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POMAR / FAVI
ALEXANDRINA CLAUDIA MORAIS
ARTETERAPIA: ABRINDO A JANELA PARA O MUNDO ATRAVS
DOS SENTIDOS
Rio de Janeiro
2017
1
ALEXANDRINA CLAUDIA MORAIS
ARTETERAPIA: ABRINDO A JANELA PARA O MUNDO ATRAVS
DOS SENTIDOS
Monografia de concluso de curso apresentada ao
POMAR/SPEI como requisito parcial obteno do ttulo de
Especialista em Arteterapia.
Orientadora
Prof. Dr. Eliana Nunes Ribeiro
Rio de Janeiro
2017
2
Dedico ARTE, que sublime, perfeita e nica no resgate do ser.
3
RESUMO
O presente estudo sinaliza a contribuio dos estmulos sensoriais como potentes
estimuladores de memrias e emoes em um processo arteteraputico com
mulheres. Considera que a utilizao dos recursos visuais, auditivos, tteis,
sensitivos, olfativos e gustativos podem trazer tona novas percepes sobre as
possibilidades de mundo, desdobrando-se no empoderamento de mulheres que
esto em busca do resgate do seu feminino adormecido. Investiga como a
arteterapia, usando do estmulo pode proporcionar o acesso s memrias e
emoes adormecidas, ajudando mulheres em seus processos teraputicos.
Palavras-chaves: Arteterapia - Estmulos - Mulheres - Empoderamento.
4
ABSTRACT
The present study indicates the contribution of sensory stimuli as potent stimulators
of memories and emotions in an art therapy process with women. Considers the use
of visual, auditory, tactile, sensory, olfactory and gustatory resources can bring to
ligth new perceptions about possibilites of the wolrd, unfolding in the empowerment
of womem who are in search of the rescue of their dorment feminine. It investigates
how art therapy, using as stimulus, can provide access to dormant memories and
emotions, helping women in their therapeutic processes.
Keywords: Art therapy - Stimuli - Women - Empowerment.
5
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01
Moradas da memria..................................................................... Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/433471532864383779/ Acessado em: 21/02/2017.
10
Imagem 02 Delicadezas da alma...................................................................... Disponvel em: http://highlike.org/ana-teresa-barboza-4/ Acessado em: 21/02/2017.
14
Imagem 03 Janela para a criana de outrora.................................................. Acervo pessoal da autora.
16
Imagem 04 Janela da conscincia................................................................... Disponvel em: https://aprotagonista.wordpress.com/tag/mulher/ Acessado em: 14/11/2016.
18
Imagem 05 Bela, recatada e do lar................................................................... Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/451134087657152342/ Acessado em: 18/01/2017.
20
Imagem 06 Primitiva.......................................................................................... Disponvel em: http://www.stuffhood.com/post/christopher-david- Acessado em: 17/03/2017.
22
Imagem 07 Repensando a vida........................................................................ Disponvel em: http://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid=b 1ee5f4e-9510-4e73-a336-ee4d5e280fc3/ Acessado em: 28/05/2017.
26
Imagem 08
Aprendizado................................................................................... Disponvel em: hconklin.blogspot.com.br/2012/09/leaving-out.html. Acessado em: 01/01/2017.
28
Imagem 09
Parir de mim mesma...................................................................... Disponvel em: https://www.behance.net/gallery/18477021/Experimental-photo graphy-and-illustration-work- Acessado em: 12/01/2017.
32
Imagem 10 A mulher esquecida no tempo...................................................... Acervo pessoal da autora.
34
Imagem 11 Buscando caminhos..................................................................... Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/200621358381136096/- Acessado em: 04/01/2017.
35
Imagem 12 Novos sabores............................................................................... Disponvel em: http://2headedsnake.tumblr.com/post/36024502920 Acessado em: 26/02/2017.
37
Imagem 13 Priso.............................................................................................. Disponvel em: http://l-e-s-b-u-s.tumblr.com/post/42604642190 Acessado em: 22/01/2017.
38
https://br.pinterest.com/pin/433471532864383779/http://highlike.org/ana-teresa-barboza-4/http://www.stuffhood.com/post/christopher-davidhttp://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid%20=b1ee5f4e-9510-4e73-a336-ee4d5e280fc3/http://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid%20=b1ee5f4e-9510-4e73-a336-ee4d5e280fc3/https://www.behance.net/gallery/18477021/Experimental-photo%20graphy-and-illustration-work-%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%0dAcessado%20em:%2012/01/2017https://www.behance.net/gallery/18477021/Experimental-photo%20graphy-and-illustration-work-%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%0dAcessado%20em:%2012/01/2017https://www.behance.net/gallery/18477021/Experimental-photo%20graphy-and-illustration-work-%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%0dAcessado%20em:%2012/01/2017http://2headedsnake.tumblr.com/post/36024502920
6
Imagem 14 Despertar dos sentidos................................................................. Acervo pessoal da autora.
39
Imagem 15 Cheiro de memria........................................................................ Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/412923859554662244/ Acessado em: 17/01/2017.
41
Imagem 16
Gosto de vida................................................................................. Disponvel em: http://celiabasto.tumblr.com/post/119798727150 Acessado em: 10/01/2017.
43
Imagem 17 Mos de afeto................................................................................. Disponvel em: http://miriskum.de/wp-content/uploads/2014/03/Medusaanima tion.gif Acessado em: 31/01/2017.
45
Imagem 18 Ouvindo o som do corao.......................................................... Disponvel em: http://rapidfireart.com/2015/04/21/how-to-draw-an-ear/ Acessada em: 29/01/2017.
47
Imagem 19
Re-olhar.......................................................................................... Disponvel em: http://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olharpessimis ta-militante-da-velha.html Acessado em: 22/03/2017.
48
Imagem 20
Sentidos.......................................................................................... Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/321092648408276176/- Acessado em: 07/01/2017.
51
Imagem 21
Apenas sentir................................................................................. Acervo pessoal da autora.
52
Imagem 22 Janelas da arte............................................................................... Disponvel em: http://photohastings.org/photology-john-stezaker-with-johnslyc e/ Acessado em: 10/01/2017.
53
Imagem 23
Humano ....................................................................................... Disponvel em: http://cultpopshow.com.br/um-mergulho-fantastico-trabalho-de-pierre-debusschere/ Acessado em: 08/11/2017.
55
Imagem 24 Lygia Clark.................................................................................... Disponvel em: http://saofranciscocdn.s3-website-us-east-1.amazonaws.com /wp-content/uploads/2017/03/ScreenHunter_305-Mar.-09-17.51.jpg/ Acessado em: 17/05/2018.
57
Imagem 25 Self................................................................................................. Disponvel em: http://espacohumus.com/lygia-clark/ Acessado em: 02/12/2016.
58
Imagem 26
Mascara abismo com tapa olhos e bicho-objetos de arte........ Disponvel em: http://espacohumus.com/lygia-clark/ Acessado em: 02/12/2016.
58
Imagem 27
A casa o corpo-Nostalgia do corpo: Respire comigo............ Disponvel em: http://espacohumus.com/lygia-clark/ Acessado em: 02/12/2016.
59
http://miriskum.de/wp-content/uploads/2014/03/Medusaanimahttp://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olharpessimis%20ta-militante-da-velha.htmlhttp://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olharpessimis%20ta-militante-da-velha.htmlhttp://photohastings.org/photology-john-stezaker-with-johnslyc%20e/http://photohastings.org/photology-john-stezaker-with-johnslyc%20e/http://cultpopshow.com.br/um-mergulho-fantastico-trabalho-de-pierre-debusschere/http://cultpopshow.com.br/um-mergulho-fantastico-trabalho-de-pierre-debusschere/http://saofranciscocdn.s3-website-us-east-1.amazonaws.com/http://espacohumus.com/lygia-clark/http://espacohumus.com/lygia-clark/http://espacohumus.com/lygia-clark/
7
Imagem 28
Baba antropofgica...................................................................... Disponvel em: http://espacohumus.com/lygia-clark/ Acessado em: 02/12/2016.
60
Imagem 29
Oiticica............................................................................................ Disponvel em: http://www.filmeb.com.br/calendario-de-estreias/helio-oiticica Acessado em: 02/12/2016.
60
Imagem 30 Penetrvel Plstico................................................................... Disponvel em: http://www.espacohumus.com/helio-oiticica/ Acessado em: 07/05/2017.
61
Imagem 31 Blide- Caixa / Blide Cama..................................................... Disponvel em: http://www.espacohumus.com/helio-oiticica/ Acessado em: 07/05/2017.
62
Imagem 32
Ninhos / Blide Ninhos............................................................. Disponvel em: http://www.espacohumus.com/helio-oiticica/ Acessado em: 07/05/2017.
63
Imagem 33
A mulher por traz da janela......................................................... Disponvel em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=909843179146784 &set=pcb909848112479624&type=3&theater. Acessado em: 18/11/2016.
64
Imagem 34 Mulheres........................................................................................ Acervo pessoal da autora.
66
Imagem 35 Em branco..................................................................................... Acervo pessoal da autora.
68
Imagem 36
Mandalas........................................................................................ Acervo pessoal da autora.
70
Imagem 37
Aromas da vida............................................................................. Acervo pessoal da autora.
70
Imagem 38 Bolsa de chita................................................................................ Acervo pessoal da autora.
72
Imagem 39
Aromas de felicidade.................................................................... Acervo pessoal da autora.
72
Imagem 40
Dia da beleza................................................................................. Acervo pessoal da autora.
73
Imagem 41
Ch das delicadezas..................................................................... Acervo pessoal da autora.
74
Imagem 42
Arteterapia da alegria................................................................... Acervo pessoal da autora.
75
Imagem 43
Danando........................................................................................ Acervo pessoal da autora.
76
Imagem 44
Bolinho de infncia........................................................................ Acervo pessoal da autora.
77
http://espacohumus.com/lygia-clark/http://www.filmeb.com.br/calendario-de-estreias/helio-http://www.espacohumus.com/helio-oiticica/https://www.facebook.com/photo.php?fbid=909843179146784
8
Imagem 45
Se remodelando............................................................................. Acervo pessoal da autora.
77
Imagem 46
Produes...................................................................................... Acervo pessoal da autora.
78
Imagem 47
Modelos.......................................................................................... Acervo pessoal da autora.
79
Imagem 48 Fechamento................................................................................... Acervo pessoal da autora.
80
Imagem 49 Janela da alma leve....................................................................... Acervo pessoal da autora.
81
Imagem 50
Transformaes em arteterapia................................................... Disponvel em: http://www.updateordie.com/2015/05/26/imagens-combinam-ilustracao-e-colagem-inspiradas-em-nietzsche/. Acessada em: 21/11/2016.
