A Vida e Traicao - Luis Cezar de Arauj

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     A VIDA É TRAIÇÃO

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     A Vida é Traição

    CONTOS

    Luiz Cézar de Araújo

    L i v r a r i a D a n ú b i o E d i t o r a  C u r i t i b a , P a r a n á

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    Copyright © Luiz Cézar de Araújo, 2014.

    Editor: 

    Diogo de Almeida Fontana

    Revisão:Fausto Machado Tiemann

    Capa:Peter O´Connor

     Todos os direitos desta edição reservados àLivraria Danúbio Editora Ltda.

     Alameda Prudente de Moraes, 1239, Centro.80430-220. Curitiba-PR

    Proibida toda e qualquer reprodução destaedição por qualquer meio ou forma, seja elaeletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ouqualquer outro meio de reprodução, sempermissão expressa do editor.

    FICHA CATALOGR FICA

     Araújo, Luiz Cézar de. 1981- A vida é traiçãoCuritiba, PR: Livraria Danúbio, 2014.

    ISBN: 978-85-67801-00-11.  Ficção. 2. Contos brasileiros. I. Título.

    CDD –  B869.3

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     AGRADECIMENTOS

    Os recursos para a publicação deste livro foramlevantados com doações privadas por meio definanciamento coletivo.

    O editor e o autor agradecem a todos aqueles quecontribuíram financeiramente, em especial aosnossos grandes mecenas:

     André Alves Ribeiro do Couto André Luiz de Araújo

     André Luiz da Silva NogueiraFábio Pereira

    Francisco EscorsimHermes Rodrigues NeryPedro de Franco

     Tadeu Kangussu

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     À Christiane, minha esposa.

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    “Minha é a vingança, e a recompensa.” Deuteronômio, XXVII, 35

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    SUMÁRIO

    Discórdia 11

     A Vida é Traição 73

    Um Grande Homem 117

    Os Vermes 135

    Um Dândi, um Beletrista 155

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    DISCÓRDIA

    I –  A Profecia de São João Maria

    s crônicas de Discórdia dizem que emtempos remotos por lá passou

    catequizando um tal São João Maria, ummístico, santo ou profeta, cuja figura mudouconforme o tempo e conforme as gentes dacidade. Uns dizem que era um jesuíta espanhol depele morena e cerca de 50 anos de idade, rijo,magro, de barbas brancas. Outros afirmam que era

     velho, de mais de 80 anos, tinha o cabelo e asbarbas nos ombros e falava grego, que fora umbandido e, convertido, saiu a pregar. Outros ainda

    (em menor número, esta a descrição que prevalecenas colônias italianas de Discórdia) defendem queera italiano, que se chamava Lorenzo, tinha olhosazuis e a cara raspada, e que era franciscano.

     Todos, contudo, concordam que São João Mariateria lançado uma maldição, ou feito uma profecia,que seja, qualquer coisa quanto ao futuro. “Ou searrependem, se convertem, e pedem perdão dosseus muitos pecados, ou este local espalhará seus

    erros pelo mundo. Daqui não nascerá senão adiscórdia”. Foi o que anotou o pároco na época,no verso do esboço de um retrato de São JoãoMaria.

    Conta-se que depois de percorrer asfazendas com sua pregação ao arrependimento, oprofeta teria entrado na vila, ido à paróquia erepetido do altar: “Ou se arrependem...”. 

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    Os discordianos mais velhos gostam decontar que ainda meninos viram pessoalmente São

     João Maria, e que correram atrás do jesuíta (ou dogrego, ou do franciscano italiano) dando-lhepiparotes, lançando-lhe palavrões, atiçando-lhe oscachorros, amarrando barbantes nas borlas de suas

     vestes. Os mais novos espantam-se sempre com ashistórias fantásticas que rodeiam a personagem.

    Eis, portanto, que nasce de uma profecia o

    nome da nossa cidadezinha. Dela diremos apenasque era calma, que não era bela nem feia, e ficavano sudoeste do Paraná, na divisa entre GeneralLeocádio e Nova Esperança.

    II - Joaquim Maria de Gusmão

    O herói de nossa história é outro Maria, Joaquim Maria. Nasceu em Alijó, um vilarejo no

    norte de Portugal, em 1959, e imigrou com os paispara o Brasil em 1974, fugindo da Revolução dosCravos. De Santos a família seguiu para Curitibaao encontro de uns parentes; lá montaram umapadaria, na rua Paula Gomes, lá viveram emorreram os parentes e os pais de Joaquim Maria.

    Não falaremos dos amores da juventude enem da impressão que teve o jovem JoaquimMaria ao passear pela primeira vez no calçadão da

    XV de Novembro. Imagine o leitor. Saiba apenasque o rapazola vivera até então num vilarejo(como, aliás, já foi dito), não era feio, e tinhapendores de poeta.

     A mãe costurava e o pai assava pães. Joaquim Maria, filho único, ajudava ambos, comopodia, e à noite estudava Direito.

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    Formado, associou-se a um colega deturma e mudaram-se em 1982 para o interior.Foram para Discórdia. O colega casou-se, saiu dasociedade, da cidade e da nossa história. O Doutor

     Joaquim Maria de Gusmão ficou em Discórdia. Elá estava no ano de 2013, ano em que se passaramos fatos que se vão narrar.

    III - “ J’accuse! ”

    O escritório era ainda o mesmo de hátrinta anos. No centro da cidade, em frente à PraçaCelestial, ao lado da paróquia. Uma casa demadeira antiga, com grandes janelas verdes cujas

     vidraças se abrem com contrapeso.No fundo da velha casa havia um pequeno

    quintal e uma edícula. Em frente, um murinho depedra, cinco degraus em ardósia por meio dos

    quais se alcança da calçada a porta do escritório, eum pedaço de grama descuidada onde estáinstalada a placa em neon: “Doutor Joaquim Mariade Gusmão –  OAB/PR 1.325’’.

    Depois de se desfazer da casa ondemorava (no outro lado da praça) para podercomprar uma vaca e três alqueires de terra nadivisa entre Discórdia e Nova Esperança, era numquartinho improvisado nos fundos do escritório

    que o doutor Gusmão pernoitava às terças-feiras.Os demais dias da semana passava agora em suachácara, que chamava sua “vila”. Neste único diana cidade o velho advogado atendia aos clientes,arrazoava, peticionava, e à noite lecionava nafaculdade da cidade, e era então o professorGusmão. Na simplória faculdade, que ocupava umprédio de dois andares ao lado da paróquia, o

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    professor Gusmão lecionava Filosofia. O encargode dar aulas aceitou um pouco por vocação, umpouco para complementar a renda, outro bocadopor vaidade. Falemos tudo: um pouco tambémpara ter a quem falar, e afastar, assim, a solidão e amelancolia. Responsável por apresentar adisciplina de Sócrates a pobres coitados nos cursosde Serviço Social e Pedagogia, o professorGusmão não se vexava: “Sempre gozei de irrestrita

    liberdade de cátedra”, dizia já na primeira aula aosseus alunos. Era, por assim dizer –  e ele mesmo odizia –  “um libre penseur ”.

    Sempre solteiro, Doutor Gusmão fez a vida jogando empregado contra patrão, militandona seara trabalhista. Tinha agora 55 anos de idade,120 quilos, uma dúzia de inimigos entre os patrõesde Discórdia, um escritório abarrotado de livros,uma fila de desempregados à sua porta nas terças-

    feiras, uma mansarda à beira do lago tambémabarrotada de livros, e nenhuma vontade decontinuar advogando.

    Com o passar dos anos adquiriu a fama dehomem culto, incorruptível, honesto, probo e boagente. Com seus clientes, os trabalhadores pobresde Discórdia, falava a língua do povãonaturalmente; sabia deixá-los à vontade paracontar suas histórias  –   pelas quais e por cujos

    detalhes interessava-se genuinamente, e nãoapenas por dever de ofício. Escrevia como um RuiBarbosa, e sabia portar-se no Tribunal com aelegância de um Thomaz Bastos, só que gordo.Defendia cada operário com a paixão de um Zoladefendendo um Dreyfus. Cada petição sua, pormais banal que fosse a matéria tratada, era umlibelo, um “ j’accuse ” denunciando a exploração do

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    trabalhador humilde submetido às precáriascondições de trabalho naqueles rincões sem lei,nas fábricas, frigoríficos, madeireiras e plantaçõesde erva-mate de Discórdia, General Leocádio eNova Esperança.

    Se o advogado era uma mistura de RuiBarbosa, Thomaz Bastos e Émile Zola, oprofessor era o formulador da Teoria das ChinelasMacias. Expliquemo-la sem demora, “é simples

    como são as grandes verdades, os preceitosfundamentais ao espírito humano”. Depois onosso herói será deixado de lado um pouco  –  arrazoando, lecionando; enfarado, macambúzio  – ,pois terá lugar nesta história o fantástico funeraldo seu Carlinhos e a comoção na cidade quecausou.

    IV - A Teoria das Chinelas Macias

    Se para Schopenhauer a felicidade não ésenão o momento fugaz da ausência deinfelicidade, e se o nosso mestre Machado diziaque “as botas apertadas são uma das maiores

     venturas da terra, porque, fazendo doer os pés,dão azo ao prazer de as descalçar”, o professorGusmão, “indo além e acima”, como dizia,formulou a Teoria das Chinelas Macias.

    Como definiu ele mesmo numa terça-feiraaos seus nove alunos do curso de Serviço Social:

     —   Um avanço, uma superação dopessimismo, a um só tempo, do filósofo alemão edo escritor brasileiro.

    Impávido diante de sonolentas mocinhasdo interior em busca de um “diproma” , falavacomo se discursasse a uma platéia de sábios:

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     —   Ora  —   argumentava  — , se te é dadotirar as botas, voltar a vesti-las é rematada tolice,ou volúpia da melancolia. Vestir as botas apertadase caminhar à beira do rio para lamentar o calo e ocurso d’água, ou é estupidez, coisa de ignaros, ouafetação de poetas, espécie de gente que secompraz no sofrimento.

    E prosseguia, falando sozinho aos seusalunos, queixo inclinado, olhos postos no

    horizonte: —   Eu e Machado concordamos com onosso Bandeira  —   falava assim, com intimidade

     —  que “a vida é agitação feroz e sem finalidade”.Então, se te é dado descalçar as malditas botas  –  há quem diga que só a alguns é dado, só aoseleitos, aos predestinados, não a todos, e que ébom que assim seja... Mas eu dizia, se te é dadoarrancar fora as botas, mete logo no lugar uma

    chinela macia. A água há de correr e o calo há dedoer, quer queiras quer não. Calça a chinela e vaiquieto cuidar do teu jardim, como dizia aquelesátiro narigudo de Ferney.

