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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARCOS GONÇALVES QUEIROZ
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZ(AÇÃO) DO TRABALHO DOCENTE NA REDE DE ENSINO DA
SERRA/ES: A PRODUÇÃO DE EFEITOS NO “CHÃO DA ESCOLA” (DE QUE VALOR SE TRATA?)
VITÓRIA 2009
MARCOS GONÇALVES QUEIROZ
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZ(AÇÃO) DO TRABALHO DOCENTE NA REDE DE ENSINO DA
SERRA/ES: A PRODUÇÃO DE EFEITOS NO “CHÃO DA ESCOLA” (DE QUE VALOR SE TRATA?)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação, na linha de pesquisa: História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Barros de Barros.
VITÓRIA 2009
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Queiroz, Marcos Gonçalves, 1962- Q3p As políticas públicas de valoriz(ação) do trabalho docente na
rede de ensino da Serra/ES : a produção de efeitos no “chão da escola” : (De que valor se trata?) / Marcos Gonçalves Queiroz. – 2009.
222 f. : il. Orientadora: Maria Elizabeth Barros de Barros. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Educação. 1. Professores. 2. Educação e Estado. 3. Escolas públicas. 4.
Autonomia. I. Barros, Maria Elizabeth Barros de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
Este estudo é dedicado a todas as mulheres e a todos os homens, que, como minha mãe (D. Aloisia), não puderam permanecer na Escola Pública e se educaram na luta pela VIDA, mas não perderam a ternura e a solidariedade com o outro. A todas as professoras e trabalhadores da educação que lutam cotidianamente no “chão da escola”, por uma educação com qualidade social. Ao companheiro Paulo Bernardes pelo exemplo de educador social na luta pelo fim dos preconceitos: presente! Especial: Luiz Carlos Gonçalves (meu Tio: a vida não coube no seu mundo).
AGRADECIMENTOS Profa. Dra. Maria Elizabeth Barros de Barros: pela vitalidade, carinho, bela loucura, principalmente, pela amizade que construímos. Profa. Dra. Regina Helena Silva Simões: pelo respeito e incentivo a todos alunos. Profa. Dra. Ana Lúcia Coelho Heckert (Leila, Soninha, Cristina, Aragão): pela presença, admiração e a força solidária (amor pela vida!). Profa. Dra. Inês Barbosa de Oliveira: pela atenção, contribuição e o coração tricolor. Todos os professores, alunos (Turmas VII e XX) e funcionários (Arminda, Robson, Ana, Inês, Genilda) do PPGE/CE/UFES: muito amor e respeito sempre (1990-2009). Companheiros do SINDIUPES: pela história construída na luta pela democracia. Profa. Janete Magalhães Carvalho: pelo carinho e apoio desde que cheguei na UFES, em terras capixabas. Prof. Jaime Roy Doxsey, Prof. Eudes Pinheiro, Prof. Hiran Pinel e Profa. Cida Barreto: pela ajuda, amizade e acolhida sempre. Companheira de “quase” todas as horas, Marcilene Fraga dos Santos (e família): pelo amor, carinho e cuidado nesses cinco anos. Companheiros do NEPESP/UFES (antes, durante e depois): Rafael, Jana, Fábio, Cri’s, Dani/Tiago, Fabíola, Michele, Joania, Uebinho, Dulci, Suzana, Meri, Clara, Cyrus, Schubert, Giuseppe, na luta para afirmar a vida com o outro, sempre! Família Loureiro (D. Sônia, Aminthas, Fábio...) que me adotou no Espírito Santo. Amigos de sempre e de hoje: Orlando, Neuzinha, Delmar, Jhawa, Elizangela, Andrea, Arthur, Hélio, Cida, Edson, Kiki, Duca, Ana Claudia, Carlinhos, Antonia, Janete, Rosane, Helaine, Nicole, Erineusa, Jane, Rosalba, P. Mara, Ilca, Tatyana, (Valdici), Paulo Roberto, Robson, Sandra, Simone, Carminha, Maurinho, Iara, Iamara, Jair, Libard, Leonara, V. Miossi, William, M. Victor, Márcia, Polly, Sergio, Charlini, Daniel, Das Dores, Marluci, André, Kelly, Alex, Marco, Conceição, Girlene, Gilda, Núbia, Dani Cott, Claudete, Jardélia, Soraia, Jocelene, Miguel, Brito, Bebiana, Jussara, Therezinha, Juçara, Carlos, Vânia, Denise, Ricardo, Timóteo, Mitiko, Edna, Rosane, Anna Paula, Ana Cristina, Ilnete, Hilanete, Bel’s, Gutta, Janaína, Lopes e todos mais, que fazem parte desta história, no coração. A escola e às Professoras participantes da pesquisa: pelo compromisso com a educação pública, todo o meu respeito. Às Prefeituras dos Municípios de Vitória e da Serra: pelo incentivo institucional. Ao CMES: pelo apoio irrestrito no processo de pesquisa. Alina da Silva Bonella: pelo cuidado e carinho na revisão. Muito Obrigado!
RESUMO
A pesquisa teve como objetivo analisar a política de valorização do trabalho docente
na Gestão Municipal de 1997 a 2004, nas escolas de ensino fundamental da Serra-
ES, a partir de um olhar ergológico cunhado por Yves Schwartz e com referência na
teoria do valor do pensamento marxista. Para tanto, considera o trabalho como
atividade coletiva, em que o humano precisa coconstruir a gestão e ampliar sua
autonomia, para dar conta do trabalho docente na escola pública. A educação é
entendida como valor sem dimensão, cuja organização do seu modo de
funcionamento deve estar voltado para a produção de um ensino com qualidade
pública social e com compromisso de afirmar a vida como valor de bem comum à
sociedade. Partindo desse entendimento, percebe que a política educacional, no
período estudado, não fortaleceu e não deu visibilidade a outros modos de
funcionamento na escola, além de valorizar a lógica mercantil como política para
organizar e atribuir valor à atividade dos trabalhadores da educação. Por outro lado,
percebe também que, mesmo com a reforma estatutária e com a execução do
Programa Escola Campeã implementadas na gestão estudada, os educadores
produziram estratégias de luta cotidiana e formas de (re)existir às políticas de
governo desse período. Assim, o trabalho escolar não se resume à sala de aula;
deve se constituir como ato de participação efetiva e coletiva na produção das
políticas educacionais, que devem ser coproduzidas com quem está no “chão da
escola” para que a educação escolar possa cumprir a sua função pública social de
produzir o bem comum. Esta pesquisa pode contribuir para a necessária
problematização do processo de atribuir valor ao trabalho docente às suas múltiplas
dimensões, compreender a gestão como produção de autonomia e como aspecto
importante do processo de ampliação e potencialização dos movimentos instituintes
de mudanças em curso nas escolas para a melhoria da qualidade social da
educação pública e do valor da gestão do trabalho na organização da educação.
Palavras-chave: Trabalho docente. Gestão. Autonomia. Valorização. Política
educacional. Escola pública.
ABSTRACT
This study aimed at analyzing the teacher valorization policy in elementary schools in
the city of Serra-ES, during the city administration taking place between 1997 and
2004. The study uses Yves Schwartz’s ergological perspective and is also based on
Marx’s Theory of Value. Therefore, it considers work as a collective activity in which
the human being needs to co-construct management and widen its autonomy in
order to handle the teaching task in public schools. Education is understood as a
non-dimensional value whose mode of operation organization should be turned
towards producing education with social quality and commitment to asserting life as a
common good value to society. Starting from this premise, the paper realize that the
educational policy in the period under study neither strengthened nor provided
visibility to other modes of operation of schools, besides valuing the mercantile logic
as a policy to organize and attribute value to the activity of education workers. On
the other hand, it also realize that even with the statute reform and application of
Programa Escola Campeã (Champion School Program) during the administration
studied, educators developed strategies of daily struggle and ways of (re)existing to
government policies in this period. Thus, school work is not limited to the classroom,
but must also be constituted as an act of effective and collective participation in the
production of educational policies, which should be co-produced with the ones “in the
school ground” so that school education can play its social role of producing the
common good. This study can contribute to the need of problematizing the process
of attributing value to teaching in its multiple dimensions and also understand
administration as production of autonomy and an important aspect in the process of
widening and potentializing the ongoing instituting movements of schools in order to
improve public education social quality and the value of work management in
education organization.
Key-words: Teaching work. Management. Autonomy. Valorization. Education policy.
Public school.
LISTA DE SIGLAS
ANPAE-ES - Associação Nacional de Política e Administração da Educação – Seção Espírito Santo
ANPEd - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação
ASSOPAES - Associação de Pais e Alunos do Estado do Espírito Santo
BIRD - Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
BM - Banco Mundial
CAP - Comunidade Ampliada de Pesquisa
CDDH - Centro de Defesa dos Direitos Humanos
CE - Centro de Educação
CEE - Conselho Estadual de Educação
CEI - Centro de Educação Infantil
CLT - Regime de Consolidação das Leis Trabalhistas
CMES - Conselho Municipal de Educação da Serra
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
CONED - Congresso Nacional de Educação
CPC - Centros Populares de Cultura
CPERS - Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul
CUT - Central Única dos Trabalhadores
EEF - Escola de Ensino Fundamental
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ETEFES - Escola Técnica Federal do Espírito Santo
FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz
FMI - Fundo Monetário Internacional
FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
FUNDESCOLA - Fundo de Desenvolvimento da Escola
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEB - Movimento de Educação de Base
MEC - Ministério da Educação
NEPESP - Núcleo de Estudos e Pesquisa em Subjetividade e Política
ONG - Organização Não Governamental
PCV - Plano de Carreira e Vencimentos
PDE - Plano de Desenvolvimento da Escola
PDT - Partido Democrata Trabalhista
PNE - Plano Nacional de Educação
PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação
PPP - Projeto Político-Pedagógico
PPS - Partido Popular Socialista
PROCAP - Programa de Capacitação de Pessoal
PSB - Partido Socialista Brasileiro
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
RENASGESTE - Rede Nacional de Referência em Gestão Educacional
SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica
SEDU - Secretaria Municipal de Educação da Serra
SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SESI - Serviço Social da Indústria
SINDIUPES - Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo
UFES - Universidade Federal do Espírito Santo
UFPB - Universidade Federal da Paraíba
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - União Nacional de Estudantes
UNESCO - Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................... 13
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO............................................................................ 16
2 REVISÃO DE LITERATURA................................................................... 25
2.1 JUSTIFICANDO A CONTEXTULIZAÇÃO DO PROBLEMA.................... 37
3 TECENDO OS CAMINHOS DE CONSTRUÇÂO DO REFERENCIAL TEÓRICO.................................................................................................
45
3.1 O DEBATE DA QUESTÃO TRABALHO E VALOR.................................. 50
3.1.1 A discussão sobre o trabalho e valor em Marx................................... 50
3.1.2 Trabalho, valor e as relações sociais de produção na sociedade capitalista.................................................................................................
52
3.1.3 O trabalho como valor de mercado: valor de uso e valor de troca..........................................................................................................
60
3.1.4 O valor, o serviço e o trabalho docente: nada é natural, mas tudo está em relação de produção................................................................
71
3.2 A ERGOLOGIA: SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A ANÁLISE DO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE...............
75
3.2.1 A Produção da gestão do trabalho docente na educação pública..... 77
4 TRAÇOS DA HISTÓRIA: AFIRMAÇÃO DO VALOR DA ESCOLA PÚBLICA NO BRASIL E NO CONTEXTO SERRANO..........................
97
5 A EDUCAÇÃO NA SERRA ENTRE 1997 E 2004: AS POLÍTICAS PRODUZIDAS.........................................................................................
114
5.1 A CONJUNTURA MUNDIAL E NACIONAL............................................. 114
5.2 OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO DE SERRA....................
116
5.2.1 A administração 1997-2000 na Serra: o primeiro mandato na educação..................................................................................................
120
5.2.2 O segundo mandato municipal na educação: 2001 – 2004................. 142
6 OS CAMINHOS DA PESQUISA: E AGORA?......................................... 156
6.1 OS CAMINHOS DA PESQUISA COM A ESCOLA...................................
158
6.2 A ORGANIZAÇÃO GERAL DO FUNCIONAMENTO DAS ESCOLAS NA SERRA......................................................................................................
158
6.3 O MODO DE FUNCIONAMENTO DA ESCOLA: UMA ROTINA OU RITUAL DE OCORRÊNCIAS...................................................................
160
6.3.1 O pesquisador com a escola................................................................. 161
6.3.2 Um dia na escola..................................................................................... 161
6.4 AS POLÍTICAS DE GOVERNO E A PRODUÇÃO DO VALOR DO TRABALHO DOCENTE: A VOZ DO CHÃO DA ESCOLA........................
172
6.4.1 Considerações sobre o processo de entrevistas e o olhar dos trabalhadores .........................................................................................
174
6.4.2 A discussão da dimensão mercadológica............................................ 178
6.4.3 A dimensão ergológica: a questão da organização do trabalho........ 183
6.4.4 Uma dimensão do bem comum: a gestão da participação política... 196
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 203
8 REFERÊNCIAS....................................................................................... 214
13
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é resultante de nossas inquietações e experiências como militante do
Movimento Estudantil nos anos 80, aluno de cursos de pós-graduação, professor de
Educação Física do ensino público e dirigente sindical durante os anos 90 e, hoje,
atravessada a fronteira do século XX, como participante da Comunidade Ampliada
de Pesquisa (CAP), ligada a uma das pesquisas efetuadas no Núcleo de Estudos e
Pesquisa em Subjetividade e Política (NEPESP), do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), cujo foco temático da
pesquisa/formação é trabalho/saúde na escola pública.
Nesse período, a participação nas discussões sobre as políticas públicas acerca do
trabalho docente e a conformação/qualificação desse trabalho nas escolas públicas
não foram poucas. Participamos de mesas de negociação com administrações
públicas, de assembleias da categoria do magistério, de cursos de formação, de
congressos e de debates promovidos pelo Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Pública do Espírito Santo (SINDIUPES) e de outras atividades de
movimentos organizados da sociedade, tais como: Central Única dos Trabalhadores
(CUT), Associação de Pais de Alunos do Estado do Espírito Santo (ASSOPAES),
Centro de Defesa e Direitos Humanos (CDDH), Associação Nacional de Política e
Administração da Educação (ANPAE-ES), principalmente na Grande Vitória. A
experiência de participação nesses espaços coletivos ajudou a formular questões
que nos levaram a um outro campo problemático.
A partir dos debates com os companheiros da pesquisa e formação do NEPESP
sobre os processos de saúde/doença dos trabalhadores docentes nas escolas do
município da Serra, emergiram questões que apontaram para aspectos das políticas
institucionais e dos processos de valoriz(ação)1 do trabalho docente na escola
pública, que provocaram e inspiraram a elaboração desta pesquisa.
1 A grafia da palavra valorização terá essa forma por acreditarmos que os humanos sempre atribuem valores ao viver. Não há deserto de valores nas relações entre os humanos. O que precisamos
14
Assim, a dissertação, cujo título é “As políticas públicas de valoriz(ação) do trabalho
docente na rede de ensino da Serra/ES: a produção de efeitos no ‘chão da escola’
(de que valor se trata?)”, foi desenvolvida no Curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo (PPGE/CE/UFES), na linha de pesquisa “História, sociedade, cultura
e políticas educacionais”.
Com ela se efetivou uma proposta de investigação que visa a conhecer como se
constituíram os processos de valoriz(ação) do trabalho docente no município da
Serra/ES, no período de 1997 a 2004. Essa investigação tomou como eixo a relação
das políticas de governo com a produção de estratégias por parte dos professores
em favor de um trabalho mais digno, comprometido e solidário com a produção de
relações mais ativas que potencializam e afirmam o exercício da cidadania2 e a vida
no cotidiano escolar. Buscamos ampliar a luta pela escola gratuita, democrática e
com qualidade social.
Para a efetivação da pesquisa, tivemos, como campo de investigação, a Rede
Municipal de Ensino da Serra/ES, com o propósito de melhor entender os processos
de atribuição de valor ao trabalho docente nessa cidade, por parte do governo.
Com o objetivo de discutir a questão dos processos de produção de valor –
valoriz(ação) – do trabalho docente, apresentamos a dissertação em sete capítulos,
com a seguinte distribuição:
O Capítulo um apresenta e contextualiza nosso campo problemático: a valoriz(ação)
da atividade docente considerando a questão da autonomia do trabalhador.
O Capítulo dois traz o estado da arte das pesquisas em torno da temática da
valorização do trabalho docente, considerando diferentes olhares na abordagem
sobre a importância da gestão para a autonomia no trabalho na escola pública,
visando à qualidade social da educação.
indagar é: quais valores têm sido colocados em “ação”, na formulação de políticas públicas do município da Serra? 2 Cidadania aqui é concebida como uma prática social balizada por princípios éticos, estéticos e políticos, em que as pessoas, em suas relações sociais, buscam valorizar e ampliar as ações de afirmação da vida como bem comum para toda a sociedade.
15
O Capítulo três apresenta, primeiramente, um pouco da discussão teórica sobre a
questão do valor em Marx, no sentindo de entender como se processa a produção
do valor de uso e valor de troca e suas relações no modo de produção capitalista.
Em seguida, fazemos um debate sobre a contribuição da ergologia3 para análise do
processo de valorização do trabalho docente.
O Capítulo quatro é um recorte da história de luta dos movimentos sociais em
defesa da educação pública de qualidade e da valorização dos trabalhadores da
educação, como estratégias de (re)existência e de produção de outras formas
possíveis de organização do trabalho escolar em favor de uma escola mais
democrática.
O Capítulo cinco discorre sobre as políticas e projetos educacionais implementados
entre 1997 e 2004, com a Gestão do PDT à frente da Prefeitura da Serra.4 Aqui
tentamos discutir as políticas e projetos educacionais a partir do que eles
representaram para a organização do trabalho na escola e como se efetivaram
ações de atribuição de valor ao trabalho docente nas escolas de ensino fundamental
da Rede Municipal da Serra.
O Capítulo seis é dividido em dois momentos: um relata “os caminhos da pesquisa”,
como foi o processo de produção do material estudado, o processo de entrevistas
coletivas e individuais, o estar na escola e nas assembleias da categoria
considerando: as dificuldades, as parcerias e as ruas sem saída em que entramos e
tivemos que retornar, recomeçar e construir outros caminhos. O segundo trata da
discussão de como os professores produziram estratégias para efetivar o trabalho
escolar a partir as políticas educacionais institucionalizadas no período entre 1997 e
2004, considerando a perspectiva de se lutar por autonomia e melhores processos
de atribuição de valor social e econômico à atividade docente.
3 A ergologia vem se constituindo em uma grande ferramenta de análise do trabalho. Segundo Fonseca e Barros ([2006], p. 13), “[...] um potente intercessor que, ao se apropriar de conceitos de diferentes disciplinas, aponta as (re)singularizações parciais, inerentes às atividades de trabalho, para esse fazer industrioso que é o fazer humano”. Para a ergologia, uma das questões interessantes é compreender a atividade trabalho na sua processualidade histórica de produção de normas e valores (sem dimensão) de afirmar a vida como bem comum no diálogo com o outro. Como diria Maturana (2002, p. 121), na conversa (diálogo) centrada no amor, que permite a aceitação e a convivência com o outro é, que, “[...] como seres humanos somos o que somos no conversar, mas na reflexão podemos mudar nosso conversar e nosso ser ”, fazer história. 4 Gestão do PDT refere-se ao período de governo de 1997 a 2004, no município da Serra/ES, que diz respeito a dois mandatos consecutivos de Administração da cidade.
16
O Capítulo sete traz algumas considerações sobre a pesquisa, quando
apresentamos a construção conceitual durante o estudo: a construção coletiva do
processo de investigação como compromisso transformador da educação;
considerações sobre a potência das políticas educacionais de governo para o
trabalho escolar e a importância de os professores produzirem estratégias para
atribuir valor à atividade docente, tendo como princípio a construção da escola com
qualidade social e uma última consideração que busca problematizar a questão da
autonomia, como valor sem dimensão para a educação e como prática que busca a
afirmação da vida como bem comum.
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Na década de 90, a educação brasileira se encontrava predominantemente sob o
intenso debate da lógica das políticas neoliberais, provocadoras da “Falsificação do
Consenso” (GENTILI, 1998) e da “Escola S.A.” (SILVA; GENTILI, 1996), lógica
defensora da política do Estado-Mínimo e da escola mínima, que buscava promover
a diminuição da participação estatal na produção de políticas públicas sociais
destinadas à maioria da população, em nome de uma forma de desenvolvimento
econômico e social do País que acompanhava a agenda da reestruturação produtiva
e a globalização do capital financeiro internacional.
No decorrer dos anos 90, o debate sobre educação e desenvolvimento esteve pautado pela exigência de responder ao padrão de qualificação emergente no contexto de reestruturação produtiva e de globalização da economia, ocupando lugar de destaque nas políticas educacionais. As discussões que ocorreram explicitam a necessidade de serem repensadas alternativas para problemas estruturais da educação brasileira, passando pela reforma dos sistemas públicos de ensino (OLIVEIRA, 2001, p. 61).
Nessa década, o debate sobre a educação pública brasileira é pulsante e envolve
vários agentes sociais. Debatem-se: a necessidade de uma nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), as greves na educação, o fracasso escolar, o
analfabetismo, a educação como mercadoria/lucro, a educação na formação da
cidadania, a gestão democrática na escola, as práticas e a formação do educador, a
17
autonomia e a valoriz(ação) dos trabalhadores em educação, em especial, do
trabalhador docente.
Esse debate nacional faz parte da pauta das discussões dos sindicatos e
Associações de profissionais da educação e da sociedade civil organizada nos
Estados. No Espírito Santo, esse debate foi produzido pelo SINDIUPES, articulando
discussões e ações dos trabalhadores da educação no Estado com outras
instituições da sociedade capixaba solidárias com a construção de uma educação
pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis.
Foi nesse cenário de luta por um projeto de educação nacional nos anos 90 que
viemos para o Espírito Santo e nos tornamos cidadão capixaba. Nossa inserção no
contexto sociopolítico do Estado começou pela academia como aluno de mestrado
do próprio PPGE/CE/UFES, em curso que não foi concluído. Em 1993, a
“sobrevivência falou mais alto” e assumimos uma contratação temporária no
município da Serra, como professor de Educação Física escolar. A experiência de
contratação temporária perdurou até 2001, quando, após aprovação em concurso
público, fomos efetivado.
Em 1994, trabalhamos como professor efetivo em Vila Velha. Em 1995, fomos
nomeado professor de Educação Física do ensino fundamental no município de
Vitória e nos desliguamos da educação pública de Vila Velha. Nessa época, já
estávamos envolvido com movimentos organizados da política capixaba e
participando como base do movimento sindical, em particular, do SINDIUPES. Na
condição de militante desse Sindicato, compusemos sua direção de 1997 a 2006,
por meio de processos eleitorais da categoria.
Depois da primeira experiência no Curso de Mestrado em Educação da UFES,
reaproximamo-nos da Academia no ano de 1997, por meio do Departamento de
Psicologia, frequentando um curso de pós-graduação lato sensu sobre práticas
pedagógicas em instituições públicas.
A partir dessa reaproximação e com a participação em congressos científicos,
sindicais e cursos de formação política e sindical em nível regional e nacional, como
os promovidos pela ANPAE, Escola Sindical Sete de Outubro de Belo Horizonte/MG
e CUT, vislumbramos, no debate com muitos educadores, operários, sindicalistas,
18
pesquisadores, militantes de partidos políticos e estudantes, uma leitura mais
intensa e produtiva de construção de outras possibilidades de intervenção militante
nos mundos do trabalho e do trabalho na escola pública.
Desde então, ser professor, ser “objeto” de investigação de pesquisas, ser
acadêmico/pesquisador, ser dirigente sindical, ser negociador, ser cidadão, ser
negro e ser gente com direito ao lazer têm sido uma prática cotidiana, produzida no
diálogo cotidiano das relações com outros viventes humanos, na qual o debate
sobre a questão da valorização dos trabalhadores em educação no Espírito Santo,
em especial na Grande Vitória, tem tido grande importância.
Esse diálogo/conversa, gestando a vida cotidianamente com o amor de Maturana
(2002), é uma produção militante do trabalho. Trabalho que nos convoca a essa
tarefa sem a emissão de circulares e convocatórias: o trabalho é gestão dos corpos
em luta permanente no meio laboral para afirmarmos a vida como valor do bem
comum, nossa existência sócio-histórica.
Como militante no âmbito do trabalho em educação, foram esses diálogos em
construções permanentes, no dia a dia, que produziram esse caminho até aqui, com
muita gente e com muita luta e solidariedade, objetivando compreender –
transformar a organização do trabalho nas escolas públicas e em outros espaços de
trabalho na sociedade. Esse trabalho tatuou o corpo, provocou, fez retornar aos
estudos em nível de mestrado, buscando apostar em outras formas de saberfazer a
escola pública.
Em decorrência dessa vivência militante de luta por uma outra escola mais justa e
democrática,5 realizamos encontros com tantos outros trabalhadores da educação,
da saúde, da metalurgia, do mercado informal, do meio rural, da juventude, dos
partidos, dos sindicatos e associações, também com desempregados, sem-terra,
domésticas, “donas de casa”.
Em 1996, a sociedade brasileira presenciou a aprovação da LDB de Darcy Ribeiro
(LDB n°9.394/96) no Congresso Nacional. Aprovação articulada pelo Governo
5 Democracia entendida, segundo Negri, como um processo que pode convergir numa comunidade interligada em redes, em que “[...] diferentes grupos e indivíduos podem associar-se em fluidas matrizes de resistência; deixando de constituir ‘massas’ silenciosas e oprimidas, podem formar uma multidão, com o poder de forjar uma alternativa democrática à atual ordem mundial” (Acesso em 5 maio 2007).
19
Federal para impedir a tramitação da LDB do relator Jorge Hage, que era resultado
de uma ampla negociação nacional de vários setores da sociedade organizada com
o Estado. Hoje, estamos vivendo efeitos dessa nova ordenação legislativa
educacional nas escolas e em outros espaços da sociedade brasileira.
Desde 1988, mas com mais força na segunda metade da década de 90, as políticas
de descentralização por parte do Governo Federal são afirmadas e ampliadas na
área da educação, impondo aos Estados e aos municípios mais responsabilidades
constitucionais significativas do ponto de vista administrativo, econômico e social.
Como exemplo, a implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF), por meio da Lei nº
9.424/96, e da Emenda nº 14/96 que foi geradora de uma onda de municipalizações
do ensino fundamental em todo o País, como jamais vista na nossa história.
Essa nova conjuntura político-econômica possibilitou que governos estaduais
começassem a desenvolver estratégias políticas de transferência do ensino
fundamental para municípios e de desobrigação progressiva da oferta desse nível de
ensino à população.
Ao operar assim, os Estados produziram um aumento vertiginoso da demanda por
escolas públicas nos municípios, sem que eles estivessem preparados e
estruturados para absorver essa população escolar migrante das redes estaduais.
Muitos municípios encamparam essa política, pressionados pelos Estados, sem
terem reunido condições de resolver os problemas relativos ao ordenamento jurídico
com relação aos trabalhadores da educação e ao modelo de gestão da escola. Isso
aconteceu para que eles pudessem absorver os alunos do ensino fundamental
mantidos pelo Estado, sem entender a nova forma de alocação de recursos para a
educação, sem dirimir as desigualdades institucionais e administrativas que há muito
vinham justificando e alimentando as práticas políticas de enxugamento das políticas
sociais dos governos.
Nesse contexto da LDB nº 9.394/96 e do FUNDEF, também os municípios se viram
obrigados a produzir ações de “valorização” do trabalho docente nas suas redes de
ensino, por meio de reformulação-criação de estatutos e planos de carreira, com
20
vistas à construção de um ensino mais eficiente, produtivo e com mais controle por
parte da sociedade.
Segundo Gil e Arelaro (2004, p. 17),
No Brasil, a municipalização está sendo implementada em um contexto de ‘enxugamento’ do poder estatal. Esta redução da máquina pública visa à diminuição de gastos para o pagamento de compromissos com o mercado, em especial as dívidas externa e interna. Assim, a descentralização através da municipalização do Ensino Fundamental é parte do mecanismo para ”enxugar as políticas sociais.
Hoje, observa-se que os problemas históricos de condições e organização do
trabalho nas escolas públicas, de precarização e proletarização do trabalho docente
(COSTA, 1995; SILVA; AGUIAR, 2004) não foram superados por razões relativas à
lógica de gestão mercadológica inerentes ao projeto liberal de reestruturação
produtiva, que provocou, no conjunto da sociedade, cenários de exclusão,
desemprego, flexibilização/precarização das relações de trabalho, processos de
terceirização do trabalho, diminuição dos postos de trabalho e aumento do mercado
informal. Isso tudo combinado com o surgimento dos cursos de requalificação
profissional e das organizações não governamentais (ONGs), para reintegrar o
trabalhador no mercado de trabalho.
Acreditamos que as ações políticas governamentais que se nomeavam de
“descentralização” administrativo-econômica e a tentativa de imposição da
flexibilização das relações de trabalho (uma das bases de articulação técnico-política
do movimento de reestruturação produtiva), como uma forma possível de
organização do trabalho na escola pública, para promover a substituição do modelo
tecnicista administrativo e burocrático que vigorava até então, não foram suficientes
para melhorar o ensino público. Pode-se dizer que essas ações não produziram
resultados para os problemas e a complexidade da organização do trabalho escolar
de forma a contribuir para “aumentar” a autonomia e a “valorização” dos
trabalhadores em educação e da escola pública como lugar de inventividade, criação
e exercício da cidadania.
Estados e municípios, na tentativa de atender às exigências legais (LDB e
FUNDEF), produziram novos estatutos, planos de carreira e vencimentos, modelos
administrativos, levando as escolas e seus trabalhadores à construção de novas
21
relações, de outras experiências, práticas de resistência6 e saberes para
enfrentamento dessa nova realidade institucional que coloca na pauta do dia a
questão dos processos constitutivos da “valorização” do trabalho docente.
Olhares de especialistas, de gestores públicos e os olhares dos movimentos
organizados da sociedade civil registram que o chão da escola pública está marcado
por desigualdade socioeconômica e pelo descaso institucional na gestão da
educação básica oficial. Indicam práticas que buscam produzir o sucateamento da
escola e produção de políticas que atribuem valor ao trabalho em educação, em
particular, do docente, marcado pela desqualificação e diminuição do poder de ação
dos educadores.
Na perspectiva do gerenciamento da educação pública, pode-se entender que o
valor atribuído à educação se expressa, dentre outras ações, nas estratégias
administrativas, que se prestam a dividir técnica e socialmente os recursos
financeiros e os trabalhadores pelo número de matrículas de alunos apresentados
pelos sistemas de ensino (Secretarias da Educação).
Nessa direção economicista da política, os sistemas educacionais colocam-se a
cumprir o ritual de redistribuir tais recursos às escolas, seguindo a mesma lógica
técnico-controladora e restritiva da demanda por educação gratuita e de qualidade.
Na mesma direção modelizadora, esses administradores se limitam a seguir as
normas de utilização desses recursos e executar as regras e os protocolos de como
administrar a organização do trabalho escolar na lógica gerencialista que se impõe
no contemporâneo.
Além disso, tem se priorizado a implementação de sistemas de avaliação técnico-
científica de metas de racionalização predeterminadas por gerentes (pre)parados
para atender aos interesses da atual modulação do capitalismo, para otimizar os
recursos de forma eficaz e eficiente. Como esse processo se efetiva no dia a dia da
educação pública?
6 Resistência aqui tem o sentido de potência afirmativa, ao invés de associá-la, apenas, a uma negação. Considerando Roque (2006), opomo-nos, é verdade, mas nos opomos a conceber a vida como algo desprovido de sentido. Podemos dizer que a existência existe e resiste (?). Pois ela só existe em constante processo de diferenciação em relação a si mesma. A existência só existe dobrando-se, única condição para que existir não seja apenas o lado obscuro do ser, do viver.
22
Por outro lado, a forma como atribuímos valor à educação compreende, além das
prescrições administrativas do governo, os processos de gestão do trabalho que
favorecem a produção de ações inventivas, mais autonomia, outros valores e formas
de relações entre trabalhadores; valores capazes de formular e articular projetos e
práticas políticas que possibilitem a construção de uma escola pública que favoreça
a produção de vida na sua força expansiva.
A organização do trabalho é também uma produção coletiva e afirmativa de
princípios de ordem estética (invenção), política (relações sociais) e ética (promoção
da vida na sua diversidade, adversidade e diferença) que contribuem para dar
consistência e visibilidade a outros processos de valoriz(ação) produzidos no
cotidiano do trabalho docente de professores de escolas públicas.
Do ponto de vista da luta cotidiana dentro e fora da escola, via outros movimentos
sociais e, em especial, o movimento sindical dos trabalhadores em educação e os
governos, valorização pode ser apreendida como consta no Dicionário de
Educação:7
Expressão relacionada, em geral, às ações necessárias para o aumento da qualidade nas condições de trabalho dos educadores. A valorização do magistério é tratada no Plano Nacional de Educação (PNE) junto ao capítulo sobre a formação de professores. Esse documento, que é fundamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, afirma que o compromisso com a melhoria da qualidade do ensino não poderá ser cumprido sem a valorização do magistério, ‘uma vez que os docentes constituem o centro de todo o processo educacional’. Segundo o PNE, a valorização do magistério inclui: Uma formação profissional que assegure o domínio tanto dos conhecimentos a serem oferecidos e trabalhados na sala de aula como dos métodos pedagógicos necessários ao bom desempenho escolar; Um sistema de educação continuada que permita ao professor um crescimento constante de seu domínio sobre a cultura letrada, dentro de uma visão crítica e da perspectiva de um novo humanismo; Jornada de trabalho organizada de acordo com a jornada escolar dos alunos, concentrada num único estabelecimento de ensino e que inclua o tempo necessário para as atividades complementares ao trabalho em sala de aula; Um salário condigno, competitivo em termos de outras posições no mercado de trabalho, abertas a candidatos com nível equivalente de formação. O PNE assinala, portanto, que a valorização do magistério ‘depende tanto da garantia de condições adequadas de formação, trabalho e remuneração quanto da exigência de uma contrapartida em termos do desempenho satisfatório, pelo docente, das atividades educativas’. Leis cujo teor se refere à valorização do magistério também têm sido elaboradas em âmbito estadual, procurando qualificar o trabalho de educadores de acordo com as características do magistério nos estados. Em São Paulo, por exemplo, instituiu-se em 1997 o projeto do ‘Plano de Carreira’, visando a essa valorização.
7 MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Valorização do magistério. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2002. Disponível em: <http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=25>. Acesso em: 27 mar. 2007.
23
Não se pode negar o entendimento das prescrições legislativas e as negociações do
estatuto da profissão na construção histórica da afirmação institucional da docência,
como trabalho com o qual homens e mulheres passam a suprir a sua subsistência
material. Contudo, o trabalho é mais que isso; não se trabalha só por salário. Ele vai
além da produção da existência material e se coloca no campo da produção não
material, como produtor de valores que afirmam o vivente como transformador das
relações sociais de produção por meio do seu fazer político. Valorizar a gestão do
trabalho, dialogando com os outros e com a natureza na busca de outros modos de
melhor existir/trabalhar, (re)existir na escola para afirmar a vida como princípio e
bem comum à sociedade são aspectos importantes inerentes ao trabalho.
Considerando a temática da pesquisa que busca debater o valor da ação/gestão do
trabalho docente, estamos firmando uma postura que vai no sentido de se pensar
práticas políticas que potencializem os planos do trabalho docente, como:
a) formação, que produz subjetividades que resistem/criam, ampliando e
fortalecendo suas relações no/com o mundo;
b) condições de trabalho que compreendem a luta por um ambiente saudável (que
favorece/afirma a autonomia) para todos; e
c) organização do trabalho escolar como discussão dos recursos financeiros, das
normas estatutárias e da gestão do trabalho considerando o saber dos docentes
nas escolas e as possibilidades de um compromisso com a produção de relações
que articule esses três planos enredados com a experiência cotidiana desse
trabalhador: o professor.
Em nossa sociedade, marcada pela dinâmica da hegemonia das formas
capitalísticas8 de produção das relações socioeconômicas, discutir a questão das
práticas de gestão nas escolas públicas é de fundamental importância; é preciso que
se possa intervir na construção das relações educacionais na escola e em outros
âmbitos da sociedade em que nos constituímos como sujeitos históricos.
8 Capitalístico é um termo cunhado por Guattari (1997), para designar um modo de subjetivação do capital que não se restringe apenas às sociedades capitalistas, mas que, provavelmente, pelo movimento de internacionalização do capital, se encontra nas sociedades até então ditas socialistas, bem como as marcadas como sociedades em desenvolvimento, devido às suas relações de dependências e correspondências do modelo capitalista e, que, por isso, do ponto de vista da economia subjetiva, elas reproduzem relações do mesmo tipo no campo social.
24
No cotidiano da escola, há que se trabalhar a noção de políticas públicas vinculadas
às questões da atividade do trabalho docente, como um trabalho potente que está
em ato de produção da existência; ressignificar as práticas e produzir legislações
considerando as práticas e estratégias de resistência (HECKERT, 2004) que
irrompem nos corredores, entre as paredes e no chão da escola, para continuar
produzindo a existência necessária à escola pública como construção histórica de
lutas de muitos humanos.
Afirmando a atividade humana de produção de resistência e inventividade
transformadora do trabalho que gesta o cotidiano, lançamos olhares aos
processos de atribuição de valor ao trabalho docente; consideramos sua relação de
uso social para a afirmação do humano, no conviver em sociedade com os
dispositivos estatutários e administrativos e os modos de gestão duros/inflexíveis
impostos à dinâmica escolar.
Pretendemos, nesta pesquisa, investigar: os efeitos das políticas governamentais do
município da Serra na área da educação para os professores das escolas de ensino
fundamental; políticas que visaram a atribuir valor ao trabalho docente do professor
serrano, no período entre 1997 e 2004, tendo como princípio ético-político que o
trabalho não é pura execução. Assim, formulamos as seguintes questões: como
pensar o valor(ação) do trabalho docente? O que norteou tais políticas
governamentais? Que valor foi atribuído a esse trabalho?
25
2 REVISÃO DE LITERATURA
Para a revisão de literatura, optamos por fazer um determinado recorte histórico.
Esse recorte combina o processo de (re)democratização do País, a chamada
reestruturação produtiva e globalização financeira que atingem o Estado brasileiro e
atravessou os anos 90 chegando aos dias de hoje. Esse recorte também diz respeito
à trajetória político-profissional do pesquisador. Portanto, a pesquisa tem marcas
das experiências por nós vividas, que fizemos e fazemos escolhas para
potencializar a vida e suas relações com o mundo em que se dá sua existência
material.
Nesse período, a educação nacional viveu o processo de discussão e aprovação de
uma nova LDB (1996), a implementação do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF)
e a municipalização do ensino fundamental, como formas de democratização e
descentralização (ou desregulamentação) das políticas e dos recursos educacionais.
Também repercutiram os efeitos das políticas de universalização da Educação
Pública Brasileira, das resoluções do Conselho Nacional de Educação, do novo
Plano Nacional de Educação (PNE) e do veto presidencial às cláusulas econômicas
do PNE, como as grandes ações educacionais no País. Ações nacionais foram
organizadas sob as orientações de organismos internacionais como: Banco Mundial,
Fundo Monetário Internacional (FMI), Unesco, Organização Internacional do
Comércio e do Trabalho e outros interesses de potências da economia internacional.
A tomada de decisão de fazer esse recorte histórico não significa que outras
produções nesse campo sejam ignoradas. Buscamos apenas delinear as fronteiras
de um ponto de partida na história, que não é fixo. Assim, objetivamos produzir um
desenho do espaço temporal de pesquisa que dê conta de apresentar a discussão
do valor do trabalho docente, levando em consideração a perspectiva teórica do
estudo que marca a nossa postura ética e política diante da educação pública.
Ao tratar da produção acadêmica sobre a temática da “valorização” do trabalho
docente, deparamo-nos com diferentes caminhos de abordagem teórica.
Poderíamos classificar essas abordagens em três principais matrizes de produções
26
teóricas no campo educacional: a positivista, a tecnicista e a crítica. Todas essas
matrizes foram consideradas para a investigação na medida em que se busca a
tecedura teórica dos processos que compõem a materialização do trabalho docente
no cotidiano escolar como um gênero9 de atividade e, como tal, processual.
A linha teórica do estudo envereda-se pelos caminhos das matrizes de abordagens
críticas em três grandes planos de discussão das políticas/práticas/saberes
educacionais: gestão e finanças; formação e prática docente; e condições de
trabalho/saúde do educador, para melhor situar a discussão da problemática de dos
processos de valoriz(ação) do trabalho docente em um determinado contexto
histórico-instituiconal da educação pública no Brasil, mais especificamente, no
município da Serra/ES.
Vale ressaltar, de início, que não queremos dizer que esses três planos estejam
sendo investigados isoladamente e que não existam interfaces entre eles ou que
não há outros níveis a serem considerados. Desejamos apenas dizer que, muitas
vezes, escolhas são feitas e nos levam a certas produções e leituras que se alocam
em campos específicos, recusando outros.
No desenvolvimento deste trabalho acadêmico, percorremos discursivamente os
campos da Filosofia, da Sociologia, da História e da Economia. Campos estes
conectados, tecidos em rede pelo movimento das fronteiras das relações político-
acadêmicas e pelas relações do modo de produção circunscritas na sociedade na
qual se produz o trabalho como patrimônio da experiência humana em transformar o
modo de existir/viver. Nessa direção, nossa tarefa, como acadêmico e pesquisador
na área das ciências humanas e, em especial, na área da educação, constitui-se em
práticas de investigar como se processa, se movimenta e se materializa a produção
9 Segundo Yves Clot (2006, p. 50), gênero diz respeito a um “[...] sistema aberto das regras impessoais não escritas que definem, num meio dado, o uso dos objetos e o intercâmbio entre as pessoas; uma forma de rascunho social que esboça as relações dos homens entre si para agir sobre o mundo. Pode-se defini-lo como um sistema flexível de variantes normativas e de descrições que comportam vários cenários e um jogo de indeterminações que nos diz de que modo agem aqueles com quem trabalhamos, como agir ou deixar de agir em situações precisas; como bem realizar as transações entre colegas de trabalho requeridas pela vida em comum organizada em torno de objetivos de ação. Trata-se das regras de vida e de ofício destinadas a conseguir fazer o que há a fazer, maneiras de fazer na companhia dos outros, de sentir e de dizer, gestos possíveis e impossíveis dirigidos tanto aos outros como ao objeto [...]. O gênero organiza a reciprocidade dos lugares e funções ao definir as atividades independente das propriedades subjetivas dos indivíduos que as realizam num momento específico”.
27
dessas conexões, nexos e teceduras que compõem um determinado saber-fazer
humano, que tem valor de uso social, historicamente constituído e institucionalizado
pela modernidade: o trabalho docente.
Esta revisão tentará atingir os três planos (gestão-administração, formação,
condições de trabalho) com o intuito de apresentar a complexidade e magnitude do
tema. Assim, podemos ampliar e nos apropriarmos de fontes para análise do
material construído durante a pesquisa, buscando dar visibilidade aos fios e às
práticas que produzem olhares e diálogos sobre os processos de valoriz(ação) do
trabalho docente que se constitui no cotidiano escolar.
Vale ressaltar, ainda, que, para esta revisão, trouxemos autores que privilegiam uma
direção de estudos sobre a temática abordada, com o destaque para o plano
macropolítico, o que não significa que desconsideram aspectos de produção do
cotidiano. Em nossa pesquisa, por outro lado, privilegiamos estudos que apontam
para a investigação do cotidiano, colocando em pauta a análise do plano das
relações do dia a dia dos estabelecimentos educacionais, perguntando como as
relações e as subjetividades são produzidas no processo de organização do trabalho
em ato no âmbito da escola. Entendemos que o fazer, nos planos locais e gerais, na
produção das relações sociais e políticas, é inseparável no processo de
existir/trabalhar.
A pauta parece estar em ampliar o sentido de abordagem na investigação
educacional. Pode ser, como nos colocam Rocha, Gomes e Lima (2003, p. 140), que
[...] a questão está em como dar visibilidade ao real do trabalho que se constitui no que resiste à técnica, evidenciando que as prescrições não dão conta da realização da tarefa ante o imprevisível. A valorização do trabalho dos profissionais da educação se inicia com a possibilidade de iluminar o que está sendo criado por cada um no coletivo a partir da experiência vivida. Nesse sentido, a micropolítica do cotidiano se constitui nas situações de produção da vida em que as estratégias elaboradas no curso da ação evidenciam [...], a ‘inteligência’ inerente ao trabalho humano.
Em 1995, Costa defende a tese de doutorado em educação que resulta no livro:
Trabalho docente e profissionalismo, publicado no mesmo ano pela Editora Sulina.
Essa produção acadêmica investigou a dimensão do trabalho docente como
ocupação/profissão em escolas públicas da periferia de Porto Alegre/RS.
28
A partir de uma abordagem crítico-hermenêutica, a autora investiga o trabalho
docente perpassando o período greco-romano, chegando ao tempo do Estado
Moderno. Ao estudar o trabalho docente no Estado Moderno, a referida autora se
apoia teoricamente nos conceitos de gênero, classe e profissionalismo da matriz
marxiana para compreender a relação entre trabalho docente e profissionalismo,
tendo como fio de trama a questão das relações de poder compostas e
decompostas numa produção de luta por hegemonia no cotidiano escolar. Relações
de poder em uma visão foucaultiana: “[...] o Estado é uma fonte de poder, mas não é
a única e, certamente, o poder é disseminado, circulante, capilar, e é, também,
produtivo e não apenas centralizado e repressivo” (COSTA,1995, p. 27).
Entendendo o Estado como fonte de poder, Costa (1995) afirma que ele se constitui
também em fonte de saber e de definição de que saber é mais útil, importante. O
Estado Moderno, no seu percurso histórico, produziu a racionalidade do tipo fordista
como matriz de saber organizativo e produtivo. Nesse percurso, constitui-se como
um Estado educador que foi criando uma organização do trabalho hierárquica,
fragmentária e solitária; um Estado educador que tenta despotencializar a
autonomia, o diálogo e a inventividade envolvidos no processo de trabalho.
Parece que o desenvolvimento desse tipo de organização do trabalho (e suas
atualizações) provocou desdobramentos no debate socioinstitucional do valor(ação)
do trabalho dos docentes em escolas públicas.
Em uma das linhas de análise do estudo, a autora discute a precariedade e o status
social do trabalho docente, indicando:
Há fortes indícios [...], de que a degradação de trabalho, tanto na sua dimensão material quanto intelectual e técnica, não tem produzido mudanças importantes na percepção subjetiva das professoras e professores em relação a sua posição na estrutura social. A ampla disseminação do discurso crítico sobre o aviltamento da ocupação docente parece que tem se limitado a finalidades corporativas e de formação de opinião pública, pois a consciência de classe dos/das docentes não vai além da construção das agruras de sua condição material e das ambivalências e contradições de sua situação social (COSTA, 1995, p. 260-261).
Essa análise remete a um duplo objetivo: tentar melhor compreender as políticas de
governo que se gestam para a escola e analisar a organização do trabalho docente
no chão da escola, no cotidiano que a constitui, no sentido de discutir
afirmativamente as relações instituídas e instituintes que compõem o trabalho.
29
Na mesma trajetória de análise, encontra-se o estudo de Hypolito (1997): Trabalho
docente, classes sociais e relações de gênero. Trata-se de um estudo de natureza
teórica, que faz um balanço da produção científica na área entre a década de 70 e a
90, entendendo que
Não é possível discutir o trabalho docente sem penetrar, de fato, nas formas concretas de sua materialização no interior da escola e da sala de aula. Somente assim será possível entender como a materialidade dos fenômenos sociais penetra e marca essa instituição e seus professores. De forma semelhante, o olhar para dentro da escola situada socialmente nos permitirá também entender como a escola e seus profissionais neutralizam seus limites e reconstroem sua prática por meio de processos menos discriminadores e seletivos, e mais legitimadores de uma sociedade e de uma escola mais democrática (HYPOLITO, 1997, p.12).
Esses trabalhos e muitos outros, como o de Arroyo (1995), que discute a construção
do conhecimento para o exercício da cidadania, aconteceram em um contexto de
batalha política complexa para a educação brasileira; num momento em que a
educação nacional passa a compor um projeto mundial de reestruturação econômica
e produtiva. Assim, o projeto veio incidir sobre as organizações dos trabalhadores,
desregulamentar e flexibilizar as relações de trabalho e, também, diminuir a
presença do Estado no mercado, mas, ao mesmo tempo, ampliar o seu controle
sobre as políticas sociais.
Tais estudos reaproximaram os educadores da tese da função intelectual-
organizativa do trabalhador(a) docente para a sociedade, apesar de acompanhada
da tese da precarização e proletarização da educação que esfriava o debate da
valoriz(ação) do trabalhador da educação em nível nacional e em cada escola.
Também as ações do movimento sindical, de uma forma geral, iniciadas nos anos
80, lutavam por um país com mais distribuição de renda, mais democrático e com
mais emprego, saúde e educação.
Oliveira (2004), em seu artigo: A reestruturação do trabalho docente: precarização e
flexibilização, desdobramento da sua tese de doutorado, parte da premissa de que a
reestruturação produtiva nas últimas duas décadas tem apresentado novas
demandas à educação escolar e provocado mudanças nas formas de gestão e
organização do trabalho na escola. Essas mudanças, por sua vez, exigem
sobretrabalho dos profissionais da educação, trazendo mais desgastes e
insatisfação entre os trabalhadores da educação à luz das teses da
desprofissionalização e proletarização, marcadas pelo processo de globalização da
30
economia. Segundo a autora, “O fato é que o trabalho pedagógico foi reestruturado,
dando lugar a uma nova organização escolar, e tais transformações, sem as
adequações necessárias, parecem implicar processos de precarização do trabalho
docente “(OLIVEIRA, 2004, p.1140).
Seu estudo indica a necessidade de melhor compreender o cotidiano das escolas
para se saber como o trabalhador docente vem resistindo, inventando e produzindo
outras relações nesse cotidiano, constituindo-o, possivelmente como processo de
produção de valoriz(ação) – construção de outros valores – do trabalho docente no
âmbito da escola.
No campo da formação do educador, podemos citar Libâneo, Oliveira e Toshi
(2005), com Educação escolar: políticas, estrutura e organização. Diferentemente da
abordagem anterior, essa obra coloca-se como um estudo crítico-compreensivo que
debate a educação brasileira no contexto das transformações políticas da sociedade
contemporânea, tendo como contraponto o princípio das relações democráticas.
Também se configura como um estudo propositivo, na medida em que indica qual
deve ser o caminho político-intelectual a seguir pelos profissionais do magistério na
organização da educação escolar e da sua profissão na esfera pública
contemporânea.
Ao discutir historicamente o campo de interesses político-econômicos que operam
no sistema educacional, esses intelectuais entendem que as relações sociais não
estão dadas e acabadas e não conformam uma polaridade entre dominantes e
dominados, porque:
No embate das forças sociais que se movimentam na sociedade, os grupos detentores do poder econômico e político dirigem também as decisões educacionais. Todavia, as relações sociais e políticas nunca são harmônicas nem estáveis; ao contrário, são tensas, conflituosas, contraditórias, favorecendo a existência de um espaço para que as escolas e seus profissionais operem com relativa autonomia em face do sistema político dominante (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSHI, 2005, p. 32-33).
Recentemente, Sella (2006) em sua dissertação de mestrado, faz a seguinte
pergunta: o que é ser professor hoje? Para responder a essa questão, ele
empreende um estudo quanti-qualitativo investigando 65 professores com mais de
dez anos de magistério público. Investiga a percepção dos professores sobre a
profissão, fazendo uma relação entre o trabalho docente na década de 70 e o
31
exercido na contemporaneidade. Ele acredita que “[...] a escassez de recursos
materiais e deficientes condições de trabalho têm contribuído para uma limitação de
desenvolvimento da renovação metodológica que a sociedade exige” (p. 48).
Para ele, apesar do desencanto, desvalorização e “mal-estar” dos professores, eles
na escola buscam inventar a escola. O debate dessa situação da valorização do
trabalho docente não pode ficar restrito aos muros da escola, ela precisa ser
discutida politicamente de forma mais ampla, pois:
Sem que a sociedade reconheça e apóie o trabalho docente, em todos os aspectos, torna-se quase impossível pôr fim a este ‘mal-estar’ docente. O ponto crítico está na desvalorização do trabalho do professor e nas deficientes condições de trabalho na sala de aula que as forçam a atuarem de forma incompetente, pelo qual é julgado e considerado culpado (SELLA, 2006, p. 116).
Argumenta que, mesmo que essa crise seja passageira, ela não será resolvida por
decisões políticas isoladas e ou por medidas legislativas e institucionais de um
governo, dirigidas aos docentes.
As medidas, por certo, terão que nascer dos próprios docentes: são eles quem as conhecem melhor e, portanto, podem encontrar uma saída, tanto individual mudando o seu estilo profissional quanto coletivas, agindo de forma a fortalecer a categoria e traçar lutas, metas e objetivos coletivos contemplando a escola, ensino-aprendizagem, valorização profissional e projetos inovadores (SELLA, 2006, p. 117).
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), afirmando-se
como interlocutor institucional dos trabalhadores em educação no cenário político da
flexibilização e globalização no País, nos anos 90, compreende a necessidade de ir
além da luta salarial e passa a estabelecer parcerias mais consistentes com a
academia para melhor enfrentar a nova conjuntura. A CNTE, procurando abrir portas
e estar presente no chão da escola, investe em publicações e em pesquisas que
venham alimentar ainda mais os debates em torno da valorização da educação e do
educador. Nessa direção, publica o trabalho organizado por Gentili e Silva (1996),
Escola S.A.: quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo,
que até hoje serve como instrumento de debate da situação educacional na medida
em que:
Para satisfazer as necessidades dos mais desfavorecidos haverá o estado mínimo. Para as necessidades do resto da sociedade, pode-se adotar outras formas diferentes das tradicionais. O que está em questão não é a sobrevivência do ensino público, mas as condições nas quais ela se faz, a revisão do discurso que sustenta sua legitimidade (SACRISTÁN, 1996, p.155).
32
No processo de ampliação das fronteiras de debate da educação nacional, a CNTE,
em 2000, publica, em parceria com a Universidade de Brasília, pela da Editora
Vozes, uma pesquisa nacional sobre a saúde do trabalhador da educação,
coordenada por Wanderley Codo, sob o título: Educação: carinho e trabalho. Esse é
um trabalho extenso que questiona a organização do trabalho nas escolas e coloca
em xeque as políticas de valorização do educador. Como diz Abicalil (p. 13) no
prefácio da obra:
Há muita munição aqui para o questionamento das reformas propostas pelos sistemas de ensino oficiais, especialmente pelas imposições curriculares e pelas modalidades de avaliação espelhadas nos programas de qualidade total e na estandardização dos provões e das avaliações de desempenho. Um grande espaço para o fortalecimento das histórias reivindicatórias – tidas como apenas corporativas – é criado com a nova consistência emprestada pela investigação científica confirmadora das condições especiais de trabalho e de desgaste na atividade educativa.
