Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
110
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
A questão dos adolescentes no cenário punitivo da
sociedade brasileira contemporânea1
Introdução: dilemas em relação à juventude no Brasil
Os jovens ocupam uma situação ambígua no âmbito das ações estatais
no Brasil2. Por um lado, aparecem quase sempre como possível ameaça
à ordem pública, como categoria particularmente inquietante, como
potenciais agressores e criminosos, caso não sejam contidos por
medidas moralizadoras ou punitivas. Por outro lado, de fato, os jovens
são as maiores vítimas da violência no país, a categoria mais vulnerável
diante do ambiente de insegurança que envolve ainda a maior parte da
sociedade brasileira. Agressores e vítimas na realidade se confundem,
o jovem considerado agressor quase sempre emerge de um contexto
social marcado pela pobreza e pela privação de direitos e seu destino
será marcado também pela violência: a morte precoce no conflito com
outros jovens, no enfrentamento com a polícia ou ainda nas mãos de
grupos de extermínio, ou mesmo a “experiência precoce da punição”
(ADORNO, 1993), quer em instituições de internamento, quer
posteriormente nas prisões.
Tal ambiguidade perpassa a história da discussão pública em relação à
infância e juventude pobre no país e apenas em anos recentes a
legislação e as políticas públicas no Brasil buscaram romper esse
círculo vicioso de discursos e práticas que enquadram os jovens no
registro do perigo e da desordem social.
1 Aula Magna proferida no Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei
da Universidade Anhanguera de São Paulo, em 15 de março de 2013.
2 Será utilizado, aqui, o termo “criança” para indicar toda pessoa com menos de 12
anos de idade e “adolescente” para indicar toda pessoa entre 12 e 18 anos, conforme
o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O termo “jovem” será
utilizado de modo mais amplo, para incluir tanto os adolescentes quanto adultos até
24 anos.
Marcos César Alvarez1
1 Professor Livre-docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência.
Correspondência: [email protected]
Alvarez, M
. C.
111
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) buscou justamente
demarcar outro horizonte, voltado para a garantia de direitos desse setor
da população. Mas, além das inúmeras dificuldades práticas, próprias
de toda tentativa de mudança de ações e de mentalidades, o ECA
continua a ser, na atualidade, o alvo principal de movimentos populistas
no âmbito das políticas de segurança pública, quase sempre associado
à impunidade. É como se, diante dos reais desafios da violência no país,
fosse mais fácil simplesmente eleger uma categoria que sintetizaria
todos os nossos medos e um diploma legal que fosse a causa de todos
os nossos males.
Para além dos problemas concretos que se apresentam hoje na
construção de políticas públicas voltadas para a juventude, é certo que
esse discurso populista nada tem a oferecer em termos de soluções
efetivas, mesmo que viabilize a eleição de políticos e garanta a
audiência de programa televisivos de discutível qualidade. As soluções
em termos de punição mais acentuada e precoce são limitadas, para
dizer o mínimo, como forma de enfrentamento das questões sociais.
A única forma de avançar, em termos da construção de políticas
públicas para a juventude, implica no aperfeiçoamento dos
instrumentos de avaliação das iniciativas institucionais existentes e no
aprofundamento da compreensão da situação social dos jovens em
condição de vulnerabilidade em nossa sociedade. Creio que essas são
duas direções de investigação e ação pertinentes na agenda do Brasil
contemporâneo.
Minha entrada no tema, sobretudo em meu mestrado foi na realidade
outra. A partir dos anos 80 do século XX, no momento em que o antigo
modelo assistencial-repressivo, entrava em crise, busquei reconstituir o
modo como a assim chamada “questão do menor” havia sido construída
no Brasil, de forma a articular percepções, discursos e experiências
institucionais que ainda ecoam na sociedade brasileira contemporânea.
Quero, aqui, retomar essa discussão que realizei já há bastante tempo
para colocar em perspectiva as questões contemporâneas.