    E advertia com entusiasmo à sua plateia: —  Faz das chinelas a morada permanente

    do teu espírito!O trecho encerrava a sua filosofia de vida,

    seu credo moral e estético aos 56 anos de idade,

    por isso meteu tanto filósofo e poeta em tãopoucas linhas. Acreditava ter conseguido a grandesíntese, a superação da melancolia humana, e aindapor cima vazada em belo estilo.

    Foi adornando o conceito. E ao que estáali em cima, numa noite fria (de terça-feira, comosabe o leitor), de costumeira sonolência para os

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    alunos mas de especial inspiração para o professorGusmão, acrescentou:

     —  O resto é sombra de árvores alheias.

     V - Ser Ou Não Ser, Eis a Questão!

    Doutor Gusmão estava enfarado, creioque já dissemos. Andava macambúzio, taciturno,melancólico, vagamente desiludido com tudo e

    todos; estava, enfim, tal como o deixamos no fimdo capítulo III. Ultimamente vinha cogitandoseriamente abandonar Discórdia, substabelecer ascausas ainda em andamento a outro advogado,demitir-se da faculdade e meter-se com suaaposentadoria no mato de uma vez por todas, só,na companhia dos seus livros, na sua vila. Até odia em que presenciou o fantástico funeral do seuCarlinhos. Naquele dia teve certeza. O que era

    cogitação passou a resolução. Cismou que devia irembora o quanto antes. A morte do seu Carlinhos comoveu

    Discórdia, entre frêmitos de indignação e pasmo.No dia do acidente, seu Carlinhos

    despediu-se da esposa, dona Carmen, e dos filhos;montou sua bicicleta, dobrou a rua e, como faziatodos dias, parou tomar café da manhã com donaCida, a amante  –   ou segunda esposa, como

    querem alguns, porque era um relacionamento demais de vinte anos, por todos conhecido emDiscórdia. Como de costume, após o café fumouum Hollywood, beijou a segunda esposa, os outrosfilhos (eram três, o maior com quinze, a menorcom três anos) e foi para a fábrica de telhas.

    Seu Carlinhos caiu, ou foi tragado, sugado –  não se sabe e o verbo não importa. Sabe-se, isto

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    sim, que rolou, escorregou, despencou... Nãoimporta; importa que foi pela esteira abaixo unstrês metros e passou entre as enormes rodas deaço da prensa em meio à massa do amianto. E oque saiu no outro lado era uma chapa de quatromilímetros de espessura, amálgama de seuCarlinhos e amianto. Não era mais seu Carlinhos.Era outra coisa, era um anagrama, era um objeto,era qualquer coisa, menos o seu Carlinhos. Hamlet

    nos conta do rei obeso que depois de morto écomido pelo verme, que por sua vez é usado parapescar o peixe que vai alimentar o mendigoesquálido, de modo que este tem então em suabarriga o peixe, o verme e o gordo monarca. SeuCarlinhos, cuja compleição franzina justifica odiminutivo tão carinhoso e tão brasileiro  –   eperdoem falar em diminutivos  – , era agora,misturado ao amianto, telha. Iria decerto cobrir o

    leito de algum casebre, servir de teto quem sabeaos amantes de Discórdia.O Brasil é um país de gente que não se

    espanta, mas o que aconteceu na fábrica deamianto assombrou os discordianos. Não se sabeo que mais comovia o povo: se o modo trágico demorrer ou a destinação final do seu Carlinhos apósa prensa (porque era possível, pela cor, identificarcom precisão em meio aos outros qual o lote do

    seu Carlinhos e, portanto, para a fabricação dequais produtos fora destinado e para que locaisfora vendido). O caso gerou comoção. Os detalhesdo sinistro corriam a cidade, e havia fotos nainternet, feitas pelos próprios operários, ex-colegasdo seu Carlinhos: da esteira, dos enormes rolos deaço manchados de sangue, da pilha de amiantorosa-pálido, estocada em pallets em meio às outras

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    pilhas cinza. Havia imagens de tudo no Facebookdos discordianos, só não havia o cadáver do seuCarlinhos.

    Nas calçadas de Discórdia, as vizinhas velhas gordas patuscas machadianas com varizesainda exclamavam que  –   “Veja você como é a

     vida!” –   num segundo tinham entre elas o seuCarlinhos, vivo e enérgico, pronto a encerrar oturno da manhã e descer ao refeitório após o

    toque da sirene; um segundo depois ninguém maissabia o que era feito daquele homenzinho, excetoque era agora parte de um lote de amianto rosa-pálido.

    Num segundo, seu Carlinhos falava aindacom os colegas: “Que tem hoje pro almoço? ”, umoperário perguntou ao seu Carlinhos um poucoantes do acidente. “Rindo” —  o mesmo operárioque fez a pergunta sobre o almoço assim afirmou

    no inquérito policial que apurou o acidente  — ,“Rindo o tempo todo, até a cabeça,  que foi aúltima parte, sumir na prensa. Seu Carlinhos viroua cabeça pra me responder, estava dependuradoem cima da esteira, no trilho da direita, sem ocinto de segurança... Seu Carlinhos respondeu‘almôndega!’, e rolou, ou foi puxado... Rolou naesteira e passou na prensa, rindo. Antes quequalquer um pudesse fazer alguma coisa, não

    existia mais o seu Carlinhos neste mundo”. Não é de duvidar que, refletindo no triste

    episódio do seu Carlinhos, uma das velhas gordaspatuscas machadianas exclamasse intuitivamentenalguma calçada de Discórdia: “Ser ou não ser, eisa questão! Morrer, dormir; nada mais”. 

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     VI - Uma Unha, um Nariz. Um olho?

     As fotos da prensa ensangüentada e dolote de telhas do seu Carlinhos caíram noFacebook e logo corriam os computadores,celulares e tablets dos discordianos. Nas redessociais um boato varreu Discórdia: segundo secontava  –   com uma mistura de espanto, medo,nojo e compaixão – , o infausto lote de telhas rosa-

    pálido foi parar na “Sua Casa Sua Vida”, loja demateriais de construção do seu Generoso, e dalipara a casa de todo discordiano que comproutelhas no último mês.

     Tudo começou com a dona Cléia (de Valdicléia Soares Silva), que passou a desconfiarque as telhas do seu canil contivessem partes doseu Carlinhos, ou seu Carlinhos todo, emsubstância. Após ouvir o boato, desconfiada,

    Dona Cléia foi conferir as telhas que comproupara o canil. Olha bem, examina de perto, contra aluz, por baixo, por cima... E não tem dúvida: erauma unha! Pelo formato e tamanho, uma unha dededão do pé. Teve espanto, teve medo, teve nojo,teve tudo, só não teve compaixão. Deu um pulopara trás e exclamou: “Tá amarrado! O sangue de

     Jesus tem poder! Te esconjuro, Satanás!”. Astelhas apresentavam aquela singular coloração

    rósea. Fugindo do canil, foi lavar roupa terrificada,trêmula. Não conseguiu trabalhar. Precisavacompartilhar. Puxou o celular, fotografou e postouno Facebook:

    “É uma barbaridade, é um desrespeito,onde já se viu?! As telha que comprei pro canil doBeiçola (era esse o nome do cachorro) vierão  comum pedaço do seu Carlinhos! Vejão ali na foto!!!! É

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    a unha do dedão do pé do seu Carlinhos..... Vouexigir meus direito de consumidora!!! Vou noMinistério do Trabalho se for preciso. EU É QUENÃO QUERO MAIS ESSAS TELHAMALDITA!!!!”

    Em segundos pulularam curtidas,comentários e compartilhamentos. Marilzacompartilhou; Jane, Vera, Elenita também.

    “Crendios tia!!! devolve mesmo”,

    comentou Jeniffer, sua sobrinha.Então era verdade. As telhas do seuCarlinhos estavam mesmo em Discórdia. Alguémobservou que, olhando bem a foto, um pouco àesquerda, num dos veios do amianto tinha umamancha que parecia bem... Um nariz!

    “Com ctza! É o nariz”, comentou alguém. Todos viam um nariz. Nítido, um aquilino

    e visível nariz, exatamente como o do seu

    Carlinhos. “É o nariz do defunto!”, disse um. Ocomentário (do nariz do defunto) em minutosrecebeu 49 curtidas. Todos concordavam: era, sim,o nariz do seu Carlinhos. “Do finado Carlinhos”,fez questão de corrigir dona Cléia. Meia hora e asfotos já passavam de uma centena decompartilhamentos. A timeline de dona Cléia eraum vulcão a expelir suas chamas sobre Discórdia.Dona Cléia refletia o estado do seu perfil: estava a

    ponto de entrar em combustão. “PQP, quantagente comentando, caramba, tô famosa!”. Ospedidos de amizade chegavam de todos os lados.“Se tem o nariz, deve ter por perto o olho, talvezem outra telha, a senhora já olhou?”, perguntouMarilza. 35 curtidas, dezenas de conjecturas,espanto, riso. O telefone de dona Cléia não parava.

     A rádio queria uma entrevista. Numa manhã,

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    Discórdia inteira via e comentava sobre a unha e onariz do seu Carlinhos, presentes nas telhas docanil da dona Cléia. Depois de um dia quetranscorreu como um voluptuoso pesadelo, donaCléia postou:

    “Amanhã vou cedo ao seu Generosodevolver aquelas telha maldita. PQP, é pacabámesmo!!! Exijo meus direito enquanto mulher,mãe, cidadã e consumidora. É PRA ISSO QUE A

    GANTE PAGA TANTO IMPOSTO?!?!?! Quem vem comigo? Formou?”. 213 curtidas, 480comentários, 77 compartilhamentos.

    “Bota  no pau memo tia num dexa kietonão, eu vou com a senhora, vou criar um eventoformou?”. Era Jeniffer falando. 

    Formou. Em uma hora, 123 pessoastinham confirmado presença. Outros donos detelhas do lote 147 (era esse o número do lote,

    alguém já tinha visto na nota fiscal e postado)apareceram: o Jaílson, filho do seu Nestor dePaula Machado, que cobriu o chiqueiro; Sônia, queia aumentar o salão de beleza; a dona RobertaMiranda, que ia reformar a lavanderia. Esta nemtinha desembrulhado as telhas, mas também queriadevolver. Todos marcaram presença para o diaseguinte em frente à “Sua Casa Sua vida”. A Vera,a Eleinta, a Jane, a Dirce, aos poucos as amigas

    iam confirmando presença, e comentando...Mal amanhece e dona Cléia põe-se em pé,

    sobressaltada, confusa após uma noite deinebriantes devaneios. Antes de Lisías (o marido)sair para o trabalho, pede (ou ordena) que o pobrehomem desmonte o canil, embrulhe as “telhamaldita” e coloque sobre o carrinho de mão. Oh!Não! Dona Cléia não tinha coragem de voltar ao

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    canil. Estava atormentada com a possibilidade deencarar os olhos do seu Carlinhos. Enquanto opobre do marido amontava as telhas sem nadaentender, nem perguntar, dona Cléia pôde ver, desoslaio, uns fios... “fios de cabelo do finadoCarlinhos! Que nojo!”.