Em 2004, a CNTE publica o Retrato da escola no Brasil, no qual a entidade afirma,
A edição deste livro aumenta a responsabilidade da CNTE perante a comunidade acadêmica, a comunidade escolar e os movimentos sociais [...] Isso nos deixa com o compromisso de continuar trilhando o caminho da investigação que, junto com a mobilização de saberes e vontades, nos permite traçar estratégias de resistência e de mudança (p. 8).
Nesse estudo, alinhamo-nos com Freitas (2004, p. 100) quando, na discussão da
formação do educador, aponta que:
Uma nova política de valorização e profissionalização do educador deverá constituir-se, portanto, fundada em outros referenciais também para a formação continuada dos professores em nosso país, enfatizando o estímulo à qualificação profissional, à recuperação da dignidade profissional pela atribuição de salários justos e jornada compatível com os compromissos de formação e desenvolvimento humano sob sua responsabilidade, articulada com a construção coletiva do projeto político-pedagógico da escola.
Essa discussão em referência ao plano das condições de trabalho e saúde também
é indicadora da produção de mais um elo entre os trabalhadores em educação e os
acadêmicos. Ela contribui com o objetivo de ampliar e produzir horizontes de diálogo
e de luta no âmbito da educação, no sentido de compreender, transformando a
organização do trabalho nas escolas, de modo que as lutas dos educadores não se
mantenham limitadas à pauta das reivindicações salariais.
Com esse princípio, surgiu uma rede de discussão sobre as articulações entre o
processo saúde-doença e os processos de trabalho, formada por pesquisadores
(acadêmicos) da Paraíba (UFPB), do Rio de Janeiro (UERJ e FIOCRUZ) e do
33
Espírito Santo (UFES). Dessa rede, vimos o incremento de estudos sobre a saúde
dos trabalhadores em educação e o surgimento de inúmeras experiências de
produção de saber entre os sujeitos da escola e da academia. Dentre essas
experiências, encontramos a proposta da formação de Comunidades Ampliadas de
Pesquisa (CAP) por meio da pesquisa vinculada ao NEPESP-UFES, em parceria
com o SINDIUPES.
Nessa perspectiva conceitual-metodológica, temos as produções de Brito, Neves e
Athayde (2003), Brito et al. (2003), Barros (2005), Bonaldi (2004), Marchiori (2004) e
Botechia (2006).
Esses estudos sobre a saúde dos trabalhadores das escolas públicas também
trazem contribuições importantes para o debate sobre diferentes dimensões que
compõem a temática da valoriz(ação) do trabalho docente hoje.
Tais estudos focalizam a organização do trabalho nas escolas. Visam a
compreender suas relações, experiências, saberes como produções coletivas que
reúnem estratégias construídas pelos próprios trabalhadores, para gerir o trabalho
escolar, no sentido de afirmar a vida como bem comum em frente às práticas
capitalísticas de organizar as relações sociais de trabalho.
O elo histórico-conceitual desses trabalhos passa pela articulação do marxismo com
a experiência de Ivar Oddone nas fábricas italianas e com a perspectiva ergológica
de Yves Schwartz na França e, também, com as contribuições de Guattari, Foucault,
Deleuze, Dejours e Canguilhem. O princípio do compromisso ético-político é firmado
pelo entendimento de que a gestão do mundo do trabalho só é possível com a
contribuição dos saberes e experiências dos trabalhadores. A aposta é no sentido de
transformar as relações sociais de produção existentes em modos de
trabalhar/existir mais compartilhados, democráticos e coletivos que afirmem a vida
como bem comum, considerando todas as suas diferenças e diversidades possíveis.
Com esse compromisso firmado, a partir dos anos 90, no Brasil, muitas produções
acadêmicas vêm surgindo, discutindo a temática trabalho-educação-saúde,10
buscando dar visibilidade às estratégias e processos de (re)existência às formas
10 Saúde e trabalho na escola, organizado por Brito, Athayde e Neves (1998), é uma dessas produções dos anos 90.
34
dominantes e autoritárias de organização do trabalho que provocam adoecimento
nos trabalhadores das escolas públicas.
Em nível nacional, citamos o Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho
nas escolas que resultou na publicação do caderno de textos organizado por Brito,
Neves e Athayde (2003) e no Caderno de Relatos de Experiências organizado por
Brito, Athayde, Neves, Muniz, Pina, Souza e Santos (2003). Esses trabalhos são
relatos vivos do compromisso e do encontro de acadêmicos com trabalhadores da
educação e com os sindicatos da categoria11 apostando na produção de modos mais
coletivos de (con)viver e de se transformar a organização do trabalho nas escolas.
No Espírito Santo, citamos o Programa de Formação e Investigação em Saúde e
Trabalho (PFIST) desenvolvido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Subjetividade e Políticas (NEPESP), do Departamento de Psicologia da UFES,
formado em 1997.
Barros (2005), trabalhando com escolas públicas da Região Metropolitana da
Grande Vitória, desenvolveu uma pesquisa-intervenção sobre as condições de
trabalho nas escolas do município da Serra, partindo da premissa de que a questão
da saúde no trabalho não tem sido alvo das políticas públicas no campo da
educação do Estado. Tais questões vêm sendo muito pouco discutidas e não
recebem o tratamento que a gravidade da situação nos indica.
Esse trabalho desenvolvido pelo NEPESP resultou na publicação do livro Trabalho e
saúde do professor: cartografias no percurso, organizado por Barros, Heckert e
Margoto (2007), com o objetivo de ampliar o diálogo entre os diferentes saberes,
formando professores capazes de enfrentar as novas situações de trabalho da
contemporaneidade, na direção apontada pela ergologia.
De participantes desse grupo do NESPESP surgiram os trabalhos de dissertação de
mestrado de Bonaldi (2004), Marchiori (2004) e Botechia (2006), que também tratam
da temática trabalho-educação-saúde considerando a perspectiva ergológica.
Bonaldi (2004) discute a questão da saúde dos docentes no âmbito do SINDIUPES;
11 Esse programa de formação foi realizado em parceria com o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE/RJ) e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa (SITEM/JP-PB).
35
Marchiori (2004) apresenta como os professores de uma escola, no município de
Vitória, construíam estratégias e se organizavam para dar conta do trabalho escolar.
Botechia (2006) apresenta a história de construção do regime de produção de
saberes sobre o trabalho e suas relações, denominado Comunidade ampliada de
pesquisa que fala, em certa medida, da história dessas produções influenciadas pela
perspectiva ergológica no Brasil.
Os Programas de Formação em Saúde, Gênero, Etnia e Trabalho nas escolas
públicas, produzidos por essa rede de grupos de profissionais, têm o objetivo de
instituir um espaço de trocas e debates entre os pesquisadores e os profissionais da
Educação, acerca das relações entre saúde e trabalho, problematizando esses
conceitos a partir do cotidiano experimentado pelos professores e professoras, a fim
de que esses/as trabalhadores/as possam intervir de maneira continuada na difusão,
prevenção e controle de riscos à saúde relacionados com o trabalho nas escolas, e
produzir outras formas de relações que possibilitem a construção de modos
diferentes de trabalho e políticas públicas voltadas para a valorização do trabalho
docente.
Compondo essa rede de trabalhos que apostam em criar estratégias coletivas que
venham dar visibilidades aos processos que materializam no chão da escola a
valoriz(ação) do trabalho dos educadores, encontra-se o estudo de Heckert (2004, p.
15-16). Nessa pesquisa, a autora avalia:
O sucateamento da escola pública é um dos dispositivos de constrangimento das forças de invenção, uma vez que despotencializa a escola como espaço de produção de problemas, de problematização da vida. Tal processo de sucateamento não se expressa apenas nos reduzidos investimentos públicos em educação, na dilapidação das condições de trabalho nas escolas, mas também em suas dimensões sutis e ardilosas. Seus rastros podem ser apreendidos no engendramento de práticas educacionais utilitárias e conformadoras de vidas com destino traçado. Esclarecemos, contudo, que os exercícios de resistência não são respostas ao processo de sucateamento da escola pública. Ao contrário, irrompem em meio a esses processos, interrompendo seu fluxo e, por vezes, desmontando seu funcionamento.
A autora, atravessada historicamente pela luta por escolas dignas e questionadoras
de prática formação-consumo, afirma:
Somos filhos dessa luta, herdeiros de sua potência. Batalhas que se travam não por acreditar que por essa escola viraríamos gente, mudaríamos drasticamente nossas condições de vida, trocaríamos de lado nas práticas de exploração. Mas sim, por entender que a escola pode ser uma das aliadas para reinventar a vida. Escolas bailarinas, que compartilham saberes deixados de
36
lado, e assim, podem nos tornar mais generosos, menos tutelados, éticos na vida cotidiana, alegres com as descobertas da vida (p. 274).
Vive-se em uma sociedade cujo arranjo do campo de forças faz prevalecer os
interesses dos grupos sociais que acompanham a nova ordenação do modo de
produção capitalista. Nesse sentido, também é necessário incorporar, nesta revisão
de literatura, produções sobre financiamento da educação brasileira realizadas a
partir das implicações do FUNDEF, como mecanismo legislativo que deveria regular
e garantir a melhoria da qualidade da educação nacional e a valoriz(ação) do
magistério. Os trabalhos de Davies (1999), Lima, Almeida e Didonet (2005) e Viana
(2006) indicam que, mesmo o FUNDEF trazendo mais transparência aos recursos
da educação, não se tornou a tábua de salvação da educação e do magistério como
anunciava o Governo Federal na época da sua implantação e durante o seu
processo de consolidação em nível nacional.
Preliminarmente, o que pretendemos demonstrar com esta revisão de literatura foi
que todos os estudos relatados, como outros que poderão vir a compô-lo,
concorrem, independentemente da temática e do foco de análise de cada um, para
entender que as possibilidades de enfrentamento do debate da valoriz(ação)
dependem de uma gestão coletiva de esforços acadêmicos, governamentais e do
trabalhador docente em frente à complexidade e amplitude dessa temática.
Os estudos apontam também que a fragilidade das políticas, os planos e os projetos
de governo que buscam, por meio de aplicação de recursos financeiros em ações de
formação, modelos de gestão e de modernização da infraestrutura, por si sós e de
forma fragmentada, não favorecem outras formas de organização do trabalho.
As ações de governo nesse sentido parecem resultado de um fazer da tecnocracia
na tentativa de disciplinar a “coisa pública”, e de especialistas da economia e da
administração orientados por uma lógica de ajuste do capital à dinâmica do
mercado. O caminho que apontamos nesses estudos é o de que as políticas
educacionais precisam também ser produtos da participação ativa dos trabalhadores
da educação e dos demais setores da sociedade, cuja formulação se constituía
como política pública de Estado em favor da universalização e gratuidade da
educação em todos os níveis.
37
Como afirmamos, estudos apresentados nesta revisão trabalham com um olhar
voltado para uma análise mais macropolítica. Essa direção de análise pode
endurecer e polarizar as discussões em torno das relações de poder instituídas que
se materializam no trabalho docente. Parecem pensar e pautar os possíveis
caminhos para os problemas do trabalho na educação a partir de equações
formalizadas por uma ciência da administração tecnocrática.
Entretanto, esses mesmos estudos indicam que qualquer mudança no modo de
produção do trabalho docente só acontecerá por obra dos seus autores – os
trabalhadores – ampliada com a relação com outros atores sociais que objetivam dar
visibilidade e produzir interesses comuns no âmbito da escola, para transformar e
qualificar o modo de operar a existência humana nos seus mais variados sentidos e
diferenças.
Essa postura política diante da vida que anuncia a produção de estratégias de
mudança que atravessam as relações cotidianas de trabalho é, justamente, o que
afirma a condição humana no mundo. Ou seja, a capacidade de produzir relações
afirmativas, inventivas para dar conta de produzir a existência da vida nos seus
diferentes âmbitos; produções que podem ampliar e enredarem-se com as relações
sociais cotidianas de resistência, com forças instituintes, muitas vezes carregadas de
um valor(ativo) ainda com pouca visibilidade, mas que não se rendem às formas
instituídas que tentam impor controle sobre as formas de existir/trabalhar.
2.1 JUSTIFICANDO A CONTEXTULIZAÇÃO DO PROBLEMA
Mesmo com a discussão dos estudos que afirmam que o sucateamento,
precarização e proletarização da escola pública são teses que vêm justificando os
processos de (des)qualificação institucional dos trabalhadores em educação no
Brasil, é importante ressaltar que esse resultado não é absoluto e nem é originário
de uma política abstrata que não habita nossos corpos e nosso cotidiano.
38
Faz-se necessário argumentar que a produção dessas práticas em curso não é
obediente e nem resultado de uma lei divina. Ela é um processo de produção de
relações humanas e, por isso, são práticas/saberes em disputa permanente por
hegemonias no campo de batalha da vida/trabalho, traduzindo-se em movimento de
relações e negociação, no qual o humano, em ato de produção e de ressignificação
da sua existência, está em meio a relações de poder (FOUCAULT, 1997) e
negociações das relações sociais de produção.
Essas negociações são também possibilidades de atualizações que podem
ressignificar a potência de sujeitos e instituições, em que o instituído é
problematizado cotidianamente pelo movimento instituinte das relações no local de
trabalho que, mesmo em situação adversa e infiel, se constitui em potência inventiva
e produtora de novos modos de ser e estar no mundo, de ser e estar no chão da
escola, produzindo novas práticas, saberes e processos de valoriz(ação) do
trabalho. Em nosso caso, o trabalho da docência.
Nessa perspectiva teórica, a escolha do tema de valoriz(ação) do(a) trabalhador(a)
docente em educação pública torna-se relevante na medida em que se cruza e se
amplia com discussões atuais e com a nossa trajetória de vida estudantil,
profissional, sindical e acadêmica.
Como estudante de graduação em Educação Física e estudante de pós-graduação
em universidades públicas pelo país, vivenciamos as contradições das políticas
públicas de governos que contribuíram com o descaso com a educação nacional e,
também, as manifestações e greves dos movimentos sociais organizados contra a
(des)qualificação dos serviços públicos em geral.
Como profissional docente da educação pública, observamos que o cenário
educacional que vem sendo desenhado institucionalmente, na última década,
continua riscado pela mesma lógica. Uma lógica em que todos os espaços sociais
(público e privado) devem ser obedientes ao prescrito pelo mercado e sob uma
gestão da ordem do controle. Mas, também, encontram-se, nesse desenho
inacabado, cores e traços fortes que inventam estratégias e produzem resistências a
esta lógica globalizante de prescrição e controle das relações sociais de produção
do trabalho.
39
As vidas marcadas pela discussão e prática da valorização das políticas públicas e
sociais de Estado, da solidariedade, da participação política, da igualdade de
oportunidades e pela afirmação da vida em frente ao capital, não negam a existência
das relações privadas relativas ao mercado que vão em outras direções. Contudo,
fundamentalmente, há a luta pela prevalência do trabalho diante dos interesses
desse capital, que tenta “engolir”, imperar, restringir, esvaziar o que é público estatal
a qualquer hora e em qualquer lugar onde há ou onde seja possível produzir
exploração da vida humana.
Nessa trajetória, participamos de cursos de formação sindical e acadêmica cuja
temática central era a problematização da organização do trabalho. Nesses cursos,
houve a possibilidade de fazer visitas e pesquisas com os trabalhadores no chão da
fábrica, no chão da escola pública e no chão de organizações não governamentais.
O ingresso no grupo da CAP-NEPESP acabou por aguçar as inquietações sobre a
questão da organização do trabalho em educação (organização como obra dos
próprios trabalhadores) muito porque a proposta da CAP é uma aposta teórico-
metodológica de construir “[...] um diálogo sinérgico e sistemático entre os saberes
advindos do conhecimento científico e os saberes do conjunto de trabalhadores(as)
da escola” (BOTECHA, 2006, p.30), como potência de transformação das condições
e organização prescritas para o trabalho na escola.
Nessa perspectiva de produção acadêmica, é vislumbrada a importância da
investigação do tema da valoriz(ação) do trabalho docente em escolas públicas
como uma das possibilidades de problematizar os efeitos que as políticas públicas
de governo dirigidas ao magistério produzem na organização do trabalho docente
nas escolas de ensino fundamental do município da Serra/ES.
Em nossa sociedade, regida pelo capital, as forças políticas hegemônicas apostam
numa forma de fazer ciência em que a prescrição, a regulação e o controle são
princípios “modernos” e “eficientes” de organização social do Estado, do trabalho e
da educação pública.
Contudo, no jogo político produzido pela dinâmica das relações de força dessa
sociedade, coexistem práticas sociais que apostam em outras formas de fazer
ciência que vão à direção da não regulação absoluta e do não controle como
40
ordenamentos hierárquicos das relações sociais de trabalho. Isso, de tal modo a
produzir outras formas/modos de organização e valorização da atividade trabalho,
menos duras, autoritárias e arbitrárias, que proponham mais autonomia ao
trabalhador. Outras formas que apostam modos de gestão mais coletivos,
inventivos, democráticos, que afirmam a vida como bem comum fundamental.
Segundo Rollo (2007, p. 19-20), na atualidade,
[...] o trabalhador e o trabalho vão perdendo seu ‘valor de uso’, podendo ser tratados como algo desprezível/descartável. Aliado a isso, tem-se, também, a redução do poder político dos sindicalistas na disputa ideológica e cultural na sociedade. Outra questão que contribui para esse ‘esquecimento’ é o desprezo e desqualificação dos serviços e servidores públicos por parte das políticas neoliberais de Estado-Mínimo, com seus interesses de privatização agressiva de empresas estatais e da permissão para que a lógica lucrativa de mercado adentre com vigor no seio das políticas de saúde, educação, cultura e lazer. Ações de mídia e discursos de porta-vozes dessa política têm, reiteradamente, apresentado os funcionários públicos como os principais culpados pela ineficácia dos serviços públicos, o ‘bode expiatório’, e como tal não devem e não podem ser valorizados e bem cuidados.
Apesar disso, os trabalhadores em educação em nível nacional defendem que:
[...] a construção de um projeto alternativo na busca de superar a lógica da dominação cultural, política e ideologia que nos é imposta pela estrutura da sociedade de classes [...], precisamos de um projeto que busque a ruptura com a lógica de educar para que a mão-de-obra seja ela barata ou cara. Que busque romper com a alienação e contribua na construção de sociedade igualitária e democrática (CNTE, l993, p. 17).
Abicalil (2002, p. 9), pensando as políticas públicas para a educação nessa
sociedade, levanta a seguinte questão:
[...] a educação – como direito público universal – e o direito dos educadores e educadoras – como instrumento de sua valorização – não podem se submeter às reiteradas políticas de emergências. Precisam, sempre mais, estar dirigidos por um sólido planejamento de ação pública frente ao atendimento das políticas estruturantes de qualquer sociedade contemporânea que se pretenda democrática.
Com a LDB nº 9.394/96 e o FUNDEF veio mais uma política de municipalização do
ensino fundamental. No afã das administrações públicas de aumentar seus recursos,
ampliou-se o número de matrículas nesse nível de ensino nos municípios brasileiros
apoiados nos discursos institucionais de que a qualidade do ensino e a valorização
do magistério, pelo menos o fundamental, seria uma questão de adequação dos
sistemas às novas dinâmicas legais e administrativas nos Estados e Municípios, em
poucos anos, com a nova legislação de aplicação de recursos para a educação e,
41
em especial, o ensino fundamental obrigatório. O então ministro de Estado da
Educação, Paulo Renato Souza (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2000, p. 6),
avaliando o FUNDEF, diz:
A importância desse fundo é representado pela profundidade das mudanças introduzidas e pelos novos critérios estabelecidos na distribuição dos recursos públicos dos Estados e Municípios, vinculados à educação, como também pela perspectiva de atingir resultados bastante positivos a médio prazo, que refletirão nos indicadores educacionais de todo País, particularmente dos municípios e regiões mais carentes.
A Serra, obedecendo à legislação nacional, implementa um novo Estatuto do
Magistério Público (Lei nº 2.172/99) e o Plano de Carreira e Vencimentos (Lei nº
2.173/99). Na publicação das novas leis municipais para a organização do
magistério serrano, os gestores fazem o seguinte registro político na apresentação
do documento legislativo:
Precisamos avançar mais para atingir a escola que queremos – aquela que trabalha a educação como prática social transformadora. Há que se ressaltar que só a parceria efetiva e comprometida do profissional do magistério irá garantir o sucesso desejado. Este Estatuto e Plano de Carreira se integram ao processo de revolução da educação da Serra que tem dado nova cara as escolas municipais, garantindo as nossas crianças e adolescentes melhores condições de ensino e aos nossos profissionais do magistério respeito e melhores condições de trabalho (PREFEITURA MUNICIPAL DE SERRA, 31 mar. 1999).
Se as novas ordens legislativas e práticas institucionais implementadas na rede de
ensino do município da Serra pretendiam “avançar mais” a gestão escolar com
“novos” modelos de organização e forjar “melhores condições” de trabalho aos
profissionais do magistério, parece que essas pretensões deixam a desejar.
Nos diálogos produzidos com os educadores, com a comunidade escolar e com o
movimento do magistério no município da Serra, as ações de governo parecem ter
sido insatisfatórias, no sentido de conquistar “a escola que queremos”. Assim nos
parece, também, que essas ações precisam ser revistas, rediscutidas e ampliadas. É
possível que exista uma distância entre a política produzida no Órgão Central da
Secretaria da Educação e o que vem sendo produzido pelos docentes na escola. As
políticas de governo aparentam ser um plano de intenções sustentado por modelos
pedagógicos e práticas burocráticas duras que pouco dão valor às formas de gestão
e ações político-pedagógicas que potencializam o vivido e o produzido pelo trabalho
coletivo e pelo trabalho docente nas relações que se constituem no chão da escola.
Conforme coloca Oliveira (2004, p.1139),
42
Ocorre, porém que esses novos modelos de organização escolar expressam muito mais um discurso sobre a prática do que a própria realidade, melhor dizendo, a distância entre o que é propugnado nos programas de reforma educacional, o que é de fato implementado nas escolas apresenta uma grande defasagem. Daí a importância de se chegar até o chão da escola para compreender as mudanças que de fato ocorrem no cotidiano escolar.
É preciso dizer que, a partir 1997, o município da Serra começa uma política de
construir escolas; criar o Conselho Municipal de Educação, o Conselho de Merenda
Escolar, o Conselho de Controle Social e Acompanhamento do FUNDEF e o os
Conselhos de Escolas; promover a eleição direta para a direção de escolas e cursos
de formação continuada; efetivar concursados e realizar concurso público.
Também se produz um compromisso com a elaboração de um sistema de avaliação
para a progressão por mérito, por uma comissão com representação do magistério.
Por mais, na negociação com a categoria, a administração municipal vê a
necessidade de redefinir a sua política salarial apresentando reajustes considerando
o índice inflacionário combinada com uma política de abono salarial. Em outra
direção, também observamos a administração do município reduzir o piso salarial do
regime de contratação temporária, retirar a gratificação por tempo de serviço,
aumentar o número de alunos por sala de aula e as tarefas pedagógicas e políticas
do educador na escola, tais como: trabalhar com fichas avaliativas, realizar projetos,
participar de conselhos diversos instituídos na educação, não acompanhados de
mudanças no processo de organização do trabalho escolar.
Nessa nova realidade, observam-se muitos profissionais pedindo licenças médicas.
A categoria realiza manifestações e greves por melhores salários,
formação/capacitação, melhores condições de trabalho/saúde e mais participação
direta na produção de políticas para a educação, reivindicando uma outra escola:
uma escola cujas formas de gestão das atividades sejam mais coletivas, inventivas e
que possam afirmar a vida em todas suas diferenças e multiplicidade.
Conquanto, parece que os trabalhadores em educação se movimentam pela escola,
pelas assembleias e pelas ruas produzindo práticas de resistência em favor de uma
escola de promoção da vida.
Segundo Heckert (2004, p.185),
[...] os processos que configuram nossa contemporaneidade não podem ser compreendidos sem que aprendamos as formas de luta, os conflitos e resistências por parte dos trabalhadores, que provocam metamorfoses nas
43
formas do capitalismo operar. Nossos gritos não ficaram apenas presos na garganta, pois estes embates criaram outros sentidos para o trabalho, para a escola e para vida. Na verdade, qualquer análise que se faça sobre os processos sociais de produção de existência e do trabalho a partir da emergência do capitalismo deve chamar atenção para as batalhas, litígios e combates que se fazem presentes nesta relação capital-trabalho. Nesse sentido, Barros (2001a, p. 37), adverte ‘[...] o trabalho é atividade vital, que não se limita ao trabalho sob o capitalismo, [...] é criação de vida, é condição de criação do humano nas diferentes dimensões’.
No campo do jogo de forças, no campo de batalha da valorização profissional, as
negociações acontecem entre os trabalhadores, entre os representantes da
sociedade política (governantes e gestores), dos trabalhadores em educação e da
sociedade civil organizada, com a intenção de produzir diálogos que apontem saídas
afirmativas e potentes. Saídas: muitas foram indicadas, muitas portas não foram
abertas, paredes foram levantadas, muitas eram abismos e tantas outras não foram
possíveis de serem construídas. Talvez precisemos reabrir, derrubar, pular, inventar,
ousar e apostar na construção de outras saídas e de outras entradas.
Essa situação se constitui em um campo de pesquisa e, por isso, o investigamos a
partir da formulação das seguintes questões:
a) Quais foram as políticas de valorização do trabalho docente implementadas no
município da Serra, no período de 1997 a 2004?
b) Que valor tem sido atribuído ao trabalho docente no município da Serra?
c) Como se materializaram as políticas de governo de valoriz(ação) do trabalho
docente nas escolas de ensino fundamental da rede de ensino do município da
Serra?
d) Quais objetivos institucionais perpassam as políticas públicas implementadas
para o magistério na Serra, ou seja: elas vão em direção de ampliar ou frear as
práticas de organização democrática e de atribuir valor(ação) de uso no trabalho
docente na escola pública?
e) Até que ponto as políticas públicas governamentais implementadas na rede de
ensino do município da Serra favoreceram os processos de gestão e
valoriz(ação) do trabalho do docente produzidos pelos professores nas escolas?
44
f) As políticas implementadas pelo município da Serra na rede de ensino englobam
os interesses históricos da categoria do Magistério e dos movimentos sociais
desejantes de uma escola pública comprometida com a produção coletiva de
saberes que afirmem a vida?
Com esta pesquisa, buscamos compreender como foram constituídos os processos
de materialização das práticas e saberes para se atribuir valor ao trabalho docente.
Procuramos saber se as políticas de governo conseguiram produzir uma política
salarial, política de formação em serviço e política de condições de trabalho (e
saúde) que atribuíram valor de uso ao trabalho docente e se, também, consideraram
as falas e as práticas produzidas pelo educador no confronto com as políticas de
governo para a organização e valorização do trabalho escolar nas escolas públicas.
Assim, pretendemos compreender as políticas de governo dirigidas à educação da
Rede Municipal de Ensino da Serra – ES como ações de valoriz(ação) do trabalho
docente, nos documentos, projetos desenvolvidos pela SEDU/Serra no período entre
1997 e 2004. Entender, ainda, como os trabalhadores docentes se movimentaram
nesse período para produzir a valoriz(ação) do seu trabalho com vistas à construção
de uma escola afirmativa da vida como bem comum.
Para tanto, buscamos analisar e problematizar as políticas dirigidas ao magistério da
Rede de Ensino Municipal da Serra do período de 1997 a 2004, para a valoriz(ação)
da atividade docente nas escolas. Também procuramos discutir os possíveis
caminhos produzidos pelos docentes para gerir estratégias para a realização e
valorização da sua atividade de trabalho na escola.
45
3 TECENDO OS CAMINHOS DE CONSTRUÇÂO DO REFERENCIAL TEÓRICO
Na formação acadêmica e trajetória profissional como docente do ensino público
fundamental, o tema valorização do trabalho do educador(a)/do trabalhador(a) da
educação/do magistério/do professor ora aparece como sinônimo, ora como fator de
distinção e hierarquia entre as diversas funções que são exercidas no âmbito da
área da educação, como: docência, supervisão, planejamento, administração,
secretaria, serviços gerais, cozinha, segurança.
Concordamos com a expressão linguístico-política, que nos une como categoria do
campo da educação: trabalhadores da educação. No entanto, para efeito deste
trabalho, analisaremos a atribuição de valor à atividade do trabalho da docência em
escolas públicas.
Será focalizada a temática da valoriz(ação) do trabalho docente, considerando as
relações das políticas de governo, apresentadas às escolas públicas como ações
institucionais, com as práticas dos professores, buscando colocar em análise como
essas políticas são constituídas como dispositivos/processos de valoriz(ação) do
trabalho da docência por esses profissionais no cotidiano escolar. Que valor é
atribuído ao trabalho docente na Serra?
Os trabalhos de Costa (1995), Silva (1996), Hypolito (1997), Barros (1997), Ferreira
(2002) e Heckert (2004), dentre outros igualmente importantes, indicam que a
dinâmica da história de constituição do Estado moderno, capitalista e classista,
produziu a categoria do magistério na medida em que esse Estado foi se
apresentando como empregador (patrão), criando e ampliando o serviço público
para se firmar como imperador republicano na sociedade. Nessa direção, foi
transformando o ofício de ensinar (docência) em profissão, ou seja, trabalho liberal-
burocrático, assalariado e com uma configuração político-sociológica de exploração
e proletarizada, mesmo como classe média.
Essa configuração de proletarizada é uma produção histórica que advém do avanço
do setor de serviços (terciário) no modo de produção capitalista, por meio da
organização Estado-Nação, para dar conta de civilizar e urbanizar as pessoas nas
46
cidades em processo de industrialização. Esse foi um processo organizativo-
educativo em que a escola foi incorporando a dinâmica hierárquica e técnica de
organização do trabalho fabril, a lógica da racionalidade moderna, mesmo
entendendo que conceitualmente se tratava de um trabalho cuja base material firma
a produção de relações sociais para a produção de saberes.
Os educadores, tanto quanto os pais de nossos alunos ou os próprios alunos, foram expropriados dos meios que lhe permitiam produzir sua sobrevivência. Faltando-lhes esses meios, resta-lhes vender sua força de trabalho. Todavia, os professores das redes públicas de ensino, em vez de fazê-lo para um capitalista do setor privado, fazem-no para o Estado, que não tem como intuito, com essa compra, valorizar o capital, e o dinheiro que emprega no setor público (pelo menos no que se refere aos serviços essenciais, como saúde e educação) pode ser considerado do ponto de vista da renda, e não do capital [...]. Como não cria valor e, conseqüentemente, mais valor, o trabalho desses funcionários é considerado por Marx como improdutivo. O consumo desse trabalho não equivale à lógica capitalista de dinheiro-mercadoria-mais dinheiro, mas apenas à de mercadoria-dinheiro-mercadoria, em que o dinheiro funciona simplesmente como meio de circulação (OLIVEIRA, 2006, p. 93-94).
Esse olhar indica que os educadores se constituem em uma categoria de
trabalhadores assalariados do chamado setor terciário e público estatal:
trabalhadores da educação. Essa conceituação, a nosso ver, tem sua importância
ético-política para a discussão da temática da valoriz(ação) do trabalho docente em
escolas públicas, tendo em vista que é considerado improdutivo por não gerar lucro
para o capital.
Não se considera o valor social da produção de saberes e conhecimento para a
sociedade que esse trabalho potencializa. A importância dessa conceituação está
justamente na inversão radical dessa discussão, ou seja: fazer o debate do valor da
ação do trabalho docente considerando o seu valor de uso para a sociedade e não
só para os interesses do mercado.
Hoje, o trabalhador docente, muitas vezes, vê-se obrigado a vender sua força de
trabalho (intelectual, cuja mercadoria é o saber) em dupla e tripla jornada, a atuar
em salas de aulas lotadas, receber baixos salários e ainda exercer várias funções
auxiliares no cotidiano escolar, para que a escola funcione minimamente. Assim,
além de expropriado, é também explorado. Essa situação se estende quando
observamos que a Administração Pública pratica o discurso e política de baixos
salários para a educação por ela ser a maior categoria do funcionalismo público no
aparelho estatal.
47
Entretanto, essa mesma Administração discursa para sociedade que é necessário
“valorizar” (de que valor se trata?) o educador; e essa ação passa prioritariamente
pela formação continuada, construção e reforma de escolas, melhores condições de
trabalho e uma política salarial responsável e legal e que compreenda minimamente
a reposição da inflação para dar conta da “sobrevivência aceitável” desse
trabalhador.
Nessa perspectiva contraditória, entre o discursado e o praticado, o prescrito e o
real, vão se gestando políticas públicas de governo. Misturam-se promessas
eleitorais, demandas no campo da educação, administradores e especialistas da
administração pública produzindo legislações, projetos de formação, planos de
carreira, projeto-padrão de construção de escolas, pautados pelos interesses
econômicos do mercado.
Na construção das políticas públicas, pouco ou nada é pensado a partir do que é
apresentado e manifestado pelo trabalhador que está na escola. Assim, a
valoriz(ação) da educação, do educador e do aluno, visando à qualidade social do
ensino público, parece ser um processo marginal de pouca visibilidade. O que vale
para os administradores e especialistas é marcar/justificar a sua eficiência, eficácia,
produtividade e também a sua autoridade administrativa em frente aos
servidores/professores e à comunidade, como resultado de um planejamento
cientificamente produzido.
Quando se debatem políticas de governo de valorização do servidor público, é
importante questionar se as políticas em questão são uma produção resultante de
um processo dialógico de atribuição de valor ao trabalho com os próprios
trabalhadores ou de políticas prontas, prescritas, empacotadas de valorização,
planejadas por especialistas nos seus gabinetes.
Vale ressaltar que o cotidiano escolar deve ser entendido como zona de fronteira,
lugar da processualidade no qual acontecem produções de diálogos entre os
interesses de governo e de categoria, de gestores e educadores, de educadores e o
restante da comunidade escolar. E, também, zona de relações entre o instituído e
instituinte, a fala e o silêncio, o realizado e o não realizado, o escolhido e não
escolhido, o incluído e o excluído, que constituem produções de tensões, de formas
48
de (re)existências e de autonomia, ainda sem a visibilidade e sem a força
necessárias para transformar radicalmente a organização do trabalho escolar.
Retoma-se, então, a questão que leva a esta discussão: como se constituem as
políticas e práticas administrativas de valoriz(ação) do trabalho docente? Como se
constituem os processos de valoriz(ação) desse trabalho docente na escola? Como
se materializam os processos de organização do trabalho da docência no cotidiano
da escola pública, considerando a relação entre as práticas governamentais e as
práticas dos docentes?
Para esta discussão, tomamos, como ponto de partida, a discussão do conceito de
valorização, já que parece um termo amplamente utilizado, com vários significados e
sentidos linguístico-políticos lhes são atribuídos no jogo de forças sociais.
Valorização, segundo o Dicionário Aurélio, é “[...] ato ou efeito de valorizar(-se)”
(p.1751), que vem de valor do latim que valore, designa “[...] qualidade de quem
tem força, audácia, coragem, valentia, vigor”; pode ser “[...] qualidade pela qual
determinada pessoa ou coisa é estimável em maior ou menor grau; mérito ou
merecimento intrínseco”; também, “[...] importância de determinada coisa,
estabelecida ou arbitrada de antemão” (p. 1750); ou, ainda, como usado na
economia: “ [...] maior ou menor apreço que um indivíduo tem a determinado bem
ou serviço, e que pode ser de uso ou de troca” (p.1751).
O Dicionário Aurélio apresenta pistas para entender que, na valorização de algo, o
resultado dessa ação pode ser uma ação impositiva “baixa” de valor e ainda está
acontecendo a valorização da mercadoria/serviço. Isso acontece, principalmente,
quando nos colocam em frente às leituras econômicas. Exemplo: “[...] alta artificial
no valor comercial de uma mercadoria [ou evidenciando-a como] providência
governamental impositiva de um preço autoritário a certos produtos nacionais, em
geral agrícolas, para lhes impedir ou evitar a depreciação” (p.1751).
Mesmo considerando as limitações da definição do dicionário, ele nos aponta que
os processos de valorização são produções das relações sociais e institucionais
compreendidas nas atividades humanas e, dentre tantas, a atividade do trabalho da
docência em escolas públicas, Entendida como mercadoria, serviço, sacerdócio,
constitui-se em uma atividade humana que tem lugar, valor e funções sociais que
49
foram e são construídas no processo histórico da produção das relações de
trabalho.
Buscando também sua apreensão política e filosófica, recorremos a outras fontes
que nos permitam fazer essa discussão com a intenção de dar mais sustentação
teórica ao estudo que desenvolvemos.
Com referência a uma matriz crítica, buscamos recorrer a um pensamento que
permitirá fazer essa discussão levando em conta o conceito de trabalho, de
educação e de política como práticas sócio-históricas.
O interesse nesse debate é pensar o conceito de trabalho como uma atividade
humana coletiva inventiva/criadora, que tem por objetivo a potencialização da vida
(mesmo quando ela parece estar por findar), e a transformação da própria atividade
humana, da sua organização e promover a produção de saberes, práticas e
estratégias como possibilidades de constituir o valor da ação social e econômica do
trabalho.
Nessa perspectiva, vale considerar que a atividade da docência é um trabalho que
tem valor de uso social e histórico no processo organizativo das relações de
produção da existência humana. Vale conceber a docência como uma atividade
humana profissional de intervenção inventiva nas relações sociais de produção do
modo de existência.
É importante pensar que a valorização da atividade docente, em suas múltiplas
dimensões, se produz em um campo de relações de poder no âmbito dos sistemas
educacionais/da educação, e que o valor da ação do trabalho docente é demarcado
por interesses políticos e econômicos do governo, da comunidade em geral e dos
trabalhadores em educação colocados para a profissão, considerando os interesses
do mercado. Mas, também, um processo que engloba as discussões sobre
formação, salário, condições de trabalho e as práticas e saberes produzidos e,
fundamentalmente, a autonomia da escola para que o ensino aconteça.
50
3.1 O DEBATE DA QUESTÃO TRABALHO E VALOR
A discussão acerca do valor do trabalho docente em escola pública nos remete a
algumas questões conceituais: o que é trabalho? Como se organiza trabalho nos
diferentes espaços institucionais? O que é valor? Como se constitui o processo de
atribuir valor (valorização) ao trabalho?
Para nos auxiliar neste debate, remetemo-nos, primeiramente, a alguns aspectos da
economia política crítica de Marx12 para discutir o conceito de trabalho, o processo
de produção, o conceito de mercadoria e a teoria do valor no sentido de se
compreender como se dá o modo de produção nas relações sociais de trabalho.
Num segundo momento, discutiremos o trabalho como atividade, incorporando as
contribuições de Schwartz com a ergologia, buscando focar como se produz a
valorização da atividade de trabalho docente, compreendendo os seus valores
dimensionados e não dimensionados, procurando entender o processo de trabalho
na escola e o valor que lhe é atribuído pelo Estado na sociedade contemporânea.
3.1.1 A discussão sobre o trabalho e valor em Marx
Para a realização da presente dissertação, consideramos necessário firmar
algumas posições, escolhas teóricas, que nos ajudam na discussão da temática
recorrente no discurso e nos documentos, no campo da educação, com relação à
atribuição de valor à ação do trabalho docente.
Sobre a discussão em torno de o trabalho docente ser ou não ser produtivo em
Marx, vale considerar o que nos diz Carcanholo (Acesso em 16 maio 2007)
12 Entendemos que a crítica da economia política é um componente essencial da teoria social de Marx, resultado da investigação histórico-social concreta das relações de produção do seu tempo. Marx se debruçou sobre a análise do conjunto do modo de produção capitalista, mostrando que esse modo reproduz não só as categorias tipicamente capitalistas – mercadoria, dinheiro, salário, mais-valia, lucro, entre outras - mas o conjunto das relações sociais.
51
[...] para ser trabalho produtivo não é necessário que o trabalhador coletivo produza uma mercadoria material. [...] essa questão é absolutamente clara e ele mesmo [Marx] apresenta muitos exemplos nesse sentido, como o do professor, da cantora, do ator, etc. Além disso, deveríamos também mencionar o trabalhador coletivo dos transportes, da armazenagem, etc., como produtores de mercadorias não materiais objeto de trabalho produtivo.
Corroborando o pensamento de Marx, o autor cita Dierckxsens (1998, p. 33):
Trabalho produtivo, em abstrato, é aquele que cria riqueza material ou espiritual. Pelo seu conteúdo, o trabalho produtivo não é somente o que gera riqueza tangível, mas também serviços que satisfazem necessidades. Nesse contexto, o turismo e os espetáculos são tão produtivos como a agricultura e a indústria (Apud CARCANHOLO, acesso em 16 maio 2007).
Uma outra posição a ser firmada em relação à discussão sobre a categoria trabalho
produtivo é a questão do trabalho docente em escola pública estatal. Essa
discussão levanta posições diferenciadas no que se refere ao pensamento marxista.
Para Saviani (1996), o trabalho docente em escola pública deve ser considerado
improdutivo na medida em que não produz mais-valia e a escola não é um produto
exclusivo da sociedade capitalista.
Carcanholo (acesso em 16 maio 2007), faz uma relação com o trabalho dos
profissionais que desenvolvem suas atividades por conta própria, e analisa a
questão do ponto de vista da totalidade do capital, considera o trabalho docente
como produtivo e afirma:
Não há divergências sobre o fato de que a educação e a saúde, quando prestadas diretamente por empresas privadas ao consumidor e quando operam com trabalhadores assalariados, constituem atividades capitalistas produtivas e seus trabalhadores são produtivos [...]. E que dizer da educação e da saúde públicas e gratuitas? A resposta é similar à do caso anterior [profissionais por conta própria], mas não exatamente a mesma. Aqueles profissionais produzem valor e excedente-valor que não é pago pelos que imediatamente usufruem que, se são trabalhadores, têm o valor da sua força de trabalho reposto ou ampliado. Não só o excedente, mas o próprio valor produzido pelos profissionais funcionários públicos reaparecerá nas mãos dos capitais sem que lhes custe nada (salvo quando algo que pagam de impostos correspondentes) que contratem os trabalhadores que, se produtivos, aquele valor e aquele excedente se transformam em mais lucros para o capital global. O labor dos mencionados profissionais funcionários públicos é, então, duplamente produtiva; não só o excedente que produzem, mas todo o valor reaparece como lucro do capital (p.19-20).
É seguindo a direção que nos indica Carcanholo (acesso em 16 maio 2007) na
abordagem do modo de produção capitalista, que tomamos o trabalho docente no
52
setor público estatal como um trabalho produtivo. Assim sendo, vamos realizar esse
debate na compreensão de que o trabalho docente é produtivo dentro da
perspectiva do capital e, também, como uma atividade – trabalho – constituída
historicamente, que contribui para a produção e reprodução da sociedade.
Entendemos ser importante firmar essas escolhas para que as discussões sobre o
valor do trabalho no serviço público possam ser analisadas do ponto de vista da
dinâmica e da prática capitalista da qual a Instituição Estado13 se vale para se
organizar, efetivar e atribuir valor aos seus serviços prestados à sociedade civil,
como é o caso da política de educação.
3.1.2 Trabalho, valor e as relações sociais de produção na sociedade capitalista
O trabalho, como atividade humana em geral, compreendido como relação de
mediação entre o humano e a natureza, com vistas à produção e afirmação da vida,
constitui-se como a materialização da condição humana. O humano, nessa relação
de mediação, produz ação dirigida visando a satisfazer suas necessidades, inventa
outras, cria valores e modos de vida. A atividade trabalho é essa ação comum, geral
e, ao mesmo tempo, particular, dos humanos.
O trabalho, como atividade particularmente humana, distingue o humano dos outros
animais. Segundo Marx (2006, 211-212),
13 Segundo uma linha do pensamento marxista, o trabalho assalariado e as mercadorias/serviços produzidos e geridos no e pelo aparelho estatal (para dar conta do seu papel socioinstitucional e público, na direção de atender às demandas da população) não se prestam a produzir mais-valia e, por isso, deveriam ser considerados improdutivos. Isso, mesmo quando o Estado opere a compra/venda de trabalho, apodera-se de práticas mercantis e capitalistas de organização do processo de trabalho, para que, na efetivação dos seus serviços à sociedade, realize operações de otimização de recursos para “economizar” o máximo de verbas aplicando o mínimo possível e necessário em aquisição de matéria-prima e meios de produção, com vista a poder, com isso, transferir verbas públicas aos capitalistas na operação de compra de seus serviços/produtos no mercado. Essa operação acontece no serviço educacional, principalmente em termos de atribuição de valor ao trabalho docente.
53
[..] o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade.
Com a atividade trabalho, criam-se valores objetivados e subjetivados, materiais e
não materiais que, em relação à produção e criação, o humano produz e reproduz a
vida humana, assim como novas relações sociais de produção e novas formas de
existir/trabalhar.
Segundo Marx (2004, p. 64-65),
O trabalho é uma condição natural eterna da existência humana. O processo de trabalho não é mais do que o próprio trabalho, considerando no momento da sua atividade criadora. Os elementos gerais do processo de trabalho. Por conseguinte, são independentes de todo e qualquer desenvolvimento social determinado. Os meios e materiais de trabalho, uma parte dos quais é produto de trabalhos precedentes, desempenham o seu papel em qualquer processo de trabalho, em qualquer época e em todas as circunstâncias.
A atividade trabalho é que faz o humano agir e transformar a natureza, faz o
humano estar historicamente se produzindo com a natureza.
Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho (MARX, 2006, p. 211).
Do ponto de vista marxiano:
O trabalho, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem - quaisquer que sejam as formas de sociedade -, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana (MARX, 2006, p. 64).
Nesse sentido, Antunes (2004, p. 8), apresentando A dialética do trabalho, em Marx
e Engels, nos afirma:
Ao mesmo tempo em que os indivíduos transformam a natureza externa, tem também alterada sua própria natureza humana, num processo de transformação recíproca que converte o trabalho social num elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana.
Historicamente, o humano, a partir da sua atividade vital – o trabalho - produziu e
produz modos de organização social (tribais, comunitárias, religiosas, jurídicas,
54
científicas – sociedade civil) que se materializam na e pela divisão social do
trabalho, produzindo diversos modos de organização do processo laboral. Em
última instância, a produção histórica desses modos de funcionamento constrói a
forma estatal como uma das formas de organização do modo de produção das
relações sociais de trabalho. Essas relações, hoje, hegemonicamente, são
pautadas pelo modo de produção do sistema capitalista.14
A forma de sociedade anterior ao capitalismo, a feudal, baseada na propriedade da
terra, agricultura, produção artesanal e pela cultura da subsistência, foi marcada
pelo escambo: sistema de permuta de mercadorias, em que a moeda (dinheiro)
ainda não se colocava como a mola mestra do sistema de trocas. Nesse período,
pode-se dizer que o sistema de troca de mercadorias (escambo) era mais motivado
pela relação do valor de uso dos diferentes produtos de trabalho, relação de câmbio
de valores de uso do trabalho que se pautava em suprir as necessidades
elementares15 dos humanos (alimentação, vestuário, habitação), que constituía o
esforço maior de produção à sobrevivência do humano no período feudal. A
preocupação com o acúmulo de riquezas “abstratas” ainda não era central nas
relações sociais de produção.
O período posterior ao sistema feudal, o período das luzes (ascensão da burguesia
ao poder e o início da industrialização das cidades), associado às experiências
anteriores das práticas de acumulação de mercadorias, da divisão das relações
sociais de trabalho e das práticas do comércio marítimo/portuário, possibilitou a
formação de grandes cidades no entorno dos portos (principalmente).
O novo período da história da humanidade procedeu-se com a cisão entre a vida no
campo e a vida na cidade. Esse novo período histórico, o da produção capitalista,
marcou o desenvolvimento e afirmação dos Estados nacionais e, com eles,
também, o surgimento das grandes indústrias, das escolas e do modo de produção 14 O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas em retirar do trabalhador a propriedade dos meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos. “[...] A estrutura econômica da sociedade capitalista nasceu da estrutura econômica da sociedade feudal. A decomposição desta liberou elementos para a formação daquela” (MARX. 2005 p. 828). 15 Gorender (1989), no prefácio de A ideologia alemã, diz que: “A satisfação das necessidades elementares cria necessidades novas e a criação das necessidades novas constitui o primeiro ato da história”. E mais: “A história é, em primeiro lugar, a história da sociedade civil, não a história do Estado” (apud MARX; ENGELS, 1989, p. XXII).
55
e organização social moderno-científico do trabalho que chegou aos dias de hoje.
Tal processo histórico produziu, como forma de organização “superior”, o Estado
Moderno, que compreende uma sociedade dividida em classes sociais distintas:
burguesia (capitalista) e trabalhadores (operariado).
Nessa nova forma econômica de organização social moderna, o modo de produção
capitalista, pelo qual a sociedade civil é marcada e desenvolvida pela divisão social
do trabalho, levou-nos à constituição do estado de classes16 e do humano civilizado
que precisaria ser cada vez mais instrumentalizado para dar conta da produção em
grande escala nas grandes indústrias. Passa também a ser escolarizado em grande
escala, levando-se em conta os valores morais, religiosos, jurídicos, científicos,
culturais e artísticos. Desse novo modo de produção da civilização humana,
constituiu-se o modelo “Estado-Nação” e, para desenvolver essa
escolarização/educação, produz-se a organização escolar como instituição social do
Estado Moderno responsável pela educação.
Para Tardif e Lessard (2007, p. 23), nesse contexto, a sociedade e o Estado
Modernos não poderiam prescindir da instituição escolar:
O ensino no contexto escolar representa há quase três séculos o modo dominante de socialização e de formação nas sociedades modernas. A partir dos séculos XVI e XVII, justamente com a emergência de novas formas de poder do estado, com a industrialização e a urbanização, o ensino em ambiente escolar se impõe pouco a pouco como uma nova prática social institucionalizada que irá substituir progressivamente as outras formas de socialização e de educação (tradicionais, familiares, locais, comunitárias, informais, etc). Ora, longe de se desfazer com o tempo, constata-se que esse modo de socialização e formação, que chamamos de ensino escolar, não pára de expandir-se [...].
Nesse período da história, o trabalho passa a ser objetivado e subjetivado em favor
do desenvolvimento dos modos de produção capitalista.17 Essa moderna forma de
organização das relações sociais de trabalho, o estado capitalista, constitui-se em
um contrato social entre sociedade política e sociedade civil e, também, um contrato
16 O Estado se impõe na condição de comunidade dos homens. Mas é uma comunidade ilusória, pois o Estado, por baixo das aparências ideológicas de que se reveste, está sempre vinculado à classe dominante e constitui o seu órgão de dominação (GORENDER, 1989, p. XXVI). 17 “A premissa de toda a produção capitalista é, portanto, nivelar, no âmbito da circulação, todos sob um mesmo critério: possuidores de mercadorias, quer sejam dinheiro ou força de trabalho. A generalização da lei do valor para o trabalhador e para os produtos do seu trabalho, e o confronto do trabalhador com os meios de produção como propriedade de outro, para quem ele, trabalhador, deve vender sua força de trabalho, são precondição para a formação do modo de produção capitalista” (ROMERO, 2005, p. 81).
56
entre capitalistas e trabalhadores marcado pelo processo de divisão social do
trabalho. Esse modo de organização social, contratual, vem tentando aprisionar a
atividade vital do humano – o trabalho, como uma mercadoria que é comprada ao
trabalhador como trabalho assalariado,18 pelo capitalista ou pelo Estado, por meio
da mercadoria dinheiro.19
Essa intensificação da divisão social de trabalho também produziu uma
estratificação no processo de trabalho que acabou por marcar atividades e posições
sociais cunhadas como superiores/privilegiadas, diminuindo a autonomia do
trabalhador na gestão da sua atividade, segundo os interesses do capitalista e do
Estado.
O processo histórico da divisão social do trabalho no capitalismo (classificando e
hierarquizando a organização do trabalho em os que mandam e os que devem
obedecer às ordens no processo de produção material e imaterial) para garantir e
ampliar a produtividade e eficiência do processo de trabalho, institucionalizou o
trabalho assalariado, que passou a ser uma das formas socialmente aceitas de
atribuir valor às diferentes atividades dos trabalhadores no mercado, por meio de
salário-dinheiro. Seus respectivos “patrões”, compradores da sua força produtiva,
operam, assim, com o objetivo de igualar as diferentes atividades e produzir o lucro,
por meio da exploração do trabalho humano.
A relação de venda e compra da força produtiva entre o trabalhador e o patrão é a
operação na qual ao trabalhador é imposto um trabalho excedente e, também, um
valor arbitrário e menor a ser pago pela quantidade de trabalho incorporada na
produção da nova mercadoria. Essa relação se traduz em extração da mais-valia,
que é uma relação produzida socialmente entre capital e trabalho. O capitalista
tenta naturalizar essa relação como condição social inquestionável da existência
humana no mundo.
18 O trabalhador produz riqueza objetiva e, por isso, segundo Marx (2005, p. 666), “[...] o capitalista produz o trabalhador sob a forma de trabalhador assalariado”. Essa produção constante, essa perpetuação do trabalhador é a condição necessária da produção capitalista. 19A mercadoria dinheiro é a que interessa ao capitalista, contudo ela, também, se materializa como forma social de recompensa econômica e salarial referente à quantidade de trabalho vendida ao ”patrão”. É a recompensa em forma de salário que permite ao trabalhador adquirir, no mercado, a maior quantidade de mercadorias e serviços possíveis para sua subsistência.
57
Essa condição de produção de relações sociais imposta ao mundo do trabalho tenta
afastar o homem da sua existência histórico-social como sujeito transformador e
criador de estratégias de luta para a afirmação da vida como valor fundamental e
como bem comum da humanidade.
A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valia, absorção de trabalho excedente, ao prolongar o dia de trabalho, não causa apenas atrofia da força humana de trabalho, à qual rouba suas condições normais, morais e físicas de atividades e de desenvolvimento. Ela ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de produção do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida (MARX, 2006, p. 307).
A dinâmica de divisão técnica e social do trabalho, combinada com as condições da
produção capitalista, impõe também ao trabalhador essa relação social de venda
das suas forças produtivas, de sua capacidade de trabalho ao capital para
reproduzir e (re)valorizar a si mesmo.
Os valores produzidos pelo trabalho humano são muitas vezes incorporados como
referência histórica, social e econômica de atribuição de valor ao próprio trabalho.
O trabalho em geral e, em especial, o trabalho docente, é patrimônio histórico da
produção de saberes da humanidade e de mediação das relações sociais de
produção da sociedade e da própria vida material.
Para o capitalismo, que se apresenta ao mundo como o estágio superior de
desenvolvimento econômico e político da civilização humana, o trabalho passou a
ser submetido a um processo técnico-científico de divisão social. Assim, o trabalho
tornou-se cada vez mais complexo, especializado, parcelarizado e hierarquizado.
Nessa nova condição histórico-social, o trabalhador é desapropriado dos meios de
produção e do produto do seu trabalho, como, também, alienado do valor20 que é
atribuído ao seu trabalho contido no processo de produção.