112
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
História do Presente
Trata-se aqui de um certo uso da análise histórica e sociológica para
enfrentar as questões da atualidade. Alguns comentários de ordem mais
teórico-metodológica precisam ser colocados então aqui. O que está em
jogo é a perspectiva da “história do presente”, desenvolvida por Michel
Foucault (1977) entre outros autores.
Podemos caracterizar a história do presente como um modo de
empregar a pesquisa histórica, juntamente com a análise sociológica de
forma a descortinar as condições históricas de existência das quais
dependem as práticas contemporâneas.
Ou seja, a narrativa histórica proposta é motivada mais por uma
preocupação crítica em relação ao presente do que por uma
preocupação estritamente histórica de reproduzir o passado, ao buscar
analisar as forças que deram à luz nossas práticas atuais e identificar as
condições históricas e sociais das quais elas dependem. O objetivo
principal não é pensar historicamente o passado, mas sim, através da
história, repensar o presente.
Essa perspectiva da história do presente tem sido por vezes criticada
devido aos erros factuais presentes em tais análises, bem como pela
seletividade em termos de método, já que não são explicitadas as
escolhas, por exemplo, em termos de documentação ou de fontes
primárias exploradas.
Meu trabalho sobre a emergência do primeiro Código de Menores do
Brasil, de 1927 (ALVAREZ, 1989), ao mesmo tempo que inspirado na
perspectiva da história do presente, buscou evitar tais críticas, tanto a
partir de um diálogo sistemático com a historiografia do período
analisado [na época], quanto pelo uso criterioso das fontes
documentais.
O que quero enfatizar é que foram questões da atualidade que
motivaram tais análises, o esforço de demarcar continuidades e
descontinuidades em relação ao tempo presente sempre foi pautado pela
busca do maior rigor teórico e metodológico possível.
113
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
É essa abordagem que quero retomar aqui: a questão atual do
equacionamento jurídico e institucional da situação dos adolescentes
em conflito com a lei no Brasil, a partir, sobretudo, da edição do
Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, pode ser colocada em
perspectiva a partir da retomada da análise da emergência do primeiro
Código de Menores do país de 1927, originalmente realizada em meu
mestrado.
A análise histórica da formulação e implementação das legislações
voltadas à infância e à adolescência pobre ou em conflito com a lei não
buscou simplesmente descrever continuidades históricas, mas colocar
em perspectiva os dilemas atuais das intervenções estatais em relação a
esse segmento da população brasileira.
No Brasil, mesmo que desde o final do século XIX já surgisse a
discussão em torno da necessidade de leis e instituições especiais
voltadas para as crianças e os adolescentes, tais discussões acabaram
levando à constituição de leis e práticas institucionais especialmente
estigmatizadoras que, durante décadas, objetivaram crianças e
adolescentes pobres como “menores”, ou seja, como indivíduos
potencialmente perigosos e predispostos à delinquência precoce.
Desde as primeiras discussões realizadas por médicos e juristas que
percebiam a situação das crianças e adolescentes pobres nos grandes
centros urbanos ao mesmo tempo como parte da “questão social” mas
sobretudo como um problema de “defesa social”, até as discussões que
culminaram na edição do primeiro Código de Menores do país,
promulgado em 19273, constituiu-se todo um processo de
“menorização” desse setor da população, processo este que acabou mais
agravando do que resolvendo os problemas sociais que pretendia
equacionar.
Em décadas posteriores, instituições como o Serviço de Assistência ao
Menor, fundado em 1940 e depois transformado na FUNABEM,
seguirão a mesma trilha desenhada por esse modelo institucional, ao
3 Decreto n.17.943A de 12 de outubro de 1927.
114
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
colocarem igualmente em primeiro plano as preocupações com a
delinquência precoce. As instituições para os “menores” funcionarão,
assim, ao longo de décadas, muito mais como instrumento de
marginalização da população pobre do que como instrumento de
ampliação efetiva da cidadania. Mesmo o Código de Menores de 19794,
baseado na doutrina da “situação irregular”, apenas prolongou esse
processo de criminalização da infância e juventude pobre, ao considerar
como em “situação irregular” tanto os infratores quantos os menores
abandonados.