     VII - O Gigante Acordou

    Formou. Na manhã seguinte, seuGeneroso –  que não tem perfil no Facebook, não vai ao trabalho de bicicleta e muito menos tomacafé na casa da amante  –   estranhou amovimentação em frente ao material deconstrução. Antes de a loja abrir já havia umtumulto na Rua do Divino.

     —  Não troco. É telha boa, vocês tão tudodoido! —  ralhava o velho.

    Seu Generoso, alemão de cara larga eavermelhada, tímido e um pouco covarde, masmuito trabalhador, estava irredutível. Tinha barbaamarela e um cabelo ensebado.

    Dona Cléia, assumindo naturalmente aliderança dos proprietários de telhas que seaglomeravam em frente à porta (porque, afinal, foido seu Facebook que partiu a idéia da devoluçãodas telhas), era a mais exaltada:

     —  Então eu deixo essas porcaria de telhaaqui. Pra casa é que eu não levo! E vou aoMinistério da Justiça procurar meus direitoshumano de consumidora!

    O alemão ouvia tudo quieto, ora com obraço cruzado, ora mexendo-se daqui e dali/pra lá,espanando, anotando, remarcando, como que adizer “olha quanta coisa eu tenho que fazer, a

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    senhora está louca?”. Por um momento ocomerciante teve a impressão de que uns sujeitosaproveitavam o tumulto e embolsavam algumacoisa nos fundos, na prateleira de material elétrico.Pensou: “Essa mulher está descontrolada, queabsurdo é esse, unhas, nariz... Estão me roubando,estão me roubando... o corredor do materialelétrico... Estão me roubando no corredor domaterial elétrico. As arandelas!, as

    arandelas!Levam-me uma delas e levam-me o lucrode um mês!Vagabundos! Meu Deus, asarandelas!..”. Toda essa agitação passou por suacabeça num segundo, naturalmente. Contornandoo balcão, foi ao corredor das arandelas, semdescuidar o olho do caixa. Surpreendidos, doisrapazes saíram esgueirando-se. “Vagabundos, meroubaram, as arandelas estão aqui, mas algumacoisa me roubaram. Malditos, miseráveis, gentalha,

     vagabundos.” Retornando à dona Cléia, seu Generosoensaiava uma reposta que pusesse fim àquelaalgazarra absurda. A energia que tinha ao sair docorredor das arandelas, contudo, deixou-o pelocaminho. Vacilando, o pobre homem apenasgaguejou:

     —  É telha boa, dona, dona, dona.... —  Cléia!

     —  Dona Cléia. É telha boa... Tô cheio decoisa pra fazer, a senhora faça o favor...

    Falatório, vozerio. A singela frasezinhaescandida com dificuldade por seu Generoso foiesmaecendo até sumir em meio ao frêmitogeneralizado. Dona Ivonete, a quem se voltavamas atenções, contava que nas suas telhas havia nãoapenas uma unha, mas a mão inteira.

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     —  A mão inteira! —  No duro? —  No duro! A mão direita.Histeria, gritinhos, caras de nojo,

    persignações. Dona Ivonete contava que ficou tãoassustada que queimou tudo. Agora queria odinheiro de volta.

     —  Mas é bem capaz mesmo, bem capaz!Olha, a senhora me faça o favor, é telha boa!

     Vendo resistida a pretensão de sua tia, Jeniffer iniciou um apitaço. Alguém, sacando deum telefone, gritou do fundo:

     —  Peraí que eu já sei quem pode ajudar agente! O nosso vereador Leitão Silva! Peraí que euto ligando pra ele.

    O vereador atendeu, e assim entrou emnossa história.

    Quando quem ligou disse “o vereador

    atendeu!”, todos calaram, e imediatamentecomeçaram a pedir silêncio: “O vereadoratendeu!”, “sssshhhh”, “sssshhhh”, “O vereadoratendeu!”. Dona Cléia quis falar, naturalmente.

     —  Passa pra mim, passa pra mim que eunegocio. Dá aqui. Brigado, filho. Pede pra ficarquieto aí, agora. Jeniffer, pára!

    Enquanto dona Cléia iniciava a conversacom o vereador Leitão Silva, seu Generoso pedia

    licença, quase pedindo perdão, e ia encaminhandoum a um à porta, aproveitando-se do silêncio.

    Dona Cléia ouve atenta, grave. Concorda,balança a cabeça, vai até a porta, acende umcigarro, morde os beiços, replica ao vereador que“isso é um absurdo”, concorda, discorda, exclamae gesticula. Voltando-se para o interior da loja,encara seu Generoso com os olhinhos

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    semicerrados. Agradece e passa o telefone para seuGeneroso, a pedido do vereador. O alemão ouvetudo sem mudar de expressão. Silêncio, tensão,expectativa. Dona Cléia já cochicha algo comDirce e Marilza. Com um meneio de cabeça, seuGeneroso devolve o telefone para dona Cléia, queouve, ouve novamente –  atenta, calada.

     —   Gente! Gente!  —   esganiça dona Cléiadirigindo-se ao meio-fio, com o telefone na mão,

    para falar também aos que estavam do outro ladoda rua.  —   Seu Generoso varria a porta, pedindolicença.

     —   Olha só, gente. Estou falando com onosso vereador... Presta atenção aqui, gente! Vaiter uma reunião na Câmara pra discutir a questão!Ninguém vai sair perdendo. É pra levar   as telha  tudo pra prefeitura. O vereador tá mandando umcarro buscar. E tem mais coisa, gente. Essa parte é

    muito importante, ouve aqui! Ei, vem cá! Ei,achama o pessoal que tá lá no bar!Dona Cléia ia em direção à

    rua,conclamando: “Gente, ouve aqui!”. Podendo ouvir a algazarra, o falatório e os

    apitos, Leitão Silva quis saber quantos eram. DonaCléia mentiu: “Uns 150”. Eram uns quinze. O

     vereador perguntou, então, se o povo estava narua ou se havia invadido a loja. Dona Cléia,que

    não sabia se era melhor dizer sim ou não, nadúvida disse a verdade: “Invadimo... entramo...”.“Mas teve briga?”, perguntou o curioso vereador.“Não, não! Que é isso, Dr. Leitão?!”, respondeu a

     vacilante líder popular. Intuindo, no entanto, quetalvez fosse bom que houvesse ocorrido briga,Dona Cléia completou: “Se bem que teve uma

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    hora, Dr. Leitão, que eu quase parti a cara daquelealemão safado.”

    Para Dona Cléia o vereador Leitão Silvadisse que isso era realmente um “absurdo”, “umcrime”, “um desrespeito com o seu Carlinhos ecom o cidadão discordiano, que ele não iriatolerar”, e que tão grave questão precisaria serdebatida em audiência pública. Pediu que ela seacalmasse, que ele “daria um jeito e tudo ia se

    resolver”, e que “ninguém sairia perdendo”. A seu Generoso, Leitão Silva ponderouque se acalmasse, que isso era coisa da cabeça dopovo, que ele ia dar um jeito, que seu Generosonão ia sair no prejuízo, “muito pelo contrário”.

     Voltando à dona Cléia (naquela hora emque ela ouviu calada, séria, acendeu o cigarro e

     voltou-se para o interior da loja e encarou seuGeneroso com os olhinhos semicerrados), Leitão

    Silva disse, após pedir “muita atenção”:  —   Todo poder pertence ao povo, donaCléia, e a senhora é o povo, a senhora representa opovo. Eu sou o amigo do povo, eu sou o povo.Eu represento a senhora, eu represento o povo, eurepresento o povo de Discórdia no Parlamento.Precisamos ouvir a voz rouca das ruas, dona Cléia,a sua voz. Sim, eu fiquei sabendo do ocorrido peloseu perfil no Facebook —  Nessa hora Leitão Silva

    consultava o perfil da dona Cléia. —  Acabo de lhe enviar uma solicitação de

    amizade. A senhora não pensa em fazer umhangout comigo?

     Atordoada, dona Cléia fumava, ouvia,concordava...

     —   Precisamos, dona Cléia, de maispessoas como a senhora, pra mudar tudo isso que

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    está aí há quinhentos anos. Precisamos de maisparticipação popular nas decisões, dona Cléia, e asenhora pode me ajudar. Por exemplo, essaquestão do seu Carlinhos. Isso é um absurdo, umcrime com o cidadão discordiano que eu não voutolerar. Eu estou vendo a comoção que isso estácausando. Para resolver essa questão do seuCarlinhos, precisamos de uma audiência popular,uma audiência pública, um debate amplo, plural,

    democrático. Precisamos da senhora, dona Cléia.Os que estavam do outro lado da rua vieram ao encontro de dona Cléia, que faziaquestão de chamar a todos, um por um. Pedindosilêncio, dona Cléia continuou relatando aconversa:

     —  Gente, se acalma, acabei de falar aqui.O vereador vai me ligar. Quando eu souber a datada reunião eu posto no Face. E o senhor, seu

    Generoso  —  voltando-se, falava com o dedo emriste para o alemão, que estava na porta, espiando — , o senhor se liga!

     —   Fica de boa ,  véio, que sua hora vaichegar! —  completou Jeniffer.

     Tivesse essa insólita conversa telefônicatratado apenas do imbróglio das telhas, ninguémsairia perdendo e iríamos já à Audiência Pública,que de fato se realizou, e ao fantástico funeral do

    seu Carlinhos. Mas não. Estávamos em junho. Junho de 2013. Já há alguns dias havia comoção nacidade com a história do seu Carlinhos; naquelamanhã, havia revolta e histeria na Rua do Divino.

     Assim foi, pois, que durante a conversacom dona Cléia, ouvindo o apitaço de Jeniffer e ofalatório do povo, e inspirado por eflúvios que porseus frutos decerto irromperam das profundezas

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    infernais, Leitão Silva viu a oportunidade. “Ogrande salto para a frente”, como definiu oprofessor Lucinho, seu colega na Câmara de

     Vereadores.Deixemos que Dona Cléia vá repassando

    ao povo as instruções que recebeu de Leitão Silva,e o leitor que ouça junto.

     —   Gente! Gente!  —   esganiçando,engasgou com a fumaça do cigarro.  —   “Gente!”

     —   tosse  —  Olha só, falei com o nosso vereador.Presta atenção aqui, gente! —  tosse —  É pra levaras telhas pra prefeitura, eles vão vir buscar!

     —   Isso nós já sabemos, dona Cléia!  —  gritou um.