82
http://www.updateordie.com/2015/05/26/imagens-combinam-ilustracao-e-colagem-inspiradas-em-nietzsche/http://www.updateordie.com/2015/05/26/imagens-combinam-ilustracao-e-colagem-inspiradas-em-nietzsche/
9
SUMRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE IMAGENS
APRESENTAO
INTRODUO
03
04
05
10
14
CAPTULO I: QUANDO A JANELA EST FECHADA 1.1 O SOM DA HISTRIA 1.2 O AROMA PERDIDO DO FEMININO
18 20 25
CAPTULO II: ARTETERAPIA: UMA JANELA PARA UM NOVO MUNDO 2.1 SOB O OLHAR PRECISO DE JUNG 2.2 MULHER ESQUECIDA NO TEMPO 2.3 PROVANDO O SABOR DAS DESCOBERTAS
28 31 34 36
CAPTULO III: ABRINDO AS JANELAS DOS SENTIDOS 3.1 OLFATO QUE LIBERTA AS MEMRIAS 3.2 PALADAR: O GOSTO PELA VIDA 3.3 TATO: SENTIR NA PELE A EMOO 3.4 OUVIR: O SOM DA VIDA 3.5 VISO: UM DELICADO RE-OLHAR
39 41 43 45 46 48
CAPTULO IV: A ARTE MODERNA E SUAS VIVENCIAS SENSORIAIS; QUANDO A ARTE INVADE OS SENTIDOS 4.1 LYGIA: A OUSADIA DA EXPERIMENTAO 4.2 HLIO: MERGULHO NA ARTE
53 56 60
CAPTULO V: A MULHER POR TRAZ DA JANELA; ONDE ADORMECEM E DESPERTAM OS SENTIDOS 5.1 O INSTITUCIONAL 5.2 O PERFIL DO PBLICO ALVO 5.3 FASE DIAGNSTICA 5.4 ESTMULOS GERADORES 5.5 PROCESSOS AUTOGESTIVOS
64 65 65 66 71 75
CONCLUSES E RECOMENDAES
REFERNCIAS
82
84
10
APRESENTAO
Na ausncia de protagonista, ancorei meus braos sobre janelas para
aprender sobre o mundo. Aprendi assim, em silncio, a observar e isso no tirou-me
a fala, ao contrrio, trouxe- me argumentos bem calados nas reflexes.
Olhei por muitas janelas e em cada uma abriu-se um mundo novo. Algumas
apagaram-se da memria, e se no mais existem porque ainda no esto em
tempo de despertar.
Imagem 1: Morada das memrias
Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/433471532864383779/
11
A primeira que lembro-me, abria-se para um sombrio jardim com plantas
insistentes que brotavam em um muro de concreto; l, aprendi a ouvir histrias e
observar as estrelas. J outra abria-se para uma larga rua principal, dela seguiam-se
mais trs que subiam em direo ao cu, no final delas havia uma igreja e de l mais
nada. Por onde quer que todos fossem, passavam por minha janela; traziam consigo
alegrias em embrulhos, vidas novas em carrinhos, amores e desafetos. Dela
enxerguei minha primeira hiptese de mundo. Curiosamente este pequenino lugar
trazia um desejo enorme em seu nome: LIBERDADE. Lembro-me bem como este
lugar tinha cheiro de vida e gosto de amoras silvestres!
Logo fui ver a vida em outra janela; l eu podia ver uma praa, e nela as
crianas em seus conflitos de crescer, os adultos em seus conflitos de ser e ter.
Lembro-me de observar o sorriso de quem conquistou o simples ato de subir no
balano e ser dono de si. Desafiei-me a aprender a subir no lugar mais alto desta
praa, e l passar horas de cabea para baixo vendo o mundo de um jeito que
ningum mais via, enquanto sentia o sol aquecendo a pele e o cheiro do po que
vinha do forno da padaria bem perto.
Dali, segui para outra, bem maior, ancorada no meio da ladeira. Cheguei por
l quando nascia a adolescncia e logo vi que a janela abria-se para o amor. Por ela
tambm passava a morte, fechada em caixes com imensa fila de choros e
silncios, s vezes, cnticos de lamento, e neste caso eu j sabia que tratava-se de
caixes bem pequenos. Aprendi ali que o tempo senhor de si. Aprendi tambm
que tudo pode ser diferente do que parece ser. As tristonhas senhoras, os homens
segurando seus chapus em sinal de respeito, logo depois, desciam em grupos
ruidosos, dominando a arte de contar histrias sobre pessoas que nem mesmo as
prprias protagonistas conheciam. No sei por que, mas isso acontecia sempre s
17h, exatamente quando a torrefao de caf, ali bem perto, soava a sirene e o
cheiro invadia todo o ar.
Ento, minha janela abriu-se para um jardim, alis, era tudo o que podia-se
ver. Assombrava o silncio e foi preciso encontrar alguma beleza para no deixar de
debruar-me por ela. Lembro-me do encanto no dia que ao abri-la pude ver tudo
coberto com fina paina que havia sido lanada das favas de uma imensa rvore.
Olhava sempre seu tronco espinhoso e pensava o porqu de tanta rispidez. Ela
ensinou-me muito sobre o olhar. Amava quando o cheiro de terra molhada entrava
correndo por ela e a mim cabia correr e fech-la. Olhava ento pelos vidros as gotas
12
que escorriam. Por no haver mais o que ver, comecei a desenhar, nas folhas de
papel cabia existir tudo o que eu j havia visto, e tudo o que ainda desejava ver.
noite, nada alm do cu brilhava, e com ele o mais puro silncio que os insetos
interrompiam. Percebi que neste silncio morava a arte que surgiu em desenhos a
nanquim, pinturas a leo, carvo, grafite e em muitos recortes e colagens;
desabrocharam em sabores, com as coisas que eu mesma cuidava com as mos
em todos os tipos de comidas; estas mesmas mos ansiosas faziam crochs, trics
e bordados.
Neste espao pude conhecer todos os sons, cores, formas, aromas e sabores
que ainda no tinha visto, mas decidi ir e talvez esta tenha sido a maior das
escolhas dentre a falta de escolhas. E agora a janela abria-se para o cinza, no
havia plantas, o cheiro era quente e pesado, o som desrespeitoso, o gosto de vazio.
Minha janela tinha grades! Essa era a primeira vez que via o mundo repartido por
linhas e ento decidi reconstru-lo. Aprendi a costurar, montar e modelar. Consegui
reconstruir a fantasia que havia ficado para trs; remodelei a vida! Nestes pesados
ares, fui respirar o teatro, a dana, a msica e as leituras. Resolvi voltar a estudar.
Se antes analista de sistemas, agora analista de pessoas. Fiz normal e educao
artstica e fui ajudar outras pessoas a repintar seu olhar. Enxerguei-me e tracei
novos caminhos.
Mudei de janela novamente. Esta ainda tinha grades, mas eram mais
separadas, entrava muito mais ar e abriam-se para um jardim bem cuidado, mas que
ainda era cercado por um imenso muro azul. Neste azul, meu olhar enxergou o cu
e eu quis voar. Voltei a estudar, agora Artes Plsticas. Descobri a Fenomenologia
da percepo e a Psicologia Humanista e nelas um novo caminho.
Como professora, consegui provar que arte mede-se por encontros e
significados e no por notas, das quais tive permisso para livrar-me. Pude olhar
seres em seus sonhos, angstias, desejos e em seu ser por completo. Tive a vida
em todas as idades, desde a infante at a terceira. Este aprendizado trouxe-me
para outra janela onde morava a arte-educao. Forma de aprender-se com a alma
as coisas dos livros.
Agora meu caminho passava pelo mar, cheirava sal e vento forte, tinha gosto
de descoberta e muita tempestade. Lembro-me bem de como a janela era
curiosamente baixa. Podia-se sair andando por ela; bastava ter passos largos e eu
os conquistei. Destru-me, reorganizei-me, empoderei-me.
13
Escolhi minhas prprias janelas que agora abrem para outras janelas, e nelas
tem de tudo um pouco. Ruas, pessoas, conflitos, amores, amigos, pssaros, jardins,
brinquedos, aromas, sons, sabores novos a cada dia e muitos sonhos e desejos.
Percebi ento que era hora de novos desafios. Era hora de dar s prticas da vida
as teorias que as validassem. Era finalmente a hora da ARTETERAPIA. L todas as
observaes e aprendizado tomaram corpo, ganharam forma, criaram asas diante
do olhar da teoria junguiana.
Ento tirei as grades da minha janela interior, a deixei aberta e por ela podem
entrar novos aromas, posso tocar o vento das descobertas, provar o sabor de
compreender a vida com seus significados, e olhar para um pomar de possibilidades
e ser semente para novos frutos.
14
INTRODUO
Se podemos aprender com os golpes duros da vida podemos aprender com os toques suaves da alma.
Cora Coralina.
Imagem 2: Delicadezas da alma
Disponvel em: http://highlike.org/ana-teresa-barboza-4/
Em variados ncleos da sociedade existem mulheres que guardam dentro de
si uma enorme vontade de mudana, porm so incapazes de perceber o que no
lhes permite mudar. como viver em um cubculo, onde a janela no se abre para
que se possa observar o mundo em que habitam. Abrir a janela ento a sua
tomada de conscincia.
Na busca deste abrir-se, este estudo lana mo dos sentidos para
compreender como o trabalho com a sensorialidade em mulheres um caminho
para despertar o feminino e auxili-las a apropriarem-se de sua existncia, j que
neste trabalho monogrfico o feminino vai estar ligado ao desejo e as coisas do
cuidar.
Mulheres adultas com um histrico de insatisfao carregam tambm a
ausncia de autonomia em seu prprio ser. O caminho para a mudana est em
http://highlike.org/ana-teresa-barboza-4/
15
abrir a janela da vida e encontrar o mundo que existe do outro lado e que por
questes diversas perde-se. Os possveis caminhos para acessar o empoderamento
podem ser percorridos pelos sentidos, j que so acessos primitivos para a
percepo humana, e esto ligados ao nosso instinto primeiro de sobrevivncia.
O papel do Arteterapeuta facilitar este processo atravs de vrias
estratgias expressivas que incluem estmulos aos sentidos. Nutrir estes sentidos
com informaes, imagens, sabores, aromas, toques delicados e sons harmnicos
mostrar a estas mulheres o mundo por trs da janela.
Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado de um dom singular, mais do que homo faber, ser fazedor, o homem um ser formador. Ele capaz de estabelecer relacionamentos entre mltiplos eventos que ocorrem ao seu redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele os configura em sua experincia do viver e lhes d um significado. (OSTROWER, 2014, p. 09)
O objetivo que norteia esta pesquisa sinalizar para a importncia do
trabalho sensorial nos processos arteterapeuticos, como via facilitadora do despertar
criativo e emocional, atuando junto ao fomentar de memrias adormecidas e agindo
como bssola que dar as direes que possam vir a ser seguidas, e para isso
preciso estimular para que o ato de criar e ressignificar ideias e pensamentos possa
ser constante, pois s com ele que se alcanar esta prtica.
Segundo Ostrower (2014, p. 09),
Criar , basicamente, formar. poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse novo, de novas coerncias que se estabelecem para que a mente humana compreenda termos novos. [...] O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar e significar.
E com isso, gera-se a fora de mudana interna necessria para mover-se do
lugar habitual para o lugar das descobertas.
Justifica-se a relevncia deste estudo pelos fatos observados na histria
desde de Aristteles ainda em 384 - 322 a.C. citado por (Aristteles Apud Neto,
Loureno, 2013, p. 32) que Nada est no intelecto sem antes ter passado pelos
sentidos. E igualmente vazio ficaria nosso intelecto se no fosse preenchido pelas
informaes que os sentidos trazem, pois, nossa razo apenas uma receptora de
informaes. Sendo assim, quando a arteterapia vale-se de despertar os sentidos da
16
conscincia sobre si mesmo, consequentemente desperta-se a transformao
interior necessria para a evoluo do ser a que ela se aplica.
Portanto, os sentidos sero a janela mais rpida para o despertar e deve-se
atribuir a eles toda a importncia de seus significados para a vida humana. Sendo
assim, o presente estudo pretende responder seguinte questo:
Qual a contribuio dos estmulos sensoriais no despertar do inconsciente,
em um processo arteteraputico?
O mesmo desenvolveu-se segundo os pressupostos modelos bibliogrficos
de pesquisa e os pressupostos metodolgicos para elaborar um documento que
descrevesse as narrativas dos processos de pesquisa da sensorialidade, como
caminho de despertar os sentidos, para que por eles possam passar aspectos do
feminino esquecido atravs de uma trajetria pessoal que no traz consigo diversas
referncias.
Imagem 3: Janela para a criana de outrora
Acervo pessoal da autora
Todo o percurso bibliogrfico foi sistematizado tendo como fio condutor a
referncia simblica da janela que segue, aos poucos abrindo o interior para um
mundo novo escondido por ela. Para Chevalier (1987, p. 511), a janela refere-se ao
aprendiz e s receptividades, sendo assim, se a janela dos sentidos estiver fechada,
17
no possvel restabelecer-se novas formas de vivncias, ficando, portanto, preso
em ciclos repetitivos. Abrir a janela , portanto, abrir-se para a construo de um
novo ser.
O primeiro captulo; Quando a janela est fechada!, descreve a trajetria
involutiva das mulheres no Ocidente, sua perda de lugar na sociedade e o
aprisionamento em seu prprio ser, forjado pelas transformaes impostas pelo
homem que buscou imprimir sua marca de supremacia e domnio em relao ao
feminino.
O segundo captulo; Arteterapia, uma janela para um mundo novo..., trata da
historicidade da arteterapia, seus processos e mtodos para estimular o ser a
perceber-se como agente possvel de transformaes e provocar aes
transformadoras nele, para que possa ter cincia de suas escolhas e desejos e que
os faa seguindo sua prpria vontade, chegando, portanto, a uma jornada heroica de
satisfao pessoal.
O terceiro captulo; Abrindo as janelas dos sentidos, descreve cada sentido
com seu potencial fsico e emocional, sua historicidade e seus elos com o
inconsciente, bem como suas possibilidades de estimulao, para trazer tona as
memrias necessrias ao processo arteteraputico.
O quarto captulo; Quando a arte rompe as janelas e inunda os sentidos de
novas vivncias, trata dos processos evolutivos da arte contempornea, e de
artistas brasileiros envolvidos nestas experimentaes sensoriais, Lygia Clark e
Hlio Oiticica, autores de prticas estimuladoras de sentidos que at os t5empos
atuais so referncias nos contextos das artes.
O quinto captulo; A mulher atrs da janela, descreve os processos ocorridos
com um grupo de mulheres adultas de uma comunidade em vulnerabilidade social
que foram acompanhadas em estgio supervisionado em seus processos
arteteraputicos, com objetivo de despertar memrias, a conexo adormecida e o
inconsciente destas mulheres, a fim de propiciar um processo de transformao das
mesmas.
Para conduzir as pesquisas e seus processos usou-se dos sentidos atravs
de estratgias variadas como fonte de observao.
Ao final, conclui-se que a estimulao dos sentidos em processos
arteterapeuticos de grande significncia e forma feitas as recomendaes
necessrias.
18
CAPTULO I
QUANDO A JANELA EST FECHADA
Imagem 4: Janela da conscincia
Disponvel em: https://aprotagonista.wordpress.com/tag/mulher/
Este captulo aborda alguns aspectos da trajetria histrica de mulheres no
ocidente, tendo como foco transformaes impostas estas pelo patriarcado, bem
como algumas das consequncias do sistema patriarcal para a sade feminina. O
presente estudo considera o patriarcado como
Uma autoridade imposta institucionalmente, do homem sobre mulheres e filhos no ambiente familiar, permeando toda a organizao da sociedade, da produo e do consumo, da poltica, legislao e cultura. Nesse sentido, o patriarcado funda a estrutura da sociedade e recebe reforo institucional; nesse contexto, relacionamentos interpessoais e personalidade so marcados pela dominao e violncia. (BARRETO, 2004, p. 64)
Afirmando a diversidade das experincias das mulheres e suas conquistas
nesta segunda dcada do sculo XXI, concorda-se com Davis & Fraser (2017) no
19
sentido de que a esmagadora maioria destas no tem acesso autopromoo e ao
avano individual. Segundo as mesmas autoras, sob o ponto de vista mundial, as
condies de vida das mulheres, especialmente das mulheres negras, as
trabalhadoras, as desempregadas e migrantes, tm-se deteriorado de forma
constante nos ltimos trinta anos.
Segundo o relatrio anual da ONU MULHER (2016), o Brasil ocupa a 85
posio em desenvolvimento humano e desigualdade de gnero, segundo o
Relatrio de Desenvolvimento Humano do Programa das Naes Unidas para o
Desenvolvimento. Muito embora o pas tenha alcanado conquistas como, por
exemplo, a Lei Maria da Penha (2006) e o reconhecimento dos direitos trabalhistas
para trabalhadores domsticos - em sua maioria mulheres, afrodescendentes e/ou
migrantes em 2013, o Brasil continua a ocupar o 121. lugar no ranking de
participao das mulheres na poltica. A taxa de desemprego das mulheres cerca
de duas vezes a dos homens; apenas um quarto das mulheres est empregada no
setor formal. O salrio mdio das mulheres cerca de 30% inferior do que os dos
homens; um tero das famlias brasileiras chefiada por mulheres, e a metade delas
monoparental. As mulheres dedicam mais que o dobro de seu tempo para as
tarefas domsticas do que os homens.
Em contrapartida, Vasconcellos (2015) ressalta que segundo o FNUAP
(Fundo de Populao das Naes Unidas) as mulheres so mais da metade da fora
de trabalho agrcola e conseguem, de forma eficiente, administrar os recursos de
alimento, gua e energia. A autora sinaliza, ento, para o potencial da liderana
feminina, pontuando que liderar significa influenciar. A palavra influncia derivada
do latim- flueer fluir . (Vasconcellos, 2015, p. 67) e que [...] quando se influenciam
pessoas, elas fluem como aquelas que as influenciaram. Ento, assim uma corrente
de transformaes pode acontecer. (ibidem). Vale citar, da mesma autora, que
O conceito de liderana evolui ao longo dos tempos e tem a ver com o modelo de homem e de mulher de cada poca. Hoje, leva-se em conta, alm da capacidade e competncia do lder, o contexto em que ele se encontra inserido e a sua subjetividade. (VASCONCELLOS, 2015, p. 67)
Neste sentido, revisitar o caminho percorrido por esse feminino, bem como
compreender as variaes sociais que envolveram as mulheres, pode permitir abrir
os ouvidos a perceber as vozes femininas que ressoam, e as que foram silenciadas.
20
Imagem 5: Bela, recatada e do lar
. Disponvel em: https://br.pinterest.com/pin/451134087657152342/
1.1 O SOM DA HISTRIA
Reconhecendo a amplitude das discusses em torno do estabelecimento do
patriarcado, e das feies que este assume nas variadas culturas, faz-se a opo de
apresentar esse contexto sob o ponto de vista da autora feminista Rose Marie
Muraro (1930- 2014)1. Tomando as palavras da autora:
1 Rose Marie Muraro dedicou-se reflexo terica sobre os direitos das mulheres, abrindo frentes de discusso sobre as relaes de mulheres, homens e sociedade no Brasil. Escreveu mais de 40 livros, entre eles a arrojada obra Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil. Rose Marie editou srie de publicaes, pelas editoras Vozes e Rosa dos Tempos, voltadas para a difuso do pensamento feminista. Contraps-se aos valores conservadores de submisso das mulheres brasileiras e disseminou os ideais feministas de diferentes partes do mundo. Tinha formao em Fsica e em Economia. Teve cinco filhos, 12 netos e quatro bisnetos. Por ser figura central na luta pela emancipao das mulheres, em 2005, Rose Marie Muraro foi reconhecida, pelo Congresso Nacional e pelo governo brasileiro, como Patrona do Feminismo Nacional. Recebeu diversos ttulos e distines, entre elas os Prmios Bertha Lutz, em 2008, e Teotnio Vilela (2009), ambos do Senado Federal, e as honrarias Cidad Honorria de Braslia, em 2001, e de So Paulo, em 2004. FONTE: http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-destaca-o-legado-da-feminista-rose-marie-muraro/. Acesso em 02/01/2017.
http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-destaca-o-legado-da-feminista-rose-marie-muraro/http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-destaca-o-legado-da-feminista-rose-marie-muraro/
21
Comecemos do comeo. A espcie humana tem aproximadamente dois milhes de anos de existncia. Nos primeiros 1.990.000 anos, no existia propriamente a supremacia masculina como a conhecemos hoje. Era o princpio masculino e feminino que governavam juntos o mundo. (MURARO, 2003, p. 11)
Muraro aponta as transformaes sofridas no perodo de 10.000 a 800 a.C.
em culturas primitivas, ainda nos primeiros continentes habitados pelos humanos,
onde iniciou-se a organizao humana em sociedade; mulher cabia o papel
respeitado e sagrado de fertilidade, por sua capacidade de gerar vida. Na sociedade
de coleta, sua posio seguia lado a lado a do homem, vivendo, assim, em
igualdade de valores. Muraro sinaliza que:
O segundo tipo de sociedade foi o que comeou a existir cerca de quatrocentos mil anos atrs. Foram as sociedades de caa. Quando a natureza se tornou menos exuberante, foi preciso correr atrs dos alimentos. Iniciou-se, assim, o perodo da caa aos grandes animais. Agora, j no era mais a capacidade de proporcionar o atributo bsico, mais sim, a fora fsica. E foi assim que os homens comearam a ter primazia sobre as mulheres. Principiou, ento, um novo tipo de sociedade. J era necessrio guerrear contra outros grupos para se obter mais territrio e mais alimento. Os homens passaram a ser guerreiros, e o mais apto tornava-se o chefe do grupo. (MURARO, 2003, p. 15)
Nesse momento da sociedade, segundo a autora, a mulher pouco a pouco,
perde espao e valor. Rose Marie Muraro pontua a criao de ritos de iniciao para
os meninos, que, segundo a autora, seriam a contrapartida masculina para as
passagens femininas da menarca e do parto.