Apenas a partir do processo de redemocratização do país foi possível
realizar uma crítica mais profunda deste modelo assistencial e
repressivo de equacionamento dos problemas da infância e da
adolescência no país.
A mobilização da opinião pública que levou à nova Constituição, em
1988, ampliou também o debate em torno dos problemas da infância e
da adolescência no Brasil. A iniciativa de militantes políticos, de
técnicos de instituições governamentais e não-governamentais e de
juristas reformadores, entre outros atores sociais (Alvim, 1995),
permitiu finalmente romper com o antigo modelo e, em 1990, foi
promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei
8.069/90).
Atualmente, o Estatuto é considerado, por um lado, uma das leis mais
avançadas em matéria de proteção dos direitos de crianças e
adolescentes, ao buscar se constituir não como um instrumento
repressivo – na antiga tradição dos códigos de menores – mas como um
instrumento que considera crianças e adolescentes como seres humanos
em formação que também são sujeitos de direitos (Relatoria, 2004).
Por outro lado, surgem constantes críticas ao ECA, mesmo que muitas
de suas disposições tenham encontrando obstáculos significativos para
4 Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979. Já no momento de sua promulgação, tal
código foi visto como tendo uma estrutura menos perfeita que o anterior
(NOGUEIRA, 1985, p. 13).
115
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
sua plena efetivação prática (FALCÃO, 1996; CARVALHO, 1995;
RELATORIA, 2004).
Por exemplo, o Estatuto criou o Conselho Tutelar, órgão permanente,
autônomo e não jurisdicional que deve existir em todo município para
zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e voltado para a
aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas, além de atender
e aconselhar os pais e responsáveis. A implantação de tais conselhos
nos municípios, no entanto, tem sido repleta de obstáculos, tanto
organizacionais quanto culturais.
Pesquisas mostram que, por vezes, os conselheiros tutelares ainda
atuam segundo a antiga concepção assistencial e repressiva, sendo que,
quando buscam agir de acordo com as diretrizes do ECA, não dispõem,
por vezes, de programas nos municípios que garantam um atendimento
realmente diferenciado da clientela (LEMOS, 2003)5.
As citadas críticas dirigidas ao ECA desconsideram tais obstáculos e
simplesmente denunciam o suposto caráter por demais liberal do
Estatuto, o que levaria principalmente à impunidade generalizada dos
adolescentes infratores. Tais críticas são sempre acompanhadas por
propostas que defendem a necessidade de que o tema volte a ser tratado
como um problema de segurança pública, com a necessária repressão
policial e a reclusão dos infratores.
Também os meios de comunicação têm dado grande destaque a atos de
violência cometidos por (ou mesmo muitas vezes apenas supostamente
atribuídos a) adolescentes, geralmente pobres, destaque esse seguido
pela defesa da redução da idade penal como principal alternativa frente
ao suposto crescimento da criminalidade juvenil.
Como em outras discussões realizadas no Brasil nos anos recentes, que
envolvem temas relativos à justiça criminal e às políticas de segurança
pública, corre-se o risco de – a partir de um debate pouco qualificado e
repleto de argumentos falaciosos – serem tomadas medidas populistas,
que podem implicar em retrocesso em relação aos avanços que o país
5 Sobre as ambiguidades das medidas socioeducativas propostas pelo ECA, consultar
Paula (2004) e Almeida (2010).
116
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
obteve nos últimos anos no âmbito da expansão da cidadania e da
consolidação da democracia no país.
No caso dos debates em torno do ECA, uma perspectiva histórica, que
recupere como foram formuladas e implementadas legislações e
políticas voltadas para a infância e adolescência pobre ou em conflito
com a lei, pode ajudar a melhor compreender o que está em jogo no
debate atual sobre o tema.
