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Contendas do Deserto – Orígenes, Justiniano, Teodora e o caso da Reencarnação no II Concílio de Constantinopla. Tem-se difundido muito a ideia de que a reencarnação era predominante no cristianismo até 553 d.C. e foi eliminada pela condenação do teólogo Orígenes a mando do imperador bizantino Justiniano e sua esposa/prostituta Teodora, que convocaram o II Concílio de Constantinopla (ou V Concílio Ecumênico) para esse fim. A proposta deste estudo, portanto, será esmiuçar o máximo de informações que nos foram legadas por cronistas de Antiguidade e por alguns medievais a respeito do tema e confrontá-las com as que são repassadas por autores espiritualistas. Através de uma análise crítica, espera-se lançar luz sobre os fatos ocorridos nessa fase de consolidação da ortodoxia cristã, separando o “joio do trigo”. 1 - Mocinhos e Bandidos – a eterna visão maniqueísta da história humana 2 - Antecedentes Históricos I: Orígenes 3 - Antecedentes Históricos II: Origenismo 4 - O Livro de Hierotheos – A Ponte entre as Duas Crises 5 – Enquanto Isso, em Constantinopla, um (Quase) Novo Império Romano 6 - A Restauração de Justiniano 7 – Teodora: Imperatriz, Estadista e Puta 8 – Teodora, a Prostituição e Orígenes: Teorias Conspiratórias 9 – Teodora, a Prostituição e Orígenes II: as Fontes Primárias 10 – Teodora, a Prostituição e Orígenes III: Biógrafos Modernos 11 – A Segunda Crise Origenista: As Fontes Primárias 12 – A Segunda Crise Origenista: Autores Modernos 13 - Dobram os Sinos 14 – O II Concílio de Constantinopla e seu Contexto Histórico 15 – Anátemas contra Orígenes 16 – Orígenes e o V Concílio 17 – Pretérito Imperfeito: Quando o passado não é exatamente aquilo que se gostaria

Contendas do Deserto - Orígenes, Teodora, Justiniano e o ... · cristianismo até 553 d.C. e foi eliminada pela condenação do teólogo Orígenes a mando do imperador bizantino

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  • Contendas do Deserto Orgenes, Justiniano, Teodora e o caso da Reencarnao no II Conclio de Constantinopla.

    Tem-se difundido muito a ideia de que a reencarnao era predominante no cristianismo at 553 d.C. e foi eliminada pela condenao do telogo Orgenes a mando do imperador bizantino Justiniano e sua esposa/prostituta Teodora, que convocaram o II Conclio de Constantinopla (ou V Conclio Ecumnico) para esse fim. A proposta deste estudo, portanto, ser esmiuar o mximo de informaes que nos foram legadas por cronistas de Antiguidade e por alguns medievais a respeito do tema e confront-las com as que so repassadas por autores espiritualistas. Atravs de uma anlise crtica, espera-se lanar luz sobre os fatos ocorridos nessa fase de consolidao da ortodoxia crist, separando o joio do trigo.

    1 - Mocinhos e Bandidos a eterna viso maniquesta da histria humana

    2 - Antecedentes Histricos I: Orgenes

    3 - Antecedentes Histricos II: Origenismo

    4 - O Livro de Hierotheos A Ponte entre as Duas Crises

    5 Enquanto Isso, em Constantinopla, um (Quase) Novo Imprio Romano

    6 - A Restaurao de Justiniano

    7 Teodora: Imperatriz, Estadista e Puta

    8 Teodora, a Prostituio e Orgenes: Teorias Conspiratrias

    9 Teodora, a Prostituio e Orgenes II: as Fontes Primrias

    10 Teodora, a Prostituio e Orgenes III: Bigrafos Modernos

    11 A Segunda Crise Origenista: As Fontes Primrias

    12 A Segunda Crise Origenista: Autores Modernos

    13 - Dobram os Sinos

    14 O II Conclio de Constantinopla e seu Contexto Histrico

    15 Antemas contra Orgenes

    16 Orgenes e o V Conclio

    17 Pretrito Imperfeito: Quando o passado no exatamente aquilo que se gostaria

  • 18 Cristianismo, verso 1.0

    19 A Defesa Esprita: Alicerces na Areia da Retrica

    20 - O Fim de Dois Sonhos

    21 Palavras Finais

    Para Saber Mais

    Apndice A A Vida de Saba

    Apndice B A Vida de Ciraco

    Apndice C Liberato de Cartago (em latim)

    Apndice D Facundo de Hermiano (em latim)

  • 1 - Mocinhos e Bandidos a eterna viso maniquesta da histria humana

    (...) Mitos, lendas e incorrees sobre a formao e a identidade nacionais povoam o imaginrio coletivo. Muitas vezes a verso se sobrepe ao fato, seja pela disseminao de interpretaes equivocadas, seja pela dificuldade de se definir, preto no branco, o que a verdade neste pas de memrias mestias.

    Bom exemplo a figura de Getlio Vargas. Ditador simpatizante dos ideais fascistas ou defensor dos trabalhadores? Entre os dois extremos do mesmo personagem, difcil equilibrar-se numa viso isenta. quase uma ofensa falar mal de Vargas. Comenta a professora Mariana de Melo, baseada em sua experincia com turmas de um curso noturno em uma escola estadual do Rio de Janeiro. No adianta descrever em detalhes as arbitrariedades do Estado Novo (1937-1945), a censura, a perseguio poltica. Mas, professora, ele criou as leis trabalhistas, retrucam os alunos. Para ela, uma postura compreensvel: Dentro da perspectiva dessa camada social, isso o mais importante, pondera a professora, dizendo ser espinhosa tambm a misso de mostrar aos alunos que as benesses sociais trazidas por Vargas no foram fruto de sua generosidade pessoal, mas resultado de um processo histrico inevitvel.

    Se entre adultos complicado esclarecer contradies desse tipo, que dir entre as crianas e adolescentes. Este pblico est habituado a interpretar histrias que tenham viles de um lado e heris de outro. Tem que ter uma definio: bom ou mau?, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas particulares do Rio. Por isso, ensinar Getlio tambm d trabalho, assim como os episdios da Histria Mundial. A Alemanha a vil da guerra, mas a Inglaterra tambm tinha campos de concentrao. Claro que tudo depende de que lado do front o pas esteve e de quem saiu vitorioso. As crianas americanas, por exemplo, dificilmente aprendem muito sobre a bomba atmica, compara.

    No Brasil, o ato brbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espao na sala de aula. E repercute at demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais jovens. um dos preconceitos que prejudicam uma compreenso imparcial dos acontecimentos. (...)

    Lorenzo Alde, Cad a Histria que estava aqui?, Revista de Histria da Biblioteca Nacional, ano 3, n. 39, fevereiro de 2008, p.16-17

    Bem, prezado leitor, aps ter lido extrato acima, j deve intuir do que se trata este artigo: desfazer mitos. Em particular os envolvem Orgenes, suas obras, o cristianismo at o sculo VI e suas relaes com o Imprio Romano, alm da suposta dominncia da crena na reencarnao at o reinado de Justiniano. Pode ser decepcionante para alguns, mas devo dizer que a maioria dos documentos histricos que aqui aparecer forma escritos por antagonistas. Antes que chie, responda-me esta pergunta: voc tem algum texto de um narrador origenista que exponha com tanta riqueza de detalhes os acontecimentos desde seus antecedentes at a represso final do origenismo? Se tiver, traga-o. Aceito em ingls. Do contrrio, meu caro, vamos ter que fazer uma limonada a partir desse limo. E no fique pensando que um texto origenista seria mais imparcial, o mais provvel que ele seja to tendencioso quanto seu rival ortodoxo, s que em sentido oposto. Isso no uma desculpa que pretendo usar para justificar meu uso desse texto (e de outros). Outros cronistas do passado

  • bem mais badalados padecem de problemas similares. Olha s o que j disseram do cronista judeu do primeiro sculo Flvio Josefo:

    H muitas discrepncias entre a Guerra e a Vita (113) Os historiadores da Antiguidade, em maior parte, escreveram por motivos tendenciosos. A dificuldade, no caso de Josefo, consiste em que seus motivos se alteraram com o tempo em que escreveu suas obras. Em sua Vita, ele respondia, por exemplo, a um ataque a sua pessoa feito por um escritor judeu, Justus de Tiberias (114). Mas o principal motivo para sua mudana de ponto de vista consistiu em que ele era um exemplo de um fenmeno judeu que se tornou muito comum atravs dos sculos: um jovem esperto que, em sua juventude, aceitou a modernidade e sofisticao do momento para depois, j adiantado na idade adulta, retornar a suas razes judaicas. Ele comeou sua carreira de escritor como um apologista dos romanos e terminou-a prximo de ser um nacionalista judeu.

    Assim, como uma analista recente de Josefo observou, fcil destruir a confiana em seu relato, mas quase impossvel substitu-lo por um relato fidedigno (115). (...)

    [Johson, parte II, p. 146-7]

    Notas:

    Referncias abaixo baseadas em: Shaye J.D. Cohen, Josephus in Galilee and Rome: His Vita and Development as a Historian (Leiden, 1979).

    (113) Enumeradas em ibid., 3-23.

    (114) Ibid., 238-41.

    (115) Ibid., 181.

    E continuamos a usar Josefo, porque mesmo com todos as suas limitaes e ressalvas, no h outro melhor. Um cronista bizantino que pretendo citar aqui vai pelo mesmo caminho:

    Apesar de aplaudido como um valioso e frequentemente nico repositrio de informao, o cronista tem sido descredenciado como ingnuo, ignorante e incompetente. Tais julgamentos falham em entender a extenso a que Malala foi condicionado pelo conhecimento contemporneo [seu] e interpretao tanto do passado quanto do mundo a sua volta. (Reinert, 1985), Seu distorcido conhecimento da histria da Roma republicana, por exemplo, essencialmente o mesmo de seu contemporneo Joo, o Ldio. Ento muito das aparentemente novas interpretaes da mitologia e cultura clssicas parecem ter sido amplamente compartilhadas em sua poca. Ele no foi tanto assim o inventor, mas o refletor de uma recm-emergente viso bizantina do passado.

    E. Jeffreys e M. Jeffreys, The Chronicle of John Malalas, Australian Association for Byzantine Studies, Introduo.

    provvel que relatos parciais no sejam exceo, mas a regra; e quanto mais retrocedermos no tempo, maior a nvoa. Mesmo nos dias atuais, quando temos uma quase oniscincia dos fatos de algumas dcadas atrs, ainda assim se corre o risco

  • de enxergar o passado com o olhar do presente. Ah, mas o poltico fulano no cometeu tal burrada na conduo da economia do pas X na poca tal? Sim, mas salvo poucas excees, seus contemporneos partilhavam da mesma viso e se voc estivesse no lugar dele talvez fizesse cagada igual ou similar, afinal no poderia contar com distanciamento dos anos, o que nos permite dizer quais fatores no foram levados em considerao. Da mesma forma, a maioria dos erros de nossa gerao sero prontamente identificados pela que nos suceder.