A iniciao masculina a contrapartida da feminina. A mulher, quando chega idade adulta, menstrua. Todos sabem que ento ela est apta a ter filhos. O homem, no. Por isso, quando o menino chega puberdade, os mais velhos levam-no para a casa dos homens. E o rito de iniciao do homem muitas vezes uma iniciao ritual do parto com instrumentos de madeira e cnticos cerimoniais. S ento quando para a si mesmo, o homem adulto e, portanto, livre das mulheres. (MURARO, 2003, p. 17)
Muraro cita, como exemplo, a couvade, costume de algumas sociedades,
segundo o qual o homem vivencia simbolicamente o parto de sua mulher e, aps o
nascimento da criana, recolhe-se como se estivesse em resguardo, considerando
tal costume como inveja do tero. A COUVADE uma cerimnia que faz-se logo
depois que a mulher d luz. O homem tira-a da cama, deita-se com a criana e fica
esperando as visitas. A mulher volta ao trabalho normalmente [...] (MURARO, 2003,
22
p. 17). Seguindo esse caminho, os homens passam a parir ritualmente e tomaram
para si uma virtude unicamente feminina.
Imagem 6: Primitiva
Disponvel em: http://www.stuffhood.com/post/christopher-david
Ainda para Muraro (op. cit.), quanto mais a organizao social evolua, mais
os homens tomavam lugar na sociedade, e toda a beleza das criaes femininas,
como o plantar, a manufatura de cermica ou mesmo contar o tempo e os ciclos da
natureza seguindo seus ciclos de perodos de fertilidade, ficaram suprimidos. Inicia-
se a imposio da castidade feminina, com o intuito de controlar a chamada
legitimidade da descendncia. Surgem, ento, os casamentos como os que
conhecemos hoje, em que a mulher propriedade do marido, e a supremacia
masculina refora-se pelo poder que ele tem de transmitir a descendncia.
[...] usando da fora fsica, comearam a controlar a sexualidade feminina. A linhagem no era mais transmitida pela famlia da mulher e sim, pela do homem. Portanto, se a mulher tivesse um filho fora do casamento, isso iria comprometer seriamente a herana e a posse da terra. Assim, ela tinha que sair virgem das mos do pai e chegar virgem s mos do marido. Qualquer transgresso da virgindade ou adultrio da mulher era punido com a morte. (MURARO, 2003, p. 23/24)
http://www.stuffhood.com/post/christopher-david
23
Muraro sinaliza que os mitos que se referem criao explicam esses
estgios de transformao do feminino onde seguem uma ordem histrica que nos
mostra a perda de territrio para o masculino.
Na primeira etapa o mundo criado por uma deusa me, sem auxlio de ningum (A me terra criadora universal), na segunda etapa o mundo j criado por um casal andrgeno (Yin e Yang-Dois sexos criando juntos), na terceira etapa um deus macho toma o poder e cria a partir da fmea o homem (Shirid no jardim das delcias que tem seu poder roubado pelo deus sol) e j na ultima o deus cria o mundo sozinho e a mulher colocada nele com a funo de servidora ao seu comando e assim se estabelece seu lugar criando um conceito servil que se estabelece no inconsciente coletivo do qual no parece, a maioria das mulheres, ser possvel se rebelar. (MURARO, 2009, p. 08)
Assim, a espcie humana rompe seus elos com a natureza. O homem segue
seu caminho opressor e competitivo, iniciando as guerras e com elas surge a figura
heroica dos grandes guerreiros, que passam a ser respeitados e temidos por seu
poder de domnio. Monteiro (1998) afirma, contudo, que No afirmamos ter
realmente existido um perodo de matriarcado na sociedade humana eliminado pelo
patriarcado, porm tambm afirma que [...] ainda que essas coisas no tenham
acontecido nunca, existiram sempre. (MONTEIRO, 1998, p. 43).
O desenvolvimento do patriarcado, ao longo dos sculos, no Ocidente,
caracterizou-se, tambm, pela desqualificao dos sentidos, em uma anestesia cuja
instaurao passou pela reeducao dos corpos de homens e mulheres, alterando o
ritmo orgnico para o ritmo mecnico. Tais mudanas, contudo, no alteraram as
marcas do patriarcalismo milenar na sociedade Ocidental, que reservou s mulheres
e aos filhos um lugar de submisso em relao ao pai. Dando um salto para o
perodo da Revoluo Industrial (sculo XVIII), percebe-se que a mudana na
maneira de trabalhar, inaugurada pelo advento da indstria, requereu uma
adaptao a um esquema produtivo que mostrava-se indiferente s necessidades e
ritmos vitais que outrora eram regidos pelo prprio corpo e em concordncia com as
alteraes sazonais.
Quer dizer: concorde com a estao do ano, trabalhava segundo a sua necessidade, comia ao ser solicitado pelo estmago, dormia sob o imperativo do sono, etc. Seus horrios e seu regime de atividades se davam em consequncia de um ritmo vital, orgnico, corporal. Entretanto, ao se empregar numa daquelas nascentes indstrias, sua atividade diria passou a ser regida por uma lgica que lhe era exterior. Ocorrncia que o obrigou a dormir, acordar, a comer e trabalhar em conformidade com os horrios estabelecidos por racionalidade produtiva a ele externa e totalmente alheia
24
a suas demandas corporais [...]. Os desequilbrios fsicos e psquicos verificados nesta poca foram notveis. (DUARTE JR., 2001, p. 47)
Ao longo do sculo XVIII estabelecido um novo valor moral, direcionado e
de responsabilidade das mulheres, o amor materno. Sobre esse novo valor, que
naturaliza a mulher como figura materna, Badinter (1985) considera que a
valorizao do sentimento materno varia de acordo com a demanda social. Desse
modo, a autora questiona o que chama de instinto materno, considerando-o uma
construo da sociedade. Badinter mostra, atravs de exames de dados histricos,
que nos sculos XVII e princpio do XVIII, o prprio conceito do amor de me aos
filhos era outro: as crianas das famlias abastadas eram entregues desde cedo s
amas, para que as amamentassem e as criassem, e s retornavam ao lar por volta
dos cinco anos. Aponta Badinter que
medida que funo materna se abrangia novas responsabilidades, repetia-se cada vez mais alto que o devotamento era parte integral da natureza feminina e que nele estava a fonte mais segura de sua felicidade. Se uma mulher no se sentia dotada de uma vocao altrusta, fazia-se apelo moral que lhe impunha o sacrifcio. Essa infelicidade deve ter sido mais frequente do que se queria admitir, pois em fins do sculo XIX e princpios do sculo XX, j no se falava mais de maternidade seno em termos de sofrimento e de sacrifcio, deixando-se por lapso ou esquecimento voluntrio, de s prometer a felicidade que deveria ter sido sua decorrncia natural (BADINTER, 1985, p. 266)
Como foi definido no incio deste captulo, o patriarcado pode ser entendido
como uma forma de dominao que o homem mantm sobre a famlia, na qual a
figura masculina compreendida como a provedora e a figura feminina
inferiorizada, na qual permanece a noo de propriedade do homem sobre a mulher,
esta observada por um princpio negativo, onde sua inteligncia e pensamento so
destitudos. Assim, como ressalta Neumann (2011).
A histria do desenvolvimento da conscincia no Ocidente a de uma conscincia masculina, orientada ativamente, cujas realizaes conduziram cultura patriarcal. Por sua vez, outras leis governaram o desenvolvimento feminino j que este no participa de nenhuma forma decisiva do desenvolvimento masculino, tal como se d na poca moderna. A natureza diferente da psique da mulher e da fmea deve ser redescoberta, se as mulheres quiserem entender a si prprias, mais tambm se o mundo patriarcalmente masculino, adoecido graas sua unilateralidade extrema, quiser recobrar a sade. (NEUMANN, 2011, p. 05)
25
Reiterando o que foi mencionado no incio do captulo, ressalvando-se as
diferentes experincias femininas, o papel social atribudo s mulheres ainda , nos
dias atuais, naturalizado como o de criar e cuidar, deixando estas pouco espao
aos desejos e conexo com os prprios sentidos. preciso despert-los.
1.2 O AROMA PERDIDO DO FEMININO
Esta seo, menciona algumas consequncias do patriarcado para a sade
feminina. Considera-se, ento, pertinente, apresentar um trecho da Poltica Nacional
de Ateno Integral Sade da Mulher, publicada pelo Ministrio da Sade, em
2011.