De acordo com Romero (2005, p. 81), essa dinâmica diz respeito à subsunção
formal e, com isso,
20 Segundo Marx (2006, p. 238): “Valor, excetuando-se sua representação simbólica, só existe num valor-de-uso, numa coisa. (O próprio homem, visto como personificação da força de trabalho é um objeto natural, uma coisa, embora uma coisa viva e consciente, e o próprio trabalho é a manifestação externa, objetiva, dessa força) A perda do valor-de-uso implica a perda do valor”.
58
[...] o valor de uso cede lugar ao valor de troca e não é mais medida do que e quanto deve ser produzido; a produção se autojustifica e se estabelece com fim em si mesma. A produção pela valorização/acumulação torna-se o único sentido que organiza o trabalho e o define enquanto social.
Para o capital, o que interessa socialmente é o processo de produção de mais-valia;
significa extrair trabalho excedente (trabalho a mais do que o socialmente
necessário à produção) e produzir valor excedente da atividade trabalho. Essa
operação é que permite ao “patrão” designar um valor menor, em forma de salário-
dinheiro, para pagar a força de trabalho “alugada” pelo trabalhador ao capital e, com
isso, obter seu lucro. Assim, também o processo de trabalho vai se tornando cada
vez mais estranho e externo ao trabalhador com o objetivo de regulação e controle
das relações materiais e sociais na produção e na vida desse trabalhador.
Entretanto, essa dinâmica do modo de produção capitalista não se encerra no plano
da dimensão econômica de extração de mais-valia. Ela se estende ao político e
social, na medida em que essa lógica de divisão social do trabalho produz relações
polares e de poder: trabalho intelectual e trabalho manual e dirigentes e dirigidos.
Ou seja, além de trabalhar para o capitalista, o patrão, o trabalhador se vê obrigado,
mesmo resistindo, a realizar sua atividade sob as ordens desse capitalista ou de
seus funcionários-gestores.21
A decorrência ‘lógica’ dessa divisão entre trabalho intelectual e manual, dirigentes e dirigidos, competentes e incompetentes, especialistas (técnicos) e não-especialistas (simples professores) é uma degradação, uma proletarização crescente da força de trabalho considerada não-especializada, desqualificada ou semiqualificada. Expropriado de seu saber próprio, o trabalhador perde também o controle do processo de produção, portanto, de sua própria atividade, que passa a ser dirigida por outrem: temos aqui um dos aspectos da alienação do trabalho. Surge, então, um sistema hierárquico de autoridade em que a grande maioria é submetida ao saber (leia-se: poder) da minoria (COELHO, 1984, p. 33).
O processo de trabalho, como também os meios de produção -- na medida em que
a sociedade foi sendo industrializada, urbanizada e que foi estabelecendo seus
processos hierárquicos de atribuir valor (valorização) ao trabalho como parte do
jogo de (re)produção do capital – divide os humanos em “explorados”, “capturados”,
“administrados”, “normalizados” objetiva e subjetivamente pelo capital (diretamente)
21 Para gerir o processo de produção capitalista, segundo Romero (2005, p. 87), “[...] foi preciso criar um segmento de trabalhadores técnico-científicos, separados da classe trabalhadora tradicional [...], vinculado a um trabalho unicamente intelectual [...], responsável unicamente pela gestão e organização do trabalho”.
59
e pelo o Estado (indiretamente), enquanto a sociedade foi se tornando complexa e
estratificada.
Nesse processo de produção de relações sociais mais complexas, estratificadas,
hierarquizadas e parcelarizadas na sociedade, mais se exige da atividade do
trabalhador; e parece que menos se permite ao trabalhador dialogar sobre a sua
atividade no sentido de compartilhar, de dar mais visibilidade aos saberes e às
estratégias produzidas, como também, tornar mais evidente o conteúdo do valor
atividade produtiva dos trabalhadores nos seus diferentes ramos, como é o caso do
trabalho no campo da educação.
O exercício das práticas do poder de cima para baixo, na divisão social do trabalho,
busca regular e manter o controle sobre a gestão do tempo livre e descanso do
trabalhador, seja no local do trabalho, seja fora dele. Controlar e regular a
autonomia, o diálogo e os encontros dos trabalhadores se constitui em algumas das
práticas próprias do modo de gestão do capital, que busca monitorar a organização
desses trabalhadores.
Mesmo com a industrialização, urbanização das cidades e os seus mecanismos de
regulação social, essas práticas não se constituíram como processos de poder e de
controle homogêneo, uniforme e absoluto do trabalho humano e, em especial, do
trabalho docente.
O modo de produção capitalista é um processo contraditório, necessariamente
aberto a mudanças e, por isso, produtor de estratégias “escapantes” das suas
próprias ciladas de morte, permitindo-lhe garantir a sua hegemonia social e política
e a sua própria existência material e histórica. No seu processo de contradição
dialética, viabiliza, por meio da sua atividade trabalho, que os trabalhadores
produzam outras formas de escapar dessas ciladas despotencializadoras, geradas
pelo modo de produção capitalista.
Nesse sentido, o trabalho e o valor se conjugam como unidades de um mesmo
processo de produção e valorização da mercadoria, constituindo o valor de uso para
quem compra e o valor de troca para quem vende essa atividade-mercadoria: o
próprio trabalho. O capital tenta extrair um quantum maior de valor do trabalho
60
excedente para produzir diretamente ou indiretamente mais-valia e restringir os
riscos que possam diminuir os lucros (ou reduzir os gastos de recursos públicos).
Não interessa ao capital que o trabalho seja produzido como valor social potente e
afirmativo de princípios políticos e éticos em favor da vida como bem comum e
possa fortalecer as lutas dos processos emancipatórios dos humanos. Não
interessa ao capital que modos de trabalho mais coletivos, com gestão cooperativa
e solidária, se tornem visíveis e coloquem em xeque as práticas capitalísticas
hegemônicas nos processos de organização e de produção das relações sociais de
trabalho presentes na sociedade.
Tais práticas capitalísticas, também circunscritas no chão da escola, buscam
despotencializar seus profissionais como sujeitos produtores de patrimônio
histórico; sujeitos que, em seu dia a dia, produzem experiências e saberes e, por
meio deles, alimentam suas próprias escolhas e ações e as de outros, na direção
da construção de uma escola pública mais comprometida com os anseios dos
sujeitos-cidadãos para viverem com condições de vida mais digna.
3.1.3 O trabalho como valor de mercado: valor de uso e valor de troca
Antes de surgir um alfaiate, o ser humano costurou durante milênios, pressionado pela necessidade de vestir-se (MARX, 2006, p. 64).
E antes de surgir o professor e a escola, o ser humano transmitiu seus saberes,
durante séculos, às novas gerações, motivado pela necessidade de se afirmar
como ser social capaz de, na sua relação com a natureza, produzir o seu
existir/viver.
O ponto de partida da teoria do valor22 de Marx, no que tange ao trabalho material e
não material, é o trabalho abstrato, que se contrapõe ao trabalho concreto e
22 Para o marxismo, a teoria do valor só pode ser entendida considerando a organização da sociedade e a historicidade como elementos fundamentais da constituição do trabalho com conteúdo de valor.
61
compõe o duplo caráter do trabalho. Nessa perspectiva, o trabalho abstrato é um
tipo de trabalho que assume a qualidade de sujeito, e o trabalho concreto torna-se
um simples atributo dele, ou seja, o trabalhador passa a ser um simples veículo de
realização do trabalho.
Buscando superar os limites formais de extração de mais-valia e de controle sobre o
trabalhador, o capital produz a subsunção real e amplia seu lucro e poder político e
social.
Segundo Romero (2005, 87), disso resultou que:
A procura constante pelo baixo custo por meio da desvalorização da força de trabalho não revolucionou apenas o interior do processo de trabalho; o processo de produção como um todo também foi modificado e, com ele, revolucionaram-se as necessidades sociais, criam-se novos valores de uso e expandiram-se as fronteiras do capital. Em suma, criou-se o modo de produção especificamente capitalista.
Modo de produção que busca sugar a potência criadora subjetiva do humano no
processo de produção. Assim, a relação entre sujeito e objeto se inverte no
processo de trabalho. O capital faz com que o produto criado – a mercadoria –
torne-se alheio a quem o produziu e, com isso, o trabalhador produz uma
mercadoria como um valor que lhe é alheio, e mais: um valor determinado pelo
mercado.
Como diz o próprio Marx (2004, p. 52),
Cada processo de produção implica um risco para os valores que nele ingressam, um risco que, contudo, 1) estes correm mesmo fora do processo de produção e 2) é inerente a qualquer processo de produção e não só ao do capital. (O capital protege-se contra si mesmo associando-se.) [...]. No que respeita aos fatores vivos do processo de valorização, deve-se: 1) conservar o valor do capital variável, reintegrando-o, reproduzindo-o, isto é, adicionando aos meios de produção uma quantidade de trabalho igual ao valor do capital variável ou do salário; 2) gerar um incremento do seu valor, uma mais-valia, objetivando no produto um quantum de trabalho excedente para além do contido no salário, um quantum adicional de trabalho.
Do ponto de vista do capitalista, o que interessa no processo de atribuição de valor
ao trabalho é a sua materialidade. Considerando o processo no qual o trabalho vivo
passa a ser incorporado pelo trabalho material,
Não é o trabalho vivo que se realiza no trabalho material como órgão objetivo; é o trabalho material que se conserva e se acrescenta pela
62
sucção do trabalho vivo, graças ao qual se converte num valor que se valoriza, em capital, e funciona como tal. Os meios de produção parecem já unicamente como sorvedouros do maior quantum possível de trabalho vivo. Este se apresenta tão-só como meio de valorização de valores existentes, por conseguinte, da sua capitalização (MARX, 2004, p. 54).
O modo de produção capitalista se alimenta do trabalho geral, alheio, e se valoriza
produzindo valores alheios ao processo das relações sociais de produção do
trabalho concreto/vivo. O capital se investe do trabalho abstrato que dá origem a um
produto qualquer e, a ele, um valor qualquer e genérico, que lhe é atribuído
arbitrariamente para assumir um valor de troca no mercado.
Nessa relação social de produção e de valorização do produto de trabalho, o seu
produtor ou produtores (considerando a divisão do trabalho) se encontram alheios à determinação do seu valor, na medida em que não são mais donos dos meios de
produção, e as mercadorias produzidas são igualadas pelas quantidades de
trabalho nelas contidas, perdendo suas propriedades e dimensões qualitativas que
poderiam dar visibilidade ao seu valor de uso como obra do trabalhador.
Como diz Napoleoni (1981), o trabalho abstrato, para ser trabalho, deve dar origem
a um produto e esse produto, que é também abstrato, é precisamente um valor. É o
produto não como valor de uso, ou seja, não como objeto dotado de determinadas
propriedades, mas como valor, ou seja, como parte alíquota de uma riqueza
genérica (p.167).
Os produtos, as mercadorias, que, em certo momento, foram produzidos para suprir
uma necessidade ou um desejo, adquiriram um valor de uso para o seu produtor e
para outrem na sociedade. Para o capitalista, a mercadoria é abstrata e, por isso,
comporta um valor abstrato e alheio para o seu produtor – o trabalhador.
Assim, no processo de produção o trabalho, como atividade e como mercadoria,
incorporam em si valores genéricos e valores de uso para outrem – um comprador,
consumidor, usuário, cliente. Ambos carregados de inventividade, processo
organizativo, abstração, cognição, história, religiosidade, moralidade, sonhos e,
também, nervos e músculos em ações que buscam a criação de novos valores para
o trabalho material e não material.
63
A questão do valor de uma mercadoria é representada pela sua utilidade material,
seja ela uma coisa-mercadoria, seja uma atividade-mercadoria.
Para Marx (2006, p. 59):
As propriedades materiais só interessam pela utilidade que dão às mercadorias, por fazerem destas valores-de-uso. Põem-se de lado os valores-de-uso das mercadorias, quando se trata da relação de troca entre elas. É o que evidentemente caracteriza essa relação. Nela, um valor-de-uso vale tanto quanto outro, quando está presente na proporção adequada. Ou como diz o velho Barbon: ‘Um tipo de mercadoria é tão bom quanto outro, se é igual o valor-de-troca. Não há diferença ou distinção em coisas de igual valor-de-troca.’ Como valores-de-uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor-de-uso.
Considerando a análise marxista do trabalho – na qual trabalho também tem seu
valor regulado pelo mercado, na medida em que ele passa a ser uma mercadoria
comum, mas que se faz meio de produção, matéria-prima, destinada à produção e
reprodução da força de trabalho humano para a produção de novas mercadorias,
processos de produção e acumulação de riquezas – deparamo-nos com a questão
do trabalho e do valor nas relações produtivas.
Marx (2006, p. 95-96) afirma: Os homens não estabelecem relações entre os produtos do seu trabalho como valores por considerá-los simples aparência material de trabalho humano de igual natureza. Ao contrário. Ao igualar, na permuta, como valores, seus diferentes produtos, igualam seus trabalhos diferentes, de acordo com sua qualidade comum de trabalho humano. Fazem isto sem o saber. O valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o significado do hieróglifo, descobrir o segredo de sua própria criação social, pois a conversão dos objetos úteis em valores é, como a linguagem, um produto social dos homens.
Para Marx (2006, p. 57):
A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza [...]. A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção.
A mercadoria como coisa útil, que supre uma necessidade básica ou uma
fantasia/objeto de consumo do humano, faz-se um valor de uso, que, por sua vez,
64
possui um valor “real” e um valor “abstrato” que conformam e dinamizam o processo
de produção e acumulação de conhecimento e saberes, e que podem contribuir
contraditoriamente para a potência do seu valor de uso, na dinâmica do modo de
produção capitalista. O valor de uso constitui o conteúdo material da riqueza,
independentemente da sua forma e valor social. No capitalismo, os valores de uso
são também veículos materiais dos valores de troca, constituindo, por suas relações
de produção, um processo de valorização combinado com suas próprias
contradições (que não são, necessariamente, ordens contrárias).
Segundo Marx (2004, p. 43),
Assim como a mercadoria é a unidade imediata do valor de uso e do valor de troca, o processo de produção que é processo de produção de mercadorias é a unidade imediata do processo de trabalho e do processo de valorização. Do mesmo modo que as mercadorias, isto é, as unidades imediatas do valor de uso e do valor de troca, saem do processo como resultado, como produto, assim também ingressam nele na qualidade de elementos constitutivos; de um processo produtivo não pode sair nunca nada que nele não tenha entrado sob a forma de condições de produção.
O trabalho como mercadoria contém um valor de capacidade viva de trabalho
humano, que geralmente pode ser concebido como uma medida de quantidade de
tempo transformada em valor alheio ao trabalhador. Valor de uma quantidade
(também qualidade) de tempo socialmente necessário ao processo de produção (e
aceito pelas normalizações jurídicas da sociedade), em que o trabalho concreto é
reduzido a trabalho abstrato (dispêndio de força de trabalho). Ao trabalho
necessário, impõe-se um valor de trabalho excedente e a coerção do trabalho vivo
pelo trabalho objetivado (morto), que marcam o modo de reprodução (aumento da
produtividade e acumulação) capitalista.
O valor de uso do trabalho embutido no produto também diz respeito a uma
substância de valor, que pode ser arbitrariamente estipulada por medidas
quantitativas e qualitativas, que é socialmente aceita e transformada em um valor
de troca. Essa operação refere-se, para o capital, à quantidade do dispêndio da
força vital do trabalhador na atividade.
Força vital de trabalho é o valor que o trabalhador possui e que, por isso, necessita
colocar à venda no mercado, por não possuir a “propriedade” dos meios de
produção e para que possa suprir suas necessidade de subsistência e de consumo
65
como: alimentação, vestuário, moradia, transporte, educação, saúde, lazer etc., que
o próprio mercado vende.
Essa força vital de trabalho, aplicada a um fim, denominada pelo capital de trabalho
necessário, é transformada produtiva e socialmente em remuneração salarial
necessária (num duplo sentido da relação capital e trabalho), e é representada nas
relações sociais de produção como trabalho assalariado.
O trabalho assalariado, como tal, pode ser entendido como um mecanismo de
valorização econômica, produto da relação de contrato social de trabalho entre o
trabalhador e o empregador (capitalista e governo).
Em se tratando da atribuição de valor a partir da lógica econômico-mercadológica, o
que está posto em jogo são leituras objetivadas e quantificadas da atividade
trabalho como mercadoria, que valoriza o capital a partir do trabalho excedente.
A lógica mercadológica, perseguindo a lucratividade, age no jogo das relações
sociais do modo de produção do trabalho, no sentido de tentar inviabilizar uma
leitura qualitativa da atividade trabalho como fonte de atribuição de valor ao trabalho
que expressa o seu valor de uso como uma atividade de bem comum à sociedade.
Da produção de subjetividade inclusa no processo de produção pelo trabalho vivo e
concreto emergem valores que escapam da lógica do pensamento econômico e
levam o trabalhador a interrogar a sua condição de coisa mercantil, seja no campo
no setor produtivo, seja no setor improdutivo de capital, seja ele trabalho material,
ou seja imaterial, como pode ser concebido também o trabalho docente.
O trabalhador, ao interrogar as práticas capitalistas, leva o capital a tentar se
proteger (de si mesmo e) da ação de (re)existência e de luta dos trabalhadores. A
imposição da tecnocracia e de valores quantificados, compreendidos dentro de uma
dinâmica economicista, no processo de produção de subjetividades e de relações
sociais de poder, tenta se colocar no processo produtivo como valores de ordem
superior.
Nessa perspectiva economicista de produção das relações de trabalho, os planos
hierárquicos são estabelecidos como medidas de poder e comando, organização e
66
competência preestabelecidas para tentar controlar o processo de atribuição de
valor da atividade trabalho.
A atividade docente, cuja relação de produção é real e imediata, acontece no chão
da escola cotidianamente, e é uma atividade criadora de valores. É um processo
complexo que produz, mesmo minimamente, um abrir de portas, um abrir de
prisões, de fábricas, de escolas e de templos, criando novas normas e valores para
compor com o viver em toda a sua amplitude histórica possível de criar novos
processos de produção de existência humana que afirmem a vida como princípio
ético fundamental.
Em se tratando do trabalho docente, esse processo de produção de valores é
intenso, na medida em que o trabalho docente é essencialmente trabalho vivo e
concreto, mesmo que comandado.
Pode-se dizer que o trabalho docente é, sobretudo, no processo de produção,
produção imediata de valores de uso que, em determinado momento espaço/tempo,
transforma-se em produto/mercadoria assumindo determinados valores de troca.
Isso, mesmo quando concebido como um trabalho imaterial e do setor de serviços e
é transformado em processo de valorização do capital.
Contudo, nesse processo, há uma produção intensa de valores que interessa aos
trabalhadores e não só como mercadoria a ser vendida. É uma produção de
patrimônio de saberes, de estratégias e de (re)existência à submissão, ao modo de
produção do capital, com seu sentido positivo de afirmação da vida e de recusa ao
controle técnico-político produzido pelas práticas capitalistas.
Como valor de uso, a atividade trabalho, em especial o trabalho docente, é sempre
produtivo para a sociedade e, em certa medida, também como valor de troca que,
na circulação e dinâmica social, questiona contraditoriamente o capital. Todavia,
como valorização do capital, resultado da mais-valia, mesmo que relativa, pode ser
transformado em valor de troca, capaz de fazer circular novos modos de existir e de
afirmar um tipo de vida que interessa ao capital. Vida que tenta a combinação de
poder, controle e consumo e que busca impor o trabalho morto, passado e
objetivado sobre o trabalho vivo (que, em sua essência como ação viva e concreta,
67
está sempre em busca de estratégias para realizar a tarefa de produção combinada
com as de produção de afirmação da vida, em qualquer ambiente de trabalho).
Dentro da lógica dos valores das práticas capitalistas, de organizar a produção da
vida, o modo de produção capitalista produziu socialmente o trabalhador docente
assalariado. Também transformou a atividade trabalho em meio de produção e em
uma mercadoria com valor de troca genérico.
No capitalismo da atividade docente – como mercadoria – busca-se seu caráter útil,
vivo e corporificado de produção de subjetividade, em que a condição do produto de
trabalho apareceria sem suas qualidades materiais e imateriais e reduzidas em
trabalho humano abstrato, que se representa em uma mercadoria que é posta em
relação de permuta, valor de troca, no mercado, para atribuir mais valor ao capital e
menos valor ao trabalho humano.
Marx (2006, p. 60) afirma:
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos de trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato. [...] a massa pura e simples do trabalho humano em geral, do dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela forma como foi despendida. Esses produtos passam a representar apenas a força de trabalho humana gasta em sua produção, o trabalho humano que neles se armazenou. Como configuração dessa substância social que lhes é comum, são valores, valores-mercadorias.
Dessa maneira, o trabalho e o valor que interessam ao capital buscam para a
acumulação de riqueza econômica (genérica) nas mãos dos capitalistas e que, em
certa medida, em direção contrária, apontam para a despotencialização do
processo de valorização do trabalho como atividade humana fundamental para a
afirmação da vida como valor de bem comum da sociedade e como principal
riqueza material, social e histórica da humanidade. Isso, sem perder a dimensão
econômica que constitui as relações sociais de produção, que regem a nossa
sociedade.
Para o pensamento marxiano, o trabalho, como atividade vital dos humanos, é
condição para a sua existência sócio-histórica. Nesse sentido, é concebido criador
68
de valores de uso que busca efetivar o intercâmbio material entre o homem e a
natureza/mundo das coisas para produzir a vida humana.
Nesse intercâmbio, mediação, com a natureza/mundo das coisas, o homem
promove a transformação das forças naturais e das coisas em processo de trabalho
social, fundamental para a produção da vida e da sociabilização humana.
Segundo Engels (apud ANTUNES, 2004, p.13):
O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais que isso. É a condição básica e fundamental de toda vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.
Essa fonte de riqueza-trabalho que, em um dado momento, se transforma em valor
de uso, é a utilização da força de trabalho humano, é a força de trabalho viva, que
antes era só potencial e agora é força potencializada, com valores objetivados e
subjetivados dessa atividade de trabalho em uma produção material ou imaterial
para suprir necessidades e desejos dos viventes humanos.
Para Marx (2006, p. 211):
A produção de valores de uso ou bens não muda sua natureza geral por se realizar para o capitalista e sob seu controle. Por isso, o processo de trabalho deve ser considerado de início independente de qualquer forma social determinada.
Partindo dessa premissa de análise, já poderíamos indicar que há uma dinâmica
natural dos processos de produção e que essa dinâmica compõe o vivente em
relação com a natureza e o mundo das coisas produzindo valores de uso. Com isso,
pode-se pensar que, quando o trabalho humano se transforma em valor de uso no
processo de trabalho e estabelece relações e estas se transformam em outros
produtos (caneta, cadeira, livro, educação, saúde), para suprir necessidades e
desejos, podem-se também criar outros valores, seja de uso, seja de troca. Ao criar
outros valores e valores de uso e estabelecer relações entre si e de circulação,
esses valores podem se converter em valor de troca.
Contudo, vale ressaltar que:
Um valor-de-uso ou bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato. Como medir a grandeza do seu valor? Por meio da quantidade da ‘substância criadora de valor’ nele contida, o trabalho. A quantidade de trabalho, por sua vez,
69
mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do tempo, como hora, dia etc. (IMARX, 2006, p. 60).
Essa quantidade de trabalho é medida por quantidade de tempo e transformada em
valor no processo de produção, ou seja, é o trabalho social necessário que é o
tempo de trabalho solicitado para produzir-se um valor de uso qualquer. Assim,
[...] o que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessária ou tempo de trabalho socialmente necessário à produção de um valor-de-uso [...]. O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra, assim como o tempo de trabalho necessário à produção de uma está para o tempo de trabalho necessário à produção de outra. ‘Como valores, as mercadorias são apenas dimensões definidas do tempo de trabalho que nelas se cristaliza’. (MARX, 2006, p. 61).
Essa condição parece fortalecer-se quando o produto de trabalho é colocado em
um processo de relação social de troca mercantil. O trabalho humano, quantidade
de trabalho dispensado à produção, constitui-se, então, para o capitalista em uma
mercadoria (artefato) que entra em processo de circulação e se apresenta com
valor de troca (geralmente convertido em valor preço-dinheiro) no mercado, seja em
forma de produto material, seja imaterial, vale lembrar: tempo é dinheiro no mundo
do capital.
Para Marx (2004, p. 43), “[...] a mercadoria é a unidade imediata do valor de uso e
do valor de troca, o processo de produção que é o processo de produção de
mercadorias é a unidade imediata do processo de trabalho e do processo de
valorização”.
E esse processo de valorização só é possível de acontecer porque:
Uma parte do valor de uso com que o capital se apresenta no interior do processo de produção é a própria capacidade viva de trabalho, mas uma capacidade de trabalho de especificidade determinada, correspondente ao particular valor de uso dos meios de produção, e a uma capacidade de trabalho impulsora, uma força de trabalho que, ao manifestar-se, se orienta para um fim, que converte os meios de produção em momentos objetivos de sua atividade, fazendo-os passar, por conseguinte, da forma original do seu valor de uso para a nova forma do produto (MARX, 2004, p. 45).
Essa apresentação se dá com forma de capital adiantado. O trabalhador adianta o
seu único capital, que é a sua capacidade de trabalho, colocando no processo de
produção a sua força vital, que nos parece ser, ao mesmo tempo, seu valor de uso
70
e seu valor de troca para obter a mercadoria dinheiro e, também, colocar em
evidência a produtividade do trabalho,23 que interessa para si e para o capital.
O Estado, com o seu modo político de operar, e objetivando também produtividade
e eficiência, produz modos de legislar, normalizar, regular e tentar controlar as
relações sociais de produção da vida em sociedade, segundo a dinâmica do campo
de jogo das forças sociais marcada por interesses iminentemente econômicos.
A instituição, como o Estado, com os seus modos de funcionamento, faz escolhas
por práticas de relações de negociação e produção de prescrição de normas
legislativas, técnicas, comportamentais, remunerativas e organizativo-
administrativas para a materialização institucional de serviços à sociedade.
Geralmente, essas práticas de organização do trabalho são advindas do mercado,
obedecendo à lógica capitalista de compra e venda de trabalho/mercadoria.
Marx (2006, p. 104), ao falar do fetiche das mercadorias, diz:
Se as mercadorias pudessem falar, diriam: ‘Nosso valor de uso pode interessar aos homens. Não é nosso atributo material. O que nos pertence como nosso atributo material é o nosso valor, isto é, o que demonstra nosso intercâmbio com as coisas mercantis. Só como valores-de-troca estabelecemos relações umas com as outras’.
Ainda se valendo da lógica do pensamento capitalista, que faz com que o
trabalhador faça da sua força de trabalho uma mercadoria, pode-se dizer que essa
situação estabelece uma relação de tensão permanente entre capital e trabalho;
tensão essa que pode produzir outros modos de funcionamento que não os
prescritos pela lógica de controle do pensamento capitalista, podendo resultar em
novas relações sociais de trabalho e dar visibilidade a outros saberes e valores para
a afirmação da vida como bem comum.
A sua atividade trabalho (assalariada) é a mercadoria da qual ele é o seu próprio
produtor e vendedor e da qual ele não pode abrir mão de ser proprietário (senão ele
perde a condição de homem livre e se inventa como escravo). Pode-se dizer que
essa situação histórica do trabalho singulariza certa condição relacional de trabalho
produtivo e processo de valorização. Mas tal condição relacional não faz do
23 “A produtividade do trabalho é determinada pelas mais diversas circunstâncias, dentre elas a destreza média dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais” (MARX, 2006, p. 62).
71
trabalhador, na venda da sua força de trabalho, um capitalista, mas apenas um
vendedor que transforma o trabalho individual e livre em trabalho coletivo e que,
nessa condição, opera práticas de (re)existência e de luta pela valorização da vida e
do trabalho na sociedade.
Para Marx (2006, p. 198), ao trabalhador é fundamental a tarefa:
[...] de manter sua força de trabalho como sua propriedade, sua própria mercadoria, o que só consegue se a ceder ao comprador apenas provisoriamente, por determinado prazo, alienando-a sem renunciar à sua propriedade sobre ela.
É a partir desse exercício permanente, na sociedade moderna, que o ser humano
poderá exercitar a sua força como sujeito histórico. Foi o próprio humano quem
produziu historicamente, por meio da sua capacidade e atividade trabalho, esse
modo atual de produção de relações sociais de trabalho e é a partir dele que se vai
potencializar a produção de novos modos de existência, normas e valores, para a
afirmação e a valorização da vida como bem comum.
3.1.4 O valor, o serviço e o trabalho docente: nada é natural, por isso tudo
está em relação de produção
Para Marx (2004, p. 118), “[...] serviço não é em geral mais do que uma expressão
para o valor de uso particular do trabalho, na medida em que este não é útil como
coisa mas como atividade”.
Ao se considerar o trabalho docente como atividade cujo valor está consignado no
seu valor de uso, o processo de produção de valores pode ser percebido com mais
potencialidade na medida em que o trabalho docente é essencialmente trabalho
vivo, que é produzido e consumido ao mesmo tempo, embora
comandado/controlado.
O valor de uso do trabalho docente é construído no processo da atividade em curso,
cujo produto do trabalho e o seu valor são consumidos no momento da efetivação
da própria atividade docente, na relação ativa e direta entre professor e aluno, mas
que são representados em dados estatísticos e relatórios frios.
72
Pode-se dizer que o trabalho docente é, essencialmente, no processo de produção
de bem e serviço, produção e consumo imediatos de valores de uso que, em
determinado momento espaço/tempo, transforma-se em produto/mercadoria que
assume determinados valores de troca no mercado, mesmo que geralmente tomado
como trabalho improdutivo, quando o trabalho é demandado e dirigido pelo Estado
e, para isso, entendendo-se trabalho produtivo apenas como produtor de mais-valia
para o capital.
Para Marx (2004, p. 119), na produção não material “[...] o produto não é separável
do ato da produção”. Também se pode dizer que não se separa do ato de consumo.
O trabalho docente, concebido como um trabalho que não produz mercadorias, para
o capital, caracteriza-se como uma atividade-mercadoria. Assim, a atividade-
mercadoria da docência é produzida na relação, geralmente, do professor com o
aluno. Como tal, é uma “mercadoria” cuja relação ativa de produção e consumo
acontece no processo ensino-aprendizagem. Então, a atribuição de valor a esse
trabalho é sempre complexa na medida da dificuldade de se mensurar o que foi
consumido pelo aluno e a quantidade de capacidade de trabalho dispensada pelo
professor na produção dessa atividade-mercadoria.
Por outro lado, o trabalho docente é uma atividade produtora de subjetividades e,
por isso, produção intensa de valores de uso cujos produtos que são “consumidos”
são os patrimônios cultural, científico, histórico e as práticas sociais, saberes,
estratégias e modos de resistências para a afirmação da vida em frente à
submissão e ao controle técnico-político produzidos pelas formas capitalistas.
O trabalho docente é uma atividade que envolve também diversos fatores subjetivos
que compõem o seu processo de produção. Como dizem Abreu e Landini (2003, p.
9),
No caso do trabalho docente é preciso considerar as práticas sociais dos sujeitos envolvidos, nesta categoria, a partir de sua formação escolar, do contexto social em que essa formação se põe, da vivência cotidiana na escola, das relações que estabelece com o produto do seu trabalho – o saber -, das relações com outros agentes educacionais envolvidos na escola, da relação que estabelece com o sindicato e as instituições representativas de classe, das condições estruturais da profissão (salário, condições de trabalho, etc.), entre outros fatores.
73
Com essa condição posta como necessária, o trabalho docente é uma atividade de
trabalho sempre produtiva, seja para o seu produtor, seja para o restante da
sociedade. Política e socialmente, essa atividade, como trabalho interativo e
imaterial, produz-se em algum momento do seu processo, como interrogadora dos
valores, dos valores de uso e, também, em certa medida, dos valores de troca
atribuídos a ela e que, na circulação e dinâmica social, contraditoriamente,
questiona o modo de produção e o capital.
Para estabelecer melhor relação de troca, com vistas à autovalorização do capital, o
capitalista transforma os artefatos do processo do trabalho docente em matéria-
prima e meios de produção. Assim, firma-se historicamente a organização escolar
como lugar de consumo das mercadorias: conhecimento, informação, ensino e
educação, vistas como mercadorias/produtos socialmente necessárias ao
desenvolvimento civilizatório das sociedades modernas, em especial, a capitalista.
Mas, como valorização do capital, produção de mais-valia, mesmo que indireta ou
relativa, é transformada em valor de troca e colocada em circulação e negociação
social, produz novas relações. Tal processo faz circular novos modos de existir e de
afirmar um tipo de vida que interessa ao capital, vida que é combinação de poder e
consumo, que impõe o trabalho morto, passado e objetivado, sobre o trabalho vivo.
Trabalho vivo que, na sua essência, como atividade concreta orientada a um fim
posto com o processo de produção, busca estratégias de afirmação da vida, em
qualquer ambiente de trabalho.
No setor produtivo, em que o capitalista leva o trabalhador a produzir mais-valia, o
debate trabalho se dá na correspondência da relação entre o tempo necessário e o
tempo excedente colocado na produção de mercadorias (materiais ou imateriais).
Essa relação gera mais valor a ser apropriado pelo capitalista, que
oferece/determina as condições e os meios de produção do trabalho para que um
outro ser humano possa realizar/inventar trabalho de sua competência, com a
venda da sua força de trabalho.
De fato, tanto no setor produtivo fabril, lugar de produção de mais-valia/capital,
como no setor de serviço e, em especial, do trabalho imaterial – lugar de produção
de circulação do capital – temos um ponto comum: todo trabalhador, para o
74
capitalista, tem um valor de uso (material ou imaterial) que necessariamente é
transformado em valor de troca para se constituir como uma mercadoria
denominada trabalho/trabalhador assalariado.
Porém, vale dizer que a atividade do humano é uma mercadoria especial e única.
Essa atividade, mesmo concebida como uma mercadoria, constitui-se como
produtora de história, ou seja, uma mercadoria-atividade que faz escolhas no curso
do trabalho produzindo normas e valores econômicos e sociais.
Nesse sentido, o trabalho também é campo de possibilidades de produzir
estratégias para se rebelar e resistir à condição de mercadoria, construir caminhos
para se viver com mais liberdade e valorizar a vida como um bem comum, mesmo
em tempos de reestruturação produtiva e acumulação flexível.
Considerando a relação trabalhador - “patrão” e as dimensões políticas (histórica e
subjetiva), pode-se dizer que, em certa medida, a atribuição de valor ao trabalho
por parte do “patrão” se conforma como uma tentativa de controle e regulação sobre
a vida econômica e social do trabalhador por meio das práticas capitalísticas.
Por outro lado, pode-se dizer, também, que esse processo de atribuição de valor ao
trabalho é uma produção “misturada” de valores e estratégias de lutas e de
(re)existências às normas legislativas, administrativas, determinações econômicas e
políticas educacionais colocadas pelo patrão, nesse caso, o Estado.
Tal produção configura-se como um movimento que busca reorganizar atividade de
trabalho segundo um outro modo de existir/trabalhar que objetiva não só ganho
econômico/salarial, mas um movimento que se amplia para afirmar e materializar a
vida no trabalho.
Nessa perspectiva, a vida entendida não como coisa que é particular (propriedade)
e individual, mais fundamentalmente como bem comum, produção coletiva, que
potencializa o humano como ser solidário, fraterno e comprometido com a
transformação da escola do seu tempo em favor de uma educação que possa
contribuir para a afirmação da vida.
75
3.2 A ERGOLOGIA: SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE
A ergologia é uma ferramenta de análise do trabalho do ponto de vista da atividade.
Para a ergologia, o trabalho é a manifestação do viver humano no e com o mundo,
que exige do sujeito o exercício coletivo do debate de normas e valores, o exercício
de negociação, para se produzir objetos, mas, também, modos de viver. No
trabalho, o sujeito é desafiado e convocado a estabelecer diálogos, construir
encontros, produzir movimentações, deslocamentos e estratégias e, principalmente,
fazer escolhas para dar conta da atividade trabalho.
O conhecimento ergológico se coloca como ferramenta articulada por três polos:24
mercado, político (do direito) e da gestão da atividade. Pelo polo da gestão da
atividade, a ergologia busca rearticular o polo mercantil e o polo do político (do
direito) como ação de compreender transformando a produção de histórias (ou da
matriz histórica) de como fazer a vida no e com o mundo, como criação singular e
coletiva no e com o trabalho.
A perspectiva ergológica25 se referencia no trabalho como atividade produtora do
uso de si para se viver, matriz de histórias, políticas e de normas antecedentes que
entram em conflito no e com o meio26 e, com as escolhas a serem tomadas para se
afirmar os modos de se valorizar o trabalhar/viver em favor da produção do bem
comum como ação de cidadania (da política) para a sociedade. Em face do pólo da cidadania e do pólo do mercado, um pólo da atividade se erige, sem o que a pessoa estaria fora do jogo e a história olhada como uma mecânica. A idéia de um espaço tripolar, com este traduz-se por pensar um certo número de relações, de tensões. Cada pólo tem sua especificidade profunda mas, ao mesmo tempo seria ininteligível em si, em sua vida, em
24 Como nos coloca Schwartz (2007, p. 249): “Ao falarmos de pólos, não estamos querendo designar territórios perfeitamente individualizados, ou instituições precisamente delimitadas e absolutamente independentes. Queremos assinalar toda uma gama de situações intermediárias, não cabendo portanto encaminhar um raciocínio segmentado ou dicotômico”. 25 A perspectiva ergológica fundamenta-se considerando quatro pressupostos: “[...] 1) pensar o geral e o específico, sob uma dialética do universal e do singular; 2) articular entre diversas disciplinas e interrogar sobre seus saberes; 3) encontrar em todas as atividades as normas antecedentes e as variabilidades, e que a análise do trabalho deve estar inserida num campo de valores, da epistemologia e da ética e; 4) promover um dado regime de produção de saberes sobre o ser humano, no qual o encontro entre os saberes científicos e práticos seja sempre uma descoberta” (BRITO, 2004, apud BOTECHIA, 2006, p. 57). 26 Para a ergologia, o meio não está dado.
76
sua duração, nos seus debates, fora do contexto da relação com os outros dois pólos (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 255).
A perspectiva ergológica nos permite entender que o desafio e a convocação que o
trabalhar/viver exigem do humano significam também a atividade de produção de
políticas como estratégias de ampliação dos modos de gerir as organizações para a
valorização do próprio trabalho e da vida.
Por conseguinte, pode-se entender que os modos de gerir as organizações se
configuram como um processo de produção de novas prescrições e normas
antecedentes que estão em constantes movimentos institucionais, de transformação
das relações de produção e de atribuição de valor do processo de trabalho. Isso,
segundo, também, as variabilidades do meio e os interesses colocados em jogo
pelas forças sociais e econômicas em torno da gestão da organização trabalho
como patrimônio coletivo, produzido pela humanidade para a afirmação do que é
vivo e do viver em sociedade.
Minayo e Barros (2002, p. 651), ao lembrar Athayde e colaboradores (2000),
afirmam que:
O vivo é uma força (ou forças), uma potência vigorosa de se afirmar, afirmando a vida. A vida é um pulsar e esse é nosso ponto de orientação para analisar e agir, recusar o que é nocivo e mudar o ambiente de trabalho, perceber a beleza, o brilho, a plasticidade, a nobreza. Mas para garantir a vida, ou melhor, falar de sua força, às vezes, chegamos a arriscá-la, pois viver é também correr riscos, experimentar, algumas vezes aventurar-se no desconhecido.
Pode-se dizer que, na análise do trabalho, pensar outros modos de organização do
trabalho requer pensar o vivo como uma potência produtiva e inventiva de redes de
relações para dar conta da vida que se vive. Por isso é necessário discutir o polo
das gestões como produção de modos de (re)existir/viver.
Sem este pólo das gestões, não se sabe muito bem quem pensa, quem sofre, quem quer mudar, e onde é o lugar dos debates de normas e valores. Na ausência de um tal pólo, ficamos em apuros, pois sustentamos que ‘existe uma história que se faz, ali’, mas não sabemos quem a faz – ou então ela se faz sem nós, o que é uma maneira um pouco mecânica de transformar qualquer coisa que está na gênese humana, e que por conseqüência, se opõe ao puramente mecânico. (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 255).
77
Com esse entendimento, vamos nos utilizar das contribuições ergológicas para
compreendermos como se constituíram, e quais os efeitos dos processos de
atribuição de valor ao trabalho docente na rede de ensino do município da Serra.
3.2.1 A Produção da gestão do trabalho docente na educação pública
Encontramos, com frequência, uma lógica de organização das práticas
educacionais que, imprimida nas ações técnico-pedagógicas da escola, busca
convencer o professor de que ele é um mero executor das receitas pedagógicas
que lhe são colocadas e apresentar o aluno como um cidadão-cliente que a escola
pública tem que atender como um simples consumidor dos serviços educacionais
oferecidos pelo Estado.
Essa lógica de organização do trabalho valoriza uma perspectiva gerencialista27 da
atividade docente na escola pública em detrimento de uma gestão participativa e
democrática. Ela se compromete com uma produtividade e uma eficiência
promovidas por uma visão mercadológica da educação que prima pela adesão de
um maior controle e regulação dos processos de trabalho, para atingir as metas
objetivadas pela instituição Estado. Tais metas terão que ser atingidas com a
menor relação custo e tempo possível, buscando sugar o máximo da inventividade
e da potência criadora do professor na sua tarefa de educar/ensinar.
Na perspectiva gerencialista, o trabalho nas escolas deveria seguir a mesma lógica
organizativa do trabalho dividido, parcelarizado e especializado, objetivando
também o controle e a regulação dos comportamentos e das relações sociais entre
os trabalhadores, dentro e fora da escola, em favor do avanço do modo de
27 Segundo Azevedo (2002, p. 59), “[...] o confronto entre os modelos da administração burocrática e da gerencial mostra-nos que o segundo introduz elementos das teorias e técnicas da gerência empresarial e do culto da excelência nas escolas públicas [...]. Nesse contexto, o gerencialismo, que é uma das marcas das reformas educativas em escala planetária, implica uma nova postura dos gestores que se tornam responsáveis pelo delineamento, pela normalização e pela instrumentalização da conduta da comunidade escolar na busca dos objetivos traçados”.
78
reproduzir as relações sociais e econômicas do modo de vida regulado pelas leis do
mercado.
Segundo Azevedo (2002, p. 59), reportando-se a Maré:
Na educação, a reforma do Estado, entre outros aspectos, traduz-se no entendimento de que é preciso ajustar a gestão dos sistemas de ensino e das escolas ao modelo gerencial, conforme divulgado pelo poder central, em consonância com o discurso das agências externas de cooperação e financiamento. Segundo tal entendimento, esse é o modo de garantir a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos, com base no princípio da eficiência e na busca da relação ótima entre a qualidade e os seus custos.
A lógica política do modelo gerencial é um modelo administrativo e verticalizado que
tenta fazer com que o docente passe a incorporar as normas e os valores sociais,
culturais e político-jurídicos da organização do trabalho proposta pela Secretaria de
Educação às escolas. Isso significa, também, tentar submeter o professor ao
comando hierárquico político-pedagógico da direção escolar, como expressão e
extensão da representação da Secretaria da Educação na escola.
Contudo, como nos indicam Minayo-Gomez e Barros (2002, p. 654):
[...] formas verticalizadas de o trabalho se organizar não inviabilizam os processos criativos dos trabalhadores. Acompanhando Schwartz (2000, p. 435), esses modos de administração do trabalho na escola não significam o sufocamento absoluto dos processos inventivos, uma vez que... toda gestão supõe escolhas, arbitragens, uma hierarquização de atos e de objetivos, portanto, de valores em nome dos quais estas decisões se elaboram. Ora, o trabalho nunca é totalmente – o que quer dizer que em parte ele o é – expectativa do mesmo e repetição. Segundo o autor, a gestão como verdadeiro problema humano está presente onde há variabilidade, história. A gestão advém por toda a parte onde é necessário fazer funcionar sem poder recorrer a procedimentos estereotipados. A dimensão gestionária do trabalho está presente mesmo quando predominam formas verticalizadas de organização do trabalho. Mais uma vez Schwartz (2000, p. 438): “Não há agências ou instâncias especializadas gerando o trabalho num deserto de gestão”, há gestão densa, disseminada, operante e multiforme em todas as organizações industriosas.
A ergologia nos coloca que o vivente, o humano em ação de viver, escapa a
qualquer heterodeterminação que o coloque em posição de submissão absoluta e
de execução mecânica de uma tarefa.
A atividade de viver exige negociações e arbitragens, exige gestão consigo mesmo,
com os outros sujeitos e com o mundo. Assim como exige amor com vida, na
perspectiva da aceitação mútua. Como diz Botechia (2006. p.49), a partir de
79
Maturana, “[..] amor que permite a criação de uma realidade consensual entre
humanos, centrada no prazer da convivência, na aceitação do outro próximo a nós,
e tudo isto depende do nosso conversar”, que nos permite fazer história. Ou seja:
da nossa capacidade de abrir-nos ao diálogo numa perspectiva de potencializar
nosso fazer criativo e inventivo na atividade trabalho para produzirmos outros
modos de viver.
Por isso, nas situações do trabalhar, ninguém é inteiramente normatizado, prescrito,
previsível e duro no processo de produzir suas relações de viver com as outras
pessoas e com as instituições públicas e privadas.
Gestão é a atividade de viver/trabalhar e não de administrar gerencialmente a vida.
Gestão não é pura execução, mas, sim, uso de si (SCHWARTZ, 2007); um uso de
si por si e um uso de si pelos outros. O viver com os outros produz motivação para
gerir a atividade industriosa. O trabalho não se reduz à tarefa administrativa, é viver
a vida no processo de gestão da atividade trabalho como uso. Conforme Schwartz
(2007, p. 196), no gerir a atividade forja-se, o uso:
O uso de si por si, uso de si pelos outros: o uso de si pelos outros, de uma certa maneira, é o fato de que todo universo de atividade, de atividade de trabalho, é um universo em que reinam normas de todos os tipos: quer sejam científicas, técnicas, organizacionais, gestionárias, hierárquicas, quer remetam a relações desiguais, de subordinação, de poder – há muito isso tudo.
Diante desse movimento do real, do uso de si na atividade, podemos dizer que, no
trabalhar, não existe pura execução, mas, sim, uso.
Como diz Schwartz (2000, p. 194),
[...] trabalho é uso de si, isto quer dizer então que ele é o lugar de um problema, de uma tensão problemática, de um espaço de possíveis sempre a negociar: há não execução, mas uso, e isto supõe um espectro contínuo de modalidades.
A visão ergológica procura superar a lógica administrativa gerencialista. Busca
questionar as determinações jurídicas e político-pedagógicas duras indicadas às
escolas, ao professor, ao aluno e aos demais membros da comunidade escolar para
que aconteça a produtividade e eficiência do trabalho docente desejadas pela visão
de mercado, objetivos institucionais de escolarização oferecida pelo Estado.
80
A ergologia busca afirmar uma visão de gestão que se diferencia da ideia de
administração. Como nos coloca Minayo-Gomez e Barros (2002, p. 653):
A idéia de gestão não se confunde com administração. Gestão é uma questão própria dos humanos e está presente onde há variabilidade, imprevisibilidade, enfim, onde é necessário colocar alguma coisa em funcionamento sem recorrer a formas estereotipadas. Assim sendo, ao falarmos de administração, estamos nos referindo a uma certa ordem administrativa implementada pelos governos instituídos, já a idéia de gestão refere-se às formas como os humanos produzem suas atividades no trabalho, que implicam imprevisibilidade e possibilidade de criação. O que estamos tentando afirmar é que uma forma de gestão sempre está presente em germe, quase informulada. As transformações do trabalho vão, apenas, modificar, dilatar essa dimensão gestionária, mas não vão inventá-la. Assim, gerir, trabalhar, desloca-se sobre uma multiplicidade de registros, que inclui a gestão de eventualidades específicas ao ofício, do objeto da atividade, das interfaces, dos tempos, das relações internas às equipes. Essas questões pretendem afirmar a densidade dos espaços onde essas arbitragens operam e recusam a tese de que não há gestão na escola senão a dos especialistas habilitados como tais ou a dos poderes instituídos.
Para muitos administradores da educação pública, o princípio parece ser que o
processo de trabalho nas escolas deve obedecer à receita do modelo de sucesso de
organização top-down. Modelo esse, geralmente, confirmado “cientificamente” como
eficiente e eficaz em outras experiências de gestão gerencialista. Portanto, um
modelo logicamente readaptado por especialistas segundo a realidade
socioinstitucional, os valores e os interesses políticos e econômicos hegemônicos
presentes em um determinado governo, sociedade.
Sobre a visão dos administradores, Fonseca e Barros ([2006], p. 5) dizem que:
[...] é expectativa dos gestores o comando total da cena laboral, na qual os trabalhadores exerceriam meros papéis de representantes de uma vontade que lhes é exterior. A lógica gestionária – arborescente e hierarquizante – busca, embora lhe seja impossível conseguir, uma forma absoluta e totalizante de percorrer todo o processo, instalando-se, ao final, nos agentes, que operariam guiados pelos princípios de uma hierarquia descendente, cujo poder se encontra em ponto central e que se exerce de modo a totalizar sua operação, criando a esperada unificação de todos em um só corpo, guiados por uma única ‘cabeça’. Nesse regime de funcionamento, são insuportáveis conexões ‘infiéis’ com elementos e modos estranhos ao processo, o que se alimenta e regula-se na continuidade incessante de movimentos de lançar-se e relançar-se a si mesmo.
As autoras ainda afirmam que, mesmo os atuais “modelos participativos” do mundo
do trabalho, que, de certa forma, buscam resolver os vazios do taylorismo, fordismo
81
e pós-taylorismo,28 se constituem como modelos técnico-institucionais limitantes
que, na verdade,
[...] não ultrapassam a condição de capturantes e operam tão-somente como dispositivos de um regime de subjetivação que gostariamos de chamar de ‘liberação vigiada’, uma vez que ao trabalhador são oferecidas oportunidades restritas e controladas de opinar e atuar diretamente no processo de trabalho (FONSECA; BARROS, [2006], p. 6).
A visão de trabalho que alimenta esse processo de gerir a atividade trabalho vem
sendo historicamente produzida pelo modo de produção capitalista. Essa visão
concebe o trabalho como realização de tarefa prescrita físico-mecânico-
reprodutivista, em que as forças vivas podem ser controladas, moldadas e dirigidas
por objetivos predeterminados que conduzam a fabricação de um produto pensado
como resultado ideal.
Nesse contexto, pretende-se que o trabalho seja produzido como uma mercadoria,
físico-mecânica, marcada por repetição, sem variabilidade e sem escolhas, sem
transformações e sem inventividade, como caminho de mão única, sem acidentes e
acasos, sem conflitos e interrogações, sem esquinas e multidões que modificam as
direções e os caminhos a serem vividos. Todavia, isso não é possível.
Para a ergologia, o trabalho não é um caminho a ser percorrido até o final do
processo de produção como algo já dado, com tempo já cronometrado e as etapas e
normas estipuladas e o seu custo-benefício e seu valor mínimo de produção
medidos e apreçados antecipadamente no e com o mercado.
O valor do trabalho é uma construção social, é uma negociação do trabalho vivo.
Essa operação remete ao debate de valores e normas para se produzir as políticas
de processo de produção de atribuição de valor ao trabalho. Nesse debate, entram
em cena interesses diversos dos trabalhadores, dos administradores e da sociedade
a serem negociados, de forma que sejam produzidas políticas possíveis à
preservação do trabalho docente como patrimônio e bem comum da sociedade, ao
28 Para Fonseca e Barros ([2006], p 7): “[...] o taylorismo, o fordismo e o pós-fordismo emergem como grelhas de biopoder, como astúcias do poder descendentes sobre os demais poderes, os quais – plurais e difusos – explodem em todas as direções. Trata-se de modelos técnicos científicos que efetuam e atualizam em dadas e particulares condições temporais, permitindo-nos reconhecer, em sua própria carne, tanto as conflitivas entre capital x trabalho que então se fazem presentes, quanto as correspondentes possibilidades para a sua resolução”.
82
mesmo tempo em que se garanta materialmente a sobrevivência do trabalhador e da
sua família.
Duraffourg e Duc (apud SCHWARTZ; DURRIVE, 2007), conversando sobre o ponto
de vista do trabalho e as negociações (os relés coletivos), colocam questões
históricas importantes para melhor pensar o processo de valorização do trabalho
docente.
É um dado histórico, a negociação social não diz respeito ao conteúdo da atividade – e a negociação social designa aquilo em relação a que os atores da empresa são levados a se posicionar. Esta organização diz respeito essencialmente ao contrato de trabalho, isto é: . ao salário, contra-partida financeira da disponibilização da ‘força de trabalho’ (uma expressão um pouco envelhecida, mas que possui o mérito da clareza) na empresa, diríamos hoje a disponibilização de competências; . ao reconhecimento, em geral relacionado ao salário (através do qual a empresa reconhece no trabalhador uma qualificação); . ao tempo, durante o qual a chamada força de trabalho está à disposição da empresa (é o tempo de trabalho); . à tarefa, definida pelo posto de trabalho que será ocupado e pelos objetivos que deverão ser atingidos (p.74).
O trabalho, seja numa fábrica, seja numa empresa de serviços e mesmo numa
escola pública, requer a operação de negociação para se produzir os processos de
valorização da atividade industriosa.
A proposta do capital é se guiar pela obediência a princípios homogêneos que
predeterminam as condições e os meios em que se devem realizar o trabalho.
Nessa direção, em que se colocam os limites máximos (mínimos), processos de
negociação de condições de trabalho, de plano de formação/capacitação, de jornada
de trabalho e salários podem chegar para a atribuição do valor do trabalho, em que,
para o capital, é interessante manter invisíveis e individualizadas a produção de
modos de gestão por parte dos trabalhadores.
Como invisíveis e individualizados os modos de gestão como produção das
interações dos sujeitos nos processos de trabalhos, ou seja, como produção de
subjetividade29 dos viventes para realizar a atividade, não são reconhecidos como
29 Para melhor entender o conceito de subjetividade que empregamos no trabalho, é interessante ler o trabalho de Minayo-Gomez e Barros na revista Psicologia: reflexão e crítica, 2002, p. 649 - 663. Nesse artigo, as autoras apresentam o conceito de subjetividade como produção histórica e política das interações entre os sujeitos na luta, de caráter processual e coletiva, e na qual essas operações se atualizam para gerir a atividade trabalho como processo em que sujeitos e objetos não são opostos e se misturam em favor da produção e afirmação da vida.
83
potencial produção de saber e de conhecimento que produzem políticas, que
podem melhorar o trabalho e a vida nos demais planos.
A visão ergológica concebe o trabalho como produção de objetividade e
subjetividade que compõe um patrimônio organizativo e histórico do valor do
processo de trabalho. As dimensões subjetiva e objetiva do trabalho são aspectos
que se coengendram no processo de materialização do trabalho e do conteúdo do
seu valor como valor de uso e não apenas como valor de troca no mercado.