    Com os olhos vermelhos, dona Cléia dáuma forte tossida, limpa os pulmões e escarra nochão. E prossegue:

     —   Se acalma, gente, tem notícia boa! As

    telha   maldita, o vereador tá mandando umasKombi do sindicato buscar. Outra coisa! O vereador disse que é muito importante essa parte...Escuta aqui, cambada! Ô! Pede pra ficar quieto láno fundo. Jeniffer! Faz favor, minha filha, pedepro sujeito do apito aí engolir essa merda! Páracom esse apito, aí! Gente! É pra aguardar aqui! —  (ofegante). Todo mundo, é pra todo mundoesperar aqui! Dr. Leitão disse que pra resolver essa

    questão dessas telhas malditas é preciso umareunião na Câmara. Sem a reunião da Câmara, nãotem como resolver. Pra ter reunião, ouve bem, épreciso incluir isso nas nossas reivindicação, foiassim que o dr. Tonico falou. Vai ter passeata dereivindicação  de direito! Escuta essa, cambada!Prafortalecer o movimento, o vereador tá mandandooutros companheiros, lanche... E uma ajudinha da

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    diária. Cinqüenta reais por cabeça, cambada! DonaCléia tosse, cospe e manda Jeniffer comprar umaCoca e uma carteira de cigarros no outro lado darua. “Hoje eu vou fumar Carlton”, pensa donaCléia.

    Sorrisos, vivas, dentes podres emprofusão; gordas de sutiã à mostra, combochechas lustrosas de bolsa-família, riam aospulinhos, sacolejando pelancas. Animado, o

    poviléu aplaudiu a ajudinha.Uns sentaram no meio-fio, tampando osol com as mãos ou com bonés. Teve um quebuscou abrigo sob o toldo da “Sua Casa Sua Vida”e, sob o olhar desconfiado de seu Generoso,sentou gostosamente sobre os calcanhares.Disparando uma cusparada de esguicho, apanhoua palha e o fumo e pensou: “É... Cinquentão... Tábão!”. Outros foram para o bar em frente jogar

    sinuca. As gordas patuscas dos tempos do bolsa-família formavam rodinhas: —  Viu a novela ontem? Que será que dá

    hoje? —  Tira uma foto nossa e posta lá no Face. —  O que será que vamo ter que fazer? Será

    que vai ter que entregar panfleto? —  Tirou? Postou? Vô curtir.Em menos de meia hora apontavam na

    Rua do Divino duas Kombis brancas do Partido,em cujas portas lia-se em vermelho o slogan:“Leitão Silva, o Amigo do Povo”. Dos carrosdesceram militantes paramentados com bonés,bandeiras, megafone, cartazes, apitos.

    O assessor do vereador conversourapidamente com alguns. Mandou chamar os queestavam no bar e burocraticamente fez correr uma

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    lista de presença, pedindo para dona Cléiaanunciar o início de uma assembléia popular, queseria realizada ali mesmo, naquela hora. Aquelenosso amigo da cusparada de esguicho assinou alista, voltou para baixo do toldo e sentou sobre oscalcanhares.

    Panfletos com explicação da pauta eramdistribuídos, junto com um vale, que seria trocadoao fim do dia por dinheiro.

    O médico do posto de saúde, Dr. JorgeHierrezuelo de La Caridad Urquiola, numportunhol agradável, carinhoso, íntimo como obom médico da família, secretariava os trabalhos econduzia os debates.

     A tarde seria de acaloradas e unânimesdiscussões. Desde o preço da tarifa do ônibus atéo lucro dos bancos e a precariedade do sistema desaúde de Discórdia etc., muito haveria de ser

    debatido naquele dia. Houve moções, houvedeclarações de repúdio e de apoio, houveapresentação de teses e antíteses, deliberações e

     votações.O povo... O povo estava no bar tomando

    cachaça, estava sob o toldo sentado noscalcanhares, ou no meio-fio tapando o sol com oboné. Quem debatia, ensaiava, organizava,aprovava resoluções e moções, pintava faixas e

    ajustava o som, estes eram os que chegaram deKombi, e que desembarcando deram lugar àstelhas.

    Deixemos o povo e os militantes. Nãoenfastiemos o leitor. Para cá tornaremos somenteao fim do dia, quando partirão todos rumo à sededa prefeitura.

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    que naqueles dias passava por Discórdia. Agora, velhos e decadentes, feios e quase senis, Gil e Gaêprotestavam em Discórdia, um na perna de pau, ooutro com a macaca Bianca no colo. “A gentequer cultura, diversão e arte”, “Stop War”. 

    Havia também um trio de anões (umdeles de mão peluda), os “Homenzinhos-bala”. Ostrês também se juntaram à massa, tomando afrente da passeata correndinho e serelepes para

    distribuir ao povo os panfletos. Vieram também os estudantes. Comofosse fim de tarde, ao sinistro cortejo/séquitojuntaram-se os alunos secundaristas que naquelahora deixavam a escola, e de outro lado osuniversitários, que iam à faculdade. Alegrescompanheiros de viagem seguiam cantando etuitando hashtags. Os jovens apresentavam-se nasredes sociais: “Somos o futuro da nação”, diziam

    uns; “Somos a praga que o sistema criou”,proclamavam outros; “É nóis”, um terceiro.Conclamavam pela internet: “Vem pra rua”,convidava uma; “Acorda Discórdia”, rimava outro.

    Os discordianos foram. Até as vizinhas velhas gordas patuscas saíam às calçadas ver aturba passar. Os comerciantes aplaudiam, comsúbito entusiasmo.

     Já mais densa e barulhenta, a massaavançava.

    No alto-falante as palavras de ordem eramentrecortadas por canções de Mercedes Sosa. Aoredor dos carros de som continuava a distribuiçãode panfletos e bonés; as faixas eram pintadas ali,na hora, numa espécie de transe cívico, um furorde direitos e de reivindicações e alegria. “Outro

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    mundo é possível!”,  gritou alguém no microfone.Sobraram alguns donos de telhas (lembra-se dastelhas ainda a leitora?), um ou outro, e dona Cléia.Balançando sobre todos ia o Mano Gaê em suaperna de pau. Com Bianca no ombro ia Gil,malemolente, segurando sua cartolinadisplicentemente com uma das mãos e coçando acabecinha da macaca com a outra.

     As calçadas aos poucos foram se tornando

    pequenas e a vanguarda (desde estudantes de 14anos até os nossos velhos palhaços) invadiu a rua,bloqueando o tráfego na principal via deDiscórdia. O trânsito foi interrompido. Houvebuzinaço, e os motociclistas faziam o retorno porsobre as calçadas. Os manifestantes seguiam suamarcha empunhando faixas com variedade infinitade reivindicações e protestos. Jeniffer carregavauma em que se lia “Não são só as telhas” . Lá do

    alto, Palhaço Gaetano continuava a gritar aomundo: “A gente não quer só comida...”. À frenteia o trio de homenzinhos, entregando os panfletos.

    Quando a turba se aproximava da praça,surgiram simultânea e espontaneamente, de todosos lados, indivíduos mascarados trajando preto.Formando rapidamente um bloco, avançaram comferocidade e precisão, destruindo com método e

     violência nunca vista em Discórdia tudo o que

    havia pela frente. Artefatos incendiários eramlançados de um lado para o outro, bolas de fogocortavam o céu de Discórdia. Explosões, gritos.Com a mesma rapidez com que se formou ogrupo se desfez, cada um correndo numa direção,com urros bestiais. Instaurou-se o caos na praça.Dona Cléia, atordoada, gritava "gente!, gente!”,mas não conseguia mais controlar os seus radicais.

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    Bianca pulava no meio do povo, voltava ao colode Gil, descia, trançava entre as pernas de Gil,

     voltava no colo de Gil, levava as mãos à cabeça (amacaca, à cabeça de Gil), descia de novo,abalroava as portas metálicas das lojas emguinchos de macaca desesperada. Após o primeiroataque dos manifestantes de preto, oscomerciantes pararam de aplaudir e apressaram-seem baixar as portas das lojas.

     A desordem adentrou a noite, sem darsinais de arrefecer. Mais de uma vez os taismanifestantes mascarados tornariam a reunir-se,destruir e evanescer. Uma carroça foi tombada eincendiada. A farmácia da dona Salete, saqueada.Nunca se vira nada igual em Discórdia, umacidade até então pacífica.

    Palhaço Gaetano, não obstante um velhote de 71 anos, agitava-se em fúria,

    debatendo-se contra um orelhão. Numa espécie deato simbólico de apoio aos “manos mascarados”,como chamou, o velho palhaço vestiu umamáscara preta, deixando à vista somente os olhosmuito enrugados a encimar o enorme nariz

     vermelho. No auge do tumulto, com sua máscarapreta e seu nariz vermelho, com suas roupas largasde cetim bordadas com lantejoula, o ensandecidoPalhaço Gaetano estilhaçava a vidraça da farmácia

    da dona Salete com sua perna de pau.Único policial da cidade cumprindo

    plantão naquele dia, o gordo Leônidas, filho daconfeiteira Zulmira, foi espancado e morreu.Pode-se dizer, sem medo de falhar na precisão,que naquele dia a cidade foi desmilitarizada.

     A repórter da rádio local, identificadapelos manifestantes mascarados como

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    representante da mídia golpista, teve que fugir paranão ser linchada. Conseguiu gravar duasentrevistas: uma com dona Cléia e outra com oPalhaço Gaetano.

    Dona Cléia, fumando e tossindo, disse: —   A manifestação é pacífica, minha

    filha! —   Falava pegando no cotovelo da repórter;depois pegou na pontinha da orelha.  — Sóqueremos nossos direitos enquanto cidadãos.

    Estamos exercendo a nossa cidadania. O poderpertence ao povo. Eu sou o povo, você é o povo. Vivemos numa democracia. Precisamos de umdebate amplo e plural. Os vândalos são umaminoria de extrema direita infiltrada nomovimento. E quero as minhas telhas de novo,sem o seu Carlinhos. Quem quiser adicionar noFace, manda uma mensagem.

    Para conceder sua entrevista, palhaço

    Gaetano tirou a máscara preta, mas não o nariz.De tanto uso, já estava pegado à cara do palhaço. —   Sou apenas um velho palhaço, porém

    não pude deixar de aderir. Não deu tempo derefletir. Primeiro aderi, depois vou refletir. É umacoisa linda, sabe? Novas formas de ser, de não sere de saber. Os manos mascarados, esses meninoslindos, fazem parte. Capilé faz parte. Cada umsabe a dor e a delícia de ser o que é. De ser Capilé.

     Toda maneira de protestar vale a pena, querida.Meu coração não se cansa de ter esperança de umdia ser tudo o que quer. Meu zen, meu bem, meumal, de perto ninguém é normal. Não sou branconem sou homem. Meu pai era mulato e minhasavós não casaram. Sei de diversas harmoniasbonitas possíveis sem juízo final. Discórdia éminha mátria, e o que eu quero é frátria. Quando a

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    gente gosta, é claro que a gente cuida. Da próxima vez, como forma de protesto, além da máscara, donariz e da perna de pau, virei com uma sunga dejérsei azul-rei, da marca Blue Man, com etiqueta naparte interna e um bordado da marca no ladoesquerdo do peito. Osama Bin Laden era umhomem bonito. Ah, bruta flor do querer! Ah,bruta flor, bruta flor. Drão, drão. Odara! Ou não.