As mulheres sofrem duplamente com as consequncias dos transtornos mentais, dadas as condies sociais, culturais e econmicas em que vivem. Condies que so reforadas pela desigualdade de gnero to arraigada na sociedade brasileira, que atribui mulher uma postura de subalternidade em relao aos homens. De acordo com o Guia de Direitos Humanos, as mulheres ganham menos, esto concentradas em profisses mais desvalorizadas, tm menor acesso aos espaos de deciso no mundo poltico e econmico, sofrem mais violncia (domstica, fsica, sexual e emocional), vivem dupla e tripla jornada de trabalho e so as mais penalizadas com o sucateamento de servios e polticas sociais, dentre outros problemas. Outros aspectos agravam a situao de desigualdade das mulheres na sociedade: classe social, raa, etnia, idade e orientao sexual, situaes que limitam o desenvolvimento e comprometem a sade mental de milhes de mulheres. Pensar em gnero e sade mental no apenas pensar no sofrimento causado pelos transtornos mentais que acometem as mulheres, ou ento nas tendncias individuais que algumas mulheres apresentam em desencadear crises e depresses. Antes de tudo, necessrio contextualizar os aspectos da vida cotidiana das mulheres, conhecer com que estrutura social contam ou no, para resolver as questes prticas da vida, e reconhecer que a sobrecarga das responsabilidades assumidas pelas mulheres tem um nus muito grande, que muitas vezes se sobrepe s foras de qualquer pessoa. (BRASIL, MINISTRIO DA SADE, 2011, p. 44/45)
Observar o que o contexto histrico impe sobre as mulheres um dos
caminhos para reorganizar sua transformao. Contribuir para quebrar esse ciclo
patriarcal passa, tambm, por despertar, nessa mulher, seu potencial de desejos,
amor prprio e coragem para que queira mudar esse assim chamado destino.
preciso A-COR-DAR seus desejos escuros, perdidos em sculos de histria de
represso, fazendo-a percorrer novos caminhos em busca de si mesma. A questo
agora de como fazer para ativar esse processo de conscincia. Segundo Philippini
26
(2009, p. 09), [...] para percorrer os novos territrios, so necessrios cartas de
navegao ou planos de voo alm da infalvel bssola do self.
Duarte Jr. (2001), preconizando o retorno ao sensvel, pode contribuir,
tambm, com caminhos fecundos. Para o autor, a vida cotidiana encerra um saber e
movimenta-se entre os percalos e as belezas; a sensibilidade que funda a vida,
consiste em um tecido de percepes, com mltiplas sensibilidades e formas de
expresso.
Quando est em jogo esse saber sensvel encerrado em nosso corpo, essa
estesia que nos orienta ao longo da existncia, inevitavelmente o fenmeno artstico dever vir baila - no nos esqueamos que estesia e esttica originam-se da mesma palavra grega. Ou seja, atravs da arte que o ser humano simboliza mais de perto o seu encontro primeiro, sensvel, com o mundo. Situando-se a meio caminho entre a vida vivida e a abstrao conceitual, as formas artsticas visam a significar esse nosso contato carnal com a realidade, e a sua apreenso opera-se bem mais atravs de nossa sensibilidade do que via o intelecto. (DUARTE JR., 2004, p. 22-23)
Imagem 7: Repensando a vida
Disponvel em: http://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid=b1ee5f4e-9510-4e73-
a336-ee4d5e280fc3
Assim, mulheres cujas contingncias da vida limitaram-se s vivncias e
referncias padronizadas, afastadas do exerccio de seus processos criativos, o
http://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid=b1ee5f4e-9510-4e73-a336-ee4d5e280fc3http://www.imagekind.com/Sleeping-beautys-dream_art?imid=b1ee5f4e-9510-4e73-a336-ee4d5e280fc3
27
caminho da sensorialidade, poder lev-las ao revisitar-se atravs da janela do
instinto.
Ento, instinto , essencialmente, a parte do nosso comportamento que no fruto de aprendizado. Contudo, nosso ambiente e, portanto, nosso aprendizado, pode ter um influencia poderosa no modo pelo qual nossos instintos se expressam. O instinto construdo de elementos humanos herdados, de ao, desejo, razo e comportamento. Esses instintos especificamente humanos so aqueles que se formaram durante nosso tempo na savana. (ROBERT WINSTON, 2006, p. 431)
O processo arteteraputico, atravs de seus estmulos geradores de
memrias, valendo-se do trabalho com o sensorial, potente estimulador dos
sentidos mais primitivos dessa mulher e, com isso, tambm capaz de gui-la rumo
sua jornada interior. Esse tema ser visto com mais detalhamento nos captulos a
seguir.
28
CAPTULO II
ARTETERAPIA
UMA JANELA PARA UM MUNDO NOVO
Imagem 8: Aprendizado
Disponvel em: http://hconklin.blogspot.com.br/2012/09/leaving-out.html
Como foi visto no captulo anterior, atravs da arte que o ser humano
simboliza mais de perto o seu encontro primeiro, sensvel, com o mundo. Os
processos teraputicos, utilizando a arte, no Brasil, ganharam corpo e forma sob os
atentos olhares de Nise da Silveira, que referendou as prticas de seus pacientes
com as teorias do mdico suo Carl Gustav Jung. Assim, a construo de um
trabalho teraputico desvinculado da nfase na palavra, valoriza a grandeza dos
29
contedos simblicos embutidos na produo plstica, e o torna mais acessvel e de
amplo alcance a todas as classes sociais.
O caminho do indivduo, via de regra, um caminho de crescimento e de
transformao. Sobre esta trajetria, Grinberg (2003) ressalta no ser algo que
ocorra passivamente, exigindo empenho, engajamento, pacincia e coragem.
Utilizando a metfora da janela, que perpassa este estudo monogrfico, caso esta
no se abra, os canais de conscincia no sero capazes de perceber as
possibilidades de novas experincias. O processo arteteraputico poder cumprir o
papel de guia nesta jornada, como uma bssola para encontrar o caminho que
possibilitar abrir a janela interior, perceber e chegar a novas paisagens. Sobre a
Arteterapia, pode-se considerar que
Uma, dentre s inmeras formas de descrever o que mesmo Arteterapia, ser consider-la como um processo teraputico, que ocorre por meios da utilizao de modalidades expressivas diversas. As atividades artsticas utilizadas configuraro uma produo simblica, concretizada, em inmeras possibilidades plsticas, diversas formas, cores, volumes etc. Esta materialidade permite o confronto e gradualmente a atribuio de significados s informaes provenientes de nveis muito profundos da psique, que pouco a pouco sero apreendidos pela conscincia. (PHILIPPINI, 2013, p. 11)
No Brasil, a Arteterapia foi includa no Cdigo Brasileiro de Ocupaes (CBO)
em janeiro de 2013, no grupo das Terapias Criativas, com o nmero de registro
2263-10. A Unio Brasileira de Associaes de Arteterapia (UBAAT), entidade
responsvel pelo estabelecimento de diretrizes para o exerccio da Arteterapia e
formao de arteterapeutas, apresenta a Arteterapia como
A prtica teraputica que se baseia na crena de que o uso da arte, com base em um processo teraputico, propicia resultados em um breve espao de tempo, estimulando o crescimento interior, o abrir de novos horizontes e a ampliao da conscincia do indivduo sobre si e sobre sua existncia. Para isso, utiliza a expresso simblica, de forma espontnea, sem preocupar-se com a esttica, e isso que a identifica como uma disciplina diferenciada. Enquanto a Arte Educao ensina arte, a arteterapia possui a finalidade de propiciar mudanas psquicas, assim como a expanso da conscincia, a reconciliao de conflitos emocionais, o autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal. Alm disso, a arteterapia tem tambm o objetivo de facilitar a resoluo de conflitos interiores e o desenvolvimento da personalidade. Por ser bastante transformadora, pode ser praticada por crianas, adolescentes, adultos, idosos, por pessoas com necessidades especiais, enfermas ou saudveis. Hoje, exercida em atelis e instituies com atendimentos individuais ou em grupos, auxiliando essas pessoas a
30
transpor as barreiras que impedem uma caminhada saudvel e contnua. (UBAAT, s/d, s/p)
De acordo com a abordagem junguiana em Arteterapia, que fundamenta o
presente estudo, os contedos submersos no inconsciente tomam forma nas mais
variadas linguagens de produo plstica, emergem nas modalidades: esculturas,
modelagens, desenho, pintura, colagem, msica, teatro, escrita potica, tecidos,
experimentao com a tecelagem e alimentos como materialidade e estmulos
sensoriais( degustao), alm de muitas outras linguagens plsticas que podem
surgir no decorrer do processo, de acordo com seu papel facilitador para a
configurao dos contedos a serem acessados
Em Arteterapia o trajeto marcado por smbolos particulares que assimilam, informam e definem sobre os estgios da jornada de individuao de cada um. Este caminho nico, compreende as transies e transformaes em direo a tornar-se um in-dividuo, aquele que no se divide face s presses extremas e que assim procura viver plenamente, integrando possibilidades e talentos, feridas e faltas psquicas. (PHILIPPINI, 2013, p. 11)
Assim, continua Philippini (op. cit.), a comunicao entre o inconsciente e o
consciente ser ativada e realizada por produes simblicas, plasmadas pela
energia psquica a partir dos materiais adequados, oferecidos pelos arteterapeutas.
Desse modo, os smbolos materializados no processo arteteraputico retratam os
mltiplos estgios da psique, e podero estar presentes tanto nas imagens onricas
quanto no prprio corpo, cujas alteraes orgnicas podem gerar as doenas
criativas, indicativas de uma necessidade de reflexo e transformao de padres
de funcionamento psquico. Para a autora
[...] os indivduos, no curso natural de suas vidas, em seus processos de autoconhecimento e transformao, so orientados por smbolos. Estes emanam do self, centro de sade, equilbrio e harmonia, representando para cada um o potencial mais pleno, a totalidade de sua psique e a sua essncia. Na vida, o self, atravs de seus smbolos, precisa ser reconhecido, compreendido e respeitado. (PHILIPPINI, 2013, p. 15)
Sobre o processo criativo e a importncia de configur-lo materialmente,
Ostrower (2014) sinaliza que a produo imagtica consequncia de processos
primrios de elaboraes psquica, sendo, assim, na maioria das vezes, haver a
possibilidade de no passar pelo crivo da conscincia e do controle egico.
31
Posteriormente, ao ser confrontada atravs da materialidade, poder comear
gradualmente a oferecer alguns, dentre seus mltiplos significados, conscincia.
Para Ostrower (op. cit.) criar basicamente poder dar forma a algo novo, em um ato
que abrange a capacidade de compreender e, portanto, de relacionar, ordenar,
configurar, reordenar, significar. Desse modo, para a autora,
Quando vemos uma jarra de argila produzida h 5 mil anos por algum arteso annimo, algum homem cujas valorizaes dificilmente podemos imaginar, percebemos o quanto [...] seguindo a matria e sondando-a quanto essncia de ser, o homem impregnou-a com a presena de sua vida, com a carga de suas emoes e de seus conhecimentos. Dando forma a argila ele deu forma fluidez fugidia de seu prprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a matria, tambm dentro de si ele se estruturou. Criando ele se recriou. (OSTROWER, 2014, p. 51)
Nachmanovitch (2003) sinaliza que, para organizar-se um conhecimento
adquirido na prtica dos processos criativos, pode-se seguir o caminho da auto-
observao e, assim, fica possvel enxergar o prprio pensamento atravs de suas
produes, e tomar cincia delas incio da jornada onde cada um percorrer de
acordo com o prprio tempo.
