma classe média alta, e quanto mais

avança a tecnologia, hoje em dia a gente tem duzentos e cinqüenta e-mails

para ler. Como ser simples numa cultura com duzentos e cinqüenta e-mails

para ler, para responder, em inglês, senão o patrocinador cai, se não a rede

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desmorona, nessa agitação do mundo moderno que não te deixa ser

contemplativa e serena.

Então eu fico aqui matutando, como vou fazer na minha vida daqui para frente;

postos de gasolina, que são criativos, que são locais de vida mais

simplificadas e que eu vou poder me reenergizar. Não é para produzir menos,

é até para produzir mais, com mais qualidade.

Mas na nossa cultura, esses oásis onde a pessoa se retira, vira vegetativa,

não vai para Petrópolis nem para S. Paulo, tem uma vida alternativa, ou você

está neste front de batalha, está aqui dentro, no Rio de Janeiro, e tem que ter

duas vestimentas.

Eu acho que tive uma vida princesa camponesa que me deu capacidade de

realizar o meu anseio. Por que eu preciso captar meus recursos, estou indo

para Oxford agora para tentar fazer o fundo patrimonial de cinco milhões de

dólares, cheguei à conclusão que lá eu sou pequenina e cuido de quarenta

crianças altistas ........ de quatro milhões de dólares e a gente ajuda mil

pessoas mês e não tem dólar nenhum e então, como o Armínio Fraga é de

nosso conselho consultivo e aceitou ser o presidente e vai me ajudar a

construir um fundo patrimonial porque eu quero que a essência do Renascer

não acabe nunca. E nenhuma organização social tem um Dalmo...... e ele tem

que mudar, tem que ser pioneiro nessa mudança de cultura, que o rico tem

que entender que tem que doar, não só com remédio, enfim, curso

profissionalizante, mas para sobreviver a longo prazo.

Não pode ser papel do captador, do louco da vez. Tem que ser papel da

sociedade e, se o Renascer vai desbravar, quando a gente fizer esse

Dalma..... a gente abre portas para várias instituições fazerem, citando o

Renascer como um case.

E esse meu perfil princesa camponesa, que eu sempre fui de classe média

alta, meu pai era diretor ............... , eu sempre .............. para esquiar. Voltava,

tinha uma mãe querendo doar o filho para mim. Então estava sempre nessa

posição princesa camponesa. No começo eu achava chocante, mas depois eu

falei, isso não é chocante, é um bom instrumento para captar recursos.

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Eu não sei captar sem viver aqui com a mãe, ouvir a mãe, falar o que ela

recebeu. Se não estou convencida que aqui está funcionando muito bem eu

não tenho coração para ir lá fora pedir, dá cem mil dólares para o meu fundo.

Eu tenho que dizer por que gastei cem mil dólares.

O maior prêmio que já tive foi assim: Eu estava, há sete anos atrás, fui fazer

uma palestra na Suíça, era o Rodrigo ..... , eu, uns outros felows da Ashoka,

porque as pessoas te chamam de maluca, porque acham que você

enlouqueceu. Aí eu comecei a contar como minhas amigas intimas, no

começo da Renascer, fugiam de mim porque sabiam que eu ia pedir alguma

coisa. De amigo íntimo não sobrou nenhum. Quando eu ligava as pessoas já

sabiam, ........ drogados, a Vera vai pedir cocaína. Então zum, sumiu todo

mundo.

Então, essa coisa do status quo, ficou muito claro e eu saí fora, apesar de

ainda estar nele. Eu finjo que estou, mas eu já saí há muito tempo deste status

que move a maior parte das pessoas. Agora, tem outra coisa, é que há sete

anos atrás eu fiz uma palestra sobre isso. E quanto eu estava dando ..... nas

escolas ouro, esse premio que a gente ganhou o ano passado que o Robert

Redford deu, tinham dezesseis planos premiados no mundo inteiro e tinha

uma mulher asiática do meu lado. Falou, Vera você se lembra de mim? Falei,

não tenho idéia. Como eu sou péssima para nomes, falei, meu Deus, a

esclerose está aumentando.

Ela disse, há sete anos atrás eu vi você falar. A minha vida ficou muito difícil, a

vida afetiva estava muito ruim e profissionalmente eu estava perdida. Eu estou

do teu lado hoje, ganhando um premio Skol. Eu fiquei arrepiada, porque ela

ajuda crianças na Ásia e vi o poder, assim como a fala, a mídia tem um poder

de desorganizar na sociedade, o poder que a mídia tem.

Eu não sei ensinar serenidade, nem sabedoria, mas talvez um pouco de

coragem eu sei passar. Emocionou-me ouvir aquela pessoa que, puxa, ela

ouviu uma fala que eu achava que era uma fala inútil, que eu tinha me

preparado num esforço para falar inglês, que aquilo não ia dar em nada.

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Como a gente nunca sabe o que vai dar em que, não é? E parei de reclamar

dessa minha dupla personalidade de ser camponesa.

Eu morei em Bangu na minha infância, eu morei dez anos em Bangu, onde eu

vivia rodeada de pessoas muito pobres. Eu nasci em 50, tenho 56 anos então.

A minha mãe dizia que eu tinha uma babá que se ...... dela. A Deise já está

cansada de ouvir esta história. Dei tanta entrevista com essa história. Mas eu

tinha uma babá, esta até eu fico assustada, que eu morava numa casa em

Bangu e tinha um guarda que fazia ronda na casa. Porque era uma casa um

pouquinho melhor que as outras, então o guarda tinha de tomar conta da casa

para não ser assaltada, apesar de naquela época não ter tanto assaltos.

E eu tinha uma babá que tomava conta de mim e minha mãe dizia que eu era

o terror da babá, que eu dava meus brinquedos todos. Que eu pegava meus

brinquedos, bonecas, ganhava várias bonecas de minhas tias, e eu dava.

As minhas amigas eram as vizinhas do lado, que não tinham nada. Um dia a

babá ficou tão desesperada que pegou todas as coisas do armário e começou

a distribuir também. Ah, você quer distribuir, então vai ficar sem roupa. Era

uma forma dela me punir.

E meus pais eram tão amorosos, eles passaram tanto amor para mim. Meu

pai era muito rigoroso, muito organizado, dormia preocupado como ele ia

pagar os empregados. Não era o dono da fábrica . Os donos viviam mais na

Europa. Então papai pagava os salários para aqueles funcionários. Tanto que

quando papai saiu da fábrica Bangu ela foi vendida e acabou.

Mas era um pai muito comprometido, muito honesto, engenheiro, produzia

tecido e minha mãe era muito criativa e não havia em Bangu escola boa para

a gente estudar, então algumas viagens que ela fazia com o papai, ela criava

escolas vanguarda em Bangu naquela época, e um dia de aniversário eles

fizeram uma casinha cor de rosa, que o desenho da casinha é essa casa aqui.

Era uma casa cor de rosa com quintal, que tinha mangueira, tinha uma

varandinha que era igual essa varanda. Quando eu olho digo, meu Deus, eu já

tive uma casinha na minha infância que era como se fosse um parque, o

quintal para mim era um parque.

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Essa casa se repete na minha vida. E eu estudava no Souza Leão, que era o

prédio aqui do lado e eu brincava nesse parque. Foram acontecendo coisas

trinta ou quarenta anos depois que é como se ainda fizesse assim .... No

mínimo sincronicidade isso é.

A: Vera, porque se chama Renascer.

O nome fui eu que dei. Dar nome é uma coisa muito difícil, você sabe, é

complicadíssimo. Quando eu e o Dr. Reinaldo fizemos o estatuto da Renascer,

isso há quinze anos atrás, me lembro que o Dr. Reinaldo era o consultor da

UNICEF, era o chefe da pediatria, ele disse: dá um nome Vera. Demos vários.

Uma hora eu disse, Renascer. Porque a gente via que as crianças ficavam

presas no círculo.

No fundo a gente trabalha com a família inteira. A criança é só a isca para

uma metodologia de inclusão social. O que é o Renascer? É uma metodologia

de diminuir o gueto social neste país. Transformar miserável em pobre, se eu

tivesse que resumir isso para vocês.

Mas tem toda uma porta de entrada, é um hospital publico e coisa e tal. E eu

acho que aquelas crianças que estão presas na miserabilidade, elas estão

condenadas à morte. Com pneumonia, com desnutrição. O médico trata da

pneumonia, da desnutrição, mas é a ponta do iceberg. Por trás tem o pai

alcoólatra, inexistente, tem uma mãe com cinco filhos, chove dentro da casa.

