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1 Ensino Fundamental Agosto/2012 Capa/Lição de casa | Edição 184 A medida do dever Na berlinda em diversos países, a eficiência da lição de casa para o desempenho escolar é contestada por pais e pesquisadores; estaria a escola passando tarefas que não desenvolvem o prazer pelo aprendizado? Carmen Guerreiro Stella, 6, adora fazer a lição de casa, ainda que a mãe ache que as tarefas são excessivas: "para ela é importante corresponder ao que a professora pede" No fim de março, um grupo de pais na França chamou a atenção do mundo ao organizar um boicote de duas semanas contra a lição de casa, que já é proibida no país

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Ensino Fundamental

Agosto/2012

Capa/Lição de casa | Edição 184

A medida do dever

Na berlinda em diversos países, a eficiência da lição de casa para o desempenho escolar é contestada por pais e pesquisadores; estaria a escola passando tarefas que não desenvolvem o prazer pelo aprendizado?

Carmen Guerreiro

Stella, 6, adora fazer a lição de casa, ainda que a mãe ache que as tarefas são excessivas: "para ela é importante corresponder ao que a professora pede"

No fim de março, um grupo de pais na França chamou a atenção do mundo ao organizar um boicote de duas semanas contra a lição de casa, que já é proibida no país

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desde 1956 para crianças de 6 a 11 anos, estudantes do nível equivalente aos

primeiros anos do ensino fundamental do Brasil. A base do protesto, organizado pela Fédération des Conseils de Parents d'Élèves (FCPE), principal representante de pais e alunos na França, foi a defesa de que o dever feito fora da escola é inútil, sobrecarrega as crianças e gera desigualdades entre elas, já que algumas têm condições de fazer reforço e contar com a ajuda dos pais e outras não. O movimento critica, ainda, a responsabilidade que a escola repassa aos pais, que são obrigados a assumir o papel de professores, causando tensões e frustrações familiares.

A manifestação dos pais franceses levanta um questionamento que pode ser feito em

diferentes medidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, país em que a prática é

arraigada e pouco debatida: quais são os limites da lição de casa? Ela é sempre

benéfica? Quais são os perigos envolvidos no excesso e na falta da lição? Qual é o

papel da família no acompanhamento dessa tarefa?

Resultados desiguais

De um lado do debate, juntam-se ao coro da FCPE especialistas, professores e pais que

não acreditam que a lição de casa tenha relação com a melhora do desempenho

acadêmico. Em seu livro The Homework Myth (O mito da lição de casa, em tradução

livre, obra não foi traduzida para o português), Alfie Kohn, autor e palestrante

em educação norte-americano, reúne pesquisas e argumentos em torno dessa ideia: o

dever de casa é inútil. Ele aponta que, embora existam estudos que contestem a

afirmação, outros apontam para a ineficiência da lição, como um levantamento

americano que comparou 17 pesquisas sobre lição de casa com duração entre duas e

30 semanas e constatou que, quanto mais longo o período de observação, menor o

impacto da lição no aprendizado.

Outro argumento contra o dever é que ele potencialmente cria um desnível entre os

estudantes. "A adoção do dever de casa contribui para aumentar a desigualdade de

resultados escolares, pois nem todas as famílias têm como garanti-lo. Uma boa escola

com uma pedagogia efetiva deveria garantir o aprendizado no tempo e espaço

escolar", defende Maria Eulina de Carvalho, professora do Centro de Educação da

Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que publicou livro premiado nos Estados

Unidos sobre as relações família-escola e o dever de casa.

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Autonomia

Marta Helena Serpa, professora doutora da Unidade Acadêmica de Educação da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), concorda com Maria Eulina, acrescentando que essa desigualdade é uma violência simbólica, pois os pais de classes mais baixas, em geral, não têm capital cultural para ajudar seus filhos com a lição. "Além disso, esse modelo supõe que a mãe está em casa, quando na

verdade ela está no mercado de trabalho. A escola joga essa carga para a família, essa responsabilidade de complemento de aprendizagem, o que se torna perverso para a criança que não tem a família para ajudar." Marta Helena baseia sua opinião, em parte, em sua pesquisa, na qual entrevistou mães, professoras e crianças do quarto e quinto ano do ensino fundamental para tentar entender como era o momento de fazer a lição em casa.

