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Poesia
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Corpo
Tênue
© Maurício Gutierrez, 2006© Misha Gordin, 1972-2005© Oficina Raquel, 2006
Foto de capa e ilustraçõesMisha Gordin
Produção, projeto e artesanatoOficina Raquel
Gutierrez, Maurício Chamarelli Corpo Tênue Ilustrações: Misha Gordin Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2006.
84p., 4 ilust.
ISBN 85-906181-1-0
I. Poesia Brasileira 2. Mauríco Chamarelli Gutierrez 3. Misha Gordin
Oficina Raquelwww.oficinaraquel.com.br
“que este livro dure até antes do fim do mundo”
Maurício Chamarelli Gutierrez
CorpoTênue
of
naiRaquelC
�
ÍndicePrefácio, Alberto Pucheu 11
Giant Steps 17
Corpo Tênue 27
Outros
Por exemplo o beco cinza 49
Eu e o Brasil, ali... 51
Estes versos dedico 53
à memória dos deuses
Cantiga para ninar papagaios 55
Nunca fui a Cuba 56
10
Disritmias 57
Díptico 59
Os últimos anos 63
de Sibila
Ilustrações
17 Crowd 23
27 Doubt 9
47 Sheptun 1
63 Siege
Uma girafa por entre outros animais,
Maurício Chamarelli é daqueles cuja
presença se ergue por sobre a grande
maioria das outras. Entre os pés ágeis batendo
firmes no chão enquanto recebem a força da terra
e a cabeça que acolhe o mais tênue das alturas,
o pensamento, neste livro, é do corpo, articulado
pela intensidade destes dois vetores. Seja no
ensaísmo, inédito, seja, como agora, na poesia, que
se edita, este jovem de 21 anos começa traçando
sua trajetória para que a vida fale publicamente
em passos de gigante. Como se isto, com folga,
não bastasse, ainda surpreendente é a intensidade
tão precocemente aliada a uma rara maturidade;
ou talvez seja justamente por tal aliança que,
aqui, vida, de fato, fale em passos de gigante. Pela
grandeza do que aqui se mostra, e do que, fora
daqui, também conheço, a poesia e o pensamento
brasileiros recebem um reforço de peso, daqueles
que já chegam para vestir a camisa 9 ou 10 da
seleção. Fosse a poesia futebol, não tenho dúvidas
de que, com esta estréia, Maurício Chamarelli
12
seria logo cobiçado pelos gramados europeus...
mas, felizmente, não é este o caso.
Se, no princípio, era o corpo, e se todo corpo é
tênue (não apenas o do poeta, mas o do leitor
e de qualquer um ou outro que nunca teve um
livro nas mãos), e se trata-se de uma voz – como
é, explicitamente, o caso –, qual a voz, corporal,
que concilia o corpo, que sempre principia, com
o verbo que lhe é decorrente? Aqui, a voz poética
é grito, sopro, rugido, tudo o que, imerso no
sentido, sem denegá-lo, criando-o, o antecipa em
puras exclamações, em sons de palavras rubras,
rudes ou, mesmo, cansadas. A poesia de Maurício
Chamarelli é da voz que antecipa o verbo, da voz
que, no sentido, pronuncia o berro de nascimento
de todo e qualquer sentido. De peito aberto e pés
descalços, este corpo tênue mora em farpas da voz.
E esta voz, tênue e corporal, esta voz encorpada da
vida em passos de gigante, é uma farpa entre o nome
e a morte, entre a morte e o nome. Ser esta farpa,
eis a excelência do desafio poético proposto por
13
Maurício Chamarelli. No princípio corporal e
vocal, ser, portanto, tênue, só uma tonalidade,
apenas uma veia, um mínimo vibrátil que alimente
a interminável procura de um nome melhor para
isto. Para isto que é vida (em passos de gigante),
para isto que é poesia (também em passos de
gigante).