Então o ato médico não tem sentido. A medicina tradicional não tem sentido

para a classe social miserável. Você dá uma receita médica a quem não tem

nem o que comer, isso eu via no dia a dia da pediatria. Ela vai na curandeira,

ela passa pelo médico.

Ela acaba se tratando com a erva, com o curandeiro, e a criança morre.

Enfim...

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ANEXO 4

ENTREVISTA JAILSON DE SOUZA E SILVA

R: Deixa eu te falar Jailson, estou estudando, estou fazendo doutorado e psicologia social, estou estudando pessoas que eu considero ter como motivação de vida uma atividade, que eu enxergo como uma atividade que pode construir uma sociedade emancipatória, uma sociedade melhor... Estou te chamando de agente social... não sei se há um termo melhor, estou aberta também para conversar sobre isto. Eu tenho uma coisa que pode te ajudar através do doutorado. Como eu já

trabalhei na trajetória de jovens pobres, na universidade eu tinha que fazer

uma opção sobre a minha trajetória, eu tive que escrever um texto de 26

páginas, que está na minha tese. Eu posso te passar e que facilita para você.

Enquanto estiver aqui eu tento fazer exatamente uma reflexão sobre isto,

como é que eu cheguei aonde cheguei. Como um cara de origem popular,

com as minhas características, consegue chegar a uma universidade.

Eu acho que vai ser legal. Eu te mando ele. Eu só não sei se o tenho aqui,

mas acho que tenho.

Você prefere o que? Você faz as perguntas específicas ou...

R: Não, você me conta um pouco, onde você nasceu, quem é você... Eu vou falar de um modo geral o que eu precisei fazer para mim e mais ou

menos o que você precisa para você.

Eu cresci aqui, no Rio de Janeiro. Meu nome diz um pouco a minha origem.

Eu sou Jailson, é um nome muito raro, somos imigrantes nordestinos. No

nordeste é muito comum nomes como este. Eu nasci na periferia do Rio,

numa favela chamada mangueirinha que hoje é chamada do ... Brás de Pina.

Já aos 11 anos fui em direção ao Irajá, que também é um bairro de periferia,

mais próximo da Penha. A Penha é um bairro tipicamente de subúrbio. Então

fiz os deveres de escola pública e comecei a visitar, com 13 anos de idade,

em um grupo que não tinha nada em termos culturais, um cinema, um

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puleirinho. Eu me sentia ávido. Minha vida foi jogar bola. Uma coisa muito

específica minha, aquela compulsão que eu tinha pela leitura. Aprendi a ler

muito cedo, com cinco, seis anos e, a leitura de certa forma me colocava num

mundo à parte.

Eu era muito agressivo, era o quinto filho de cinco irmãos, todos homens, e

aquela história de não levar desaforo para casa. Meu irmão mais velho era

muito fraco, era mais ponderado, e eu comecei a ter uma postura muito

agressiva, muito violenta. Minha resposta era muito violenta a qualquer coisa.

Não era uma pessoa metida, arrogante, assim de tomar uma iniciativa de ser

agressiva, mas minha resposta era agressiva.

No ambiente que eu vivia, popular, criança, era preciso dar uma resposta

muito viril. Então, a leitura, de certo modo, eu me refugiava deste ... e lia tudo

que caía na minha mão. Nesse sentido eu me tornava um ótimo aluno porque

eu lia os livros antes. Fui um aluno muito contraditório. Por um lado, eu era

muito agressivo e por outro, eu era muito bom aluno. Então, fui monitor um

ano todo na escola. Era um papel horrível. Era o cara que apagava os

quadros, anotava as aulas ..... Eu era muito rebelde, mas ao mesmo tempo

tirava 100.

Era obrigado a ser monitor. Na quinta série fui afastado por uma professora

muito rigorosa, dona Dalva, porque eu não tinha o físico de louro, eu não tinha

o perfil adequado para cumprir o papel de monitor, eu não era o exemplo.

Com 14 anos, treze anos, eu comecei a freqüentar a igreja...

Começo a desenvolver-me, a partir dessa idade, entrando num grupo de

jovens, o qual é o primeiro grupo social de que participo. Eu era pouco

religioso. Na verdade, naquele ambiente social, foi uma época em que

estouraram muitos grupos jovens nas igrejas católicas da periferia, foram os

grandes espaços, inclusive, de formação, de expansão das possibilidades...

Com isso eu passo a atuar fortemente nesses grupos jovens, principalmente a

partir de 74.

Minha família não era religiosa. Minha mãe depois se torna muito religiosa,

mas ela não praticava tanto. Minha avó também não. Minha avó tinha mal de

alzeimer desde que eu tinha ... não me lembro dela sã. O meu pai era próximo

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do espiritismo e minha tia era mãe de santo e ajudou a nos criar. Não tinha

nenhum envolvimento histórico na igreja católica.

Minha mãe nos levava. Queria que a gente fosse para a igreja, mas a gente

nem tinha feito a comunhão ... não tinha dinheiro para pagar um livro,

catecismo, porque a minha mãe... só fiz mais tarde.

Quando iniciei na igreja meu comportamento muda muito. Eu me envolvo

mais... começo em atividades coletivas, em coordenação. Assumo o papel de

liderança, minha fala se torna cada vez mais forte. Eu falo da igreja, direto,

sou coroinha. Então eu falo da igreja, assumo o papel relevante na estrutura

daquele grupo específico e minha fala se torna agressiva, mas eu nunca mais

brigo.

A última vez que briguei, com 14 anos briguei uma vez, e tinha uma fama de

ser muito ruim na briga. Já nesse bairro novo então, uma vez eu briguei com

um menino. Eu raspei a cabeça dele contra um muro chapiscado. Fiquei com

fama muito ruim e não precisei mais brigar...

Briguei a última vez, com 17 anos, com um cara imenso, que era muito

folgado. Acabou virando até amigo. A agressividade dele, era um cara muito

grande, um metro e noventa, forte, mas personalidade muito fraca, muito

infantil. Folgado o Ivo. Foi a última vez que briguei na vida.

Depois disso nunca mais briguei, mas comecei a ter um comportamento muito

conciliador, moderador. Então minha característica mudou muito, passei a ser

aquela pessoa que está sempre querendo arredondar. Isso se manifesta

principalmente quando eu me torno militante do PT. Na universidade fui do

movimento estudantil, descubro a esquerda no movimento estudantil.

Até aos 19 anos eu nunca tinha visto uma pessoa de esquerda, nunca tinha

conversado. Eu ia fazer história, porque gostava. Eu queria ser professor.

Desde os 14 anos eu queria ser professor.

Quando faço o vestibular, eu faço o vestibular para geografia, porque o

professor xingava os Estados Unidos. Eu nunca tinha visto ninguém xingar os

Estados Unidos. E a geografia me colocava na possibilidade de compreensão

maior do mundo. Então tinha algumas características fundamentais.

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Até agora eu só falei da minha personalidade. Da característica específica

como eu me relacionava com o mundo. Acho que é uma característica do meu

contexto.

Meu pai era pobre. Lembro-me até aos 14 anos, meu pai só embriagado.

Claro, devia haver muitas situações onde ele gostava, mas eu não me lembro.

Mas ele era um homem que tinha uma personalidade muito forte, tanto que

minha mãe o estimava muito. Ele era o único provedor da família de 8 filhos.

Era cabo, o velho. Cabo dos fuzileiros navais. Não pôde cursar porque teve

um problema no joelho; foi atropelado. Ele ficou 20 anos como cabo.

Aposentou-se quando eu tinha 8 anos de idade, por causa do infarto. Teve

dois infartos seguidos.

Ele tinha um objetivo. Era uma frustração grande não ter seguido na carreira

militar. Ele criou os 5 filhos para serem militares. Oficiais da marinha. Oficiais

das forças armadas de algum jeito. Na época da ditadura, meu pai era muito

conservador, meu pai era mais que conservador, era cínico. Cínico do pobre.

“Quem tem que se meter com política são os poderosos, que eles estão

sempre por cima”. Ele não defendia a política, tinha horror... ele nunca pedia

nada a ninguém e tentava seguir a vida dele. Ele tinha horror à classe política

e aos governantes. Mas achava que quem devia cuidar da política...

Quando eu entro para o PT em 1980 é uma verdadeira crise. Ele achava que

a corda sempre arrebenta no mais fraco, então, ia acabar quebrando a cara.