    No dia seguinte, as imagens dos protestos

    em Discórdia, gravadas pelos celulares dosdiscordianos, foram ao ar na edição da noite dojornal, transmitido para todo o Paraná. O estadotodo assistiu estupefato à depredação do prédio daprefeitura, à carroça queimando e à farmácia dedona Salete invadida por proto-guerrilheirosmascarados.

     As entrevistas repercutiram nas rádiosnacionais. No espaço de dois dias, houve artigos

    nos maiores jornais do país. Era o povo, eram osartistas, era o país acordando. Palhaço Gaê foisaudado num suplemento literário como o novopoeta pop do Brasil. O áudio da sua entrevistatornou-se um viral. Sua foto e suas frases rodavamo país em forma de meme. Palhaços de todo o paístiravam fotos com o nariz vermelho e a máscarapreta, estampando nelas as frases de PalhaçoGaetano.

    Estimulados pelos acontecimentos deDiscórdia, estudantes secundaristas e universitáriosde Curitiba, insuflados e liderados peloMovimento Boca Livre  –  MBL, foram às ruas dacapital. Como as manifestações dos paranaensestivessem grande repercussão após reportagem do

     Jornal Nacional, em uma semana o país inteiroprotestava. Em São Paulo a manifestação iniciou

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    pacífica, mas houve guerra de guerrilha. No Rio,os protestos reuniram mais de quinhentas milpessoas; a manifestação iniciou pacífica e houveguerra de guerrilha. Em Brasília houve guerra deguerrilha e invasão do Congresso Nacional. Umparlamentar que tentava negociar a pacificação foilinchado e dependurado de cabeça para baixo noPlenário do Congresso.Nu, mutilado e reduzido aum torso disforme, a turba em fúria o arrastou

    pela Praça dos Três Poderes, onde foiabandonado. Era o povo, eram os palhaços, eramos anões, eram os estudantes.

    Há quem veja nesses acontecimentos aprofecia de São João Maria: “Espalhará teusmuitos erros pelo mundo...”. 

    IX - Um Capítulo Para a Câmara de Vereadores

     Além de Leitão Silva, eram estes os vereadores de Discórdia. Vai aleatoriamente, aunidade dê o leitor depois. Alguma há de ter.

    Negão Negueba, ex-jogador de futebolamador, borracheiro, 44, crioulão de ventas largas,eleito por uma espécie de voto de protesto dosdiscordianos; Pastor Elísio Nunes, 40, radialista eneopentecostal; João Brás, algo em torno de 60,

    bêbado, falante, amigos dos taxistas, dasdomésticas, dos vaqueiros, dos feirantes e quantosquiserem nele um amigo, legislador de muitaslegislaturas; Professor Lucinho Frouxo, 33,“socialista bolivariano, revolucionário do séculoXXI, historiador e poeta nas horas vagas”,professor de história na rede municipal de ensino emembro do sindicato dos professores, aliado

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    incondicional de Leitão Silva, cabo eleitoralaguerrido do prefeito Juquinha  –   um happy few  ,enfim; Lobo Neves, 53, líder do governo naCâmara, “nem de direita nem de esquerda, queisso são conceitos ultrapassados”, elegante políticoprofissional e apreciador de superlativos; Lalau,60, gari.

    Se não pôde o leitor atinar com oconjunto, mandemos todos de embrulho a

     Aristóteles, e que o grego resolva esta.X - Cremação!

     —   Declaro aberta esta sessão solene.Passo a palavra ao autor da proposição, o vereadorLeitão Silva.

     Assim foi iniciada a sessão convocada para

    apaziguar os ânimos entre os proprietários detelhas do lote de seu Carlinhos, pois que após todaaquela destruição, alguma reunião era preciso.

    Enxugando o suor da testa com um lenço,que depois de dobrar voltou a guardar no bolso dopaletó, Leitão Silva iniciou:

     —   Senhor presidente, nobres vereadores,meus concidadãos, meus amigos proprietários detelhas do lote 147. Minha proposta é simples e já

    está alinhavada com o líder do governo e com oprefeito: a prefeitura se encarregará de comprartelhas novas. Simples assim. Ganha a fábrica, queproduz telhas novas; ganha o senhor Generoso,que vende telhas pela segunda vez aos mesmosclientes; ganham os proprietários de telha do lotedo seu Carlinhos, que recebem telhas novas; ganhao Estado, que recebe os tributos pela segunda vez;

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    e ninguém perde, que afinal o dinheiro é daprefeitura, ou seja, de todos nós ou de ninguém, adepender do ângulo de que se olhe.

    Ninguém se opôs. A proposta pareceumesmo genial, pois que agradava a todo mundo,sem descontentar ninguém. Proposição aprovada.

     Todos satisfeitos. Restava decidir o que fazer comseu Carlinhos, que há uma semana dormitavaestocado nos fundos do estacionamento da

    prefeitura. —  Cremação!  —  propôs o vereador JoãoBraz, que tinha por hábito comparecer às sessõesbêbado.

    Sem saber como agir diante de tãometafísica questão, a mesa diretora consultou opadre  –   “que está aqui para isso mesmo”, comolembrou alguém. Padre Leopoldino foraconvidado e, envaidecido, compareceu.

    Compunha a mesa ao lado das esposas do seuCarlinhos e de dona Cléia, representante dosproprietários de telha. Seu Generoso foiconvidado, mas não foi nem respondeu; não sesabe se ficou envaidecido.

    Levantando, com um olhar benevolente ea expressão piedosa e superior de que são tomadosos religiosos quando se dirigem aos leigos, o padreLeopoldino Bonotto tomou o microfone com as

    pontas dos dedos. —   Boa tarde, amados irmãos de

    Discórdia, a paz do Senhor esteja convosco. Agradeço ao vereador Leitão Silva pelo amávelconvite, e espero poder humildemente contribuirao debate. Pois bem —  fez uma pausa e pigarreou.

     —   Seu Carlinhos era católico, como todos emDiscórdia sabem. Homem muito devoto, podia ser

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     visto sempre aos domingos com suas famílias namissa. O corpo do seu Carlinhos, ainda que agora,após o trágico acidente, esteja revestido de outraforma —  ao ouvir essas palavras, dona Cléia fez osinal da cruz  —   merece o mesmo respeito, amesma caridade. Louvável, portanto, apreocupação dos senhores. Nada há no magistérioda Igreja que obste a cremação. Ao contrário, onúmero 2301 do Catecismo expressamente a

    autoriza àqueles que, como seu Carlinhos e suasfamílias, acreditam na ressurreição dos mortos.Podem, pois, cremar o seu Carlinhos.

     —  Mas cremar onde, se em Discórdia nãotem crematório?  —   ponderou o professorLucinho Frouxo.

     —   Pela ordem, professor Lucinho  —  aparteou o líder do governo.

     —  Pois não, nobre vereador Lobo Neves.

     —   De fato, de fato, Discórdia não contaainda com um crematório  —   interveioprontamente Lobo Neves, o líder do governo naCâmara e apreciador dos superlativos.  —  É culpado descaso das gestões anteriores, mas já temos oprojeto para a construção de um belíssimo. Todoem mármore negro, negríssimo.

    E prosseguiu: —  Como os senhores devem ter notado, a

    prefeitura este ano preparou uma festa de São Joãocomo nunca antes na história de Discórdia! A piramede cinco metros de altura, foi construída poruma empresa de engenharia especializadíssima naconstrução de fogueiras de São João, contratadaapós rigorosíssimo processo licitatório.

     Aproveitemo-la! Os discordianos e seu Carlinhosmerecem!

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    Ninguém se opôs. Aprovado.E assim foi que decidiram os discordianos

    pela cremação das telhas do seu Carlinhos na pirade São João, na praça, no domingo após a missa.

     A divisão de cerimonial do gabinete do prefeitocuidaria dos detalhes do evento.

    Chegado o dia e, como em geral ocorrenas cidades pequenas, em Discórdia o Rito dasExéquias começava na casa do morto. Mas seu

    Carlinhos não estava em casa, como sabemos;estava no pátio da prefeitura. Após a missa, todosforam convidados pelo padre a atravessar a rua ecomparecer à “homenagem póstuma a tão queridofilho da nossa Discórdia”, que se iniciaria com umdiscurso do prefeito no pátio da prefeitura, ondeestavam “os restos mortais do nosso q ueridoCarlinhos”, como disse o padre Leopoldino aofazer o convite.

     Às 19h15 em ponto, feito o discurso porLeitão Silva (representando o prefeito Juquinha,que não pôde comparecer), foi o seu Carlinhosconduzido em caminhão da prefeitura até a praça,envolto agora em mortalha branca, seguido pelocortejo. À frente da procissão, o padre Leopoldinopuxava o Salmo 116: “O coro dos anjos te recebae acolha no seio de Abraão...”. 

    Chegando à praça, seu Carlinhos foi

    descarregado e depositado no alto da pira. PadreLeopoldino abençoou a enorme pilha de lenha.Um Pai-Nosso e uma Ave-Maria foram rezados.

     Assentindo com a cabeça a uma funcionária docerimonial que lhe perguntava se podiam acendera fogueira, o padre encerrou o seu ofício: “Dai-lhe,Senhor, o repouso eterno”. Uma outra vozrespondeu: “E brilhe para ele a vossa luz”. 

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    Das caixas de som irrompeu o Bolero deRavel (cousas do cerimonial da prefeitura) e seuCarlinhos crepitou na fogueira de São João,exalando uma espessa fumaça preta de forte odor,que subia da pira enegrecendo o fim de tarde naPraça Celestial, esse Campo de Marte dosdiscordianos. Balões brancos foram desatados esubiram ao céu (também cousas adrede preparadaspelo zeloso cerimonial da prefeitura).

     As esposas, emocionadas, choravamabraçadas. Dona Cléia puxou com veemência umaplauso, no que foi seguida por muitos dospresentes. E o Bolero continuava, crescendo,crescendo, como iria continuar por longos, longosminutos enquanto os balões brancos subiam,subiam lentamente, uns ainda atados a outros, unssubindo sós, uns mais rápidos, outros maislentamente, e o Bolero, e os balões brancos

    subindo, subindo até tornarem-se não mais do queminúsculos pontinhos brancos em meio à fumaça,confundindo-se esta com as nuvens, e os balõescom as estrelas.

    Depois de algum silêncio, a dispersão. Ardia a fogueira, começava a festa junina. Nuncase vira em Discórdia, nem mais se veria, uma festade São João como aquela.

    Foi da varanda do palácio do padre

    Leopoldino, num fim de tarde de domingo,fumando e tomando café em companhia do reitorEnéias (que também fumava, com piteiras, paranão manchar a barba), que o doutor Gusmão,excepcionalmente na cidade naquele domingo,ouviu o Bolero de Ravel e assistiu à espetacularincineração do seu Carlinhos na pira de São João.