A imagem, sim, a imagem incontornável, mas, em
Corpo Tênue, sobretudo a música, que, mesmo
na visão, é anterior à própria visão, a música do
pensamento, da poesia, a música da voz. A música
do grito, do sopro, do rugido. A música do corpo e,
no corpo, a música do tênue. A música, como o mais
tênue corpóreo, para quando a aflição do incorpóreo
me estiver afogando. A música da celebração
da poesia, afirmadora de todo um complexo de
forças que, não se tornando perceptível, deixaria o
mundo muito pior. A música... Diz o livro: É tudo
música. Desde a abertura deste livro, a música
se faz presente tanto como modo de realização
quanto como tema. Assim, bem de acordo com o
14
John Coltrane homenageado, o que se mostra ao
longo do livro, entremeados ou não por títulos,
são acontecimentos poemáticos espiralados feito
o rodamoinho de um furacão, cujas células,
menores (um verso qualquer que temos pela
frente) ou maiores (todo o conjunto do livro),
nos trazem – sempre – o poético em sua melhor
maneira, o poético que mostra a vida em passos
de gigante. Pegue este livro, portanto, como uma
primavera nos dentes, porque, mesmo que escrito
na primeira floração, ele se anuncia como outubro:
Mas outubro,/ Outubro se anuncia entre esses
dentes.// Não sei se de dentro/ - como vômito/ Ou
se de fora/ - como soco// Mas outubro, outubro se
anuncia. Maurício Chamarelli assim se anuncia:
com passos de gigante.
Alberto Pucheu
Corpo
Tênue
Giant
Steps
Giant Steps: InvocaçãoV
oz do cárcere de Pisa em A
ndante:Um
homem
cercado de espelhosRuge.E toda nobreza é velada em
seu canto.Envolto em
espelhos,Grita toda beleza que exala– Estrangeira m
ão que impede o passoO
s dedos rijos, a palma encara-m
eE ainda admirar todo poder de
mergulho,Todo salto em
terra estranhaUm
homem
refletido em espelhosR
icocheteia sujeito a si.– Não m
e impedirás de te dizer palavras rubras,:Q
uando vier a vida,A
mesa disposta, a cara suja: cada coisa fora de lugar.D
e todos os lados correntezas me querem
levar,Espelhos querem sujeitar-m
e,Atribuir-
me um
rosto.– Não m
e impedirás de te dizer palavras rubras E adm
irar toda capacidade de mergulho, D
e perdição em terra estrangeira.§A
d libitum
O pensam
ento, Máquina de engrenagens entregues ao tem
po, Sujeitas a toda ferrugem do poder,R
ange. Alheia a todo controle, A
vida fala em m
im
a passos de gigante, Salta sempre adiante a arrastar a razão Q
ue divide compassos, sôfrega, H
armoniza intervalosE ritm
osIncalculáveis.§O am
or na retaguarda, já lutei em
campos verdes.H
oje levo o peito aberto E não mais m
e desesperoA fronte, lim
pa de todo ódio, saúda todo imigo.Todos m
e dão nom
es, puxam-m
e as orelhas:Me querem
fazer lembrar§M
oderatoConsta que cam
inhava em espirais o velho a que um
dia chamei de pai. – D
e m
odo que sigo sempre em
todas as direções – dizia-me ele.Erradicado em
todo esquecimento,U
m fruto.É a lição dos astros: elipses sobre elipses sobre
elipses. Curvas entorno de curvas.B
rota. Esquece-se.De m
odo que sempre se tem
de voltar para aonde já se foi para se poder ir adiante: em todas as
direções como a copa das árvores.§§A
llegro vivaceParar incógnito num banco de praçaA
nte o silêncio do mundo, ocupar-m
e só do que souE sorrir.O
verso afunda ao toqueMas se presta ao saltoD
eixar-me levar pelo ensejo e descobrirO
tempo enquanto o instante faz.O
que hoje levas no peito
1�
Voz do cárcere de Pisa em Andante:
Um homem cercado de espelhos
Ruge.
E toda nobreza é velada em seu canto.
Envolto em espelhos,
Grita toda beleza que exala
– Estrangeira mão que impede o passo
Os dedos rijos, a palma encara-me
E ainda admirar todo poder de mergulho,
Todo salto em terra estranha
Giant Steps: Invocação
20
Um homem refletido em espelhos
Ricocheteia sujeito a si.