    Ao contrrio do que diz a frase de efeito a histria contada sempre pelos vencedores, os perdedores tambm tm suas verses dos fatos. Como o mundo d suas voltas (e sempre continuar dando) vencedores e perdedores muitas vezes trocam de posio. Um exemplo bem prximo dos brasileiros famigerada Guerra do Paraguai: um terrvel conflito a que um imprio decadente arrastou a nao. Caxias? Um monarquista. Bem, assim pensavam os republicanos de primeira hora. J no Estado Novo a coisa mudou: na falta de uma genuna guerra de independncia, o conflito platino simbolizava a consolidao de nossa identidade nacional. Caxias foi alado ao posto de patrono do exrcito e seu rosto estampava as antigas notas de dois cruzeiros. A veio o governo militar e um fato sui generis surgiu quando uma verso dos perdedores de ento passou foi gestada enquanto os vencedores estavam ainda no poder. Para a nova intelectualidade de esquerda, o Paraguai era uma potncia regional e Solano Lopes, um dspota esclarecido. O Brasil escravocrata agiu como lacaio da Inglaterra, que estava interessada em conter a insolncia paraguaia contra sua hegemonia. Nossos lderes militares ou eram uns ineptos ou mereceriam uma condenao morte por crimes de guerra. Aps a redemocratizao, quando os antigos derrotados foram forra, essa foi a verso que preencheu muitos livros escolares.

    Em se tratando da corte bizantina do sculo VI, tambm existe uma verso de um perdedor ou, ao menos, de um ressentido. atribuda a Procpio de Cesaria a autoria de A Historia Secreta (ou Anedota), onde d um relato de vrios causos cabeludos envolvendo as principais personalidades do governo imperial. Procpio d uma de Nelson Rodrigues e exalta a disposio superatltica de Teodora, capaz de dar conta de quarenta cidados numa noite s. De que jeito ela levava a audincia ao delrio usando gansos em suas apresentaes no palco, Procpio conta como se tivesse assistido ao show vrias vezes. Os roteiristas de O exorcista e Poltergeist devem ter se inspirado na descrio da cabea de Justiniano esvaecendo e reaparecendo na frente de todos ou como seu rosto se transmutava em massa disforme de uma hora para outra. Procpio no perdeu esse espetculo macabro que lhe deu o direito de acusar o casal de monarcas de ter com o diabo. A ironia que A Histria Secreta o mais rico relato dos bastidores de Constantinopla, portanto necessrio filtrar o plausvel do que no passa de pura difamao. Como atestam historiadores modernos:

    De famlia humilde, Teodora era bela, inteligente e ambiciosa, tendo chegado com 20 anos ao pice de uma brilhante carreira de atriz. Muitas pessoas sobretudo o cronista da corte, Procpio de Cesareia, em relatos de sua Histria Secreta comentavam com rigor os costumes de Teodora, acusando-a de devassido. Para despos-la, Justiniano teve que obter do imperador Justino I a revogao da lei que impedia o casamento de senadores com atrizes. Assim Teodora foi coroada

  • juntamente com o marido e, nos 21 anos que viveu ao lado de Justiniano, sempre se interessou pelos negcios de Estado, exercendo forte influncia sobre a corte e demonstrando, muitas vezes, possuir uma viso poltica mais realista do que a de seu marido.

    Justiniano achava-se obcecado pela ideia da restaurao do Imprio Romano, espiritualmente unificado pela religio catlica, o que tornava a anexao do Ocidente uma de suas preocupaes bsicas. Teodora, porm, achava que as provncias orientais, cultas e prsperas, constituam a base mais slida do imprio. Era preciso, portanto, trat-las com liberalidade, tolerando as agitaes provocadas pelo sentimento nacionalista e as consequentes aspiraes autonomia poltica e religiosa. A imperatriz tinha receio de que a intransigncia de Justiniano, principalmente quanto aos assuntos ligados religio, poderia acabar provocando graves revoltas. E os fatos demonstraram que Teodora estava com a razo.

    Em sua juventude, Teodora no fora a encarnao do vcio, como pretendia Procpio. Tampouco foi o exemplo da virtude nos vinte anos em que ostentou a coroa de imperatriz. Na realidade, mostrou por diversas vezes ser cruel, vingativa e intrigante. Enquanto vrios de seus favoritos fizeram rpida carreira na administrao, na diplomacia e no clero, seus adversrios raramente eram poupados. Entre eles encontravam-se Joo da Capadcia, inspirador da melhor parte da legislao financeira de Justiniano, e Belisrio, considerado o melhor general do imprio. Ambos, porm, desfrutavam de grande prestgio junto ao imperador, suficiente para neutralizar, muitas vezes, a prpria influncia de Teodora. Contudo, o papel desempenhado pela imperatriz, que morreu em 548, representou uma espcie de contraponto linha poltica de Justiniano, e sua importncia no pode, de forma alguma, ser subestimada no quadro poltico do sculo VI.

    Histria das Civilizaes, vol. II, Abril Cultural, 1975, p.44

    Juntando as intrigas palacianas de Procpio com outras fontes, obtm-se um resultado que seria inusitado para o virulento cronista: uma personagem tridimensional, mistura de Eva e serpente, e por isso mesmo muito mais interessante que os produtos das simplificaes correntes no meio espiritualista.[topo]

  • 2 - Antecedentes Histricos I: Orgenes

    Hipottico retrato de Orgenes, publicado em Origenis Adamantii Opera quae quidem proferri potuerunt omnia, Paris, 1619.

    Procpio nos permite enxergar cada rvore, mas no a floresta. Todo o elenco poltico-religioso precisava de um palco poltico para representar, que j vinha sendo montado sculos antes. Essencialmente, os preparativos para a pea se iniciaram com o prprio sucesso do cristianismo como religio. Durante os sculos II e III, boa parte dos antagonistas do cristianismo nascente se encontrava entre os pagos no front externo e, no campo interno, os hereges. Por incrvel que parea, os primeiros no passavam 24 horas por dia e 365 dias por ano tentando exterminar os cristos e o mais comum era que surtos de perseguies movidas por agentes locais se alternassem com longas calmarias (1). A caa aos cristos recrudesceu no mbito imperial apenas com Dcio (249-251) e, aps nova trgua, chegou ao nvel de genocdio com Diocleciano (284-305) . Nos intervalos, a questo residia na luta diria por algum respeito ante os pagos, visto que aos olhos de muitos o cristianismo no passava de mera superstio oriental, incapaz de fornecer um sistema filosfico que prestasse. Do outro lado, estavam diversos grupos gnsticos e marcionitas, empenhados (entre outras coisas) em descartar a herana judaica e atribuir ao Iahweh do Antigo Testamento o papel de demiurgo inferior e criador do pernicioso mundo material. A vida de Orgenes se situa em grande parte durante um longo perodo de trgua no sculo III. Apesar de ter perdido o pai ainda adolescente numa perseguio, ele bem tinha cincia de que vivia uma trgua:

    A prova de que tampouco o temor dos estrangeiros que mantm nossa sociedade [crist] est no fato de que, pela vontade de Deus, ele deixou de existir h muito tempo. Mas provvel que acabe a segurana em prol da vida de que gozam os cristos, quando novamente os que caluniam de todos os meios nossa doutrina pensarem que a revolta, levada ao ponto em que se encontra, tem sua causa no

    http://books.google.com.br/books?id=DVCHoW1Eh_sC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=falsehttp://books.google.com.br/books?id=DVCHoW1Eh_sC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false

  • grande nmero de crentes e no fato de que eles no so perseguidos pelos governadores como outrora.(...)

    Contra Celso, livro III, 15

    E foi durante esse nterim que fez sua famosa apologia contra os argumentos do pago Celso, de onde a citao acima foi extrada, que procurava desmoralizar o cristianismo. Quanto ao fogo amigo - o desafio gnstico - sua principal obra foi De Principiis (Sobre os Princpios). Ao contrrio do que alguns autores alegam (2), no absorveu secretos ensinamentos gnsticos no intuito de montar seu sistema teolgico. Muito pelo contrrio, visava justamente oferecer uma contraproposta as suas teorias. Quais delas, mais especificamente? Bem, vejamos um breve apanhado do gnosticismo:

    O gnosticismo foi um movimento religioso da antiguidade que se infiltrou em vrias tradies religiosas, incluindo o judasmo e a cristandade. Era fundamental perspectiva gnstica a convico de que o mundo mal. Conforme o gnosticismo amadurecia, ele se comprazia em elaborar especulaes acerca de uma variedade de problemas. Expressou sua convico quanto ao mundo em sua doutrina da criao: o mundo veio existncia quando um demiurgo maligno ou deus criador, muitas vezes um anjo cado ou rebelde, afastou-se do verdadeiro Deus e criou o mundo, que ento entendido como o mundo privado do demiurgo, um produto de sua ambio vaidosa.

    No gnosticismo judaico, esse deus maligno e rebelde foi identificado com Iahweh, o Deus criador da Gnesis. Consequentemente, o gnosticismo judaico lia o relato da criao da Gnesis como se ele estivesse virado de ponta-cabea: Iahweh era um criador maligno, que escondia de Ado e Eva a verdade sobre a criao. A serpente era considerada como benvola, como um agente do verdadeiro Deus; a serpente tenta esclarecer os primeiros humanos da realidade celestial que jaz alm da criao maligna de Iahweh. A serpente , pois, uma espcie de figura salvadora. As figuras salvadoras desempenhavam um proeminente papel na mitologia gnstica: por meio de tais mensageiros de Deus redentores que descem Terra, alertam os humanos de sua verdadeira condio e ento retornam ao reino celeste a salvao se torna possvel para os gnsticos.

    Os gnsticos acreditavam que no eram deste mundo, mas descendentes de um verdadeiro Deus. Consideravam-se centelhas de luz divina aprisionadas pelo criador maligno no mundo material de sua criao. O objetivo deles a salvao era escapar deste mundo e reascender ao reino celeste de sua origem.

    No gnosticismo cristo, a figura salvadora ascendente/descendente foi identificada com Cristo. Ele vem, como em outros sistemas gnsticos, relembrar os gnsticos de sua verdadeira natureza, despert-los do esquecimento e lhe falar de seu lar celestial. O Cristo compartilha conhecimento secreto com eles gnosis que o meio pelo qual podem escapar do mundo maligno e voltar para Deus.(...)

    Fonte: [Funk, p. 500, Thomas & Gnosticism] (3)

    Para os gnsticos, no havia o famoso Problema do Mal, que tanto afligiu religies em que o deus bom e o criador so a mesma entidade. Para eles o mundo era uma porcaria por si s e no havia sentido em lhe justificar a existncia, j que no passava de uma priso do demiurgo inferior. De Pricipiis uma tentativa de dar uma

  • alternativa ao dualismo gnstico, que fosse capaz ao mesmo tempo de salvar o Iahweh do Antigo Testamento e ter coerncia. E como ele conseguiu isso?

    2.1 O Sistema Origenista

    Para Orgenes, e ao contrrio do espiritismo, as almas no comeavam simples e ignorantes, mas numa espcie de situao angelical; afinal:

    Quando no comeo Ele criou aqueles seres que desejava criar, i.e, de natureza racional, Ele no tinha motivo algum para cri-las de maneira diferente que a em nome de Si mesmo, i.e., Sua divindade. Como ento Ele foi a causa das criaturas que viriam a ser criadas, nas quais no havia nenhuma variao, nem mudana, nem nsia por poder, Ele criou todas das quais fez iguais e similares, porque no havia nEle nenhuma razo para produzir variedade ou diversidade. Mas como essas criaturas racionais por si s () estavam dotadas de livre-arbtrio, esta liberdade de escolha incitou cada uma a progredir a Deus por imitao, ou reduzir-se ao erro pela negligncia.