Da Roda dos Expostos ao Código de Menores6
É já no final do século XIX que começa a surgir no Brasil uma
preocupação mais sistemática com o destino da infância e da
adolescência pobre nas grandes metrópoles e com o papel que o Estado
deveria desempenhar com respeito a este setor da população.
Anteriormente, na Colônia e no Império, já existiam iniciativas
institucionais voltadas para amparar as crianças rejeitadas pelas
famílias, chamadas na época de “expostos” ou “enjeitados”, pois eram
geralmente deixadas na “Roda dos Expostos” aparelho de madeira
que garantia a manutenção do segredo da identidade daquele que
abandonava a criança (GONÇALVES, 1987).
As primeiras Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro
por volta de 1700, embora as primeiras referências aos expostos sejam
do século XVII (MESGRAVIS, 1972; GONÇALVES, 1987).
O mecanismo da Roda e os asilos que dela se utilizavam configuravam
um tipo de assistência privada à infância, inspirada na caridade religiosa
e voltada sobretudo para a regulação dos desvios da organização
familiar colonial.
Essa forma de equacionamento institucional do problema da infância
entrará em crise ao longo do século XIX, quando passa a sofrer o ataque
principalmente da medicina higiênica, que então se consolidava no
Brasil. Os higienistas denunciam principalmente as altas taxas de
6 Aqui são reproduzidas ideias originalmente desenvolvidas em Alvarez (1989).
117
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
mortalidade dos enjeitados nas instituições que se serviam das Rodas
(GONÇALVES, 1987).
Paralelamente às críticas levadas a cabo pelo saber médico, as
mudanças nas condições de vida das crianças e adolescentes pobres nos
grandes centros urbanos no final do século XIX colocavam novas
urgências que escapavam totalmente aos objetivos perseguidos pela
assistência caritativa e religiosa.
A abolição, a imigração e o acelerado processo de industrialização
aumentaram significativamente o contingente de crianças e jovens
pobres que se lançavam nas ruas das grandes metrópoles à procura de
atividades que lhes garantissem o sustento próprio ou o de suas famílias.
No trabalho industrial, por exemplo, a utilização da mão de obra infantil
e juvenil é bastante intensa desde o advento da República. Com o
avanço da industrialização, nas décadas seguintes, o emprego dessa
mão-de-obra torna-se generalizado (PINHEIRO, 1981).
Principalmente na indústria têxtil, a mão de obra menor e a mão de obra
feminina cada vez mais ocupam lugar de destaque na composição da
força trabalho industrial (MOURA, 1982), o que não só aumentava o
exército industrial de reserva, mas também representava uma
dificuldade a mais para a organização dos trabalhadores (HARDMAN,
1982).
A imprensa operária passa então a denunciar principalmente a
incompatibilidade entre as terríveis condições de trabalho na indústria
nacional e a natureza ainda frágil e desprotegida da infância (BRAGA,
1993) e a reivindicar a necessidade de o Estado regulamentar as
condições do trabalho infantil.
As prioridades das elites republicanas no mesmo período são, no
entanto, outras. A maior presença de crianças e adolescentes pobres na
cena urbana, além de renovar a preocupação com a necessidade de
assistência aos “abandonados”, traz uma nova preocupação, compatível
com o temor cada vez maior das elites em relação ao crescimento
urbano acelerado – a preocupação referente ao aumento da
criminalidade precoce (ADORNO, 1990).
118
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, as autoridades
republicanas passam a temer não apenas que haja um crescimento da
criminalidade infantil e juvenil, mas também que esse aumento da
delinquência precoce leve a uma progressiva degeneração social.
Em São Paulo, o jurista e senador Paulo Egídio (1842-1906), por
exemplo, que na última década do século XIX irá propor uma ampla
reforma penitenciária, que serviria de base para um projeto mais
ambicioso de reorganização da própria sociedade, coloca como uma das
preocupações centrais referentes à manutenção da ordem social a
questão caracterizada como da “vagabundagem infantil” que poderia
levar à delinquência (EGÍDIO, 1893, p.588).