Outra crítica dá conta de que não apenas os pais não têm tempo - e não é da sua

responsabilidade -, mas que o tempo das crianças também é precioso demais para ser

gasto em excesso com estudo. Para Tânia Resende, professora doutora da

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em lição de casa, não faz

sentido dar a tarefa para crianças pequenas, por exemplo. "Hoje existe uma tendência

de antecipar uma exigência estritamente acadêmica, o dever, a atividade escrita, a

lógica de competição de que a criança tem de estar preparada para o mundo

globalizado e para o mercado de trabalho. Isso desconsidera o desenvolvimento da

família, porque uma criança de seis anos precisa ter tempo livre para brincar - é assim

que ela se desenvolve, esse é um momento de aprendizado para ela", afirma.

Os argumentos a favor da lição são igualmente convincentes, e em geral partem das

escolas, dos professores e de alguns pais. Stella Colucci, coordenadora pedagógica do

fundamental I da escola Stance Dual, de São Paulo, observa que a tarefa é importante

porque visa a formação estudantil. "São trabalhados não só os procedimentos para

Celia Santos observa que a filha Maria Luiza, 8, criou responsabilidade por meio da lição de casa: "é uma oportunidade de ensinar que autonomia não é fazer o que se quer sempre"

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aprender a estudar, como também a responsabilidade e o desenvolvimento da

autonomia", diz. Assim, os alunos aprendem a sistematizar informações, realizar

pesquisas e organizar seus estudos longe da escola. Esse "treino" contribuiria para a

formação da criança como estudante e por isso melhoraria também o seu

desempenho. Nessa mesma fase, é importante que a criança desenvolva autonomia, e

a lição pode ajudar na tarefa. Ceila Santos observa que a filha Maria Luiza, 8 anos,

aluna do 2º ano do ensino fundamental de uma escola particular, criou autonomia e

responsabilidade por meio da lição. "É um momento da vida dela de 'eu sei o que eu

faço', então é óbvio que existe um conflito, porque às vezes ela não quer fazer a

tarefa. Mas essa é uma oportunidade de ensinar que autonomia não é fazer o que se

quer sempre, mas está relacionada à responsabilidade", acredita.

Ainda que existam argumentos contra e a favor da lição de casa, no Brasil a discussão

não é tão polarizada quanto em outros países onde se discute o assunto, como na

França e nos Estados Unidos. É difícil encontrar alguém que defenda a lição a qualquer

custo ou que queira banir o dever de casa das escolas. Doutora pesquisadora da

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), Nilce da Silva defende

ser impossível tachar toda lição de casa de "boa" ou "ruim". "Depende da quantidade e

do tipo da lição. Para cada quantidade solicitada e dependendo da exigência, há

nuances que não podemos generalizar", analisa.

Erro na medida

É o que também defende a pedagoga Silvia Colello, professora na graduação e pós-

graduação na Feusp. Para ela, ser a favor ou contra a lição de casa é um falso dilema,

pois existe verdade no elogio e na crítica. Esse momento é, para ela, uma

oportunidade para o aluno se concentrar, criar hábitos de estudo, desenvolver

autodeterminação e autoconhecimento, conquistar disciplina, autonomia, ampliar sua

experiência de vida e de escola, pensar no que aprendeu e avaliar sozinho se vai

conseguir fazer a tarefa ou não. "O problema é que os professores muitas vezes erram

na medida, seja ela quantitativa, então a criança fica a tarde inteira fazendo a lição e

você cria rejeição a atividades escolares; ou qualitativa, passando tarefas que a criança

não tem condições de fazer sozinha, gerando frustração nela e nos pais, que

pressionam para que ela faça o dever", explica. "Eu entendo perfeitamente essa crítica

e esse movimento contra a lição de casa; ele é legítimo. Mas, pensando na conciliação,

por que essa lição tem de ser chata, penosa, angustiante? Por que não pode ser uma

atividade prazerosa, divertida e lúdica?"

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Para Nilce, outra ponderação deve ser feita sobre o dever no quesito repetição.

Enquanto os críticos da lição reclamam que as tarefas são entediantes e repetitivas ao

extremo e isso aborrece os alunos, tornando aquele momento algo maçante para eles,

em outra ponta especialistas argumentam que não há perfeição alcançada sem um

treino repetitivo. Exemplo disso são atividades físicas como a dança, ou o aprendizado

de um instrumento musical. Dificilmente a proficiência é alcançada sem o estudo

contínuo e repetitivo. "O ato puramente mecânico não leva à aprendizagem,

entretanto, pode ser fruto de um aprendizado e por isso algo importante no nosso dia

a dia. Imagine como seria dirigir um automóvel, escrever na lousa, usar o caderno,

escrever um simples bilhete se não tivéssemos tantos conhecimentos mecânicos e

automáticos, que são resultados de inúmeras repetições?", questiona.