Na perspectiva do capital, as dimensões patrimoniais da humanidade são tomadas
como bens absolutos da “verdade científica” e, portanto, imutáveis. São
consideradas imutáveis, para não se cometer erros e fracassos advindos da
subjetividade concebida como paixões e valores humanos que devem ser regulados
e controlados para que não interfiram no processo das relações de produção de
bens e, com isso, designar perda de eficiência e eficácia e, portanto, de
produtividade e lucro.
O processo de atribuição de valor ao trabalho não se reduz a uma operação
resultante de planilhas de cálculos, métodos científicos, ordenamentos jurídicos e
interesses político-administrativos que obedecem a uma visão puramente econômica
do trabalho como mercadoria que o Estado se presta a vender.
Por essa via, entende-se que as práticas capitalistas, na gestão da produção das
relações sociais de trabalho, tentam impor uma visão de valorização do trabalho a
partir dos tempos e interesses do mercado/lucro e do consumo, com os fins em si
mesmos.
A proposta ergológica se coloca na tentativa de favorecer o debate de normas e
valores de diferentes matrizes, buscando dar visibilidade à produção de saberes e
modos de existir ainda difusos e emergentes de produções singulares e coletivas de
estratégias de (re)existência no ambiente do trabalho. Essas produções podem se
configurar em políticas de suporte à valorização do processo de trabalho e como
afirmação da produção da vida como bem comum, e isso como uma composição, na
ordem do possível de ser vivido, no campo de disputa das forças sociais,
coengendrando as temporalidades mercadológica, ergológica (da gestão da
84
atividade) e política (o bem comum/do direito) que marcam qualquer atividade
trabalho. Assim, pode-se dizer que:
- A temporalidade do mercado diz respeito aos valores quantificáveis, por meio do
qual o valor atribuído ao trabalho se dá principalmente pela relação entre cálculos
contábeis, tempo-custo da atividade e metas econômicas de produtividade.
[...] ao longo do tempo o mercado requer os balizamentos temporais para suas sanções, suas arbitragens, sua lógica contábil. No entanto, esta temporalidade encobre em sua origem a história dos recursos agregados a elementos heterogêneos: não se pensa mais nos conteúdos – nos tipos de produtos ou matéria-prima, sejam bens ou serviços – e sim nas quantidades, no aumento ou diminuição de valores (ALVAREZ, 2004, p. 128).
A temporalidade do mercado não é desprezada pela perspectiva ergológica, isso, na
justa condição em que ela participa da dinâmica de construção da política de
negociação do processo de atribuição do valor de trabalho como resultado da
produção humana inserida no modo de produção capitalista.
Não se pode, em absoluto, minimizar o impacto deste pólo mercantil em nosso quotidiano, bem como nos campos sociais que normalmente não teriam forçosamente a ver com tudo o que se insere no contexto de trocas mercantis (SCHWARTZ, 2007, p. 249).
- A temporalidade ergológica diz respeito à gestão da atividade, ao uso de si no
trabalho e com o trabalho; trata do patrimônio criado e do debate de valores
(quantificáveis e não quantificáveis) que se coengendram no e com o real da
atividade.
A temporalidade ergológica é esta também dos corpos, da história, esta da pessoa, de suas relações familiares, sociais, esta da espécie onde as aquisições imemoriais se acomodam. O espaço do uso de si é o lugar de problemas, de negociação, dos possíveis. O trabalho não é só execução, é uso, o que supõe um espectro contínuo de modalidades problemáticas (ALVAREZ, 2004, p.131).
- A temporalidade do bem comum diz respeito ao político e ao direito. Nele se dá a
produção das relações institucionais entre as forças que estão atuando no campo do
jogo político, buscando fazer valer os interesses de cada grupo que tenta se impor
junto às instituições sociais para melhor organizar a produção de relações sociais.
[...] o lugar do exercício democrático, onde determinados valores que fazem parte do desejo das populações são ‘dimensionados’, ou seja, são dotados de instituições, de recursos, de normas para que possam atender aos anseios das pessoas que vivem em sociedade. É certo que valores deste tipo são objeto de debates, de conflitos, de arbitragens políticas. O
85
que se definiu anteriormente como ‘valores sem dimensão’ toca valores importantes para as pessoas como a saúde, e também os direitos sociais, o acesso ao saber e aos bens culturais, etc. Para cada um deles cada pessoa, cada grupamento social, cada partido político, cada linha de governo apresentará suas proposições que serão sempre objeto de debate, pois se por um lado, eles transcendem como idéias reguladoras nas conjunturas onde vão operar, por outro eles devem funcionar em princípios de ação. Em relação a sua temporalidade eles não deveriam ser dependentes da temporalidade do mercado [...]. (ALVAREZ, 2004, p.131-132).
A temporalidade do bem comum (polo do político) é o polo das apostas dos modos
de gestão. É um tempo/espaço em que os valores, em princípio, não se mensuram
em parâmetros quantificáveis. Nessa temporalidade, articulam-se o debate de como
se produz o público. Tal temporalidade diz respeito ao bem viver em um ambiente
cotidiano.
Trata-se de toda uma série de elementos, de valores referentes ao bem-viver em comum que não concernem (não em um primeiro momento) ao pólo dos valores quantitativos, ao mercantil – e dos quais se espera ou reivindica que sejam assumidos por instituições como as de cunho político: os Estados e as entidades democráticas encarregadas de fazer viver na história um tal conjunto de valores (SCHWARTZ, 2007, p. 250).
No âmbito das temporalidades é que são circunscritos processos de tensão e
negociações entre os valores dos trabalhadores e da sua entidade representativa, os
valores do “patrão” – o Estado – e os valores da sociedade, num processo de
coengendramento desses valores e das normas das instituições. Para Schwartz
(1996, p. 149), a questão do trabalho e valor é um debate inconcluso, aberto, na
medida em que as temporalidades circunscritas, os lugares privilegiados, os quadros
jurídicos do trabalho [...] tornaram-se instáveis e complicam muito aquilo que se
pode considerar o nosso conceito de ‘trabalho’ “.
Segundo Schwartz (2006, p. 462), essa situação representa uma dinâmica
contraditória de valores que abarcam os processos de trabalho. Na atualidade,
[...] as organizações do nosso mundo assumem inteiramente os valores de mercado, funcionam com autoritarismo, com uma idéia de hierarquia e de imposição de normas um pouco coerentes com a idéia de normatizar previamente o máximo possível, o que é coerente com o poder, com os poderes. O fato de deixar de (re)pensar e (re)trabalhar as formas de organização do trabalho leva à idéia de que temos que normatizar ao máximo.
Na perspectiva de debater as possibilidades de se retrabalhar e repensar a atividade
trabalho docente com um olhar ergológico sobre o processo da sua valorização, é
que se coloca em discussão o conceito de trabalho como atividade industriosa.
86
Concordando com Schwartz (2006), o trabalho, como atividade industriosa, produz-
se como um debate de normas que atravessa o meio de trabalho, mas que se situa
dentro do meio de trabalho. Por meio dessas normas, podemos encontrar as
dimensões econômicas da gestão, da renda, do salário e de normas jurídicas.
A partir dessa referência, pode-se ultrapassar o debate em que o processo de
atribuição de valor do trabalho se encerra na discussão do trabalho assalariado,
medido e quantificado pelos métodos e interesses impostos pelo poder capital.
Na articulação com a referência marxista, acreditamos ser possível superar o
pensamento que reforça o valor do trabalho como trabalho abstrato e como trabalho
assalariado pela dinâmica do capital. Superar também as formas que desconectam
o trabalho como trabalho concreto cuja potência de (re)existir traduz-se em uma
atividade industriosa de busca incessante, inventiva e criadora do humano para
atingir um fim determinado e também, nela, produzir modos de afirmar a vida.
Nessa direção da potência de (re)existir, acreditamos que o humano coloca em ação
suas forças subjetivas e materiais, visíveis e invisíveis, na luta para gerir e afirmar a
vida no ambiente de trabalho e, assim, contribuir para a produção de políticas para a
valorização do trabalho docente em composição e ampliação com todas as suas
dimensões técnicas e históricas.
Para a ergologia, o trabalho, como patrimônio coletivo da humanidade caracteriza-se
pela potencialização da vida e, nesse sentido, constitui-se como prática social de
produção de saberes/fazeres cheia de possibilidades de transformação das
realidades viventes e, assim, das relações sociais do modo de produção em que é
constituído afirmando a valorização de outros modos de existir/trabalhar.
O trabalho, como modo de existir do vivente humano de forma coletiva e singular
pode ser entendido como também produtor ou matriz do “laço social” que pode ser a
relação de poder descendente – autoridade hierárquica e prescrição abrigada pela
subordinação jurídica (SCHWARTZ, 1996) – ou pode se irromper contra as verdades
estabelecidas, contra as formas de controle, problematizar as relações de poder e as
formas duras e verticalizadas de existência, produzindo e dando visibilidades a
outros valores e normas gestados no chão da escola.
87
Nessa direção ergológica, o trabalho, como criador de normas e valores, não pode
ser entendido como uma realidade mecânica e simples, mas, sim, como uma
realidade viva, complexa, cheia de variabilidades e incompletudes, em que o jogo de
forças coloca em debate o real e o prescrito, as circulações e as barreiras das
“dramáticas do uso de si”30 para sentenciar ou levantar pistas de como atribuir valor
à gestão do trabalho.
Atribuir valor ao trabalho não é algo simples, considerando as três temporalidades
em jogo, em que a operação é reduzida a uma troca de tempo laboral por salário e,
como tal, mercadoria ou emprego por dinheiro simplesmente. Pensar o processo de
valorização do trabalho significa pensar o processo de produção das relações de
trabalho como algo complexo. Nesse sentido, o valor do trabalho deve tentar
articular as “circulações” e as “barreiras” entre a forma do trabalho como mercadoria
e os outros momentos da vida humana (SCHWARTZ, 1996) e isso nos remete ao
debate de valores para além do valor mercantil do trabalho, ou seja, para o valor do
trabalho como produção e valorização da afirmação da vida como bem comum, mas
articulada com ela.
Segundo Schwartz (1996, p. 153),
Os valores que não são de mercado, e, entre eles, o ‘bem comum’, são presentes, operantes, eficazes, mesmo que pouco aparentes, nas atividades reguladas pelo dinheiro e alocações de recursos. O trabalho como realidade ‘complicada’, as ‘circulações’ refazem aqui sua superfície e impedem o trabalho como mercadoria de ser absorvido por esta única lógica de mercado.
Na condição de manter a vida humana, acontecem reprodução e produção de
valores ao se gerir na imprevisibilidade, na infidelidade, na variabilidade, a
inventividade do trabalho e a sua organização, fugindo, mesmo que de forma ínfima,
à simples execução de técnicas, normas e prescrição.
Trabalhar é uma atividade singular (não individualizada) de produção de saberes e
experiências históricas. É processo de tomada de decisões, escolhas em ato, que
requer um fazer e refazer das relações sociais de trabalho e da organização dos
30 O trabalhar supõe escolhas, arbitragens, ponderações, critérios, ou seja, engajamento. “Esta situação é, pois, mesmo se o mais freqüentemente na penumbra, imersão num universo de valores: ora, não mais do que a propósito do corpo-si, não se pode compartimentar este universo em ‘valores do trabalho’ e ‘outros valores’ [...]. Os valores circulam e se retrabalham entre o polo ‘trabalho-emprego’ e os outros encontros com a vida social e cultural” (SCHWARTZ, 1996, p.152).
88
modos de produção da sua existência. Esse processo institui a produção de normas
e valores construídos coletivamente no e com o meio de trabalho como referências
para a produção de políticas públicas de relação de trabalho em direção à
construção de outras e novas ordens institucionais.
A atividade leva ao debate da questão da implicação e produção de valores e de
normas, na medida em que o trabalho remete sempre a uma “espécie de destino a
viver” (SCHWARTZ, 2003). No curso da atividade, é necessário fazer “escolhas” em
função de valores carregados de história e atravessados por uma processualidade
própria do trabalhar para se suprir vazios de normas, regras, prescrições e
protocolos administrativos para que a tarefa seja realizada.
A abordagem ergológica nos remete à idéia de que, para compreender algo da nossa história e para agir na história, é preciso se colocar nesse plano, quer dizer que há um retrabalho permanente dos valores a viver – e nós somos todos iguais diante desse trabalho (SCHWARTZ, 2000, p.17).
Para Schwartz (2005), toda atividade de trabalho é um debate de normas,
antecedentes, pulsadas por valores dimensionados e valores sem dimensão,31 que
são valores, respectivamente, quantificáveis e não quantificáveis, que estão no
mesmo plano horizontal de gerir as relações de produção do trabalho em nível micro
e macropolítico dialeticamente.
A perspectiva ergológica sustenta “[...] colar permanentemente o local e o geral, a
partir do momento em que ela aponta o fato de que toda atividade de trabalho
encontra escolhas, debates de normas e logo encontro de valores” (SCHWARTZ;
DURRIVE, 2007, p. 33).
O debate das normas antecedentes requer o ato de gerir o trabalho no chão da
escola como uma referência histórica de orientação e potencialização do trabalhador
para tomada de decisão no campo do político, ali mesmo, no processo de
negociação de valorização do trabalho docente, seja essa negociação entre os
próprios trabalhadores, seja com o grupo gestor das políticas de governo.
31 Para Schwartz (2007), valores dimensionados dizem respeito aos valores de mercado, quantitativos que funcionam no “geral” e ignoram as relações que se efetivam localmente nos ambientes de trabalho. Dos valores sem dimensão, fala-se de valores de um bem comum – solidariedade, justiça, probidade – do outro e nosso em relação singular e histórica com o trabalho, que se dirigem a cada um de forma diferente e em produção micropolítica.
89
Esse processo de valorização do trabalho tem que ser entendido como momento de
produção da política de normas e valores que implicam luta de (re)existir em sua
atividade de viver. Deve ser compreendido como um dos aspectos que compõem as
dimensões da atividade do trabalho, em especial, do trabalho docente.
O debate do estatuto profissional também diz respeito a esta luta de (re)existir
coletivamente no ambiente de trabalho, na medida em que a produção de normas
legislativas e pedagógicas possa contribuir para a melhora das condições materiais
e subjetivas da docência no chão da escola. O debate do estatuto profissional deve
ser entendido como obra coletiva de resistência ativa dos trabalhadores, e não
apenas como uma ação reativa aos valores e normas institucionalizados, marcados
pela força do poder político do capital/mercadoria/dinheiro sobre os interesses dos
trabalhadores.
Por isso, sobre o papel positivo do campo político, Schwartz (2007, p. 33) afirma:
Viver junto, ao nível político, significa que se pode acreditar na possibilidade de gerir junto alguma coisa como os bens comuns e o Bem comum. Se nas situações de trabalho concretas tem-se a impressão de que finalmente não se pode acreditar nisso, que existem divisões permanentes, que essas divisões são ampliadas, por exemplo, que se divide as pessoas para melhor dirigir os conjuntos, que finalmente não se leva em conta realmente os fenômenos da solidariedade, como se pode pensar que a política, no sentido do eleitor, do cidadão, tenha sentido? Se no trabalho isso não tem sentido, nós nos desinteressamos do campo que é oficialmente político, quer dizer, o campo do voto e da atividade política. Esse fenômeno ocorre nos dois sentidos. Se sentimos que o campo do político, por intermédio da argumentação – a preocupação com a segurança, os direitos do trabalho etc. – leva em conta a importância daquilo que entra em jogo no trabalho, neste momento, isto tem efeitos positivos no trabalho cotidiano.
A perspectiva ergológica entende o trabalho como atividade e um processo de
modos de produção de relações provocativas do debate de valores e normas sobre
o que se vive e se estar por viver. Nesse sentido, o estar em trabalho é também
estar se propondo ao encontro do debate dos estatutos sociais, administrativos e
jurídicos que ordenam e circulam esse trabalho.
Toda atividade de trabalho é sempre “encontro de encontros” (SCHWARTZ 2007),
esperados e inesperados. Encontros que reúnem as histórias dos dispositivos
técnicos, das regras prontas, a história de vida dos sujeitos que a produz, um modo
particular de uso, pessoal e coletivo, que remete à combinação de sujeitos
90
singulares, mas com histórias coletivas que se coengendraram em busca da
afirmação de modos para se viver melhor no mundo.
A atividade sempre se dá a partir da relação dialética de diálogo do prescrito e com
o real vivido. E um diálogo político que nem sempre é harmonioso, muito pelo
contrário, é de confronto de saberes e de interesses, entre o instituído e o instituinte.
Nessa dimensão dialética, mas sem a demarcação de polaridades duras, a atividade
humana, em geral e, especificamente, a atividade de trabalho docente convocam e
reconvocam sempre à produção coletiva de normas éticas e organizativas,
remetendo-nos a um nível de arbitragens, de escolhas que são tomadas no curso da
ação para que os objetivos e a tarefa sejam realizados diante das variabilidades
cotidianas do meio (SCHWARTZ, 2007), produzindo atualizações necessárias das
experiências técnicas e políticas do processo de trabalho.
A (re)criação de outras técnicas e políticas de organização do trabalho afirmando
uma outra racionalidade, que valorize as nossas experiências, saberes e fazeres, as
dos outros e do mundo, só se potencializa se formos capazes de forjar conceitos e
práticas que possam construir modos de funcionamento mais múltiplos,
democráticos e solidários no cotidiano escolar, no viver/existir.
É importante que se evidencie a inventividade/criação cotidiana do trabalho docente
como atividade especial de produção de saberes, de novas normas, utilização de
estratégias sem as quais a atividade de trabalho não se realizaria. Para que a
atividade aconteça nesse espaçotempo complexo, é necessário que o trabalhador,
individual e coletivamente, faça escolhas, faça negociações e construa estratégias
para superar as formas de organização que tentam reduzir a sua potência de
trabalhar, produzir saberes e valores de bens comuns e dar visibilidade a outras
formas de organizar e valorizar a vida.
Os processos políticos de valorização das instituições, muitas vezes, dificultam a
socialização de saberes e valores com vista à construção de estratégias coletivas
para a transformação das realidades em que estamos inseridos e lutando para
transformar.
No meio escolar, como força potente na construção de outras práticas e ordens
sociais, disputam-se políticas que buscam afirmar este ou aquele tipo de
91
organização das relações sociais de produção, segundo o jogo do campo das forças
políticas em concorrência; configurando jogo de poder que vai evidenciar mais este
ou aquele tipo de valorização econômica e social do trabalho docente e colocando
em questão o seu valor de uso, material e imaterial, em toda sua diferença e
pluralidade para a sociedade civil e política.
A gestão do trabalho, do ponto de vista do campo político, coloca em jogo as normas
e os valores que circulam com o trabalho docente no sentido de uma análise crítica
e ampliada das relações dos modos de produção do trabalho.
Schwartz (2007, p. 32) argumenta:
Há realmente um problema de valores, de escolha de valores, confrontando diretamente às políticas, às políticas econômicas, às políticas em matéria de serviço público, às políticas em matéria de emprego. Por trás disso, estão todos os fenômenos atuais. O que é que eu penso das políticas de emprego, sejam elas públicas ou privadas, dos critérios que fazem com que se demita ou não? E além disso, justamente, estão os fenômenos em nome dos quais se operam as estratégias das empresas que demitem, que não demitem – e eu encontro os grandes fenômenos do momento, incluindo aí a globalização dos espaços.
Na busca de transformar e compreender as relações de produção do trabalho
docente, é importante inventar e apostar no diálogo dos polos do mercado, do
ergológico e do político (o bem comum). Por isso
[...] é preciso criar lugares em que esses debates emerjam, para que em seguida se possa conduzir políticas acerca de bens comuns que estejam no nível microscópico, em relação dialética com o nível mais político, o mais macroscópico - isso acontecendo nos dois sentidos (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 36).
Para tanto, faz-se necessário conceber que gestão
[...] significa que sempre existe confrontação das pessoas que trabalham com situações históricas, com dimensões singulares que ainda não foram vividas por ninguém e que precisam ser tratadas. E nesta história, existe, como pano de fundo, todas as configurações inquietantes do nosso presente [...]. O filósofo francês G. Canguilhem dizia: todos os viventes estão num meio que sempre é ‘infiel’ (variável). Mas nós mesmos somos num certo sentido sempre ‘infiéis’ pois somos sempre diferentes dos outros, diferentes das representações ou categorias onde tentam nos encaixar para antecipar nossos comportamentos, infiéis a nós mesmos, porque mudamos (SCHWARTZ, 2005, p. 3).
Bonaldi (2004, p. 53), ao discutir a perspectiva do real e do prescrito da atividade
como unidades constitutivas da ação industriosa, coloca que:
92
Na diferença entre o trabalho real e trabalho prescrito, é que os trabalhadores, em contínua e intensa atividade mental, são capazes de estabelecer relações de solidariedade e cumplicidade, conseguem contrair as normas prescritas, subvertendo a ordem estabelecida.
O trabalhar é espaçotempo de inventividade no qual se processa a criação de “laços
sociais” e valores do bem comum que podem ajudar na reorganização dos
processos de produção de políticas públicas de valorização do trabalho. Também,
trabalhar é espaçotempo de gestão da autonomia ativa (que pode ser até relativa),
em que as singularidades e as pluralidades se confrontam e se coengendram no uso
si por si e pelos outros na e com a produção de saberes e de composições políticas
com vistas a superar a variabilidade e os desafios do ambiente de trabalho.
A escola, como lugar de produção da docência, em toda a sua diversidade e
diferenças prático-organizativas, constitui-se cheia de possíveis outras e novas
formas de existir/trabalhar e, por isso, produz situações em que as experiências são
convocadas e reconvocadas em ato a praticar a valorização do trabalho docente.
Com isso, também leva o professor a lutar para mostrar a vitalidade
inventiva/criadora da docência concorrendo às prescrições, as formas de controle e
as relações de poder instituídas pelos administradores para gerir o trabalho escolar
na rede pública de ensino.
A vitalidade do trabalho docente reside no fato de ser uma atividade industriosa que
se produz dialeticamente por um processo combinado de mediação (associação
individual e coletiva); contradição (fazer escolhas é matriz da história humana); e
transgressão (confronto das fronteiras entre o biológico e o cultural) no cotidiano da
escola.
A escola é lugar de variabilidades próprias do cotidiano, na qual a regulação por
determinações legais e estatutos jurídicos, prescrições político-pedagógicas, que
geram muitas vezes sofrimento, não conseguem dar conta de prever e nem medir a
eficiência e a eficácia do trabalho docente, na medida em que ele é uma atividade-
mercadoria. Como atividade-mercadoria, a produção e o “consumo” da relação
ensino-aprendizagem acontecem ao mesmo tempo e, por isso, a dificuldade de se
“medir” o quanto vale o trabalho docente a partir de uma visão somente econômica e
estabelecida por técnicas avaliativas e administrativas.
93
Também é difícil atribuir valor ao trabalho docente, medindo-o a partir de estatísticas
de rendimentos verificados em índices de aprovação/reprovação, exames nacionais,
estatísticas educacionais, cálculos econômicos e outras formas para se medir a
qualidade do ensino e o valor da atividade docente. Tais “técnicas de avaliação” se
colocam como insuficientes e, em certa medida, reduzidas e ineficazes à valorização
do trabalho escolar como atividade que busca afirmar a vida como bem comum para
a sociedade.
Como diz Marchiori (2004, p. 84),
[...] na escola, o trabalho dos professores também mostra vitalidade, na medida que, sempre há uma busca de saídas frente às dificuldades cotidianas de falta de material, falta de apoio administrativo, falta de salário [...] nas tantas faltas, ainda tiram de dentro de si as energias necessárias para garantir o ensino. É esse investimento que expande a vida no trabalho das escolas e nos mostram os sinais/movimentos de saúde e de produção de sentido na atividade que realizam
Vale ressaltar que esses sinais/movimentos inventados no chão da escola nem
sempre são reconhecidos e considerados quando se busca produzir e instituir os
mecanismos políticos e pedagógicos de valorização institucional do trabalho escolar.
Nesse sentido, ampliar as circulações de estratégias de interrogar as práticas dos
poderes administrativos, jurídicos e econômicos impostas pelo mercado é uma
tarefa importante.
Assim, potencializar a produção de redes de favorecimento de outras formas de
organizar e atribuir valor ao trabalho docente, compondo com os saberes dos
próprios professores, é uma tarefa política que precisa ser fortalecida como
processo de mediação, negociação, enfrentamento e transgressão das ordens
estabelecidas. Dar visibilidade ao trabalho em curso nas escolas, que não é
percebido como tal, é tarefa fundamental, quando o debate é a valorização do
trabalho docente? Que valor? Que ação?
Essa tarefa política é uma atividade que é produzida no embate do jogo de forças
sociais em relação institucional de negociação, em que o Estado e os trabalhadores
em educação disputam os rumos de como produzir as políticas de valorização do
trabalho para além da questão salarial, sem desmerecer a sua importância material.
A questão salarial é um dos componentes para a afirmação do trabalho como
94
atividade industriosa que persegue a afirmação da vida como bem comum
fundamental para a sociedade e não apenas para o capital, o que é inevitável.
Faz-se necessário transformar esses sinais e movimentos produzidos na luta para
se dar visibilidade ao valor de uso do trabalho docente em patrimônios. Tais
patrimônios estão colocados para serem renormalizados, revalorizados e
reinterrogados, na medida em que são produções históricas construídas com a
participação efetiva dos próprios trabalhadores. Estão em meio ao ambiente de
trabalho, circulando como normas e valores, considerando suas contradições,
limitações e potencialidades colocadas à prova no ato de trabalhar.
Na direção de dar visibilidade às estratégias produzidas no sentido de atribuir valor
de uso e valor de troca que sejam potencializadores da atividade docente, pode-se
dizer que se está também produzindo normas e, com isso, produzindo alterações e
mudanças na organização política dessa atividade industriosa. Assim, é possível
contribuir para que os trabalhadores se repensem no contexto em que vivem,
afirmando o trabalhar como processador da história humana (SCHWARTZ, 2002).
A atividade de trabalho, nessa perspectiva, aparece como campo de debates em
que se confrontam as condições preexistentes da história dos humanos com o
trabalho e as “dramáticas do uso de si”, em que cada sujeito ou coletivo deve fazer
escolhas e produzir “[...] história de modo dialético e em todos os níveis entre o
microscópico e o macroscópico” (SCHWARTZ, 2002, p. 126).
A conceituação do trabalho como atividade, neste caso a docência, indica que, entre
as normas antecipadas e recentradas e a gestão de uma dramática do uso de si
singular no cotidiano da atividade de trabalho, registra-se uma dialética da dimensão
histórica de toda prática das situações humanas (SCHWARTZ, 2004). Segundo o
autor,
A generalidade dessa dialética, inclusive nas organizações taylorista, autoriza a caracterizar todo trabalho como lugar de uma dramática singular, em que cada protagonista negociaria a articulação dos usos de si por ‘outros’ e ‘por si’. A mesma generalidade dessa dialética leva igualmente a pesquisas, em todo caso, sobre a recomposição coletiva das tarefas e das obras, jamais estritamente representável nos organogramas preexistentes (SCHWARTZ, 2004, p. 41).
Além dos organogramas, fazem-se valer os atributos dos estatutos da profissão e
outros valores dimensionados e sem dimensão do plano cultural, moral e ético
95
comprimidos pelo plano econômico dos interesses do modo de produção capitalista.
Tais valores atravessam a organização do trabalho nas escolas públicas, guardando
e produzindo valores com, no, pelo e do trabalho docente, que têm peso no
processo de valorização do professor(a), considerando as dimensões das
temporalidades mercantil e do “bem comum” e, entre essas, a ergológica.
Quanto mais se diversificam as situações de vida e de trabalho sob o efeito do movimento do capital, das transformações nas maneiras de produzir, da crise, mais o político deve permanecer idêntico a si mesmo, como garantia de uma cidadania abstrata, expressão de definição do geral, gestão do interesse comum, e ao mesmo tempo mais deve também tornar-se experiência, aprendizagem, e agente de circulações de valores entre o micro e macro, local e global (SCHWARTZ, 1996, p.156).
Ao considerarmos o olhar ergológico sobre o processo de valorização do trabalho
docente, vale pensar o debate dessa valorização numa dimensão ampliada e mais
transversal, ou seja, para além do poder dos valores quantificados que acabam
resultando em uma discussão de teor monetário, em que valorização significa
recompensa salarial e não diz o que foi o processo histórico da atividade industriosa.
Essa direção não valoriza os modos de gestão que abrem os caminhos de
potencializar o campo das possibilidades, das escolhas e da produção da autonomia
na atividade.
Faz-se necessário, com isso, também, apreender a dimensão do debate dos valores
não dimensionados, que passam pela autonomia no trabalho, pelo reconhecimento
profissional, pela qualidade de vida social, pela solidariedade, pelo diálogo e por
outros valores que podem contribuir para diminuir a distância entre a nossa ação
geral e local na produção de políticas públicas.
Dentre os valores não dimensionados, o debate da autonomia é caro para a
docência. O sentido da autonomia que interessa ao trabalho docente é aquele em
que a sua construção potencializa o sujeito da atividade.
A autonomia não tem sido considerada como valor de gestão, valor produzido na
relação de trabalho, em que o professor com seus colegas e os alunos produzem
outras formas de organizar o trabalho docente e o dia a dia da escola.
A autonomia deve ser entendida como um valor que se constrói no meio, no
confronto de saberes e fazeres em atividade. A autonomia é uma produção coletiva
96
que se constitui como processo de tomada de decisão, de fazer escolhas em
atividade e, para tanto, não despreza as normas antecedentes e nem o
conhecimento já produzido no campo do trabalho; lança mão desse patrimônio.
Esse debate dos valores não dimensionados, ao acontecer no âmbito da atividade
trabalho docente, impõe uma direção ético-política de afirmação da vida como o
maior bem comum que se deseja construir e preservar como patrimônio da
humanidade. Na afirmação da vida como bem comum, a autonomia é também uma
produção coletiva e singular, que pode e deve acontecer também no chão da escola,
para ampliarmos nossos modos de existir/trabalhar coletivamente, num plano de
relações sociais mais democráticas e transversalizadas.
97
4 TRAÇOS DA HISTÓRIA: AFIRMAÇÃO DO VALOR DA ESCOLA PÚBLICA NO BRASIL E NO CONTEXTO SERRANO
Este capítulo foi produzido com o objetivo de pinçar da história da educação eventos
que marcaram e marcam a construção dos caminhos da luta pela educação que
firmaram a institucionalização da escola pública e do trabalho docente no Brasil.
Caminhos vistos como resultado das relações de confronto e negociações entre os
interesses do Estado, das classes dominantes, no desenvolvimento econômico, do
polo mercantil, e os interesses das classes populares na melhoria das suas
condições de vida material e social e do polo político (do bem comum). E, como
segundo movimento, contextualizar a política educacional da Serra como parte
dessa rede no contexto nacional das políticas educacionais. Acreditamos que esse
passeio na história pode nos ajudar na análise dos processos de atribuição de valor
ao trabalho docente.
Nesse processo, encontramos modos de atribuição de valores ao trabalho docente,
na medida em que ele foi se institucionalizando e adquirindo valores de uso e de
troca. Valores esses sem dimensão e dimensionados, marcados por interesses dos
grupos sociais no jogo das forças políticas que buscam dar direção hegemônica à
produção dos modos de gestão das relações sociais do trabalho e da vida, em suas
outras dimensões.
Antes de tudo: a educação e a política brasileira sempre estiveram fortemente
marcadas pelos interesses da Igreja, das classes dominantes (oligarquias,
burguesia) e militares. Os interesses das classes populares rurais e urbanas entram
em cena com mais força a partir da Revolução de 30, período da crise cafeeira
impulsionado pelo crack de 1929 da bolsa de valores americana e avanço dos ideais
anarquistas e comunistas da Europa e do Leste Europeu.
O Brasil se torna República em 1889, com o objetivo de construir um Estado-Nação
capaz de assegurar os caminhos de promoção de um novo modelo político e
econômico (ainda agrário e dependente) e a continuidade do movimento de
modernização da vida brasileira.
98
Promulgada a Constituição Republicana em 1891, as reformas educacionais passam
a atender à construção do novo modelo republicano, de uma nova forma escola e de
um novo trabalhador docente. Dentre as reformas republicanas, citamos a famosa
“Reforma Benjamin Constant”, que
[...] tinha como princípios orientadores a liberdade e laicidade do ensino, como também a gratuidade da escola primária. [...]. A escola primária ficava organizada em duas categorias, isto é, de 1º grau para crianças de 7 a 13 anos e de 2º grau para crianças de 13 a 15 anos (RIBEIRO, 2003, p. 73).
Essa medida republicana, ainda restrita a uma parcela pequena e privilegiada da
sociedade, registra traços de atribuição de valores para a escola pública a partir dos
interesses de parcela da sociedade brasileira, no sentido da ampliação do direito à
escolarização para as camadas populares. Por outro lado, podemos registrar,
também, movimentos no sentido da afirmação do trabalho docente como
necessidade e valor social comum à organização da sociedade e ao exercício da
cidadania do povo brasileiro.
No Brasil, já se encontra uma respeitável população de imigrantes europeus,
principalmente italianos e japoneses e também uma população negra abolida da
escravidão e dos direitos sociais republicanos (largada à sua própria sorte), que
começam a reclamar por políticas públicas (sociais) fundamentais, já conquistadas
em sociedades capitalistas centrais.
A partir da Revolução de 30, combinada com a Era Vargas e a crise do modelo
agrário e dependente, deu-se início à valorização do modelo nacional-
desenvolvimentista baseado na política de industrialização americana.
Na valorização desse modelo de desenvolvimento, a escola pública avança ainda
mais como uma das ferramentas políticas para construir os caminhos de afirmação
do Brasil como nação e como partícipe no cenário internacional da economia.
O período do Estado Novo (1937 – 1945), comandado por Vargas, marca a escola
pública e os professores ainda como uma necessidade social e política como
afirmação de um projeto estratégico que precisa se expandir em frente ao objetivo
de realizar a integração política, cultural, territorial e econômica do País.
Considerando o projeto de expansão e o caráter contraditório da política
99
populista/facista no período Vargas, pode-se dizer que a viabilização desse projeto
impôs ao Estado atender às reivindicações dos movimentos da sociedade civil que
lutavam por mais direitos políticos e sociais.
Para Romanelli (2003), o Brasil sofreu uma pressão social muito forte em termos da
oferta de educação e
[...] a partir de 1930, a expansão do ensino acabou por acentuar a defasagem entre educação e desenvolvimento, por causa do ritmo e da caracterização da expansão da demanda e, ainda, por causa de fatores de ordem política e econômica (ROMANELLI, 2003, p. 29).
Essa situação exigiu, à época, medidas de ampliação de centros formadores de
professores e medidas que pudessem melhor organizar e valorizar o trabalho desse
profissional liberal com vistas a dar conta da demanda social e econômica colocada
para o País (RIBEIRO, 2003).
Vale ressaltar que, no Brasil, nesse período, emergiu o movimento escolanovista
que, juntamente com a chamada Revolução de 30, influenciou o pensamento de
muitos educadores e a política do Governo Vargas na proposta de universalizar,
democratizar oacesso à escola pública e valorizar o trabalho da docência como um
bem público fundamental ao desenvolvimento nacional. Nesse período, os direitos
do trabalhador passam a ser garantidos pela prescrição da Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT) que deveriam ser asseguradas pelo Estado na relação capital e
trabalho.
Segundo Hypolito (1997, p. 83):
Pelo menos desde a década de 1930, em termos de organização e administração escolar, já havia alguma movimentação no sentido de implementar uma nova compreensão da escola. O escolanovismo cumpriu um papel importante nessa direção, na medida em que defendia uma perspectiva mais científica para o trabalho pedagógico e escolar. Consoante com o desenvolvimento do capitalismo que emergia no Brasil, naquele primeiro quarto de século, o escolanovismo apregoava uma organização escolar que incorporasse os avanços das ciências psicopedagógicas e sociais. Isso se evidenciava no incentivo ao ingresso de especialistas para o desempenho de diferentes funções na escola (inspeção, supervisão, orientação e administração) e à introdução da administração científica na organização do trabalho escolar em moldes taylorista.
Nesses tempos de desenvolvimento do Estado brasileiro, presenciou-se um
movimento institucional de implementação de uma nova lógica político-
100
administrativa. Ao mesmo tempo, reuniram-se movimentos partidários e sociais na
luta por ampliação de direitos como: educação, saúde, liberdade política e melhores
condições de vida e salários. Diante do avanço popular, o Governo Federal teve que
ceder direitos políticos e sociais para assegurar, principalmente, a construção do
novo modelo de desenvolvimento nacional baseado na industrialização norte-
americana. Modelo de desenvolvimento que necessitava requisitar o trabalho
docente e a escola como ferramentas para a sua consolidação.
O texto do “Manifesto de 32”, apresentado por Fernando de Azevedo e apontado no
trabalho de Ribeiro (2003, p. 108-109), divulga princípios gerais dos quais elegemos,
a título de exemplo, os seguintes:
I - Estabelecimento de um sistema completo [...] conforme as necessidades brasileiras, as novas diretrizes econômicas e sociais da civilização atual [...]: a) A educação é considerada em todos os seus graus como uma função social e um serviço essencialmente político que o Estado é chamado a realizar com a cooperação de todas as instituições sociais; [...] c) O sistema escolar deve ser estabelecido nas bases de uma educação integral; em comum para os alunos de um e outro sexo e de acordo com suas aptidões naturais; única para todos, e leiga, sendo a educação primária (7 a 12 anos) gratuita e obrigatória; o ensino deve tender progressivamente à obrigatiriedade até 18 anos e à gratuidade em todos os graus. II - Organização da Escola secundária [...], como escola para o povo, não preposta a preservar e a transmitir as culturas clássicas, mas destinada, pela sua estrutura democrática, a ser acessível e proporcionar as mesmas oportunidades para todos [...] V - Criação de Universidades [...]: b) à formação do professorado para as escolas primárias, secundárias, profissionais e superiores (unidade na preparação do pessoal do ensino).
Além desses princípios, o “Manifesto” das “idéias novas”32 aponta a criação de
fundos escolares, reorganização da administração escolar e reconstrução do
sistema educacional “[...] que possam contribuir para a interpenetração das classes
sociais e formação de uma sociedade humana mais justa e que tenha por objetivo a
organização da escola unificada, desde o Jardim da Infância à Universidade [...]”
(RIBEIRO, 2003, p. 110).
Adiante, Ribeiro (p.111) nos diz, em nota, a partir de dados do INEP, que: “O ensino
público, de 1932 a 1936, cresceu na proporção de 100 para 134, enquanto o
32 “As ‘idéias novas’ em educação, que aparecem como a teoria educacional adequada às novas circunstâncias de rompimento com uma sociedade basicamente agrária, são o resultado da adesão de tais educadores ao movimento europeu e norte-americano, chamado de ‘escola nova’ [...]. Por isso parecia ser a orientação educacional adequada aos países industrializados ou em vias de industrialização. Adequada, portanto, às sociedades capitalistas avançadas” (RIBEIRO, 2003, p. 123).
101
particular, de 100 para 119. Em 1932, 71% das escolas do país eram mantidas pelos
poderes públicos; em 1936 esta porcentagem sobe para 73,3 [...]”.
Com a queda de Vargas, instala-se o Governo Dutra (1946 – 1950). Em reação ao
Estado Novo, tem-se a Reforma Capanema (Decreto-lei nº 8.528/46) que tenta
diminuir os efeitos da política varguista marcada pelo facismo. Essa legislação
aponta para criação de mais cursos formadores de professores e técnicos para as
escolas no sentido de acompanhar o desenvolvimento acelerado do País e de novas
relações políticas se instalando no conjunto do Estado brasileiro que aproximara as
camadas populares da disputa pelo poder político e do debate sobre o tipo de
educação e de escola que o Estado deveria dispor à população.
Getúlio volta ao poder em 1951, via processo eleitoral, na tentativa de continuar a
desenvolver seu projeto político, mas, no entanto, não aguenta a pressão dos
opositores durante o seu governo e, mesmo com o apoio popular, comete suicídio
em 1954.
De 1956 a 1960, é o Brasil “50 anos em 5”. Com Juscelino presidente, consolida-se
a entrada e a influência do capital estrangeiro na produção das políticas sociais do
País.
Nesse novo período de desenvolvimento econômico e de redemocratização do
Estado brasileiro, com a presença forte do pensamento comunista e liberal nos
partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e nas ruas, a escola pública se
fortalece como um bem comum para o desenvolvimento nacional e a conquista de
cidadania das camadas populares.
Considerando o debate sobre a educação, citamos a forte influência da União
Nacional dos Estudantes (UNE), dos Centros Populares de Cultura (CPC) e de
ações de várias associações de professores primários em onze Estados do País.
Tais movimentos fortaleceram a disputa política por mais escolas e valorização do
magistério público por parte do Governo Federal e dos Governos Estaduais e pela
ampliação dos direitos sociais e políticos para os brasileiros.
É nessa conjuntura que, em 1960, em Recife, é fundada Confederação dos
Professores Primários do Brasil (CPPB), hoje ampliada com a força dos demais
102
trabalhadores da educação básica, denominada: Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE).
Abrindo um espaço na linha do tempo, vale ressaltar o papel da Confederação
desde então. Com erros e acertos, a CNTE tem sido fundamental para o avanço da
democratização da educação no País e ampliação do direito à educação em todos
os níveis. Tem sido, também, e principalmente, ativa na luta pela valorização do
trabalhador em educação, objetivando melhorar a sua vida e a qualidade do seu
trabalho.
As resoluções dos congressos da CNTE são registros dessas posições a favor de
uma educação cidadã. Como exemplo, cita: defesa da eleição direta para diretor
escolar e coordenador de turno; eleição paritária para Conselho de Escola (1989);
jornada de trabalho com 50% de horas/atividades (1991); e a autonomia da escola
com gestão democrática, viabilidade financeira de um sistema educacional de
qualidade e o profissional da educação, visto como construtor da qualidade do
ensino (1993).
Apesar de tais movimentos de luta em ação, a educação, mesmo elencada como
política pública necessária à integração de desenvolvimento industrial, econômico e
social do País, somente em 1961 recebeu uma legislação de caráter nacional, com a
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de nº 4024/61.
Contudo, vale lembrar, segundo Ribeiro (2003), que o projeto de lei fora
encaminhado á Câmara Federal em 1948 por Clemente Mariani, então ministro da
Educação e Saúde. Portanto, a lei foi aprovada somente 13 anos depois da
apresentação do projeto, e 15 anos depois da Constituição de 1946.
Pelo modelo econômico adotado na Era Vargas e o avanço dos movimentos sociais,
a demanda da sociedade por escolas públicas e profissionais da educação aumenta,
exigindo esforços da União e dos Estados para legislar e organizar a educação de
maneira a dar conta dessa demanda social, política e econômica e garantir os seus
interesses de manter o seu poder sobre os rumos políticos da sociedade civil (lugar
de todos os modos de existir/trabalhar para afirmar a vida).
Em 1961, o País se encontra em conflitos políticos. Um presidente renuncia (1961) e
outro é deposto por um golpe militar em 1964. Os partidos políticos são extintos e se
103
produzem 5.000 presos políticos. Nesse contexto de conflitos políticos extensos, a
sociedade civil não para e dá conta de realizar, antes do “Golpe Militar”, o
Movimento de Educação de Base (MEB), em 1961, ligado à Igreja Católica e ao
Governo e, em 1963, realiza o I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura
Popular.
Em busca de novos horizontes democráticos, cada vez mais educadores colocam na
pauta de luta direitos fundamentais, como dever do Estado, a educação e as
políticas sociais em frente à nova crise político-econômica, agora, do modelo
nacional-desenvolvimentista. A população questiona o Estado e pede mais
democracia e mais escola para a população que carece de escolarização.
Nessa situação de conflito político e social em 1964, os militares assumem o poder e
governam o País até 1986. Nesse período ditatorial, observou-se a promulgação da
Lei nº 5.692/71, que fixou as diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus que,
no seu Capítulo I e art. 1º, diz:
O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente de cidadania (apud SAVIANI, 1988, p. 137).
Mais adiante, a referida Lei trata, no Capítulo V, a questão “Dos professores e
especialistas”, apontando os preceitos da valorização e considerando a formação,
bases trabalhistas (arts. 37, 38 e 39). Em seu Capítulo VI, fala “Do financiamento” da
educação.
O período da ditadura foi um período em que muitos ativistas sociais sucumbiram na
clandestinidade, nos porões, no exílio e muitos pagaram com a vida o seu
engajamento nessa luta. Mesmo assim, o debate sobre a educação, como caminho
para a democracia e ampliação da cidadania do povo, não se restringiu ao Estado e
a grupos de intelectuais. Heckert (2004, p. 94) argumenta:
As lutas dos anos 70, e os combates ao regime político-econômico instaurado, não foram protagonizados apenas por alguns parlamentares, líderes estudantis e religiosos, artistas, intelectuais, partidos de esquerda e organizações ”clandestinas”. Trabalhadores rurais, operários, estudantes, professores e tantos outros anônimos também estiveram envolvidos nessas ações, [...] seja nas greves e protestos empreendidos e nas práticas capilares que colocaram em xeque o modelo político econômico que dava sustentação ao regime militar.
104
O regime militar entra em declínio nos anos 70 com a crise do capitalismo em nível
mundial. As lutas sociais se ampliam e as greves dos trabalhadores começam a
acontecer no Brasil. O mundo conhece o ABC paulista, que, na sua pauta política,
também incorpora a luta pela democratização da educação.
No entanto, apesar dessa luta por democratização do País, a educação se
encontrava sobre os dominós do tecnicismo, cujas bases advinham do fordismo.
Heckert (2004, p.126), sobre esse período, tomando como referência Saviani (1983),
argumenta:
O privilégio dos meios e de técnicas e o parcelamento do trabalho pedagógico não só intensificou a burocratização do trabalho pedagógico e aprofundou a hierarquização do processo de trabalho, como também permitiu ampliar o controle e a regulação do trabalho realizado nas escolas. Nessa perspectiva, ao professor e outros profissionais do ensino, como as merendeiras, caberia o lugar de meros executores de uma tarefa planejada e coordenada por especialistas supostos detentores de um saber neutro e objetivo. O que se pode notar no modo como se configurou a divisão de tarefas no espaço escolar, foi uma tendência ao refreamento dos processos de cooperação no trabalho, ao desconsiderar o saber-fazer dos demais profissionais do ensino, a intensificação de ralações hierarquizadas e a desqualificação do trabalho efetivado pelos não peritos da educação.
Apesar de esse tipo de divisão social de trabalho baseado no ideário tecnicista ter
sido privilegiado na organização da educação e da escola pública, Heckert (2004, p.
127) aponta ainda que houve produção de resistência e, portanto, esse ideário não
impediu que acontecesse a produção de outros modos de se existir na escola.
A fermentação de uma série de experiências no chão das escolas, universidades e espaços comunitários, pois ‘a construção da política é produto de uma invenção permanente’ (NEGRI, 2002, p. 48). Estas tentativas, mesmos que locais e incipientes, produzirão ressonâncias nos anos 80 e 90, seja na formulação de novas metodologias de trabalho, seja na acepção dos modos de elaboração das políticas públicas.
Ferreira (2006, p. 67), analisando o processo de democratização da educação no
País diz:
Essa luta desembocou nos anos 80 como reivindicação da democratização das políticas educacionais que são rearticuladas em defesa de escola pública, gratuita de qualidade. Prova disso, foi a presença da reivindicação de escolas e, principalmente, de creches nas pautas dos movimentos sociais dos anos 70 e 80.
A Constituição de 1988, resultado que expressa também os esforços dos
movimentos sociais (“Diretas Já” em 1983 e 1984) em defesa de um país mais
cidadão, justo, democrático e igualitário, expressa, em seus arts. 206 e 208, com
105
relação à educação: gestão democrática do ensino público e garantia de padrão de
qualidade, afirmação da educação como direito subjetivo e a descentralização
administrativa do ensino.
Na Lei nº 5.691/71, define-se que a formação das professoras primárias, que se
dava nas Escolas Normais e em Institutos de Educação, passa a ser confiada a
cursos profissionalizantes de “habilitação para o magistério”. Essa nova realidade,
imposta pela necessidade do modelo econômico, acaba por minimizar a procura
pela formação em nível superior e, com isso, a qualidade da escola pública começa
a ser colocada em xeque.
O resultado dessa política, associada aos parcos investimentos destinados à
educação, foi o incentivo institucional aos atos de sucateamento das escolas
públicas em suas dimensões organizativas que, nos anos 80, provocou o aumento
do arrocho salarial de todos os trabalhadores da área da educação.
Os professores, para afirmar as condições de existência social, foram forçados a
assumir uma jornada de trabalho semanal maior, caracterizando a dupla jornada de
trabalho e, às vezes, tripla. Essa ação institucional de falta de reconhecimento do
valor da educação como bem social público contribuiu para que os profissionais da
educação se aproximassem de formas de organização e de estratégias políticas dos
demais trabalhadores, como a forma sindicato e as suas ações paredistas, e, assim,
abrissem diálogos com os saberes do chão da fábrica e suas estratégias de
resistência às formas capitalistas de organização e controle do trabalho.
A Constituição de 1988 reafirma os Estados como entes federativos e promovem os
municípios a essa ordem jurídica. Em seu art. 212, responsabiliza a aplicação de
verbas para a educação: a União nunca menos que 18%, e Estados, Distrito Federal
e Municípios ficaram com a aplicação de 25%. A partir de então, os ônus e os bônus
pelas políticas públicas governamentais nas áreas sociais passam a ser divididos
entre as três esferas.
Nessa relação, considerando a estrutura hierárquica de divisão do poder estatal no
Brasil entre as três esferas administrativas, os municípios, que antes “dançavam” no
campo das forças políticas partidárias para obter mais recursos para desenvolver
suas ações de governo, passam a ter responsabilidades e deveres constitucionais
106
que antes poderiam ficar na conta estadual e federal, como é o caso da educação e
da saúde.
Essa relação do “chão da escola” com o “chão da fábrica” e outros movimentos
produzidos em favor do serviço público de qualidade resultou na pressão da
sociedade civil sobre a Assembléia Constituinte que acabou por garantir, na Carta
Magna de 1988, o direito de sindicalização aos servidores públicos. Com isso
iniciou-se a unificação de muitas associações de classe e organizações sindicais
dos trabalhadores em educação (professores, especialistas e funcionários),
colocando em pauta as discussões da função, papéis, a gestão e os direitos dos
trabalhadores nos diferentes contextos escolares e processo educacional (VIANA,
2007).
No Espírito Santo, essa unificação sindical acontece entre os trabalhadores em
educação. Professores e especialistas se unem no SINDIUPES, no início dos anos
90, e, uma decisão polítii deixa aberta a filiação aos funcionários de escola em nível
estadual e municipal, como no caso do município da Serra. Essa unificação se deu
com o objetivo de unificar e ampliar a luta pela conquista da escola pública de
qualidade, gratuita e democrática e pela valorização do trabalho realizado na escola.
De 1988 até a aprovação da LDB nº. 9.394/96, muita luta se fez por um projeto
social de escola pública gratuita, laica, democrática e de qualidade associada à
questão da valorização do trabalhador escolar, numa perspectiva de se fazer a
educação com mais autonomia, com práticas mais coletivas e com propostas mais
coparticipativas e corresponsáveis (cogestão). A educação brasileira se encontrava
sob uma organização escolar controladora e autoritária em que o Estado, apesar do
seu discurso liberal, impunha o seu modo de organização em nível nacional.
Como um dos resultados para ilustrar esse movimento de luta pela valorização do
trabalho na área da educação, pode-se citar o Pacto Pela Valorização do Magistério
e Qualidade da Educação, realizado em 1994, firmando o “Compromisso Nacional
de Educação Para Todos”, de 1993, e o acordo feito na Conferência Nacional de
Educação Para Todos, em 1994. Esse Pacto fora firmado entre as três entidades
federativas (União, Estados, Municípios) e a sociedade civil brasileira organizada.
107
Dado o esforço de construção, o Pacto se constituiu como um ponto basilar do Plano
Decenal de Educação Para Todos a partir da seguinte política:
[...] ponto basilar do PLANO DECENAL DE EDUCAÇÃO PARA TODOS. Tem por objetivo estabelecer e implementar uma política de longo alcance para a profissionalização do magistério com vistas à elevação dos padrões de qualidade da educação básica. Por conseguinte, trata-se, sobretudo, de promover a função docente e a instituição educacional pública, respectivamente como o agente primordial e como o espaço de realização da equidade e da qualidade do ensino fundamental, sujeito e ambiente centrais para a atenção integral à criança e ao adolescente, na construção de novos patamares de cidadania, democratização e desenvolvimento. – A qualidade da educação básica e o alcance dos objetivos que lhe são conferidos, especialmente quanto à formação de cidadãos produtivos e atuantes na vida comunitária, relaciona-se estreitamente à profissionalização do magistério. A profissionalização do magistério, processo do reconhecimento pela sociedade, da importância política, social, cultural e econômica do professor, corresponde à elevação do nível de formação, à organização de planos de carreira, com acesso via concurso público e remuneração compatível, e à melhora das condições de trabalho dos educadores. – O alcance destes fatores, que constituem, ao mesmo tempo, estratégias da profissionalização do magistério, exige o compromisso solidário dos educadores, dos dirigentes de sistemas de ensino e das instituições de formação. O presente PACTO, ao estabelecer as linhas de ação, bem como as competências e responsabilidades das partes signatárias, com o respectivo calendário, manifesta, publicamente, a vontade política dos que, por este instrumento, se tornam parceiros indissociáveis pela VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO E A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO. (1994, p. 2)
No Rio Grande do Sul, o movimento "Resgate da Qualidade do Ensino Público do
CPERS" (1994, p.23), reportando-se ao Pacto, diz:
Boas aulas pressupõem tempo de preparação e de correção, alem da disponibilidade de material bibliográfico atualizado. Parte importante da carga horária do professor deve destinar-se às atividades complementares às aulas. O Pacto pela Valorização do Magistério, recentemente firmado pelo MEC com entidades da sociedade brasileira – entre as quais a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – prevê um Piso Salarial como a destinação de tempo para as atividades anteriores mencionadas. O ideal é atingir a meta prevista pela nova LDB (projeto) – 50% de hora/aula e 50% de horas/atividades – cujo objetivo maior é qualificação do ensino ministrado.
Apesar de o Pacto ter sido firmado e anunciado à Nação com a presença do
presidente da República, esse documento não foi levado à frente. A expressão do
engavetamento das premissas balizadoras do Pacto foi confirmada pelo processo
político de aprovação da LDB de Darcy Ribeiro.
108
Produzindo mais resistência às ações de Reforma do Estado impostas pelo Governo
Federal, em 1997, os movimentos sociais seguem na luta por uma escola pública de
qualidade e elaboram o Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade
Brasileira (Sindicato ANDES Nacional), consolidado na Plenária de Encerramento do
II CONED, II Congresso Nacional de Educação, Belo Horizonte (MG), organizado
pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Contudo, vale dizer que essa
proposta, também, foi rejeitada pela maioria do Congresso Nacional.