2.1 SOB O OLHAR PRECISO DE JUNG
O mdico suo Carl Gustav Jung, em sua teoria sobre a psique, dividiu-a
entre consciente e inconsciente e este, por sua vez, se dividiria em pessoal e
coletivo.
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente indubitavelmente pessoal. Ns a denominamos inconsciente pessoal. Este, porm, repousa sobre uma camada mais profunda, que j no tem sua origem em experincias ou aquisies pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo coletivo pelo fato do inconsciente no ser de natureza individual, mas universal; isto , contrariamente psique pessoal ele possui contedos e modos de comportamento, os quais so com grano salis os mesmos em toda parte e em todos os indivduos. Em outras palavras, so idnticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um substrato psquico comum de natureza psquica supra pessoal que existe em cada indivduo. (JUNG, 1875/2016, p. 12)
Jung comeou a utilizar a arte como tratamento a partir da dcada de 1920,
por consider-la a demonstrao mais pura do inconsciente, atravs da configurao
de imagens. Segundo Grinberg (2003), para Jung
32
A finalidade da via humana pode ser vista como a prpria construo da conscincia. Segundo ele, a conscincia, portanto, no simplesmente uma expectadora do mundo, mas participa de sua criao, como se o mundo s pudesse existir ao ser conscientemente refletido. (GRINBERG, 2003, p. 73)
Para Nise da Silveira (1975), em seu estudo sobre Jung, pode-se perceber os
caminhos da energia psquica como modo de se compreender a fora que move os
indivduos na sua busca por mudanas.
Tambm, segundo Jung, sero alimentados germes de novas possibilidades de vida que ainda no haviam ganho foras para emergir. Os contedos do inconsciente ativado pelo fluxo de libido aproximam-se do consciente. O ego poder ento confronta-los, considera-los atentamente. (SILVEIRA, 1975, p. 46/47)
Imagem 9: Parir de mim mesma
Disponvel em: https://www.behance.net/gallery/18477021/Experimental-photography-and-illustration-
work
Interessa a este estudo monogrfico a abordagem junguiana dos tipos e
funes psicolgicas, instrumentos de adaptao ao mundo, aos quais pode-se
aplicar a metfora de janelas. Os tipos psicolgicos, para Jung, so dois, e tem a ver
33
com o funcionamento da conscincia. So eles o extrovertido, quando o interesse
direciona-se primeiro para os objetos e depois para o sujeito; e o introvertido,
quando o interesse vai primeiramente para o sujeito, e depois para o objeto.
Sobre as funes psicolgicas, Grinberg (op. cit.) pontua que, segundo Jung
So utilizadas pela psique consciente em decorrncia de uma necessidade de adaptao vida interior e exterior. Tudo aquilo que o ego emprega visando relacionar-se com o mundo e com os outros uma funo psicolgica. Jung identificou quatro funes psicolgicas que o ego utiliza para se orientar e organizar e experienciar a vida: o pensamento, a sensao, a intuio e o sentimento. (GRINBERG, 2003, p. 75)
As quatro funes psicolgicas organizam-se, segundo Jung, em oposio,
duas a duas. Desse modo, tem-se: pensamento x sentimento como funes
adaptativas racionais e intuio x sensao como funes irracionais de percepo.
Pensamento e sentimento so considerados por Jung funes racionais, pois
partem da reflexo, buscando o que correto, razovel, adaptado. Enquanto o
pensamento avalia por meio de julgamentos. O sentimento avalia por meio de valor.
A sensao e a intuio so consideradas irracionais, operando como maneira da
pessoa perceber o mundo e a si mesma. Sendo a intuio a percepo a partir do
inconsciente, e a sensao a percepo a partir dos rgos dos sentidos. Segundo
Grinberg (op. cit.)
Alm de adotarmos uma atitude introvertida ou extrovertida no transcorrer do nosso desenvolvimento, tendemos a fazer uso consciente principalmente de uma das quatro funes psicolgicas, que, com o tempo, torna-se funo principal ou superior [...]. O desenvolvimento e a diferenciao tanto da atitude (introverso/extroverso) quanto da funo superior comeam a ocorrer muito cedo, j na infncia [...] a famlia e o meio reforam nossas tendncias ou vocaes, mas de qualquer forma, a disposio para desenvolver uma determinada funo est presente em ns desde o nascimento. (GRINBERG, 2003, p. 77)
Alm da tipologia junguiana, descrita acima, dois outros conceitos so
importantes para o desenvolvimento do presente estudo. So eles persona e
sombra.
Persona- arqutipo que se refere mscara que utilizamos para nos apresentarmos ao mundo e aos outros. Ao longo de nossas vidas empregamos vrios tipos de mscaras, de acordo com o momento existencial e o nosso desenvolvimento. A Persona tambm varia conforme a cultura. um canal de expresso da nossa individualidade, sendo
34
extremamente til adaptao coletiva ou no relacionamento com outras pessoas. Torna-se inadequada quando, para esconder nossa Sombra, a empregamos de forma unilateral e rgida. (GRINBERG, 2003, p. 229)
Sombra- arqutipo que representa o lado escuro, inferior e primitivo em todos ns, ainda no desenvolvido. Inclui nossas caractersticas desagradveis, o lado negativo, nossos defeitos e tudo aquilo que desejamos esconder. Dela fazem parte tambm as qualidades da personalidade que, por alguma razo, no puderam desenvolver-se. (GRINBERG, 2003, p. 231)
Unindo-se estes conceitos ao contedo visto do captulo I, pode-se dizer que
o sistema patriarcal pressiona atravs dos costumes, leis, imagens, a constituio de
uma persona feminina com maior ou menor grau de rigidez. Concomitantemente, o
mesmo sistema embota as percepes, desqualificando a sensorialidade, atrelando-
a ao consumo de mercadorias. Novas janelas precisam ser (re) abertas.
2.2 A MULHER ESQUECIDA NO TEMPO
Diante de tantos olhares para as questes que o inconsciente coletivo nos
traz, preciso agora traar um caminho de busca para encontrar a mulher que
existe escondida por trs da janela.
Imagem 10: A mulher esquecida no tempo
Acervo pessoal da autora
35
possvel, por meio do processo arteteraputico, desenvolver os aspectos do
feminino perdido, estimulando para que sejam percebidas e reconhecidas as
questes sombrias que tanto incomodam esse ntimo feminino e que, aps
removidas, podem ser eficazes nas relaes delas consigo mesmas e delas com os
que esto ao seu redor, uma vez que os processos psquicos, quando so
despertados, podem desenvolver a criatividade, a autoestima, o autoconhecimento.
Estas recriaes iro permitir que essa mulher seja capaz de mudar o que no a
est satisfazendo, diminuindo, consequentemente, a insatisfaes cotidianas. Nas
mulheres que sero apresentadas no captulo IV, as citadas doenas psquicas que
emergem em doenas fsicas, surgem com muita frequncia e, devido s graves
dificuldades financeiras, acabam por se agravar, deixando-as em um estado de
desgaste fsico muito avanado, o que as distancia ainda mais de tomarem posse de
suas outras possibilidades de viver o feminino. A vida sem sentido ou busca pessoal,
calada apenas nas funes imediatas de sobrevivncia, deixa essas mulheres
longe das possibilidades de evoluo, pois no possuem referncias para uma nova
forma de ser e agir.
Imagem 11: Buscando caminhos
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Busca-se, ento, baseado no que diz Philippini (2013), A-COR-dar suas
almas, iluminar seus COR-aes e ench-los de COR-agem para traz-las de
volta vida para que sigam sua jornada.
Para Jung, falta s pessoas a percepo de seus sentimentos, para que seja
possvel despert-los:
[...] a grande infelicidade de nossa cultura o fato de sermos estranhamente incapazes de perceber os nossos prprios sentimentos, quer dizer, sentir as coisas que nos dizem respeito. Vemos com tanta frequncia pessoas passarem por cima de acontecimentos ou experincias sem perceberem o que de fato ocorreu com elas. Pois no percebem que tem uma reao de sentimento. (JUNG, 2015, p. 10)
2.3 PROVANDO O SABOR DAS DESCOBERTAS
Vale ressaltar que na sutileza da materializao das formas que est a
janela para a conscincia. medida que a mulher possui a opo de manipular as
formas, dando a elas imagens, consegue ordenar seus pensamentos e dar a eles
forma e sentido. Assim, os pensamentos vazios de conscincia passam a ser
preenchidos de significados que at ento habitavam na escurido. Como bem
ressalta Ostrower:
Em dados momentos de nossa vida, a criatividade parece fluir quase que por si [...] O impulso elementar e a fora vital para criar provm das reas ocultas do ser. possvel que delas o indivduo nunca se d conta, permanecendo no inconsciente, refratrias at a tentativa de se querer defini-las em termos de contedos psquicos, nas motivaes que levaram o indivduo a agir. Alm de impulsos do inconsciente, entra nos processos criativos tudo o que o homem sabe, os conhecimentos, as conjecturas, as propostas, as dvidas, tudo o que ele pensa e imagina. (OSTROWER, 2014, p. 55)
Esse inconsciente que rege o consciente essencial para despertar os
sentidos, afinal um inconsciente coletivo impregnado de hbitos reunidos por
geraes, aguardando o sopro arteteraputico para despertar possibilidades vindas
da sensorialidade, algo que no se nomeia claramente, porm sabe-se que traz
consigo uma carga de desejo imperceptvel. Tomar conscincia do que existe em
seu inconsciente, e depois comear a traar os conceitos para ressignificar
sentimentos e emoes perdidos.
37
Imagem 12: Novos sabores
Disponvel em: http://2headedsnake.tumblr.com/post/36024502920
O leque representado por essa multiplicidade de informaes aberto pela
transposio das linguagens plsticas e expressivas em abordagem genericamente
denominadas amplificao simblica.
isso que pretende-se ao usar dos processos teraputicos para acordar os
sentidos, fazendo com que estimulem todos os canais possveis, para chegar-se
criao e s descobertas de seus prprios desejos. Estar cons-ciente perceber
que h um ponto de seu ser que se transformou, evoluiu, se expandiu e, dessa
forma, no cabe mais no espao que ocupava antes.