    De Principiis, livro II, cap IX, VI

    Pelo uso do livre arbtrio, elas se cansavam de sua felicidade e se rebelavam, da a queda delas. Haveria diferentes nveis de queda, seguindo uma gradao: anjos, estrelas (supondo que elas tivessem pensamento), homens e demnios. Tais posies poderiam ser desfeitas, visto que o livre-arbtrio dado poderia permut-las. Aqui entra o cerne da pregao origenista: o conceito de aeon era cada mundo corresponderia a uma delas e nossas era atual seria especial no sentido nela ter ocorrido o sacrifcio de Cristo, o que acelerou a restaurao de todas as coisas. Isto introduz o conceito de salvao no sistema origenista.

    Mas quanto a este mundo, que o prprio considerado uma era, diz-se ser a concluso de muitas eras. Agora que o santo apstolo ensina que na era que precedeu esta, Cristo no sofreu, nem mesmo ainda na era que precedeu aquela, e no sei se sou capaz de enumerar o nmero de eras passadas que Ele no sofreu. Mostrarei, porm, de quais palavras de Paulo eu cheguei a este entendimento. Diz ele: Mas agora na consumao das eras [tempos], Ele se manifestou para tirar o pecado pelo sacrifcio de Si mesmo. Visto que Ele diz ter sido feito vtima e na consumao das eras manifestou-se para tirar o pecado. Agora aps esta era, que formada pela consumao de outras eras, haver outras eras por seguir, aprendemos claramente do prprio Paulo, que diz: nas eras [tempos] vindouras Ele deve mostrar a extraordinria riqueza de Sua graa na Sua bondade para conosco (Ef. 2.7). Ele no disse na era vindoura, nem nas duas eras vindouras, da infiro que, por esta linguagem, muitas eras so indicadas. Agora, se h algo maior que eras, de forma que certas eras devam ser compreendidas entre os seres criados, mas entre outros seres que excedem e ultrapassam as criaturas visveis, (eras ainda maiores) (que talvez seja o caso na restituio de todas as coisas, quando o universo inteiro vir a um trmino perfeito), talvez o perodo em que a consumao de todas as coisas ocorrer deva ser entendido como algo mais que uma era. Mas aqui a autoridade da sagrada Escritura me persuade ao dizer Por uma era e mais (In sculum et adhuc ). Agora esta palavra mais indubitavelmente significa algo maior que uma era; e veja se aquela expresso do Salvador Estarei onde estou, que estes tambm estejam comigo e assim como Eu e Tu somos um, que estes sejam um em Ns (cf. Jo 17:20-22), pode no parece significar algo mais que uma era ou eras, talvez mesmo mais que eras de eras isto , aquela poca quando todas as coisa que agora so no estiverem mais em uma era, mas quando Deus

  • estiver em todos.

    De Principiis, Livro II, III. 5.

    Ao fim de cada era, haveria uma ressurreio e um julgamento final.

    Nosso entendimento dessa passagem que, na verdade, o apstolo, desejando descrever a grande diferena entre os que reerguem em glria, i.e., dos santos, tomou emprestado a comparao dos corpos celestes, dizendo Uma a glria do sol, outra a glria da lua, outra a glria das estrelas. E de novo desejando nos ensinar a diferena entre os que viro ressurreio sem ter se depurado nesta vida, i.e., os pecadores, tomou emprestado uma explanao das coisas terrestres, dizendo, h uma carne dos pssaros, outra dos peixes. Pois coisas celestes so merecidamente comparadas aos santos e as terrenas aos pecadores. Estas declaraes so feitas em resposta aos que negam a ressurreio dos mortos, i.e., a ressurreio dos corpos.

    De Principiis, Livro II, cap. X.

    Aos pecadores, ainda haveria uma chance de redeno. O fogo do inferno no seria um castigo fsico, mas um fogo moral e purificador:

    O Fogo do Inferno, alm disso, e os tormentos com os quais a sagrada escritura ameaa os pecadores so explicados por ele no como punies externas, mas como aflies de conscincias pesadas quando, pelo poder de Deus, a memria de nossas transgresses posta perante nossos olhos. Toda colheita de nossos pecados cresce de novo das sementes que permanecem na alma e todos os atos desonrosos e indignos so outra vez retratados diante de nossas vistas. Assim o fogo da conscincia e os espinhos do remorso que torturam a mente a medida que ela relembra na referida autoindulgncia. E de novo: mas talvez este grosseiro e terreno corpo deva ser descrito como nvoa e escurido; pois ao fim deste mundo e quando for necessrio passar ao outro, o similar escurido levar ao similar nascimento fsico [ou fisicamente nascido]. Falando assim ele claramente pleiteia pela transmigrao das almas como ensinado por Pitgoras e Plato.

    Jernimo, Carta a vito, 124

    Pode ser sugerido acima que na passagem de uma era a outra ocorreria o reencarne. Na verdade, h indcios de que a reencarnao origenista se daria por alguma forma de continuidade entre um corpo fsico e outro, ao menos para a primeira gerao da era que se iniciasse (opinio que corroboro de Origen of Alexandria The Internet Encyclopedia of Philosophy). Talvez o choque de Jernimo possa ser explicado por passagens de outras obras de Orgenes em que ele fala de transformaes, no trocas de corpo:

    De acordo com a lei de Moiss est escrito sobre certas coisas que deit-las-ei aos ces [Ex. 22, 31] e foi uma questo referente ao Esprito Santo dar instruo sobre certos alimentos que deveriam ser deixados aos ces. Quantos outros, ento, que so estranhos doutrina da Igreja, assumem que almas passam de corpos de homens para corpos de ces, segundo seu varivel grau de iniquidade; mas ns, que no achamos isto na divina Escritura, dizemos que uma condio mais racional muda para uma mais irracional, sofrendo esta modificao como consequncia de grande indolncia e negligncia. Mas tambm, da mesma forma, um arbtrio que foi mais irracional, por causa de sua negligncia da razo, algumas vezes se transforma e se torna racional, de modo que aquele que foi um co, adorando comer

    http://www.iep.utm.edu/o/origen.htmhttp://www.iep.utm.edu/o/origen.htm

  • as migalhas que caem da mesa de seus senhor, vai para a condio de filho. Pois virtude contribui enormemente para fazer de algum um filho de Deus, mas maldade, e fria enlouquecida em falas licenciosas e descaramento contribuem para a atribuio de um homem do nome de co, conforme as palavras da Escritura [2 Sm 16:9].

    Orgenes, Comentrio ao Evangelho de Mateus, cap. XI, 17

    Desta forma, Orgenes concilia sua crena em mundos sucessivos com um vis ortodoxo. Ele no cria em uma reencarnao dentro de nossa era e negou em outras obras a existncia disto na Bblia, o que perfeitamente coerente com sua ideia de reencarnao entre eras (com possvel continuidade entre corpos). A medida que seres purificados iam aumentando em nmero seria chegada a hora da consumao de todas as coisas, onde todos os seres racionais seriam restaurados a sua pureza original (apocatstase) e Deus seria tudo em todos. O universo chegaria a um fim e os seres racionais dispensariam seus corpos.

    Ento o fim do mundo e a consumao final ocorrero quando cada um se sujeitar punio por seus pecados, uma ocasio que s Deus sabe, quando Ele dar a cada um o que merece. Pensamos, na verdade, que a divindade de Deus, por meio de Seu Cristo, chamar todas as Suas criaturas para um fim, at mesmo Seus inimigos sendo conquistados e subjugados. Pois assim diz a sagrada Escrituras, E o Senhor dir ao meu Senhor, Senta-te a minha direita, at que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus ps (Sl 110:1). E se o sentido da linguagem do profeta aqui for menos clara, podemos nos certificar do apstolo Paulo, que fala mais abertamente assim: Pois preciso que Cristo reine at Que Ele ponha todos os inimigos debaixo de Seus ps(I Cor 15:25). Mas mesmo se tal explcita declarao do apstolo no nos informa suficientemente quanto ao significado de inimigos sendo postos debaixo de seus ps, escute o que ele diz nas seguintes palavras, Pois todas as coisas devem ser postas sob Ele. O que ento este colocando debaixo pelo qual todas as criaturas devem estar sujeitas a Cristo? Sou da opinio que esta a mesma sujeio pela qual todos ns tambm desejamos nos sujeitar a ele, pela qual os apstolos tambm foram sujeitos e todos os santos que tm sido seguidores de Cristo. Pois o nome sujeio, pela qual esto sujeitos a Cristo, indica que a salvao que procede dele pertence a seus submissos, em concordncia com a declarao de Davi, No dever minha alma estar sujeita a Deus? Dele vem minha salvao.(Sl 62:2)

    De Principiis, I, VI, 1

    Mas este no seria o fim da histria. Como no conseguia conceber uma divindade ociosa e seres estticos, cedo ou tarde o processo recomearia com novas quedas:

    Ento, se essas concluses parecem vlidas, segue que devemos acreditar que nossa condio em algum tempo futuro ser incorprea e se isto for admitido e todos estiverem submetidos a Cristo, essa (incorporeidade) tambm deve necessariamente concedida a todos a que a sujeio a Cristo se estenda; desde que todos que esto sujeitos a Cristo estaro no final sujeitos a Deus, o Pai, a quem se diz que Cristo envia o reino; e assim parece que, ento, tambm a necessidade de corpos cessar. E se ela cessar, a matria retornar ao nada, como ela anteriormente inexistia.

    Ento vejamos o que pode ser dito em resposta queles que fazem estas assertivas. Visto que parecer ser uma necessria consequncia que, se a natureza corporal for aniquilada, ela deve ser outra vez restaurada e criada; j que parece algo possvel

  • que as criaturas racionais, das quais a faculdade do livre-arbtrio nunca retirada, possam novamente estar sujeitas a movimentos de alguma forma, por meio de um ato especial do prprio Senhor, talvez a fim de evitar que, se elas estivessem sempre a ocupar uma posio que fosse imutvel, devessem ser ignorantes de ter sido pela graa de Deus e no por seu prprio mrito que foram postas naquele estado final de felicidade; e estes movimentos sero indubitavelmente outra vez seguidos por uma variedade e diversidade de corpos, pelos quais o mundo est sempre ornado; nem ser composto (de nada) alm de variedade e diversidade, um efeito que no pode ser produzido sem uma matria corporal.

    De Principiis, II, III.3

    Resumindo: Orgenes concebeu um sistema de criaes sucessivas de mundos antes e posteriores a este. O estado original de todos os seres racionais seria o de uma felicidade plena e incorprea, mas por descuido ou insubmisso (no caso dos demnios), se afastaram as almas do estado original de graa e Deus teria criado o mundo material e seus corpos fsicos para que pudessem se regenerar. Em ordem crescente a queda seria anjos, estrelas, humanos e demnios. Ao fim de cada mundo criado, haveria uma ressurreio e Julgamento Final com a redeno dos santos e o fogo do inferno para os pecadores. Tal fogo seria algo moral, uma reviso pela conscincia de todos os pecados cometidos a fim de purificar o indivduos. Os que ainda precisassem de purificao ao fim do processo, passariam ao prximo mundo (semelhante a este ou no), criado em uma nova era (aeon). Devido ao livre-arbtrio, virtuosos de uma era poderiam ser pecadores em outras e vice-versa, para o processo no ser errtico, nossa era conheceu o sacrifcio de Cristo, que teria um efeito catalisador para as almas escolhessem e optassem pelo caminho do bem. Quando todos estivessem submissos a Cristo, a natureza corporal teria um trmino e a beatitude original seria restaurada (o princpio e fim so os mesmo). Embora cedo ou tarde tudo se reiniciaria mais uma vez, com novas quedas, etc. Uma espcie de tentativa de conciliar o tempo cclico de algumas correntes do pensamento grego com o tempo linear judaico-cristo.