Por sua vez, Cândido Mota (1870-1942), que desempenhou entre outros
cargos o de delegado na capital paulista no governo Campos Sales,
comparando os dados acerca da criminalidade na capital entre os anos
de 1894 e 1895, manifesta espanto com o grande aumento de “menores”
criminosos.
Preocupado com esta situação, Cândido Mota se empenhará numa
cruzada pela criação de instituições especiais para menores moralmente
abandonados e criminosos, campanha que levou à criação do Instituto
Disciplinar em 1902.
O Instituto foi ampliado em 1906, dentro da campanha de combate à
vadiagem levada a cabo pelo secretário de Justiça, Washington Luiz
(FAUSTO, 1984, p.41) e, em 1915, os resultados alcançados pela
instituição em termos de implantação do ensino profissional para os
menores eram avaliados positivamente pelas autoridades (CRUZ, 1987,
p.126)
Deste modo, na virada do século XIX e início do século XX, vão se
constituindo discursos e práticas que equacionam a situação de vida das
crianças e adolescentes pobres das grandes cidades do país sobretudo
como um problema referente à “defesa social”. A criação de leis e
mecanismos institucionais voltados para esse segmento da população
se colocava como uma urgência devido ao perigo potencial do
crescimento da criminalidade precoce.
119
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
No interior desse discurso, as ações ilícitas de crianças e adolescentes,
ou mesmo a simples presença das crianças pobres nas ruas, apontam
todo o tempo para a ameaça de um crescimento incontrolável da
criminalidade futura, de uma desagregação social progressiva, fruto da
ausência de uma política preventiva voltada para as crianças e jovens
moralmente abandonados. As questões da educação e da
regulamentação do trabalho de crianças e adolescentes, em
contrapartida, são deslocadas para segundo plano.
O discurso dos juristas da época acerca do problema da menoridade
privilegia, portanto, não a extensão do direito à educação para o
conjunto da população pobre, nem a abolição ou regulamentação do
trabalho precoce, mas sim a criação de leis e de instituições
“assistenciais e protetoras” que teriam por objetivo maior impedir o
desenvolvimento da criminalidade.
Consolida-se paulatinamente um novo modelo jurídico de “assistência
e proteção aos menores” e, igualmente, um novo tipo de
institucionalização da infância e da adolescência por parte do Estado
brasileiro.
Uma institucionalização muito mais ampla do que as antigas formas
(como a dos expostos), e que passa a visar todos os menores em estado
ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela
visada para todo o contingente das crianças e adolescentes das classes
pobres e, virtualmente, para todas as crianças e adolescentes da
sociedade.
Uma institucionalização que tem em seu horizonte não apenas assistir
gratuitamente os desafortunados, mas, sobretudo, combater a
delinquência, fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis,
tanto moral como fisicamente.
O Código de Menores de 1927 será a cristalização de todo esse
processo, ao definir principalmente um tratamento jurídico-penal
especial para certos segmentos da população considerados
potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas
disciplinares e moralizadoras.
120
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
Assim, o Código estabelece medidas de proteção e assistência, dirigidas
para uma clientela ampla, formada por crianças e adolescentes que,
devido à ausência ou deficiência dos cuidados dos pais ou responsáveis,
se encontram em estado de abandono moral ou material. Essa clientela
inclui: as “crianças de primeira idade”, que estão fora da casa do pai ou
responsável; os “infantes expostos”, encontrados em estado de
abandono; os “menores abandonados”, quer aqueles que não tenham
habitação certa, sem meios de subsistência ou em estado de vadiagem,
mendicidade ou libertinagem, quer os maltratados pelos pais ou
responsáveis, ou que tenham os mesmos condenados pela justiça ou
incapacitados; os “vadios, mendigos e libertinos”, refratários ao
trabalho ou a educação, ou que exerçam ocupações imorais ou
proibidas, sem domicílio fixo e vagando pelas ruas. Todas as crianças e
adolescentes que se enquadrem em alguma dessas categorias, passam a
ser alvo da tutela do Estado, que assume, através da assistência pública
e do juízo de menores, a proteção da vida, da saúde e da moralidade
desses indivíduos.
