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Ao início de uma tarde de Fevereiro, numa estrada de Sesimbra, um acidente de car-ro esmaga a perna do condutor. A fractu-ra precisa de um aparelho de fixação exter-no. Se não for colocado em menos de seis horas, o homem de 50 anos pode nunca mais andar de forma normal. Começa a contagem decrescente. No Hospital Gar-cia de Orta, em Almada, o director do Ser-viço de Ortopedia e Traumatologia, Nuno Craveiro Lopes, 60 anos, recebe um tele-fonema. Será ele a liderar a cirurgia. Três horas depois, oito pessoas começam a empreitada, que envolve berbequins, por-cas e parafusos. Solta-se uma única gota de sangue. Os especialistas colocam o pri-meiro ferro. Segue-se outro e outro até que a perna ganha um prolongamento quase robótico. A operação termina 16 minutos antes do previsto. O homem vai recuperar. “Esta foi das fáceis”, desabafa Craveiro Lopes, já com a máscara pendurada no pescoço, a descansar num sofá da sala de pessoal. “Foi apenas uma fixação.”
A técnica nasceu no início dos anos 50, na Sibéria, onde o médico Gavril Ilizarov tentava resolver com poucos meios os pro-blemas ortopédicos de estropiados da II Guerra Mundial. Com uma peça de uma carruagem de cavalos criou o primeiro destes aparelhos que fixam os ossos e, com a ajuda de porcas, os vão devolvendo à posi-ção original. “Um dia, um doente enganou-se e, em vez de fazer contracção, fez dis-tensão”, explica Craveiro Lopes. Ou seja, em vez de apertar, desenroscou as porcas. A perna cresceu. “Como o osso estava fac-turado, formaram-se linhas de cálcio para ocupar o espaço vazio.”
Em 1965, o soviético Valery Brumel, líder incontestável do salto em altura, teve um acidente de mota que o afastou das com-petições durante anos – até consultar Ili-zarov. Voltou a competir, o médico tornou-se um herói nacional, recebeu milhões para investigação e foi convidado para confe-rências em Itália e em Espanha. Nesta últi-ma estavam três portugueses que em 1985 fizeram de Portugal o terceiro país a apli-car a técnica.
QUASE MILAGRES Sandra Carvalho, 27
anos, nasceu com uma perna minúscula. “O fémur era um alfinete”, diz o pai, José Carvalho. No hospital, propuseram cortar o pé para facilitar a colocação de uma pró-
tese. Ele recusou. “No pé da minha meni-na ninguém toca.” Com poucos meses, San-dra já usava a perna pequena para se içar para fora do berço. Anos depois, o pai ouviu falar de um médico do Hospital de Sant’ Ana, na Parede, Cascais, que teria uma solução. Era um dos ortopedistas que ouvi-ra Ilizarov em Espanha, Paulo Bettencourt. Explicou-lhes que a perna da filha poderia crescer e um dia tocar no chão. A maioria dos médicos duvidava que fosse possível.
Aos seis anos, Sandra colocou o primei-ro Ilizarov. Acordou com as unhas dos pés pintadas de vermelho. Ainda com a visão turva descobriu o sorriso do jovem Cravei-ro Lopes, o responsável pela brincadeira. O médico estava a aprender a técnica e tor-nar-se-ia responsável pelo seu caso.
O processo foi muito doloroso. “Um dia reparei que a perna cheirava mal, tirei os pensos e estava negra”, lembra o pai. Pas-sou a tratar dos ferimentos, enquanto a filha mordia lenços, até os destruir. “Che-guei a tirar bocados de carne podre. Por vezes não aguentava e ia à casa de banho vomitar.” À noite ia sempre vê-la ao quar-to. Muitas vezes, encontrava-a a rezar. “Esta-va com dorezinhas”, justificava. Aos 13 anos, perguntaram-lhe se queria voltar às cirurgias. Tudo o que faria com a perna também poderia fazer com uma prótese, disseram-lhe. Mesmo assim, ela avançou. Queria ter uma perna dela.
Ao todo, Sandra pôs oito aparelhos. Um ano estava com eles, no seguinte fazia fisio-terapia. Tudo para crescer um milímetro por dia. No total, foram “67 ou 68 centíme-tros”, conta. “Tinha 17 anos quando o meu pé tocou o chão pela primeira vez.”
O “MONSTRO” Craveiro Lopes realiza cer-
ca de 50 cirurgias de alongamento por ano.
