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 Adriana Lunardi A VENDEDORA DE FÓSFOROS

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  • Adriana Lunardi

    A VENDEDORADE FSFOROS

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  • 9A minha hiptese que nos tornamos estranhos ao mudar de cidade, da primeira cidade, quero dizer. At ento ningum reparava na gente. No tnhamos nada de especial, ramos o que ramos. Depois da mudana que a fama comeou, e quanto mais trocvamos de cidade, mais esquisitos amos ficando.

    Minha irm discorda, diz que essa sensao nada tem a ver com as cidades, foi a minha infncia que chegou ao fim. A estra-nheza, ela explica, porque eu passei a me enxergar de fora, como se, parada diante de uma casa conhecida, eu comeasse a espiar atravs de uma cerca.

    A infncia era quando a cerca no existia, entende? No entendi. Parei de escutar em minha infncia que chegou

    ao fim. Eu tenho nove anos! Tecnicamente ainda sou criana. Ela revira os olhos. No a idade que define isso, resmunga,

    deixando o quarto. Vou atrs. Preciso descobrir o momento exato em que a infn-

    cia termina. Tanto peo, tanto insisto, que ela acaba revelando. Os advrbios. Como? Quem usa porque perdeu a inocncia. Igual histria da

    ma.Penso um pouco. Entendo o que ela quer dizer com a ma.

    Tudo muda depois que se experimenta.

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    Ento no tem mais jeito, falo num tom interrogativo, saben-do a resposta.

    Hm-hm, ela afirma, e depois de uns instantes de silncio, tal-vez para me consolar, desarruma a minha franja e diz:

    Tecnicamente. E rimos, repetindo aquela expresso a tarde inteira.

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    A notcia de que minha irm fora hospitalizada chegou no meio de uma tarde de fevereiro, na semana do Carnaval, quando eu tirava p dos livros. Em pequenas pilhas sobre a mesa ou espalhados pelo cho, romances e ensaios esperavam a vez de voltar s prateleiras, limpos e organizados para mais um ano le-tivo. Teria de me desfazer de alguns ou providenciar uma nova estante, problema que arrasto h anos por diversos motivos, entre os quais uma monumental falta de deciso, e por faltas menores, como a de dinheiro. Pus parte os ttulos que julguei desneces-srios ou que, imaginei, podiam ser melhor aproveitados numa biblioteca pblica. A cada mudana eu fazia isso, meu nico ges-to de caridade.

    No intervalo do lanche, o monte destinado doao alcan-ava um volume respeitvel, suficiente para iniciar um pequeno, mas bem escolhido acervo. Entre goles de caf, abri o exemplar de Robinson Cruso que estava por cima. A edio em papel-jornal com notaes de fim didtico no era das mais brilhantes. Ao fo-lhear, encontrei frases sublinhadas a lpis e o meu nome escrito na letra mida, ainda infantil, da stima srie. Tirei da pilha, cer- ta de se tratar de uma velharia afetiva que interessava apenas a mim. Logo abaixo encontrei um nmero da Revista Sur que eu ganhara de um amigo argentino. Separei este tambm, sem cora-gem de afastar-me de Victoria Ocampo. No demorei a perceber que minha disposio filantrpica comeava a minguar. O desejo

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    de fazer a boa literatura chegar ao leitor annimo, carente, era devorado por uma nsia colecionadora superior que me obrigava a voltar atrs e desfazer os votos de generosidade. Continuasse assim, aquela pilha donativa voltaria toda s prateleiras, como se nada tivesse acontecido.

    Os espirros e as dores nas costas me fizeram lembrar o motivo pelo qual eu adiara tanto aquela funo. Por que hoje?, perguntei ao espanador, arrependida de gastar as frias numa tarefa to can-sativa e sem urgncia, afinal. Podia ter esperado at o outono ou engajado a diarista na faxina, ficando comigo somente a organiza-o alfabtica posterior. O arrependimento maior, no entanto, es-tava ainda longe de acontecer por completo naquele dia espichado pelo horrio de vero, quando dei ouvidos secretria eletrnica.

    No costumo atender ao telefone sem identificar antes quem est falando, por isso me detive um instante e prestei ateno no recado em curso. O sotaque se anunciava nos erres e esses frios e tambm na toada sulista da moa, que se apresentou (eu a des-culpasse pela invaso) dizendo ter me localizado por intermdio de um ex-colega de faculdade (Marcelo C. da Cunha), com quem ainda mantenho contato.

    Uma amiga do amigo vem ao Rio e quer dicas de programa ou um sof por uns dias, deduzi, irritada.

    Morar em uma cidade turstica tem esse preo. Voc passa por um guia local gratuito com interesse juvenil em fazer novos ami-gos e disposio para hospedar mochileiros. Senti alvio por no ter atendido de primeira at perceber que o teor da mensagem era outro.

    Depois das formalidades iniciais (sou amiga da sua irm), a voz embatucou num prembulo embaraoso (lamento dar a notcia) e prosseguiu cheia de pausas (ela teve uma crise) e hesi-taes (um surto). Ia deixar um nmero para eu ligar se quisesse

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    mais informaes. Foi quando peguei o fone e disse que ela podia falar, eu estava escutando.

    Contribu com monosslabos longa conversa que se seguiu. Sentia-me, a contragosto, puxada de volta a um lugar decrpito que me custara muito a arrumao; um quarto que depois de composto fora fechado e devia permanecer daquele jeito, confor-me combinei com o analista.

    A moa, cujo nome anotei no papel que rabisquei durante o telefonema, uma desconhecida, havia adiantado o crepsculo da estao mais iluminada do ano. O dimmer, at ento regulado para abrandar a intensidade das lembranas, andava agora no sen-tido anti-horrio, doido para chegar ao incio dos tempos, antes do fiat lux separar escurido e claridade, a nebulosa com a qual, confesso, mantive intimidades bastante perversas, dessas difceis de enjeitar depois que se experimenta.

    O nico passado que me interessava, porm, estava naquelas pginas escritas h cem, duzentos, quinhentos anos, pelas quais tenho o respeito das coisas que no mudam, que no precisam mudar. De resto, s o presente contava. E o presente era uma biblioteca por arrumar, o trabalho de remover livro a livro pela lombada, abrir a capa e soprar um pouco de ar no miolo. O pre-sente era quebrar a cabea em como acomodar Dom Quixote e o O ltimo leitor no mesmo espao, 2,70m por 2,30m, onde, alm de parte do cnone ocidental, deveriam caber ainda obras de ami-gos e uns livros escritos no Oriente que, preciso dizer, minha classificao d uma banana para nacionalidades. O presente era adiar o triunfo de traas e fungos, que de todo modo venceriam. Era esse o presente.

    Ao desligar o telefone, outra verso tinha tomado posse do dia. No poderia mais descrev-lo em uma cena domstica, tor- n-lo o depoimento amoroso de uma tarde de arrumao, com

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    espanadores e lustra-mveis vista, e poetas contemporneos a indagar o lugar certo para eles na estante. Uma foto no daria conta da mudana que ocorreu na sala, nem registraria onde es-tou agora.

    Tudo se passa atrs dos meus olhos. No bem um lugar, no bem um tempo, mas por algum

    motivo guarda similitude com o cenrio catico dos romances mal empilhados que coalham o cho.

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