Sobrecarga

O problema é quando essas repetições são tão excessivas que tomam todo o tempo do

aluno fora da escola, que poderia ser focado para o lazer, para as relações pessoais e

familiares e para outros aprendizados extraescolares. Uma pesquisa da Universidade

de Michigan, feita em com 2,9 mil crianças, mostrou que o total de tempo que os

estudantes passam fazendo a lição de casa aumentou 51%, de 1981 a 2004. Outra

pesquisa recente da Universidade de Sydney, na Austrália, revela que em países onde

se passa mais tempo fazendo o dever, os alunos têm desempenho pior tanto nas

provas feitas em suas escolas quando no Pisa (Program for International Student

Assessment). O estudo, que está no livro Reforming Homework: Practices, Learning

and Policies (Reformulando a lição de casa: práticas, aprendizagem e políticas, em

tradução livre) publicado neste ano pelo psicólogo educacional australiano Richard

Walker, revela ainda que, ao contrário da sobrecarga, uma ou duas horas de lição por

semana não afetam o desempenho dos jovens, e que existem poucos benefícios da

tarefa em geral. A pesquisa demonstra que o desempenho acadêmico melhora por

causa da lição apenas no ensino médio.

Outro estudo, feito por Gerald LeTendre da Pennsylvania State University, mostra que

a maior parte da lição de casa não é planejada como tal, mas faz parte de uma

estratégia para remediar o fato de o professor não ter tido tempo em sala de aula, ou

dar mais exercícios na tentativa de os alunos entenderem algo com que estão com

dificuldade, ou ainda uma maneira de tentar compensar baixos índices de qualidade

de ensino. Claro que os resultados estão baseados no sistema educacional americano.

Mesmo assim, há semelhanças entre os países. Tânia Resende, da UFMG, afirma que,

no Brasil, a lição é frequentemente passada em nome de uma tradição e um hábito

dos professores. "Mesmo entre os professores que dão o dever com um objetivo claro,

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me parece que ele é dado mais porque 'tem que ter dever'", observa. Na sua avaliação,

existe uma pressão da escola e da sociedade para que o educador dê lição de casa,

porque há uma cultura de que o ensino dessa forma é mais "forte".

Equilíbrio

A escola em período integral entra especialmente na polêmica da sobrecarga de lição,

já que seus alunos passam a maior parte do dia na escola e têm pouco tempo livre. Na

escola Stance Dual, de período integral, a forma de encontrar esse equilíbrio e não

sobrecarregar os alunos foi criar a lição longa e a curta. A longa, que pede mais fôlego,

é sempre dada com no mínimo uma semana de antecedência. A curta é algo que exige

pouco tempo do aluno, por isso tem prazo de entrega na mesma semana.

Mas o equilíbrio não é regra nas escolas. Priscilla Perlatti, mãe da Stella, 6 anos, aluna

do 2º ano do ensino fundamental, e Lia, 4 anos, na educação infantil, vive o dilema da

sobrecarga em casa. Suas filhas estudam em um colégio bilíngue em período integral, e

Stella chega em casa às 18 horas com lição de casa não só todos os dias da semana,

mas também nos finais de semana e feriados. "Minha briga com a escola é que a carga

horária é alta o suficiente e não sobra tempo em casa para o ócio, para que ela fixe o

que aprendeu. Eu e meu marido somos superdisponíveis, não é esse o problema",

conta a mãe. Tomando conhecimento sobre o caso, Silvia, da USP, comenta que

provavelmente existe um erro de medida na escola das filhas de Priscilla, e que o ideal

em escolas integrais é que se crie um espaço e tempo para a criança fazer a lição

durante o período em que está lá.

Jarbas Barato, professor aposentado e doutor em Educação pela Unicamp, acredita

que o dever de casa na educação infantil é "uma bobagem". "É uma sobrecarga para

crianças que têm mais que brincar do que estudar", diz. Já nos primeiros anos do

ensino fundamental, a carga deve ser bem dimensionada pela escola, para não

pressionar as crianças. Mas ele atenta para o fato de que muitos pais de classe média

reclamam da sobrecarga dos filhos, quando na verdade eles próprios criam uma

agenda caótica de cursos extracurriculares.