    2.2 Era Orgenes reencarnacionista?

    Sim, no, depende. Defina-me reencarnao primeiro e a, ento, discutimos. Quando se tem que definir algo, surge o problema de o quanto a definio deve ser abrangente e, em geral, cada lado tenta impor a definio que mais lhe convier, o que j meio caminho andado para ganhar (desonestamente) um debate.

    De concreto, temos a crena na preexistncia das almas e sua queda. Por outro lado, defendeu um modelo de ressurreio bem ortodoxo em De Principiis, II, X

    Pois se corpos so erguido outra vez, sem dvida eles se erguem para nos revestir; e se nos necessrios ser investidos de corpos, como certamente necessrio, no devemos ser investidos com nenhum outro seno o nosso prprio.

    O sistema origenista guarda grandes semelhanas tambm com sistemas platnicos. Algumas diferenas, porm, so chamativas: a volta a algum corpo fsico s se daria entre aeons (eras) distintos, no ao mundo tal como o conhecemos e, sim, a novos; uma possvel continuidade entre o antigo corpo fsico e prximo, o que permitiria conciliar este sistema cclico com uma ressurreio ortodoxa (ou uma ressurreio e

  • julgamento final ao fim de cada era, como na verso de Rufino); um ponto final para essa criaes sucessivas (apocatstase), quando todas as almas estariam sujeitas a Cristo e Deus seria tudo em todos; e o valor do mrito no futuro, coisa nem sempre presente em sistemas neoplatnicos e que podia levar tanto a ascenses quanto a quedas momentneas.

    A falta de um texto confivel de De Principiis s piora a questo. Basicamente, as fontes que temos so a traduo corrompida de Rufino, extratos da coletnea Philocalia e uma sinopse de uma traduo literal latina de Jernimo exposto em uma carta endereada a seu amigo vito (4). Rufino, ao menos, foi honesto em assumir as modificaes que fez e deu algumas justificativas para tanto em um panfleto chamado A corrupo das palavras de Orgenes:

    1. Seria impossvel um homem inteligente e erudito como Orgenes se contradizer dentro de um mesmo tratado, s vezes quase em sentenas sucessivas;

    2. Outros escritores de inquestionvel ortodoxia tiveram suas palavras adulteradas dos hereges, como Clemente de Roma, Clemente de Alexandria, Dionsio de Alexandria;

    3. O prprio Orgenes reclamara, em uma carta ainda existente, que seu trabalho fora corrompido por herticos. O ponto em questo nessa carta era a possibilidade de salvao do diabo. Orgenes assevera que jamais teria ensinado isso; mas, durante uma discusso com um hertico, tomara cincia que uma verso adulterada de seus textos devia estar circulando.

    Jernimo contra-atacou a defesa de Rufino lembrando que escritores anteriores a ele, como Eusbio e Ddimo , j declaravam que Orgenes ensinara coisas indevidas (Cf. Carta LXXXIV, a Pamquio e Oceano). O curioso que mesmo quando o acusa de crer na doutrina de Pitgoras, a citao de De Principiis em que ele se embasa afirma que a volta ao corpo no se dar no mundo atual, tal como conhecemos, mas em outro(Cf. Carta CXXIV, a vito). Na prpria traduo de Rufino, mundos sucessivos e novas eras so declarados constantemente e nos Comentrios sobre Mateus e Joo (5). Orgenes execra a transmigrao das almas e descarta a chance de ela ser doutrina crist ou judaica (no judasmo daquela poca). Isso no contradio: Orgenes defendia uma existncia corporal dentro de cada era, e no vrias numa mesma. O sistema origenista, tal como est em De Principiis, no possua danao eterna, e nem redeno eterna! Na viso origenista, afastar-se novamente de Deus era uma possibilidade que o livre-arbtrio asseguraria aos seres racionais. Da novas quedas e... tudo de novo! Uma viso diferente, porm, surge no Comentrio sobre Romanos:

    Ao propor essas coisas e similares, eles conjecturam que esses mesmos arranjos tero de ser repetidos por Cristo mesmo nas eras futuras (cf. De Principiis II.3.4) [i.e. vir Terra, ser crucificado, etc.]. Mas responderemos brevemente a estas coisas o melhor que pudermos. Certamente no negamos que o livre arbtrio sempre permanecer nas criaturas racionais, mas afirmamos que o poder da cruz de Cristo e de sua morte que assegurou o fim das eras (cf. Hb 9:26) to grande que suficiente para a cura e restaurao no apenas do presente e do futuro, mas tambm das eras passadas. Ela basta no somente para nossa ordem humana, mas

    http://www.falhasespiritismo.org/2011/11/08/origenes/

  • tambm para as potestades e ordens celestes (cf. De Principiis II.3.5). Pois segundo o pronunciamento do prprio Apstolo Paulo: Cristo fez a paz pelo sangue de sua cruz no apenas com as coisas sobre a terra mas tambm com as coisas no cus (cf. Cl 1:20).

    Comentrio sobre Romanos, V.10.14

    Ele que fora Lcifer e que ascendeu ao cu (cf. Is 14:12), ele que no tinha mcula desde o dia de seu nascimento e estava entre os querubins (cf Ez 28.14-17), foi capaz de cair em relao benevolncia do Filho de Deus antes que pudesse ser amarrado pelas correntes do amor. Mas aps o amor de Deus ter comeado a ser derramado no corao de todos por meio do Esprito Santo (cf. Rm 5:5), o que o Apstolo declarou se estabelecer, O amor jamais acaba (I Cor 13:8). Temos dito estas coisas dando o melhor de nossa capacidade para responder questes geradas pela passagem, a fim de que ela possa se tornar claramente elucidada quanto forma que Cristo morreu para o pecado uma vez e por todas e como ele no morre mais, e por causa da vida que ele vive, ele vive para Deus.

    Comentrio sobre Romanos, V.10.16

    Comparando tais passagens com anlogas em De Principiis, nota-se que nestas ltimas, apesar de o sacrifcio de Cristo tambm ser um diferencial de nossa era atual a acelerar o retorno beatitude dos seres cados, outras quedas ocorreriam mesmo aps a restaurao universal, coisa que no mais acontecer segundo Comentrio sobre Romanos. Conforme apresentado em nota de rodap na traduo inglesa de [Scheck], muitos acadmicos consideram esta como sendo a opinio final de Orgenes quanto restaurao universal. Seria um sistema com preexistncia, vida nica, redeno eterna e salvacionista. Talvez este Orgenes tardio fosse palatvel para muitos cristos moderados de hoje em dia e lhes daria uma sada razovel para o Problema do Mal.

    Orgenes no era meramente um (neo)platnico, alis isso insuficiente para justificar a crena de reencarnao ao estilo ocidental moderno em suas obras. Platonismo no se resumia a isso (se que um dia foi elemento essencial) e sua noo de mundos sucessivos tinha mais a ver com o estoicismo. Seu professor, Clemente, tambm tinha vasta cultura clssica e interpretou muitas das passagens de seus dilogos, onde lendas reencarnacionistas eram contadas, como sendo metforas (Miscelneas, 5.9). O maior platonista da Igreja do ocidente Agostinho era adepto da danao eterna, como ser visto mais abaixo. Onde Orgenes, sim, pode ser enquadrado no papel de um dos campees da ortodoxia. Em tudo o que escrevia procurava dar embasamento bblico e, mesmo quando alegorizava, no era incomum combater interpretaes de rivais da ortodoxia como gnsticos e marcionistas. De Principiis uma obra que, ironicamente, deveria ajudar nos embates teolgicos com os outros cristianismos. Seu carter heterodoxo deixa de ser to chamativo caso se entenda que, quando ele viveu, a ortodoxia, apesar de j estar razoavelmente delineada, ainda possua fronteiras nebulosas as quais ele pde forar, tanto que alguns preferem chamar tal grupo de proto-ortodoxia. Ter explorado aquilo que Igreja ainda no tinha opinio definida foi justamente um dos primeiros argumentos de Pnfilo em sua Apologia por Orgenes (6).

    http://www.falhasespiritismo.org/2011/11/06/clemente-de-alexandria/http://ourworld.compuserve.com/homepages/jsuebersax/Plato4.htm

  • Na verdade, ele discutiu essas coisas no comeo do livro "Peri Archon" [De Principiis], para que mostrar quais eram aquelas que esto estabelecidas de algum modo na doutrina recebida da Igreja, e as que no estivessem de modo algum nitidamente definidas. Discute sobre todas individualmente conforme esta diviso, como mostrou acima, ao longo restante do corpo dos livros; foram postas a todos os exames, mesmo as que mostrou acima estarem de acordo com as doutrinas definidas pela Igreja, declamando de modo mais indubitvel e inabalvel a partir das santas Escrituras; quanto ao fato sobre o qual mostrou no estar de modo manifesto, nem ser deduzido a partir do que a Igreja proclamou, usa antes opinies e juzos que podero ter lhe ocorrido tanto em debates a respeito dele como discusses sobre tais, assim como ele usado por algumas declaraes especficas e determinadas, isto , mais discutindo-se e cogitando-se do que dogmatizando.

    (Patrologia Graeca, v.17, 551)

    preciso ter mente, portanto, o carter essencialmente especulativo da obra. No apenas Orgenes se enquadra nessa situao: de certa forma, vrios membros da patrstica tiveram opinies que vieram a ser rejeitadas depois, o que levou os membros da ortodoxia a desenvolver filtros para usar apenas a parte de suas obras que lhe era mais palatvel. Assim, ao mesmo tempo em que destruram bastante sua criatividade primeva, colaboraram para preservar um retrato dela:

    dirigido contra mim que eu algumas vezes louvei Orgenes. Se no estou enganado, fiz isso em apenas duas ocasies, no curto prefcio (endereado a Dmaso) para suas homilias do Cntico dos Cnticos e no prlogo do meu livro sobre nomes hebraicos. Nessas passagens algum dogma da Igreja posto em questo? dita alguma coisa a respeito do Pai, do Filho e do Esprito Santo? Ou da ressurreio da carne? Ou da condio material ou imaterial da alma? Eu apenas louvei a simplicidade de sua interpretao e comentrio e nem a f, nem os dogmas da Igreja so discutidos, afinal. S se lida com princpio morais e a nvoa da alegoria desfeita com uma explicao clara. Eu louvei o comentarista, mas no o telogo, o intelectual, mas no o crente, o filsofo, mas no o apstolo. Mas se os homens desejam saber meu verdadeiro julgamento quanto a Orgenes, deixe-os ler meus comentrios sobre Eclesistico, deixe-os percorrer meus trs livros sobre a epstola aos Efsios: eles ento vero que sempre me opus a suas doutrinas. Que absurdo seria elogiar um sistema ao ponto de endossar suas blasfmias! O abenoado Cipriano tomou Tertuliano como seu mestre, como seus escritos provam; embora, deleitado como fica com a habilidade desse douto e zeloso escritor, no se junta a ele para seguir Montano e Maximlia. Apolinrio o autor do mais pesado livro contra Porfrio e Eusbio comps uma refinada histria da Igreja; apesar do primeiro ter mutilado a humanidade encarnada de Cristo, ao passo que o ltimo foi o mais declarado campeo da iniquidade de rio. Ai, diz Isaas, dos que bem chamam de mal e ao bem mal; quem pe o amargo por doce e doce por amargo (Is 5:20). No devemos difamar as virtudes de nossos oponentes se tiverem quaisquer qualidades louvveis mas nem devemos louvar os defeitos de nossos amigos. Cada um dos vrios casos deve ser julgado por seus prprios mritos e no por uma referncia s pessoas em questo. Enquanto Luclio foi justamente atacado por Horcio pela irregularidade de seus versos, ele foi, da mesma forma, justamente louvado por seu estilo sagaz e fascinante.