Mas ele cria os filhos todos para terminarem o segundo grau. Não deixava

ninguém trabalhar até aos 18 anos. E éramos todos homens. Éramos um

diferencial de cultura muito grande em relação aos nordestinos, principalmente

na minha família. Meu pai teve 16 irmãos, 15 irmãos. Ele nunca, ninguém

tinha estudado. Só uma tia muito distante, uma prima muito distante, que eu

nunca tinha visto, que tinha estudado.

Então era uma família muito pobre, do interior e ele tinha uma objetivação que

eu chamo de educógina que era via escola.

Com isso todos nós estudamos. Até meu irmão que era mais fraco na escola,

meu outro irmão que era o símbolo; inteligente, capaz, tranqüilo, calminho,

nunca apanhou, nunca brigou e eu que era rebelde, mas muito bom aluno.

Nós todos terminamos o ensino médio.

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Minha mãe também trabalhava muito. Por que, como meu pai era alcoólatra, a

vida militar é que dava estabilidade à família. Então, o que ela mais queria da

vida era a estabilidade de um serviço público. Todos nós somos funcionários

públicos, para termos a estabilidade que meu pai teve.

Então, a gente conseguiu ter uma tranqüilidade na escola pública. Muito pouco

livro, muito pouco acesso, mas em compensação a gente tinha liberdade, não

precisava trabalhar.

R: Você tinha irmãs também? Não, éramos 5 homens. Dois irmãos mais velhos nasceram no nordeste e os

outros três nasceram aqui no Rio de Janeiro. Esta característica familiar era

forte. Além disso, no envolvimento do grupo jovem, eu conheci várias pessoas

que tinham como perspectiva ir para uma universidade.

Eu morava num bairro mais pobre, mas na igreja circulavam pessoas de

áreas, dentro da própria localidade, no próprio bairro, com condições melhores

de vida.

Fui naturalizando minha ida para a universidade e, na igreja desenvolvia uma

consciência muito critica ao mundo. Ao mundo capitalista, que na época não

se falava assim, mas ao sistema, como se fala.

Então era essa idéia “de que as pessoas costumam muito mais ter e consumir

do que ser,’ do que ter uma vida profunda, intensa e nessa perspectiva eu

queria ser, não ter.Meu pai valorizava muito o conhecimento, valorizava muito

os livros. Lia muito, mesmo só tendo estudado até a terceira série primária.

Minha mãe quase não lia. Só ouvia radio, via televisão. Mas então, minha

busca da leitura era de certa forma estimulada, não era criticada. Inclusive, era

uma forma de me acalmar.

Mas as pessoas ficavam chocadas quando eu lia. Eu lia bula de remédio, a

leitura era uma forma claríssima de eu escapar daquela realidade, de uma

lógica mais agressiva.

Fui sofisticando mais a leitura, lia novelas...

R: Você lembra o que leu?

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Lia muito gibi. Meu irmão me cala muito quando eu terminei meu doutorado,

ainda somos muito amigos, nós cinco somos muito amigos, tem isso também.

Nós damos muita força a nós outros, estamos sempre juntos. O sentimento

familiar é muito forte. Que a família de meu pai era muito distante, a gente

pouco via, e minha mãe não tinha família.

Era filha de mãe solteira, na década de 20, e .... é empregada dom Éstica,

engravidou aqui no Rio, voltou para o norte e minha mãe nasceu.

A família de minha mãe era muito pequena. Era ela, minha avó e minha tia,

que era a irmã mais velha dela. A gente tinha uma família muito unida e minha

mãe era muito ligada à família de meu pai, inclusive meu pai sempre foi louco

por ela, que deu um jeito no meu pai, aturava meu pai, que era um homem

louco, não é.

A nossa vida era muito amorosa, a gente tinha ....cuidados. Tinha também

esta questão da definição do caminho, de uma vida legal ... que também era

muito forte, tanto da parte de minha mãe, quanto de meu pai.

Então, quebra com esta lógica de que por ser alcoólatra ele não tem poder,

ele não tem autoridade, não tem projeto.

A grande característica de meus pais é que eles tinham projetos muito bons

para os filhos. E isso é fundamental, na minha concepção. A partir da

concepção da construção de um projeto do futuro, seja pessoal ou coletivo,

você pode transformar sua vida ou a vida coletiva.

Eu construí meu projeto de futuro na família... eu queria muito ser

independente. O meu papel na minha casa era pegar a gerencia do ...., então

cada um tinha uma tarefa. Meu pai só não deixava a gente lavar roupa e fazer

comida, mas o resto todo a gente fazia.

R: O que era ...... A coisa era muito mais feminina. Agora, lavar louça, limpar a casa, lavar o

banheiro, limpar o quintal, isso. E eu ia ao mercado e pedia dinheiro

emprestado. Meu pai trabalhou na mão de agiota a vida inteira. Cinco filhos,

salário base que a gente tinha, farrista demais, bebia demais. Imagina a vida.

Era muito dura, a gente era muito pobre. Então, com isso a gente foi

desenvolvendo um conjunto de características que se conformavam...

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Eu, na igreja, desenvolvo uma consciência crítica, eu era muito crítico, que

dirijo contra o sistema, aí logo depois ... busca contra o sistema capitalista.

Já na universidade, quanto descubro o marxismo, eu me torno Gramsciano na

universidade, eu já entrei Gramsciano na universidade por uma razão básica.

O meu irmão quando eu tinha 9, 10 anos, ele foi a um programa de televisão,

destes que tem pergunta e resposta e que eram muito comuns na década de

60 e ganhou um dinheirão. Só que o dinheiro era todo em livro.

A Civilização Brasileira, tinha acabado de falir a editora, que era ótima... então

ele ganhou um monte de livros. Tinha caixas e caixas de livros. Não tinha

nenhuma condição de conservação, os ratos leram a maior parte deles, mas a

gente leu vários. Minha família adora ler. Todo mundo adora ler, depois foi

desenvolvendo. Muito por causa da minha trajetória, da trajetória de outro

irmão.

Hoje todo mundo lê muito e eu li muito o livro chamado caderno... ....Eu fiquei

tão impressionado por ser cara tão importante, mas tão importante, que até as

cartas que mandou da cadeia foram publicadas no livro. Para mim uma coisa

sagrada o livro.......que eu virei Gramsciano desde ali.

Quando me lembro da discussão no grupo político que era o NMDS, tinha um

texto, eles falaram que era coisa clandestina, isso era em 82. Quer dizer que

eles acharam de Gramsci?... eles ficaram meio sem graça, que era muito

utilizado pela Social Democracia.

Eu saí do grupo logo depois, porque Gramsci me interessava mais do que o

grupo. E depois quando fui conhecer mesmo, fui ler, ai me interessou mais

ainda, porque se aproximava muito da perspectiva religiosa da teologia da

libertação, que investia muito na mudança da cultura, do comportamento via

transformação cultural. Valorizava muito a ação humana, o comportamento do

individuo e do coletivo, menos as determinações econômicas.

Então, juntou-se um processo meu de dedicação na teologia da libertação, já

na década de 70. A critica foi se acentuando, se politizando com o ingresso na

geografia e, com perspectiva de mudança pessoal e coletiva, via a capacidade

de construir uma nova hegemonia. Isso foi formando um caldo de cultura onde

fui me constituindo.

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Eu comecei o ano como intelectual no processo, quer dizer, me interessava

muito estudar, eu tinha clareza que queria ser professor. Meu pai achava um

absurdo.

“Primeiro fazer a universidade. Se fosse para a universidade, fizesse Direito.

Que eu falava muito bem, falava muito, gostava de falar, então eu seria um

ótimo advogado.”

Eu queria ser um professor, não queria ser advogado. Ser um ótimo

professor. Eu achava que se fosse bom professor, conseguiria ter uma vida

digna. Então, quando me formo na universidade, passo num concurso público

para professor do município. Faço especialização logo depois, e mestrado, e

vou para a universidade. Em 91 passo no concurso para a universidade.

Então, no topo da carreira, sou professor de nível superior numa universidade

pública e doutor. Quando fui fazer mestrado eu não conhecia nada, tanto que

fui para a PUC porque um professor havia dito que o curso era bom, que havia

bons professores. Quando cheguei lá, não havia nenhuma destas pessoas, já

haviam saído, mas era a única universidade que eu tentei.