No Brasil

Apesar da diversidade de opiniões, a lição de casa não é um tema amplamente

discutido no Brasil. A professora Marta Helena, da UFCG, lembra que os primeiros

registros de lição de casa são do século 17, e mesmo assim esse é um assunto pouco

aprofundado. Diferentemente dos Estados Unidos, França e outros países, o Brasil não

possui um movimento articulado ou minimamente organizado em torno do tema.

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"Vejo muitas famílias se queixando, tem especialistas com posição mais claramente

contrária aos deveres, mas mesmo assim são poucos", conta Tânia, uma das poucas

especialistas em lição de casa do país.

A função da tarefa é basicamente estender o tempo e espaço de aprendizagem do

currículo escolar, conforme descreve Maria Eulina, da UFPB. "Se subentende que o

tempo/espaço escolar não é suficiente", conclui. Com base nisso, ela analisa que se a

função proclamada do dever é propiciar o gosto pelo estudo e o "aprender a

aprender", isso requer uma pedagogia específica das escolas, o que não se vê com

frequência. Ela acredita que, em nome desse objetivo, muitas escolas capitalizem o

tempo e recursos dos pais em casa, passam tarefas de repetição, aplicação e reforço

(que não entram na categoria de aprender a aprender) e às vezes mandam para casa o

que não deu tempo de fazer em classe.

Independentemente, a função de estender o tempo de contato do estudante com o

objeto do conhecimento é muito importante para a realidade socioeducacional

brasileira, aponta Tânia. "Quando eu penso se a lição de casa deve existir ou não,

concluo que no Brasil deve existir, embora com mais critério do que normalmente",

diz. Isso porque, na realidade de famílias de baixa renda e sem acesso à educação de

qualidade, quanto maior o contato com o conhecimento, melhor. Por isso a

comparação direta da realidade brasileira com a de países europeus e norte-

americanos nem sempre é válida.

A lição ideal

Nessa perspectiva de ampliar o contato do aluno com o conteúdo visto em sala de

aula, o Colégio Móbile, de São Paulo, criou modalidades de lição. Uma delas é a

preparação para o tema que será debatido em classe, que pode envolver a leitura de

um texto, a entrevista de um parente, a pesquisa de breves questões. "Quando as

crianças se preparam para a aula, a participação é extremamente mais rica, e ela não

só enriquece a própria aprendizagem, mas a dos colegas também", afirma Cleuza

Vilasboas, diretora do ensino fundamental da escola. Para ela, é importante que haja o

momento individual de estudo em contraposição ao coletivo da sala de aula, porque a

criança entra em contato com questões individuais de sistematização,

aprofundamento, retomada, dúvida etc. Outra modalidade de lição do colégio envolve

videoaulas, vídeos que trazem uma miniaula expositiva para que o aluno elabore

algumas questões sobre o tema e leve a discussão para a sala de aula.

Recursos tecnológicos como esse são uma tentativa de transformar a lição de casa, o

que, para muitos especialistas e professores, deve ser o objetivo para conquistar o

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aluno e fazer com que ele desenvolva o gosto pelos estudos. "O grande desafio do

professor é fazer com que os alunos criem um prazer por aprender. E, dependendo da

relação que o professor estabelece com o conhecimento, os jovens criam ou não o

interesse e o hábito pelo estudo", afirma Eliane Romano, coordenadora do ensino

fundamental I da Escola Comunitária de Campinas. Para ela, passar a manhã inteira na

escola e à tarde ter de fazer exercícios de sistematização, "continhas" e redação

dificilmente fará com que a criança crie um hábito de estudo. "Ela vai querer fazer

aquilo em pouco tempo, correndo, porque o interesse maior dela não está naquilo",

observa. Para resolver esse conflito, ela defende ser preciso que o professor pense em

uma lição que conecte as necessidades do aluno com seu desejo de conhecer, criando

tarefas mais interessantes. "O que não tem significado para a criança sempre será um

conflito."

Vivência e desafios

Isso não quer dizer que a repetição seja inútil, mas que deve ser equilibrada e

trabalhada de forma que tenha conexão com situações da vivência da criança. Uma

leitura de livro, por exemplo, pode ser trabalhada de forma que a criança interprete

um trecho da obra de uma maneira criativa. O ideal, segundo Eliane, é que a lição de

casa transite entre o que a criança sabe fazer sozinha e aquilo que apresenta um nível

mínimo de desafio para ela. "É isso que o professor precisa saber dosar", diz.