    Jernimo, Carta 84 - a Pamquio e Oceano.

  • Notas:(1) Para saber mais: [Wand, cap. IX e XI].

    (2) Elizabeth Clare Prophet, Reencarnao - O Elo Perdido do Cristianismo, Nova Era, cap XVI: Gnosticismo Orgenes absorveu este conceito atravs de um professor chamado Paulo de Antioquia.

    (3) Um dos ltimos sistemas dualistas similar aos gnsticos a possuir relevante difuso na cultura ocidental foi o credo das igrejas ctaras na Idade Mdia. Nos tempos modernos, faltam exemplos ao grande pblico do mundo judaico-cristo que deem uma boa ideia do que seja realmente uma teologia gnstica sendo professada. As religies monotestas, em suas inmeras ramificaes, pregam a existncia de um nico deus verdadeiro e criador do material e espiritual. Portanto, cada uma busca, a sua maneira, desatar o n filosfico de conciliar a onibenevolncia divina, o livre-arbtrio humano e maldade existente no mundo. Ainda assim, muitas obras de fico adotam elementos gnsticos em sua trama, dando a sua audincia uma vaga ideia do que seria sistema gnstico, mesmo que ela no se d conta disso. Gostaria de dar alguns exemplos [ateno: spoilers abaixo.]:

    1. Os filmes Matrix (s o primeiro da trilogia) e O Show de Truman Como so de grande conhecimento, no vou entrar em muitos detalhes: ambos partem do pressuposto que os protagonistas chamam de realidade a mais pura fraude criada por seres manipuladores, que desejam mant-los em estado de alienao somente para que sirvam aos seus propsitos egostas. interessante a cena final de Show..., quando o Truman finalmente consegue achar a sada do gigantesco estdio televisivo que fora at ento seu mundo, o diretor do seriado faz um ltimo esforo para convenc-lo a ficar. Ele no faz isso pessoalmente, mas atravs de potentes alto-falantes que fazem sua voz ecoar por todo o ambiente. Era como se Truman estivesse ouvindo diretamente a voz de.... voc sabe muito bem quem! Matrix possui claramente uma figura redentora a personagem Neo de incio relutante, mas que aos poucos vai aceitando seu papel como libertador da humanidade do jugo das mquinas. Vale destacar o papel do traidor Cypher, que prefere voltar a viver na realidade virtual criada por computadores para aprisionar as mentes humanas a encarar numa realidade devastada. A ignorncia uma bno, diz em sua melhor frase. A realidade talvez no agrade a todos...

    2. O anime Fullmetal Alchemist Em um universo alternativo, onde a alquimia no teria se degenerado em esoterismo e, sim, alcanado o status de cincia respeitvel, dois jovens irmos (Alphonse e Edward Elric) sofrem terrveis sequelas aps um experimento alqumico fracassado. Dispostos a restaurar seus corpos, partem em busca da chamada pedra filosofal: um objeto lendrio que daria a um alquimista a capacidade de fazer qualquer transmutao. Em suas andanas, encontram-se com sua antiga professora de alquimia que, ao constatar o resultado da imprudncia dos garotos, primeiro os espanca para depois abra-los e chorar copiosamente, pois guardava um segredo: tambm tentara fazer a mesma coisa que eles (reviver uma pessoa morta) e pago preo similar. Passado algum tempo (episdio 31), ela e um dos irmos trocam ideias

  • sobre o que vivenciaram durante os desastres de suas tentativas. Algo havia em comum: ambos se encontraram diante de um portal que, ao se abrir, tanto mutilou seus corpos como incrementou seus poderes. A ex-mestra lhe pergunta: Ed, o que voc viu do outro lado daquele porto?. E o antigo discpulo responde: Eu vi tudo o que alquimia. Eu senti como se tudo, o mundo todo, estivesse passando por dentro de mim. A verdade universal estava l. A verdade universal? - retruca a ex-mestra - Para mim, pareceu como o inferno. Os irmos j haviam descoberto qual era a vil matria-prima da pedra filosofal; agora algum tinha a audcia de lhes dizer que a fonte do saber de toda alquimia talvez no fosse alguma coisa boa. Muitas surpresas ainda aguardavam pelos irmos Elric, como a revelao de que a alquimia possua uma falha grave em seu postulado mais bsico. Era o portal, valendo-se do que existia alm dele, que dava a iluso desse postulado ser vlido. Apesar de ser um desenho e sua principal funo ser meramente divertir com suas cenas de luta, este anime possui um enredo inteligente e aborda diversos temas pertinentes a nossa sociedade real. No se aprofunda em nenhum, claro, e isso at bom porque passa a valer o que no dito. Muito melhor do que as cartilhas de literatura edificante.

    3. A trilogia Fronteiras do Universo (no original ingls His Dark Materials), de Philip Pullman: Existem vrios universos paralelos ao nosso, cada um com suas prprias particularidades. Em um desses universos alternativos, as pessoas no possuem suas almas dentro de seus corpos; em vez disso, elas se manifestam fisicamente fora delas em forma de animais os daemons que os acompanham onde quer que vo, interagindo com seus donos como se fossem seus melhores amigos. Nesse mesmo universo, a Igreja Catlica continua forte e poderosa. No h mais a figura de um monarca papal, mas um conjunto de colegiados denominado Magistrio. Nesse mundo onde temporal e o secular vivem se estranhando, cresceu a garota Lyra Belacqua, que levava uma vida comum de uma moleca bem esperta. As coisas mudam quando crianas pobres da redondeza comeam a sumir misteriosamente. Aps Lyra ter melhor amigo sequestrado, ela resolve partir, depois de alguns percalos, com um grupo de aliados em busca das crianas desaparecidas. Durante o percurso, diversas perguntas rondam a mente de Lyra. O que era o chamado p que ouvira por acaso e deixava os clrigos obcecados? Por que as crianas eram imunes a ele e passavam a atra-lo quando cresciam? Qual a relao do Magistrio com os sequestros? O que era inicialmente uma misso de resgate vai ganhando propores picas e colocar em jogo no s o destino do mundo de Lyra, mas os de todos os universos. Aos poucos, principalmente na segunda parte da trilogia, mistrios comeam a ser revelados: o p aquilo que em nosso universo chamamos de matria escura (dark material). Dessa matria, espontaneamente surgiram os anjos sendo que o primeirssimo (e mais poderoso) se aproveitou de sua posio privilegiada e convenceu os demais que de era seu criador e se intitulou a Autoridade. At que um dia a farsa foi descoberta e comeou a primeira guerra celestial. Os partidrios da Autoridade venceram, mas os anjos derrotados manipularam a evoluo humana para tornar nosso crebro um grande receptor da matria escura que lhes dera origem. Com a ajuda humana, pretendem se lanar desforra contra a

  • Autoridade. Vrios elementos gnsticos se juntam nesta obra literria: o que pensamos ser bom (a Autoridade/Deus e seus anjos) mau e nossos verdadeiros aliados so os que pensamos serem maus (humanos hereges, os anjos cados, as bruxas e dois assassinos); Lyra junto com um menino de nosso mundo Will fazem o papel de figuras redentoras, portadores de instrumentos secretos (o aletimetro e a faca sutil) e que guiaro seus amigos de vitria em vitria, rompendo as barreiras entre os diversos mundos que o Magistrio tenta esconder. S h um detalhe: Fronteiras do Universo uma obra atia, pois no h a figura de um bom deus, j que os anjos surgiram espontaneamente. Ainda assim Fronteiras... possui uma gama de caractersticas que permite identific-la como um gnosticismo ateu. No que Pullman realmente creia no mundo mgico por ele criado, mas o que fez certamente o nmesis da srie As Crnicas de Nrnia, de C.S. Lewis, que est cheia de pregaes crists disfaradas. Pena que a adaptao para o cinema do primeiro livro A Bssola de Ouro tenha ficado muito aqum do original. A prpria atenuao do discurso polemista, para no chocar (mais ainda) o pblico conservador, contribuiu para isso. Sobrou apenas a fantasia dos efeitos especiais. Uma insossa fantasia.

    A partir do alto, esquerda, e em sentido horrio: Show de Truman, Matrix, A Bssola de Ouro e Fullmetal Alchemist: gnosticismos modernos.

    (4) Que no era imperador romano ao contrrio do afirmado em J.R. Chaves, A

  • Reencarnao na Bblia e na Cincia, ebm, 7 ed., cap. VI.

    (5) Prophet cita o Comentrio ao Evangelho de Joo de forma incompleta, dando a falsa ideia de que Orgenes defendia a transmigrao nesta obra.

    (6) Do texto latino transmitido por Rufino:

    Haec quidem inter principia primi libri disseruit, ut ostenderet quae sint illa quae manifeste in Ecclesiastica praedicatione tradita sunt, et quae sint quae non aperte definiuntur. De quibus singulis secundum eam divisionem, quam supra ostendit, sparsim disputat in reliquo corpore librorum, ea quidem quae ex definito praedicari ab Ecclesia supra docuit, omnibus adhibitis probamentis, ex Scripturis sanctis manifestius et constantius asserens; de his vero de quibus ostendit non manifeste, neque ex definito in Ecclesia praedicari, opinionibus magis, et his sensibus qui disputanti ei et tractanti de talibus occurrere potuerunt, quam certis aliquibus ac definitis assertionibus utitur, id est, discutiens et pertractans potius quam affirmans.

    Vale lembrar que Jernimo reclamou, em sua carta 84 e sua Apologia contra Rufino, que a traduo latina deste inserira textos de Eusbio (autor do ltimo livro da Apologia pro Origene) no primeiro livro (atribudo a Pnfilo, mestre de Eusbio e tambm f de Orgenes). Como sobrou apenas o primeiro livro da obra, no mais possvel verificar isso. Os autores de Nicene and Post-Nicene Fathers foram cticos quanto acusao declarando, em seu prlogo s obras de Rufino, que seu sentimento de amargor o levou a se perder nesse caminho. De qualquer forma, Apologia foi feita a quatro mos e era grande sinergia entre os dois autores da obra, ao ponto de o discpulo ter adotado o nome Eusebius Pamphili (Eusbio, [amigo] de Pnfilo). Algo de Pnfilo deve ainda estar presente.[topo]

    http://www.falhasespiritismo.org/2012/01/19/misquoting-origens-elizabeth-clare-prophet/

  • 3 - Antecedentes Histricos II: Origenismo

    Tal como a morte de Cristo (o homem) marca o incio do cristianismo, com sua mensagem se transformando pela boca dos apstolos e demais continuadores, a morte de Orgenes foi o ponto de partida de intensas especulaes teolgicas daqueles que se julgavam seus herdeiros. Num exemplo mais prximo a ns, pode-se dizer que Karl Marx sofreu processo semelhante. Temos suas obras principais O Capital e O Manifesto Comunista em texto original e em diversas tradues. Ao contrrio de Orgenes, h pouca dvida sobre o que Marx escreveu de prprio punho (com uma ajudinha de Engels). Mas nada disso impediu que, ao longo do sculo XX, surgissem diversos sabores de comunismo sendo implantados pelo planeta. Alguns se julgavam a verdadeira expresso real das ideias do mestre, outros assumiam seu carter reformista para a nova realidade em que viviam. O resultado que no h exagero em dizer que, se estivesse vivo em meados do sculo passado, Marx no seria marxista. Da mesma forma, processo semelhante ocorreu com as idias de Orgenes. O cristianismo do sculo IV j havia se diferenciado bastante daquele de cem anos antes: de seita oriental perseguida, tornara-se a religio imperial; a maior fluidez teolgica da patrstica antenicena j havia acabado, estando o credo ortodoxo em franca consolidao; o gnosticismo j no era um adversrio, mas outros como o arianismo e maniquesmo impunham desafios teolgicos; e o monasticismo cristo florescera, em especial nos lugares mais ermos do imprio, liberando novas especulaes para outro tipo de vida religiosa. Como fora concebido para ajudar num panorama j bem distinto, o origenismo comeou a mudar nas mos de seus novos seguidores e deixar de ser til como teologia para os que o observavam de fora.

