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Contra-manifesto Para os amigos interessados em arte que comungam comigo espaços nas redes sociais. É com algum espanto que vejo cada vez mais surgirem textos e posts relacionados às manifestações contemporâneas do hiper-realismo, e pessoas de bem embarcando nos argumentos associados a este “movimento” sem perceberem o que há de reacionário neles, sem atentarem para as entrelinhas e a posições um tanto quanto eurocêntricas e elitistas (e quase fundamentalistas) daqueles que as postulam. Preocupa-me o fato de que mais de uma década depois do ano 2000, ainda existam entre nós pessoas desejosas de “seguir as últimas tendências da arte” feita na Europa, nos Estados Unidos, ou onde quer que seja, e que tem o hiper-realismo (ou somente realismo) como um modelo ideal de arte. Primeiramente porque esta é uma atitude que considero submissa, subserviente (e mesmo provinciana) e que reforça as relações de poder centro- periferia que, incrivelmente, ainda nos são impostas pelos grandes centros e perpetuadas por aqueles que tem interesses financeiros e ideológicos na manutenção de tais relações de poder (ou talvez por alguma ingenuidade, ou por algum outro motivo que me escape). Sei que também parece ingênuo debelar-se contra estas relações de poder estabelecidas e impostas sobre nós pelos grandes centros econômicos do mundo ocidental (e trata-se disso, sim), mas “mal-dizendo” Pierre Bourdieu, acredito que as relações de poder simbólico só atuam de fato quando aqueles que o sofrem o aceitam. Aceitar tais relações para mim significa considerar nossa cultura como inferior à destes grandes centros, sendo que elas são simplesmente diversas, pois diversas são as circunstancias e os contextos. Incomoda-me também porque isso acaba por refletir no ensino da arte na universidade, e tenho visto a posição hegemônica realística gerar muitas opiniões das quais desconfio. O problema aqui para mim é fazer com que os alunos desavisados acreditem nesta “dogmatização” realista, constrangendo-os de exercerem outros modos possíveis e muito ricos de fazer artístico. Penso, por exemplo, que desenhar bem não é necessariamente imitar bem o real (e vice-versa), embora um desenho imitativo possa ser um bom desenho. E que o desenho não é necessariamente o único caminho para uma iniciação a um pensamento visual. Mas isto seriam assuntos (controversos) para outra manifestação. Considero que existem tantos trabalhos bons como ruins sejam eles (hiper)realistas, abstratos, concretos, conceituais, desespetacularizados, ou outros tantos, e que o risco de eleger alguma dessas formas de arte como “a melhor ou mais importante” é que esta opção (seja qual for) formate nosso olhar e nosso critérios de avaliação, a ponto de nos impedir de lançar um olhar adequado ao que cada uma destas muitas formas requer. Bem, tenho até visto pinturas impressionantes pelo sua qualidade técnica e capacidade de engano do olho, embora as imagens apresentadas sejam muitas vezes extremamente kitsch (brega mesmo) e não raro desimportantes em relação à técnica da ilusão do real que as informam para nós (seria esse o seu conteúdo?). Não tenho problemas com o hiper-realismo, o que me preocupa e me incomoda é o discurso de valor hegemônico da “boa arte de imitar o real” atrelado a ele, seguido de ataques à diversidade de manifestações que considero uma das conquistas legadas pela modernidade. Acredito e tento praticar a diversidade e a singularidade, e considero importante respeitar os muitos modos possíveis de ser da arte na contemporaneidade, mesmo que tenha cá minhas preferências.

Contra Manifesto

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Texto que rebate a postura hegemônica da tendencia hiper-relaista nas artes visuais.

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  • Contra-manifesto Para os amigos interessados em arte que comungam comigo espaos nas redes sociais.

    com algum espanto que vejo cada vez mais surgirem textos e posts relacionados s manifestaes contemporneas do hiper-realismo, e pessoas de bem embarcando nos argumentos associados a este movimento sem perceberem o que h de reacionrio neles, sem atentarem para as entrelinhas e a posies um tanto quanto eurocntricas e elitistas (e quase fundamentalistas) daqueles que as postulam.

    Preocupa-me o fato de que mais de uma dcada depois do ano 2000, ainda existam entre ns pessoas desejosas de seguir as ltimas tendncias da arte feita na Europa, nos Estados Unidos, ou onde quer que seja, e que tem o hiper-realismo (ou somente realismo) como um modelo ideal de arte. Primeiramente porque esta uma atitude que considero submissa, subserviente (e mesmo provinciana) e que refora as relaes de poder centro-periferia que, incrivelmente, ainda nos so impostas pelos grandes centros e perpetuadas por aqueles que tem interesses financeiros e ideolgicos na manuteno de tais relaes de poder (ou talvez por alguma ingenuidade, ou por algum outro motivo que me escape). Sei que tambm parece ingnuo debelar-se contra estas relaes de poder estabelecidas e impostas sobre ns pelos grandes centros econmicos do mundo ocidental (e trata-se disso, sim), mas mal-dizendo Pierre Bourdieu, acredito que as relaes de poder simblico s atuam de fato quando aqueles que o sofrem o aceitam. Aceitar tais relaes para mim significa considerar nossa cultura como inferior destes grandes centros, sendo que elas so simplesmente diversas, pois diversas so as circunstancias e os contextos.

    Incomoda-me tambm porque isso acaba por refletir no ensino da arte na universidade, e tenho visto a posio hegemnica realstica gerar muitas opinies das quais desconfio. O problema aqui para mim fazer com que os alunos desavisados acreditem nesta dogmatizao realista, constrangendo-os de exercerem outros modos possveis e muito ricos de fazer artstico. Penso, por exemplo, que desenhar bem no necessariamente imitar bem o real (e vice-versa), embora um desenho imitativo possa ser um bom desenho. E que o desenho no necessariamente o nico caminho para uma iniciao a um pensamento visual. Mas isto seriam assuntos (controversos) para outra manifestao.

    Considero que existem tantos trabalhos bons como ruins sejam eles (hiper)realistas, abstratos, concretos, conceituais, desespetacularizados, ou outros tantos, e que o risco de eleger alguma dessas formas de arte como a melhor ou mais importante que esta opo (seja qual for) formate nosso olhar e nosso critrios de avaliao, a ponto de nos impedir de lanar um olhar adequado ao que cada uma destas muitas formas requer.

    Bem, tenho at visto pinturas impressionantes pelo sua qualidade tcnica e capacidade de engano do olho, embora as imagens apresentadas sejam muitas vezes extremamente kitsch (brega mesmo) e no raro desimportantes em relao tcnica da iluso do real que as informam para ns (seria esse o seu contedo?).

    No tenho problemas com o hiper-realismo, o que me preocupa e me incomoda o discurso de valor hegemnico da boa arte de imitar o real atrelado a ele, seguido de ataques diversidade de manifestaes que considero uma das conquistas legadas pela modernidade. Acredito e tento praticar a diversidade e a singularidade, e considero importante respeitar os muitos modos possveis de ser da arte na contemporaneidade, mesmo que tenha c minhas preferncias.