Maria Eulina, da UFPB, concorda e pensa que o conteúdo da lição deveria sempre ser

lúdico e interessante. "Até poderia ser um exercício de repetição, como um jogo de

palavras para treinar ortografia, por exemplo. As crianças podem selecionar e

comentar uma notícia do jornal televisivo, inventar histórias, pensar em soluções para

algum problema

atual do cotidiano, fazer trabalhos manuais, ajudar a mãe nas tarefas domésticas para

aprender algo específico e depois descrever esse aprendizado", sugere. "O conteúdo

da lição de casa deveria ser ao mesmo tempo prático e reflexivo, significativo e

pertinente ao cotidiano, à vida vivida. No cotidiano estão todos os conhecimentos do

currículo escolar."

Silvia Colello, da USP, complementa que a lição mecânica pode até ter algum sentido

na fixação do conteúdo, mas não é significativo para a criança e gera raiva contra a

escola. Mas ao receber uma proposta de situação problema, um jogo, uma entrevista

com um familiar, por exemplo, o aluno tem a oportunidade de pensar sobre aquela

questão e partilhar com os colegas na sala de aula, o que gera envolvimento, estimula

a criatividade, a organização e a responsabilidade. No entanto, existem controvérsias

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em relação à lição de casa sempre divertida e lúdica. Jarbas Barato acredita que essa

preocupação não condiz com a realidade, na qual nem tudo é divertido, e que é

importante que as crianças aprendam isso também. "A vida não é sempre assim, não é

um circo de diversão contínua", diz. Tânia concorda parcialmente, acreditando que a

lição deve ser lúdica sempre que possível para não se tornar enfadonha, mas que o

mais importante é o estudante ser levado a buscar a gratificação no aprender,

entender que é bom vencer o desafio. "E essa alegria na conquista do desafio não

significa estar fazendo algo divertido o tempo todo", justifica.

Novas práticas

Uma proposta inovadora para a lição de casa, mas de difícil aplicação nas escolas, é

que cada criança tenha uma tarefa destinada ao seu nível, combatendo a

homogeneização. "Passar tudo igual para todos é algo atrasado. O professor tem de se

nortear pelo nível de cada criança. Na teoria discutimos muito isso, que a lição de casa

não leva em conta a individualidade da criança", pontua Marta Helena. Silvia Colello,

da USP, também defende uma tarefa mais flexível e que não necessariamente envolva

um planejamento diferente para cada criança. Ela exemplifica, contando que visitou

uma escola que trabalhava com um projeto de circo. Como lição de casa, a professora

propôs que os alunos criassem uma propaganda para o circo. "Foi muito interessante,

porque a criança adiantada fez um texto publicitário com uma imagem, e a criança que

não era tão adiantada desenhou e escreveu 'circo'. É uma flexibilidade que dá margem

ao aluno adiantado de ir lá para a frente e a criança mais atrasada ter a oportunidade

de fazer o mesmo que os outros, mas na possibilidade dela. É diferente de uma lição

em que todos chegam à mesma resposta", afirma.

Um entrave para essa flexibilização, conforme observa Tânia, é que o professor já tem

uma sobrecarga de trabalho, por isso tem dificuldade de sair do modelo de lição

tradicional oferecida para todos. Afinal, é mais simples planejar uma só atividade e

corrigir com base em um padrão. Mas a especialista acredita que em termos ideais, o

melhor seria que cada professor pudesse elaborar ocasionalmente de dois a três tipos

de dever para cada turma, de acordo com o nível dos alunos.

Tempo e espaço

Outros cuidados devem ser tomados para que a experiência com a lição de casa seja

positiva para os alunos e para o seu desempenho. Cleuza, do Colégio Móbile, observa

que a maior dificuldade dos pais está em organizar o tempo do filho em casa, seja

porque trabalham o dia todo e não conseguem dar atenção suficiente, seja porque as

próprias crianças têm muitas atividades na agenda. "Isso gera um cansaço de ambas as

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partes e a lição acaba ficando à deriva, no fim do dia", explica. Isso é negativo, porque

o dever é feito em um tempo reduzido e uma hora em que o aluno não está com

energia e concentração.