— Não me impedirás de te dizer palavras rubras,
:
Quando vier a vida,
A mesa disposta, a cara
suja: cada coisa fora de lugar.
De todos os lados correntezas
me querem levar,
Espelhos querem sujeitar-me,
Atribuir-me um rosto.
— Não me impedirás de te dizer palavras rubras
E admirar toda capacidade de mergulho,
De perdição em terra estrangeira.
21
§ Ad libitum
O pensamento,
Máquina de engrenagens entregues ao tempo,
Sujeitas a toda ferrugem do poder,
Range.
Alheia a todo controle,
A vida fala em mim a passos de gigante,
Salta sempre adiante a arrastar a razão
Que divide compassos, sôfrega,
Harmoniza intervalos
E ritmos
Incalculáveis.
§
O amor na retaguarda, já lutei em campos verdes.
22
Hoje levo o peito aberto
E não mais me desespero
A fronte, limpa de todo ódio, saúda todo imigo.
Todos me dão nomes, puxam-me as orelhas:
Me querem fazer lembrar
§ Moderato
Consta que caminhava em espirais o velho
que um dia chamei de pai. – De modo que sigo
sempre em todas as direções – dizia-me ele.
Erradicado em todo esquecimento,
Um fruto.
É a lição dos astros: elipses sobre elipses
sobre elipses. Curvas entorno de curvas.
Brota. Esquece-se.
De modo que sempre se tem de voltar para
23
aonde já se foi para se poder ir adiante: em todas
as direções como a copa das árvores.
§
§ Allegro vivace
Parar incógnito num banco de praça
Ante o silêncio do mundo, ocupar-me só do
que sou
E sorrir.
O verso afunda ao toque
Mas se presta ao salto
Deixar-me levar pelo ensejo e descobrir
O tempo enquanto o instante faz.
24
O que hoje levas no peito amanhã
levarás nas costas senão entenderes que tudo se
vai que nada de importante com o tempo se
perdeu ontem que o mesmo tempo não nos esteja
oferecendo hoje
:
o afeto que
tens é o emblema da força no afeto que terás
Rall ——
.
Corpo tênueTam
bém m
e visito de pés descalçosEm frangalhos, o estrondoso ir e vir da cidade ao fundoPoderia então, aqui, entre nós, um
a palavra rude ou cansadaU
m sopro, um
sussurro, um grito. U
ma vozA
quilo que é seu. Aquilo que é m
eu. Mas não foi justo aí que nos perdem
os? Um
corpo só é corpo porque existe o outro. Sou eu. Sou sem
pre eu. A cada curva, a cada salto, a cada erro, volta e am
arra sou eu. Meu passo. Im
perdoávelE quero pra mim
a lucidez das falhas, dos fracassos insolúveis, dos suicidas. N
o ritmo dos tropeços, nele com
porei minha suíte. A
quele que nunca errou, esse que nunca foi divinoTudo o que é grande é doente de si m
esmo. Será? Sou eu, sou sem
pre eu. Insolúvel, esse pensamento. C
om o tem
po, no entanto, descobre-se a calm
a que há nisso. Nisso. N
isso de ser. De ser eu. A
cada passo. Nisso de ser eu a cada prisão. Isso de corpo. Tênue. Todo corpo, todo corpo é tênue.
Porque existe o outro. Gosto de quando você fecha os olhos por m
ais de um segundo. C
omo quem
rápido se perde no escuro da pálpebra, é seu rosto, é seu corpo. todo. que nasce, quando você reabre os olhos fechados por m
ais de um segundo. Seus olhos m
ais velhos que o resto do seu corpo. Sua írism
ensageira da alvura das partes que em você nunca envelhecem
P e n s oE o tempop a s s aÉ insolúvel tam
bém. Esse pensam
ento.Corpo
Tênue
2�
Corpo Tênue
Também me visito de pés descalços
Em frangalhos, o estrondoso ir e vir da cidade ao
fundo.