Essa maioria do Congresso Nacional, que rejeitara o Projeto de LDB proposto pelos
movimentos organizados da sociedade brasileira, aprova a versão de LDB proposta
por Darcy Ribeiro – que representava os interesses do Governo Federal, do capital e
das agências internacionais, como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Mundial de
Investimento (FMI) – e se coloca afinada com esses interesses políticos articulados
com a ideologia de mercado.
A política dos defensores da ideologia do mercado preconizava o discurso de uma
escolarização eficaz, eficiente e produtiva, segundo a lógica do
mercado/cliente/consumo, cuja ação político-econômica tem por base a aplicação de
recursos mínimos na promoção das políticas públicas, principalmente as da área
social, como é o caso da educação e saúde, sob a responsabilidade constitucional
do Estado.
A tentativa por parte do Estado de capitanear o processo de mudanças na educação, que ocorreu na década de 90, foi fundada no discurso da técnica e na agilidade administrativa. A lógica assumida pelas reformas estruturais que a educação pública viveu no Brasil em todos os âmbitos (administrativo, financeiro, pedagógico) e níveis (básico e superior) tem um mesmo vetor. Os conceitos de produtividade, eficácia, excelência e eficiência foram importados das teorias administrativas para as teorias pedagógicas (OLIVEIRA, 200l, p. 98-96). As teorias administrativas foram utilizadas como teorias políticas. Em alguns momentos, essa inversão foi utilizada com o objetivo de eliminar a luta política no interior das escolas, insistindo no caráter neutro da técnica e na necessidade assepsia política na educação (FERREIRA, 2006, p. 69).
Segundo Gentili (1996), essa política, denominada de política do Estado-Mínimo,
segue uma orientação de reforma do aparelho estatal e, em particular, na área das
políticas sociais já desenvolvidas em países centrais do capital e em países da
América, como Chile e México.
109
Recusados os projetos educacionais propostos pela sociedade brasileira e com a
LDB já em vigor, o Governo Federal, orientado por um ideário liberal, consolida
grande parte dos seus interesses econômicos e políticos com a aprovação da Lei nº.
9.424/96 e a criação do FUNDEF.
A intenção da sociedade civil organizada era garantir, na legislação, principalmente,
os recursos financeiros e as condições legais mínimas necessários a ampliar e
consolidar experiências, buscando essa direção política de projeto de escola mais
democrática e autônoma. Essa situação de garantia mínima não foi conquistada em
todos os aspectos, mas uma nova situação nacional foi criada com a ampliação do
controle social por parte da sociedade, por meio da criação dos Conselhos na área
da educação.
A partir do FUNDEF, o Governo Federal promulga, por todo o Brasil, o discurso que,
a partir da implementação do fundo a educação de qualidade, a democratização, a
autonomia e a valorização do magistério seriam garantidas nacionalmente, mesmo
que parecesse que se estava privilegiando o ensino fundamental e os seus
profissionais em detrimento da educação infantil e do ensino médio, por ser uma
obrigação constitucional.
O efeito da referida Lei, combinada com a lógica da técnica administrativa como
política, promoveu a imposição vertical e hierárquica da corrida à municipalização33
desse ensino em todo o País, a fim de que os municípios pudessem garantir “mais”
recursos para ofertar o ensino por meio do maior número de matrículas, além de ter
que atender à educação infantil.
Toda essa operação política não poderia estar desvinculada da lógica de gestão
gerencialista cunhada na regulação, produtividade, eficiência e racionalização dos
recursos financeiros destinados à educação pública e, também, com o mínimo de
condições, a atividade docente.
33 Apesar da crítica que fazemos, neste estudo, à política de municipalização que ocorreu no Brasil, com suas dimensões continentais, não podemos negar que, em muitas regiões do Estado brasileiro, essa política pôde garantir condições mínimas para que se atendesse a uma demanda escolar concreta de uma população que se encontrava fora da escola, por falta de recursos públicos municipais mínimos para esse fim constitucional. Numa outra situação, em centros urbanos, como é o caso do município da Serra/ES, os efeitos da política de municipalização não trouxeram ganhos efetivos e significativos para a melhoria da rede de ensino e atribuição do valor do trabalho docente.
110
Na modernidade descartável espera-se que o professor transforme a escola e o cotidiano da sala de aula em ambientes atrativos e propulsores de invenção e criatividade. Será preciso fazer e ‘dar’ o máximo com um mínimo de condições; vestindo a camisa da escola, da educação pública, da qualidade total na educação [...] (HECKERT e et al., 1988, p. 44).
Essa corrida imposta pelo FUNDEF34 aos municípios promoveu casos de
transferência de pessoal do magistério estadual, em sistema de convênio, para os
municípios e, também, desobrigou o Estado da oferta dessa modalidade ficando
apenas com a responsabilidade com o ensino médio e, consequentemente, a União
com a responsabilidade pelo ensino superior.
Além disso, a LDB nº 9.394/96, em seus arts. 11, 12, 13 e 14, passa a garantir a
elaboração de propostas pedagógicas com a participação dos docentes,
assegurando a liberdade de organização e normalização dos procedimentos de
gestão por parte de Estados e Municípios, com o objetivo de conferir maior
autonomia política às escolas e a possibilidade de construção de experiências de
gestão mais democráticas.
Apesar disso, o Governo Federal se colocou vigilante por meio da centralização dos
sistemas de controle institucional, principalmente com o Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) – “Provão”,
gerenciados pelo MEC, para caracterizar a qualidade da escola pública brasileira.
Esses instrumentos passaram a orientar os Estados e Municípios na adoção de
medidas para diminuir os índices insatisfatórios com relação à taxa de aprovação e
reprovação dos alunos. Assim, na tentativa de tornar a escola mais produtiva e
eficiente, os resultados também serviram para se questionar a “qualidade” do
trabalho do docente. Esse questionamento sobre o trabalho escolar acabou na
fabricação de uma política de responsabilização e culpabilização dos professores
pelo “insucesso” do ensino público.
Esse movimento institucional, que também serviu para tentar eximir o Estado da sua
responsabilidade, fez com que a luta dos educadores se fortalecesse. Agora, com o
advento da municipalização, passa a ser uma luta em que se dá a mistura dos
planos local, nacional e internacional. O direito à escolarização toma dimensões
cada vez mais amplas no plano econômico e social, na medida em que se avança e 34 Sobre o efeito da questão do FUNDEF no sistema municipal de ensino, recomendamos a leitura da dissertação de Vianna (2006).
111
se consolida em um modo de produção marcado pela lógica do mercado e do
consumo e não pela a afirmação da vida como o bem comum fundamental de toda
a humanidade.
Confirmando essa lógica e o seu compromisso com as agências internacionais, o
governo institui políticas compensatórias, como “Bolsa Escola”, para atrair as
famílias com seus filhos à escola, mesmo que essa escola não tivesse mais sala de
aula, mais cadeiras e carteiras, mais professores, mais merenda e, também,
segurança e profissionais mais “motivados” com seu trabalho reconhecido
institucionalmente.
Nesse cenário, com raras exceções, deu-se o processo de universalização do
ensino fundamental por todo o País, mesmo com toda a resistência produzida pelo
movimento sindical da educação em todo o País, que indicava que o processo de
municipalização e o FUNDEF, como dispositivos políticos para resolver a questão da
educação como direito da população e dever do Estado, seriam insuficientes para a
sua universalização com a qualidade social discutida e desejada pela sociedade.
No município da Serra, a municipalização não aconteceu entre 1997 e 2004, mas os
efeitos do processo de municipalização foram sentidos nas escolas serranas pelo
que aconteceu na Região Metropolitana da Grande Vitória. Efeitos sentidos como o
aumento de alunos nas redes municipais, mesmo com toda resistência dos
professores e do SINDIUPES no Estado, com o trabalho de debates realizados, com
a publicação do caderno formativo “Municipalização: todos os motivos para lutar
contra”.
O caderno procurou indicar aos trabalhadores da educação a importância de se
questionar o processo de municipalização que se anunciava na educação brasileira.
Esse caderno representa a discussão nacional promovida pela CNTE sobre o tema
e aponta alguns pontos que marcam a defesa de uma escola de qualidade social e a
valorização do trabalho docente. São eles:
a) Recuperar a capacidade de autofinanciamento do Poder Público, a fim de que o mesmo cumpra seu dever com a manutenção e o desenvolvimento do ensino público, o que significa inverter as prioridades do Estado Brasileiro, há mais de vinte anos mergulhado numa armadilha financeiro-especulativa; b) Incorporar todas as crianças e adolescentes em idade escolar ao ensino básico de qualidade;
112
c) Estabelecer um padrão na relação de trabalho, onde seria defenido um número máximo de 25 alunos por professor (leia-se turma), a dedicação exclusiva destes profissionais, com uma carga horária de 40 horas distribuídas igualitariamente entre a aula e planejamento, bem como a contratação por concurso público; d) Valorizar os profissionais do Magistério, a partir da instituição de Piso Salarial Profissional Nacional. ([199-]. p. 4).
Vale ressaltar que essa estratégia de luta foi adotada como medida formativa e
também pelo fato de a CNTE não encontrar, no Governo Federal, interlocutores para
esse debate.
Em nível nacional, o debate da valorização sempre teve uma tendência maior à
discussão salarial como marco. Contudo, ao olharmos, mais atentamente, essa
questão, observamos que sempre esteve acompanhada de discussões sobre a
formação, autonomia, condições de trabalho, gestão e, mais recentemente, sobre a
saúde do trabalhador em educação.
Parece-nos que, no fechar das discussões com os poderes constituídos (federal,
estadual e municipal), forçava-se a redução da pauta de negociação e o item mais
valorizado, como ainda é hoje, era a discussão salarial. A educação, apesar de
todos os discursos oficiais e dos políticos que a apontavam como política
fundamental e de base, na prática, nas ações de sua efetivação, subjugava-se aos
estudos econômicos dos governos e do mercado.
Atribuir valor à educação e, em especial, ao trabalho docente, significava (e
significa) fazer contas de gastos (e não de investimentos), buscando economia, em
qualquer ação, dos recursos públicos a partir do discurso da eficiência e da
produtividade que acompanharam o período da reestruturação produtiva e da
globalização da economia.
Com isso, os discursos de prioridade para educação tornam-se vazios. O exemplo
clássico desse debate da prioridade fica por conta do veto de 10% do Produto
Interno Bruto (PIB) para a educação, pelo Presidente da República.
Nos Estados e Municípios também não foi muito diferente. Havia muita dificuldade,
por parte do movimento sindical, em socializar o debate dos vetos no PNE com a
sociedade e encontrar outros caminhos para melhorar a educação nacional e local.
Sendo assim, na defesa da escola pública de qualidade e democrática, o
113
SINDIUPES, com a categoria do magistério, manteve-se firme nas ações de luta
pela valorização do trabalhador da educação pública, conforme definido em vários
fóruns e congressos nacionais e estaduais de educação, como, também, por meio
de intervenções dos educadores em assembleias, nas escolas e nos movimentos de
rua em defesa de mais políticas públicas nas áreas sociais por parte do Estado.
114
5 A EDUCAÇÃO NA SERRA ENTRE 1997 E 2004: AS POLÍTICAS PRODUZIDAS
5.1 A CONJUNTURA NACIONAL
A política de reestruturação do aparelho de Estado, em nível federal, estadual e
municipal, produziu reformas administrativas que tiveram como resultado políticas de
redução de pessoal, congelamento e arrocho salarial no serviço público, pautados
pelo pensamento do Estado-Mínimo na produção e participação nas políticas
sociais.35
A reforma administrativa do Estado passou a flexibilizar as relações de trabalho em
favor das leis de mercado. A partir disso, houve a desvinculação definitiva do salário-
mínimo nacional como referência de reajuste dos vencimentos do funcionalismo
público. O percentual da inflação acumulada anualmente passou a ser referência
para a recomposição salarial.
Esse período foi marcado por uma alta taxa de desemprego promovida pela
reestruturação produtiva e acumulação flexível. A partir de então, iniciou-se uma
política de “criminalização” dos movimentos de greve no serviço público e de ataque
institucional às entidades sindicais, no sentido de desmobilizar e diminuir o seu
poder político organizativo e formativo dos trabalhadores.
No final dos anos 90, nesse contexto de mercado globalizado, o Estado Brasileiro foi
perdendo a sua força investidora em políticas públicas de base e sociais
conseguidas no período desenvolvimentista para atender à industrialização do País,
que passa a aderir às estratégias de mercado para tentar acompanhar e dar conta
da conjuntura da economia mundial, assim como tentar impedir e controlar o avanço
das forças políticas partidárias e sociais questionadoras e reivindicatórias de um
outro modelo de governar o Brasil.
35 Ver mais sobre esse debate em Gentili (1998), Boron (2004), Peroni (2003), Adrião (2006) e Sella (2006).
115
O que passou a imperar entre os trabalhadores, foi o princípio segundo o qual lutar
por um emprego formal e a sua estabilidade era mais importante do que lutar por
aumento salarial.
Com a política de reforma do Estado firmada no Governo Federal do PSDB,
baseada num discurso de ação administrativa “descentralizadora”, os municípios
passaram a ter mais responsabilidades na produção de políticas sociais. Nessa nova
dinâmica de governar adotada pelo Estado brasileiro, a educação passa a ser uma
política social pública debatida e questionada em todos os níveis da sociedade, no
sentido de que ela pudesse contribuir para, elevando o nível de escolarização,
diminuir as desigualdades econômicas e sociais. Muitos movimentos sociais
passaram a cobrar a educação como direito subjetivo e como dever do Estado a ser
priorizado.
Passa-se a atribuir um valor de uso ainda maior à escola pensada como espaço de
exercício da cidadania para a conquista de qualidade de vida. Por meio da formação
escolar para o trabalho e para agir como sujeito político no contexto em que está
inserido, busca-se atribuir à vida um valor de bem comum que interessa a toda
sociedade.
A população, considerando os discursos dos políticos e dos governos, passa a exigir
políticas para ter um profissional da educação com “mais formação”,36 com melhores
condições de trabalho e com uma remuneração digna. Isso para evitar as greves
constantes, diminuir os índices de evasão e repetência e, fundamentalmente,
melhorar a qualidade de ensino público social oferecido pelo Estado no ensino
básico, sem perder a força interventora do mercado de defender os seus interesses
maiores no campo da coisa pública.
Nessa discussão, o profissional da educação também se coloca, por meio da luta
sindical, reivindicando valor para o seu trabalho. Na medida em que a sociedade e
os governos exigem um educador mais bem formado, dominando novas tecnologias
(informática), outros idiomas (inglês, espanhol, mandarim) e outras metodologias de
ensino, de forma que esteja cada vez mais atualizado, a contrapartida de uma
36 Formação, nesse momento, deve ser entendida como preparação para as novas demandas do mercado de trabalho dessa nova modulação do capitalismo.
116
melhor qualidade de vida se acopla à discussão dessa exigência de competência
profissional.
Uma melhor formação e a possibilidade estar sempre atualizado levam à
combinação da política salarial com a política de formação. Isso significa investir em
aquisição de livros, cursos de atualização, sejam eles oferecidos pelo Estado, sejam
assumidos pelo próprio profissional, o que requer uma demanda maior de jornada de
trabalho por parte do educador para buscar uma melhor formação e, assim, um
melhor exercício da sua atividade na escola.
Nessa perspectiva, a luta salarial está associada à questão da possibilidade de uma
melhor formação do educador. Essa associação contribui para entender que essa
luta, olhada com mais atenção, pode ter uma amplitude que coloque nas pautas de
negociação a necessidade de debater o valor da gestão do trabalho e da saúde do
trabalhador como políticas necessárias à produção de um ensino com valor de uso
de um bem comum social.
A luta pela escola pública, a partir da década de 80, e com mais força nos anos 90,
passa a ter um valor social e comum fundamental na perspectiva de contribuir na
transformação das condições de vida da maioria da população brasileira. A partir
deste entendimento, do valor da educação no contexto da luta pelo poder e
transformação do modo de produção das relações sociais, é que o valor do trabalho
docente se insere como temática e com importância pública política.
5.2 OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO DA SERRA
Do ponto de vista politicoeconômico, o município da Serra acompanha o cenário
nacional da segunda metade da década de 90. Favorecida por uma economia
estabilizada (inflação baixa) promovida pelo Plano Real de 1994, as ações de
reformas administrativas, em nível municipal, passam a ser implementadas seguindo
os caminhos indicados pelos Governos Federal e Estadual.
117
Nesse sentido, as estratégias de tercerização e privatização de serviços públicos
passam à ordem do dia nas administrações públicas. Com essa nova lógica de
gerenciamento, as escolas públicas brasileiras, principalmente as estaduais e
municipais, passaram a trabalhar com investimentos e recursos limitados, falta de
funcionários, prédios em condições precárias, poucos profissionais com formação de
licenciatura plena (principalmente nas séries iniciais) e baixos salários. Por isso,
pode-se afirmar, foram produzidas inúmeras greves dos trabalhadores da educação,
em nível nacional, estadual e local, na defesa de uma educação com qualidade
pública social.
Os trabalhadores, por meio das suas associações de classe e sindicatos, articulados
com outros movimentos da sociedade civil, lutavam por uma escola com qualidade
social. Uma escola que fosse capaz de (re)conhecer e atribuir um valor de uso
público ao trabalho docente, como estratégia na busca de melhorar o ensino público,
e reverter os índices de evasão, reprovação e analfabetismo, com a escolarização
das crianças em idade escolar e dos jovens e adultos no País.
Essa situação desestabilizadora da educação brasileira preocupava o SINDIUPES e
os movimentos organizados locais em nível estadual e municipal.
Mesmo com uma conjuntura político-econômica adversa e o município serrano com
uma dinâmica de política local ainda alimentada com os resquícios do clientelismo
no serviço público, a luta por uma escola pública com valor social de bem comum
com os seus profissionais continuou sendo construída nas escolas, para não se
reviver a política de final de governo de atraso de salários, como fez a gestão
anterior.37
A luta por meio de ações nas escolas e nas assembleias da categoria procurou
potencializar os docentes a (re)existir a uma nova gestão municipal que apostou em
uma organização político-pedagógica cujos projetos de valorizar a educação não
produziram avanço no debate da recuperação salarial do magistério; permitiu a
criação do turno intermediário (o quarto turno) nas escolas; salas de aula lotadas;
política dos espaços alternativos e anexos nas escolas; falta de concurso público,
falta de professores, reforçando a política de contratação temporária; e a falta de
37 Trata da gestão de 1993 a 1996 na Prefeitura Municipal da Serra/ES.
118
autonomia e de condições administrativas das escolas para gerir o processo de uma
gestão democrática.
Tudo isso foi produzido em nome de uma nova gestão para a Rede Municipal de
Ensino, que estaria privilegiando a eficiência e a produtividade de resultados
“positivos” na taxa de escolarização e de alfabetização nas escolas da Serra por
meio da otimização dos recursos financeiros dispostos à educação serrana para
manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, educação infantil e
valorização do magistério.
Como consta no documento “Serra 21: plano estratégico da cidade 2000 - 2020” do
município,
A educação, no atual contexto de globalização das relações econômicas, políticas e culturais e de acelerada mudança da base tecnológica e do processo produtivo, tornou-se um vetor estratégico para o desenvolvimento sustentável e eqüitativo [...]. É amplamente aceita a idéia de que a educação se transformou na maior vantagem comparativa dos países e das empresas, para enfrentar a competitividade internacional. Além disso, o grau de escolaridade constitui-se num dos principais fatores que determinam o nível de empregabilidade dos indivíduos (p. 4).
Essa visão de educação ilustra bem que tipo de “ensino de qualidade” e de “gestão
democrática” o município da Serra abraçou como princípios de construção das
políticas educacionais.
O documento “Serra 21” aponta como seria possível encaminhar e articular as
relações institucionais, no sentido de tentar controlar, regular e justificar o processo
de atribuir valor de troca ao trabalho escolar. Estabeleceu também estratégias para
produzir o valor da ação do trabalho docente, como umas das ações possíveis de
contribuir para a afirmação da escola pública como um patrimônio e como instituição
pública com valor social.
O Governo do PDT, no primeiro mandato, anunciou que o gasto com a educação foi
acima dos 25% previstos pela Lei do FUNDEF (em média mais de 28%), e que os
pagamentos dos salários em dia significaram a afirmação do seu compromisso com
a educação e a valorização do magistério Serrano.
O discurso de que a educação e o trabalhador estavam sendo valorizados produziu
efeitos positivos à administração, se comparada com a maioria dos demais
119
municípios da Grande Vitória e com o Governo Estadual e, também, se comparada
com o governo anterior.
A educação municipal, pensada a partir da organização do trabalho escolar,
direcionada a uma gestão mais participativa e mais publicizada, do ponto de vista
político-pedagógico, colocou a escola a se perguntar como se produziria o valor do
trabalho docente nessa nova gestão democrática.
A Frente Popular da Serra (PDT, PTB, PPS, PSB), apresentando o seu programa de
governo à Sociedade Serrana – Mudar Agora, saiu vitoriosa da eleição municipal de
1996 para cumprir a administração da Prefeitura do Município da Serra do Espírito
Santo, gestão 1997-2000.
No Programa de Governo,38 diz-se o seguinte sobre a política da educação
municipal:
Escola e Cidadania são conceitos inseparáveis. A educação é um dos direitos incontestáveis do homem moderno. É porta de acesso ao competitivo mercado de trabalho, passagem obrigatória no caminho de um futuro melhor. Os constantes aperfeiçoamentos nos métodos de ensino e as novas necessidades sócio-econômicas devem estar sempre presentes na definição e implantação de novos cursos profissionalizantes (como na área de informática, por exemplo), voltados para atender às exigências dos novos empregos ofertados. Para implementarmos esse princípio, faremos parcerias com SESI, SENAC, SENAI e ETEFES, entre outras instituições. (p. 8 - 9)
Uma política educacional voltada para atender à demanda do mercado se
compromete com uma educação utilitarista e não prima por uma educação que
atenda aos interesses da maioria da população. Muito menos, busca uma gestão
afirmativa de possíveis ações, no sentido de valorizar a escola pública como espaço
democrático de produção de saberes e de exercício da cidadania. Parece-nos que
essa política prima, tampouco, por abrir espaços institucionais para o diálogo, que
possa contribuir para a construção de uma escola nessa perspectiva. Escola que
assume o trabalho (escolar/docente) como atividade coletiva, como processo de
produção de relações que aposta na prática da socialização de experiências, de
saberes e conhecimentos transformadores das relações sociais de produção da vida
na escola.
38 Programa de governo apresentado em campanha eleitoral do município em 1996.
120
Essa candidatura se apresentou, para a sociedade serrana e para o magistério, com
a proposta de organizar, democratizar e valorizar a educação municipal. Entretanto,
na medida em que o Governo Municipal pautou o combate aos índices de
reprovação e evasão como foco maior das suas ações, pode-se dizer que a sua
política educacional aproximou-se de uma concepção de educação utilitarista,
voltada para atender aos objetivos dos organismos internacionais.
5.2.1 A administração 1997-2000 na Serra: o primeiro mandato na educação.
A gestão da educação do Governo Eleito em Serra, para o período 1997 – 2000,
começou com a herança de atraso de vencimentos da administração anterior. O
governo empossado recebeu cinco folhas de pagamento em atraso. Além disso,
recebeu a educação municipal com um concurso público realizado em 1994, com a
chamada de classificados ainda por ser feita, segundo o número de vagas previstas
no edital do concurso; a tarefa de adequação da educação municipal à nova LDB e à
Lei do FUNDEF; a continuidade às ações do Plano Decenal Municipal de 1994; e a
política de vincular a educação infantil à Secretaria da Educação, que se encontrava
ainda vinculada à Secretaria de Ação Social.
Essa gestão começou seus trabalhos na educação orientada pelo Plano Decenal de
Educação Para Todos,39 construído pela administração anterior. Esse Plano
apresentava, como metas principais: a efetiva valorização do magistério e dos
demais profissionais da educação; escola de qualidade para todas as crianças;
rigorosa aplicação dos recursos destinados à educação; escolas com padrões
mínimos de funcionamento; gestão democrática com a participação da comunidade.
Além disso, outros obstáculos40 apontados no Plano a serem enfrentados foram:
despreparo dos professores; greves do magistério; burocracia nos órgãos públicos;
falta de verbas para a educação; ingerência político-partidária; superlotação das
salas de aula; ausência de planos de capacitação; falta de vontade dos políticos e 39 Essas metas principais estão registradas na apresentação do Plano Decenal de Educação Para Todos – 1994/2004 - Serra/ES (p. 1). 40 Como referência aos obstáculos citados, muitos, dentre outros, estão na página 21 do referido Plano, no item 1.3.
121
administradores; falta de material básico para o aluno; rotatividade de professores;
falta de política salarial justa; política de recursos humanos que não favorecia os
trabalhadores; descompromisso dos educadores com o processo educacional; altos
índices de repetência e evasão; sistema de avaliação da aprendizagem inadequado.
Alguns desses obstáculos apontados indicam que o que estava acontecendo na
escola e que a Administração Municipal não dava visibilidade, não abria espaços
para potencializar o que escapa da ordem estabelecida para a educação escolar,
mesmo com a intenção de atender aos seus próprios interesses políticos e
econômicos de conter os gastos com a educação sem produzir mais repetência e
evasão.
Vale registrar que o governo anterior promoveu a primeira eleição para direção das
escolas de ensino fundamental do município da Serra e também para os Conselhos
de Escola, apontando um processo de construção da gestão democrática (ou de
transferência de responsabilidades para comunidade escolar).
Iniciada a Gestão 1997/2000, anunciou-se que a política salarial do governo estaria
priorizando o pagamento em dia dos vencimentos e, para a mesa de negociação
com as entidades representativas dos trabalhadores, ficariam os vencimentos
atrasados da administração anterior e valorização salarial e de condições de
trabalho do funcionalismo público.
Para chefiar a pasta da educação, foi convocada a vice-prefeita, pedagoga e
funcionária municipal, para organizar a Rede Municipal de Ensino e cumprir as
promessas de campanha divulgadas ao magistério e à sociedade serrana. Avaliou-
se que a história da vice-prefeita na política do município e sua relação com a
categoria seriam elementos facilitadores à implementação das novas políticas de
organização da educação municipal garantidas na nova LDB.
Na escolha da vice-prefeita, pesou também a boa relação com o magistério. Avaliou-
se que essa condição poderia favorecer a melhoria das relações de trabalho com a
categoria. Uma das suas primeiras ações foi negociar a alteração da Lei do
Conselho Municipal de Educação da Serra (CMES) com a Câmara (Lei nº 1.961/97),
colocando-o em funcionamento já em março, visto que foi criado em 1992 (Lei nº
122
1.647), só instalado em outubro de 1996 e em atividade em 1997, devido à falta de
local e instalações.
Em 1997, o município contava com 48 unidades de educação infantil e 49 unidades
de ensino fundamental; um quantitativo de 1.800 profissionais do magistério, sendo
229 em contrato administrativo. Estava estruturado para atender a 4.874 alunos na
educação infantil, 18.762 alunos no ensino fundamental e 2.623 no ensino supletivo.
Nesse ano, a rede de ensino atingiu um índice de aprovação de 84%. Diante dos
números e dos compromissos assumidos, a Administração Municipal apostou em
novas ações para avançar nos resultados da educação.41
Assim, ainda em 1997, acompanhando os números e buscando cumprir os
compromissos assumidos em campanha, a Administração Municipal institui o Fundo
Municipal da Educação (FME), pela Lei nº 1.962, de 20 de março de1997, e o
Conselho do FUNDEF, pela Lei nº 1.981, de 23 de junho de 1997, para promover e
se adequar à legislação federal, no sentido de atender às exigências de garantia dos
recursos destinados, principalmente, ao ensino fundamental.
O Conselho do FUNDEF é um órgão colegiado de acompanhamento e controle
social dos recursos da educação. Durante o período dessa Gestão Municipal, a
dificuldade de acompanhamento das contas foi uma constante, principalmente, na
primeira gestão. Segundo os relatos dos representantes da categoria no Conselho,
nas assembléias do magistério, o que imperava era a dificuldade de acesso, falta de
transparência e de detalhamento contábil nas contas da educação do município,
principalmente, em relação às folhas de pagamento do magistério e às contas
específicas dos fundos da educação, dificultando a fiscalização dos recursos
empregados na rede municipal.
Tanto o CMES como o Conselho do FUNDEF foram colocados em funcionamento,
com vistas a atender à legislação que prevê esses organismos como mecanismos
destinados a contribuir para melhor organizar, democratizar e realizar o controle
social da educação.
Em 1998, a Câmara Municipal aprova a lei de contratação temporária. Essa lei
impõe ao professorado contratado temporariamente perceber pelo piso inicial da 41 Os dados apresentados foram extraídos da publicação Serra em números, jul. de 2004, p. 68-69.
123
classe, independentemente da titulação do profissional, validada como critério de
aprovação ao cargo pleiteado, mesmo se fosse funcionário municipal em outra
cadeira. A educação da Serra, que até então fazia valer a maior titulação, diferencia-
se, assim, da política da Capital do Estado: Vitória era referência em organização,
até então.
Com relação ao concurso público realizado pela gestão anterior, a Administração
decidiu não chamar todos os aprovados para as vagas dispostas em edital. Como
justificativa para tal, utilizou-se o expediente jurídico de que as vagas expressas em
edital apenas são expectativas de levantamento de vagas para o trabalho no serviço
público. Assim, a política de contratação temporária continuou imperando durante
toda essa primeira gestão para suprir a falta de professores nas escolas,
contrariando as diretrizes de valorização da nova LDB e da Lei do FUNDEF a que se
associava institucionalmente a Administração da Serra.
Nesse mesmo ano, aconteceu a discussão da revisão do Estatuto do Magistério
Público da Serra e do Plano de Carreira e Vencimentos (PCV). A categoria, por meio
dos seus representantes, discutiu com a Administração os pontos polêmicos, com o
objetivo de se chegar a acordos que atendessem aos diversos interesses colocados
pelas partes. Em 1999, deu-se a aprovação da Lei nº 2.172 do Estatuto do
Magistério e da Lei nº 2.173 do PCV pela Câmara Municipal da Serra, conforme
desejava a Administração e sem os principais acordos construídos durante a
negociação com a categoria.
Com essa operação, a política em curso da reestruturação administrativa do
aparelho de Estado (o Estado-Mínimo), na nova Lei, foi atendida, e direitos de valor
econômico conquistados pelos trabalhadores foram diminuídos. No novo
documento, retirou-se a progressão bianual automática e não se procedeu a uma
recomposição salarial por meio de acordos coletivos anuais. A mudança de nível
entre graduação, especialização, mestrado e doutorado ficou por volta de 10%. Além
disso, a carga horária para planejamento, estudo e outras atividades, cuja
reivindicação era de 50%, ficou em 1/5 da jornada semanal de trabalho.
O resultado dessa revisão jurídico-administrativa da organização do magistério
municipal foi o ajuste da legislação federal que instituiu o probatório de três anos e
124
acatou outras orientações que definiam a retirada das férias-prêmio; fim da
gratificação decenal de 25% (o decênio); fim da progressão por antiguidade,
conforme § 1º do art. 21 da Lei nº 1.722 de 1º de dezembro de 1993, redefinindo a
progressão apenas por merecimento e avaliação de desempenho no novo PCV (Lei
nº 2.173).
A Lei nº 2.172 do Estatuto do Magistério e a Lei nº 2.173 referente ao PCV, de 31 de
março de 1999, ficaram conhecidas como a “Lei da meia-noite”, já que sua
aprovação se deu num momento em que o magistério não poderia se organizar e se
fazer presente na votação. A “Lei da meia-noite” retirou conquistas históricas do
magistério. A justificativa foi o discurso de ajuste e de modernização da organização
do aparelho estatal em frente às transformações do mundo do trabalho, novas leis
do mercado, reforma fiscal, ajuste financeiro e a reforma administrativa e trabalhista.
Isso, na direção de tornar a Administração Pública mais eficaz, competitiva e
produtiva.
Essas medidas de reforma jurídico-administrativas, articuladas entre a Administração
Municipal e a Câmara, passaram a afirmar um modo de operar a política com a
categoria e, principalmente, com o seu representante legal: o SINDIUPES.
Na apresentação do Estatuto e do PCV, o discurso registrado aponta para um outro
caminho. Nas ações até então desenvolvidas, a escolha por caminhar junto,
Administração e categoria, foi se tornando mais difícil. A construção e o
entendimento do valor da ação do trabalho docente para a educação municipal da
Serra, como estratégia para a afirmação da qualidade social da escola pública capaz
de combater os índices de reprovação e evasão, ficaram comprometidos. Na
apresentação do documento, registra-se:
A administração do Município da Serra tem implementado, nos últimos três anos, ações decisivas na área da educação, provocando verdadeira revolução educacional nas escolas da rede municipal de ensino. Impulsionadas por uma política educacional que visa à efetiva melhoria na qualidade de ensino, oferecida à população estudantil, essas ações desencadeadas articuladamente nessa direção, já têm apresentado resultados muito significativos. Dentre as medidas adotadas que provocaram efeito transformador nas escolas municipais serranas, destacam-se: A gestão democrática com eleições diretas para diretores escolares e coordenadores de turno, revitalização dos Conselhos de Escola, ampliação da oferta de vagas, criação do Fundo Municipal de Educação, capacitação dos profissionais do Magistério, Pró Escola – Programa de Combate à Evasão e Reprovação
125
Escolar, salas de aceleração destinadas aos alunos defasados em série-idade, dentre outras. É com imensa satisfação que apresentamos o Estatuto e Plano de Carreira atualizados conforme as diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Educação. Atualização esta, que atende a quesitos que instituem justiça e modernidade no trato das questões afeta aos profissionais do magistério tais como: ingresso na carreira por concurso público, respeito as habilitações mínimas exigidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, progressão por critérios de mérito e avaliação de desempenho, escala adequada de diferenciação das remunerações através de avanços verticais e horizontais. Precisamos avançar mais para atingir a escola que queremos – aquela que trabalha a educação como prática social transformadora. Há que se ressaltar que só a parceria efetiva e comprometida do profissional do magistério irá garantir o sucesso desejado. Este Estatuto e Plano de Carreira se integram ao processo de revolução da educação da Serra que tem dado nova cara às escolas municipais, garantindo as nossas crianças e adolescentes melhores condições de ensino e aos nossos profissionais do magistério respeito e melhores condições de trabalho (PREFEITURA MNICIPAL DE SERRA, Lei nº 2.172 e Lei nº 2.173, 1999).
Com esse entendimento, os Capítulos II (do magistério como profissão) e III (dos
princípios básicos da carreira) do Estatuto do Magistério Público apresentam
orientações políticas que podem contribuir para a produção de outros modos de
organização do trabalho escolar, na busca da qualidade social do ensino.
Ainda nesse período, em relação à dívida herdada com o magistério, relatos de
professores em assembleias e de dirigentes sindicais indicaram que a Administração
Municipal buscou incentivar a desfiliação dos profissionais do magistério do seu
sindicato, alegando que, com essa ação, eles estariam aptos legalmente a receber
dívida salarial da municipalidade, a partir de um empréstimo contraído pela
Prefeitura e avalizado pelos funcionários, no valor referente devido. A Administração
Municipal indicava que essa medida foi necessária tendo em vista que o sindicato
tinha uma ação judicial em curso sobre a questão contra o município e a falta de
caixa impedia uma outra solução negociada. Sabe-se que essa operação política
resultou em desfiliação de alguns professores do SINDIUPES.
Percebeu-se, posteriormente, que essa medida teve também a intenção de
desmobilizar e descredenciar o SINDIUPES com a categoria, no sentido de diminuir
seu poder na mesa de negociação. Verificou-se isso quando a Prefeitura se propôs
a fazer o pagamento das dívidas a partir de um plano construído com o Sindicato em
1999/2000. Esse foi um período em que as greves começaram a ser retomadas com
mais força em frente à falta de propostas para a atribuição de valor ao trabalho
126
escolar por parte do governo, que pouco pautava o debate das condições salariais e
de trabalho em que viviam o magistério.
Do ponto de vista da organização dos trabalhos da Secretaria da Educação em
relação ao acompanhamento político-pedagógico das unidades escolares, a partir de
1998, as escolas foram divididas em sete regiões geopedagógicas, considerando a
proximidade entre si. Com isso, imaginava-se produzir um debate pedagógico que
se encaminhasse para um trabalho mais articulado entre SEDU, escolas e
professores, com o objetivo de diminuir os índices de evasão e reprovação nas
escolas serranas.
Buscando ações políticas para melhorar o rendimento das escolas, criou-se o
Projeto Pró-Escola,42 que firmava um convênio de cooperação entre o Poder
Judiciário e a Prefeitura da Serra. Consistia em diminuir o índice de evasão,
aumentar o índice de regresso e aprovação escolar e, com isso, ampliar o número
de crianças acessando a escola fundamental.
O desenvolvimento de ação pública, mesmo considerando o processo de
municipalização em curso no Espírito Santo, ao qual a Prefeitura da Serra não
aderiu, acabou por aumentar a demanda por escolas das redes municipais,
principalmente na Grande Vitória. Vale ressaltar que essas escolas municipais já
comportavam um fluxo de matrículas crescente, mas, com essa política de
municipalização, a falta de escolas se colocou como um problema. Como
consequência da falta de escolas, o resultado foi o aumento de alunos por turma e a
criação de anexos e turnos alternativos na rede de ensino.
42 O Pró-Escola, Programa de Combate à Evasão e Reprovação Escolar da Serra, nasceu da preocupação da Administração Municipal tendo em vista combater os altos índices de evasão (7%) e de reprovação (17%) no ensino fundamental (1ª a 8ª série). O projeto foi oficializado em 24 de junho de 1998. (SEDU/Serra, 2001, p. 3). A ação consistia em fazer com que, se necessário por via judicial, os responsáveis pelos alunos cumprissem o dever de manter as crianças na escola. Assim, o objetivo de reduzir os índices de faltosos e evadidos estaria sendo atingindo e o Pró-Escola contribuindo com as demandas legais e sociais de se ter toda criança na escola e, mais ainda, diminuindo o desperdício das verbas da educação com esse movimento de evasão e reprovação. Cremos que essa política foi insuficiente para alterar a realidade do ensino no município. A evasão e a reprovação não se resolvem com projetos impostos e que obrigam a presença da criança na escola. Uma ação em política pública exige, no planejamento, a participação e a discussão com quem está no cotidiano executando a política. Além disso, devem-se oferecer as condições para que ela seja desenvolvida. Como já nos posicionamos, o município não apresentava as condições necessárias para que a escola pudesse dar conta dessa nova realidade de mais alunos em sala de aula. Durante esse período, por exemplo, a falta de professores foi uma constante nas escolas.
127
Além de falta de escolas e salas de aulas para atender a essa nova demanda, o
professor se vê obrigado a construir estratégias para lidar com essa nova realidade
de mais alunos por turmas. Vale ressaltar que essa nova demanda inclui os
chamados alunos “defasados” e os alunos com “necessidades especiais”, que
requerem outras formas de planejamento e de estratégias por parte do professor,
para dar conta da sua tarefa docente.
Em 1999, considerando a necessidade emergencial para completar o quadro do
magistério (docência e especialistas), a Administração contratou, temporariamente,
469 profissionais para o ano letivo. Também houve investimento em capacitação,
mas a formação era mais voltada para os diretores escolares. A formação de
professores ficou ligada aos projetos já concebidos que chegam à Secretaria como
soluções para a defasagem idade-série, alfabetização e educação especial. Ou seja,
projetos temporais que, com a metodologia, as metas e os instrumentos prontos,
esperavam os instrutores para aplicá-los aos alunos.
Na área da pré-escola, a SEDU proporcionou quatro seminários para um público de
70 professores. Contudo, a gerência administrativa das escolas se colocou como a
maior preocupação por parte do governo em frente à interpretação da nova
legislação educacional (LDB e FUNDEF). O projeto político de governo,
considerando as novas exigências legislativas e o modo de funcionar do mercado
incorporados à lógica de gestão da Administração Pública e, principalmente, a
relação custo/benefício, passa a ser referência para atribuir valor de uso e de
qualidade ao trabalho escolar.
A capacitação via o RENAGESTE43 dos gestores de escolas indicava essa
tendência na primeira gestão do governo na educação municipal. Esse programa
proporcionou a capacitação de 170 gestores. Outra ação foi a capacitação de 100
43 É um projeto do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), criado em agosto de 1996, que se destina à formação em gestão educacional, tendo por base os princípios de rede e de parceria. O projeto orienta suas ações de formação a profissionais (diretores, pedagogas, técnicos) envolvidos na gestão da educação em sistemas públicos de ensino, nos seus vários níveis: escolar, regional e estadual.
128
professores para o projeto de aceleração da aprendizagem, com o “Convênio
Acelera Brasil”,44 objetivando diminuir a distorção idade/série no município.
Como justifica a Administração:
O Brasil tem investido em educação bem menos que outras nações em condições semelhantes de desenvolvimento. Entretanto a década de 90 vem sendo caracterizada pela intensificação de um processo de transformações científicas e tecnológicas, de globalização dos mercados, e a automatização está tornando descartável a mão-de-obra não qualificada exigindo uma mudança profunda na educação. O trabalhador, independente de sua área de trabalho, precisa contar com novas competências para possibilitar sua inserção nesse novo mundo. Assim, nunca tantos valorizaram tanto a educação básica como hoje e, especificamente, uma escolarização de melhor qualidade para a população, mais do que nunca está sendo considerada INVESTIMENTO e PROPRIEDADE (PREFEITURA MUNICIPAL DA SERRA: Plano de Ação, 1999, p.1).
Nesse mesmo ano, e reforçando a questão da gerência, acontece o segundo
processo eleitoral para a direção de escolas de ensino fundamental municipal,
orientado pelo Decreto n° 11.029/99, que fazia exigência de prova de competência
em gestão escolar para os requerentes candidatos ao processo eleitoral.
Assim, como no primeiro processo, a organização e fiscalização das eleições se
deram por meio de uma Comissão Eleitoral, com a presença do SINDIUPES, CMES,
Federação das Associações de Moradores da Serra (FAMS) e SEDU/Serra. Nessa
eleição, o processo previa uma chapa composta pela candidatura de direção e de
coordenação para cada turno da escola. O processo eleitoral também previa uma
avaliação de competência para os concorrentes ao cargo de direção. Embora com a
discordância de alguns representantes da Comissão Eleitoral, na correlação de
forças, prevaleceu o pensamento da Administração Municipal. Assim institui-se a
avaliação de competência45 por meio de uma prova de conhecimento sobre gestão,
44 Um estudo sobre o programa no Espírito Santo diz que: “O Programa Acelera Brasil (PAB) foi iniciado no ano de 1997. É uma das iniciativas que, como outras desenvolvidas no Brasil a partir de 1995, visavam corrigir o fluxo escolar em redes estaduais e municipais de ensino, como estratégia para possibilitar a implementação de um sistema de ensino fundamental de qualidade para todos. Patrocinado pelo Instituto Ayrton Senna, no Espírito Santo e em Serra, o Acelera Brasil chega em 1999” (CADERNOS DE PESQUISA, n. 116, jpu.l h1o7/72-201052, jul. 2002. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cp/n116/14403.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2008. Como podemos perceber, aplicação de programas como este, geralmente, não consegue dar conta da demanda e da dinâmica da realidade em que acontece o trabalho escolar. O seu chegar estrangeiro e a sua pouca interlocução com os atores locais produzem estranhamento, superposição de poder e diminuição da autonomia do trabalhador. 45 Por competência, entendia-se que era conhecimento técnico sobre Administração Escolar e sobre a legislação educacional.
129
como também o formato de “chapa eleitoral”, composta com diretor e coordenadores
de turno comprometidos com um projeto de gestão apresentado à comunidade
escolar.
Tal processo evidenciava a concepção de gestão democrática defendida pela
Administração que apostava na visão de um gestor que reunia a competência
técnica (aferida por meio de prova de conhecimento) e o aval da comunidade
escolar, por meio da eleição. Esse gestor, juntamente com a “chapa” que compunha,
seria capaz de conduzir o trabalho docente e a vida escolar segundo os interesses,
os objetivos e as metas traçadas pela Administração Central para a educação
municipal, que consistia em diminuir os índices de evasão e reprovação no
município e, com isso, produzir um ensino mais eficiente e produtivo.
Em nosso entendimento, a vida escolar não é produzida somente por líderes e
políticas verticalizadas e predeterminadas por especialistas, muitas vezes,
“estrangeiros” ao cotidiano das redes de ensino e das escolas, que pensam os
professores como meros executores das políticas e projetos educacionais de
governo.
Acreditamos que as políticas de governo na escola se misturam com o planejamento
e as ações cotidianas, coletivas e individuais, dos seus profissionais e que se
encontram num processo dialógico, como debate permanente entre o planejado e o
que se realiza em ato por quem vive o trabalho.
O debate entre o planejado e a prática escolar é o meio vivo do trabalho docente,
espaçotempo em que se produz e atribui valor à atividade industriosa e potencializa
o processo de produção da vida na escola.
Uma outra questão importante sobre a gestão democrática defendida pela
Administração Pública foi a estratégia política de tentar transferir a responsabilidade
pelo “fracasso” das políticas públicas do governo para a comunidade escolar. Ou
seja, a gestão da escola com recursos financeiros limitados e pré-dirigidos a
despesas especificadas, colocados nas mãos da comunidade escolar e,
particularmente, nas mãos do gestor e dos professores, coordenados com a
participação das famílias, na figura do Conselho de Escola. Esses atores sociais
dirigiam a responsabilidade pelos resultados educacionais da escola. Essa política,
130
aplicada até hoje, tenta fazer do direito à educação (com qualidade pública social)
do cidadão, um dever individual causado e justificado pela situação econômica
promovida pelo modo de funcionamento do capitalismo.
A tentativa de governo de se desresponsabilizar dos seus deveres constitucionais e
dos seus atos públicos, em nosso entender, constitui-se em um jogo político em que
as forças sociais hegemônicas, defendendo seus interesses econômicos, alimentam
estratégias que buscam diminuir cada vez mais a participação do Estado na
promoção e defesa das políticas sociais públicas, como educação e saúde. Essa
prática política não tem ajudado no enfrentamento dos problemas que a educação
vem enfrentando historicamente. Principalmente a de ser considerada como
prioridade pública real nos planos de governo.
Pode-se observar o movimento de desresponsabilização por parte do Estado,
quando a SEDU (1999, p. 3-4) avalia a situação dos alunos nas escolas e a sua falta
de flexibilidade pedagógica, dizendo:
Sabemos que os fatores intra e extra - escolares, responsáveis pela repetência e evasão são muitos, citaremos alguns. Alunos que: são carentes alimentares; sofrem de deficiência de saúde; são solicitados a contribuir para o aumento da renda familiar; não dispõem de tempo para estudar fora da escola; não contam com acompanhamento de algum familiar durante o ‘tempo’ de estudar em casa; estão sujeitos a um currículo que se apresenta em dissonância com a sua realidade e com as suas necessidades; são induzidos a se conformarem com os padrões pré-estabelecidos de desempenho; são submetidos a um sistema de promoção rígido; não conseguem estabelecer relação entre seus próprios padrões culturais e as expectativas da escola, evidenciando um hiato cultural entre aluno/escola; adquirem ou reforçam na escola uma imagem negativa; e ainda funcionamento inadequado das unidades de ensino, com a ausência de recursos humanos, de lideranças afirmativas/construtivas e/ou projetos pedagógicos; bem como ausência de ação cooperativa entre família e escola [...]. Cabe aos agentes educacionais a busca intermitente da indispensável competência profissional.
Durante a primeira Gestão Municipal, muitas foram as discussões com o
SINDIUPES em relação à organização da educação municipal. Nessas discussões
sobre a gestão democrática da educação, questionava-se a incorporação da
educação infantil no organograma da Secretaria da Educação.
A educação infantil, antes vinculada à Secretaria de Ação Social, a partir de 2000
passou a ser integrada à Secretaria de Educação, atendendo, assim, às novas
131
orientações da LDB para que a educação municipal pudesse ser elevada a Sistema
Municipal de Educação.
Com relação aos gastos com a educação, observa-se que o percentual tem sido
sempre maior que 25%. Isso não porque a Administração coloca como prioridade
política, mas devido à relação arrecadação e custo-aluno. Como exemplo, em 1998,
o percentual foi de 29,29%; em 1999, o percentual foi de 29,74%.
Apesar desse maior gasto, ao mesmo tempo, pouco ou nada se verificou em termos
de melhoria na política salarial, com relação à reposição da inflação e ganho real
para o magistério. Como já indicamos, o que se viu, em termos de política
econômica, foi a redução de direitos conquistados historicamente, como o biênio e
decênio (redução de 25% para 10% na base salarial). Nesse processo, os mais
prejudicados foram os trabalhadores com contratos temporários desde 1999 até
2008, que passaram a perceber pelo nível inicial, independentemente da sua maior
titulação.
Por sua vez, os professores estatutários ficaram de 1998 a 2004 sem receber as
progressões devido a Administração Municipal não ter constituído a comissão de
regulamentação do processo de merecimento do PCV, que deveria ter sido
constituída em 120 dias após a aprovação da lei.
Essa ação se deu de forma diferenciada entre efetivos e não efetivos. Ainda temos
nessa conta os profissionais que recebem pelo piso inicial, por pertencerem ao
Regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), e não ao quadro estatutário. A
tendência desse grupo é ser extinto com as respectivas aposentadorias, sem ver, no
plano econômico, o seu trabalho reconhecido pela Administração.
Com relação à jornada de trabalho, pode-se dizer que pouco debate se fez em
relação ao tema, apesar de há muito tempo estar em cena, principalmente quando a
discussão se refere à relação trabalho em sala de aula e trabalho de
planejamento/formação.
Nessa questão, o Órgão Central exercia a prática de controle. Por meio dos
dispositivos jurídicos, o controle se impõe no cotidiano escolar, colocando em
132
interrogação o discurso da autonomia da gestão escolar, principalmente quando se
realizam projetos e se incentiva a formação fora do horário de trabalho.
A autonomia de gestão escolar se viu comprometida, uma vez que a escola foi
obrigada a “prender” o professor na escola para cumprir o planejamento individual
sem oferecer uma biblioteca com um arquivo acadêmico amplo e atualizado, sem
um computador nem internet e sem sala para estudo e pesquisa. Além disso, com a
obrigação das quatro horas consecutivas exigidas pela LDB com o aluno, pouco se
pode mexer no horário para a realização de reuniões e estudos coletivos, já que a
jornada de trabalho, na sua maioria, é de 25 horas semanais e pouco sobra para a
realização de atividades extraclasse dentro de jornada de cinco horas diárias de
trabalho.
No documento do II Encontro Pedagógico Administrativo de Diretores Eleitos (2000),
a posição é de que:
Será de 25 horas semanais sendo 1/5 destinado ao planejamento a ser cumprido na Unidade de Ensino. (Ver Estatuto do Magistério Público da Serra – Lei nº. 2172, Art. 34 § 1º ). Cabe ao diretor fazer cumprir o dispositivo no artigo e parágrafo acima citado, não tendo autonomia para autorizar a redução da carga horária do professor (p. 9).
Num outro sentido, quando a Administração precisa de reuniões com todo o corpo
docente, ela organiza esses encontros em horário que não permite o cumprimento
das horas consecutivas exigidas por lei.
Outra situação que podemos elencar é no que diz respeito à necessidade de a
escola fechar o seu horário de aulas e “solicita” que o professor assuma mais turmas
para ajudar na organização pedagógica da escola. Nesse caso, diz-se que o próprio
professor também será beneficiado, na medida em que receberá um complemento
salarial pelas aulas incorporadas a mais. Na verdade, o que ocorre, geralmente, é a
redução do número de planejamento/estudo professor e, dependendo de como ficou
a carga horária do professor, por “acordo interno” na escola, o seu
planejamento/estudo passa a ser realizado nos intervalos de um turno para o outro.
A produção de autonomia na escola fica comprometida, na medida em que a
Administração Central se abre a discutir a possibilidade de aumento das horas de
planejamento/estudo e atividades extraclasse dentro da jornada de trabalho
133
existente, visto que é possível que se tenham “sobras” de aulas por disciplinas na
organização final do horário da escola, que poderiam ser transformadas em hora de
planejamento/estudo. Assim sendo, com o impedimento de transformar essa “sobra”
de aulas em atividades extraclasse e pressionado pela possibilidade de cumprir o
restante de sua carga horária em outra unidade escolar e em outro turno, já estando
na escola e com um algo mais em seu salário, “convence-se” o professor a ministrar
mais aulas.
A discussão da divisão da jornada de trabalho entre aulas e outras atividades
extraclasse é de grande importância para um projeto que busque a construção de
uma escola com qualidade social e, por isso, entende ser necessário investir na
valorização social e econômica do trabalho docente.
Considerando tal discussão, uma ação efetiva pode resultar em: investimento
político-econômico em planos de formação em serviço; cursos de capacitação com
licença remunerada; investimento em condições de trabalho; facilitação para a
realização de atividades de pesquisa; e modos de gestão que favoreçam o
fortalecimento do trabalho coletivo. Essas ações podem ser elementos
potencializadores para se fortalecer a gestão do trabalho docente em favor de um
melhor aprendizado por parte do aluno e a produção da qualidade social da escola
como um bem comum à sociedade.
A categoria do magistério vem colocando historicamente a necessidade de se
estabelecer uma melhor relação aula e atividade extraclasse – planejamento,
formação e pesquisa. Hoje, um 1/5 da jornada de trabalho, geralmente de 25 horas
semanais, tem sido insuficiente para se pensar o trabalho docente e a escola na sua
diversidade.
A discussão da qualidade da educação necessariamente passa pela construção de
políticas que incorporem a questão da jornada de trabalho e, também, o padrão
máximo de alunos por turma.
Com relação ao número de alunos por sala de aula, não é possível aceitar que a
solução para essa questão seja construir salas de aula maiores combinadas com a
possível instalação de sistema de som, para que o professor não sacrifique a sua
voz. A questão do atendimento ao aluno em sala de aula deve ser considerada
134
como dispositivo importante para a melhor relação professor-aluno e produção de
saberes e conhecimento. Soluções que não tomam esse rumo de análise reforçam a
busca de qualidade comprometida com otimização de espaços e recursos defendida
pela gestão gerencialista.
Apostar nessa direção significa dizer que o professorado não precisa de tempo para
dialogar e deve permanecer com pouco tempo para socializar as dificuldades, limites
e as potencialidades do seu trabalho com os outros trabalhadores da escola e,
principalmente, com os alunos (razão e objetivo da existência do trabalho docente).
Nessa direção, a escola se faz comprometendo a visibilidade de experiências,
estratégias e saberes que são produzidos no cotidiano escolar.
Com relação à infraestrutura, de 1997 até 2001, a Prefeitura indica a construção 14
unidades escolares. Quanto à questão da infraestrutura, as escolas foram
construídas com a mesma quantidade de salas de aula. Na maioria das vezes, sem
uma consulta aos trabalhadores da educação sobre como deveria ser o projeto da
escola a ser construída, ou mesmo que padrão de qualidade os prédios escolares da
Serra deveriam seguir.