Eu era muito ...., o meu capital informacional era mínimo, mas eu fui fazer a

universidade pela necessidade ser professor e porque esse grupo, o grupo

jovem, tinha algumas pessoas que naturalizavam aqui e aí que fui firmando

cada vez mais o papel. Na minha militância vai se colocando um sentimento

de afirmação da minha identidade, que foi se conformando também no

processo e, quando eu entro na PUC isso fica muito claro. A PUC foi uma

experiência muito boa para mim porque eu sempre tive horror ao sectarismo,

uma posição sectária.

Quando entrei no PT eu tinha consciência, como todos nós de esquerda, de

que o mundo estava dividido em duas partes: o povo da esquerda era

generoso, altruísta, aberto, queria transformar a humanidade, defendia

práticas coletivas enquanto o povo da direita era conservador, era um povo

que não tinha consciência coletiva, era egoísta.

... quando se é do partido descobre-se que ideologia é uma coisa e caráter é

outra, práticas individuais são outras. Então isso me ajudou muito a romper

com o sectarismo. E na PUC eu tive uma experiência muito boa, muito

interessante, no departamento de educação e, fui muito bem acolhido. Tanto

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que fui fazer o doutorado lá. Então eu fui desenvolvendo, mas nunca tive

ninguém na vida, isto é uma característica minha, diferenciada da Eliana, que

me desse um toque na vida. Isto eu nunca tive. Nunca tive um mentor. Aquele

cara que fala: “aqui é o caminho legal para você seguir.”

Neste sentido minha trajetória foi muito solitária. É aí, que eu leio o

existencialismo, já mais tarde. Tinha lido alguns livros soltos de Sartre, a Idade

da Razão , por exemplo, um romance. Eu me identifico muito com o objetivo

existencialista, principalmente alguns aspectos fundamentais.

Primeiro à idéia de que a vida não tem nenhum significado em si mesmo,

quem dá significado a ela é você. Isso me ajudou muito, porque me ajudou a

romper com a lógica de devedor do mundo. Eu ainda tenho, mas eu tento fugir

ao máximo dela. Eu não me sinto culpado diante do mundo, mas tenho

obrigação diante das pessoas. O que eu faço em termos de militância social é

que dá significado.

No plano ético, no plano político, eu não me conformo com a sociedade

existente. Eu não consigo entendê-la, não consigo entender porque as

pessoas valorizam coisas tão banais, como ter um carro cada vez mais

luxuoso, um apartamento em Paris, um apartamento em Roma. É um não ter

fim. O grande produto do capitalismo, aprendi cedo na igreja, é a carência.

Você produz a carência, você produz a obsolescência.

Então, você tem um Audi hoje, você quer um Audi A6. Viaja de avião pelo

Brasil, quer ir pra Miami. Vai classe de econômica, quer ir de primeira classe.

Indo de primeira classe, quer ir de jatinho. Você anda no auge em São Paulo,

você precisa ir de helicóptero, não dá para andar em São Paulo sem

helicóptero. Você tem o helicóptero X, quer ter o helicóptero Y. Então vai

gerando uma produção excessiva de carência. Está sempre na busca de

construir um padrão de vida através de bens distintivos que estabeleçam

novas hierarquias sociais. E você no topo. E isso vai gerar inclusive a

valorização da vida diferenciada.

Então esse meu olhar sobre a sociedade. Não me conformo com ela. Quero

ser feliz desde já e, para ser feliz, eu tenho que ser pleno.

Para ser pleno eu tenho que colocar em questão minha vida. Por isso eu

busco tanto meu caminho pessoal, meu caminho profissional. Ter uma vida

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digna, ganhar um salário justo, viver de forma justa, buscar o que eu acho

certo. Nunca tive um discurso, como um amigo meu dizia, que era impossível

às pessoas viverem enquanto houvesse pobreza. Isso é uma maluquice, a

felicidade é estar no caminho, é buscar cada vez mais ser uma pessoa

intensa, plena, que viva de forma coerente com o que acredita.

Então, a coerência para mim sempre foi fundamental. Eu busco ser feliz.

Agora, eu posso abrir mão de ser feliz na busca de ser pleno, na busca de ter

uma coerência plena. Mas nunca abri mão da busca dessa plenitude.

Com isso eu construí minha trajetória a partir de ”n” inserções, mas sempre

nesta busca. Já fui da igreja. Afastei-me quando achava que eu não dava mais

conta, principalmente quando a teologia da libertação foi abortada... viver com

qualquer sentimento que eu buscasse na igreja.

Na verdade nunca fui místico, nunca fui católico. Eu era muito mais militante

da igreja. Quando me convenço disso, eu assumo tranqüilamente minha falta

de fé. Assumo que não tenho a fé religiosa. Tenho a fé na humanidade, não

em Deus. Eu acredito num Deus. Um Deus cristão certamente tão distante de

mim. Um Deus mais para o budismo; de certa forma o ateísmo budista me

agradava muito, mas eu sou muito mais materialista neste campo do que

Nietzsche.

Eu me aproximo depois da organização revolucionária; largo quando acho que

não tem nada mais a ver comigo. Está completamente fora da realidade.

Eu vou passar a ser morador também e estou sempre assim, Marquei muito

tempo por causa de uma coisa dessas. Foi o tempo que eu achei necessário.

No partido eu fiquei muitos anos, e eu assumo com muita profundidade.

Então, o meu compromisso com a igreja e com o partido, (fiquei 10 anos

quase no PT, fui dirigente do PT), chega um momento em 90 que tenho que

optar.

Eu era secretário geral do PT, cada vez mais me responsabilizando e, estava

saindo da minha terra, da minha profissão; então peço afastamento da

secretaria geral. Esse foi um momento radical na minha vida.

Eu saio. Estava muito insatisfeito com o PT. O que acontece com o PT hoje, já

começava a acontecer no inicio da década de 90. Falei, eu to fora, não vou

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entrar nessa. Saio do PT e aposto na carreira acadêmica justamente envolvido

com a sociedade civil, ali já...

R: Só uma curiosidade, que idade você tinha? Eu tinha 30 anos.

R: Você já estava casado? Eu casei a primeira vez com 26 anos, uma pessoa que era muito situada na

igreja, eu nunca quis transformar as pessoas, a minha mulher era pessoa da

igreja que nunca tinha namorado, muito conservadora. Votou na Sandra

Cavalcanti, em 82, teria convocado Maluf em... eu votei no PT que tinha 3%

dos votos. Então ela começou a mudar, era bobagem minha, ela votou no PT,

começou em 85, já votou no PT.

Eu achava que o voto para ela tinha a mesma importância que para mim. Na

verdade, eu influenciava muito o voto das pessoas porque elas não o

achavam muito importante, até hoje é assim.

Eu casei também porque nunca tinha me apaixonado. Eu tinha relações como

eu te falei. Minha solidão era grande no sentido de interlocutores. Eu sempre

tive o papel de dirigente, com muito pouco interlocutores. Fosse na escola, na

universidade ou na igreja. Eu sempre fui uma pessoa também muito cômoda?

na igreja, eu sempre apontava para colocar em questão, radicalizar, os

princípios da teologia da libertação.

Eu adorava o padre, por exemplo, gente boa, parceiro, mas precisava haver o

conselho, que o conselho funcionasse, inclusive com a questão financeira. Era

necessário mais peso à questão comunidade. Então ele mesmo sugeria que

eu fosse PT.

Um padre de esquerda me excomungou, um padre gay que era um horror e,

eu batia muito, criticava muito a postura dele. Era muito conservador, achei

curioso ele me excomungar. Não havia nenhuma diferença ele me

excomungar ou não. Eu sempre tive um processo de participação na coisa,

mas muito conciliador, como disse, mas muito firme também no que eu

acreditava.

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Houve um momento que me afastei da igreja e me filiei ao PT, foi o momento

em que investi mais na universidade. Alguns anos mais na universidade,

trabalhando principalmente com prefeituras, buscando produzir coisas nesse

campo e morando na favela.

Apaixono-me pela Eliana em 86, na primeira vez que a vi. Ela, aquela estória

... A gente se conheceu em outubro de 86, eu tava casado ainda. Em 87, em

88, meu casamento acaba. Meu pai morreu; ele falava que eu era desinfeliz.

Não era infeliz mas também não era feliz. Tinha um apartamento legal,

ganhava um salário legal, minha filha era bonitinha, eu não era apaixonado

pela minha ex-mulher.