É um dos maiores especialistas portugue-ses. O procedimento faz-se em muito pou-cos hospitais. Custa cerca cinco mil euros ao Serviço Nacional de Saúde. Apenas são operadas pessoas com incapacidade fun-cional, como anões com menos de 1,30m de altura. Sempre que o abordam com pedi-dos por razões estéticas, o ortopedista reen-caminha-os para o psicólogo. Mas há quem o faça: em clínicas privadas de Espanha ou Itália operar uma perna custa 20 mil euros.
Márcio Valadares, de 11 anos, está inter-nado no Hospital Garcia de Orta, onde foi operado por Craveiro Lopes. Aos 18 meses, uma infecção na perna atirou-o para uma cama de hospital. Esteve quase a perder a perna, a morrer. Recuperou. Só que as per-nas começaram a desenhar um arco, até que pararam de crescer. Aos nove anos já tinha feito seis osteotomias, uma técnica que serra o osso e, com a ajuda de talas e gesso, o corrige. Foram todas inúteis. Cra-veiro Lopes explica que “mesmo entre os médicos, poucos conhecem a técnica de Ilizarov” e que “em muitos casos onde [a técnica] podia ser solução, não o é por fal-ta de informação”.
Márcio operou a primeira perna aos nove anos. Todos os dias, de seis em seis horas, o pai, Fernando Valadares, rodava as por-cas de aço com o filho. Pele, músculos, vasos sanguíneos e ossos - tudo esticava. Márcio agarrava a mão do pai, o peito come-çava a tremer e, no final da primeira vol-ta, os olhos já estavam cheios de lágrimas. “Oh pai, não. Eu não aguento mais, quero tirar isto.”
A família toda foi engolida por aquele assustador núcleo metálico - Craveiro Lopes chama-lhe “monstro”. As primeiras sema-nas passaram e o pai perdeu o emprego para acompanhar o filho. Quando a dor aliviou, Márcio concentrou-se noutras limi-tações: não podia andar, jogar futebol ou andar de bicicleta. A escola passou a ser pelo computador. Dois anos depois, foi pre-ciso tomar a decisão de operar a segunda perna. Os pais hesitaram. Márcio não. Mais crescido, já com um bigodinho, virou-se para eles e disse: “Estou preparado. E vocês?”
Quanto a Sandra é hoje médica veteriná-ria. Em breve, voltará a entrar no consul-tório do amigo Craveiro Lopes. Aproxima-se um dia especial e ela quer abandonar a muleta que ainda a acompanha. Vai casar-se. Por um segundo, cruza o olhar com o do pai. No meio da sala fica suspensa a ima-gem de Sandra a subir ao altar, a perna a tocar o chão, como sempre quis.
Alongamento ósseo A cirurgia que cria pernas para andar
Dolorosa, demorada, eficaz. Portugal foi um dos pioneiros na técnica que chega a fazer os ossos crescerem quase 70 centímetros
01 Um acidente de via-ção esmagou a perna a este homem de 50 anos. Uma equipa de oito pessoas operou-o de imediato
02 Sandra colocou oito
aparelhos de Ilizarov. Tinha 17 anos quando o pé tocou o chão
ALEXANDRE SOARES [email protected]
Zoom //C Saúde
D.R.
Até onde ia por alguns centímetros?
Em todo o mundo e contra a opinião dos especialistas, há quem recorra à dolorosa cirurgia de alongamento ósseo por razões estéticas. Em Espanha e Itália, clínicas privadas realizam a operação por cerca de 20 mil euros. As pernas crescem em média entre quatro e oito centímetros. A intervenção é especialmente popular na Ásia. Em 2001, Singapura tornou-se um país pioneiro na área. As nações vizinhas seguiram o exemplo. Os jovens acreditam que uns centímetros extra vão aumentar-lhes as hipóteses de sucesso no trabalho e na vida amorosa. Há quatro anos, a China proibiu o procedimento, mas as operações continuam de forma clandestina. Um dos destinos favoritos é a gigantesca clínica do pioneiro Gavril Ilizarov, na Rússia, com três mil camas disponíveis.
pela primeira vez 03 Nuno Craveiro Lopes,
director do Serviço de Ortopedia e Trauma-tologia do Hospital Garcia de Orta realiza cerca de 50 interven-ções por ano
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A perna de Sandra Carvalho cresceu quase 70 centímetros. Quando nasceu, “o fémur era um alfinete”, conta o pai
Poucos médicos conhecem a técnica de Ilizarov. Pode ser solução para problemas por resolver, diz Craveiro
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