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    No dia da Revolta das Telhas (que foinuma segunda-feira, uma semana antes da

     Audiência Pública) o doutor Gusmão estivera emsua vila. Enquanto em Discórdia o povo marchavana rua, na chácara o nosso causídico tomava seubanho de cachoeira; enquanto o crânio do GordoLeônidas era macetado contra o meio-fio, doutorGusmão tinha em mãos o leme do seu barquinho;na exata hora das entrevistas de dona Cléia e

    Palhaço Gaetano, o nosso herói lecionava aospássaros, ou falava sozinho, singrando o lago.Enquanto os anõezinhos esgueiravam-se pelos

     vãos das portas das lojas, para saquear, nosso heróiapanhava um livro em sua biblioteca, de roupão echinelas.

    Mas as fantásticas exéquias do seuCarlinhos, ah, essas o doutor Gusmão pôde ver. Acena da fogueira e o Bolero de Ravel haveriam de

    causar profunda impressão no nosso filósofo, efazê-lo decidir de uma vez por todas abandonarDiscórdia.

    XI - Estaria Enlouquecendo?

    Em vinte anos de advocacia, o doutorGusmão granjeara a admiração de muitos e a

    amizade de ninguém. Desfrutava de prestígio juntoao reitor da faculdade e ao padre, que eram,ultimamente, seus únicos interlocutores na cidade.

    O reitor era o doutor Enéias de SáCarneiro, um octogenário calvo e barbudo, médicoobstetra de fala mansa e pausada, nasalada, quasefanha. O doutor Enéias cultivava uma magníficabarba preta, retinta, grande, basta, de dois palmos

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    para baixo do queixo. Era pelas mãos das parteirase do doutor Enéias que nasciam os discordianos.

    O padre Leopoldino Bonotto,descendente de italianos, criado na roça até osdoze anos e agora com sessenta e poucos, eraconservadíssimo: a cútis era a de um bebê; asmãos, as de uma moça. Tinha-se a impressão deque se cutucadas com um alfinete aquelasmãozinhas macias estourariam, tão fina era a pele

    que as cobria.E se falamos da barba magnífica e negrado reitor, falemos do cabelo do padre, ou melhor,da hedionda peruca. O padre Leopoldinoadornava sua bela cabeça com uma perucacastanho-escuro, que não era o mesmo castanho-claro do restante, e era, assim, provocativa,afirmativa em sua existência na santa cabeça dopadre, como a dizer, “sim, estou aqui, sou uma

    peruca castanho-escuro a cobrir a vaidosa cabeçade um padre, e daí?”. Uma peruca obsessivamentenítida e identificável por quem quer que olhassepara as bochechas rosadas do padre Leopoldino.

    Um obstetra octogenário meio fanho debasta barba negra e um padre de mãos finas enítida peruca castanho-escuro, eram esses osúnicos amigos  –    vá lá, “amigos”, na falta dedefinição melhor  –   do doutor Gusmão em

    Discórdia.Era com eles que o velho advogado

    conversava, às vezes, entre o escritório e uma aula,na varanda do palácio do padre, nas terças-feiras.Era um palácio de decoração renascentista queocupava uma quadra inteira de Discórdia, umaquadra central, ao lado da paróquia, da faculdade,

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    do calçadão e da prefeitura, em frente à PraçaCelestial.

    Naquele domingo, tão logo concluiu osofícios fúnebres de seu Carlinhos, o padre juntou-se ao reitor e ao doutor Gusmão em seu palácio.

     —   Olá, senhores. Que bela cerimôniaassistimos, não?

     —   Padre, que lhe parece isso tudo?  —  perguntou o doutor Gusmão.

     —  Bela e genuína manifestação da piedadepopular. Bem-aventurados os humildes de espírito,porque deles é o Reino dos Céus! Bem-aventurados os puros de coração, porque verãoDeus!  —   respondeu cândida e hipocritamente osacerdote.

    Doutor Gusmão não pôde conter umagargalhada. O reitor interveio baixinho, fanho:

     —   Padre, cá entre nós, acreditas mesmo

    no que acabas de dizer? —  Não. Non è una cosa seria   —  respondeu,citando Pirandello. De toda sorte  —   continuou,rimando —  bem ou mal, foi um belo funeral. E osenhor, doutor Gusmão, o que pensa?

    O velho advogado apenas declamouenigmaticamente um verso de Kipling:

     —   “Se és capaz de, entre a plebe, não tecorromperes/ E, entre reis não perderes a

    naturalidade/ E de amigos, quer bons, quer maus,te defenderes/ És um homem, meu filho”.

     —  Que queres dizer com isso, meu caro? —  perguntou o padre, meio confuso, intuindo quequando o amigo falava em plebe, eraevidentemente ao povo da praça a que se referia,mas que quando disse “amigos”, o alvo da ironia

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     —   porque só podia ser ironia  —   eram ele e odoutor Enéias.

    Mais obscuro ainda, com os olhos vidrados na praça, doutor Gusmão respondeucitando Musil:

     —   “Algo imponderável. Um presságio.Uma ilusão. Como quando um ímã larga a limalha,e esta se mistura toda outra vez. Como quandofios de novelos se desmancham. Quando um

    cortejo se dispersa. Quando uma orquestracomeça a desafinar. (…) Idéias que antes possuíamum magro valor engordavam. Pessoas antigamenteignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro sesuaviza. (…) Havia apenas um pouco de ruindadedemais misturada ao que era bom, engano demaisna verdade, flexibilidade demais nos significados”.

    O padre Leopoldino e o reitor Enéias seentreolharam, riram baixinho a pretexto de ter

    entendido algo, e continuaram a observar, quietos,enquanto fumavam e tomavam café, o povo quedispersava do cortejo, a festa junina que iniciava, afumaça preta da cremação que se dissipava no céue os restos de lenha que estalavam. Ambos, noentanto, acharam deveras estranhas, e até semsentido, as respostas. “Estaria enlouquecendo?”,perguntaram-se, a princípio a si mesmos e maistarde um ao outro.

     Aquele espetáculo fúnebre grotescodeixou no nosso professor de filosofia das terças-feiras as mais profundas impressões. Por dias odoutor Gusmão haveria de lembrar-se daslabaredas enormes e da fumaça negra ganhando océu no início daquela noite absurda e agradável. OBolero de Ravel não lhe desgrudava da cabeça,sempre acompanhado do clarão das chamas da

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    pira do seu Carlinhos e das cinzas que seespalharam tomando a cidade naquela noite. Arecordação do choro ululante das esposas,abraçadas, fitando inconsoláveis a pilha de telhasque passava em marcha fúnebre, não comovia odoutor Gusmão. Ao contrário, causava-lheprofunda repugnância. Vá lá, se o segredo deaborrecer é dizer tudo, digamos tudo: repugnânciado Homem. Profunda. A compaixão que sentiu a

     vida inteira por aqueles pobres coitadostrabalhadores, naquela altura da vida tornava-seabjeção a todos, indistintamente, aí incluídos opadre e o reitor.

    XII - Os Sonhos Romanos

     Após o funeral, doutor Gusmão começou

    a sonhar seguidamente com seu Carlinhos. Noprimeiro desses sonhos, após as exéquias,comovido com tão belas pompas fúnebres, um

     vereador propunha declarar seu Carlinhos deus.Nada menos, deus. A divindade era aprovada,tornada lei, e agora Discórdia era a primeira cidadedo país a ter não apenas um padroeiro, mártir ousanto, mas um deus.

    Por lei da Câmara de Vereadores (no

    sonho os vereadores eram todos graves senadoresromanos), os discordianos agora deveriam cultuarDivinus Carolus Caesar Augustus , para cuja adoraçãoa prefeitura construíra um templo na praça centralde Discórdia, em frente à paróquia. À porta dotemplo fora erguida uma estátua de JúpiterOlímpico, com a cabeça do seu Carlinhos. Nossonhos do doutor Gusmão, seu Carlinhos entrava

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    na cidade triunfante da guerra, montado emelefantes com suas esposas. Num deles, donaCarmen era Calpúrnia Pisona, e dona Cida,Cleópatra. Os três cortavam as ruas de Roma(Discórdia era Roma) sobre elefantes trazendoatrás de si uma multidão de escravos, animaisexóticos, girafas, camelos, gladiadores, ouro,despojos de guerra. Seu Carlinhos, triunfante;Cleópatra, belíssima; Calpúrnia, séria e triste.

    Por uma daquelas nesgas de lucidez que às vezes nos permitem raciocinar mesmo sonhando,doutor Gusmão se lembrava de ter pensadoenquanto admirava o cortejo do ImperadorCarlinhos: “Duas esposas! Seu Carlinhos tem duasesposas, e eu não tenho nenhuma! Duas esposas, euma delas, dona Carmen, é Cleópatra!”. Vê o leitorque não se importou com a divindade de seuCarlinhos, nem com os despojos de guerra, nem

    com a glória militar, nada. Não era nessas coisasque estava o seu tesouro, não era lá que estava oseu coração. Duas esposas! E uma era Cleópatra!,como naquele poema:

    Se me perguntassem: Queres ser estrela?queres ser rei?

    Queres uma ilha no Pacífico? Um bangalôem Copacabana?

    Eu responderia: Não quero nada disso,tetrarca.

    Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

    O meu reino pelas três mulheres dosabonete Araxá!

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    Doutor Gusmão só queria as duas esposasdo seu Carlinhos.

    No mais “real” dos sonhos romanos,naquele de clareza solar, mais real até do que osonho em que refletiu sobre as duas esposas doseu Carlinhos, sendo uma delas Cleópatra, doutorGusmão estava em sua Vila. Seu mordomo era

     Jean-Jacques Rousseau, que passava café nacozinha. No jardim que via pela janela encontrava-

    se Karl Marx, podando as roseiras. De macacãoazul de sarja, desses de operário, pingava suor ereclamava, em voz alta, do salário e dosfurúnculos. Era fim de tarde e doutor Gusmãoestava na biblioteca. (No sonho, sua casinha eraum palacete do século XV às margens do CanalGrande.) Apanhou um volume, lembrava da capa,

     A Vida dos 12 Césares,  de Suetônio. Vai até a varanda com o livro na mão –  Karl Marx continua

    a ralhar  – , contempla o alagado (ou o CanalGrande), as garças, as nuvens, abre o índice. Leia olúcido leitor mesmo, a sã leitora, o que leu o nosso

     velho advogado:

    Caio Júlio César................................11Otávio César Augusto.....................69

     Tibério Nero César.......................143Carlos César das Neves................193

     Tibério Cláudio Druso.................239Nero Cláudio Cesar.......................277Sérvio Suplício Galba....................323Marco Sálvio Óton........................343

     Aulo Vitélio....................................357 Tito Flávio Vespasiano.................375 Tito Flávio Domiciano.................409

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    Não se lembrava de ter ido ao capítulo. Na verdade isso era só o que lembrava: Rousseau eraseu mordomo, Karl Marx o seu jardineiro, e seuCarlinhos era Calígula. “Primeiro seu Carlinhos é

     Júlio César. Agora, Calígula! Por quê? Que querdizer isso tudo, ó pá?!”.