Mas é a questão da delinquência que dá unidade às categorias
anteriormente citadas, pois todas trazem em comum a possibilidade do
desenvolvimento do vício e do crime. E frente aos menores
delinquentes, a própria ação penal deve ser, segundo o Código,
profundamente modificada.
O aspecto a ser ressaltado em relação às mudanças definidas pela nova
legislação, no entanto, é que apesar de garantir algumas medidas de
caráter mais assistencialista para a população pobre e regulamentar o
trabalho de crianças e adolescentes, o Código de 1927 não rompia com
a tendência de restrição dos direitos de cidadania para o conjunto da
população. Pelo contrário, o que o Código definia era um tratamento
jurídico-penal especial para certos segmentos da população
considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas
medidas normalizadoras e moralizadoras.
Os desdobramentos posteriores da legislação da menoridade não
deixam dúvida a este respeito pois, quando a questão do trabalho dos
121
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
menores deixou de ser regulada pelo Código, passando à Consolidação
das Leis de Trabalho em 1943 (BRAGA, 1993, p.160), permaneceram
apenas os aspectos relativos ao abandono e à delinquência que, como
foi percebido já nas décadas seguintes, não retiravam os menores do
campo penal7 mas implicavam sobretudo na estigmatização da infância
e juventude pobre, institucionalmente condenada, desde então, à
possibilidade da delinquência.
Muito mais, portanto, que uma lei que garantisse direitos à população
pobre, o Código reuniu principalmente um conjunto de dispositivos
legais a partir dos quais o Estado poderia tutelar as crianças e
adolescentes que potencialmente poderiam se tornar criminosos, ao
garantir, em contrapartida, procedimentos penais especiais, mais
adequados a evitar a impunidade e obter a necessária recuperação moral
desses indivíduos.
O Código de Menores de 1927 se constituiu, portanto, muito mais como
um novo instrumento de defesa social do que como um instrumento de
ampliação efetiva da cidadania.
Considerações Finais
A legislação sobre a menoridade, que esteve em vigência durante
grande parte do século XX no país, configurou-se como um verdadeiro
instrumento de controle social, ao estigmatizar crianças e adolescentes
pobres e ao condená-los ao círculo vicioso que levava do abandono
familiar à delinquência precoce.
E, como já foi afirmado, o Estatuto da Criança e do Adolescente buscou
justamente romper com esse modelo assistencial e repressivo, ao
colocar em primeiro plano os direitos das crianças e dos adolescentes.
7 Ruy Pinho, por exemplo, ao comentar a questão várias décadas depois, afirma que
o Código de 1927, embora tivesse pretendido livrar os menores de qualquer ação
penal, na verdade continuava a tratar a questão em termos de direito penal (PINHO,
1958, p. 11).
122
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
As críticas atuais ao Estatuto desconsideram esse percurso histórico e
também não desenvolvem uma avaliação mais sistemática das políticas
adotadas para a infância e juventude no país nos últimos anos8.
Com relação ao tratamento dado aos jovens em conflito com a lei, corre-
se o risco inclusive de um retrocesso ainda maior pois muitas das atuais
propostas de revisão da legislação defendem um tratamento puramente
punitivo da questão, tratamento este que foi criticado mesmo pelos
juristas reformadores que criaram o antigo modelo assistencial e
repressivo.
Por exemplo, entre 1993 e 2004, foram apresentadas mais de vinte
propostas de emenda constitucional (PECs) propondo a redução da
idade da inimputabilidade penal, sendo que tal idade varia, nestas
propostas, entre os dezesseis e os quatorze anos de idade (CAMPOS,
2005).