Com isso, o que se viu foi a construção de prédios escolares novos e com as salas
de aula maiores. O que se produziu, em termos de melhorar a infraestrutura das
escolas, foi o aumento de alunos por turma, provocando, em muitas unidades, um
excesso de alunos por professor, dificultando a tarefa pedagógica em sala de aula
no sentido de dar mais atenção a cada aluno. O discurso da Administração (como o
do Pró-Escola) era de que, mesmo com a construção de novas unidades, não foi
possível absorver a população em idade escolar do município. Nesse sentido, o
sacrifício deveria ser de todos. O importante era trazer e manter a criança e o
adolescente na escola.
A legislação estadual, Resolução nº 132/96 do Conselho Estadual de Educação
(CEE), que orientava a educação municipal, indicava o máximo de 25 para as 1ª e 2ª
séries; 30 para as 3ª e 4ª séries; e 35 de 5ª a 8ª séries. Mesmo assim, escolas
trabalharam com quantidade de alunos superiores à recomendada pela Resolução.
Nessa discussão, o que prevaleceu foi a prática da referência da metragem da sala
de aula por aluno para, em muitas situações, quando se fazia necessário, se
135
sobrepor o que indicava a legislação do CEE em relação ao número de alunos por
turma/série.
A partir dessas novas orientações, o professor passou a conviver com mais alunos
na sala de aula, mesmo nas escolas que não tinham prédios novos e, portanto,
salas novas e maiores.
Mesmo a Serra não aderindo ao processo de municipalização promovido pelo
Estado durante 1997 e 2004, é possível observar um aumento progressivo de alunos
na rede de ensino. Com isso, produziu-se um maior número de alunos por turma na
rede de ensino municipal.
Segundo a publicação “Serra: perfil socioeconômico” (2007 p. 96), a rede atendia
27.401 alunos(as) em 1997; 29.355 em 1998; 32.341 em 1999; 34.441 em 2000;
37.532 em 2001; 41.002 em 2002; 44.182 em 2003 e; em 2004, o município da
Serra, conseguiu atender a 48.200 alunos(as),46 na educação infantil, classe
especial, ensino fundamental, ensino médio (até o ano de 2000) e ensino supletivo
(noturno).
Com relação ao contingente de docentes no município, a mesma publicação indica
seguintes números: 1.800 professores(as) em 1997; 1.855 em 1998; 1.971 em 1999;
2.008 em 2000; 2.121 em 2001; 2.277 em 2002; 2.323 em 2003 e; 2.449 em 2004,
de professores(as) com contratos administrativos (temporários), celetistas e
estatutários(as).
Estabelecendo uma relação entre esses dois dados, a publicação indica que o
número de alunos por professor foi o seguinte na rede de ensino: em 1997, a
relação foi de 15,69, chegando, em 2000, ao patamar de 17,47 e em 19,07 alunos
por professor no ano de 2004.
Esses dados, por si sós, indicam o aumento do padrão de alunos por turma na rede
municipal, mesmo sem considerarmos que, do ensino fundamental em diante, cada
turma tem mais de um professor e/ou disciplina curricular no decorrer do ano letivo.
46 Os dados apresentados são da publicação Serra em números, jun. 2004, p. 69.
136
O debate do padrão máximo de alunos por turma – como comumente se intitula
essa discussão – é um debate nacional, que se incorpora com o debate da
qualidade do ensino e da valorização do trabalho docente. Como já citamos, a CNTE
vem defendendo historicamente a relação de 25 alunos por professor/turma. Na
escola, essa realidade, muitas vezes, é bem diferente e o professor se vê obrigado a
trabalhar com salas com quantidade de alunos superior a 30, 35 e 40 alunos no
ensino fundamental.
A Serra, com o processo de transferência dos alunos da rede estadual, em função
das greves do magistério, com uma rede de ensino cada vez mais presente nas
comunidades serranas e uma política de receber toda criança na escola, produziu o
aumento crescente de alunos por turma.
Tal situação levou o município, em frente aos questionamentos do magistério
Serrano e do SINDIUPES, a adotar a resolução prescrita pelo Conselho Estadual de
Educação (CEE) - Resolução nº 132/96, como referência. A rede de ensino
municipal não era ainda sistema de ensino e, portanto, estava submetida às
regulamentações do sistema, apesar de já ter seu Conselho constituído.
Essa Resolução acompanha as orientações da Nova LDB, que indica que cada
sistema poderia estabelecer o padrão máximo de distribuição de alunos por turma.
Assim, em seu art. 2°, encontra-se a seguinte referência: “I - Educação Infantil –
maternal, 15; jardim, 20; pré-escola, 20 alunos. II - Ensino Fundamental – 1ª e 2ª
série, 25; 3ª e 4ª série, 30; 5ª a 8ª série, 35 alunos”.
Apesar da adoção dessa orientação legal-administrativa do CEE, percebeu-se que,
na prática, a Resolução não foi respeitada em unidades de ensino da rede. As
turmas, em suas respectivas modalidades e séries apresentaram, em geral, um
número de alunos superior ao previsto na Resolução nº 132/96.
Podemos dizer que essa situação foi um dos efeitos do processo de municipalização
do ensino no Estado, que veio contribuir para modificar a organização da atividade
do trabalho escolar e a gestão do dia a dia do professor nesse cenário.
Essa situação teve como efeito uma carga maior de tarefas incorporadas ao trabalho
docente. O professor precisou absorver mais tempo para a correção de trabalho,
137
produzir mais estratégias para o acompanhamento individual, para manter controle e
disciplina da turma e, também, mais tempo para se dedicar a estudos sobre os
modos de atender aos diferentes interesses e práticas presentes na sala de aula.
A Rede de Ensino da Serra passou a se organizar como Sistema Municipal a partir
de 2003 e, mesmo assim, o Conselho Municipal de Educação reeditou o conteúdo
da Resolução Estadual como padrão regulamentar para as unidades de ensino do
município da Serra. O padrão de distribuição de alunos por turma vigorou até 2007.
Hoje, a resolução municipal incorporou mais cinco alunos no padrão das referências
do ensino fundamental.
Esse aumento no padrão de referência de alunos por turma foi uma decisão política
para atender à demanda por escola em que o CMES dispensou a Administração
Municipal de construir mais escolas, impedindo, assim, uma quantidade de salas de
aula adequada e a efetivação de mais professores para a rede de ensino do
município.
Como nos colocou um professor durante a pesquisa:
A Prefeitura via o professor como um operário, como o filme em que o Chaplim está lá apertando parafusos, porcas. A qualidade do ensino e a saúde do professor era detalhe, o que importava era a quantidade. A escola aceitava o aluno e, quando o professor chegava, era mais um na turma e pronto. A Secretaria e a direção de escola se valiam do discurso do Projeto Pró-Escola e do estatuto, do ECA, de que não se pode deixar criança fora da escola. Com isso, era o professor que ‘ralava’ na sala de aula. Tinha que dar conta com material ou sem, com sala grande ou pequena, aluno defasado, alfabetizado ou não, era ele que se virava.
Esse processo, combinado com a visão gerencialista, produziu a adesão ao discurso
da otimização dos recursos destinados à educação como se esse tipo de otimização
fosse sinônimo de uma melhor aplicação e a ampliação desses recursos em nome
da qualidade social da educação e valorização do trabalho docente.
Além disso, esse “novo” modo de gerir o trabalho escolar atua com a imposição de
metas de aprovação escolar, considerando o modo pouco flexível de organização
das escolas, em que o professor tem pouco tempo (1/5) de planejamento e para as
avaliações recorrentes da atividade docente. É possível indicar que há, nesse modo
de operar a gestão entre a política geral e a política local, uma prática de
economizar recursos, aumentando o ritmo e a carga de trabalho do professor: maior
138
número de alunos em sala de aula significa mais correções, produção de mais
tarefas, dispêndio de mais energia corporal, mais uso da voz e tudo dependendo das
condições de trabalho disponíveis na escola.
A política de redução de custos produzida, invisivelmente, pelo aumento da carga de
trabalho do professor não se reverteu em melhorias significativas nas escolas, não
melhorou a política salarial, não produziu políticas de formação em serviço e nem,
tampouco, resultou em melhores condições de trabalho e de saúde na rede de
ensino. Parece-nos que não se produziu um processo de atribuir valor, por parte do
governo, ao trabalho escolar como bem comum público.
Entendemos que a educação como bem comum e como valor sem dimensão não
deveria ser negligenciada. O que foi realizado nesse período parece ter muito de
exigências legislativas e pouco de diálogo com os trabalhadores da educação, no
sentido de compreender suas reivindicações e a questão da saúde no ambiente
escolar.
Nessa estratégia política de economia de custos da Administração, quando ela
encontra espaço, também economiza nas políticas de infraestrutura, como disse o
professor:
Em relação à construção da escola, fomos convidados a escolher o projeto de escola que desejávamos. Foi-nos apresentado o projeto do Manoel Carlos como referência. Escolhemos o seu projeto como norteador do nosso. Depois do início da construção, verificamos que o projeto foi modificado e reduzido com a justificativa da falta de verbas. Essa forma de operar resultou na retirada do auditório do projeto, como, também, verificamos a queda de qualidade dos materiais empregados na construção. Tanto que, no dia da inauguração, a escola nova amanheceu inundada. Com as chuvas, constatou-se que as águas desciam pelas paredes novas, pelas tubulações elétricas. Até hoje o problema não foi resolvido. A escola velha chovia dentro e a escola nova também continua chovendo dentro.
Essas situações vividas na escola interrogam de fato se a educação foi prioridade no
projeto político de governo desse período, como se divulgou nos documentos oficiais
e na mídia. Ou o que significou prioridade?
O questionamento caminha no sentido de saber se o ensino público e o trabalho
docente são apenas apêndices assistencialistas da política econômica. Seriam
serviços do Estado que se colocam submissos aos interesses da política de
mercado em detrimento da valorização das políticas sociais?
139
Em nosso entendimento, escola pública não deve ser produzida tendo como objetivo
o desenvolvimento e a afirmação dos interesses do mercado, em que o Estado, por
meio das políticas educacionais, tenta produzir uma escolarização minimalista, em
que o objetivo se resume em capacitação das crianças, jovens e adultos para a
tarefa de ler e escrever para servir como força de trabalho para o capital.
Escolarização essa entendida como apenas gasto de recursos financeiros e não
como investimento público social fundamental à afirmação da vida como bem
comum e como produtora de novos modos de existir/viver/trabalhar mais coletivos.
Dessa primeira gestão, percebemos que, devido às condições físico-estruturais e
políticas em que se encontravam a educação municipal, o debate sobre valor da
ação do trabalho docente como um bem comum ficou restrito à direção sindical no
jogo de poder que acontece na relação de negociação com a Administração e,
assim, menos intenso, nesse primeiro momento da Gestão Municipal, entre os
docentes que militavam na escola.
As ações desenvolvidas pela Administração, em sua maioria, estiveram
comprometidas com uma estratégia de entender a nova legislação de forma que se
mantivesse um controle sobre a gestão da escola de modo que ela se tornasse mais
eficiente e produtiva. Esse processo se efetivava mesmo com as condições
adversas em que se encontrava a educação municipal e com a adesão dos novos
projetos em frente às questões de evasão e repetência escolar.
Do ponto de vista da formação e qualificação profissional, como mais um exemplo,
pode ser citado o Programa de Capacitação (PROCAP), destinado a “[...]
desencadear um processo de capacitação permanente tendo a escola como centro
de excelência onde as propostas deverão surgir de acordo com as suas
necessidades” e, também, “[...] promover a manutenção da capacitação
complementar permanente, assim como, o nível de competência do corpo docente”.
O PROCAP buscou atender os professores de séries iniciais do ensino fundamental,
a partir de setembro de 1999. Sua carga horária se dividia em duas etapas de 180
horas e em módulos de ensino referentes a reflexões sobre a prática pedagógica. A
Rede Municipal trabalhou com 13 grupos de aprendizagens permanentes integrados
em diferentes regiões geopedagógicas.
140
Dentro dessa estratégia, buscou-se também estabelecer práticas de controle sobre
os professores, de modo que eles aderissem aos projetos de gestão e de ações
pedagógicas emergenciais para melhorar os índices escolares. Buscou-se trabalhar
uma visão de gestão democrática próxima do ideário participativo que,
historicamente, circulava na categoria. Essa adesão por parte dos professores
deveria se dar a partir de um compromisso missionário com a educação, sem
considerar a questão da política econômica.
Nessa primeira gestão, as discussões e ações voltadas à valorização do trabalho
docente estiveram muito próximas das discussões e ações que visavam a ampliar o
acesso e a permanência do aluno na escola, combinada com um discurso de
qualidade fundada na otimização dos recursos e comprometida com metas
preestabelecidas pela lógica do mercado, de resultados de produtividade: aprovação
e permanência na escola.
Essas diferentes análises, no conjunto da categoria, não se colocam como
excludentes. Nas assembleias, essas visões são expressas. De fato, elas podem
produzir efeitos diversos nas escolas, considerando as condições vividas em cada
uma delas e os interesses diversos presentes na educação, comprometidos com a
valorização social do trabalho docente numa perspectiva mais ampla e social. Ou
seja, que possa fazer dele uma produção de bem comum, cujo valor de uso (e de
troca) seja a afirmação da vida como princípio da relação pedagógica.
Para o movimento sindical que se encontrava num movimento de ações defensivas,
foi um período de incorporação de outros debates de valores ainda com pouca
visibilidade no cenário da luta política. Nesse sentido, o SINDIUPES passou a
incorporar no seu cotidiano debates como a questão de gênero, o combate ao
racismo e a saúde do trabalhador em educação. Essas novas pautas de discussões
acabaram por ampliar as propostas em torno da questão da valorização do trabalho
docente.
Com relação ao Conselho de Escola, é possível dizer que, no início, o Conselho
exercia um papel mais participativo na escola, mas essa participação estava mais
direcionada à fiscalização das questões administrativas e financeiras em relação às
exigências legislativas. As questões pedagógicas e do valor da ação do trabalho
141
docente ficavam à parte da discussão. Quando chegavam a ser pautadas, dava-se
por conta de paralisações do magistério e de “queixas” em relação ao
comportamento do discente e do docente na escola.
Concordando com a fala de um dos professores participantes da pesquisa, é
possível dizer que, com a passar do tempo, de um modo geral, o Conselho foi
perdendo força política. A conjuntura e a política desenvolvida pela Administração foi
conseguindo, em muitos casos, o atrelamento dos membros do Conselho de Escola
à dinâmica de gestão imposta pela direção, como grupo de apoio às ações da
direção e da SEDU/Serra. O Conselho de Escola passou a ser também lugar de
promoção pessoal, de visibilidade política eleitoral na comunidade local, quando
deveria ser lugar de diálogo propositivo e com força política para cogerir a escola
com o diretor. Hoje é muito difícil um Conselho ter autonomia política.
Uma outra situação colocada é que, no município da Serra, o diretor de escola é
membro nato do Conselho e ainda pode exercer a Presidência desse órgão, se for
eleito. Consideramos importante que o diretor faça parte do Conselho. A questão é
que o Conselho surge não só para tomar a gestão escolar mais participativa, mas
também para fiscalizar e propor soluções para as ações da direção e da comunidade
escolar em favor do desenvolvimento, promoção e manutenção do ensino de
qualidade.
Segundo relato de um professor, o Conselho já foi capaz de exonerar um diretor de
escola pelo seu nível de organização e participação. “Hoje, a gente vê os Conselhos
a reboque da direção e da política da Secretaria, do prefeito”. Para esse professor, é
fundamental que a categoria tenha capacidade de reagir e se colocar como sujeito
da história diante do prefeito e, também, do próprio sindicato que anda enfraquecido,
mesmo fazendo a ressalva de que o sindicato somos todos nós.
Como nos coloca um dos participantes da pesquisa:
É importante dizer que essa gestão teve méritos. Ela foi capaz de neutralizar o poder de intervenção que o SINDIUPES tinha na Serra e impor, principalmente na primeira gestão, o seu plano político de organizar a educação segundo a visão de escola pensada a partir da qualidade total. Fez a reforma estatutária, começou a pagar o contrato administrativo pelo piso salarial do cargo, sem considerar a maior titulação do contratado. Não é a toa que o Prefeito foi reeleito praticamente sem oposição. E depois elegeu a deputada estadual somente com os votos dos serranos.
142
5.2.2 O segundo mandato municipal na educação: 2001 – 2004
O segundo mandato da educação serrana teve uma outra configuração político-
administrativa. A reeleição do Prefeito foi confirmada com um novo vice-prefeito na
chapa para a gestão 2001 – 2004. Nessa gestão, pela Pasta da Educação passaram
três secretários.
O segundo mandato municipal começou tendo como chefe da Pasta da Educação
um ex-secretário estadual da Educação. O novo secretário teve como principal
incumbência efetivar o convênio Escola Campeã, firmado com o Instituto Ayrton
Senna, Fundação Banco do Brasil e Fundação Pitágoras. Durante a sua
permanência na Secretaria, essa foi a sua principal ação, já que as negociações
com a categoria do magistério se davam com o grupo da coordenação de governo
(Administração, Finanças, Planejamento, Obras e Educação), chefiado pelo prefeito.
Em 2003, assume a Pasta da Educação o até então secretário de Administração,
com o objetivo de encontrar soluções para os impasses de negociações com a
categoria e, principalmente, ampliar sua ação política no município para concorrer ao
cargo de prefeito municipal. Fato que se confirmou nas eleições de 2004. O último
secretário assumiu para cumprir o final do mandato dessa gestão.
Nessa segunda gestão, a relação com a categoria do magistério passa a ser de
tensão e confronto. O magistério avaliou que já dera sua “cota de sacrifício” e,
agora, mereceria ser reconhecido pela Administração Municipal, tanto em relação à
questão salarial, quanto no que se refere às questões relacionadas com a
organização do trabalho escolar (jornada de trabalho, condições de trabalho) e a
questão da política de formação combinada com ações de promoção funcional.
Nessa segunda gestão, considerando o aumento significativo das verbas para a
educação municipal, recomeçam as ações de mobilização e de paralisação da
categoria, no sentido de remover a Administração da sua política de otimização de
recursos para a educação sem uma discussão mais ampla com a comunidade
escolar e com os trabalhadores da educação em relação à política salarial.
143
A Rede de Ensino Municipal da Serra, em 2002, já contava com 50 escolas de
ensino fundamental (EEF), com 524 professores de 1ª a 4ª séries e 741 professores
de 5ª a 8ª séries. Também tinha com 41 centros de educação infantil (CEI), com 542
professores nessa etapa de ensino.
Ao diretor eleito era dito: “Agora você é o representante da Secretaria da Educação
na Comunidade Escolar. Você tem que defender nossos interesses”. A pressão da
Administração sobre os dirigentes escolares era para manter a escola organizada e
funcionando, atingindo as metas desejadas de aprovação e os professores em sala
de aula cumprindo suas tarefas à sua própria sorte.
A busca pelo controle das ações das escolas por parte da Secretaria de Educação
era uma constante, tendo em vista que o debate da educação se tornasse
efetivamente público e com maior participação dos movimentos sociais.
Com relação à política de formação (continuada), vale ressaltar que as ações
continuaram na mesma lógica, com capacitações voltadas para “projetos especiais”
e questões específicas, como o programa de aceleração da aprendizagem,
educação inclusiva e especial. Além disso, o período destinado à capacitação “em
serviço” continuou sendo privilegiado fora do horário de trabalho. Com essa política,
muitos professores se viram obrigados a não participar dos grupos de estudos, na
medida em que, com mais de uma jornada de trabalho, seria difícil manter esse
compromisso com a formação nessas condições institucionais oferecidas.
Com relação à questão da valorização econômica do magistério, a Administração
buscou reduzir ainda mais os salários da Categoria. Além de pagar os contratos
temporários pelo piso inicial do PCV desde 1999, a Prefeitura levou um projeto à
Câmara Municipal, que não foi aprovado, para pagar aos recentes empossados
também pelo piso inicial até o fim do período probatório.
Essas ações pensadas no plano econômico indicam e reforçam o tipo de projeto de
qualidade da educação que se buscava implementar nas escolas da Serra: uma
educação de resultados na lógica de uma gestão empresarial/gerencialista pensada
a partir produtividade/eficiência, relação custo/benefício.
144
As ações políticas da Administração para o período 2001 – 2004 que mais
marcaram a educação municipal no plano da gestão foram: o Projeto Escola
Campeã47 acompanhado do Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE) –
respondendo ao convênio realizado com o Instituto Ayrton Senna; a manutenção das
eleições para a direção escolar (incluindo agora os centros de educação infantil) e
Conselho de Escola na agenda da política educacional do município, respondendo
aos princípios orientadores da LDB.
Contudo, esse plano de gestão, defendido nas ações políticas, deveria estar
comprometido com os interesses da Administração em detrimento dos interesses da
comunidade escolar e, em particular, dos interesses voltados para o processo de
atribuição do valor de uso do trabalho docente. Isso, mesmo apresentando um
discurso de democratização e qualidade de educação, combinado com a promoção
da participação dos movimentos sociais.
No Plano Anual de Trabalho da SEDU/Serra de 2002 que, pode-se dizer, representa
as bases políticas da segunda gestão (2001- 2004), é expresso que:
É neste campo de interação que as mudanças na rede municipal de ensino foram projetadas e estão se concretizando. Esse processo ocorre através do fortalecimento das várias instâncias de participação no cotidiano escolar: O Programa Escola Campeã, a construção do Plano Municipal de Educação, a informatização das escolas, a reestruturação curricular, criando um currículo mais significativo, através do diálogo entre os diferentes saberes, a implantação dos Conselhos de Escola e a eleição direta das equipes diretivas, concretizando a participação da comunidade na escolha dos articuladores da proposta da escola (p.7).
Continuando a apresentar a concepção de educação pela qual a SEDU/SERRA diz
se orientar, temos o seguinte texto:
Vislumbramos a educação como um processo que não acontece apenas nos limites da escola, mas no conjunto dos espaços educativos existentes na comunidade. Aproximações sucessivas rumo a uma educação com a qualidade social estão presentes nos projetos incluídos neste Plano Anual de Trabalho, articulado com as unidades da Administração Municipal.
47 O Escola Campeã foi criado pelo Instituto Ayrton Senna e implementado em nível nacional em 2001, apresentando o seguinte objetivo: “[...] o Programa Escola Campeã visa contribuir com a melhoria da qualidade do ensino fundamental por meio do fortalecimento da gestão das secretarias municipais de educação e da gestão das unidades escolares, buscando sua autonomia administrativa, financeira e pedagógica”. Disponível em: <http//www.fundamento.com.br/site/release.asp?tipo=0&id=565>. Acesso em: 28 abr. 2008.
145
Parece-nos que, entre as ações previstas e efetivadas e a concepção de educação
apresentadas pela Secretaria, há certa distância, considerando o que se viveu nas
escolas da Serra nesse período, como: falta de material didático, falta de material de
limpeza (papel higiênico), salários baixos e a política da Escola Campeã.
Discutindo essa questão nas entrevista, um dos participantes diz:
A gente faz muito pela escola e é pouco reconhecida pela Secretaria. Nós temos muito de missionários, mas nosso trabalho não é uma missão divina e materna. Pode ser de sacrifícios! Se a gente lembrar do que era a escola, o espaço alternativo e do que era o nosso salário. Penso até que é preciso muito amor para ser professor, porque não é fácil passar pelas situações que nós passamos em sala de aula e na escola. Ter que ser assistente social, psicólogo, médico, pai e mãe não nos cabe, mas o somos muitas vezes sem querer. Parece fazer parte do estatuto da profissão. Enchem as salas de alunos, nos dão pouco tempo para conversar e planejar/estudar como os colegas e ainda tentam impedir de discutirmos nossos problemas nas assembléias do SINDIUPES.
Continuando a discussão sobre a distância entre o planejado e o vivenciado nas
escolas, é possível citar o Escola Campeã em Serra como exemplo de uma política
que trilhou essa discussão. A Escola Campeã foi um programa que trabalhou a
implantação de um novo modelo de gestão educacional, que assegurasse educação
com qualidade para a infância e a juventude, por meio da otimização do
gerenciamento da educação pública e com a transformação das escolas em
“escolas eficazes”.
Com esse espírito gerencialista, o Programa foi desenvolvido durante toda essa
segunda gestão, buscando, a qualquer preço, atingir as metas, os resultados
predeterminados para o sucesso escolar eficaz.
Dando sustentabilidade a esse programa, foi aplicado, nas escolas do município, o
Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE), para respaldar, administrativamente, as
ações do Programa Escola Campeã na unidade de ensino, objetivando minimizar os
riscos externos que passaram a habitar o cotidiano da escola pública.
Segundo Fernandes,48 as ameaças – riscos – precisam ser minimizadas. Diz a
autora:
48 Texto disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt05/t0511.pdf.>. Acesso em: 28 abr. 2008.
146
[...] o manual do ‘Produto PDE’ coloca que elas são situações externas que podem afetar ou não a escola. Se detectadas a tempo, podem ter seus impactos minimizados. Interessa destacar que foram consideradas como ameaças, a partir de exemplos extraídos do manual do “Produto PDE”, situações como: baixa renda familiar; desvalorização do magistério; greves; baixo nível de preparação dos alunos que ingressam na escola etc. Uma lógica asséptica, preventiva, de minimização de custos, implícita na mediação técnica, levou a escola pública municipal, situada em espaço urbano marcado pela pobreza e miséria de toda ordem, a considerar a realidade de seu aluno concreto [...].
A lógica desse plano de gestão pode ser observada nos “Ingredientes Para Uma
Escola Nota Dez” apresentados à Rede Municipal de Ensino pela SEDU/Serra. São
eles:
1. O diretor é o líder educacional. O diretor provê forte liderança e trabalha em direção aos objetivos definidos para a escola.
2. Escola atrativa e segura. O pessoal técnico e administrativo cria uma atmosfera na escola que seja de ordem, de seriedade, de segurança e atrativa sem, no entanto, ser opressiva.
3. A equipe da escola combate a ausência e a evasão escolar. 4. Os pais trabalham para melhorar o programa de aprendizagem. Os
pais se envolvem na melhoria do programa educacional e a escola agradece a participação dos pais e responde às suas expectativas.
5. A equipe escolar acredita que os alunos podem aprender. O diretor e os professores acreditam fielmente que seus alunos podem aprender tanto quanto qualquer outra pessoa e eles trabalham firmemente nesta direção.
6. Aprender a ler e escrever é a primeira prioridade. A equipe escolar define a alfabetização como a primeira prioridade da escola e utiliza todos os recursos da escola para que isso aconteça.
7. A maior parte do tempo do aluno é gasto com atividades de aprendizagem. O calendário escolar e as práticas do dia-a-dia de toda a equipe escolar ajudam a criança a despertar o máximo de seu tempo na escola em atividades de aprendizagem.
8. Freqüente controle do progresso do aluno. O diretor e os professores controlam frequentemente para ver se os alunos estão aprendendo e usam essa informação para tornar o programa educacional mais efetivo.
9. A equipe está sempre ligada aos objetivos da escola. A equipe ajuda os professores a atingir os objetivos prioritários da escola.
10. Programas especiais para crianças com dificuldades de aprendizagem e outras dificuldades são cuidadosamente organizadas para atender às necessidades dos alunos e são compatibilizados com os programas de aprendizagem da escola (SECRETARIA MUNICIPAL DA EDUCAÇÃO DA SERRA, 2002, p.101 - 102).
A aposta na escola nota dez seguia na direção de reforçar também os projetos Pró-
Escola, os Programas de Aceleração de Aprendizagem já em curso, com receitas
aplicadas a atingir os resultados de rendimento escolar previstos pela Escola
Campeã. Mas, nem por isso, segundo “Relatório do CMES”,49 os resultados
49 O Relatório do CMES diz que: apesar do Programa Escola Campeã apresentar, em 2004, um índice de aprovação geral de 91,6%, é fácil perceber que em nenhuma das 3 séries pesquisadas pelo
147
apresentados foram positivos. Tais resultados, apresentados pelo CMES e
considerando as metodologias e a concepção teórica do programa, podem ter sido
fundamentais para a não renovação do convênio com o Instituto Ayrton Senna.
Uma outra questão que pode ter contribuído para o insucesso da Escola Campeã,
considerando o ponto de vista governamental, assim como de outros Programas e
projetos externos à realidade escolar e municipal, é sinalizada por Almeida (2006,
p.66),50 quando argumenta:
Uma das deficiências visíveis das políticas públicas é seu modelo descendente, pois as soluções propostas por programas de iniciativa pública geralmente não são criadas pelas instituições educacionais onde os problemas emergem ou para onde convergem. Questionamos se as próprias instituições não têm capacidade para criar suas próprias soluções e serem mais eficazes nesse processo que o governo ou organizações não-governamentais (ainda que estas sejam bem intencionadas em suas propostas) (p. 65). [...] O Programa Escola Campeã aponta que os problemas políticos e sociais como a evasão escolar, a repetência, a falta de recursos financeiros, devem ser resolvidos com soluções técnicas. Um dos argumentos centrais é o de que todos os problemas existem por causa da má administração, porque as instituições escolares não são eficientes e eficazes como deveriam ser .
Projetos que não contemplam espaços para a análise das experiências vividas, da
gestão e da produção de saberes dos docentes nas escolas, não são priorizados
pelos gestores e técnicos, que se mantêm estranhos ao modo de se organizar a
escola e as estratégias para dar conta da tarefa de ensinar/educar os alunos.
O Programa Escola Campeã segue essa linha utilitarista e autoritária de uma gestão
com protocolos e ações preestabelecidos a uma determinada realidade que lhe é
estranha. Esses programas educacionais estrangeiros e marcados por uma lógica
de gestão baseada no controle, na hierarquia, no autoritarismo e na programação
SAEMS encontramos um índice próximo a esse, pelo contrário, todos os índices apresentados pelo SAEMS estão muito abaixo dos índices apresentados pelo Programa Escola Campeã. Qual dos dois instrumentos de avaliação, então, expressa o vivido? É importante destacar o contexto e o caráter das duas avaliações. Enquanto o SAEMS é feito no fim de cada ano em uma única vez, o Programa Escola Campeã é desenvolvido durante todo o ano letivo. Além disso, o SAEMS é uma avaliação única feita para os alunos das séries pesquisadas enquanto, no Programa Escola Campeã, uma meta de aprovação é definida para toda a rede e cada escola tem suas próprias avaliações. Diante disso, é fácil perceber que o SAEMS é uma avaliação muito mais adequada para estabelecer uma comparação entre as escolas. É triste constatar que os índices de aprovação apresentados pelo SAEMS nas 3ª séries pesquisadas variam entre 45,5% a 76,8%, percentual muito distante dos 91,6% de aprovação geral indicados pelo Programa Escola Campeã e de uma efetiva aprendizagem, objetivo maior do fazer educativo. 50 Recomendamos a leitura da dissertação de Almeida (2006), para melhor compreender o impacto do Programa Escola Campeã nas escolas da Rede Municipal de Ensino da Serra.
148
com poucos espaços para criação, não são novidades na história da educação
brasileira, assim como não são também novidade os seus fracassos, nos seus
diversos sentidos.
A gestão do trabalho escolar precisa se fortalecer a partir de diálogos entre o
conhecimento já adquirido sobre a legislação e os saberes no campo da educação
produzidos a partir do fazer escolar. Os atores da escola (alunos, pais/mães e
trabalhadores da escola) devem participar como coprodutores da construção de
políticas educacionais de governo. Pensar o trabalho docente como coprodução do
bem comum é pensar a educação como um processo inacabado, diálogo
permanente entre o conhecimento produzido na experiência e os saberes
disciplinares.
Entendemos que as soluções técnicas, prescritas como pacotes prontos e
estrangeiros à vida na escola, não dão conta da complexidade das questões
educacionais. Sabe-se que, no processo real de trabalho, as questões que emergem
no cotidiano não são resolvidas com receitas prontas e nem com formas autoritárias
e verticalizadas de intervenção, que não reconhecem a potência do movimento das
relações sociais de trabalho produzidas no meio em que elas se constituem como
força material e subjetiva.
No máximo, são como medicamentos tópicos que não dão conta da complexidade
dos desafios que o trabalho nos coloca e podem contribuir para o enfraquecimento
da força instituinte das práticas e da luta pela valorização do trabalho docente, no
sentido que adotamos neste trabalho.
No entanto, vale lembrar o que nos diz Almeida (2006, p. 66):
Não se trata de atribuir a responsabilidade pela resolução dos problemas somente à instituição escolar, mas garantir o respeito à sua soberania enquanto sujeito. Outra questão importante é a própria instituição escolar conquistar relações mais profícuas com as empresas e com a própria administração pública, a quem não cabe somente o papel de interventor. A esfera governamental precisa se educar a também ouvir, negociar e aprender a não impor suas decisões para que o retorno de seus esforços e investimentos seja mais produtivo.
Considerando essa assertiva, a autonomia escolar é colocada como uma questão
importante, na medida em que a instituição escolar deve ter soberania, ou seja,
autonomia, no sentido de que a escola e seu profissional possam produzir outros
149
modos de funcionamento para dar conta das demandas colocadas cotidianamente,
considerando a complexidade das relações institucionais e as mediações e
negociações que precisam sempre ser construídas com outros autores sociais.
Discutindo a produção de autonomia, um participante da pesquisa coloca:
A questão da autonomia da escola é algo complexo. Como há uma gestão central, muitas ações ficam amarradas pelas normas centrais. Não que elas não vejam válidas, mas a questão é como elas, ora, podem ser flexibilizadas e, outras, não podem de jeito algum. Dispensar aluno para fazer uma reunião entre os professores tem que se fazer um exercício e tanto. Isso já não acontece quando é do interesse da Administração. Tudo é possível e legal. A escola precisa ser diferente e ter mais autonomia para fazer acontecer a escola no dia a dia. A questão da substituição já deveria ser uma política incorporada pela Administração e não algo que fingi que não acontece na escola. Pode ser com a figura do professor de reserva do quadro permanente ou mesmo sob a contratação a partir da direção da escola. Quando fui direção, vivi a situação de 18 funcionários de licença e não foi fácil organizar a escola. Tivemos que nos ajudar, criar alternativas para a escola funcionar (ENTREVISTADO).
O debate da autonomia nos exige fazer escolhas conceituais e, nesse sentido,
acreditamos que autonomia não é relacionada com a ação individual e o "fazer o que
quero". Autonomia é um processo que se constitui em um fazer coletivo, um
processo de gestão que, na escola, pode ser entendido como compreender a
necessidade de se construir o Projeto Político-Pedagógico (PPP), potencializar o
Conselho de Escola, democratizar as relações professor/aluno, apostando na
construção de uma ação político-pedagógica mais profícua e mais participativa.
Na escola pesquisada, podemos constatar que, no período dessa Gestão Municipal,
não foi exigido e nem produzido o PPP. A escola seguia a agenda demandada pelo
Órgão Central articulada com as necessidades do seu dia a dia. O PPP era, na
verdade, o PDE, que servia como documento de orientação técnica combinada com
o que o Programa Escola Campeã e o Órgão Central defendiam como medida
correta para atingir os objetivos colocados, e não como documento de orientação
política da escola em que a comunidade escolar discute e constrói. Nesse sentido,
podemos dizer que a produção da autonomia escolar ficou comprometida como um
movimento da gestão que busca potencializar e dar visibilidade a outros modos de
organizar o funcionamento escolar.
Segundo o relato de um participante da pesquisa,
150
A gente não tinha PPP, o que a escola utilizou como PPP foi o PDE da Escola Campeã. Era aquela situação que de cobrar números da gente para que os resultados do rendimento da escola fossem melhores. O pedagógico e em que condições os professores estivessem trabalhando com os alunos, pouco importava para o pessoal da SEDU. O importante era produzir os resultados esperados pelo Projeto. Tinham lá as metas e a escola, de qualquer forma, tinha que apresentar números bem parecidos das metas.
Mesmo com esse novo empreendimento presente na escola, assim como já
acontecera, quando do surgimento de novos projetos do Órgão Central, não houve
alteração significativa na organização da escola no sentido de que os professores e
demais profissionais pudessem conhecer, discutir e fazer proposições objetivando
uma melhor incorporação do projeto pela escola.
Os espaços para ações coletivas eram muito restritos e, na maioria das vezes, não
estavam combinados com a discussão coletiva da organização político-pedagógica
da escola. Esses espaços se restringiam aos conselhos de classe, portanto, para a
discussão dos rendimentos e disciplina dos alunos e, também, para as atividades
culturais e reuniões com a comunidade escolar para discutir a mesma pauta do
Conselho de Classe.
A fala no grupo pesquisado foi a seguinte:
Olha só: mesmo não sendo o melhor espaço para a escola, mas importantíssimo pra categoria, as assembléias da categoria são um dos poucos espaços que o magistério tem para discutir suas questões no horário de trabalho. Isso é uma conquista nossa que eles tentam sempre nos tirar. É o que nós temos. Na escola só querem nos sugar. Só quando é necessidade da Prefeitura que aparece tempo pra fazer reunião na escola. A gente sabe com é [...] (ENTREVISTADO).
Outro docente afirma:
Geralmente nós só temos o recreio para discutir alguma coisa com o pessoal todo e, às vezes, rapidamente, depois da última aula. Muito difícil direção, por pressão da SEDU, deixar a gente dispensar o aluno, mudar o calendário para uma reunião da gente aqui na escola. O negócio e dar aula, cada um na sua sala e pronto. Discutir como a escola está; o que fazemos na sala de aula com o colega; fazer grupo de estudo, pra quê? Tem que cumprir os 200 dias. Pra eles, só se for fora do horário de trabalho e sem esse negócio de hora extra.
A partir dessas falas, é possível interrogar os documentos que apregoam o
compromisso da Administração com a qualidade social da educação e a valorização
do magistério e, fundamentalmente, do trabalho docente destinado a atender os
alunos da Rede Municipal da Serra. Segundo Almeida (2006, p. 56),
151
Os professores precisam de tempo e qualidade de leitura, ambiente de reflexão constante sobre a prática, formação para a pesquisa, participação em congressos, o que não pode acontecer se ele precisar dobrar sua carga horária de trabalho para sobreviver
Concordando com o autor, podemos dizer que a qualidade do trabalho docente
precisa ser discutida para além da questão salarial. Outras dimensões e valores
devem compor o debate sobre o que é um trabalho escolar como um valor sem
dimensão.
A escola é dinâmica, cheia de variabilidades e diferenças. O docente, além de um
melhor salário, dentre outras condições, precisa ter, também, uma carga horária de
trabalho que lhe permita planejar e corrigir trabalhos dos alunos. Assim como mais
horas para estudar, pesquisar, realizar reuniões e encontros nas escolas e em
outros espaços, para discutir questões políticas e administrativas da escola e do
magistério; socializar experiências e saberes produzidos em sala de aula e conhecer
a comunidade em que trabalha, ampliar o seu arsenal de estratégias para produzir
um trabalho pedagógico que corresponda às suas expectativas e às da comunidade
escolar em suas diferentes dimensões.
Focalizando a questão da jornada de trabalho, pode-se dizer que pouco debate tem
sido feito em relação ao tema pelo Órgão Central, apesar de há muito tempo essa
discussão estar em cena, principalmente quanto à questão das horas destinadas à
relação trabalho em sala de aula e trabalho de planejamento/formação do professor.
Nessa questão, o Órgão Central é categórico. Por meio dos dispositivos jurídicos,
um controle se impõe ao cotidiano escolar, colocando em questão o princípio da
autonomia da gestão escolar afirmado pela Administração da SEDU/Serra.
As Administrações Públicas em geral são resistentes a realizarem esse debate. As
argumentações residem sobre os gastos com a educação. Fazer essa discussão e
propor alterações na organização do trabalho na escola e na jornada de trabalho do
professor, de forma a incluir essas outras dimensões do trabalho docente,
significaria fundamentalmente aplicar mais recursos em contratação de professores
e em ações para equipar melhor as unidades de ensino. Não estamos sequer
falando sobre o debate da questão do padrão máximo de alunos por sala/turma, que
se configura como um outro quadro.
152
Com relação às ações do plano da formação e qualificação profissional na educação
municipal, a Prefeitura realizou o seu primeiro concurso público para o magistério
em 2001, e outra ação de impacto foi o Convênio de Educação a Distância com a
UFES. Esse convênio foi fixado com o objetivo de atender à formação de
professores de séries iniciais sem graduação e, com isso, atender às orientações e
metas do FUNDEF em relação à formação do magistério, demonstrando sua política
legalista e pouco prepositiva e ousada na educação.
A SEDU/Serra investiu em Convênio com a UFES, para dar conta de cumprir a meta
do Plano Nacional de Educação (PNE), que orientava que todos os professores
tivessem licenciatura plena até 2007. Assim, a Prefeitura possibilitou 460 vagas para
professores da Rede Municipal no programa de formação em licenciatura plena em
Pedagogia.
Esse programa de formação superior consistia em encontros presenciais e em
atividades não presenciais para professores da Rede Municipal sem licenciatura
plena. O curso possuía tutoria quinzenal para os alunos com cronograma de entrega
de trabalhos e provas de conhecimento. Assim, como os demais cursos propostos
pela SEDU/Serra, esse Programa de formação ocorria fora do seu horário de
trabalho.
Sem entrar na discussão do que significou politicamente essa modalidade de ensino
no cenário da formação do professor no Brasil, limitamo-nos a dizer que a medida da
Administração Municipal se deu motivada a atender um cumprimento de orientação
legal.
Essa política de formação a distância também incidiu sobre a política salarial,
estabelecendo um tratamento diferenciado na processo de recomposição do salário.
Ou seja, os novos graduados por esse convênio estariam percebendo um “aumento
salarial” que não atingiria todo o magistério.
Essa ação de formação atuou também como política de recomposição salarial.
Como tal, ela atingiu mais de 20% do magistério com o processo de elevação de
nível, garantido estatutariamente. Essa elevação de nível possibilitou, em média, um
acréscimo de 15% no salário desse professor.
153
A política não ofereceu ação de formação, mesmo dentro desses moldes, para o
pessoal que já possuía licenciatura plena. Com isso, nem formação, nem política
salarial foram ações produzidas a garantir a isonomia de tratamento no magistério.
Tanto a política de formação quanto a política salarial colocadas não foram
encaminhadas ao restante do pessoal do magistério. Grosso modo, a política de
retenção dos recursos da educação continuou a ser praticada em detrimento da
valorização do trabalhador como política geral e isonômica.
Somado a isso, as últimas ações de reajuste salarial desrespeitaram o Estatuto. A
incorporação de abonos praticados pela Administração criou distorções na tabela do
PCV, provocando percentuais de reajuste diferenciados, geralmente percentual
menores para os profissionais com mais tempo de serviço e maior
qualificação/titulação.
Tais ações apresentam marcas da lógica de métodos de gestão que privilegiavam a
redução de verbas a partir do rebaixamento salarial, pouco investimento em
condições de trabalho e aumento da carga de trabalho (mais alunos e mais tarefas
pedagogias). Também parecem privilegiar as ações de regulação e de controle que
buscavam fazer com que o trabalhador aderisse com menos resistência às
propostas educacionais do governo. Isso, por meio de estratégias mais
participativas, na qual o profissional pudesse se sentir envolvido na produção dos
projetos, que já chegavam prontos e com as metas a serem atingidas já definidas.
Em frente à conjuntura da educação nacional da época, tanto as ações políticas da
Administração como, no contraponto, as ações do SINDIUPES, passaram a compor
um campo de disputa por projetos visando a mobilizar a escola e os professores no
sentido de produzir novos modos de gerir o trabalho escolar que levassem a
comunidade escolar a um debate de valores sobre a função da escola na sociedade.
Esse debate de valores sobre a função social da escola coloca em foco o debate de
valores não dimensionados. Esses valores podem ser considerados como princípios
sociais comuns e, por isso, podem produzir consensos temporários que, quando
questionados, podem tornar visíveis compreensões diferentes do vivido.
154
A partir da fala dos entrevistados, pode-se perceber que o governo desse período
produziu uma “moralização” e “seriedade” na educação serrana. Ou seja, com o
discurso “Todos por uma escola para todos” e respeitando mais as leis da educação,
o município passou a ser mais acreditado pela população, pelos profissionais e, com
isso, também pôde captar mais verbas para a educação. Por isso, o chamado
avanço institucional, comparado com a gestão anterior, era inquestionável.
Segundo um dos entrevistados:
Isso ninguém pode negar. O prefeito e a vice/secretária moralizaram a educação da Serra. Eles tiraram os curiosos, os leigos, da escola e, através de concursos sérios, colocou só professor na escola. Antes era uma bagunça, engenheiro, contador [...].
Contudo, essa análise não é consensual. Outro participante da pesquisa avalia que:
Vejo que a administração neste período foi mais legalista do que moralista ou séria, ou seja: comprometida com a educação de qualidade. Ela teve que se ajustar às novas legislações educacionais – LDB e FUNDEF – e com isso, foi organizando a rede e se aproveitou dos efeitos dessas políticas nacionais e pareceu ser uma Administração comprometida com as políticas sociais. O Conselho de Escola e o CMES, por exemplo, não são obras dessa gestão. Elas são da outra Administração, mas são instituições que fazem parte do pacote da gestão democrática. É bom entender que se Ele (o prefeito) não cumprisse as leis para educação não receberia as verbas da educação.
Na mesma direção, outro relato afirma:
Podemos dizer que o prefeito deu seriedade à educação serrana, mas é também verdade que foi uma psdeudodemocracia. Quantas vezes a Secretaria pedia sugestões às escolas e nós enviávamos e nada acontecia ou mudava. Por exemplo: nós indicamos que os conselhos de classe deveriam ser trimestrais e nem experimentamos essa forma de organização. A Construção do prédio novo da escola nem se fala. O projeto foi um e a escola construída foi outra. Com a desculpa de falta de verbas perdemos o auditório, o material foi de segunda e a escola continua chovendo dentro. É assim que a educação é prioridade. Não é preciso nem falar dos salários.
Considerando esse quadro, tendemos a concordar com a tese de que a
Administração Municipal foi muito mais legalista do que uma gestão que primou pela
moralidade e seriedade. Vamos nessa direção, porque as ações de redução dos
salários dos “contratados temporários” e a tentativa de manter os salários dos novos
concursados durante o período de estágio probatório nos patamares dos salários-
base do Plano de Carreira foram ações clássicas de adesão à política de corte de
155
gastos nos salários, defendida pela lógica dos valores dimensionados, ou seja, do
mercado.
Além disso, os investimentos na formação dos diretores e de pedagogos se
sobrepuseram às formações destinadas aos docentes, assim como o diálogo entre a
categoria, no sentido de construir alternativas para melhorar o ensino e a
organização do trabalho escolar, foi difícil e pouco produtivo com a Administração,
principalmente via sindicato.
156
6 OS CAMINHOS DA PESQUISA: E AGORA?
A proposta deste estudo foi produzir questões sobre o modo de organização do
trabalho docente e melhor compreender o processo de atribuição de valor a essa
atividade. Visamos a dar visibilidade aos modos de existir/trabalhar do professor na
escola, contribuir na produção de políticas que persigam melhoria das condições e
os processos de trabalho, pautados na cogestão e, assim, produzir educação de
qualidade social.
Nesse sentido, essa discussão da qualidade pública social da escola e da produção
de políticas de valorização do trabalho docente, que considera o saber dos
professores no modo de gerir a sua atividade, assume uma dimensão política da
maior importância. Essa escola que os trabalhadores buscam construir
cotidianamente pode ser um campo disparador de processos que podem contribuir
para a criação de uma escola menos autoritária, mais democrática e comprometida
com os interesses políticos e históricos das populações menos favorecidas, o que
significa superar a pobreza e conquistar dignidade social, econômica e subjetiva.
O primeiro passo da pesquisa em campo foi estabelecer contato com a
SEDU/SERRA para conhecer os documentos e materiais que a Secretaria dispunha
sobre o período de 1997 a 2004 e saber como poderia ter acesso a eles. Depois de
algumas tentativas sem êxito na busca de acesso a informações acerca das políticas
desenvolvidas no período com o Órgão Central, resolvemos buscá-las por meio de
outros caminhos e contatos.
Nesse sentido, um dos caminhos foi o acervo do Conselho Municipal de Educação
da Serra (CMES). Outro caminho foi o das entrevistas com profissionais da
educação serrana, que viveram as experiências desse período, com seus
depoimentos e arquivos pessoais. A partir da construção desse segundo movimento,
conseguimos apresentar o desenho crítico-histórico das políticas educacionais
implementadas no período que definimos como objetivo da investigação.
Diante da dificuldade com o Órgão Central da SEDU/Serra, dois aspectos nos
pareceram relevantes para as nossas análises: o primeiro diz respeito à história do
157
pesquisador como militante sindical no campo da educação. Será que essa história
pode ter criado barreiras de acesso ao acervo da Secretaria, originando uma
resistência, por parte da SEDU/Serra, em dispor os documentos e materiais
produzidos sobre a política educacional? A segunda questão, em nosso entender,
pode estar ligada à inexistência de uma memória registrada da educação no
município. A Secretaria da Educação possui um acervo com a história da política
educacional da Serra?
Há investimentos na construção de uma memória da história da educação serrana
por parte da SEDU? Como essa Secretaria tem lidado com a militância sindical no
município? Continuamos nossas investidas. Por outro lado, em respeito à história
deste pesquisador na militância no SINDIUPES e com o Magistério Serrano,
algumas pessoas da Secretaria se dispuseram a ajudar, mas não conseguiram
sucesso na busca de documentos referentes ao período.
Interessava-nos encontrar caminhos possíveis para a realização do estudo,
considerando a sua importância para a produção de outras vias para a valorização
do trabalho escolar e da escola pública como bem comum.
O interessante da construção do caminho da pesquisa foi que as questões
apareciam como desafios que produziram avanços e recuos no processo
investigativo e, assim, outros modos de construção do conhecimento.
A pesquisa, em nosso entendimento, não é um processo frio, um processo de
variáveis controladas e predefinidas. A pesquisa se faz incluindo a imprevisibilidade,
lidando com a variabilidade própria da vida e, fundamentalmente, com produção de
relações com as pessoas envolvidas no estudo, independentemente dos lugares
pré-marcados de autores e leitores, observadores e observados; entrevistados e
entrevistadores, de orientadores e orientandos. Contamos com todos como autores
do conhecimento produzido, uma produção de todos que participaram do estudo,
certamente, com suas especificidades.
Assim, com relação às políticas e ações implementadas entre 1997 e 2004,
apresentamos essa discussão no decorrer do capítulo.
158
6.1 OS CAMINHOS DA PESQUISA COM A ESCOLA
No desenho inicial da pesquisa, também se previa conhecer a organização de uma
escola com o objetivo de cartografar os processos de trabalho docente na Rede de
Ensino Municipal da Serra.
Essa etapa começou no final de agosto e foi até o mês de novembro de 2007.
Estabelecemos contato com a direção da escola no sentido de termos autorização
para conversar com os profissionais. Com a aceitação da direção de uma escola da
rede, realizamos uma reunião com os professores do turno matutino da unidade de
ensino e, com a aquiescência deles, começamos a acompanhar – viver o cotidiano
da escola com o objetivo de conhecer/discutir como são materializados ali os
processos de valorização do trabalho docente.
Nessa fase da pesquisa, o que tínhamos claro é que essa ação de conhecer/discutir
a organização do trabalho escolar não se daria no sentido de focalizar o trabalho do
professor apenas em sala de aula. Visávamos a melhor compreender como se
constituem os movimentos da escola para assegurar e produzir a valorização da
atividade do trabalho docente, articulado com discussões sobre o vivenciado no
período entre 1997 a 2004, os possíveis efeitos das políticas educacionais dos
governos dessa época, levados ao chão da escola, por diferentes caminhos, como
políticas de valorização do trabalho docente.
6.2 A ORGANIZAÇÃO GERAL DO FUNCIONAMENTO DAS ESCOLAS NA SERRA
O horário de funcionamento das escolas de ensino fundamental da Serra é
distribuído em turnos: matutino – 7h às 12h; vespertino – 13h às 18h; e noturno –
17h às 22h. O atendimento ao aluno é distribuído da seguinte maneira: turno
matutino entre 7h e 11h30min; o turno vespertino entre 13h e 17h30min; e o turno
159
noturno entre 18h20min e 22h. Já na educação infantil, o atendimento aos alunos
ocorre em dois turnos: das 7h às 11h e das 13h às 17h.
Essa forma de funcionamento pouco mudou nas últimas duas décadas em relação
às escolas de ensino fundamental. Pode-se dizer que a LDB nº 9.394/96
estabeleceu a exigência ao cumprimento de quatro horas de trabalho consecutivas
com os alunos, os 200 dias letivos e as 800 horas legais como patamares mínimos
para a carga horária do aluno, que acabaram sendo incorporados no dia a dia
também do professor.
Esse é o horário comum de atendimento da Rede Municipal de Ensino da Serra,
assim como a jornada de trabalho de 25 horas semanais para os docentes.
Contudo, considerando a dinâmica da organização das horas de permanência dos
docentes nas suas funções de séries iniciais e finais e, especialmente, no ensino
noturno, a carga horária desses professores se constitui diferentemente por conta
das suas especificidades.
A organização da carga horária dos professores das séries iniciais do ensino
fundamental, além da jornada com alunos, tem mais 30 minutos de planejamento
diário após o seu horário em sala de aula, geralmente, mais três planejamentos de
50 minutos durante as aulas de Educação Física destinadas à turma.
Já o horário dos professores de Educação Física e dos de Educação Artística que
atendem às séries iniciais, o funcionamento é igual ao das séries finais. Para esses
a hora/atividade é de 50 minutos por turma, somando cinco “tempos” de
hora/atividade de planejamento, acontecendo dentro do horário de funcionamento do
turno na escola.
Quanto aos docentes do turno noturno, devem chegar 1h20min antes do horário das
aulas, ou seja: 17h, para o cumprimento do seu planejamento, contemplado na sua
carga horária, considerando que as aulas do noturno são de 40 minutos. Nesse
turno, a primeira aula começa às 18h20min. No período de 1997 a 2004, a primeira
aula do turno tinha seu início às 19h.
Os professores que atuam na educação infantil cumprem 60 minutos diários de
planejamento além do horário com alunos, para fechar sua jornada de trabalho.
160
Tanto para esses profissionais como para os profissionais das séries iniciais do
ensino fundamental, a jornada de trabalho de 25 horas semanais é registrada na
hora/relógio e não na hora/atividade de 50 minutos, como acontece com a jornada
dos professores das séries finais.
As jornadas de trabalho, portanto, eram diferenciadas. Nesse sentido, as 25 horas
de trabalho eram concebidas diferentemente para cada grupo de docentes,
acabando por sacramentar-se como prática administrativa que determinava status e
privilégios aos grupos que trabalhavam com as séries finais e o ensino noturno.
Isso significou, para os profissionais, que a hora de trabalho tem 50 minutos para
uns e, para outros, a hora era concebida com 60 minutos.
Essa situação da jornada diferenciada entre os professores das séries iniciais e
finais ainda não foi resolvida, no sentido de se igualar as horas institucionais, de
modo a produzir uma carga horária menos estressante e mais aberta a outras
possibilidades para melhoria do processo de trabalho na direção da produção de
saúde.
A escola que participou da pesquisa era organizada em três turnos. As visitas à
escola aconteceram no turno matutino.