Embora os especialistas brasileiros relativizem a quantidade de horas que cada

estudante deve passar fazendo lição de casa, pesquisadores americanos definem com

precisão a dedicação de tempo ideal. Harris Cooper, professor de educação na Duke

University e renomado especialista em lição de casa, recomenda que os alunos no

segundo ano (americano) dediquem não mais do que 10 a 15 minutos diários para o

dever, e que a cada ano que progridem, somem mais 10 a 15 minutos a esse período.

Por outro lado, recente pesquisa do Departamento de Educação britânico, realizada

com três mil crianças ao longo de 15 anos, dá conta de que passar mais de duas horas

por noite fazendo lição de casa está ligado a melhores resultados em inglês (no Brasil

seria língua portuguesa), matemática e ciências. Os efeitos foram ainda maiores para

alunos que passavam de duas a três horas por dia debruçados sobre a tarefa em casa.

A conclusão do estudo é que crianças de 5 a 7 anos deveriam fazer lições de uma hora

por semana, aumentando para meia hora diária para a faixa etária dos 7 aos 11 anos. A

partir dos 14 anos, foram recomendadas de duas a duas horas e meia de estudo em

casa por dia.

Para Tânia, da UFMG, é complicado fixar um tempo de lição sem considerar o nível de

desenvolvimento do aluno, as condições nas quais ele faz os deveres, o tempo de aula

que ele tem (se o período é regular ou integral, por exemplo), entre outros fatores.

As condições às quais Tânia faz referência incluem, muitas vezes, o espaço em que a

criança realiza sua tarefa em casa. Cleuza, do Móbile, conta que em uma atividade com

crianças de 7 anos, pedem para que elas desenhem o local onde fazem lição de casa.

Enquanto alguns desenham uma escrivaninha organizada, outros fazem o tapete da

sala. "Trabalhamos com a criança qual é o melhor espaço para se concentrar e garantir

o maior tempo de atenção. Do mesmo jeito que tem espaço para brincar, nadar, jogar

bola, guardar obras de arte, tem um espaço para guardar o material, fazer a lição, ler,

desenhar, para se concentrar melhor e ter sua função executiva mais bem explorada",

diz. Por isso é importante que haja uma ritualização do espaço em que a criança

estuda em casa, com elementos adequados para estudar e para armazenar os

materiais e suas produções escolares. "Ali vira um espaço para a produção e a criança

vai incorporando aquilo como um valor."

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Crianças que gostam do dever

Pesquisa do DataFolha com 1.525 crianças de 131 municípios mostra que a lição é motivo

de felicidade para 65% das crianças de 6 a 10 anos. Paloma Cotes, mãe de Isabela, 5, que

está na educação infantil, conta que a filha já entende a importância da lição e gosta de

fazer a atividade, mas foi um processo. "No início ela relutava, dizia que não sabia fazer,

que não ficava bom. Eu fui estimulando, dizendo para ela fazer do jeito dela, do jeito que

sabia. E melhorou muito, porque ela foi ganhando mais confiança", diz. A mãe tenta não

apontar erros ou falar como a criança deve fazer a tarefa, ponderando às vezes que ela

pode fazer mais e melhor. "O que eu não deixo é não fazer. Mas ela nunca deixou de

entregar, até porque gosta de mostrar o resultado para a professora." Stella, 6, a filha de

Priscilla que estuda em colégio bilíngue integral, também adora fazer a lição de casa, ainda

que a mãe ache que as tarefas são excessivas. "Percebi que para ela é importante fazer

essa lição porque ela tem expectativa de corresponder ao que a professora pede", conta

Priscilla.

Tânia Resende, da UFMG, explica que isso é comum e que crianças pequenas tendem a ter

esse desejo de corresponder à expectativa do adulto, especialmente se é uma referência

para a criança como uma professora de que ela gosta. Silvia Colello, da USP, observa que

existem três fases descritas pelo pensador em educação Jean Piaget: a primeira é a

anomia, o desconhecimento das regras; a segunda é a heteronomia, na qual a criança

conhece as regras, mas obedece por causa do outro, seja pelo medo da punição e

julgamento alheio, seja para impressionar o outro; e a terceira, que é a autonomia, na qual

ela conhece as regras e as obedece porque estão internalizadas como um valor importante

para o sujeito. As crianças que gostam de fazer a lição para mostrar para a professora

estariam nessa segunda fase, ou seja, ainda vão evoluir para uma completa autonomia. "A

heteronomia pode até acontecer, é uma etapa, mas não é o ideal. O ideal é a autonomia.

Porque o sujeito tem de dirigir sua própria ação, e não ser dirigido," observa.