Ela assumia muito o casamento, muito comprometida, muito séria, muito

apaixonada, só que não era o meu caso. Aí eu resolvi me separar. E ao me

separar, eu encontro a Eliana e a gente logo depois começa a namorar e

casa.

No primeiro beijo a gente se casou, no dia 8 de dezembro de 88. E a gente

comemora até hoje esta data.

A gente tem esse processo de relação muito intensa, muito apaixonada,

criando desde criança, morava na Maré, veio da Paraíba e mora na Maré. A

gente veio morar em Nova Holanda. Morei 7 anos. Aqui não participo da

militância na comunidade. A Eliana que foi a principal dirigente da história

daqui da Nova Holanda e da Maré, da associação dos moradores, trabalhou

muito na articulação da organização. Muito tempo dedicado ao movimento

comunitário.

Aqui é muito mais um movimento político, que são coisas distintas. Você,

quando está num movimento comunitário, tenta concentrar ações de forma

localizada e pensar de forma concreta sobre aqueles problemas. No partido

político, e eu sou geógrafo, você tem de pensar de forma geral com a

mudança da estrutura de poder.

Isso vai um pouco caracterizar minha trajetória. A gente vai para o CEAD cria

o CEAD, em 97 e formulo muitos conceitos do CEAD e, Eliana, abre mão do

trabalho muito legal que ela tinha no Favela Bairro, para tocar o CEAD.

Chama outras pessoas e o CEAD cresce muito a partir dessa junção.

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Então os problemas, o estudo local, o que produz conceitos da cidade que

intervém na conta com ações que ajudam a criar uma rede sócio pedagógica.

Formar pessoas que possam interferir na comunidade.

O CEAD cresce muito e rápido. A gente tinha conceitos muito inovadores,

tínhamos uma longa estória de militância que isso a gente tinha muita

articulação social. Tínhamos competência técnica, teórica, fazer projetos,

fazer... nas favelas e tínhamos legitimidade.

....................movimento popular da periferia e intelectuais, isso era muito

contraditório juntar esses elementos todos. Então a gente cresceu muito, mas

já em 2001 eu tinha uma ânsia de trabalhar no projeto cidade.

Formar gente, formar intelectuais na periferia, estar trabalhando na produção

de conhecimentos inovadores sobre a cidade, quando eu falo cidade falo na

polis, falo no Pan, falo no Brasil, e estar produzindo novos instrumentos para

disputar hegemonia e ter um projeto de ser humano, porque eu busco cada

vez mais construir uma concepção.

Eu estava conversando ontem com o Guilherme; existem dois sujeitos

universais que estão em disputa na nossa sociedade Um é o consumidor,

você reduz o homem à sua condição de consumo de bens ... para criar

hierarquias sociais. O padrão básico das empresas, meios de comunicação,

que visam sempre formar. Então para isso é necessário você se distinguir de

mim. Você vai ter aquele produto que ninguém pode ter. Quanto mais raro o

produto, quanto mais acesso a produtos raros, mais distinto é você e logo

você vai estar no topo da hierarquia social.

Esse tipo de conceito do ser humano cria uma situação de absoluta

incompatibilidade, de competição entre as pessoas. Se cada vez mais está em

disputa com o outro, isto gera um processo de naturalização da desigualdade

e, principalmente, da naturalização da violência na relação entre as partes e

não é casual que a gente esteja nesse quadro de violência e de barbárie no

Brasil, hoje, por parte do mundo.

Você exacerba a desigualdade, exacerba a conservação de riquezas,

exacerba o valor distintivo dos produtos e aí afirma cada vez mais a hierarquia

das vidas das pessoas a partir desses processos.

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A gente propôs o cidadão pleno, o cidadão pleno é um dos grandes ganhos

que a esquerda tem.

Então, o cidadão pleno, se fala muito o que é direito, incorpora da esquerda

que ganha, etc. e tal, mas o ser humano da burguesia era o cidadão. É o

sujeito universal queimado pela burguesia era o cidadão.

O que a esquerda fez a partir da década de 80 no Brasil é ampliar esta

perspectiva de cidadania. Deixa a cidadania no plano jurídico formal. Vai

incorporar direitos à questão social, vai incorporar à questão política, vai

incorporar a questão da cultura, o respeito à diferença, o direito ao meio

ambiente saudável. Vai alargando o conceito do cidadão até chegar à

cidadania plena.

Então, ao invés de chamar de socialista, de comunista, de homem novo,

mulher nova, você afirma uma cidadania plena. É essa concepção de sujeito

que afirmo, eu estava falando com o Guilherme, ontem na reunião com a

Natura. O que o que acho mais interessante na Natura, que é uma empresa

capitalista quer ter lucro, mas que tem uma expectativa socialmente

responsável, que eles procuram vender para o cidadão e não para o

consumidor.

Eles gostaram muito disso, vão tentar usar qualquer dia em termos de

campanha publicitária, porque essa discussão de empresa que vende para

cidadão e não para consumidor é completamente distinto. Ela não está

reforçando as lógicas desiguais da própria propaganda, pois vai buscando

cada vez mais qual o significado da sua vida, como se relaciona com o meio

ambiente, como se relaciona com seu povo. O próprio Cronus, aquela linha

Cronus reconhece o direito ao envelhecimento.....

Então pode afirmar que o diferençial da sociedade em que a gente vive, - está

muito longe da sociedade utópica, que ninguém acredita, nem sei se é a

melhor solução, sem controle coletivo dos meios de produção, - eu acho que

deve ter controle partilhado dos meios de produção, que o termo hoje pode

caminhar cada vez mais para isso mas, principalmente, o que me interessa

mais é qual a concepção do sujeito que a gente pode constituir para viver na

cidade. Uma sociedade mais fraterna, mais justa, sustentável, na perspectiva

econômica, ética, social, ambiental.

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Estamos começando a construir um projeto de cidade. Hoje eu estou

trabalhando com um conceito que é muito novo para a gente, mas ele

sustenta uma idéia que é: porque favela é representada dessa forma. O ultimo

livro que eu lancei Que a Favela é a Alegria de Uma Cidade, toda nossa

discussão é isso.

Eu afirmo que a favela é pensada sempre a partir do paradigma da presença,

da ausência, aliás, sempre pensada a partir da carência. Porque a favela não

tem água, não tem luz, não tem esgoto, não tem creche, educação, nem

saúde; não tem cidadania e o caos é a falta de regra. E a favela não é assim.

A favela é um espaço muito mais complexo, sofisticado, com regras

sofisticadas. Agora, tem um grau de autonomização grande em relação à

lógica juridico-formal que impera na cidade. Porque o estado abriu mão da

cidadania na cidade e então, eu criei o conceito de uma cidadania urbana, que

eu estou querendo desenvolver neste fórum de doutorado, que é tentar

discutir como é que os espaços são segregados a partir da presença soberana

do estado em determinados setores, outros não.

Então aqui é o território inimigo do estado. É por isso que eles invadem com

blindado, com a policia, tratando a população civil como inimiga, a população

em geral, que não sejam meninos do tráfico, e acham natural tratar os

traficantes como inimigos a serem eliminados. Essa é a concepção de sujeito,

concepção de cidade.

O nosso projeto é caminhar noutra direção. Pegando aquilo que é fundamental

na minha trajetória. Ela está muito marcada pelo sentimento de rebeldia desde

a origem, de muita obsessão, de estar construindo a minha trajetória com o

objetivo de uma vida digna, ao mesmo tempo, um compromisso radical em dar

significado à minha vida, mais do que um sentimento altruísta de querer

transformar a vida das pessoas e, de que não dá para me conformar com as

estruturas sociais existentes.

Então há que ajudar as pessoas como indivíduos, eu tenho muito interesse em

colocar a questão estabelecida.

O projeto emancipatório é estar sempre buscando mudar as políticas públicas,

que mudem a forma como o estado .... como as empresas funcionam, como a

cidade abre espaços para estabelecer as relações de seus pares e, com isso

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a gente vai construindo um conjunto de intervenções que tendem a colocar,

fazer uma critica global, à forma de vida coletiva cotidiana que impera no

Brasil e no mundo, tudo na busca desta plenitude. Se juntar esta biografia,

este contexto, como digo no meu texto que você vai ver, como é que consigo

articular a minha perspectiva de personalidade e minhas características com

as perspectivas do ambiente.