6.3 O MODO DE FUNCIONAMENTO DA ESCOLA: UMA ROTINA OU RITUAL DE
OCORRÊNCIAS
Neste momento de análise, optamos por produzir um relato do cotidiano vivido,
podendo ser compreendido como rotina ou como ocorrências que atravessam o
modo de funcionamento da escola. Buscamos compreender os processos de
atribuição de valor à atividade docente a partir de um olhar histórico com a
contribuição do pensamento ergológico.
161
6.3.1 O pesquisador com a escola
Chegando à escola, uma primeira questão se colocou: como fazer? Sem encontrar
uma resposta, lançamo-nos nas incertezas de ser pesquisador de uma determinada
temática e, também, como alguém que vive nesse meio, que é o ambiente escolar.
Estivemos presente na escola para compreender o seu modo de funcionamento e,
então, conhecer mais de perto as formas de gestão que se conectavam em várias
direções. Isso aconteceu numa terça-feira de agosto de 2007. Agora, era viver o dia
a dia: os registros, as conversas, o ouvir, o sentir, o participar do dia a dia da escola
e se deixar tocar pelo que muitas vezes não é dito. E assim fizemos, durante três
meses.
Estando na escola, buscamos compreender o seu modo de funcionamento
acompanhando o que acontecia, principalmente, fora das salas de aula no turno
matutino. Observamos a entrada e a saída dos alunos da escola, a hora do recreio,
as trocas de professores, as ações do corpo técnico-pedagógico. Esse
acompanhamento não se deu de forma passiva. Procuramos questionar algumas
situações acontecidas assim como fomos questionado e, às vezes, solicitado a
participar das tarefas do dia a dia da escola.
6.3.2 Um dia na escola...
O relógio registrava 7h2min e os alunos começam a passar pelo pátio dirigindo-se à
quadra, sendo organizados em filas, por turmas, orientados por dois coordenadores
e um auxiliar de coordenação. Na quadra, já se ouvem gritos aqui e outro ali. São
os alunos se apresentando para mais um dia letivo.
A coordenação, em seu cumprimento do registro institucional, coloca-se na ação
cotidiana de organizar a chegada dos alunos desde a entrada na escola até as salas
de aula. Essa relação entre coordenação e alunos parece um construir permanente
162
de diálogo entre as normas e os valores dos sujeitos alunos e as regras disciplinares
da escola.
Com a entrada dos alunos no pátio, acontece uma brincadeira aqui, outra acolá. É
uma bola que aparece rolando e é guardada antes que ela seja retida pela
coordenação; um aluno empurra o outro como sendo uma brincadeira ou
provocação; uma bola de papel voa de um lado para o outro; rola uma paquera; o
professor pede a um grupo para perfilar e solicita silêncio aos alunos que resistem a
entrar na fila de suas respectivas turmas para rezar o “Pai Nosso” ou para se
organizar em filas na quadra e, por isso, são “lembrados” pelos coordenadores e
professores das normas da escola.
Na entrada, é preciso estar “atento e forte” para ver se as situações entre alunos,
como discussões, brigas, gozações, não se manifestam, podendo causar
transtornos ao início de funcionamento do turno. Se for a quinta-feira, a situação
requer presença de mais professores e de estratégias de controle sobre os alunos,
já que é o dia de cantar o Hino Nacional para “alimentar o respeito à Pátria”.
Realizado o ritual de chegada, os alunos são encaminhados por turmas às suas
respectivas salas de aula que, agora, com a construção do prédio novo, estão
localizadas no segundo pavimento da nova construção.
Na sala de professores, no pavimento térreo, o ritual de chegada é diverso: uns
chegam em cima da hora, e outros já se encaminham para as salas de aula,
entrando no ritmo de preparação para assumir as suas respectivas turmas de
primeiro horário das séries finais e as turmas das séries iniciais. Alguns dão uma
olhada no jornal, tomam um copo d’água, comem biscoito, pão e café, pegam
material no armário, contam uma piada, fazem comentários sobre as notícias do
jornal e da assembleia do SINDIUPES, e aí: "Vamos, pessoal! Vamos, pessoal! Já
passou da hora!" É a coordenação, pedindo socorro com a convocação dos
professores para mais um dia letivo.
Todos já estão em suas salas de aula, professores e alunos, e a coordenação dá
continuidade a afazeres, procura manter a ordem nos espaços comuns da escola,
verificar o andamento da preparação da merenda do dia; estar alerta aos tempos de
50 minutos das aulas das séries finais para observar a troca de turma dos
163
professores e o trânsito de alunos nos corredores, assim como tocar o sinal do início
e término do recreio.
Os professores, como ação rotineira, caminham pela escola carregando materiais
para as respectivas aulas do dia. Quando esquecem algum material, utilizam a
estratégia do “tempinho” para se ausentar da sala e apanhar o material. Ou, no
intervalo entre as aulas, tratam de ir apanhá-lo. Às vezes um aluno é convidado a
ser assistente e cumpre essa tarefa, para que o professor permaneça em sala
garantindo a disciplina da turma com a qual está trabalhando.
Podemos dizer que a organização escolar, de modo geral, pouco ou nada mudou
após implantação da nova LDB. O professor continuou com pouco tempo para
estudo/pesquisa, com pouca autonomia e com mais alunos e tarefas em sala de
aula, vendo-se obrigado a criar estratégias, como a do “tempinho” e do “assistente”
para cumprir o planejamento do dia, otimizar o tempo de aula e valorizar a
possibilidade de controle de turma, mantendo, assim, a “normalidade e a
tranquilidade” nos corredores e espaços comuns da escola.
Tratando do tempo e do espaço escolar, como todos os alunos de 1ª a 8ª séries
estão no segundo pavimento do prédio novo, a movimentação de alunos pela escola
é provocada pelas aulas de Educação Física, já que os alunos têm que se deslocar
para a área externa ao prédio, onde fica o pátio descoberto e a nova quadra coberta.
Outros movimentos são disparados pelos alunos que desafiam a ordem estabelecida
e constroem estratégias para fugir do ambiente de sala de aula. Presenciamos
alunos indo aos banheiros, buscando material, buscando gelo para uma contusão na
aula de Educação Física, assim como aluno se encaminhando para a coordenação
por causa das “roupas inadequadas” e devido a questões de indisciplina; alunos
chegando atrasados e a coordenação agindo no sentido de alertar para as normas e
as responsabilidades.
Com relação à movimentação dos professores, observamos que ela se dá mais em
função da organização do horário de planejamento. Geralmente esse planejamento
está associado aos horários das aulas de Educação Física (e atualmente também às
Educação Artística) para as séries iniciais e, nas séries finais, obedecendo ao
rodízio de disciplina da grade curricular a partir do horário das aulas de cada turma.
164
Considerando o planejamento, observamos que os professores, dependendo do
número de planejamentos por dia e horário, usam o tempo para um descanso no
sofá, uma conversa com colegas, leitura do jornal do dia, correção de
trabalhos/provas, preparação de exercícios/provas para os alunos da escola e de
outras e, às vezes, o planejamento com a pedagoga.
No momento do planejamento, também presenciamos troca de ideias, de avaliações
e sugestões ao trabalho, atualização das informações com a pedagoga (seja quando
vem à sala dos professores, seja quando o professor vai à sua sala), discussão das
ações sindicais e das questões organizativas da escola. Mas, nesse momento, é
possível notar, também, certa solidão profissional, quando o professor vê que o seu
planejamento não é um momento coletivo.
Às vezes é chato ficar aqui. Esse não é um ambiente para se estudar, planejar. Veja você mesmo. Não se tem um local agradável e nem material disponível na escola. Não temos nem internet disponível na nossa sala. Parece que essa organização é pensada dessa forma. Pensada no sentido de impedir que possamos pensar juntos e conhecer melhor a nossa realidade para tentarmos mudar as coisas e se fazer uma escola diferente, mais criativa, participativa e com mais vida (ENTREVISTADO).
O recreio:51 neste momento, aparecem questões de diversas ordens pessoais e
coletivas. Contudo, este momento de pausa para os professores é o de ebulição
para os alunos.
Para o docente, parece que o recreio foi institucionalizado como o momento de
"todas as coisas", do relaxamento e reclamações, quando todos são atingidos por
informações diversas, tanto vindas da Secretaria de Educação como também do
sindicato da categoria e do vendedor que está esperando a hora do recreio para dar
o seu recado.
Também, no recreio, cada docente se apresenta com suas histórias de vida em
diálogo com o outro colega. É também um momento em que os debates de valores e
normas sociais e institucionais ficam mais visíveis. São apenas 20 minutos, mas
tudo isso acontece nesse pouco tempo. Nesse tempo, é hora de saber: quem vai à
assembleia do SINDIUPES? Quem vai representar a escola na reunião de
representantes? Quem deseja participar do sorteio de uma inscrição para o 51 Recreio é o tempo de 20 minutos destinado à merenda dos alunos. Na maioria das escolas, os professores utilizam esse tempo para descanso, preparar atividades, lanchar, conversar, passar informações sindicais e da Secretaria de Educação.
165
Congresso Conhecer oferecido pela SEDU/Serra? Quem vai ao Pré-Congresso do
Sindicato? Quem vai ao Congresso do SINDIUPES?
O recreio também é hora da lembrança das responsabilidades administrativas. Diz a
pedagoga:
Por favor, atualizem as pautas! Senão depois prejudica o meu trabalho e vocês acumulam mais serviço no final do bimestre. Nós temos que ver a questão dos nossos estudos, a prova, e o relatório para enviar para comissão de merecimento. Depois a coisa pega legal. É a progressão e tem os prazos. Senão a gente perde. É pouco, mas é nosso.
Nesse espaçotempo, também se encontra o pessoal dos brincos e pulseiras, roupas;
o pessoal de agências financeiras. É um espaçotempo de compras, em que
vendedores aparecem com suas mercadorias para oferecer aos docentes.
O recreio é tudo isso e muito mais, de forma muito dinâmica que parece produzir
redes de comunicação e interação que vão além do plano do trabalho docente e a
vida aparece para debate em suas múltiplas dimensões.
Nesse espaçotempo, os modos de existir também se movimentam, se atravessam e
se confrontam por meio de valores individuais e coletivos. Aparecem, ao mesmo
tempo, confrontos de valores de mercado, do bem comum, da vida como ela é, de
(re)existência e tantos outros. Por exemplo, quando se diz: “Eu não vou à
assembleia.” E outra, também diz: “Eu não vou a assembleia, vou dar aula”
(PROFESSORAS). “Que brinco lindo! Em quantas vezes?”. “Você viu a novela
ontem? O Olavo e a Bebel?”. “Como eu posso ensinar isso, para essa turma? Como
você faria? Como você ensinaria?”. “Amanhã é paralisação. Quem vem? Eu venho!”
(o profissional adere à agenda do movimento), “Eu tenho que vir, senão, não recebo”
(PROFESSORA SUBSTITUTA).52
A saída: é o momento de encerrar o 1° ato para uns, já que é preciso pegar as
coisas, ir almoçar (self-service, marmitex, em casa), e chegar antes das 13h na
próxima escola. Para outros, é o momento de ir para casa e dar conta de outras
52 Professor substituto é uma estratégia utilizada pelos docentes e pelas escolas para dar conta do calendário escolar, evitar que o aluno fique sem aula e o professor tenha que pedir licença. Quando de licença médica, geralmente esse “substituto” é pago pelo próprio professor. Em outras situações em que a Secretaria não assume a substituição do profissional, as escolas se responsabilizam pelo o ônus por meio de recursos próprios. Essa estratégia não tem respaldo jurídico, mas é uma prática histórica na educação pública.
166
tarefas, preparar para o horário do noturno, que pode ser a sua terceira jornada.
Tem aqueles que encaram o terceiro turno em outra escola, seja como professor,
seja como aluno. Nesse momento, as falas e os recados são rápidos e é hora do:
“Até amanhã!”. “Quem vai comigo?”. “Quer carona? Amanhã a gente se fala!”. “Não
esqueçam que precisamos fechar a Amostra Cultural! Traz pra mim o seu plano de
curso”. “Temos que fechar a questão da documentação do merecimento!”
O estar na escola é sempre um estar por fazer algo mais do que lhe é colocado
como tarefa. Estar na escola é, muitas vezes, sem você se dar conta disso, fazer-se
corpo com a escola, compondo-se com o movimento do meio escolar. Movimento
que tem uma temporalidade que não começa no entrar na escola e nem termina no
sair da escola. Esse movimento continua no nosso corpo, acompanha-nos em casa,
na academia, na faculdade, no banho, no bar, questionando-nos, avaliando-nos e
nos fazendo inventar e criar estratégias para dar conta das questões do dia a dia na
escola.
No processo de cartografar o movimento da organização do trabalho docente,
muitas vezes você se vê solicitado a agir sem pedido formal diante da necessidade
colocada aos seus olhos. Você não pensa se é certo ou errado, simplesmente age.
Outras vezes, acontece pelo pedido de alguém da escola pelo simples fato de você
estar ali no ambiente escolar. Foi assim que levar uma criança em casa, porque ela
havia faltado no dia anterior e não recebera o bilhete da escola avisando que seria
paralisação nacional, organizada pela CNTE, e sua turma não teria aula, fez parte
dessa experiência. Também ir ao comércio local para comprar material para
apresentação da amostra cultural e participar, no dia, de apoio da organização do
evento na escola. É bom lembrar que cada ação dessas indica uma análise do
vivido.
A escola é também lugar de temporalidades e da produção de valores como:
solidariedade, (cri)ação, (re)existência, construção de processos de subjetivação e
de pontencialização de modos outros de existir/trabalhar. Esse movimento da escola
potencializa, dentre outros, práticas sociais de afirmação da vida, em que os
dispositivos são: o sorriso, a alegria, a criatividade e a energia dos alunos. Energia
potente que pode alimentar a disposição e a participação dos profissionais da
167
escola, mesmo com todas as dificuldades advindas de posturas individuais e
instituídas no processo de fazer a coisa acontecer da melhor forma possível.
A escola, que geralmente é dividida em dois ou três turnos (diurno, vespertino e
noturno), parece se fazer em escolas, por turmas e por aulas de cada professor,
levando em conta a matéria que ministra de forma que as construções coletivas são
frágeis ou inexistentes. Essa situação tem demandado discussões no sentido de se
experimentar uma escola mais integrada e coletiva, mesmo considerando sua
divisão temporal por turnos.
Pareceu-nos que essa fragmentação do trabalho escolar é respaldada por um tipo
de organização do trabalho, supostamente conferida por uma visão gerencialista que
faz valer a habilitação e a posição institucional, restrita à função de professor,
hierarquicamente, como autoridade maior da sala de aula e na sua área de
conhecimento acadêmico na escola.
Olhando com mais atenção para o funcionamento da escola, podemos dizer que
essa autoridade relegada ao professor é relativa e muito limitada. Geralmente ela é
requerida como valor institucional que se presta para exercer controle sobre os
alunos, para dar conta de suas tarefas pedagógicas, muitas vezes, em condições
desfavoráveis e, também, em outras situações, para ter questionada a sua
competência pedagógica de “controle de turma” para atingir os objetivos e metas
traçados pelos especialistas e administradores.
Nesse sentido, a autonomia e o compromisso do professor com a educação passam
a ser questionados. Não se debate o fato de esse trabalhador não ter o
espaçotempo, que ele considera necessário, para desenvolver seu trabalho no
sentido de discutir, colocar questões e propostas para os administradores a partir da
sua experiência escolar, com o intuito de melhorar a organização da escola em
aspectos como: número de alunos por sala de aula; construção das escolas;
organização de salas ambientes; carga horária de trabalho; a carga horária para
planejamento, reunião na escola, pesquisa e outras atividades individuais, coletivas
e extraclasse. Enfim fazer a cogestão do trabalho.
Por outro viés, a escola, ao mesmo tempo, no seu modo de funcionar, com seus
alunos e professores em suas respectivas atividades em sala de aula, parece tentar
168
produzir uma escola silenciosa no seu fazer pedagógico. Pareceu-nos que o
funcionamento bom é aquele em que a escola se constitui como um reformatório,
uma prisão,53 em regime semiaberto. Esse tipo de funcionamento, a nosso ver,
reduz a potência de produção de novos modos de existir: cada turma em sua cela,
guardada por seus respectivos professores nos seus respectivos turnos, precisa
seguir o regimento interno, as regras estatutárias e disciplinares para manter o
controle da turma e a escola sem muito barulho e sem muito questionamento e
assim se apresentar como uma escola bem organizada e produtiva do ponto de vista
do Órgão Central.
Muitos desses mesmos profissionais que tentam controlar os alunos segundo as
normas e regras do jogo disciplinar propostos para a “boa” organização da escola,
ao mesmo tempo, e sem se dar conta das suas ações, buscam produzir outros
saberes e modos de relações que escapem ao sentimento da sala como cela de
uma prisão, em que os alunos precisam obedecer às regras de conduta e às regras
pedagógicas impostas de como se deve aprender.
Muitos professores utilizam outras estratégias, como teatro, dança, apresentação de
documentários e filmes, música, dinâmica de grupo, contação de estórias, para
“quebrar” as formas duras de ensinar e organizar o cotidiano da escola, buscando
torná-las mais prazerosas e na direção dos movimentos da vida, que não se deixam
aprisionar nos padrões modelares impostos na escola.
No processo de entrevista, um professor discute a autonomia no sentido de
concebê-la como processo de gestão.
Na sala de aulas temos alguma autonomia e nem sempre aquilo que aprendemos na faculdade, como controle de turma, funciona e ajuda no aprendizado. Na verdade, temos que criar situações pedagógicas favoráveis para que a disciplina não seja de responsabilidade só do professor, mas efetivamente uma construção com os alunos. Creio que, assim, poderemos contar com uma escola menos autoritária e mais favorável a uma aprendizagem acontecendo num clima mais prazeroso. É difícil essa tarefa. Mas, se não for assim, a ferro e fogo, não vai mesmo. É mais fácil o ferro e fogo virem na nossa direção. Foi o tempo da palmatória e espero que ele não volte mais, assim como a ditadura.
53 Em matéria sobre a violência nas escolas, no jornal “Tempo Novo”, distribuído entre 10 e 17 de dezembro de 2004, um professor, corroborando essa visão da escola com prisão, diz: “O objetivo é manter as crianças sob controle por quatro horas, desta forma elas não se envolvem em problemas. Nós, professores, funcionamos como agentes carcerários” (p. 12).
169
Consideramos autonomia como um processo dinâmico de criação de formas de gerir
a atividade, de fazer escolhas de funcionamentos possíveis com relação às regras
administrativas e de controle da escola para os educadores, os alunos. Agir com
autonomia faz parte do fazer humano e essa ação se constitui em valor sem
dimensão e como uma produção coletiva que se coengendra com vários fazeres que
compõem com a atividade docente, assim como com o que aprendemos (ou não)
nos bancos escolares. Por isso, a autonomia não deve ser resumida à aplicação de
métodos de controle de turma e às escolhas das técnicas a serem utilizadas no
processo de ensino.
Essa situação pode ser reforçada pelos coordenadores que têm a função de manter
a ordem desse modo de funcionamento e exercer o controle do fluxo de movimento
dos alunos que estão fora da sala de aula, principalmente. A situação é abrandada
pelo “banho de sol” do recreio e pelo “movimento corporal” das aulas de Educação
Física e de Educação Artística que fazem os corredores produzir sons, corpos
acelerados e movimentos nas idas e vindas das aulas, assim como, também, pelos
outros professores com suas estratégias menos duras e controladoras de ensinar
nas salas de aula.
A coordenação, como suporte da direção da escola, dando conta da suas tarefas
administrativas e de orientação dos funcionários, também exerce tarefas
pedagógicas de conversar com alunos e com os pais de alunos, junto com o setor
pedagógico da escola, sobre as normas, condutas, avaliações e rendimento escolar
dos seus alunos.
Apesar de a organização escolar parecer mais controladora, a gestão que é
produzida no “chão da escola” não se prende a modos institucionalizados, nem
individualizados. O estar na escola é um perguntar permanente de como se
produzem tipos de viver/existir diferentes que podem estar atribuindo valor ao
trabalho escolar.
Ademais, outros movimentos são produzidos pelos funcionários da secretaria, da
limpeza, da segurança e da cozinha no cumprimento de suas respectivas tarefas e,
no modo de funcionar da escola, acabam convocando os demais servidores a ajudar
na orientação e disciplina dos alunos na escola. Convocando, parece-nos, por parte
170
desses, um agir solidário que não é determinado, mas incorpora-se à demanda de
fazer acontecer o trabalho docente da melhor forma possível diante das condições
existentes.
A escola parece se compor como um campo de possíveis ilimitado. Parece ser
campo fértil de potência criadora, produtora de modos de existir que contribuem para
a produção de outros modos de fazer acontecer a escola: mais fraternos e coletivos
que afirmam a vida como bem comum e não como bem privado e controlado pela
lógica mercadológica.
Sabemos que isso tem sido difícil na atual configuração das políticas
governamentais, mas a vida insiste e é nessa insistência que apostamos.
Como campo de possíveis, a escola acontecendo produz estratégias que dão
visibilidade a atividades “invisíveis” por meio dos trabalhos de cada turma,
construídos com os professores. Com essas ações, é também possível perceber o
valor sem dimensão da prática docente. É possível pensar a escola como coletivo,
mesmo com seus turnos, com suas singularidades e todas as suas diferenças.
Nesse sentido, as apresentações culturais e científicas como: festas juninas e
apresentações de teatro, jogos estudantis e dia dos estudantes, com produções
coletivas de toda a escola se constituem como potentes ações que podem dar
visibilidade ao valor de uso social do trabalho docente que se produz em sala de
aula. O trabalho coletivo aí se constitui como um diferencial das aulas tradicionais,
que se resumiam em trabalhos indivuduais ou de grupo na turma.
A escola não se limita a prescrever modos de conduta social e reproduzir
conhecimento. Entendemos que ela precisa ousar mais em práticas que ampliem o
conceito de trabalho coletivo para além da sala de aula e da forma de organização
curricular disposta em seriação.
Considerando esse plano do possível da escola ser uma produção coletiva
articulada nos seus diferentes turnos, questões ressurgem com novos valores e
significados, tais como: qual o valor do trabalho docente? A escola é reprodutivista?
A escola é uma escola emancipatória? A escola é só conteudista? O que é uma
escola cidadã? Quantas escolas existem numa escola? Essas questões não
171
pretendem ser respondidas neste trabalho. São questões para pensar, mas vale
deixar registrado como esse olhar para o chão da escola nos fez estar formulando
essas questões na medida em que, mesmo com uma direção de pesquisa, outras
emergem no processo e nos puxam e nos recolocam em frente ao foco inicial da
pesquisa.
Depois de três meses atuando na escola, percebemos que o estabelecimento
escolar funciona com um tipo de organização em que o que é produzido em sala de
aula é pouco socializado na escola. Verificamos que tanto os alunos como muitos
professores desejavam que acontecesse a produção e a socialização como um ato
de amor54 de (con)viver outras relações sociais de produção. Isso, além das que se
firmavam em torno do “conhecer o conhecimento” em forma da relação ensino-
aprendizagem formalizado como conhecimento escolar e normalizado por uma
forma de organização predeterminada técnica e juridicamente. Essa forma de
organização parece tentar manter invisível a multiplicidade de vida que habita a
escola na tentativa de dissipar o som do processo de produção que lá acontece de
diferentes formas.
Como exemplo de outras relações de produção que ocorrem no meio escolar,
podemos citar as apresentações, mostras e feiras culturais, desportivas e científicas,
oficinas de teatro e outras atividades que ampliam o conceito da produção escolar.
Essas outras relações podem ser potentes em afirmar o valor sem dimensão da
gestão do trabalho docente realizado em sala e dar mais visibilidade a essa potência
da atividade docente, como um bem comum produzido como trabalho coletivo e com
o reconhecimento da comunidade local.
Sobre essa experiência na escola, percebemos a riqueza de estratégias que são
colocadas em ação por todos agentes da escola para que se deem conta da
atividade docente. Pode-se dizer que ela não começa e nem termina na relação
professor – aluno e nem em cada um desses. Podemos afirmar que a atividade
acontece antes de abrir os portões e tocar o primeiro sinal de entrada. Ela envolve
vários interesses e valores dimensionados e sem dimensão, e os outros agentes
(funcionários, pais, mães, associação de moradores, sindicato, técnicos da 54 O ato de amor ao qual nos referimos diz respeito ao amor proposto por Maturana (2002), como algo inerente à espécie “hominídea”.
172
SEDU/Serra), de formas visíveis e invisíveis, que participam da escola como
comunidade escolar e, com suas convicções conflitantes, lutam para afirmar uma
escola produtora de um pensar/agir, que aposta em construir caminhos de se viver
coletivamente melhor.
Não queremos dizer com isso que a escola deve se resumir aos eventos e às
festividades. Mas, sim, que a escola deve se dispor a trabalhar mais coletivamente,
socializando suas experiências e dando-lhes mais visibilidade, de forma que elas
possam se tornar coproduções com as turmas e turnos da escola. Sobre essa
prática que se constrói no cotidiano da escola, podemos dizer que ela contribui para
produção de autonomia, como também de normas e valores que podem disparar
processos de atribuição de valor sem dimensão à atividade docente. Assim, no
cotidiano, produz-se a capacidade do professor de gerir seu trabalho como valor de
uso que deve nutrir a sua autonomia e o debate de negociação e valorização
institucional (de mercado) do trabalho docente com os gerentes e o “patrão”.
6.4 AS POLÍTICAS DE GOVERNO E A PRODUÇÃO DO VALOR DA GESTÃO DO TRABALHO DOCENTE: A VOZ DA ESCOLA
Este item foi organizado para relatar como os trabalhadores da educação
vivenciaram e perceberam as políticas educacionais implementadas durante o
período estudado (1997 – 2004), procurando focalizar e analisar como se deu o
processo de atribuição de valor ao trabalho docente nas escolas de ensino
fundamental da Rede Municipal da Serra/ES.
Nesse sentido, recorremos às entrevistas para construí-lo. Buscamos dar visibilidade
ao valor da gestão do trabalho docente a partir da voz do trabalhador da educação,
considerando o olhar ergológico.
Para a efetivação desta pesquisa, buscamos educadores que vivenciaram a
educação da Serra durante o período de governo de 1997 a 2004, com o intuito de
compreender os efeitos das políticas de governo na organização do trabalho escolar.
173
Quais aspectos diferenciam a escola do período 1997/20004 da anterior? O que
mudou na sua organização? Como a política educacional do período investiu em
ações visando à valorização do trabalho escolar? Que efeitos essas políticas
produziram na atividade docente?
Partindo dessas questões, um dos professores entrevistados responde:
Nem com um prédio novo as coisas mudaram. Continua chovendo dentro da escola. [Isso foi alusão ao prédio novo que, mesmo sendo uma construção nova, quando chove, as águas da chuva descem pelas paredes do prédio e molham a escola]. Brincadeira, mas é verdade. A escola continua quase a mesma. Agora com mais alunos, a escola parece um depósito de crianças. Isso é que mudou. Estar na escola não está sendo fácil. Você luta todo dia para tentar fazer algo de melhor. Às vezes parece ser em vão e uma luta solitária. A gente pouco conversa sobre a escola, o nosso horário é apertado e pesado. Temos que sair logo para a outra escola.
Essa fala desse professor evidencia questões que interrogam o tempo da escola
como campo a ser pensado no sentido de se rever a qualidade desse tempo e a
quantidade do tempo para estar com o aluno e o tempo para se pensar outras
formas de gestão da escola.
A questão da gestão do tempo da escola é uma discussão importante e que deve
ser discutida coletivamente. O trabalho docente não se resume às atividades em
sala de aula. O aluno é da escola e não daquela professora ou daquela disciplina.
As singularidades da sala de aula também são atravessadas pela gestão dos outros
profissionais da escola e técnicos da Secretaria da Educação, como também são
atravessadas pelos interesses da comunidade local.
Quando tratamos da questão da autonomia, remetemo-nos ao campo dos possíveis
que a cogestão nos oferece. A aposta é na direção de que atribuir valor à gestão do
trabalho docente significa dar visibilidade aos valores sem dimensão que são
produzidos com a escola, como: autonomia, solidariedade, formas de organização,
produção de experiências e saberes. É considerar tais valores sem desconsiderar a
articulação necessária com a produção dos valores dimensionados, principalmente
aqueles produzidos no campo do econômico.
174
6.4.1 Considerações sobre o processo de entrevistas e o olhar dos trabalhadores
As entrevistas realizadas se constituíram em estratégia para que os trabalhadores
da educação pudessem dar mais visibilidade às suas inquietações e falar como se
constituem os modos de gerir o trabalho docente na escola e tentar discutir com eles
o processo de produção de atribuição de valor da atividade docente, considerando
as ações implementadas pela Administração Municipal como política de valorização
do trabalho escolar.
Consideramos que a discussão da valorização do trabalho docente torna-se
necessária e importante, tendo em vista a construção de uma escola pública
comprometida com a qualidade e afirmação da vida e das relações sociais e menos
comprometidas com a relação custo/beneficio e valorização das relações baseadas
na lógica do mercado.
Apoiamo-nos, inicialmente, no modo de fazer pesquisa das Comunidades Ampliadas
de Pesquisa (CAP).55 O modo de fazer pesquisa das CAPs fundamenta-se na
produção de diálogos entre os trabalhadores de uma determinada profissão com os
acadêmicos que se colocam na tarefa de compreender, com esses trabalhadores,
como se produz o modo de funcionamento da atividade de trabalho em questão.
A partir desse entendimento, fomos construindo estratégias para dialogarmos a
temática da valorização do trabalho escolar com professores e, assim, apresentar
este trabalho como uma contribuição ao debate da valorização do trabalho docente
em escolas públicas.
O interessante desse processo de entrevista foi perceber que o grupo reunia
experiências em vários campos e situações de atuação na educação. O grupo de
entrevistados foi constituído por 12 pessoas. A maioria era da escola pesquisada,
acrescida de mais duas professoras da rede, uma representação da direção e outra
55 A CAP foi construída tendo como referência as Comunidades Científicas Alargadas (CCA) propostas por Oddone. A proposta de Oddone consistia na articulação dos saberes acadêmicos com os saberes da experiência dos tabalhadores, com o sentido de potencializar as formas de gestar e transformar o ambiente de trabalho a partir do conhecimento dos próprios trabalhadores, já que são eles próprios que vivenciam a situação de trabalho. Para Oddone, essa modalidade de produção de conhecimento é uma modalidade de pesquisa não ritual. A pesquisa não é coisa só de especialistas.
175
da coordenação municipal do SINDIUPES, e uma outra da SEDU/Serra. Todas
trabalharam na educação do município entre 1997 e 2004.
Das pessoas que participaram da pesquisa, três já haviam exercido o cargo de
direção; três trabalhavam na Secretaria de Educação; quatro já exerceram a função
de coordenador; um participou da direção do SINDIUPES; e quatro da coordenação
municipal do SINDIUPES.
Nesse grupo, todos cumpriam, no mínimo, dupla jornada de trabalho (municipal e
estadual; municipal e rede particular; e municipal e municipal). No momento da
realização da pesquisa, uma pessoa estava aposentada em uma matrícula e outra
afastada da docência por laudo médico e em desvio de função.
Outra questão interessante que surgiu no processo de entrevista foi que as falas não
tratavam apenas das experiências vividas na escola pesquisada, mas se constituíam
em falas sobre as escolas nas quais os profissionais já haviam atuado na rede. Essa
produção mais ampla das falas se deve ao processo administrativo/estatutário de
remoção que promove a movimentação dos professores na Rede Municipal em cada
período letivo.
Outra informação importante diz respeito à questão da saúde. A maioria dos
entrevistados tirou licença médica na gestão desse período, por motivo de estresse,
lesões por esforço repetido, processos alérgicos, dentre outros motivos.
As entrevistas, coletivas e individuais, que produzimos se pautaram em firmar o
objetivo de articulação entre os saberes dos trabalhadores e os saberes
acadêmicos. O objetivo era produzir um arcabouço teórico sobre o processo de
valorização do trabalho docente que permitisse aos professores se colocar na
discussão da valorização da escola e do trabalhador em educação de modo ativo e
numa dimensão coletiva de produção de políticas na direção da qualidade social da
educação pública.
Consideramos que as discussões das políticas que garantam melhores condições
de se trabalhar/existir na escola são fundamentais. Essas discussões só devem ser
produzidas, e porquanto serem produtivas, se acontecerem com a participação ativa
dos atores, como professores. A produção dessa discussão sem a presença ativa
176
desses trabalhadores pode produzir mais formas duras de se organizar o trabalho
escolar, produção de regras arbitrárias e estranhas à vida dos que trabalham
cotidianamente como professores do ensino público.
Nesse sentido, o professor nos diz:
Apesar de tudo que estamos vendo e sofrendo, a escola ainda é o espaço em que a população deposita esperanças para os seus filhos. Mesmo com todas as dificuldades do dia a dia, a violência, a falta de condições de trabalho, nós, que estamos na escola convivendo diariamente com os alunos, muitos de baixa renda, também acreditamos e depositamos esperanças na escola pública. De uma forma ou de outra, acho que é isso que dá sentido e força para estarmos aqui lutando por uma escola melhor, diferente dessa. Os pais acreditam na gente. Com certeza não deve ser só o salário que nos atrai até o palco da sala de aula.
Que valor se produz nessa atividade de trabalho que nos faz lutar por essa profissão
de educar/ensinar e faz a população acreditar nela como um bem comum?
Com relação às entrevistas, percebemos que muitas falas privilegiaram a discussão
da política salarial destinada ao magistério, focalizando a linha político-partidária que
orientava o prefeito no trato da educação municipal.
A discussão sobre os gastos/investimentos com a educação ocupa grande parte das
preocupações dos professores. Em especial, a política salarial tem grande
importância. Isso pode ser consequência do debate sindical na categoria em frente à
conjuntura econômica em que vivemos. Conjuntura em que os governantes se
prestam mais a obedecer às leis do mercado, defendem a lógica de contenção de
promoção das políticas sociais, das políticas de recomposição salarial dos
trabalhadores, em especial do serviço público, do que das políticas que
potencializam outros modos de gestão que podem contribuir para a produção da
gestão coletiva, da cogestão.
Segundo os professores que participaram das entrevistas, isso acontece porque
muitos deles se veem obrigados a se submeterem, pelo menos, a duas jornadas de
trabalho em escolas para dar conta da sua sobrevivência e da família.
Como nos diz uma professora:
177
Trabalhar em duas escolas ou mais, isso, é cansativo, mas necessário. Quem me dera pudesse ter só uma cadeira,56 trabalhar em uma escola só. Seria bem melhor e menos estressante. Isso seria quase o paraíso. Ainda estamos longe de isso acontecer. Parece que somos vistos com operários de fábrica [como o filme de Chaplin!], apertadores de parafuso.
Um outro professor, falando sobre a carga de trabalho, coloca:
Tem colegas que trabalham em três escolas. Não sei como eles conseguem dar conta de uma jornada dessa. Duas escolas já é demais pra mim. Acho isso um descaso com o nosso trabalho. Onde está a preocupação com a qualidade da educação? Às vezes fico pensando: Como fica a nossa vida nesse turbilhão? É só trabalhar, sem tempo pra mais nada (um barzinho, um cineminha)?
Como diz uma outro entrevistado:
A escola pode ser diferente e o professor pode ser valorizado e reconhecido se os governos realmente pautarem a educação como prioridade de governo. Muitos professores têm amor pelo que fazem, mas amor somente não enche barriga e muitas vezes nos vemos fracos e sozinhos, quando presenciamos tanta desvalorização com o nosso trabalho. O que falta realmente é vontade política e mais envolvimento da população com a escola, falta lutar pela sua qualidade e sua valorização.
Uma segunda discussão colocada foi em relação às condições de trabalho
associada à questão da infraestrutura. Para tanto, entendemos a necessidade de
compreendê-la no campo da dimensão ergológica. Ela pode ser pensada também a
partir de duas situações eixo: as instalações do prédio escolar e a organização do
espaço escolar.
A discussão evidenciou a necessidade de afirmar que a participação do trabalhador
da escola, na elaboração de projetos de reestruturação, de reforma e de ampliação
do espaço escolar, é fundamental para um melhor aproveitamento e promoção de
uma ambiente mais agradável para o trabalho escolar.
A terceira discussão diz respeito à dimensão do bem comum, no que se refere à
relação com a produção de estratégias de política de formação e da organização do
processo de trabalho. Percebemos que a política de formação continuada
combinada com a questão da carga horária de trabalho dos professores, destinada
às atividades extraclasse, como estudo e pesquisa, de uma forma geral, é regida por
normas institucionais comuns. Na discussão, uma questão que se evidenciou entre
56 A cadeira é um conceito utilizado pelo magistério para designar, geralmente, a sua relação institucional e quantidade de cargo na Administração Pública, podendo ser por meio de cargo efetivo, regime celetista e contrato temporário.
178
os docentes foi em relação à formação em serviço, como um dos pontos que merece
importância num processo de reformulação político-administrativa. A política de
formação defendida pela Secretaria é a de que a formação continuada deva
acontecer, de preferência, fora da jornada de trabalho considerando que essa
política é também de interesse do profissional do ponto de vista formativo e de
ganho econômico conforme o dispositivo estatutário do magistério serrano.
Uma quarta questão que compõe a discussão do valor da ação do trabalho docente
refere-se à gestão como uma dimensão atravessada pelo mercado, pela ergologia e
pelo político – bem comum. Aqui, as escolhas, da autonomia pedagógica e da
participação política, às quais vinculamos a questão da saúde do trabalhador,
também são eixos inseridos na produção da organização do trabalho e do valor do
trabalho docente, como um bem comum público social.
As falas dos participantes da pesquisa até aqui demonstram posições críticas e
propositivas em relação à atual organização das escolas no município da Serra.
Indicam que quem trabalha no “chão da escola” pensa e tem propostas para
transformar o modo de funcionamento do trabalho escolar com vistas a construir
uma educação com qualidade social, mais democrática e como um bem comum
fundamental a sociedade.
Nessa perspectiva de análise, passamos à discussão das políticas governamentais
executadas na educação entre 1997 e 2004, focalizando a questão da produção de
valor ao trabalho docente os modos de gestão produzidos pelos docentes para fazer
o trabalho escolar acontecer, observando como se produziram estratégias para
potencializar os processos de atribuição de valor à atividade docente na Rede
Municipal de Ensino da Serra-ES.
6.4.2 A discussão da dimensão mercadológica
A política salarial, formativa e educacional
179
“Todo político diz que o professor é uma missão.”
Num primeiro momento, a discussão do valor do trabalho docente se apresentou a
partir da questão econômica, dividida em duas vertentes: para a Administração
Central, os gastos com a educação, e, para os trabalhadores, a política salarial.
Geralmente, para o gestor público, a gestão financeira é positiva quando ele
consegue economizar, e essa economia está certamente marcada pelo corte de
gasto. Em nosso entendimento, a educação faz parte das políticas sociais e os
recursos destinados a essa área deveriam ser considerados como investimento
numa perspectiva social e pública de afirmação da vida e não apenas como gasto de
verbas governamentais.
Parece-nos que, enquanto estivermos ligados a essa concepção econômica do
capital, estaremos fadados a produzir experiências no campo da educação
marcadas por práticas pautadas em princípios economicistas, gerencialistas,
mercadológicos que pouco contribuirão para que a educação seja uma política
pública prioritária. Tal visão é reforçadora pelos discursos em que a educação só é
prioridade apenas como bandeira política que serve para justificar as ações de
governos, partidos e políticos em plataformas eleitorais, e não como política pública
de Estado.
Esse discurso de economizar na educação serviu para as administrações instituírem
políticas que se destinam a diminuir as conquistas de direitos dos trabalhadores em
educação pública. Na Serra, isso aconteceu com a reforma estatutária. Essa
situação está na memória viva da categoria como uma política de desvalorização do
trabalhador docente. Podemos dizer que essa reforma não foi uma produção social,
em que a atribuição de valor a essa política pública foi uma construção coletiva
dialogada em favor da própria educação municipal.
A questão salarial, das conquistas [...]. Nesse ponto a reforma do nosso estatuto foi um ponto negativo. Valorização está relacionada a valor e que a questão econômica está implicada nisso. A gente vê pela redução das pessoas interessadas na profissão de professor. Por quê? Porque a questão salarial não está sendo atrativa. Assim, você não atrai bons profissionais para a educação. Na Serra, tivemos avanços, mas não é o que a gente precisa. Por exemplo: das categorias de nível superior no município da Serra, a nossa categoria é a que recebe a menor
180
remuneração. Pra você ter o melhor profissional você tem que ter um salário atrativo, compatível. Você escolhe uma profissão, se forma e quer ser reconhecido e ter um salário bom pela sua profissão. Na primeira gestão, na questão salarial, não tivemos avanço nenhum. Pelo contrário, tivemos perdas. Na alteração do nosso estatuto e plano de carreira, o que aconteceu foi redução salarial na nossa tabela. A gente tinha uma referência, um intervalo de cinco por cento (5%) que caiu para três por cento (3%), e isso foi uma perda considerável. A progressão por antiguidade foi extinta. A gente percebeu um achatamento salarial. A gente demorou dois anos para corrigir a política de abono na nossa tabela salarial. Ainda teve a questão do decênio: caiu de 25% para 10%, e o merecimento só foi consolidado no final de 2004. Foram mexidas que prejudicaram muito o magistério. Outro ponto negativo foi como se deu a política de contratações: quando o profissional é contratado, ele não cria um vínculo com a história do município, com a comunidade escolar, com o projeto político da escola. A falta de concurso público, concurso que é uma bandeira histórica da categoria, a gente vê que foi uma forma de economizar e de não investir na educação (ENTREVISTADO).
Uma outra questão colocada é a da formação que está diretamente associada à
política salarial na medida em que o processo formativo, seja por iniciativa do
profissional, seja promovido pela Administração Municipal, tem efeitos positivos no
salário do educador.
Essa associação se dá porque o plano de carreira do magistério é estruturado a
partir dos níveis de formação do educador e de referências que dizem respeito aos
processos de avaliação de merecimento. Esses processos são divididos em um
processo de formação no local de trabalho ou junto à coordenação de área e um
processo de avaliação de desempenho por parte do corpo técnico pedagógico da
escola.
Assim, o educador que avança em cursos de licenciatura e pós-graduação percebe
um percentual a mais no salário e aquele que se inscreve no processo de avaliação
de merecimento e obtém êxito também recebe um acréscimo de três por cento na
base do salário.
Vale ressaltar esse ponto da política de formação, considerando que o governo de
1997 a 2004 se utilizou de ações diferenciadas para diferentes grupos do magistério
serrano. Percebemos que os cursos de formação oferecidos pela Administração
foram mais destinados ao corpo técnico pedagógico, mais especificamente para os
diretores das unidades de ensino. Com relação aos professores, os cursos foram
mais para a educação infantil, os primeiros anos das séries inicias e educação para
181
necessidades especiais. Poucas ações foram destinadas ao pessoal das séries
finais e aos professores que atuam com os dois últimos anos das séries iniciais.
Um projeto de formação, realizado nessa gestão, que recebeu críticas de
professores, foi o projeto de formação a distância conveniado com a UFES, para
habilitar os professores que não tinham licenciatura plena. Para esses, o impacto
político foi muito mais econômico do que pedagógico. Com a conclusão desse curso
de formação em nível superior, o professor pode avançar na tabela salarial do Plano
de Carreira e Vencimentos, do nível I até o V, que representou um aumento
remunerativo em até 40%.
Do ponto de vista formativo, esse tipo de curso provocou muitas interrogações.
Segundo alguns professores:
O formato desse tipo de curso oferece pouco crescimento ao professor. Propõe pouco debate coletivo da prática de sala de aula. Com os encontros quinzenais, me parece, seja para provas e para os encontros com os tutores, o professor acabou tendo que fazer sozinho, muitas coisas. E, mais que isso, acabou tendo mais uma jornada de trabalho, já que ele continuou dando aula durante o curso. Muitos fizeram o curso pensando no aumento do salário, e a Prefeitura sabia e contou com isso. Essa política dividiu um pouco o movimento (ENTREVISTADO).
Por outro lado, não podemos negar que a participação nesse curso, de alguma
forma, produziu efeitos positivos na atividade e na vida em seus diferentes planos
para alguns outros professores:
O curso, para mim, foi ótimo. Pude refletir sobre a minha prática de sala de aula. Fortaleceu algumas coisas que eu já fazia na escola e repensei outras. Foi muito interessante apesar de o formato ter sido mais não presencial e fora da hora de trabalho. Eu acho que melhorei. Fiquei com mais energia e melhorou o meu salário. Vou curtir mais a minha aposentadoria (ENTREVISTADO).
Com relação à política educacional, ressaltamos o Programa Escola Campeã, como
uma política da gestão do segundo mandato municipal que não deu conta de atingir
os objetivos de melhorar os resultados educacionais e produzir uma melhor
organização do trabalho escolar.
Recuperando essa discussão, o Escola Campeã era um projeto político de
gerenciamento da educação do Instituto Ayrton Senna, voltado à redução da evasão
e repetência escolar. Comprometido com metas e objetivos previamente
182
estabelecidos, esse projeto valia-se, também, de uma metodologia de ação já
determinada para chegar ao “sucesso educacional” em cada escola.
Como o programa foi imposto às escolas sem diálogo e sem a possibilidade de
intervenções dos professores, ele foi considerado estranho ao cotidiano da escola e,
em certos momentos, capaz de promover sofrimento por tentar impor a política de
aprovação do aluno a todo custo.
Sobre essa questão, um professor entrevistado diz:
O Escola Campeã não foi bem aceito nas escolas. Para alguns professores era até assustador ouvir falar nele. O Projeto tinha um grupo da SEDU para acompanhar o rendimento das escolas de ensino fundamental. A educação Infantil não tinha isso. Se, numa escola, o rendimento estivesse aquém do desejado, a equipe baixava lá para reverter o quadro, a estatística, de qualquer forma. Soubemos de professores que tiveram que modificar o resultado das suas avaliações e de resultados finais, para que o projeto atingisse o índice esperado. Muitos professores se estressaram com a pressão exercida na escola e até adoeceram. Isso foi uma política negativa. Os resultados: estamos vendo agora, aí, nos exames nacionais. E ainda tentam culpar o professor. É uma piada isso. Eles não reconhecem o nosso trabalho e acham que basta comprar um produto no supermercado (da educação), que vai resolver o problema da educação e do rendimento. Nas assembleias sempre tinha uma fala criticando o Escola Campeã, do Instituto Aryrton Senna. E o PDE (Plano de Desenvolvimento da Escola, eu acho?) que vinha no pacote. O pessoal criticava mesmo e falava pro sindicato pedir o fim do convênio com o Instituto (ENTREVISTADO).
Vale dizer que, quando o profissional vê a sua atividade pouco reconhecida,
aprisionada por modelos “estranhos” e que pouco permitem dialogar com a sua
realidade e a experiência escolar, a resistência se apresenta com força de
(re)existência, criadora e produtiva. Essa resistência não é uma escolha política pela
oposição, mas, fundamentalmente, uma escolha pela atividade como algo que nos
faz (re)existir e nos afirma como viventes e transformadores dos processos de
trabalho.
O cotidiano da escola é imprevisível, cheio de variabilidade e exige apresentar
coisas diferentes para que a atividade docente aconteça da melhor forma possível.
Quando o professor vê a gestão do seu próprio trabalho sofrendo restrições, isso
pode gerar mal-estar, sofrimento e enfraquecimento. Será que não seria
interessante perguntar na escola, aos professores, que sugestões e propostas
poderiam ser discutidas e experimentadas para se tentar resolver as questões
referentes ao “rendimento escolar”?
183
Dentro do que foi discutido, acreditamos que a política salarial, formativa e
educacional, na Serra não pareceu ser muito diferente das políticas apresentadas
em nível nacional. Os Estados e Municípios acompanharam a agenda econômica da
reestruturação produtiva e flexibilização das relações de trabalho de cortar o máximo
de gastos com a área social.
Considerando essa perspectiva de administração do público adotada no período,
arriscamos a dizer que, apesar de alguns reajustes salariais, cursos de formação e
programas educacionais realizados nesse período, o que foi apresentado e realizado
não se constituiu em um processo de atribuição de valor à atividade escolar que
fosse capaz de produzir políticas institucionais potentes para o trabalhador em
educação; políticas capazes de afirmar autonomia e cogestão.
Como ressaltam os próprios professores da Rede Municipal da Serra, não podemos
negar que o processo de consolidação da gestão democrática (eleição para diretor
de escola e coordenador de turno; efetivação do Conselho de Educação, Conselho
de Acompanhamento e Controle social dos Fundos da Educação e dos Conselhos
de Escolas) foi uma política de governo que contribuiu para que se iniciasse, pelo
menos legalmente, o controle social na área da educação por parte da sociedade
civil serrana organizada.
Vale dizer, ainda, que a gestão democrática é uma construção histórica em que os
interesses políticos dos grupos sociais se misturam. Além disso, esse é um processo
político cujo espaço é aberto e os próprios professores podem participar de um
modo ativo na busca do bem comum para a escola.
6.4.3 A discussão da dimensão ergológica: a questão da organização do trabalho
A produção do modo de gestão e a questão da saúde
184
Num segundo momento de análise, podemos dizer que os professores apontaram
aspectos comuns que dizem respeito às relações de poder nas negociações da
política salarial. Ou seja, a partir do campo de forças do jogo político, em que o
governo se apresenta como “patrão”, as regras do jogo eram ditadas e ações
chegavam como pacotes impostos pela Administração Central, sem uma discussão
mais aprofundada e mais aberta a outras propostas construídas no espaço das
negociações com os representantes sindicais e muito menos com os docentes que
estão nas escolas.
Com isso, as políticas governamentais pouco traziam do reconhecimento do saber e
da experiência desses profissionais que lutam buscando construir ações que
possam valorizar o trabalho escolar no sentido de contribuir para a produção de uma
educação com qualidade social.
As regras de jogo impostas pela Administração Municipal pareciam estar voltadas
para pressionar os trabalhadores da educação em aceitar as políticas educacionais
e salariais como um benefício e uma demonstração dos esforços político e
econômico possíveis para o momento histórico. A pressão era exercida a partir do
entendimento de que essas regras são uma produção respaldada pelos técnicos e
assessores especialistas em educação, que estão a serviço da Administração
Municipal e, supostamente, em condições de terem uma visão mais geral da
educação municipal e nacional.
O grupo que participou da pesquisa argumenta:
Para a administração, os professores são como operários e os alunos mais um número, um dado [... ]. O aluno é como algo que pode ser fabricado como um carro, um computador. É como Tempos Modernos de Chaplin! Nós estamos ali para apertar os parafusos das crianças e cumprir as tarefas como os chefes e ciência determinam. Basta ver que o ‘Aceleração’, o ‘Se liga’ e o ‘Escola Campeã’ , foram bem isso, né mesmo !?... Eles só se esqueceram de nos dar as ferramentas e as condições necessárias para fazer bem o nosso trabalho. Digo isso, porque, quando da reformulação estatutária, foi proposto à Prefeitura aumentar as horas de planejamento e trabalhar turmas com 25 alunos, além de outras questões. Foi tudo recusado. Ela reformulou o estatuto segundo os seus interesses. O SINDIUPES serviu mais como legitimador do processo na tentativa de fazer valer as nossas reivindicações. Nós perdemos muito com a reformulação do estatuto (ENTREVISTADO).
185
A gestão municipal, considerando os dois mandatos, aconteceu num período em
que os interesses em jogo na política nacional produziram um movimento
institucional mais coeso entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essa coesão
institucional dos três poderes estatais fez com que os movimentos sociais de luta por
direitos constitucionais, sociais e humanos e, também, por melhores salários e
condições de trabalho, passassem a ser ainda mais marginalizados e pressionados
institucionalmente.
Nesse novo cenário, a adesão do docente às ações dos movimentos reivindicatórios
dos trabalhadores no cenário nacional poderia significar punição que poderia resultar
em isolamento no local de trabalho, demissão e, até mesmo, prisão. Para as
organizações dos movimentos (sindicatos, associações e outros movimentos
organizados) essa punição poderia resultar em multas diárias para as organizações
que descumprissem as ordens judiciais e, em algumas situações, indicação de
prisão para seus dirigentes.
Essa nova conjuntura colocou em xeque muitos movimentos sociais que se
colocavam na luta por mais direitos sociais e políticas públicas governamentais em
favor da maioria da população.
Esse Governo Municipal aconteceu num período da história em que o trabalhador
passou a ser mais exigido no sentido de cumprir mais funções no processo de
trabalho, mas sem perder o sentido de hierarquia e do seu lugar. É o período de
promoção de qualidade total como modelo de gestão do mundo do trabalho.
Nesse contexto, os processos de atribuição de valor ao trabalho passam a ser
marcados pela competição, individualismo e consumismo apregoados pela lógica
mercadológica e dualista das relações de trabalho.
Parece existir um vazio, um abismo institucional e organizacional entre os que
trabalham no Órgão Central da Secretaria e os que estão na escola. Parece que os
interesses são opostos e muito diferenciados entre esses dois tipos de organização
existentes numa rede de ensino.
Como nos foi dito:
186
A situação é meio estranha. Parece que os que trabalham na SEDU são adversários de quem está na escola e vice-versa. Se você está no Órgão Central e fala algo em favor das propostas do SINDIUPES e de quem está em sala de aula, na escola, muitas vezes você é malvisto. E o mesmo acontece quando você está na escola e fala algo do pessoal da SEDU. É maluco isso! (ENTREVISTADO).
Complementando essa fala, podemos registrar a tensão que é trabalhar no Órgão
Central, quando se fala:
Mas posso dizer que é complicado trabalhar no Órgão Central. É muito tenso. Se você age numa linha reflexiva e isso significa achar que as propostas da categoria são mais coerentes, você pode ser visto como uma pessoa que não serve para estar lá e podem até te olhar como se você estivesse contra o secretário e até mesmo contra o prefeito. Te olham com desconfiança e você tem que ter estrutura para não se sentir um estranho no ninho. É complicado! Parece que e não pode haver diálogo do Órgão Central com a escola e que a qualidade do ensino não é a prioridade. A gente sabe que educação só se faz com conversa, parceria (ENTREVISTADO).
Estabelecimentos se transformaram com a reestruturação produtiva e se renderam a
um novo tipo de gestão. Fortaleceu-se ainda mais a adesão às formas de gestões
ditas como de “caráter científico”, comprometidas com metas preestabelecidas e
com procedimentos predeterminados para se atingir as metas e os resultados
definidos a priori.
Dizem os professores:
Parece que a Secretaria (da Educação) fica distante das escolas. O pessoal da Secretaria parece que vem a escola para jogar as coisas pra gente se virar, vem impor as suas políticas de gabinete que nem sempre são eles que elaboram, são pacotes que são comprados no mercado. Acho que ainda existe uma separação entre SEDU e a realidade da escola. Eles, quando aparecem nas escolas, chegam com jeitão de chefes e acham que temos que fazer tudo que eles querem. A vida na escola é bem diferente. Chegam cheios de autoridade com os projetos, propostas e o seu receituário de soluções, mas não ficam para executar e ver como os alunos reagem. Mal conversam com a gente, só querem falar e ditar as regras. Às vezes fingem que nos ouvem quando é interessante acalmar alguma situação complicada (ENTREVISTADO).