Grupos de mulheres cujos processos precisam alcanar camadas mais
submersas para, assim, despertar percepes mais abrangentes precisam de uma
observao mais precisa, e a esse processo chama-se de Circum-ambulao, ou
seja, caminhar e movimentar-se em torno de um eixo construdo pelo smbolo
comum a elas, nesse caso, a retomada de seu feminino atravs do despertar dos
sentidos.
http://2headedsnake.tumblr.com/post/36024502920
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Imagem 13: Priso
Disponvel em: http://l-e-s-b-u-s.tumblr.com/post/42604642190
Para Le Breton (2016) O mundo do homem um mundo da carne, uma
construo nascida de sua sensorialidade passada ao crivo de sua condio social e
cultural, de sua histria pessoal, de sua ateno ao seu meio.
Erguido entre o cu e a terra, cepa identitria, o corpo filtro pelo qual o homem se apropria da substncia do mundo e a faz sua por intermdio dos sistemas simblicos que partilha com os membros de sua comunidade. O corpo condio humana do mundo, este lugar onde o fluxo incessante das coisas se detm em significaes precisas ou em ambincia, metamorfoseia-se em imagens, em sons, em odores, em texturas, em cores, em paisagens, etc. [...] Todas as aes que formam a trama da existncia, mesmo as mais imperceptveis. Engajam a interface do corpo. (LE BRETON, 2016, p. 13)
Sendo, portanto, o corpo, depositrio de memrias e emoes, passa ento a
ser ele a janela de entrada do resgate que espera-se para tornar perceptveis os
segredos do inconsciente.
Nos captulos a seguir, os sentidos sero apresentados de forma mais
aprofundada, primeiro em uma descrio de sua importncia para o estar no mundo;
seguindo-se um captulo sobre artistas que incluram a sensorialidade em suas
obras, e terminando com a exposio de um trabalho arteraputico com mulheres,
onde os sentidos foram a chave para despertar memrias e sentimentos.
http://l-e-s-b-u-s.tumblr.com/post/42604642190%20Acessado%20em%2022/01/2017
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CAPTULO III
ABRINDO AS JANELAS DOS SENTIDOS
Imagem 14: Despertar os sentidos
Acervo pessoal da autora
Os sentidos so parte instintiva do humano, e, por essa natureza, faz-se uso
indeterminado e de modo totalmente inconsciente deles. Ao instinto, cabe a
sobrevivncia e, normalmente, o chamamos de sentidos. O conceito do instinto
humano passa pela polmica permanente do binmio natureza x cultura, visto que
alguns aspectos dos instintos so inerentes ao humano, j outros podem ser
aprendidos num contexto social.
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Ns nos movemos entre formas. Um ato to corriqueiro como atravessara rua- impregnado de formas. Observar as pessoas e as casa, notar a claridade do dia, o calor, reflexos, cores, sons, cheiros, [...] tudo isso so formas que se configuram dentro de ns. De inmeros estmulos que recebemos a cada instante, relacionamos alguns e os percebemos a medida em que se tornam ordenaes. (OSTROWER, 2014, p. 09)
Em todos esses atos, residem os sentidos. Eles apontam para essas
mudanas de estado interior e possibilitam perceber o mundo. Assim, por eles,
ativam-se as memrias guardadas e as emoes mais secretas.
Para o homem no existe alternativa seno experimentar o mundo, ser atravessado e transformado permanentemente por ele. [...]. Um vai e vem instaura-se entre sensao das coisas e sensao de si. Antes do pensamento h os sentidos. Dizer com Descartes: Penso, logo existo, omitir a imerso sensorial do homem no mago do mundo. Sinto logo sou, outra maneira de admitir que a condio humana no toda espiritual, mas primeira vista corporal. (LE BRETON, 2016, p. 11)
Estimular os sentidos para acessar as emoes humanas tambm
despertar a sensibilidade humana.
[...] A percepo uma possesso simblica do mundo, uma decifrao que coloca o homem em posio de compreenso em seu confronto. O sentido no est contido nas coisas como um tesouro escondido, ele se instaura na relao do homem com elas e no debate travado com os outros por sua definio, na complacncia ou no do mundo a alinhar-se nestas categorias. Sentir o mundo outra maneira de pens-lo, de transform-lo de sensvel a inteligvel. O mundo sensvel a traduo em termos sociais, culturais e pessoais de uma realidade outramente inacessvel seno por um subterfgio de uma percepo sensorial do homem inscrito na trama social. Ele se oferece ao homem como uma inesgotvel virtualidade de significaes e de sabores. (LE BRETON, 2016, p. 29.)
Para Ostrower (2014), a sensibilidade humana a captadora das sensaes e aliada dos sentidos nesse processo de percepo do mundo que nos cerca.
Queremos, antes de tudo, precisar a palavra sensibilidade, [...]. Baseada numa disposio elementar, num permanente estado de excitabilidade sensorial, a sensibilidade uma porta de entrada das sensaes. Representa uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de nos. Uma grande parte da sensibilidade, a maior parte talvez, incluindo as sensaes internas, permanece vinculada ao inconsciente. A ela permanecem as reaes involuntrias do nosso organismo, bem como todas as formas de autorregulagem. Uma outra parte, porm, tambm participando do sensrio, chega em formas organizadas. a nossa percepo. Abrange o ser intelectual, pois a percepo a elaborao mental das sensaes. (OSTROWER, 2014, p. 12)
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Para Le Breton (2016), o corpo que liga o humano ao mundo, tudo o que
pode ser percebido deve antes passar por ele. Sentir para ele a via de percepo,
e esta, porm, estreitamente vinculada s sensaes internas.
Le Breton (2016, p. 13) afirma que O mundo do homem o mundo da carne,
uma construo nascida de sua sensorialidade passada ao crivo de sua condio
social e cultural, de sua histria pessoal, de sua ateno ao seu meio. Assim,
compreender melhor cada sentido possibilitar compreender os caminhos a serem
percorridos para abrir as janelas.
3.1 OLFATO QUE LIBERTA A MEMRIA
Quanto amor cabe em uma respirao ofegante, quanto medo cabe em um
perder o flego, quanta angstia esvazia-se em um longo suspiro. Cheirar se
emocionar sempre. Porm, a sutileza e mecanicidade desse ato no o fazem ser
percebido.
Imagem 15: Cheiro de memria
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O olfato no falta ao homem ocidental, falta-lhe antes a possibilidade de falar sem pudor do que ele cheira, de deixar-se levar pelas lembranas, carecendo-lhe ainda um vocabulrio prprio para organizar sua cultura olfativa. Testemunha da intimidade [...] O homem um animal que no cheira (que no quer reconhecer que cheira), e nisto ele se distingue das outras espcies e de sua histria. (LE BRETON, 2016, p. 288)
No mundo, quase tudo tem odor, que usado para classificar, identificar,
escolher ou excluir coisas e pessoas. Porm, a condio humana de ser bpede o
deixou com o olfato limitado, pois, de p, o homem fica longe de muitos cheiros e
usa a viso para identificar o que deseja, perdendo deste modo o contato com o
potencial olfativo.
Le Breton (2016) diz ainda que a apreciao dos odores uma questo de
circunstncia. E ainda continua dizendo que Os odores dependem menos de uma
esttica que de uma estesia, eles muitas vezes atuam fora da esfera consciente do
homem, orientando seus comportamentos mesmo `a sua revelia. (LE BRETON,
2016, p. 294). A rea cerebral de identificao dos odores (rinencfalo) foi
diminuindo de tamanho medida que o ser humano ia evoluindo. Mesmo assim,
uma das funes mais significativas do olfato e que ainda perdura a de estimular a
memria e, nesse campo, o olfato sempre sair na frente. Processos arteraputicos
que mostrem ao crebro o quanto seu olfato pode fazer ressurgir lembranas e
vivncias tero, certamente, muita significncia. Assim, valores que foram
importantes na infncia ou referncias que foram construdas quando pequenos, se
faro gradativamente presentes, levando essa mulher a perceber em que lugar
adormeceu seus desejos, visto que infncia e adolescncia so fases de sua plena
produo.
O odor imprime uma tonalidade particular relao com o mundo. Ele desperta o desejo de instalar no mundo uma morada ou evadir-se dele, incita ao abandono ou desconfiana, induz inquietao ou descontrao. As exalaes de um local dizem sua dimenso moral e o clima afetivo que o envolve. Em quase toda experincia dos sentidos, diz Tellenbach, encontramos um mais no expresso. Este mais que ultrapassa o fato real, mas que sentido, podemos denomin-lo atmosfrico. Mais que os outros sentidos, o odor participa da atmosfera ao mesmo tempo fsica e moral de um lugar ou de uma situao. (LE BRETON, 2016, p. 302)
Estimular o olfato com fragrncias, cremes, frutas, alimentos e, at mesmo,
odores no to agradveis, abrir canal direto para que essa memria seja liberta.
Isso explica a afirmativa de Le Breton (2016, p.300), a qual diz que O odor o
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delimitador da atmosfera, ele imprime a totalidade afetiva a um momento que se
deseja isolar dos outros, separando-o do ordinrio.
Assim, por sua significncia e eficcia, o olfato a via de maior acesso
teraputico e, portanto, com o maior poder de acessar as memrias aos nveis mais
profundos da psiqui.
3.2 PALADAR - O GOSTO PELA VIDA
O paladar um sentido tambm muito significativo, tanto quanto o olfato, pois
sua ao pode acontecer simultaneamente com ele. Perceber sabores e diferenci-
los so tambm parte do instinto de sobrevivncia humana. Provar pode livrar o ser
humano at mesmo da morte.
Imagem 16: Gosto de vida
Disponvel em: http://celiabasto.tumblr.com/post/119798727150
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Ao inverso dos outros sentidos, o paladar requer a ingesto de uma parcela do mundo. A degustao de um alimento ou de uma bebida implica uma imerso de si mesmo. Ela emerge na boca no momento da destruio de seu objeto, que por sua vez se mistura carne, deixando nele seu rastro sensvel. (LE BRETON, 2016, p. 394)
O sabor percebido pelas papilas gustativas espalhadas pala lngua, em um
processo qumico, por vrias regies diferentes, onde cada uma tem sua prpria
sensibilidade. A ponta da lngua, por exemplo, responde pela percepo dos
sabores doces e salgados; a dos lados, pelo azedo, e, o final dela, pelo amargo. Isso
tambm explica a evoluo: gostos adocicados so associados aos alimentos
nutritivos; os amargos, a alimentos txicos (venenosos). Dessa forma, o paladar
qualifica a percepo dos sabores antes de ultrapassar esse domnio, visando a
englobar a preferncia por objetos ou por uma atividade. A gustao do mundo
empresta seu vocabulrio da tradio culinria. (LE BRETON, 2016, p.395).