    Doutor Gusmão gastava os dias ainterpretar seus sonhos romanos. Tinha uma vaganoção das explicações de Freud, da possibilidade

    de se extrair dos sonhos algum significado.Lembrava-se dos sonhos célebres, dos profetas, de Jacó, José do Egito e Daniel; da revelação emsonho a Descartes de um novo modelomatemático. Lembrou-se, claro, do aviso do anjoGabriel a José sobre a imaculada gravidez deMaria. Tudo isso revelado em sonho!

    O nosso filósofo espremia, esforçava-separa lembrar os detalhes das suas agitações

    noturnas, para ordenar, enxergar um sentido, umamensagem, uma lição...E já que o plasma dos sonhos era a Roma

    dos Césares, doutor Gusmão pensou, de gracejo,que bem poderia haver em Discórdia, no lugar daparóquia, um oráculo. Consultaria o oráculo acercados sonhos e tudo estaria resolvido. Escusadodizer que na noite seguinte sonhou, durante todoo agitado sono, que consultava um oráculo. No

    outro dia, contudo, lembrava apenas que argüia osdeuses e que estes lhe falavam, mas não lembrava oque  lhe falavam. Não lembrava nada! Sabia apenaster sonhado com um oráculo, e mais nada.

    Remoeu o sonho o dia inteiro e não houveforma de lembrar o quê , ó raios!, os deuses lhediziam. “Vê que cousa”, pensou, “agora, sem sabero que me falou em sonho o oráculo, o próprio

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    sonho do oráculo torna-se um mistério a se somaraos outros”.

    No fim do dia  –   dia que passou inteiro voltado para dentro de si, vasculhando seu sonho,à força de muito pensar, descartar uma e outrahipótese  –   estava em dúvida se a resposta dooráculo teria sido “Ó, homem, conhece-te a timesmo e conhecerás os deuses e o universo” ou“Ao vencedor as batatas!”.

     As duas hipóteses não têm qualquerrelação uma com a outra, nem as duas com omaterial do sonho, como bem percebeu o leitor,mas eram as que estavam presentes em seuespírito como sendo a resposta do oráculo aossonhos romanos.

    Desistiu de tentar entender. Tão logo desistiu, lembrou: nada de

    “conhece-te a ti mesmo”, nada de “batatas”.

    Simplesmente lembrou: era Júlio Cesar e estavadentro do templo, vestido solenemente, vestidopara a guerra. Segurava um gládio, em pé, imóvel,ereto e com o coração aos solavancos, mesmosendo ele Caio Júlio Cesar. Uma Vestal de belezaesplêndida vinha lentamente em sua direção,segurando uma cobra Píton albina, olhando-o comolhos diáfanos. A sacerdotisa tinha a cabeçacircundada por frisos de lã branca que lhe caíam

    graciosamente sobre as espáduas e de cada lado dopeito, e suas vestes eram simples panos brancos

     vaporosos. Aproximando-se, a Vestal sussurrouem seu ouvido, com uma voz que só as virgens dequinze anos têm: “Imperador Gusmão, atravessa oRubicão! Otium cum dignitate ”.

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    XIII –  Desilusão

    Depois desses sonhos, permanecer emDiscórdia pesava-lhe como uma condenação aodegredo.

    Quando viu que o mesmo povo queparticipou da destruição do centro da cidade(segundo os relatos que ouviu do padre e doreitor, e pelo que pôde ver depois) oferecia o

    funeral de um imperador romano a um punhadode telhas, retiradas de um chiqueiro e um canil, aosom do Bolero de Ravel e balões brancos, o nossocausídico quis fugir imediatamente, sem falar nada.Sair sem dar explicações a ninguém, passar a chaveno escritório, abandonar os processos emandamento, abandonar a faculdade e seussonolentos alunos, refugiar-se para sempre em sua

     vila.

    Enfim decidiu-se. Iria mesmo embora. Porconsideração aos clientes, substabeleceu osmandatos ao escritório dos irmãos Taborda, semexigir nada em troca, o que só fez crescer entre opovo sua fama de homem bom. O padre e o reitor

     viram nisso um sinal da prodigalidade própria dosmalucos. Com os livros na caçamba dacaminhonete, fechou o escritório e dirigiu-se àseccional da Ordem dos Advogados do Brasil.

     —   Quero cancelar minha inscrição nestainsigne corporação de ofício  —  disse à atendentedo balcão.

     —  Qual o motivo, doutor? —  Preciso dar motivo? A história é longa

    e você não vai entender, minha filha. —   Mas o formulário de pedido de

    cancelamento diz que é preciso explicar o motivo.

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     —  Pois bem. Põe aí: “desilusão”. —  Só? —   Não, pensando bem, completa, “com

    tudo e com todos”. —  Só? —  “Desilusão com tudo e com todos”, e

     você ainda quer mais? Toma nota. Põe aí, então,minha filha, que amanhã ao meio-dia, de tãodesiludido com tudo e com todos, pretendo

    encomendar uma missa, reunir os discordianos naPraça Celestial, escalar o sino da igreja, fazer umdiscurso de despedida, atirar lá de cima notas decem e depois me enforcar.

     — ....? —  Claro que não. —  Ok. Tome sua via, doutor. —  Muito obrigado. Até nunca mais.Dali foi à faculdade e pediu demissão. Em

     vão o doutor Enéias tentou demover-lhe da idéia.Estava resoluto. Não iria sequer esperar acabar osemestre. Deveria partir já.

     —  Mas para onde? —  quis saber o reitor. —   Vou cruzar o Rubicão, vou à morada

    eterna do meu espírito, às minhas chinelas macias —  disse hermeticamente.

    Doutor Enéias já considerava seriamenteque o amigo enlouquecera. Percebendo o espanto

    do reitor, a quem afinal queria bem, doutorGusmão completou:

     —  Vou pra minha vila, doutor Enéias, deonde pretendo não sair nunca mais, a não ser paraa vida eterna, quando a Indesejada das Genteschegar.

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    XIV - Otium Cum Dignitate

     A idéia que inspirou a Vila Gusmão foi ade um lugar digno para um bom patrício descansarno fim da vida. Na margem leste de um enormelago (uma represa) fica a casa, numa chacrinha detrês alqueires, na divisa entre Discórdia e NovaEsperança. O portão de ferro, pesado, vermelho-escuro, tem o brasão dos Gusmão e a inscrição

    ‘Vila Gusmão’. Após o sonho do oráculo, fez ele própriouma placa que pôs sobre o portão, formando umarco, com as letras pintadas de vermelho emmadeira branca: “Otium cum dignitate”.

     A entrada é bem cuidada, com grama,flores –  rosas, begônias, jasmins –  e pedra brita notrilho do carro até a garagem. A casinha demadeira ao fundo é branca, muito simples: tem

    apenas um quarto, um banheiro e uma saletaconjugada com cozinha. Na parte dos fundos dasala, portas largas de correr abrem para umasacada com vista para o lago, onde está instaladauma rede e uma espreguiçadeira. A sacada tem as

     vigas fincadas dentro d’água, em cima da garagemda lancha, vergada sob o peso dos livros dabiblioteca enorme, “o peso de milênios deconhecimento”, como costuma dizer.

    Era aí que se escondia o nosso Cíceroquando não estava advogando, lecionandofilosofia ou assistindo funerais de telhas emDiscórdia, da sacada de um palácio em companhiade um padre de peruca e de um octogenário debarbas negras. Agora esta seria a sua moradadefinitiva.

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    XV - A Terapia

    Uma vez por semana, pelo menos, odoutor Gusmão corta o lago em direção à margemoposta. Subindo meia hora pela mata, há umclarão com grama e um laguinho de água geladaque desce do morro num riacho e, caindo da pedrauns cinco metros, forma uma bela cachoeirinha. Éaí que o nosso filósofo faz a sua “terapia”, como

    ele chama.Nu, o doutor Gusmão coloca a cabeçaembaixo da torrente de água e grita. A plenospulmões grita alto, forte, grunhidos com a bocaaberta debaixo do jorro d’água; às vezes chamaalguns nomes, às vezes risos loucos entrecortamos gritos. Brados de triunfo alternam com urrosguturais; balbucia orações, trechos de Salmos,palavrões. Ou só berra, simplesmente, por um ou

    dois minutos, gritos que ecoam no silêncio damata fechada e põem em debandada passarinhosassustados. E sai aliviado. Manso como um leãono jardim do Éden.

    (Um índio que passasse ali  –   doisquilômetros de mata adentro há uma tribo de

     índios awá-gujá  –   decerto correria assustado, ouatacaria a flechadas aquela capivara enorme,bisonha, com a cara larga coberta de pêlos

    brancos, que julgaria, o silvícola, assobiar no atode beber água. À noite, na roda de cachaça emtorno da fogueira, contaria para perplexidade detodos na tribo a cena horripilante da cachoeira. Echega, que ainda não é hora de meter índio nestahistória.)

    Mas por que nu? Há de perguntar a castaleitora. Doutor Gusmão, embrenhando-se na mata

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    no percurso de volta (já vestido) responde,pensando alto:

     —   E por que não nu? De sobrecasaca éque não haveria de ser. De toga, quem sabe? Não.Nu que é bom, nu que é o ideal.

    E sai aliviado, proclamando em voz alta namata, como se lecionasse para aquelas árvores epássaros, que “eles soubessem...” –  as árvores e ospássaros e decerto algum lagarto remexendo o

    rabo no sol  –   “... que nada, nem ciência, nemfilosofia, nem religião alguma, nada traz maisconsolação e paz de espírito do que gritar nu nacachoeira, e depois um banho quente e chinelasmacias”.

     A viagem de volta é outra. O tempo agorapassa em ritmo mais lento, as árvores à beira doimenso lago e as garças nas suas copas têm outracor, outro movimento. Nem se fale do céu. Agora

    todo o céu é belo. Doutor Gusmão já nem chamamais simplesmente céu: se é noite e tem luar eestrelas, quando olha pra cima vê uma “abóbodacelestial”; se é dia e há nuvens carregadas, não vêapenas nuvens cinza, vê um “elmo de açoabrasador”. Leis eternas firmadas nos astros desdeo início dos séculos, verdades lavradas no coraçãodos homens agora saltam aos olhos em suaobviedade, transcendência, unidade. Sistemas

    filosóficos, princípios morais, axiomas, tudo se lhemostra ordenado e de modo mais cristalino após aterapia. Com um brilho nos olhos e um sorriso norosto, após a terapia o filósofo intui verdadescomo um anjo.

     —  E houve quem dissesse que o Ser nãoexiste, que nada existe... Arre! Ou que, existindo,era impossível conhecer-lhe... Arre! Que tudo é

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    desejo  disso, medo  daquilo, opressão  deste poraquel’outro... Arre! O que falta a essa gente é a

     Terapia e a sublime consolação da Teoria dasChinelas Macias.