Algumas propostas recuperam a própria noção de “discernimento”, já
que, de acordo com os argumentos apresentados, os adolescentes no
mundo contemporâneo teriam plena capacidade de compreender os atos
que cometem. Ora, a noção de discernimento foi questionada pelo
jurista Tobias Barreto já no final do século XIX pois ele considerava
que, em relação aos menores, não se deveria apenas indagar a
responsabilidade ou não do criminoso mas igualmente o meio no qual
estava inserido, além do que tal noção seria juridicamente por demais
arbitrária (BARRETO, 1926).
Foi a partir de tal questionamento que os juristas brasileiros começaram
a discutir a necessidade de uma legislação especial para os “menores”,
discussão esta que culminou com a edição do Código de Menores de
1927. Ao retomar a noção de discernimento, os legisladores
contemporâneos correm, deste modo, o risco de retroceder mais de um
século no que diz respeito à legislação em torno da infância e da
adolescência no país.
8 Como exemplo de pesquisas recentes acerca das políticas voltadas para a infância e
adolescência no Brasil, consultar Oliveira (2004) e Sales (2004).
123
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
Na verdade, valores mais amplos estão em jogo neste debate. Caldeira
(2000) mostra como, a partir do início dos anos 80 do século XX, em
resposta ao processo de democratização do sistema político e da
expansão dos direitos da cidadania no país, alguns grupos começaram
a organizar uma crítica sistemática aos direitos humanos, que passaram
a ser definidos como “privilégios de bandidos”.
Assim, em reposta às diversas iniciativas que buscavam restabelecer o
estado de direito, ao propor, entre outras discussões, o controle dos
abusos policiais e a melhoria das condições de encarceramento dos
presos comuns, os adversários dos direitos humanos passaram a
reivindicar punições mais severas para os criminosos em geral, aí
incluindo também a defesa da pena de morte, das execuções sumárias e
mesmo da tortura como formas de combater o crescimento da violência
na sociedade.
No contexto da transição para a democracia, todo um ideário de
oposição aos direitos humanos emergiu como “resistência à expansão
da democracia para novas dimensões da cultura brasileira, das relações
sociais e da vida cotidiana” (CALDEIRA, 2000, p.375)
Pode-se argumentar que, a partir da promulgação do ECA, esses
mesmos adversários dos direitos humanos elegeram igualmente a nova
legislação como um dos alvos privilegiados de suas críticas. A denúncia
da suposta impunidade, decorrente do Estatuto, passou a ser parte do
repertório de determinados políticos e de setores da imprensa, obtendo
inclusive certo respaldo em setores da sociedade. No entanto, tal
discurso pode simplesmente realimentar o ciclo de violência
institucional a que estão submetidos as crianças e os adolescentes
pobres em nossa sociedade.
Em contrapartida, estudos mais aprofundados sobre as políticas
adotadas para os jovens em conflito com a lei no país, bem como sobre
as trajetórias tanto sociais quanto institucionais desses jovens podem
contribuir para que o debate público sobre tais problemas seja mais
qualificado, evitando-se propostas demagógicas que dificilmente darão
resposta adequada a tais questões.
124
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
A criminalidade contemporânea ganhou novos contornos, com
economias ilegais mais diversificadas e lucrativas que recrutam
crianças e adolescentes em processos ainda pouco estudados no Brasil,
exceto, em parte, em relação ao tráfico de drogas.
Se, numa ponta do espectro social, crianças e adolescentes “de rua”
ocupam um pequeno papel na criminalidade comum, e, na outra, as
infrações e os “desvios” de comportamento dos jovens pertencentes às
classes médias e altas só muito raramente são selecionados pelas
agências de controle social, há então um espaço a ser problematizado.
Trata-se de compreender diferentes aspectos das dinâmicas sociais que
interpelam os adolescentes na atualidade, conformadas pelas atividades
e oportunidades econômicas (legais e ilegais), pelas complexas redes de
sociabilidades que atravessam os vínculos familiares, a vizinhança e a
convivência com agentes do crime (individuais ou coletivos) e pelas
instituições do sistema socioeducativo e da justiça criminal.