R: O que te move? É buscar ser coerente e dar significado à minha vida, é isso que me move. O

que mais me alimenta... hoje eu já estive no CEAD......eu fiquei assim, fiquei 3

anos intensos da minha vida no CEAD, assim eu dedico 5, 6 anos ....eu dedico

profundamente mas, o que me sustenta mesmo não é o vinculo institucional,

seja com a igreja, com o partido, com a instituição que eu criei mas, é com a

busca de ter uma vida cada vez mais plena, é estar cada vez mais afirmando

a possibilidade de ir além dos meus limites.

O que me move é a busca de ter tornado absolutamente coerente.

R: Você é assim, no momento você está enveredando por uma atividade mais política, partidária, enfim. E o que te trouxe de volta ao você estar por aqui, neste espaço mais comunitário, ou você pretende em algum momento galgar uma participação política, já que você tem como finalidade trabalhar com esta idéia de políticas públicas? É, mas sempre como membro da sociedade civil. Em 85, quando passei a ter

consciência absoluta de que nunca seria parlamentar, por exemplo. Primeiro

eu via a vida parlamentar como um padre, como um sacerdote, que se torna

uma figura pública por excelência. Ele abre mão em geral do espaço privado e

a questão da vida privada para mim é muito ....., a minha autonomia subjetiva

é muito importante. Eu nunca admiti ser candidato, nem eu nem a Eliane. Em

90 a gente podia eleger quem quisesse, nosso grupo era o mais forte do PT. A

gente elegeu um sujeito chamado Paulo Banana, da vila Kenedy.

Eliana foi convidada para ser candidata. Ela não quis de jeito nenhum. Então

para a gente, para mim nunca esteve colocado.

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Não porque achasse que não seria... certamente eu teria todas as condições

de me eleger parlamentar, mesmo deputado federal, em função da rede que

eu tenho, da legitimidade que eu tenho, da experiência.

Isso não seria um problema com a visibilidade que eu tenho e, as pessoas não

entendem. Não é que eu não cumpra esse papel hoje. Eu acho que não tenho

esse papel. Meu papel é contribuir para criar políticas públicas para serem

assumidas pelo estado.

Eu quero muito é fortalecer as nossas relações com as prefeituras. Construir

uma política com as diferentes prefeituras.

Se eu estiver vinculado a um partido certamente isto vai ser muito mais difícil.

Eu posso interferir numa cidade específica, ao mesmo tempo eu estou muito

livre para estabelecer relações com quem acho que devo.

Como sociedade civil, posso estabelecer alianças, parcerias com pessoas

diversas, apresentando proposições. Já teve duas reuniões com o governador,

por exemplo, da cidade, do Estado, para estar apresentando proposições. Ele

sabe se vai fazer ou não, mas certamente não teria nenhum interesse em

estar no lugar dele. Eu acho que quando você assume este papel, você

assume a radicalidade da exterioridade. Isso não me interessa.

R: Como você enxerga esse tipo de ação que vocês mesmos fazem, versus movimentos sindicais, versus uma articulação mais política mesmo. Com o mesmo dra ... que você entrou pro PT. Você enxerga que é uma alternativa nova, um substituto? Qual é o papel do Estado hoje para você, onde é que entram as organizações sociais, como o Estado? Como você enxerga isso? Tem duas características contra este figura do consumidor, que é a

presentificação da existência e a particularização da existência. A

presentificação é quando você vive o tempo como eterno agora, então, você é

incapaz de construir um projeto futuro. Hoje é fato, se você não constrói um

projeto futuro, você nunca pode fazer uma revolução, nunca pode construir

utopias, seja pessoal ou coletiva. Tem um menino que foi preso agora, foi

preso duas vezes, tem 23 anos e é o Vinicius, e ele ta ... três meninos contra o

filho dele neste mesmo tempo, mesmo período. Ele tem uma menina, que tem

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um filho, então tem 4 filhos e ele no trabalho. A mãe faz todo o esforço do

mundo para ficar preso de novo. Então não tem nenhum projeto futuro, nem

essas meninas. Elas vivem numa determinada perspectiva de tempo e de

momento. Ele tem a particularização da existência, que é mais cruel, é a

incapacidade que a gente assiste cada vez mais na cidade, principalmente no

urbano, de viver as diferenças, de viver com o outro. Eu só sei conviver com o

mesmo. O melhor exemplo que eu dou para isso, tem uma médica que

conheço, onde a gente trabalha na Tijuca, teria votado em César Maia, ela

disse por duas razões.

Primeiro porque ele estava fazendo a cidade da música que é um grande

empreendimento cultural na Barra da Tijuca, caríssimo.

Inicialmente custava cento e cinqüenta milhões de reais. A Barra, coitadinha,

não tem empreendimentos culturais né, ela precisava muito disso nos finais de

semana, ter mais espaço. Por isso votou nele e porque ele também teria

prometido e, cumpriu a promessa, de não fazer a linha 4 do metro.

A linha 4 do metro que estava no caderno de encarte do Pan-americano, ele

era obrigado a fazer. Vai ligar a Barra da Tijuca ao aeroporto. Só que passa

por muitas favelas e encheria mais ainda a Barra de favelados.

Essa pessoa se sente cidadã, sente-se absolutamente consciente que é

cidadã. Ela paga impostos e acha natural que nas praias, que são públicas,

tenham empreendimentos culturais como esse, que não sejam acessíveis a

boa parte da população. E ainda reclama da violência, o tempo inteiro reclama

da violência.

Quando teve a guerra Vidigal x Rocinha, o que teve de editoriais, jornalistas

falando absurdos. A proibição dos direitos de ir e vir do morador da Barra, era

impressionante. Deram um jeito de vir do morador de favela.

Acontece muito aqui no Rio de Janeiro, tem tiroteio na favela, vamos falar

assim, moradores de Ipanema não conseguiram dormir por causa do tiroteio

no Cantagalo. E os moradores da favela, conseguiram dormir? Ou então o

pessoal lá está acostumado a tapar o ouvido. Esse tipo de juízo é muito

comum. Você trabalha valorizando ao extremo alguns indivíduos e outros não.

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Essa parte da organização da existência dentro da vida normal atinge os

sindicatos hoje. Eles são corporativos. A preocupação fundamental, é o papel

deles, é defender os seus filiados.

Eu falava de brincadeira ao pessoal do PSol que eu não votaria na Mara. Eu

votei até no Marcelo Freso que é do PSol que é amigo meu, mas não votaria

nunca na juíza. Porque ela saiu do PT em função da mudança previdenciária

que o governo mandou e não vejo coalizão. Sem aquelas mudanças

previdenciárias que atingiram os funcionários públicos, eu me aposentaria com

52 anos como professor da Universidade.

Como você pode defender que um cara de 52 anos possa se aposentar, no

auge da sua capacidade, num país pobre como esse. Ou um juiz também, 48

anos. Professor na PRJ....está aposentando com 43 anos.

............ exatamente, eu conheço muita gente, dezenas de pessoas só na UFE

que se aposentaram com menos de 45 anos.

Quer dizer, isso é um absurdo, como é que você pode então um .... é um

projeto de esquerda? Claro que não.

Quando você tem como lema reformas só agrárias, você ignora todas essas

reformas que tem neste país, você simplesmente considera um projeto

universal, de nação, de pais. Eu acho que boa parte dos sindicatos perderam

o trem ...... não tem nenhuma representatividade geral. São basicamente

controlados por aparelhos burocráticos que nem é forma de partido.

O PT não é diferente disso, o PC do B não é diferente disso. Estão dominados

por lógicas particulares.

Falta um projeto de cidade, falta um projeto de país. A maioria, quando assiste

à campanha eleitoral hoje, cada vez fica mais difícil distinguir, aqui era difícil

distinguir, entre o projeto do PT e o projeto do César Maia.

O Vitassa? simplesmente falava que era melhor administrador , poderia ser

melhor administrador do que ele. Poderia governar a cidade melhor do que

ele. Sem discutir que projeto de cidade tinha. Não se distinguia nada. Todo o

olhar a partir da zona sul.

Nesse sentido, o desafio, parece, na sociedade civil é, contribuir na

construção de um projeto cidade. Que os partidos perderam a capacidade de

tocar em função de estarem dominados pelo jogo eleitoral. Então não tem

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projeto na área de segurança ou o projeto se torna simplesmente eleitoral,

sem nenhum objetivo de vinculação com a prática.

Eu tinha experiência com o PT. Achei curioso como o PT perdeu

completamente o rumo, uma vez que quem escreveu os documentos do grupo

fui eu. Fiquei muito empolgado, muito animado, porque a gente aprovou o

documento. Era um documento radical no sentido da transformação da

gestão.