    Pode-se ter uma ideia relativamente boa dos pontos nevrlgicos que os origenismos produziram ao longo dos sculos IV e V atravs dos ataques de seus adversrios. Epifnio, em seu Paranion, cap.LXIII (ca. 374) baseado principalmente nas informaes de no Tratado sobre a Ressurreio de Metdio de Olimpo (ca. 311) acusava os origenistas de negar a ressurreio dos mortos, de ter Cristo e o Esprito Santo como seres criados e subordinados ao Pai (um flerte com o poderoso arianismo), de alegorizar o Paraso, os Cus e tudo o mais, e de levianamente acreditar que o reino de Cristo chegaria a um trmino.

    Tefilo de Alexandria combateu uma forma de origenismo difundida entre os monges do deserto, cuja principal sntese encontra-se no Tratado Kephalaia Gnostika de Evgrio Pntico. Segundo este, Jesus Cristo no era o Logos encarnado, mas um intelecto (nous) que no sofreu o efeito da queda dos demais e teria assumido um corpo material a fim de mostrar o caminho de volta para a unio com Deus. Para atingir a salvao, os humanos deveriam exercitar a orao e atitude contemplativa para se livrar de tudo que remetesse materialidade, o que exigiria grande disciplina asctica e abstrao intelectual. Assim, o relacionamento original com Deus ainda presente em Cristo seria restaurado, o levou seus adeptos a crer que se tornariam iguais a Cristo (isochristoi). Neste sistema, os sacramentos s poderiam ser entendidos simbolicamente, pois a verdadeira imagem de Deus no homem teria sido perdida com a queda, no sendo possvel mais represent-la. Tefilo ainda acrescentou em suas Cartas Festais (conhecidas apenas nas tradues latinas de

  • Jernimo) as acusaes de crerem na restaurao do diabo em sua glria original e seu reino junto com Cristo e os anjos, numa segunda corrupo do corpo aps a ressurreio e sua aniquilao final, e na necessidade de Cristo ser crucificado uma segunda vez em prol dos demnios. A oposio de Tefilo partilha algo de sua campanha contra os vestgios de paganismo no Egito. Segundo [Perrone, p. 944]:

    Se lermos estas cartas [Festais] em conjunto com a Homlia da ltima Ceia, um quadro claro da viso doutrinria de Tefilo surge. Em sua ptica, o ensinamento de Orgenes jazia numa doutrina pag da consubstancialidade da alma com Deus. Os que esposavam tais ensinamento defendiam que a salvao era atingida pelo treinamento da alma de modo que, quando ela se desprendesse de seu invlucro corpreo, fosse capaz de retornar sua unio original com o divino. Contra isso, Tefilo ensina que nossos primeiros ancestrais foram criados como seres corpreos, com sua posse da imagem [de Deus] significando que estavam livres de corrupo. A punio da Queda no foi a aquisio de corpos, mas a perda da imortalidade. A salvao foi trazida pelo Verbo de Deus, que se esvaziou para se tornar o que somos a fim de por meio do batismo e da Eucaristia possa fazer de ns o que ele . A imagem divina nos restaurada atravs de nossa transformao em participantes da divina natureza por meio da matria santificada pelo Esprito, no por causa de termos recuperado uma divindade inata obscurecida por nossa existncia material. Da a importncia da ressurreio. A imagem divina, apesar de incorprea, no pertencia apenas a nossas almas.

    Jernimo, em seu tratado Contra Joo de Jerusalm e sua Carta a vito, mantm boa parte das acusaes de Epifnio e Tefilo (a quem traduzira), mesmo assim no aparenta estar familiarizado (ou se importar) com as peculiaridades do tipo de origenismo que floresceu no Egito. O curioso que Jernimo fora profundo estudioso da obra de Orgenes no comeo de sua carreira. De certa forma, sempre continuou em dvida com o mtodo alegrico de interpretao dele. O estopim de seu antiorigenismo foi a aluso a ele feita por Rufino, no prefcio de sua traduo latina de De Principiis, elogiando certas tradues que ele fizera de outras obras. Dado o cerco ao origenismo que se avizinhava, Jernimo temeu por sua reputao como ortodoxo e se lanou a uma cida querela com Rufino. Apesar de movido por razes pessoais, aspectos teolgicos realmente o incomodavam como, por exemplo, o fim da hierarquia moral apregoado pelo origenismo em apokatstasis e possvel subverso das posies originais (com anjos virando demnios, virgens em prostitutas) aps a prxima queda. Para ele a gradao de status dos virtuosos na Terra deveria ser mantida no ps-vida. A renncia asctica, e no a especulao teolgica, jaz no centro de sua questo religiosa. [Clark, p. 151]

    Nem sempre a acusao de origenismo partia de um ortodoxo contra hereges. s vezes isso se dava em sentido oposto. De acordo com um relato de Agostinho de Hipona, o herege Pelgio foi chamado para um interrogatrio pelo Snodo de Dispolis (417 d.C). Na defesa de suas prprias posies, ele foi capaz de acusar a prpria ortodoxia de origenismo:

    Outra declarao que Pelgio colocou em seu livro foi lida, algo assim: No dia do julgamento, No se mostrar nenhuma indulgncia com o mpio e os pecadores, mas eles sero consumidos pelas chamas eternas. Isso levou os irmos a considerar a declarao aberta objeo, pois ela parecia redigida de forma a

  • implicar que todos os pecadores, quaisquer que fossem, estavam destinado a serem punidos com o castigo eterno, sem excetuar mesmo aqueles que adotaram Cristo como seu fundamento, apesar de logo aps terem edificado sobre madeira, feno, palha (I Co 3:12), acerca dos quais o apstolo escreve: Se a obra de algum se queimar, sofrer ele dano; mas ele mesmo ser salvo, embora como que atravs do fogo (I Co 3:15). Quando, porm, Pelgio respondeu que fizera sua assertiva em conformidade com o Evangelho, no qual est escrito quanto aos pecadores, Estes iro para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna (Mt 25:46). Foi impossvel para os juzes cristos se indispor com a sentena que est escrita no Evangelho, e foi dita pelo Senhor; ainda mais no sabendo o que havia nas palavras tomadas do livro de Pelgio que pudesse perturbar os irmos, que estavam habituados a ouvir as discusses dele e as de seus seguidores. J que, tambm, faltavam os que apresentaram a acusao ao santo bispo Eulgio, no havia ningum para pression-lo para distinguir, por alguma exceo, entre os pecadores que devam ser salvos pelo fogo e os a serem punidos pela perdio eterna. De fato, se os juzes tivessem chegado a entender por estes meios a razo pela qual a objeo fora feita a sua declarao, teria ele, ento, recusando-se a permitir a distino, sido justamente exposto culpabilidade.

    Mas o que Pelgio acrescentou, Quem cr de forma diferente um origenista, foi aprovado pelos juzes, porque efetivamente a Igreja muitssimo justamente abomina a opinio de Orgenes, a qual mesmo eles a quem o Senhor diz serem punidos com o castigo sem fim, e o prprio diabo e seus anjos, aps certo tempo, embora demorado, sero purgados e libertados de suas penas, e ento se juntaro aos santos que reinam com Deus em comunho de bem-aventurana. Portanto, o snodo pronunciou que esta sentena adicional no se ope Igreja no em concordncia com Pelgio, mas sim em concordncia com o Evangelho, que tais homens mpios e pecaminosos sejam consumidos pelas chamas eternas conforme o Evangelho determina serem merecedores de tal castigo; e que ele partilhe da abominvel opinio de Orgenes, que afirma que o castigo deles possivelmente pode em algum momento chegar a um fim, quando o Senhor disse ser ele eterno. Entretanto, quanto aos pecadores, dos quais o apstolo declara que sero salvos, apesar como que atravs do fogo, aps sua obra ter sido queimada, visto que nenhuma opinio de objeo foi manifestadamente imputada contra Pelgio, o snodo no determinou nada. Portanto o que diz que o mpio e o pecador, a quem a verdade consigna o castigo eterno, pode em algum momento ser da libertado, no inadequadamente rotulado por Pelgio como um origenista. Mas, por outro lado, quem supe que nenhum pecador sequer merea a misericrdia no julgamento de Deus pode ser designado por qualquer nome que Pelgio esteja disposto a lhe dar, apenas deve-se, ao mesmo tempo, estar bem ciente que este erro no tido como verdade pela Igreja. Pois no ter misericrdia quem no mostrou misericrdia. (Tg 2:13)

    Agostinho de Hipona, Dos Processos de Pelgio, cap. IX e X.