    Ia falando ao leme do barquinho, mais altopor causa do barulho do motor para serclaramente ouvido. Algum filósofo já disse quequalquer ato de aprendizado é uma explicitação dopróprio pensamento, e que o homem aprende não

    do que se lhe diz, mas do que lhe é dado a falarsozinho.De volta à sua vila, depois de um banho

    quente, apenas de roupão e chinelos macios, empaz e intuindo verdades como um anjo, o nossopatrício passa um café, apanha o cinzeiro e umlivro, e vai para a varanda fumar e ver o sol se pôr,“sang üíneo e fresco”, na margem oposta do lago.

    Exagero, dirá o leitor céptico, que um

    banho pelado de cachoeira e uns gritos infundamno homem a paz de espírito, a realização espiritual,o conhecimento intuitivo de todas as coisas.

    Se há exagero nas propriedades cognitivase curativas da Terapia e da Teoria das ChinelasMacias, o exagero é do doutor Gusmão; e se assimele quer, deixemo-lo com sua terapia, suas aulaspara os pássaros, seus discursos ao leme dobarquinho, seu banho quente e seus chinelos

    macios. Deixemo-lo. Estava decidido a não maiscalçar as botas de Discórdia.

    XVI - As Fadinhas

    Nas noites mais tristes, tristes de não terjeito, tristes de dar vontade de se matar  –   “demeter uma bala no peito”, completava doutor

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    Gusmão, acrescentando uma rima ao poema  – ,nessas noites tristes Joaquim Maria de Gusmãolembrava com saudade o tempo de estudante deDireito, na outrora tradicional Faculdade deDireito do Paraná, e das pretensões literárias quepor um tempo acalentara. Nessas noites tristes o

     velho Gusmão lembrava às vezes de Paula.Daremos a ela um parágrafo, que era o que lhededicava no fim da vida, de vez em quando, o

    doutor Gusmão. Um triste parágrafo em noitesmelancólicas no fim da vida.“Foi uma loucura... Mas que loucura!”,

    dizia em sua varanda à beira do lago. Foramcolegas de faculdade. Paula era casada.

     Apaixonaram-se e assim viveram por seis meses. Terminado o semestre na faculdade, Paula foi viajar, passar o fim de ano na casa da mãe. Na volta às aulas, a surpresa terrível: Paula não

    renovara a matrícula. Trancou o curso, e com ocurso o doutor Gusmão. Joaquim Maria sofreucomo um poeta. Tornaram, enfim, cada um parasua vida. Foram um para o outro um dessesparênteses que a vida às vezes nos abre. “Que teriaacontecido se tivéssemos ficado juntos? Quecousa, a infância toda em Portugal, numa vila...

     Alijó... Ah, o sino da minha aldeia! De Alijó para oBrasil... Curitiba... a padaria, Paula e um diploma...

    depois Discórdia, ah, Discórdia, Discórdia... Agoraa Vila Gusmão, onde hei de morrer... minha vila...bela vila... Não tive filhos... Como estará Paula?

     Tinha um filho pequeno, como estará? Hoje deveser um homem, o que será que faz da vida? Nãotive filhos... Ah, o sino da minha aldeia... ouçoainda as tuas badaladas... Paula... Paula... que teriasido se ficássemos juntos? Que teria sido de nossas

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     vidas se ela houvesse aceitado ir comigo paraPortugal? Paula... Paula... Quantas viagens planejeipara nós naqueles dias... Quantas famílias felizes

     viram em ti os meus olhos! Paula, eu sou infeliz...”. Se a leitora ainda acha pouco dedicar

    apenas um parágrafo a Paula, peço que o leianovamente, sabendo que esta era a ediçãodefinitiva que fazia da sua vida o velho Gusmão.

     Já dissemos que era poeta. A glória

    literária, cujo doce sabor experimentou um poucopor ocasião de uns artigos publicados no jornal doCentro Acadêmico e de uns poemas que fezcircular por entre amigos, a glória literária ficousempre a lhe roer por dentro.

    Um dia, de costumeira calmaria, masestrondosa inspiração, doutor Gusmão apanhoupapel e lápis e, comovido com o sol que voltava abrilhar de repente, após uma tempestade,

    alegrando os passarinhos que se punham de novoa cantar na soleira, compôs de uma só torrente asua obra-prima:

     As Fadinhas

    Sempre depois de chover, Antes até que o passarinho,Pé por pé, devagarinho,

     As fadinhas saem recolher As gotinhas que, esquecidas,Ficam no chão adormecidas.

    Ou acaso achas que o chão seca sozinho?

    Todas elas, tão belas,Sem qualquer retribuição,

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     Aos milhões pelo chão,Secando tudo há muitas eras,

     Em esquadras, pelotão,Com a varinha de condão!

    Secam o chão com varinha de condão?

    Imagina, claro que não.São os raios do sol que descem,

     Mas que da terra só aquecem, A porção onde toca o condão.São as fadinhas, que maravilha!,

     Que dizem onde o sol brilha.

    Secam todo o chão, sozinhas?

    Se engana quem tem dó. Em grupo de seis ou sete,

    Saltitando serelepes, Elas nunca andam sós.Veja só, são tão meigas essas fadas,

     Que andam juntas, de mãos dadas!

     E por fim, onde elas vivem?

    Diz a lenda que nas matas, Em troncos, folhas, riachos,

     Mas na verdade o que eu acho- E isso não é bravata -,

     É que elas moram no meu jardim, Entre as rosas e jasmins.

    Posto o ponto final, tinha os lábiostrêmulos e os olhos rútilos. Ébrio de realização

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    literária, de gozo criativo, era naquele momento ohomem mais feliz do mundo.

     Andava trêmulo, de um lado para o outrono seu casebre, fazendo ranger o assoalho. Seuêxtase foi interrompido por uma dúvida. “Mas porque sobre fadas? Que coisa pueril...”, vacilou,incerto. Imediatamente recobrou o orgulho: “Nãofaz mal. A um poema basta que seja belo, e estecreio que é. Ademais, o espírito sopra onde quer e

    como quer ”, respondeu emulando São Paulo.Instigado pela vaidade, que se mete atrásdo homem mesmo quando este se retira para odeserto (ou, no caso, para o alagado), cogitouretornar à cidade e dar a publicar seu poema,fazer-lhe de todos conhecido. Sentava e tornava aler o poema. De repente ouviu a vaidade falando:“Vai, meu poeta, vai para Discórdia, chega à bocada cena, escolhe a melhor pose, os melhores

    gestos, a melhor entonação de voz, e declama teupoema!”. “Mas isso é ridículo”, conclui estoicamente

    o filósofo, dando um risinho. Apanhou mais um café, foi até a varanda,

     voltou, atravessou a sala, foi ao jardim (as pernasiam sozinhas), foi até o portão e voltou. Entrandoem casa, atirou-se a ler mais uma vez o poema, edepois mais uma, e outra, e assim várias vezes,

    ébrio, trêmulo, com os olhos rútilos. Ao fim dodia, estoicamente concluiu:

    “Voltar à cidade, não. Fico aqui. Nem queo preço seja enterrar comigo esta jóia literária, aquina minha vila, pura, sem conhecer leitor.” 

    Com ou sem leitor, o velho Gusmãotomou gosto pela rima e pelo gozo criativo, enuma semana escreveu outros dez poemas. Sentia-

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    se movendo num grau superior da vida.Experimentava então “os primeiros passos rumo àdespersonalização completa em nome da arte”,como chamava.

    Era dramático, sarcástico, romântico, eralírico, era a ceifeira solitária, de William

     Wordsworth. Podiam falar o que quisessem,menos que era monocórdio. Havia versos sobre a

     vida e a morte, a alma e o inferno, a beleza e o

    amor. Todas as musas vieram ter com ele noespaço de uma semana em seu sítio.“É já uma pequena obra! Envio sob

    pseudônimo. Quem sabe às editoras, aos críticos?Depois as adaptações para a televisão e para oteatro... Hollywood, Broadway? Por que não?” Porum momento ficou a refletir acerca de qualpseudônimo escolheria. “Seguramente será umnome de vulto, um nome carregado de

    simbolismo”. Não se decidiu por nenhum;somente disse a si mesmo: “Se morresse agora,poderiam gravar no meu túmulo: ‘Aqui Jaz odoutor Gusmão, filósofo e poeta, descobridor da

     Terapia, autor da Teoria das Chinelas Macias ecompositor de As Fadinhas’”. 

    XVII - Adeus, ó Esteves! Adeus, ó padreLeopoldino!

    Em Discórdia a Câmara legislava, donaCléia (que após o hangout filiou-se ao Partido)postava em seu Facebook, seu Generoso vendiatelhas (de olho nas arandelas) e o padre fumava na

     varanda do seu palácio em companhia do reitor. —   Nunca mais falaste com o doutor

    Gusmão? —  perguntou doutor Enéias.

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     —  Nunca mais. Desde que partiu, e lá se vai mais de um ano, vi-o bem raramente com suacaminhonete. Vai apenas ao mercado e ao correio,e só. Outro dia mesmo encontrei-o saindo daagência dos correios. Passou por mim, na mesmacalçada, e não me viu, ou fez que não me viu.

     Tinha um ar risonho e ia olhando para o chão,falando alguma coisa sobre fadas que secam ochão com varinha de condão, algo assim, pelo que

    pude ouvir. Está enlouquecendo, pobre homem.Não me fez sequer uma visita, veja o senhor.Dizem que entra mudo e sai calado, não fala comninguém.

     —  Não é de se descartar que esteja louco. Tantos enlouquecem, não é? Por que não o nossoamigo?

    Palitando os dentes, o reitor perguntou: —   E os protestos, tem sabido alguma

    coisa, padre? —  Nada, graças a Deus. —  Mas não seria o caso de o senhor fazer

    alguma exortação ao povo na homilia? Fala-se queestão organizando outros, e mais violentos...

     —   Eu quero distância desse povo!Deixem-me quieto no meu canto. Nunca fiz mal aninguém, não venham para o meu lado, é o quebasta. Eu não os incomodo, eles não me

    incomodam.E o padre entrou a desfiar uma ladainha, a

    justificar por que a Igreja não deveria se meternessas coisas, ou se era para falar alguma coisa,“que fosse em apoio, apoio aos movimentossociais, aos mais fracos”. 

    Doutor Enéias, em verdade, não sabia oque pensar, por isso nada respondeu. O velho

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    envasado em centenas de embalagens como patêde porco. O acidente abalou os discordianos, donaCléia postou fotos no Facebook conclamandotodos a uma manifestação em frente ao frigorífico.Leitão Silva interveio, fala-se em interditar ofrigorífico, e em novos protestos, veja o senhor.

     Ah, sim, o patê do seu Esteves foi sepultado. Nãomereceu do cerimonial as mesmas pompasdestinadas às telhas do seu Car