Poria gestores profissionais, 10% seriam para formação política, criaria

estrutura de informática. Era um documento aprovado. Você não imagina a

briga que foi aprovar um documento na convenção.

A disputa, as nuances, as falas, as defesas. Depois aquilo nunca foi

implementado. As pessoas nem lembravam do caso. Quando elegem uma

executiva, ai que descobri, aquele documento era simplesmente um marco

para definir quem tinha maioria para eleger a executiva. Para eleger a maioria

dos diretórios, nada mais que isso.

Não era nem uma carta de intenções. Era um ritual de aprovação para um

momento maior que era a eleição de direção. Não existia nenhum

compromisso com ele.

Isso me chocou profundamente. Foi aí que desisti da vida partidária. Não

tinha nenhum significado aquele tipo de formulação feita ali pois não atingia

efetivamente os responsáveis pela sua execução.

O papel do agente da sociedade civil, de organizações como a nossa, é de

apenas construir atividades exemplares, que possam tornar-se políticas

públicas. A gente criou condições de saber, a partir da experiência aqui da

Maré e em favelas do Rio - hoje está em 33 universidades federais, o MEC

está dando 10 milhões para esse projeto. Então tem como principio mudar a

forma como a Universidade se relaciona com os estudantes de origem

popular.

50% dos estudantes permanecem nas universidades e conseguem se formar.

Hoje é um problema fundamental. O único programa de extensão que o MEC

trabalhando a permanência do estudante na universidade pública hoje, é a

condição de saber criada pela gente. E ensina. Por isso nos ganhamos esse

prêmio da Fundação Banco do Brasil na área de educação.

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E isso me agrada muito fazer. Agrada-me mais fazer programas como esse,

que possam se converter em políticas públicas, que a gente está

apresentando ao governador. Por isso que a gente vai ter uma reunião com

Julio e tudo para ver como. É uma proposta radical, de mudança na

intervenção do Estado nas favelas. E isso me agrada fazer.

É mas ele pode não aceitar. Pode. Mas se a gente consegue começar a

construir a hegemonia com este tipo de proposição, daqui a cinco, dez,

quinze anos a gente vai construindo as coisas nesse caminho. Hoje a minha

aposta é mais isso. O nosso papel é estar produzindo formulações,

proposições, de forma coerente, que levem em conta as necessidades da

maioria da população. Esse é o meu papel, é isso que eu me proponho a

fazer.

Nós temos, historicamente, no Rio de Janeiro, governos desastrosos. O

governo Brizola pelo menos colocou em questão os interesses populares mas

teve muitos problemas. Teve que fazer muito acordo com o fisiologismo, o

clientelismo, no primeiro governo.

Ele perde a eleição. Ele tinha uma ênfase na educação equivocada, porque

em vez de criar uma estrutura, apostar na estrutura existente, foi criar uma

estrutura completamente nova que era impossível sustentar. Os Cieps, o

máximo que atendeu foi 10% da rede e ele arrebentou com 90% da rede em

função disto.

Ele não soube se relacionar com os territórios para garantir a soberania do

Estado nos territórios populares. Abriu mão disto. É aí que gerou este

processo de privatização da soberania desses espaços públicos.

O governo Moreira Franco foi um horror em termos de corrupção, uma lógica

conservadora na relação da sociedade civil. Só agravou o problema.

No segundo governo, Brizola não tinha o menor interesse em governar. Aí a

coisa estava completamente dominada pelo clientelismo, um desastre.

O Marcelo Alencar foi uma plutocracia, absoluta roubalheira. A privatização foi

um escândalo, a forma como foi feita. Em tudo que foi privatizado, desde o

Banerj, Companhia de Gás, Metro e o Estado não teve nada para reverter

para isso, não se investiu em nada para isso. Uma falta de projeto de Estado,

absoluto. Culminou no desastre dos dois governos Garotinho, que foi uma

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lógica não só de incompetência, uma lógica detonada de projeto

patrimonialista, privatista, principalmente provinciano de poder. Uma ótica

absolutamente antidemocrática, retomando uma política da época de 60.

Então o Rio de Janeiro tem sido marcado nos últimos 25 anos, desde a

redemocratização, o governo sem nenhum projeto.

O governo do Sergio Cabral está surpreendendo. O Sergio Cabral sempre fez

esquema, parte do esquema profissional do poder do Rio. Na Legis? Ele

cumpriu.um papel muito forte, 12 anos na Legis. Ficou como presidente da

Legis...., pior do que era na legislação dele, mas ele aparentemente conhece

todos os esquemas podres do Estado, todos os esquemas conservadores e

de desvio e ele esta querendo fazer alguma coisa.

Ele pegou áreas, varias áreas ao PT e algumas área principalmente botou

uma gestão mais técnica na saúde, na educação, na segurança.................mas

ele é um político, não passa disso, muito fraca por sinal....... não tem nenhum

projeto............simplesmente é um instrumento para ser candidata a prefeita no

ano que vem, neste sentido não tenho nenhuma deferência por ela.

Mas ele pelo menos afunda na possibilidade da, sinalizando mudança na

questão de um projeto de Estado No plano econômico, no plano social ou a

segurança mesmo. E ele não é um cara qualificado completo, um cara

preparado, mas esta aceitando pessoas preparadas. Então ainda tenho

razoáveis otimismos. Ele está cometendo alguns erros no caso da segurança,

mas ele está rompendo com a mesmice dos últimos 25 anos que a gente teve

de governos da pior espécie.

Acho que ele tem condições de contribuir, pelo menos para a gente reverter o

ciclo de decadência, cada vez mais profundo, em que o Estado do Rio de

Janeiro estava, principalmente a cidade do Rio de Janeiro. Em 2008

provavelmente ele vai ter um projeto diferenciado, um projeto claramente

direita, conservador, .....das elites, sustentado num discurso de ordem que ia

afetar profundamente interesses populares. Se ele perdeu esse discurso de

ordem, largou mão, desistiu desse projeto, e hoje a cidade está

completamente sem rumo. Cercou-se de péssimos assessores e a gente não

conseguiu avançar em coisa alguma nos últimos governos, o último governo

dele.

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Ao contrário do governo Conde que consolidou algumas coisas que eles

tinham feito, ele conseguiu acabar com a favela bairros, destruiu algumas

coisas que ele mesmo havia iniciado.

Daí então, em função desse paradigma da ordem e que ele terminou não

conseguindo dar seqüência, ele queria construir sozinho, ...............

obviamente não tinha a menor condição de fazer isso.

Nós estamos marcados, hoje, por um processo de crise no Estado. Crise que

faz com que nossa política não tenha mais estatura nacional. Há muitos anos.

O Brizola veio importado na esquerda do Rio Grande do Sul, foi o ultimo

político de expressão nacional que a gente teve. O Rio não tem mais tradição

nas políticas Porque os políticos pensam cada vez mais de forma particular

em seus projetos localizados e, isso faz que a gente cada vez tenha menos

influencia. Um debate nacional, um projeto de cultura, um projeto turístico, um

projeto de Estado e um projeto de cidade Agora, o Estado continua aberto,

aquela .(afirmação Gramsciana)... que o Estado é contraditório, onde ele abre

espaço para o campo da democracia, é obrigado a convir? com normas que

abrem possibilidades da contra hegemonia, isso eu acredito piamente.

Acho que a gente tem condições de construir novas hegemonias, a partir de

um projeto claro, centrado na figura do cidadão pleno, que alinha a ansiedade

marcada pelo encontro das diferenças e que a gente rompa com os padrões

de reprodução da desigualdade. A Cidade da Música tinha de ser feita aqui na

Avenida Brasil. Se a gente consegue fazer empreendimentos como esse, na

Avenida Brasil, a gente re-territorializa todo esse espaço. Amplia a geração de

trabalho, de renda, aumenta a auto-estima das pessoas, cria novas formas de

pensar dessa soberania, com a presença do Estado aqui. Você obriga as

pessoas a circularem e encontrarem.

Então o projeto que a gente tem para 2008, é transformar o Brasil num grande

centro cultural, um projeto imenso para ser negociado com Petrobras, com o

Estado, com tudo, e revitaliza a Avenida Brasil, como um ponto central da

cidade e da região metropolitana.