    Dados importantes podem ser auferidos da passagem acima. Primeiramente, fica claro que Agostinho acreditava em danao eterna. No estou comentando se tal crena certa ou errada e se ele tinha um entendimento correto da palavra eterno. O que importa que foi desmentida a tese de autores como Chaves e Severino Celestino da Silva (6) de que Agostinho seria reencarnacionista. Em segundo lugar, e at mais chamativo, a declarao mostra que no meio social do final do sculo IV e comeo do V a palavra origenista se transformara numa espcie de rtulo com o qual podia se acusar qualquer adversrio teolgico de heresia. Para tanto bastava

  • uma definio elstica de quais seriam os pontos nevrlgicos do origenismo. Por exemplo, no era uma opinio universalista quanto salvao o que bastava para definir origenismo. Gregrio de Nissa, por exemplo, era universalista e tambm traducianista defendia que alma e corpo eram formados juntos uma ideia oposta preexistncia. De certa forma, como bem discutiu a historiadora Elizabeth A. Clark, de Epifnio s questes pelagianistas, cada um dos envolvidos tinha sua prpria concepo de origenismo na cabea e sempre a usava contra alguma heresia que lhe era familiar. Outra coisa comum a todos foi a supresso dos aspectos contraditrios da obra de Orgenes, assim tanto detratores como defensores tentavam lidar apenas com coletneas coerentes de suas ideias. Como bem alertou Rufino um dos defensores de Orgenes como telogo ortodoxo a quantidade de contradies existentes nos escritos que dispunha sugere que houve forte edio das obras do telogo alexandrino: (7)

    Meu objetivo na traduo do grego para o latim da Apologia em prol de Orgenes do santo mrtir Pnfilo, que dei no tomo anterior conforme minha habilidade e as exigncias do assunto, este: desejo que saiba por meio de completa informao que a regra de f que foi exposta acima em seus escritos a que devemos abraar e manter; pois claramente mostrado que a opinio catlica est contida em todos eles. Entretanto, deve-se admitir que sejam encontradas em seus livros certas coisas que no so apenas diferentes disso, mas, em certos casos, mesmo repugnantes a ela; coisas que nossos cnones de verdade no sancionam e que no devemos nem receber nem aceitar. Quanto razo de tal opinio ter me alcanado, isto o que tem sido largamente discutido e que desejo que seja completamente conhecido por ti e pelos que desejem saber a verdade, pois tambm possvel que alguns que tenham sido movidos pela nsia em criticar possam aquiescer na verdade e na razo do problema quando ela tiver sido posta perante eles; pois alguns parecem determinados a crer em qualquer coisa no mundo como verdadeira em vez da que lhes tira a oportunidade de criticar. Deve-se, penso eu, parecer ser totalmente impossvel que um homem to erudito e to sbio, um homem que mesmo os acusadores bem admitem no ter nada de tolo ou insano, deva ter escrito o que contrrio e repugnante a ele mesmo e suas prprias opinies. Mas mesmo supondo que isto pudesse de algum modo ter ocorrido; como talvez alguns j disseram, que no declnio da vida ele possa ter esquecido o que escrevera em sua juventude e ter feito assertivas discrepantes com suas opinies anteriores; como temos de lidar com o fato de que encontramos na mesmssima passagem, e, como posso dizer, quase sempre em sentenas sucessivas, sentenas inseridas indicativas de opinies contrrias? Podemos acreditar que no mesmo trabalho e no mesmo tomo, e mesmo algumas vezes, como tenho falado, no pargrafo seguinte, poderia um homem ter esquecido as prprias idias? Por exemplo, to logo ele acabara de falar que nenhuma passagem em toda a Escritura poderia ser encontrada na qual se dizia que o Esprito Santo fora feito ou criado, poderia ter ele imediatamente acrescentado que o Esprito Santo fora feito junto com as demais criaturas? Ou ainda, que o mesmo homem afirme claramente que o Pai e o Filho so de uma mesma substncia, ou como chamado em grego: homoousuion, poderia na sentena seguinte dizer que Ele era de uma outra substncia e que era um ser criado, quando o descrevera apenas um tantinho antes como nascido da mesma natureza de Deus, o Pai? Ou mais uma vez na questo da ressurreio da carne, poderia ele, tendo to claramente declarado ser a natureza da carne a que ascenderia com a Palavra de Deus ao cu e l apareceria s Potestades Celestiais, apresentando uma nova imagem de si mesmo para a elas adorar, poderia ele, pergunto-te, possivelmente dar uma guinada e dizer que esta carne no era para ser salva? Tais coisas no poderiam acontecer mesmo no caso de um homem que tivesse perdido seu juzo ou no estivesse bem da cabea.

  • Como, portanto, isso veio a ocorrer, assinalarei com toda brevidade possvel. Os hereges so capazes de qualquer violncia, no tm nenhum remorso e nenhum escrpulo: isso somos forados a reconhecer pelas ousadias das quais so frequentemente condenados. E j que o pai deles, o diabo, desde o princpio fez de seu objetivo falsificar as palavras de Deus e torc-las de seu verdadeiro significado, e sutilmente interpolar entre elas suas prprias idias venenosas, ento ele deixou para esses sucessores a mesma arte como sua herana. (...)

    Rufino de Aquileia, Da Adulterao da Obra de Orgenes

    De fato, algumas passagens atribudas a Orgenes por seus detratores geram certa dificuldade quando confrontadas com outras partes do pensamento dele. Um fragmento da verso de Jernimo de De Principiis preservado em sua carta a vito (nr. 124) faz uma declarao da metempsicose como uma possibilidade de expiao:

    Ele (Orgenes) escreve que (...) suas aes (das almas) e decises nesta ou naquela direo que determinaram seus vrios futuros; isto , se anjos viro a ser homens ou demnios e se demnios se tornaram anjos ou homens. Ento, aduzindo vrios argumentos para sustentar sua tese e sustentando que, enquanto no incapaz de virtude, o diabo ainda no escolheu ser virtuoso; ele finalmente raciocina de maneira bem difusa que um anjo, uma alma humana, e um demnio - todos de acordo como ele com a mesma natureza, mas diferentes arbtrios - pode, em razo de grande negligncia ou insensatez, ser transformada em feras. Alm isso, para evitar a agonia do castigo e a chama abrasadora, os mais sensveis podem escolher se tornar organismos inferiores, viver na gua, a forma deste ou daquele animal; de modo que temos razo para temer a metamorfose no apenas em seres quadrpedes, mas at em peixes. Ento, para que ele no seja acusado de sustentar junto com Pitgoras a transmigrao das almas, ele termina o raciocnio mpio com o qual tem ferido seu leitor ao dizer: no se deve pensar que fao destas coisas dogmas, elas so apenas conjecturas expostas para mostrar que no se faz vista grossa a elas totalmente.

    No se encontra nada parecido na verso latina de Rufino e tal passagem uma sria candidata quelas que ele atribui a hereges. O cerne principal do sistema teolgico constante em De Principiis o livre-arbtrio. O carter racional das criaturas de Deus, to necessrio ao pleno exerccio dele, ficaria tolhido num corpo animal. Ademais, grande a evidncia em outras obras que chegaram a ns em textos gregos como Contra Celso (livro I, cap.20) e Comentrio sobre Mateus (11.17) onde ele rechaa a passagem para corpos animais.

    Por outro lado, algumas opinies discrepantes dentro de uma obra de Orgenes podem no ser fraudes, mas, sim, sinal de uma mente a explorar hipteses distintas. Numa j citada passagem de Comentrio sobre Romanos, h uma opinio que, na verso de Rufino (a nica restante), atribuda a terceiros, embora pudesse bem ser uma das opinies que Orgenes trazia tona, ainda que para depois refutar:

  • Ao propor essas coisas e similares, eles conjecturam que esses mesmos arranjos tero de ser repetidos por Cristo mesmo nas eras futuras (cf. De Principiis II.3.4). Mas responderemos brevemente a estas coisas o melhor que pudermos. Certamente no negamos que o livre arbtrio sempre permanecer nas criaturas racionais, mas afirmamos que o poder da cruz de Cristo e de sua morte que assegurou o fim das eras (cf. Hb 9:26) to grande que suficiente para a cura e restaurao no apenas do presente e do futuro, mas tambm das eras passadas. Ela basta no somente para nossa ordem humana, mas tambm para as potestades e ordens celestes (cf. De Principiis II.3.5). Pois segundo o pronunciamento do prprio Apstolo Paulo: Cristo fez a paz pelo sangue de sua cruz no apenas com as coisas sobre a terra mas tambm com as coisas no cus (cf. Cl 1:20).

    Comentrio sobre Romanos, V.10.14

    Tanto aqui como em passagens anlogas em De Principiis, a hiptese de mundos futuros similares ao atual (um emprstimo do estoicismo), inclusive na sequncia dos eventos, colocada na boca de terceiros. Para defender que isto poderia ser do prprio Orgenes, [Scheck, p. 374] usa a mesma carta Jernimo a vito, onde o rival de Rufino afirma que, segundo Orgenes, Cristo deveria ser de novo crucificado no cu para limpar a iniquidade de l. Assim, se Cristo repetisse um mesmo ato nesta era - embora em outro plano - no seria de todo impossvel que repetisse em outras eras. Como a tendenciosidade de Jernimo parecida, ainda que no sentido oposto, ele pode muito bem ter omitido refutaes internas existentes no livro. Muitos dos ataques a Orgenes seriam feitos, ento, a partir desses textos escolhidos a dedo e pinados, eliminando o jogo de oposies do autor. Sistemas origenistas tardios fariam coisa anloga, porm com outras intenes.

    Apesar de algumas incertezas, uma coisa pode ser claramente dita quanto a esse perodo: foi essa a fase que gerou as mais intensas discusses teolgicas, envolvendo personagens que viviam em lugares to variados como Roma, Constantinopla, Alexandria, Jerusalm e frica Romana, estando envolvidos grandes membros da patrstica ps-nicnica, que catalisaram o processo iniciado em Niceia de consolidao do credo ortodoxo. A existncia deste perodo de fortes disputas conhecido como primeira crise origenista desmancha a ideia de que a Igreja at 553 acreditava na reencarnao (8). Primeiro porque nem todos os sistemas origenistas advogavam a reencarnao e, segundo, quando o faziam, no era nos moldes espiritualistas modernos; terceiro, Orgenes nunca foi consenso, sendo que sua rejeio levou dcadas de acaloradas discusses feitas por telogos, no por imperadores; quarto, a consolidao da ortodoxia j havia se delineado pelo menos 120 anos antes. A segunda crise origenista de 543-553 foi uma erupo datada e de efeito local, um fenmeno mais especificamente palestino. Perto de sua antecessora, ela foi fim de feira: adeptos de uma teoria conspiratria que esto mais interessados em inflar seu papel.

    Notas:

    (7) Deve-se admitir que o texto de De Principiis, o qual chegou at ns completo

  • somente pela verso latina de Rufino, est adulterado. E neste caso, o prprio confessou, durante a querela com Jernimo, ter modificado o texto, a fim de corrigir as dificuldades expostas em Da Adulterao.... Do texto grego original restam principalmente alguns extratos de Philocalia, uma compilao de Gregrio Nazianzeno e Baslio de Cesareia, e fragmentos constantes na sinopse feita por Jernimo em sua carta a vito (nmero 124 na srie Nicene and Post-Nicene Fathers). As grandes amostras de Philocalia no so as partes mais heterodoxas de De Principiis e no revelam uma mutilao por Rufino dos trechos mais polmicos, a no ser uma tendncia a traduzir de forma parafrstica o pensamento de Orgenes. Jernimo que fornece mais material discrepante, mas mesmo este deve ser visto com ressalvas: uma das passagens de De Principiis (Livro I, cap. I, 8) usada para acusao de subordinacionismo (uma hierarquia entre as figuras da Trindade) foi apontada por Rufino como uma interpolao em sua Apologia contra Jernimo [cf. Rombs], pois destoava do resto do argumento. provvel que o texto que Jernimo tinha em mos fosse to tendencioso quanto o de Rufino. Modernamente so duas as principais edies de De Principiis em lngua inglesa: a da srie Ante-Nicene Fathers, j de domnio pblico (e a que me baseio at agora), facilmente encontrada na internet, e a de Butterworth. Esta ltima, baseada na verso alem de Koetschau, problemtica porque ele fez uma reconstruo do texto de Orgenes se valendo de procedimentos duvidosos. Em vez de buscar uma fidelidade ao texto original, buscou-se encaixar tudo que soasse origenismo em meio ao texto de Rufino. Alguns dos antemas de Justiniano, por exemplo, foram postos no texto apesar de no se saber se eram citaes literais ou resumos de ideias; um fragmento de Gregrio de Nissa (expondo e rejeitando opinies de terceiros) foi inserido sem garantias de que aquilo era realmente de Orgenes. Alguns autores espiritualistas (Prophet, por exemplo), usam o texto de Butterworth em seus trabalhos, o que deixa suas citaes um tanto temerrias. Desconheo uma verso integral de De Principiis, editada em portugus, sendo assim, enquanto no sai uma nova edio crtica em ingls [Rombs], melhor pegar a da srie Ante-Nicene Fathers , que j possui algum aparato crtico e coloca Jernimo e Philocalia ao fim de cada livro, deixando para o leitor a anlise das diferenas. Se algum souber francs (no o meu caso...) a edio de Henri Crouzel tem tido bons elogios. Vale lembrar que, apesar de no ser uma traduo literal, a verso de Rufino ainda possui tudo aquilo que tornou Orgenes controverso para os telogos do sculo IV: pr-existncia, quedas, mundo sucessivos, apokhatstasis. Ele no quis maquilar Orgenes ao ponto de deix-lo irreconhecvel. bem razovel dizer uue Rufino preservou seu mestre usando suas prprias palavras.Sugestes de leitura para esta nota:- Rombs, Ronnies, J., A Note on the Status of Origen's De Principiis in English, Vigiliae Christiane, Brill, Vol. 61, n 1, 2007 , p. 21-29;.- Uebersax, John S., Early Christianity and Reincarnation: Modern Misrepresentation of Quotes by Origen , 2006

    (8) J.R. Chaves, A Reencarnao na Bblia e na Cincia, ebm, 7 ed., cap. VIII e Severino Celestino da Silva, Analisando as Tradues Bblicas, .Idia, 4 ed., cap. XI.