Um outro professor argumenta:
Os gestores parecem estar sempre desconfiados. Sempre falam que somos corporativistas. E eles? Quem está na escola parece que não tem condições de refletir e fazer boas propostas para melhorar a escola. Só servimos pra segurar aluno na sala e cuspir giz? Parece que a gente não sabe pensar. Só máquina aperta parafuso. Nós não somos máquinas, todo ser humano pensa e cria. E a gente, na escola, que a gente conhece como ela é, exige atenção e o exercício de pensar o tempo todo. Se a gente não fizer algo mais e seguir só a receita de bolo da Secretaria, não sei, não. Se assim, sem condições de trabalho, já conseguimos tanto, imagina com
187
bons salários e tempo para pensarmos mais sobre a nossa prática na escola. O que seria, né!? Pior do que está não seria, com certeza! A gente só precisa de mais espaço e tempo para conversar, dialogar e experimentar mais [...]. A escola é um fazer coletivo. Por isso, salas lotadas e jornada dupla é uma condição de trabalho negativa para o professor.
Horas de planejamento/formação insuficientes, jornadas duplas e triplas de trabalho
são alguns dos efeitos das políticas dos técnicos da Secretaria da Educação levadas
à escola. Técnicos que, mesmos tendo vivenciado o “chão da escola”, parecem,
muitas vezes, não conhecer o que os professores fazem na escola, quais são suas
sugestões, suas propostas. Não seria interessante produzir espaços institucionais
permanentes para se fazer o diálogo entre esses atores que habitam a Secretaria e
a escola em favor de uma escola mais democrática e viva?
Uma outra questão que foi apresentada é a legislação vigente. Será que o
funcionamento do ensino organizado com as 800 horas, 200 dias letivos e quatro
horas de trabalho consecutivas com o aluno tem sido produtivo para a educação?
Pensar um outro tipo de funcionamento não poderia melhorar a organização do
trabalho escolar? Será que a escola consegue cumprir o que está previsto na LDB?
Como o professor tem vivido essa realidade nas escolas?
Pensando nessas questões, talvez seja necessário que se invista em outras ações
para se superar os valores que sustentam essa lógica de funcionamento e, com
isso, construir espaços para o diálogo dentro da escola, diferente desses que estão
institucionalizados e impostos legalmente ao educador hoje.
Para os professores, o que interessava à Administração é manter o docente o
máximo de tempo possível em sala de aula e que o tempo destinado ao
planejamento, à formação e às reuniões pedagógicas e administrativas acontecesse
cada vez mais fora do turno de trabalho:
A maioria trabalha em outro lugar ou estuda. Para resolver os problemas da escola e ‘pensar’ a escola como um todo, não vai ser ficando o tempo todo direto na sala de aula. Não é uma questão de rebeldia, não. Mas se não fizermos as reuniões reduzindo o tempo de aula ou dispensando turmas mais cedo, a escola não anda, as coisas pioram e o aluno fica mais prejudicado mesmo. Quando a direção e a SEDU querem fazer reunião ninguém fala que o dia letivo tem que ter quatro horas (ENTREVISTADO).
Como apresentamos no capítulo anterior, o aumento da carga horária para outras
atividades pedagógicas (planejamento, formação e pesquisa) não foi aceito durante
188
a reformulação estatutária. Contudo, ainda hoje, esse debate se faz presente na
pauta de reivindicação dos professores.
Essa questão apareceu como uma das soluções possíveis para melhorar a
organização do trabalho escolar, com vistas a torná-lo uma construção coletiva e
democrática.
Um professor ressalta:
Esse negócio das quatro horas diárias com os alunos, eu acho, que, os professores, principalmente os alfabetizadores, tinham que ter remuneração integral... Dedicação exclusiva. No primeiro horário, eu trabalharia com a criança em sala e, no outro horário, eu iria me preparar, estudar, pesquisar, fazer projeto interdisciplinar, para trabalhar melhor o que eu trabalhei hoje. Eu já tenho colocado isso em alguns momentos de estudo na escola e fora da escola. Na Administração (1997 – 2004) isso era muito mais difícil de fazer. Hoje, na gestão desse prefeito (2007), isso é mais flexível. Acho que precisamos parar de dar jeitinho, de fazer reuniões apertadas (curtas) depois do recreio e, ainda mais, nos sábados sem ganhar hora extra. Ah! Mas se for preciso a gente continua fazendo para resistir (ENTREVISTADO).
Com essa lógica de organização atual, a possibilidade de construção de outros
espaços é muita restrita. Acreditamos que essa organização pode ser melhorada e
pode ser diferente.
Todo professor faz hora extra de graça. Não estou falando de correção de provas e de preparação de atividades. Nós saímos da escola e levamos o Gabriel, Paulo Victor e Aline. Ficamos pensando no comportamento deles, nos questionamentos, nas suas dificuldades e, em como incentivá-los para que eles mostrem a sua capacidade, o que eles realmente sabem. Isso aí faz parte do nosso trabalho. São as letrinhas do contrato que ninguém discutiu com a gente na universidade. Nós aprendemos isso é ralando na sala de aula (ENTREVISTADO).
As jornadas integrais e as jornadas com mais horas destinadas a outras atividades
extraclasse não melhoram a qualidade da educação? O saber que o educador
produz com a sua prática não merece ganhar visibilidade e ser socializado com os
colegas e institucionalmente? Suas experiências não possuem valor para o
conhecimento e não mereceria ser apreciado, discutido e experimentado como outro
possível caminho para se fazer o trabalho docente com mais qualidade social?
Como podemos perceber, do ponto de vista legal, as escolas da Serra
apresentaram, durante esse período de governo, pouca flexibilidade legal de horário
destinado a espaço de formação coletiva dentro da escola e na rede. Hoje a Serra
189
já apresenta algumas experiências de formação positivas, mas que dependem ainda
da posição de cada governo em mantê-las.
Uma outra situação colocada é a questão da política de substituição de professores
em caso de ausência justificada, falta e licença médica. Essa situação é recorrente
nas escolas e muitos acreditam que a figura do professor substituto é indispensável
para o seu bom funcionamento. Parece-nos que essa cultura da “substituição”
precisa ser debatida com mais propriedade no sentido de ser renormatizada para
que possa atender aos interesses da comunidade escolar e, em especial, do aluno.
Segundo os professores:
A SEDU sabe, o Prefeito sabe, o aluno sabe e a comunidade sabe. As nossas escolas não sobrevivem sem a professora substituta. Isso não é mais uma tentativa de burlar a lei para não cortarem o nosso ponto. Quanto falta um professor, já é problema. Quando falta mais, é uma loucura. Aí, quem sofre é o coordenador e o diretor. É mãe no portão, com certeza! Ela também se vê prejudicada (ENTREVISTADO).
Outra questão já anunciada no estudo diz respeito ao número de alunos por turma.
Quando a escola passa a ser um depósito de crianças e não mais um espaço onde se dá a educação, ela deixa de cumprir o seu papel. O elemento superlotação, depósito de crianças, tem interferido. Quando você pega uma sala de aula pequena e enche de aluno, você quer uma educação de qualidade? Quando uma criança sai de casa, ela pensa que vai encontrar tudo que ela não tem em casa e, aí, ela se vê num cubículo, a coisa fica crítica. Fica difícil ser criativo assim. Você tá sempre jogando no atraso. A Prefeitura tem que reconhecer que, se ela quer de fato reduzir os índices e tornar essas crianças cidadãs, precisa mudar essa política das salas lotadas. A gente sabe que isso não acontece só aqui. É uma política nacional. O mercado manda e os secretários mandam pra gente se virar na escola (ENTREVISTADO).
O cotidiano escolar se constitui a partir das negociações que os trabalhadores fazem
para que a escola possa funcionar. No dia a dia, pode acontecer: falta de professor
e de outros funcionários, licenças médicas, falta de material didático, falta de água,
acidentes nas aulas de Educação Física, brigas de alunos e outros imprevistos que
exigem a produção de estratégias para dar conta desses aspectos que também
compõem o processo de trabalho. Às vezes, uma redução da jornada diária de uma
turma e de um turno, uma aula vaga para determinada turma, um remanejamento de
professores fazem-se necessários na escola. E, para isso, impõem-se negociações,
estratégias, que muitas vezes fogem às determinações legais previstas nos
regimentos jurídicos e administrativos. E é isso o que acontece diariamente. É o
190
trabalho real. É a forma como a estratégia é criada e expressa quais valores entram
em cena.
Dentre algumas ações que podemos destacar, no âmbito da gestão analisada, a
experiência realizada com a educação infantil foi interessante. Depois da passagem
dessa etapa da educação básica da Secretaria de Ação Social para a Secretaria de
Educação, algumas experiências de formação foram produzidas com bons
resultados.
Um professor com atuação tanto na educação infantil como no ensino fundamental,
relatou:
Falando do ponto de vista da formação e do pedagógico, vejo que o Programa Escola Campeã foi um ponto negativo do governo. Lembro que, nesse período, nas creches, nós fazíamos encontros entre as unidades. Esses encontros eram no horário de trabalho. Um grupo de professores de duas ou três unidades ia a uma outra unidade para fazer encontros de formação. Nesses encontros, a gente discutia os problemas e soluções para as nossas escolas. Será que isso serviria para a minha a aula, para minha creche? Era muito interessante. Isso já não acontecia na escola de ensino fundamental. O Escola Campeã só queria resultado, só queria atingir as metas de redução de aprovação e evasão da escola. O PPP e a autonomia da escola e dos professores não eram respeitados. Esse período foi muito difícil nas escolas. Acho que isso foi positivo principalmente porque era durante o horário de trabalho. Nós, geralmente, temos mais uma outra jornada e a jornada familiar. Se a gente tivesse mais tempo para esses encontros, para discutir os problemas da escola com outros colegas da escola e de outras, poderíamos melhorar muito as escolas (ENTREVISTADO).
A organização do trabalho docente precisa de movimento de dobradura para lidar
com essas situações que fazem parte do trabalhar. Situações que nem sempre são
colocadas nas mesas de negociação com os administradores e tampouco são
reconhecidas nos processos de produção do valor da gestão do trabalho escolar.
Na discussão da organização do trabalho, percebemos, também, o debate da saúde
ganhando visibilidade. Essa questão da saúde vem atravessando o debate salarial,
o debate da gestão e ganhando importância na produção de novas políticas para a
organização da escola.
Um dos indicadores é o esforço do SINDIUPES em criar uma Secretaria da Saúde e
levar o debate da saúde para a categoria. Mas isso só foi possível a partir do
momento em que o sindicato se pôs a escutar “os gritos” e os “silêncios” da
categoria.
191
Naquela época, a situação era tensa (hoje não é muito diferente, mas está um pouco melhor), havia muitos problemas. Não bastasse a falta de professores, de pessoal de apoio, ainda tínhamos que conviver com uma escola em péssimas condições. Precárias! Foi uma época em que muitos professores ficaram doentes e com problemas psicológicos. Essa questão precisa ser debatida. Tá muito sério essa coisa da saúde do professor. Não teve como evitar. Tivemos que chamar a comunidade e lutar pela construção da escola nova, antes que acontecesse uma tragédia. Talvez, se não fosse aquela situação caótica, estivéssemos trabalhando ainda nas mesmas condições, remendando aqui e ali. Há males que vêm para o bem (Aparentemente...). Puxa! Vocês Lembram como era?! O dia que eu vi as minhas crianças gritando, chorando e chuva caindo dentro da sala, a sala sem telhado, não teve como: chorei mesmo! Aquela situação me deixou chocada. E, no outro dia, voltar sorrindo e alegre, para as crianças não perceberem a gravidade da situação. Hoje, depois de muita luta, a escola está bem melhor, novinha (ENTREVISTADO).
Ações dessa natureza constituem-se em movimento de luta para se fazer o melhor
possível em frente à realidade vivida. Assim, ainda vale dizer que essas ações não
são construídas a partir de um vazio histórico. São produzidas com base em um
patrimônio acumulado pelos seus autores, em que são incorporadas as normas
antecedentes e os processos de renormalização da atividade.
Na produção de um outro modo de funcionamento, existem valores e saberes para
gerir o trabalho acumulado que são convocados para dar conta da tarefa e da
demanda que foi produzida.
É importante reconhecer que há valores e formas de gestão produzidos no dia a dia
da escola, que nem sempre são visíveis e nem percebidos por seus autores e,
muitos menos, pelos gerentes e “patrões”. Formas de gestão que se articulam e se
entrecruzam como possíveis de um novo modo de fazer o trabalho docente na
escola, para que ela possa funcionar privilegiando o que chamamos, a partir da
ergologia, de valores sem dimensão. Assim, busca-se uma forma de funcionamento
que afirma a escola como bem social público e que não seja paralisada por
determinações administrativas e legais produzidas com pouca ou sem participação
dos autores que estão na escola dando conta do seu funcionamento.
O cotidiano escolar tem nos mostrado que determinações administrativas e
legislativas são insuficientes para responder às demandas advindas da realidade
vivida na escola.
192
A gestão do fazer pedagógico
Nesta discussão, não objetivamos trabalhar focalizando a “não competência” e a
culpabilização como sinônimo de fracasso por uma suposta falta de “conhecimento
técnico”. Também não negamos que esse debate não seja necessário no sentido de
disparar questionamentos sobre o que se faz no “chão da escola”. Por um outro
lado, é interessante pensar que o “fracasso” nem sempre é sinal de incompetência.
Ele pode ser um dos “efeitos” do processo de trabalho que, como tal, exige
escolha(s), tomada de decisão, durante a realização da atividade, em determinado
contexto.
Portanto, vale dizer que essas referências foram produzidas pelos participantes da
pesquisa, contudo ficamos nos perguntando: em que contexto se deu a realização
do trabalho e que princípios avaliativos fundamentam o processo de atribuição de
valores que é capaz de considerar determinado fazer industrioso como não
competente?
Nesse sentido, a opção para esse debate foi trabalhar com o vivido que nos traz
potência, mesmo que o vivido possa parecer uma experiência pequena, invisível e
ingênua, ela pode ser produtora de força de (con)viver, como nos coloca um
participante da pesquisa:
Por mais que o professor seja pouco valorizado pela Administração, ele deixa marcas positivas no aluno com o seu trabalho. A gente vê isso na rua, quando, anos depois, o aluno chega e diz: ‘Oi, professor! Apesar das broncas, o Senhor me ajudou muito’. Se a Prefeitura tivesse mais compromisso e valorizasse mais o professor, acho que a coisa seria bem diferente (ENTREVISTADO).
Com relação ao fazer na sala de aula, professores relataram que, nesse período,
muitos tinham que dispor do seu próprio dinheiro para dar conta das tarefas básicas
da docência, assim como para fazer uma atividade diferente com os alunos. A
situação era de tal ordem que, em alguns momentos nas escolas, se o professor não
usasse desse expediente, podia ser culpabilizado e se sentir responsável pelo
insucesso dos alunos e, também, ser “taxado” como um profissional sem
compromisso com a educação, como disse o professor:
193
É a velha história de Toquinho [compositor e cantor de música popular brasileira]: ‘Era uma casa muito engraçada. Não tinha porta, não tinha nada [...]’. Mas tudo faz de conta. Você faz de conta que tem porta; faz de conta que tem janela; faz de conta que tem sala e faz de conta que tem investimento. Que tem valorização profissional. O sistema faz de conta que tem, e a gente faz de conta que está sendo valorizado (ENTREVISTADO).
Segundo os próprios professores, esse período, apesar dos confrontos entre
Administração e o magistério, principalmente na primeira gestão, foi uma etapa em
que, na escola, no dia a dia, foi possível fazer parceria entre a Administração
Municipal, o magistério e a comunidade extraescolar para que ela pudesse
funcionar. A leitura mais recente é de que essa situação já é bem diferente. Hoje,
tanto a escola como a Secretaria da Educação se colocam mais ágeis na aquisição
de materiais, apesar de toda a burocracia que cerca a aplicação de recursos
públicos, para que estejam disponíveis em menor tempo possível.
O professor, mesmo não recebendo o retorno necessário para a sua prática efetiva, ele tenta fazer alguma coisa. Ninguém gosta de ser rotulado de ‘incompetente’. Os pequenos sucessos dele com os alunos encantam a prática, para ele continuar batalhando. Eu vejo isso lá no dia a dia dos professores. Acreditar que se possa fazer algo mais, apesar da falta de valor que se dá ao trabalho, acontece no dia a dia do professor. Se não fosse assim... Como ele não recebe o reconhecimento, ele se atribui o merecimento com os pequenos sucessos, com os alunos e com a comunidade [...]. Na medida em que se resolve um problema, isso se transforma em realização dele, do professor (ENTREVISTADO).
Para o professor, a sala de aula, às vezes, é como uma “caixinha de surpresas” e
pode dar prazer. Talvez, por isso, e pela necessidade de ver o seu trabalho
valorizado, é que, muitas vezes, ele se presta a esse expediente de dispor do seu
próprio recurso financeiro, sabendo que é uma escolha que desobriga o Estado de
alocar recursos suficientes para a efetivação do trabalho escolar.
Neste debate, a questão da gestão do trabalho docente deve compreender a
participação política como um valor sem dimensão que compõe essa atividade, no
sentido de dar visibilidade ao debate, aos obstáculos e aos novos modos de
organização de trabalho que o trabalhador produz com o seu fazer.
Se o nosso trabalho fosse só dar aula e não se preocupar com outras questões, seria muito bom. Felizmente ou infelizmente, a luta política é necessária. A gente sabe que a sala de aula é como uma cachaça e vicia a gente. Quando o aluno resolve um problema, traz uma novidade, até mesmo quando ele erra ou faz diferente uma tarefa, enche a gente de força, de vontade de fazer algo. É lógico que não é sempre assim, muitas vezes vem o desânimo com tanta coisa errada que a gente vê que não pode fazer nada sozinho. Quando isso acontece, aquela conversinha com o colega no recreio, no planejamento, depois da aula ou numa
194
reuniãozinha, muitas vezes recarrega as energias. E isso, mesmo com a casa caindo nas nossas cabeças, e sem nem papel higiênico nos banheiros, com era naquela época [...]. Muitas vezes, você não pensa se é certo ou errado pedagogicamente ou politicamente para a categoria. Você simplesmente vai lá e faz. É você que vai estar na escola no outro dia dando aula. O pior é que isso nem conta no final das contas, nem aparece no salário (ENTREVISTADO).
Podemos dizer que esses espaços na escola, espaços nem sempre institucionais,
são construções coletivas que, nem sempre, têm a visibilidade necessária e, muitas
vezes, são “naturalizadas” como coisa do dia a dia e, por isso, passam quase
desapercebidas por seus próprios produtores na escola.
Entendemos que tais espaços precisam ser valorizados no sentido da socialização
de saberes e experiências ricas ao coletivo e à superação das adversidades e
demandas colocadas. Esses espaços, nos quais incluímos também a sala de aula,
são espaços de produção de modos de gerir e potencializar o trabalho escolar,
portanto merecem ganhar mais visibilidade e importância institucional, no sentido da
aposta política de construção de uma escola que afirme a vida como bem comum.
A escola também produz feiras, mostras, eventos culturais, desportivos e científicos
que envolvem a participação de toda a comunidade escolar, promovendo a
apresentação de trabalhos interessantes e que dizem respeito à produção dos
alunos.
Durante a produção desses eventos, a escola apresenta uma movimentação
diferente do que pode ser realizado na sala de aula e socializado com toda a
comunidade escolar. No dia a dia, o silêncio desejado como padrão de organização
disciplinar é quebrado e o “barulho” dos alunos na produção das tarefas para o
evento é mais aceitável nos corredores, no pátio, na biblioteca e nas salas de aula.
Todos os espaços, principalmente a sala de aula, parecem estar contaminados
pelos “germes” da criação, da inventividade, da experimentação e da produção
pessoal e coletiva. A escola parece ficar mais prazerosa e com mais vida durante
essas ocorrências que mudam a rotina escolar. O aluno parece sorrir mais e
aproveitar melhor o espaçotempo escolar. Os trabalhos derrubam as paredes das
salas de aula. As experiências se misturam e se contagiam.
Esses eventos são geralmente reconhecidos e incentivados pelo Órgão Central.
Podemos dizer que são exemplos de como as relações SEDU/Serra, escola e
195
comunidade extraescolar podem produzir experiências dialogadas e positivas para a
melhoria da educação quando o docente possui mais autonomia para organizar o
fazer pedagógico.
Essas ações são processos de construção das políticas de atribuição de valor (valor
sem dimensão) ao trabalho docente. O reconhecimento do trabalho docente pela
comunidade escolar não é registro que se percebe apenas pelas falas de apoio e de
críticas. O reconhecimento pode ser percebido no olhar, no sorriso e no corpo dos
alunos, dos pais e da comunidade local. A apresentação dos trabalhos teatrais,
artesanais, desportivos, de dança e científicos, demonstram o potencial que a escola
tem a ser explorado com os trabalhos que são produzidos em sala de aula e nem
sempre são divulgados e apresentados para toda a comunidade escolar em virtude
da organização fragmentada e seriada de funcionamento da escola.
Quando perguntados sobre esse tipo de trabalho, um entrevistado afirmou:
Organizar esses eventos dá muito trabalho. Ninguém na escola escapa. Todo mundo dá a sua contribuição de alguma forma. Esses eventos movimentam positivamente o trabalho em sala de aula e dá mais vida à escola. É muito mais trabalho, mas ele é gratificante, quando vemos os alunos mais alegres, mais curiosos e mais comprometidos com a busca do conhecimento. Não é uma coisa de decorar a matéria. Eles se sentem capazes e querem mostrar seu potencial, que nem sempre podem mostrar na sala de aula. Isso é muito legal! Não é fácil pra gente que tem que ser técnico de som, diretor, coreógrafo, segurança, psicólogo, produtor e muito mais para que a coisa aconteça. Ah! E isso sem deixar ser professor, pedagogo ou coordenador.
Qual valor é atribuído a essas produções que acontecem na escola? Concordando
com o que nos foi dito, é importante:
Valorizar o profissional que está no chão da escola. Valorizar tudo que ele faz. É preciso ter reconhecimento do trabalho. Acho que isso é dar valor ao trabalho do professor. Não pode ser só o mercado que manda. Tem muita coisa boa que acontece na escola que é pouco valorizado, e isso, apesar das condições que nos é oferecida. A gente cria com os alunos. É só ver as feiras e as mostras culturais e científicas que as escolas fazem. Essa valorização tem que atingir o salário? Tem. Mas, tem que atingir as condições de trabalho, a formação e, fundamentalmente, o reconhecimento do que a gente faz, para nos dar mais energia e permitindo que nós possamos realizar os nossos projetos e viver a escola pra além da sala de aula com uma participação mais ativa e construtiva. Acho que pra isso é importante ter dedicação exclusiva, estar numa escola só pode ser um caminho para mudar a realidade do ensino e de como fazemos o nosso trabalho. Nem tudo pode ser regido pelo mercado. E a educação é uma política que precisa superar essa lógica. Ela não é mercadoria, uma coisa, ela é produção de relações humanas e relações não é uma ciência exata que pode ser controlada e consertada quando apresenta um ‘defeito’. Acho
196
que se avançarmos nesse sentido já seria uma grande conquista. Não estou esquecendo da questão salarial. Continuo achando ela fundamental. Exigem da gente uma formação e um comportamento profissional e social que devem refletir nos nossos salários (ENTREVISTADO).
Essa fala sobre a questão econômica vai além da questão salarial e mercadológica.
Ela dá visibilidade à discussão de que os recursos aplicados em educação devem
ser compreendidos considerando a dimensão de troca, mas, também, o seu valor de
uso e a sua condição de valor sem dimensão que se transforma como potência a
força produtiva para o humano realizar a sua atividade. Percebemos que esse
debate econômico também traz a implicação do debate da saúde do trabalhador.
Nas entrevistas, foi relatado que muitos não têm tempo para almoçar, fazem
refeições apresadas e até nos ônibus. E muitos ficam sem se alimentar pela
necessidade de se deslocarem em tempo hábil para uma outra escola. Tudo isso
para somar uma renda mensal que dê conta das necessidades demandadas.
Nesse sentido, a importância do debate sobre a questão da dedicação exclusiva
está associada tanto a uma melhor organização do trabalho docente, como,
também, a uma política que pode melhorar a produção de saúde para o trabalhador
que está no ambiente escolar.
Alguns participantes da pesquisa argumentam que seria interessante que as escolas
públicas pudessem seguir a forma como as universidades públicas se organizam:
uma organização cuja jornada pudesse ser divida em atividades de ensino, pesquisa
e formação.
6.4.4 Uma dimensão do bem comum: a gestão da participação política
O SINDIUPES
Durante a pesquisa, percebemos também que discussão sobre o valor atribuído ao
trabalho docente fica muito restrita à dimensão mercadológica, às negociações em
197
relação à política salarial que acontecem entre a Administração e a direção do
sindicato da categoria – o SINDIUPES.
Segundo os professores,
As assembleias estão muito viciadas, são os mesmos personagens. O pessoal da base tem pouca voz e, também, fica intimidado de falar (em três minutos) tudo que pensa em pouco tempo de discussão. Acho que o SINDIUPES deveria se aproximar mais dos professores; estar mais presentes nas escolas, procurando escutar e sentir o que a gente quer de verdade. Talvez retomar os cursos de formação, os grupos de estudo [...] pode ser uma possibilidade de reaproximação com a base, com a gente que está dentro na escola enfrentando essa barra e com os salários de fome (ENTREVISTADO).
O docente, apesar de atribuir muita importância à dimensão do mercado, vê a sua
participação e contribuição um tanto restrita nesse campo. Para o professor, o
tempo de duração da assembleia é pouco para tantas questões a se discutir e, além
disso, as intervenções realizadas durante esse evento são muito centralizadas por
poucos diretores do sindicato e alguns professores da base e, geralmente, as falas
priorizam mais a questão salarial em detrimento da discussão da organização do
trabalho, da gestão, da formação e da saúde do trabalhador, como temas
importantes no processo de atribuição do valor do trabalho docente. Nesse sentido,
não seria interessante pensar outras formas de funcionamento para a discussão
sindical junto a categoria de forma a ampliar a participação dos seus profissionais
nos debates?
Por outro lado, apesar de as intervenções serem realizadas, na sua maioria, pelos
mesmos professores e dirigentes sindicais, as assembleias da categoria são
espaços de produção de estratégias de luta, objetivando dar visibilidade a diferentes
interesses e caminhos de (re)existir nessa luta.
Nesse espaço de participação política, coexistem interesses gerais da categoria em
conseguir mais conquistas institucionais com a Prefeitura, com os interesses do
magistério, que dizem respeito às disputas pelo poder em conduzir o movimento do
magistério e a instituição sindicato.
As propostas de negociação e as ações de mobilização refere-se mais às questões
salariais. As propostas voltadas à saúde, à organização do trabalho, à formação e a
outros temas educacionais ficam condicionadas à pauta de negociação e ao tempo
198
dispensado às questões salariais entre a Administração Municipal e o sindicato.
Esses outros temas também ficam à mercê da vontade política, tanto do sindicato
como dos governos, em favorecer e produzir espaços para o debate dessas
questões com a categoria.
Por outro lado, apesar da maior importância da discussão salarial para o professor, o
SINDIUPES desempenha um papel político importante para a categoria avançar na
luta pela valorização do trabalho docente. Apesar de todas as críticas que são feitas
à atuação dos seus dirigentes e à atuação do Departamento Jurídico, a avaliação é
ainda positiva.
Para o avanço da escola pública na Serra, o SINDIUPES teve uma atuação importantíssima. A atuação de Daniel Azolim, Neuzinha Tito, Todinho e outros companheiros foram decisivos na nossa luta por uma escola mais democrática e pela valorização do magistério. A conquista do estatuto e do plano de carreira, a gestão democrática com a eleição para diretor e a consolidação dos conselhos de escolas têm muito da ação do SINDIUPES. Podem falar o que for, mas temos que reconhecer o trabalho dos colegas. Eles pegavam no chifre do boi. Pode até não ser uma maravilha, mas o sindicato é nosso patrimônio. E olha que o prefeito até incentivou a desfiliação do SINDIUPES naquela questão dos salários atrasados. Só acho que o sindicato precisa voltar a investir na formação política. O SINDIUPES formou muita gente. Os nossos congressos é exemplo disso. Acho que o sindicato precisa estar mais presente na escola (ENTREVISTADO).
A participação daqueles que fazem a escola no dia a dia é essencial na produção
das políticas para a educação. Estes são os construtores das políticas que podem
melhorar a vida escolar e, consequentemente, valorizar o trabalho docente.
Entendemos que o professor precisa participar mais das decisões políticas
institucionais e essa participação pode começar na própria escola, criando outras
formas para potencializar e garantir essa participação.
Podemos perceber que o professor, quando tem espaço e é incentivado a participar,
seja em encontros no próprio local de trabalho, seja em outros fóruns institucionais
promovidos pelo movimento sindical, pelas universidades e por governos, oferece
uma contribuição fundamental. Apresentando-se no jogo como autor, novas relações
são produzidas e se ampliam os horizontes de conhecimento e de produção.
Novos valores (dimensionados e não dimensionados) e saberes se incorporam ao
valor de uso do trabalho, ampliando o seu patrimônio e o afirmando ainda mais
como um trabalho que tem valor de bem comum.
199
Todas as dificuldades em se efetivar um diálogo e ações para valorizar a gestão do
trabalho docente com as Administrações não acontecem por acaso e nem por falta
de responsabilidade do sindicato e dos educadores.
As políticas de gestão comprometidas com a lógica mercadológica buscam valorizar
a visão econômica sobre a visão social que compõe a gestão do trabalho. Uma das
questões desta pesquisa é disparar discussões no sentido de questionar a
valorização dessa visão economicista/mercadológica. Como encaminhar as
negociações de discussão da valorização do trabalho docente tendo também como
base os valores não dimensionados que compõem a atividade docente? Como
ampliar a discussão do valor da gestão do trabalho docente sem se restringir ao
debate salarial e sem diminuir a sua importância?
No sentido de repensar a produção dos processos de atribuição de valor ao trabalho
docente inscrita nas políticas públicas de governo, é que a gestão do trabalho é
entendida como produção coletiva dos seus próprios autores. Essa discussão visa a
colocar em xeque a visão economicista e dualista de que o valor econômico – valor
de troca – deve prevalecer sobre o valor social – valor de uso – no processo de
atribuição do valor da gestão do trabalho docente.
A construção de valores é uma produção social. Na medida em que o valor da
gestão do trabalho docente vai sendo construído socialmente, o seu valor como bem
comum para a sociedade e para afirmação da vida vai se potencializando. Amplia-se
a produção de outros modos de (re)existir/trabalhar na escola e o processo de
produção de políticas educacionais para superar a visão de que o chão da escola
deve ser marcado pela relação dicotômica entre capital e trabalho.
Essa produção deve ser entendida como construção das relações de composição
históricas do processo de valorização do trabalho para que se possam construir
outros caminhos para a produção de novas políticas de valorização do trabalho
docente, em especial, no ensino público.
200
O Conselho de Escola, O CMES e o Conselho dos Fundos da Educação
Para os professores, os conselhos de controle social são conquistas históricas da
lutas do magistério e da sociedade civil organizada, mesmo que hoje esses espaços
não venham atuando de forma crítica e prepositiva como se concebia. Segundo
esses profissionais, os conselhos institucionais são espaços que precisam ser mais
explorados, independentemente de as correlações de forças parecerem
desfavoráveis aos trabalhadores da educação. Esses espaços se tornaram também
campos de disputas de diversos interesses públicos e privados, corporativos e
individuais, de diversas ordens políticas, que podem dar visibilidade e fortalecer os
projetos dos trabalhadores como bem de interesse comum público.
Segundo um professor:
O Conselho Municipal de Educação, o Conselho do FUNDEF e, até o Conselho de escola, poderiam muito bem contribuir para a valorização do magistério, se não fosse os que defendem a Administração. Ali também se disputa e se formulam políticas, disputa do poder. Sei que não temos tempo para atuar em todas as frentes, mas precisamos encontrar meios para explorarmos esses espaços em nosso favor. Temos que melhorar a nossa participação nos Conselhos, acompanhar mais de perto os nossos representantes, melhorar na comunicação com a escola. As informações precisam chegar mais rápidas para a gente se organizar [...]. Os Conselhos podem ser nossos aliados na luta pela valorização do magistério (ENTREVISTADO).
O processo de tomada de decisão requer escolhas, e quanto mais essas escolhas
forem fortalecidas por informações, experiências e por uma produção coletiva, o
campo das possibilidades de construção de estratégias se amplia e se potencializa
como projeto de ação política.
A gestão, segundo Schwartz (2007), se faz presente quando são necessárias
escolhas, arbitragens, negociações que são feitas em composição com os valores
históricos, a partir dos quais se elaboram as decisões. A gestão é um processo de
criar possibilidades, inventar saídas, negociar, definir estratégias e ações prioritárias
em favor de um melhor modo de funcionamento para todos que participam. Nesse
caso, trata-se do trabalho no meio escolar.
Concordamos com Bonaldi (2004, p. 67):
201
Se falamos aqui em valores históricos, singulares, sem dimensão, falamos também em contradição. Como cada trabalhador constrói um olhar diferente sobre a atividade, no decorrer da realização da atividade de trabalho, são necessárias negociações.
A produção de políticas exige alianças e composição das relações institucionais
entre os autores da atividade e os gerentes. Essa composição de relações de
interesses é que dá contorno ao modo de gerir a produção de políticas públicas, o
cotidiano da organização escolar e a atividade docente.
Entendemos que tomar a análise da atividade trabalho, ou seja, como se dá a
produção de valores de experiências e de saberes é ainda uma prática pouco
comum no âmbito da educação e precisa ganhar mais corpo, intensidade e força.
Nesse sentido, este trabalho realizado com os trabalhadores em educação da Rede
Municipal de Ensino da Serra ganha cada vez mais importância.
Consideramos que, para que a escola consiga funcionar em outra perspectiva,
transformar as suas práticas em favor de uma gestão participativa e horizontalizada,
é importante que se criem espaços e tempos coletivos para diálogos nas escolas
capazes de produzir análises que possibilitem a produção de políticas que resultem
em bem comum social. Para tanto, é fundamental que as políticas educacionais
governamentais voltadas à valorização do trabalho docente sejam produzidas em
composição efetiva com os trabalhadores em educação.
Nesse sentido, é importante que a Secretaria da Educação componha com as
escolas produzindo encontros, fóruns de debate, pesquisas que contribuam para:
dar visibilidade às experiências, saberes e valores produzidos no “chão da escola”;
compor o conhecimento e o patrimônio acumulados, assim como as dificuldades por
que passam esses trabalhadores, para que se possam produzir estratégias que
possam produzir transformações radicais no que se vive hoje na educação no
município da Serra. É preciso promover modificações que possam imprimir
movimentos disruptores, que produzam rachaduras no que está instituído,
movimentos que perspectivam uma educação como valor sem dimensão, como bem
comum.
É necessário que esses atores produzam alianças, parcerias e compromissos em
favor de uma escola em que a atividade docente seja reconhecida para além da
202
perspectiva econômica, não só como valor de troca no processo de atribuir valor a
ação desse trabalho, mas objetivando aumentar a potência do viver.
Como nos coloca Bonaldi (2004, p. 87):
Para que haja envolvimento dos trabalhadores, é necessário que eles se reconheçam como autores do processo, é necessário que as demandas, as decisões, os encaminhamentos partam da experiência de trabalho desses trabalhadores, do embate efetivo de idéias, no qual todas as opiniões são consideradas, valorizadas, respeitadas e discutidas como opiniões pertinentes.
Nessa perspectiva, ao fazer esta discussão a partir de olhar ergológico, foi possível
uma outra postura política e estética para conhecer as análises, as dificuldades, as
alegrias, a organização do trabalho docente na escola pública sobre vários aspectos.
É fundamental para a proposição de políticas educacionais que elas sejam
produzidas por meio do diálogo com a participação efetiva dos educadores para que
possamos vivenciar o trabalho escolar nas escolas públicas municipais da Serra/ES
como uma atividade inventiva, cogerida e afirmadora da vida, ou seja, um valor sem
dimensão.
203
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma primeira consideração: a construção conceitual do valor (da gestão) do trabalho docente
Ao iniciarmos o trabalho, não tínhamos muita clareza de como poderíamos desenhar
o conceito de valor para a discussão das políticas de valorização destinadas aos
trabalhadores de escolas públicas.
No começo do estudo, utilizamos o termo valorização por entender que ele nos daria
condições para compreender o processo de atribuição de valor ao trabalho docente
por meio da análise das políticas salariais, de formação e daquelas voltadas às
condições de trabalho como eixos centrais.
Ampliando os estudos e nos servindo da contribuição do pensamento marxiano,
percebemos que esse termo era insuficiente e começamos adotar o termo
valoriz(ação), por compreendermos que não estávamos buscando uma receita para
as políticas de valorização do magistério dentro de uma perspectiva mercadológica,
em que o valor de troca tem mais importância que o valor de uso do trabalho .
Nesse momento da pesquisa, começamos a percerber que a construção dessas
políticas não diz respeito somente ao somatório e à composição de estudos
econômicos e administrativos, cruzados com a pauta de reivindicações da categoria
e as condições e limites impostos pela Administração disputados em mesas de
negociação.
A construção do valor do trabalho é uma construção social histórica que se efetiva
ainda mais quando incluímos a autonomia como um objetivo importante, ou melhor,
como uma finalidade central das políticas educacionais e da gestão do trabalho em
educação. Além de produzir educação com qualidade social pública, é importante
que as políticas governamentais possam, também, contribuir para a ampliação do
grau de autonomia dos trabalhadores, assim como de todos os que compõem a
comunidade escolar.
204
Nessa direção, o trabalho é uma atividade social transformadora do próprio humano
e das suas relações com o mundo e do próprio mundo. Esse valor, por sua vez, é
um produto em constante transformação, resultante das relações sociais de
produção dos grupos humanos que estão no jogo político, buscando tornar o seu
projeto de sociedade hegemônico.
A partir da contribuição do pensamento marxiano e assimilando a ergologia como
uma das referências de análise da nossa pesquisa, ampliamos a nossa
conceituação de valor. Adotamos o termo “valor da ação”, já que incorporamos que
a valorização do trabalho escolar não tem sentido se pensada sem a contribuição do
professor que está no “chão da escola”, produzindo com o aluno, dia a dia, a prática
escolar.
Avançando nessa direção de construção conceitual, deparamo-nos com o debate da
gestão da atividade, do uso de si, das normas antecedentes, da produção de valores
dimensionados (os valores que podem ser quantificados) e não dimensionados
(valores que dificilmente podem ser quantificados), das articulações entre os polos
do mercado e do político, do patrimônio da experiência e do saber e, também, sem
negar o conhecimento científico já produzido, passamos para o emprego do termo
“valor da gestão do trabalho”, com o qual trabalhamos até o final desta pesquisa.
Essa construção conceitual é produto de uma postura ética, estética e política que
nos acompanhou durante a realização desta pesquisa. Foi feita uma escolha e ela
não escapa a questões de diversas ordens, mas, para o momento, foi o limite da
nossa construção. Afirmamos que essa construção está aberta a contribuições, justo
na medida em que assumimos a postura de que não somos donos de verdades,
mas buscamos ampliar o campo de possibilidades para que, por meio dos nossos
modos de existir/trabalhar, afirmemos, cada vez mais, a vida como um bem comum
e um patrimônio da humanidade.
205
Uma segunda consideração: o processo de gestão da pesquisa e a visibilidade do compromisso dos docentes com a transformação da educação
Gerir o processo de pesquisa foi desafiante. O estar em campo: na escola, no
Conselho Municipal de Educação, nas assembleias do magistério, na casa de
professores, para dialogar sobre as políticas de valorização do trabalho docente, foi
uma atividade gratificante e transformadora de valores. Tornamo-nos mais tolerantes
e, sendo assim, ainda mais críticos e lutadores.
Em meio a todas as dificuldades do estudo, do pesquisador e dos professores com
relação à questão espaçotempo, diante das duplas jornadas, do cansaço e das
tarefas do próprio trabalho, encontramos a solidariedade, a produção de estratégias
e, por que não dizer, um compromisso político com a democracia e a transformação
da educação pública. Consideramos essas ações como valores (não
dimensionados), que representam o esforço de cada um para que pudéssemos
realizar as entrevistas coletivas e individuais.
Ressaltamos o compromisso com a transformação da educação por parte dos
docentes, na medida em que apostaram no trabalho de pesquisa sobre o seu
ambiente – meio – de trabalho, tendo em vista que nos foi permitido vivenciar como
se dava a organização do trabalho na escola, para que realizássemos o estudo da
melhor forma possível. Como disse um professor:
Acho legal fazer pesquisa e, o seu estudo nos interessa muito. Precisamos de mais reconhecimento, ver o nosso trabalho ser valorizado. Sucesso e espero que venha trazer bons resultados pra gente. Não suma, e nos dê retorno. Vem apresentar a pesquisa aqui na escola! (ENTREVISTADO).
A produção de relações durante a pesquisa também produziu certa cumplicidade,
que nos permitiu estabelecer um campo de diálogo. Esse campo era margeado pela
compreensão mútua de que nossas relações e ações perseguiam um bem comum:
a valorização do magistério e da escola pública.
Nessa perspectiva, cartografar o modo de funcionamento da organização da escola,
produzir intervenções e participação no cotidiano do estabelecimento, por meio da
formulação de questões e busca de informações com professores e com os outros
206
funcionários foi um processo que se compôs com esse cotidiano durante o período
em que estivemos na escola.
Esse processo também significou, em nosso entender, a produção de alianças e de
um outro modo de funcionamento na escola. Produziu-se um movimento que
escapava ao padrão administrativo de organização instituído.
Essa aliança e modo de funcionamento que se instituíram promoveram alguns
momentos de diálogos das práticas do Órgão Central com as práticas da escola,
sem a pretensão de sobrepor uma prática à outra, como verdades maiores e como
valor político-pedagógico de mais importância.
Enfim, dispor do horário de planejamento, do horário de lazer e de descanso e abrir
espaços em reuniões na agenda da escola para a realização das entrevistas, e,
também, reunir esforços para a reconstrução da história política educacional do
município da Serra foram ações e escolhas políticas que indicaram um compromisso
com a transformação da educação e credibilidade à pesquisa.
Essas escolhas e ações podem contribuir para a ampliação do campo de
possibilidades de produção de novas políticas educacionais, que cada vez mais
possam fortalecer a escola com um ensino com qualidade social, como também os
processos institucionais de atribuição de valor ao trabalho docente nas escolas
públicas.
Com esse sentido, esta segunda consideração ganha importância para o estudo na
medida em que esta pesquisa só foi possível com a aliança construída com a
participação voluntária, solidária e democrática dos trabalhadores da educação do
município da Serra-ES.
Assim, podemos afirmar que esta produção não é individual, mas certamente
coletiva e gerida no confronto da diversidade de conhecimentos, saberes e
experiências produzidos e vividos no meio educacional.
207
Uma terceira consideração: o processo de produção do valor da gestão do trabalho docente na Rede Municipal de Ensino da Serra
O trabalho do professor é um trabalho invisível e, muitas vezes, solitário. No fundo, no fundo mesmo, ele é um herói. Uma hora a coisa vai mudar. Uma coisa que era um clamor só nosso, agora é um clamor da sociedade: dar valor à escola e ao professor. A mídia nunca falou tanto nisso. O professor trabalha com vidas (ENTREVISTADO).
O estudo nos permite afirmar que as políticas educacionais mais importantes da
gestão do período estudado não fortaleceram o valor da gestão do trabalho escolar
nas escolas públicas do município da Serra e não focaram o valor sem dimensão
dessa atividade. Dentre elas, citamos a política salarial e a adoção do Programa
Escola Campeã para resolver os índices de rendimento escolar no município.
A Administração buscou a consolidação de um tipo de gestão dita democrática,
como uma ação política importante no período. Contudo, em nosso entender, essa
gestão foi construída dentro de uma perspectiva legalista e, assim, insuficiente para
deslocar a prática gerencialista da escola e produzir um debate ampliado sobre a
organização do trabalho numa perspectiva mais democrática de como se produzir
políticas públicas com potência para consignar valor de uso, sem dimensão, ao
trabalho docente. Ou seja, políticas que tornassem o trabalho concreto dos
docentes reconhecido como atividade inventiva que afirma a vida como bem comum.
O Governo Municipal não produziu alianças e pouco se permitiu dialogar no “chão
da escola” numa perspectiva de construção coletiva de soluções para melhorar o
rendimento escolar e a qualidade do ensino, de fato. Também pouco se colocou no
processo de reconhecer o valor da gestão do trabalho docente a partir do olhar do
professor.
Nesse processo de negação da discussão do valor da atividade docente, as
discussões sobre autonomia, política de substituição, formação em serviço e saúde
ficaram invisibilizadas pelo debate econômico e pela perspectiva gerencialista
conservadora e legalista adotada pela Administração nesse período.
208
Assim, como Bonaldi (2004) e Heckert (2006), acreditamos que a inventividade e a
criação de modos de trabalhar/existir que movimentam e potencializam a
coconstrução da capacidade de autonomia dos trabalhadores são fundamentais
para afirmar a vida. Sem os movimentos de mudança e de luta permanentes, as
práticas e as políticas em curso podem ser legitimadas como verdades absolutas e
como relações de poder autoritárias, duras e imutáveis, diminuindo o campo das
possibilidades de outros de modos de (re)existir e dar visibilidade à educação como
valor sem dimensão.
Entendemos a vida como um processo não linear, em permanente construção e
transformação. Nesse sentido, a atividade trabalho docente não seria reduzida à
mercadoria produzida por métodos prescritos e quantificáveis. A atividade trabalho é
um processo de gestão no sentido de ampliar e afirmar a vida nas suas mais
variadas formas.
O processo de produção da gestão e do valor do trabalho é uma construção político-
social marcada por interesses diferentes que podem definir o seu valor de uso, valor
de troca e o seu valor como bem comum. Acreditamos que o valor do trabalho é
uma construção coletiva em que se articulam as dimensões mercadológicas,
ergológicas e do bem comum.
Temos clareza da importância da discussão econômica para a sobrevivência digna
dos trabalhadores tanto, os da educação como os de qualquer outro ramo de
atividade.
Também temos percebido que controlar e restringir o debate do valor da atividade
docente somente a partir da relação custo e receita atende mais aos interesses do
mercado do que aos interesses do trabalhador e da maioria da população. Essa
lógica dificulta a incorporação de outros debates acerca de valores e práticas que
também compõem o conteúdo do valor da atividade trabalho como: cogestão,
autonomia, saúde, formação, produção coletiva de saberes e experiências,
capacidade inventiva e solidariedade.
Acreditamos ser necessário que as políticas educacionais voltadas à valorização da
escola pública e do trabalhador da educação devam ser resultado de interesses
209
comuns construídos democraticamente com governo, trabalhadores e demais
setores da sociedade civil.
Nessa perspectiva, os movimentos de luta no “chão da escola” e na via sindical
cumprem um papel estratégico e de grande importância. Abrem caminhos de
possibilidades de criação de novas formas de se produzir políticas educacionais
para confrontar as formas conversadoras que se encontram fortalecidas.
Nesse sentido, o que foi a política de atribuição de valor ao trabalho escolar nessa
gestão e o que ela é hoje não são produções isentas de participação dos grupos
sociais que vivem a educação no município da Serra-ES. Se determinada forma de
gerir a educação é conservadora e legalista e se encontra fortalecida, isso não
significa dizer que essa forma é absoluta e insuperável.
Contudo, essa situação histórica de poucos debates foi resultado de diversas e
diferentes escolhas políticas dos gestores, dos dirigentes sindicais, dos
trabalhadores da educação. Também por posturas dicotômicas se colocaram como
opositores entre si e fizeram a opção pela construção corporativa das políticas
educacionais e não pela construção do bem comum.
Nesse sentido, temos que considerar que o modo de gestão conservadora e
legalista da educação municipal é efeito da reestruturação do Estado com práticas e
normas legais para justificar os limites da extensão dos avanços nas políticas
remunerativas, formativas, administrativas e de promoção das condições de trabalho
no serviço público. Considerar, ainda, limites para incorporar as propostas advindas
do movimento sindical e da comunidade escolar, em favor de uma educação
comprometida com uma construção coletiva.
Numa perspectiva ampliada de produção de políticas educacionais, de valorização
da escola pública e da atividade docente, o salário, a formação, a condição de
trabalho, o reconhecimento e a autonomia na gestão da atividade são fundamentais.
Entendemos que é por meio das relações de parceria, de articulação entre as
dimensões do mercado, da ergologia e da política com a participação efetiva dos
trabalhadores que se poderá produzir uma efetiva transformação na organização do
210
trabalho nas escolas públicas e um processo de atribuição de valor não apenas
mercantil à gestão do trabalho docente.
Por outro lado, os esforços empregados à constituição de parcerias para se construir
novas políticas educacionais não podem servir como formas de despontecializar os
movimentos que são produzidos no meio escolar, no meio sindical e por outros
movimentos da sociedade civil organizada (por exemplo: os Conselhos).
A importância de “preservação” desses espaços dialógicos, democráticos, críticos e
propositivos é fundamental. Eles congregam um patrimônio histórico de experiências
e saberes na construção de estratégias de lutas e de políticas públicas de grande
valor para a produção de modos de organização do trabalho.
Na análise das políticas educacionais de governo implementadas no cotidiano das
escolas e nas práticas de lutas dos trabalhadores da educação, percebemos
práticas naturalizadas de se atribuir valor à atividade docente, por meio da atribuição
de valor de troca como valor dimensionado que obedece à lógica mercantil. Sendo
assim, propusemo-nos a tentativa de pensar como oxigenar as formas
institucionalizadas de funcionamento dessas práticas, como produzir outras práticas
coletivas como potência capaz de contribuir com a transformação da educação, na
direção ético-política que afirmamos ao longo desta dissertação.
Fizemos a escolha, neste estudo, por dar visibilidade às práticas que escapam aos
processos de aprisionamento institucional de controle e de hierarquização e que
produzem ações de potencialização dos processos de atribuição de valor ao
trabalho escolar nas suas múltiplas dimensões, ou seja, considerar o trabalho
concreto da docência.
Nessa perspectiva, incluímos as ações do SINDIUPES e as ações dos Conselhos
ligados à educação combinadas com as ações coletivas e individuais dos
educadores nos espaços em que atuam.
A importância desta pesquisa se articula com as questões colocadas às políticas
educacionais e da organização do trabalho escolar produzidas na Rede de Ensino
da Serra que escondem novos modos possíveis de funcionamento e de atribuição
de valor ao trabalho docente que circulam nas escolas na atualidade.
211
Para o grupo da pesquisa:
O que queremos com a escola que temos é que ela seja de qualidade. Uma escola laica que respeita as diferenças, que traga para dentro das escolas os elementos fundamentais para que um cidadão seja formado de maneira crítica; que tenha condições de intervir na sociedade em que vive e; possa fazer isso para além das linhas que estão escritas pra ele.
Pensamos que, se o trabalho escolar na escola pública continuar marcando e
potencializando o valor ético, político e estético dessa concepção de gestão da
atividade docente, estaremos avançando na ampliação da coconstrução de políticas
educacionais que possam fortalecer práticas e métodos de atribuição do valor da
gestão do trabalho docente na direção que apostamos. Acreditamos, também, na
construção da escola como espaço de diálogos, práticas e valores que possam
contribuir para a produção de novos modos de existir/viver, comprometidos com as
relações autônomas, democráticas e com uma educação que busca
permanentemente qualidade social pública, cujo princípio maior é a afirmação da
vida como bem comum social.
Uma última consideração: (re)problematizando...
Na perspectiva anunciada neste estudo, considerar a coconstrução de autonomia
como uma das finalidades do trabalho em educação tem importantes implicações
políticas e na organização das escolas. Adotar essa diretriz no âmbito das políticas
educacionais exige uma reformulação radical nos valores ético-políticos que têm
sustentado tais políticas e isso não se faz se não produzirmos uma torção nos
modelos de gestão tanto em nível da administração da Secretaria quanto na gestão
das práticas pedagógicas no âmbito das escolas, incluindo o próprio conceito do que
é aprender.
Como coproduzir capacidade de reflexão e de ação autônoma para todos os
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem? Autonomia não é um estado
estático, algo que se adquire ou se perde de uma vez por todas, mas um processo
212
dinâmico que não se desvincula dos modos de gestão instituídos historicamente.
Autonomia não é o contrário de dependência ou liberdade absoluta, mas capacidade
dos sujeitos de lidar com sua rede de dependências, uma vez que os humanos, em
seu processo de constituição, dependem da satisfação de algumas necessidades
biológicas e demandas psicológicas. Sempre precisamos do outro.
Maturana (2002) afirma que a matriz da existência humana é o compartilhamento de
alimentos, emoções, afetos e criação no processo de sobrevivência e invenção do
mundo. Compartilhar a vida, essa capacidade estética/inventiva do humano, implica
compor interesses comuns, para viver-conviver. É o amor que constitui a história da
linhagem hominídea a que pertencemos (MATURANA, 2002). Logo, falar em
autonomia é falar, necessariamente, de coconstituição, coprodução de práticas
educacionais, cogestão da escola e da educação e implica, também,
corresponsabilidade. Autonomia é processo de coconstituição de maior capacidade
de os sujeitos compreenderem, analisarem e agirem conforme objetivos
democraticamente construídos.
Assim, o que perseguimos nesta pesquisa foi fazer uma análise das relações de
gestão que se efetivaram no município da Serra, no período estudado, tentando
cartografar os movimentos que, ao favorecer a autonomia, atribuíam valor ao
trabalho docente para além dos valores mercadológicos. O processo investigativo
nos indicou que, muitas vezes, o modo de gestão implementado não fortalecia a
produção de autonomia e se efetivava por meio de um certo autoritarismo
heteronímico. Nesse modo de administração, as decisões políticas e técnicas são
dadas como verdades e impostas sobre equipes e diretores de escolas como se
fossem regras divinas e não resoluções de certa administração. Os espaços para a
tomada coletiva de decisões continuam reduzidos e pouco investidos.
Essas tendências dificultam a constituição de autonomia dos docentes, gerando
debilidade do processo de cogestão e de avaliação das práticas em curso, uma vez
que, ao centrar a “culpa” ou a responsabilidade pelo mau “rendimento escolar” e
mau funcionamento sobre a competência ou incompetência dos docentes, não se
coloca em análise a complexidade das relações que compõem as práticas
educacionais na Serra.
213
Num processo de cogestão e coprodução de sujeitos e mundos, não seria legítimo
poupar os docentes de análises de implicação, ou seja, de analisarem sua própria
responsabilidade sobre a situação. Não se trata de responsabilizar qualquer dos
segmentos envolvidos no processo educacional. Não se trata de encontrar culpados.
Os educadores sempre conservam algum “poder” de intervenção, ainda que estejam
condenados a “engolir” mudanças e diretrizes formuladas ao compasso da economia
de recursos e impostos pela política econômica, por uma política pautada
exclusivamente nos valores de mercado.
214
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