A Constituição vai fazer 20 anos de assinada, Queremos fechar a Avenida

Brasil pelas duas pistas, limpá-la, pintá-la, mostrar que a gente pode ir para a

rua e pode agir. A idéia é criar performance ................ criar um inventário dos

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últimos vinte anos para conseguir construir um projeto de 20 anos para a

cidade ali da região metropolitana.

Em S. Paulo está se fazendo isso né, São Paulo sustentável. A gente está

tentando fazer a mesma coisa, só que a gente vai consumar um projeto de

Lerner que está participando, ficou muito interessado. Quer marcar uma

reunião com a ........, quer que a gente se reúna porque lá eles estão

patinando ainda e termos ......,

Aqui a gente conseguiu construir um projeto bem legal. A gente vai empregar

jovens intelectuais da periferia, 100, 120 jovens, mestrandos e doutorandos

que possam estar articulados com professores e pesquisadores melhores de

cada área temática para construir um projeto de cidade comum.................... de

políticas públicas adotadas e pensadas nos últimos vinte e anos.

Avaliar essas políticas e pensar no projeto para os próximos 20 anos, neste

campo das políticas públicas, envolvendo setores diferenciados, desde

empresas, legislativos, executivos, poder judiciário e também empresários e a

sociedade civil junto com esses jovens intelectuais, para a gente estar

produzindo isso.

E que seja mobilizando, porque vários anteprojetos de construção de cidades

a lá Viva Rio, sempre foram pensados pelos dominantes, sempre foram

pensados a partir da Zona Sul. Nunca foram pensados envolvendo outros

setores.

No máximo, a população da periferia entrava como massa para conseguir

legitimar aquele processo, jamais como formuladores.

Então nosso desafio, como intelectuais da periferia, É formular o projeto

cidade a partir a partir dos interesses da periferia e sem deixar de levar em

conta os objetivos dos outros setores.

A gente não pode se prejudicar em ....., não pode particularizá-los, tem que

levar em conta os interesses da maioria da população e pensar no projeto que

envolva a todos.

Esse é o desafio, pro isso criamos a escola popular de comunicação, investiu

na produção de informações, estamos investindo na formação de quadros, é

coerente isso aí.

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R: Deixa eu te perguntar duas coisas. Você se considera um fellow, um empreendedor social.......................e como você vê o papel da Ashoka no teu trabalho? Eu gosto do conceito de empreendedor, no sentido não do termo, acho que o

termo está muito contaminado por essa discussão do mercado, mas a idéia de

que as pessoas podem mudar as suas vidas e a si e ao mundo e mudar o seu

lugar, isso me interessa, nesse sentido, eu me sinto absolutamente consoante

com o conceito.

Acho que a idéia da Ashoka.... de você trabalhar esses caras, estar

estimulando esses caras é muito boa,.e pessoas como eu e Eliana, nós somos

cuidadores do mundo. Somos cuidadores de pessoas, quer queiramos ou não.

Mesmo que não sejamos marcados por sentimentos altruístas,......... religioso,

nós........nossas responsabilidades, nós servimos de esperança para essas

pessoas, para que possam perceber, se esses caras podem eu também

posso. Se o cara pode ter uma vida dessas, cuidar das suas vidas e ainda se

inserir no processo coletivo eu também posso. Pessoas como nós,

principalmente nós dois...se o Jailson..... pode sair lá da periferia, da favela

Mangueirinha e virar professor da Universidade, eu também posso. Então a

gente serve de exemplo, de referencia. Ter uma organização preocupada em

estar estimulando, trabalhando com as pessoas e ajudando sua formação,

ampliando suas possibilidades de articulação, é fundamental.

O grande desafio da Ashoka, é como ela pode contribuir para que esses

empreendedores, esses atores sociais se articulem em rede. ...........esse é um

grande desafio.

Nós criamos aqui no Rio o F4, é o favela 4, ........ desses, três Céus. O Jr. era

mais antigo, eu sou do ano passado, o Celso virou agora e é muito difícil a

gente construir um projeto comum.

A gente sente diferenças profundas na concepção de cidades, na concepção

dos outros três que trabalham na perspectiva do mercado, quer queira, quer

não. Então o Jr., a gente fala, brincando uma diferença fundamental,

...................... porque o programa que ele quer fazer, eu quero formar ídolos,

ídolos da periferia, você quer destruir os ídolos, então não tem como a gente

fazer isso juntos............é verdade.

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No limite, vários grupos da periferia trabalha, como é que a gente pode se

inserir com qualidade no mercado.

Acho que a discussão fundamental é como a gente pode construir o cidadão

pleno.

Não é como aqueles caras podem se tornar um consumidor de melhor

qualidade, é como a gente reconhece o consumo como uma obra inerente ao

cidadão e não como um fim em si mesmo. Eu acho que essa é a discussão

que a Ashoka vai ter que fazer. Ela precisa discutir quais são as evidências

fundamentais em termos de concepção do sujeito universal dos seus

..............qual sua concepção de sujeito universal e que ela quer estimular.

Sem essa concepção comum do sujeito é muito difícil aprender.

Claro que você pode fazer parcerias pontuais, mas a Ashoka tem que discutir

o território, tem que trabalhar a dimensão do projeto cidade, o projeto de polis.

Não dá para simplesmente se achar que o mundo pode mudar como se fosse

naturalmente para o progresso. O mundo pode mudar para a barbárie, como

dizia Rosa de Luxemburgo no inicio do século. Como a gente está se tornando

um mundo cada vez mais marcado pela barbárie. Então achar que nele ......a

grande mudança eram positivas é complicado.

Acho que na essência da Ashoka a gente tem mais clara a concepção de

sujeito, a concepção de trabalho comum, a concepção de cidade. Então é

possível construir um projeto e tentar envolver um conjunto de parceiros nisso.

Por isso eu acho que o eixo...... no território pegar a cidade e discutir um

projeto de .......da cidade, como aqueles fellows ou novos fellows e que eles

fossem avaliados, que eles fossem convidados a participar e que eles

ingressassem na rede a partir da substitutiva, de polis e de ser humano e que

pudessem constituir um projeto comum. Senão você termina, pessoas

generosas ou pessoas do bem, todos eles certamente são pessoas do bem e

querem mudar cada vez mais sua vida. Mas mudar para onde. Isso não está

claro no projeto da Ashoka. E é obvio, quando entro na Ashoka deixo claro

que entro para influenciar na direção de construir um projeto ser humano.

R: Você não se considera um provocador por excelência. Um provocador de questionamentos?

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É mais do que isso, eu sou, antes de tudo eu busco mobilizar e agregar. Não

basta só para mim provocar. Não gosto do papel do crítico. Eu acho muito

cômodo o pessoal na universidade. Os caras, tem cara que faz funcionar um

profissional liberal por tem uma ONG na universidade. Nunca entraram numa

favela. Nunca entraram numa escola pública. Os caras vivem dentro de um

gabinete escrevendo artiguinhos no máximo para serem ..... eu acho isso um

absurdo. E isso é um provocador, critico que no fundo ele só, é aquele cara

que está criticando o que o outro está fazendo ...................................continua

fazendo, se nós fizemos até agora só compreender o mundo, cabe porém

transformá-lo.

Não dá para eu ficar no meio da universidade, é importante fazer a critica do

sistema constituído, mas é importante estimular iniciativas que permitam

também formular novos projetos. Neste sentido não sou provocador, eu sou

um ser político e busco hegemonia do meu projeto de eficiência, do meu

projeto de ser humano, do meu projeto de cidade.

Então eu não quero somente provocar eu quero fazer as pessoas pensarem e

ganhá-las para a minha condição.

É obvio que para isso eu tenho que ouvi-los. Eu digo lá no .......e cadeias? que

a gente criou estrutura, onde eu sou coordenador nacional e observatório, não

pela UF, e o MEC não vota nem o observatório vota. só quem vota são os

coordenadores. Eu estava trabalhando com 33 coordenadores, falando nisso a

estrutura enfoca? que a gente não votava e o Ari, um amigo, professor lá do

Pará, falou - ele não vota mas nunca perdeu uma votação - e é verdade

porque eu disputo uma hegemonia, eu deixo muito claro. Mas porque eu

nunca perdi uma votação? Por que nunca é a minha proposta que ganha.

Eu, coordenando a mesa, estou sempre tentando ver quais são as

proposições e qual mais se aproxima do sentido do projeto que eu tenho, onde

quero chegar com este projeto e qual o mais fácil ser aprovado, uma vez que

a gente está educando as pessoas, que as pessoas se eduquem.