    [topo]

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  • 4 - O Livro de Hierotheos A Ponte entre as Duas Crises

    O origenismo rapidamente declinou no ocidente aps a morte de seus principais defensores, como Rufino. No oriente, ele persistiu como seita marginal dos mosteiros do deserto. Do Egito, em particular, chegou at ns o relato de Shenute (9) acerca de grupos origenistas remanescentes no deserto em meados do sculo V. Na descrio feita por ele em sua obra Contra os Origenistas [Clark, p. 152], apresentado um novo tipo de origenismo que abarcava elementos de Evgrio e gnsticos. Dentre entres ltimos estavam as noes de pluralidade de mundo (simultneos, no sucessivos) e a celebrao por todos esses mundos e inclusive por Deus da Pscoa; a no-concepo de Cristo por Maria, dando-lhe uma equivalncia aos anjos. So quatro ideias presentes em outras seitas gnsticas, ainda que no simultaneamente. Apesar de Shenute centrar mais seus ataques parte origenista em si, seu relato demonstra uma evoluo crescente do origenismo rumo a verses mais msticas, inclusive aceitando alguns pontos de doutrinas das quais no era originalmente afim.

    A sobrevivncia do origenismo nos mosteiros dos desertos teria, segundo [Meyendorff, cap. III, p. 50] sido fruto de um fundo filosfico que ele dava vida monstica:

    As tradies origenistas eram mais fortes no Grande Lavra [Laura] de St. Saba na Palestina do que em qualquer outro lugar. No Egito elas tinham sido condenadas formalmente desde 400. De sua origem, o ascetismo monstico sofrera a tentao do espiritualismo platnico. Essencialmente um movimento popular, o monasticismo originalmente expressava a natureza escatolgica da cristandade. Milhares de cristos tinham espontaneamente se consagrado perptua orao no isolamento e pobreza a fim de se prepararem para o reino vindouro (para o qual estavam adquirindo uma prvia por meio da orao), que era mais importante para eles que a realidade mundana. Para esse movimento espontneo, o origenismo provinha uma filosofia que indubitavelmente fazia o monasticismo mais compreensvel ao mundo helnico, mas que tambm modificava a prpria natureza do monasticismo. Numa perspectiva bblica, os diferentes aspectos do ascetismo monstico celibato, jejuns, mortificaes procuravam purificar a carne corrompida pelo pecado e prepar-la para a ressurreio. O monasticismo era entendido como um ministrio proftico que antecipava as realidades do reino vindouro. Na perspectiva origenista, o corpo material em que a alma foi aprisionada como uma consequncia do pecado no teria lugar no reino. O monge buscava, portanto, no apenas purific-lo, mas se desprender completamente dele(*). A prpria orao perptua se tornava uma orao intelectual, tendo como objetivo desmaterializar o intelecto e traz-lo de volta a seu estado primitivo. A perspectiva linear da espiritualidade bblica a almejar o reino vindouro foi, dessa forma, por uma perspectiva vertical, a busca pela desmaterializao.

    (*) Nota do portal: Repare nas reclamaes feitas por Ciraco em A Vida de Ciraco, cap. 13, onde descreve como o modo de exercer a vida asctica dos monges ortodoxos era mais prtico e menos intelectualizado que o dos monges origenistas.

    O misticismo teve outros desdobramentos no oriente prximo durante o fim do sculo V e incio do VI, em especial num corpo de trabalhos pantestas atribudo a Dionsio, o Areopagita: um suposto cristo convertido por Paulo (At. 17, 34). Obviamente, tal

  • literatura no pode ser rastreada at os tempos apostlicos, sendo, portanto, uma atribuio a um conjunto de obras apcrifas a uma figura de suposta de um nome com autoridade. Em O Livro dos Nomes Divinos, este Pseudo-Dionsio teceu altos elogios a um suposto mestre:

    Talvez isto seja digno de justificativa, visto que enquanto nosso ilustre lder, Hierotheos, est compilando seus Elementos Teolgicos de forma acima da capacidade natural, ns, como se no houvesse o bastante, temos composto este presente e outros tratados teolgicos. E ainda, se aquele homem tivesse se dignado a tratar sistematicamente todos os tratados teolgicos e percorrido o total de toda a teologia, por meio de detalhadas exposies, no deveramos ter ido a tal nvel de insensatez ou estupidez, como tentar abordar sozinhos questes teolgicas, de modo mais lcido ou divino que ele, ou para comprazer-nos em dizer surperfulamente as mesmas coisas duas vezes, e, alm disso, sermos injustos tanto a um professor quanto a um amigo, e que ns, que temos sido instrudos por seus discursos, depois do Divino Paulo, furtaramos para nossa prpria glorificao sua mais ilustre contemplao e elucidao.

    Cap. III, 2

    Existe uma obra, datada da mesma poca, atribuda a esse suposto professor chamada Livro de Hierotheos. Ela compartilha do mesmo carter mstico que Pseudo-Dionsio, mas uma simples comparao das citaes em Nomes Divinos com o livro atribudo a ele mostra duas tradies de carter bem distinto. Alm de apresentarem sistemas diferentes, a primeira ainda possui um mtodo lgico e didtico, ao passo que a ltima uma narrativa extremamente alegrica, lembrando em muito o estilo quase surrealista do Apocalipse de Joo. H outra diferena importante: existe um srio candidato a ser o autor do Livro de Hierotheos. Cronistas de posteriores como Bar Hebraeus (Histria Eclesistica, sc. XIII) e Joo de Dara (Sobre a Ressurreio dos corpos humanos, sc. IX) comentam a existncia de um Pseudo-Hierotheos redigido por um monge chamado Estevo Bar Sudaili de Edessa (Sria). O manuscrito que chegou at ns no identifica o autor, porm duas cartas siracas do sculo VI nos fazem uma apresentao do pensamento de Bar Sudaili que deixam pouca margem de dvida quanto associao dele com Pseudo-Hierotheos.

    A primeira delas foi escrita por Mar YaQb ao prprio Bar Sudaili nos d apenas uma pincelada dele. Em linhas gerais, YaQb inicia tecendo elogios inteligncia e devoo de Bar Sudaili, porm, ainda que no se mostre hostil, ele ainda um representante do pensamento ortodoxo e, mais adiante, censura-o por seu universalismo (a nica caracterstica de seu pensamento revelada na carta):

    (...) E se parece a ti que o pecador deva ser julgado de acordo com o nmero de anos que pecou, seguir-se-ia, ento, que o justo deva gozar de alegria tambm de acordo com o nmero de anos vividos na retido. De forma que o que pecou durante dez anos deveria permanecer no fogo por apenas dez e o que praticou a retido por dez anos deveria, tambm, permanecer no reino por apenas dez anos e deveria ento deix-lo.

    Se a primeira (proposio) for justa e a segunda tambm estiver certa (em consequncia), ento o ladro que estava direita poderia ter estado apenas uma nica hora no Jardim do den, pois ele ardeu com f no mais que uma hora,

    http://www.ccel.org/ccel/dionysius/works.ii.ii.ii.iii.html

  • quando ele rogou a Cristo para lembrar dele em seu reino.

    No assim, amigo, no assim; em desacordo com tua opinio est guiado o correto julgamento do justo Deus, (que ) que tais devam ir para o fogo eterno e os justos para a vida eterna. O pecador que no se arrepende, se vivesse para sempre, teria pecado para sempre, e conforme a tendncia de sua mente a continuar no pecado e justamente cai no inferno eterno. O rico que encheu seus celeiros com muitos frutos disse assim para sua alma: Coma, beba e regala-te; tens muitos bens estocados para muitos anos (Lc 12:19). Assim sua mente estava propensa a se regalar por muitos anos; sua vida, portanto, podada, mas no seu pecado, pois sua mente estava propensa a se entregar diverso para sempre. , portanto, a justia que condena este homem ao fogo eterno, pois, at onde seu arbtrio estava envolvido, ele teria vivido para sempre na gula. Da mesma maneira o homem reto herda justamente a vida eterna, porque, at onde seu arbtrio estava envolvido, tencionava servir a Deus para sempre, embora sua vida estivesse, sem o controle dele, podada pela morte vinda do caminho da retido. (...)

    Algum pode querer fazer graa da argumentao de Mar YaQb cuja lgica muito similar a uso da prescincia divina por autores protopelagianos [Clark, cap. V] mas quem assim o fizer revelar apenas a inteno de desviar a anlise do foco principal: em que consistia o origenismo de Bar Sudaili e sua relao com os ortodoxos? O panorama fica um pouco mais claro com a carta de Filoxeno de Mabg para os presbteros de Edessa Abrao e Orestes. Por meio dela ficamos sabendo que Bar Sudaili era originrio de Edessa, radicando-se, depois, em Jerusalm e talvez tenha estado no nas terras do Nilo em alguma fase da vida (hum...), j que fora discpulo de Joo, o egpcio. relatado, tambm, um certo proselitismo dele, procurando sempre difundir seu prprio pensamento:

    Soube que Estevo, o escriba, que partiu do meio de ns algum tempo atrs e agora reside nos arredores de Jerusalm, enviou-vos, certa ocasio, seguidores seus com cartas e livros compostos por ele; tomando ao mesmo tempo o cuidado de que a chegada dos que enviara, bem como o que estava astutamente desejando executar, fosse escondido de ns. Pois ele pensou que, soubesse eu que enviara a vs homens e, tambm, escritos, suas esperanas pudessem ser frustradas. Imaginou insanamente de onde eu no sei, mas certamente atravs de Sat, pois ele o Pai e causa de cada heresia lanar em um livro uma mpia e frvola doutrina, que digna de ser reputada no apenas como heresia, mas pior que o paganismo e o judasmo, porque ela abertamente incorpora a criao a Deus e ensina que necessrio para todas as coisas se tornar como Ele. Tambm falsifica as Santas Escrituras e mesmo destri a f na Cristandade, ensinando que cada homem pode pecar como queira, e dissuadindo pagos, judeus e hereges da instruo crist e de serem convert