Referências
ADORNO, Sérgio. A experiência precoce da punição. In: MARTINS,
José de Souza (org.) O massacre dos inocentes: a criança sem infância
no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1993. pp. 181-208.
ALMEIDA, Bruna Gisi Martins de. A experiência da internação entre
adolescentes: práticas punitivas e rotinas institucionais. Dissertação de
mestrado, FFLCH-USP, 2010.
ALVAREZ, Marcos César. A emergência do Código de Menores de
1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e
proteção aos menores. Mestrado em Sociologia, FFLCH-USP, 1989.
ALVIM, M. R. B. A infância negada: “meninos e meninas de rua” no
Brasil. In BÔAS, G. V., GONÇALVES, M. A. (organizadores) O Brasil
na virada do século: o debate dos Cientistas Sociais. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1995. p.90-99.
ABREU, Sérgio F. Adorno de.; CASTRO, Myrian M. Pugliese de. A
arte de administrar a pobreza: a assistência social institucionalizada em
São Paulo no século XIX. In: TRONCA, Italo A. (org.) Foucault vivo.
Campinas: Pontes, 1987. p.101-109.
125
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
BARRETO, Tobias. Menores e loucos e fundamento do direito de
punir. Rio de Janeiro: Empreza Graphica Editora de Paulo Pongetti &
C., 1926. Obras completas, v.V, Direito. 152p.
BRAGA, A. B. A construção social da infância trabalhadora na
Primeira República. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em
Sociologia), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 1993.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação
e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Ed. 34, 2000.
CAMPOS, Marcelo da Silveira. As propostas de emenda à constituição
e a redução da idade da responsabilidade penal. Monografia de
conclusão de curso. Marília: UNESP, 93 p., 2005.
CARVALHO, I. M. M. (1995) Direitos legais e direitos efetivos:
crianças, adolescentes e cidadania no Brasil. In Revista Brasileira de
Ciências Sociais, ano 10, nº 29, outubro, p.127-142.
FALCÃO, D. (1996) Estatuto do menor é ignorado no país. In Folha
de São Paulo, São Paulo, 18 de outubro. 3o caderno, Cotidiano, p.1-3.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis:
Vozes, 1977. 280p.
GONÇALVES, Margareth de Almeida. Expostos, roda e mulheres: a
lógica da ambiguidade médica-higienista. In: ALMEIDA, Angela
Mendes et al. Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo/UFRJ, 1987. 136p.
HARDMAN, Francisco Foto; LEONARD, Victor. História da
indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. São Paulo:
Global, 1982. 416p.
LEMOS, F. C. S. Práticas de conselheiros tutelares frente à violência
doméstica: proteção e controle. Dissertação e mestrado em Psicologia,
UNESP-Assis, 2003.
MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
(1599?-1884): contribuição ao estudo da assistência social no Brasil.
1972. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.
MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e menores no trabalho
industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis:
Vozes, 1982. 164p.
126
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários ao código de menores. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 1985. 269p.
PAULA, L. Encarceramento de adolescentes: o caso Febem. In.
PAULA, L.; LIMA, R. S. (org.). Segurança pública e violência. São
Paulo: Contexto. p. 31-40, 2006.
OLIVEIRA, R. M. F. C. A irregularidade de uma situação: a política
da infância e da adolescência no Brasil. Doutorado em Sociologia,
FFLCH-USP, 2004.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil, documentos
(1989 a 1930) – II – Condições de trabalho, relações com os
empresários e o Estado. São Paulo: Brasiliense, 1981. 347p.
PINHO, R. R. Criminosos imaturos, menores infratores e menores
abandonados. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1958.
RELATORIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA. A infância e seus
direitos no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.
São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2004.
SALES, M.A. (2004) (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores
como metáfora da violência. Doutorado em Sociologia, FFLCH-USP.