Apreciar um sabor um exerccio que aprimora-se com a prtica, uma vez
que o paladar um sentido extremamente plstico. Ou seja, a apreciao de
sabores algo possvel de ser aprendido em qualquer idade, alm do que a
variao agrada ao paladar. Alm disso, como o exerccio de alimentar-se envolve
praticamente todos os outros sentidos, comer uma atividade que mobiliza boa
parte do crebro. Porm, esse rgo est preparado para proporcionar-nos prazer e
evitar tudo o que gera desconforto e sofrimento, o que essencial para levar a uma
relao com os alimentos que precisa de cuidado, pois o prazer desencadeado pela
comida pode se tornar uma vlvula de escape para os momentos menos
empolgantes da vida. Assim, as chances de uma vida sem sentido, compensada
pela ingesto excessiva de alimentos, que pode levar obesidade, so grandes.
O paladar um produto da histria, e principalmente da maneira com a qual os homens se situam na trama simblica de sua cultura. Ele est no cruzamento entre subjetivo e coletivo, e reenvia faculdade de reconhecer sabores e avaliar sua qualidade. Contrariamente a viso e audio, e nesse aspecto prximo ao olfato, o paladar um sentido de diferenciao. A sensao gustativa reenvia uma significao, ela ao mesmo tempo um conhecimento e uma afetividade. (LE BRETON, 2016, p. 395)
O arteterapeuta pode e deve usar os sentidos do paladar como fonte de
satisfao, autocuidado e ponte para aberturas sociais, trazendo, assim, um novo
olhar para esse sentido, pois com o paladar se agrega, reune e afaga. Atravs de
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prticas de degustao, a relao interpessoal do grupo pode se redefinir ou mesmo
criar acesso a reas mais bloqueadas, como a memria da infncia, que pode ser
despertada com o sabor de um bolo de chocolate, por exemplo.
3.3 TATO: SENTIR NA PELE A EMOO
O sentir e o perceber o mundo com a suavidade das mos e de toda a pele
so um sentido vital para as relaes humanas. Toque, carinho, aconchego e
afagos, quando registrados na memria, tornam as pessoas mais acessveis aos
relacionamentos futuros e precisam ser valorizados.
Imagem 17: Mos e afetos
Disponvel em: http://miriskum.de/wp-content/uploads/2014/03/Medusa-animation.gif
http://miriskum.de/wp-content/uploads/2014/03/Medusa-
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O sentido que chamado de tato , na verdade, constitudo por cinco
sistemas drmicos (somatossensoriais) distintos que esto relacionados ao contato
fsico, a presso, ao calor, ao frio e a dor, sendo constitudo por cinco sensaes
cutneas diferentes. A pele o primeiro sistema sensorial a tornar-se funcional nos
seres humanos e, por isso, faz do tato um sentido muito importante para as relaes
emocionais humanas que inicia-se ainda na fase embrionria, e transforma a nossa
pele no maior rgo dos sentidos. Nos bebs, por exemplo, a percepo do mundo
que os cerca d-se atravs da pele e, por ela, sentir frio, aconchego, conforto, dor,
passando a atribuir a estas sensaes elas valores negativos ou positivos e
afirmando, assim, sua mediao com o mundo, e com o ser que sero.
O sentido ttil engloba o corpo em sua inteireza, espessura e superfcie, ele emana da totalidade da pele, contrariamente aos outros sentidos mais estreitamente localizados. Permanentemente sobre todos os lugares do corpo, mesmo dormindo, sentimos o mundo circunstante. O sensvel o primeiro lugar da totalidade das coisas, o contato com os outros ou os objetos, o sentimento de estar com os ps no cho. Atravs de suas peles incontveis, o mundo nos ensina sobre suas constituintes, seus volumes, suas texturas, seus contornos, seu peso, sua temperatura. (LE BRETON, 2016, p. 203)
O ato de tocar contm elementos fundamentais para o desenvolvimento
humano, gerando o bem-estar fsico, emocional e social que ir estabelecer o elo
das relaes humanas futuras. Nas estruturas familiares comprometidas, o toque
perde sua utilidade e significado e, muitas vezes, toma um lugar de violentas
memrias. Reativar o toque com estmulos sensveis, texturas, formas e sutilezas
um caminho para reconstituirem-se emoes perdidas.
O tato, portanto, deixa-nos em sintonia direta com a emoo, sobrepondo a
razo. Como nos diz Lucrce O tato, creiam-me, o sentido mesmo do corpo
inteiro: por ele penetram em ns as impresses de fora, por ele revele-se todo
sofrimento interior do organismo, ou, ao contrrio, o prazer do amor.
(Apud LE BRETON, 2016, p. 203).
3.4 OUVIR O SOM DA VIDA
Quando no sabemos o significado das coisas ou mesmo no se compreende
seu valor, tem-se o som como uma referncia de significado. Por ele, pode-se ter
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calma, angstia, afeto, medo ou coragem. Os sons transportam, inspiram ou ferem
para sempre. A histrias pessoais so repletas de sons que marcaram a caminhada.
Imagem 18: Ouvindo som do corao.
Disponvel em: http://rapidfireart.com/2015/04/21/how-to-draw-an-ear/
O ouvido , portanto, um rgo delicadamente preparado para cumprir seu
papel. O aparelho auditivo formado pelas orelhas, que canalizam o som para os
canais auditivos, levando-os para o tmpano, por uma membrana que vibra com a
mdia e transmite o som, fazendo com que ele passe por um delicado conjunto de
ossos que amplia e transmite o som at a CCLEA, uma concha provida de uma
chamada janela oval, recoberta por clulas ciliares que captam o som. Para Le
Breton (2016), O ouvido depositrio da linguagem. O entendimento outro nome
para o pensamento. Ser ouvido significa ser compreendido. E ainda, segundo o
mesmo autor, O ouvido o sentido unificador do vnculo social enquanto ouve a voz
humana e recolhe a palavra do outro.( LE BRETON 2016, p. 130)
Assim, o som que ouvido, o resultado da vibrao dessas clulas
transformada em impulsos nervosos, que so transmitidos ao crtex auditivo e
lbulo temporal e nos chegam recheados de sentidos. Sobre esse som, Le Breton
http://rapidfireart.com/2015/04/21/how-to-draw
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(2016, p. 129) diz que [...] o homem abre uma passagem na sonoridade incessante
do mundo ao emitir sons ou provocando-os por suas palavras, por seus feitos e
gestos.
Os ouvidos sempre se abrem ao mundo, no respeitando nem porta nem clausura alguma, como de fato acontece com o olho, com a lngua e com outras aberturas do corpo. [...] penetrado por ele no obstante sua vontade, o homem sempre est em posio de acolhida ou de recusa, [...]O som mais enigmtico que a imagem j que se d no tempo e no fugaz, a onde a viso permanece impassvel e explorvel. (LE BRETON, 2016, p. 130)
Para o ser humano, o falar um dos sentidos mais usados e, por isso, o que
vem dele de extrema significncia. Dessa forma, o que dito pode representar
uma imensa gama de emoes boas e ruins, que fixam-se na memria ou no campo
emocional. Ressignificar essa fala em palavras, msica ou, at mesmo, sons que
escoem as emoes e esvaziem esses depsitos de memrias um caminho para
obter leveza e lucidez nos pensamentos e sentimentos, haja vista a imensa
capacidade da msica de provocar emoes e transportar a outros tempos.
3.5 VISO COMO UM DELICADO ATO DE RE-OLHAR
A viso, sentido aparentemente simples e orgnico, , na verdade, uma porta
para compreender o mundo ou uma armadilha para si mesmo. O ato de olhar pode
mudar o estmulo para a vida e tambm carregado de significados.
Viso o sentido mais constantemente solicitado em nossa relao com o mundo. Basta abrir os olhos. As relaes com os outros, os deslocamentos, a organizao da vida individual e social, todas as atividades implicam a viso como uma instancia maior, fazendo do cego uma anomalia e um objeto de angstia. Em nossas sociedades a cegueira se assemelha a uma catstrofe, pior das enfermidades. (LE BRETON, 2016, p. 67)
Sentimentos verdadeiros so transmitidos apenas no olhar, assim a
cumplicidade e o afeto tambm moram nele e podem se estabelecer ainda nos
primeiros momentos de vida do ser humano quando seu aparelho visual pode
captar o contorno da figura materna ou de proteo. Nesse caso, trabalha aliada ao
estmulo sonoro, quando reconhece essa figura pelo som de sua voz, e percebe sua
aproximao no momento em que esta vem em resposta ao choro. Assim, logo
antes de enxergar bem, a criana descobre que pode perceber o mundo pelo olhar.
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Relaes profundas de afeto podem estabelecer-se no momento da amamentao
ou nas paqueras nas praas, de forma que relaes de extremo medo ou repulsa,
podem se estabelecer apenas pela simbologia desse mesmo olhar.
Imagem 19: Re-olhar
Disponvel em: http://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olhar-pessimista-militante-da-
velha.html
Segundo Le Breton (2016, p. 69), A viso projeta o homem no mundo, mas
ela apenas o sentido da superfcie. S se veem as coisas que se mostram [...], o
que foge viso, frequentemente, o visvel diferido. Por isso, esse sentido
tambm carrega toda a importncia de trazer ao homem o reconhecimento de
mundo. Assim, o uso da viso como ao arterteraputica a ferramenta mais
imediata para se iniciar o trabalho, pois olhares so movidos pela curiosidade, e
esse reflexo humano quase incontrolvel. Para Le Breton (2016, p. 69),
necessrio ver para alm do mundo que no o da viso costumeira, mas o de um
universo das ideias, pois, tambm segundo ele, A viso transforma o mundo em
imagens e, por conseguinte, facilmente em miragens. Entretanto, a viso partilha
http://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olhar-pessimista-militante-da-velha.htmlhttp://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/12/o-olhar-pessimista-militante-da-velha.html
50
com o tato o privilgio de avaliar a realidade das coisas. Ver o caminho necessrio
do reconhecimento. (LE BRETON ,2016, p. 70)
Enxerga-se, pois, quando os olhos fazem contato com a luz captando ondas
de radiao eletromagnticas, chamadas de espectro visual, as quais o nosso
aparelho visual sensvel, e capaz de dar resposta imediata. A luz tem natureza
eletromagntica medida por comprimentos de ondas e , por elas, que o ser humano
tem a capacidade de extrair informaes do mundo ao seu redor. O que organiza a
viso o crtex cerebral, e que mantm metade de seu funcionamento ligado
anlise do mundo visual.
Ver procede do Latin videre, oriundo do mundo indo-europeu veda, que s