Poderia então, aqui, entre nós, uma palavra rude
ou cansada,
Um sopro, um sussurro, um grito. Uma voz.
Aquilo que é seu. Aquilo que é meu. Mas não foi
justo aí que nos perdemos? Um corpo só é corpo
porque existe o outro. Sou eu. Sou sempre eu. A
cada curva, a cada salto, a cada erro, volta e amarra
sou eu. Meu passo. Imperdoável.
E quero pra mim a lucidez das falhas,
dos fracassos insolúveis, dos suicidas. No ritmo
dos tropeços, nele comporei minha suíte. Aquele
que nunca errou, esse que nunca foi divino.
30
Tudo o que é grande é doente de si mesmo.
Será? Sou eu, sou sempre eu. Insolúvel, esse
pensamento. Com o tempo, no entanto, descobre-
se a calma que há nisso. Nisso. Nisso de ser. De ser
eu. A cada passo. Nisso de ser eu a cada prisão. Isso
de corpo. Tênue. Todo corpo, todo corpo é tênue.
Porque existe o outro. Gosto de quando você fecha
os olhos por mais de um segundo. Como quem
rápido se perde no escuro da pálpebra, é seu rosto,
é seu corpo. todo. que nasce, quando você reabre
os olhos fechados por mais de um segundo. Seus
olhos mais velhos que o resto do seu corpo. Sua íris,
mensageira da alvura das partes
que em você nunca envelhecem
—
P e n s o
E o tempo
31
p a s s a
É insolúvel também. Esse pensamento.
—
Que fique onde está o que não se quis dizer e o
instante que não se quis lembrado. No fim é só
uma tonalidade, uma veia (ainda vou encontrar
um nome melhor pra isso). Até que o último grito
de humanidade tenha sido ouvido, até que a pá
desfaça o fórceps. Foi aí, foi aí que nos perdemos,
aí que nos matamos.
escolho por objeto aquilo sobre o que me lanço
mas não me lanço
não queria mais te olhar nos olhos, te chamar.
Eu já me embriagava em ti muito antes de tomar
forma o teu mundo
E teus olhos
32
tão cheios de abrigo.
—
(Total black out em cena. Ouve-se uma voz.)
Se as luzes estivessem acesas talvez eu pudesse
dizer: meu irmão entrou no quarto. No escuro
tudo é som, é voz. Se fechar os olhos a escuridão
me escapará, não quero ver o lado interno das
pálpebras, quero não ver, mergulhar quase todo
na impossibilidade de visão.
a porta não existe. Talvez mirasse o teto como
os personagens ociosos de Eça – acaso um teto
houvesse. O quarto escuro é um infinito, ao
menos enquanto não tateio pelas paredes. É tudo
música. Por exemplo se meu irmão entrasse
no quarto eu não poderia dizer, ele entrou pela
porta, atravessou o cômodo e vestiu os chinelos,
desconheço o significado de cômodo, de chinelo,
de ele. Não acredito mesmo na existência de uma
porta ao meu redor.
33
Mas ele não entrou pelo quarto. Logo vou querer
me levantar e andarei pé a pé como uma gueixa,
as mãos a frente do corpo. Porém por agora eu não
possuo pés e isso é porque não toco em quase nada.
A bunda no chão é uma dormência. Gravita. O
escuro não tem formas, o invisível nasce no toque.
De maneira que, quando a aflição do incorpóreo
me estiver afogando, precisarei, no escuro, tatear
pelo meu corpo. E cada coisa caneta telefone que
eu agarrar ou tocar, me abraçará na certeza de
que ainda existo e de que ainda se tornará coisa,
caneta, telefone. (Silêncio da voz. Luzes cegantes
no palco.)
—
Teu sopro, teu corpo de ruínas imemoriais. Teu
corpo borrasca do meu, onde visitei a morte. Vou
amanhecer alguns dias num rosto pintado de azul.
Ou laranja.
Pra
marcar bem óbvio o meu desquite com o mundo.
Laranja, cor do meu divórcio.
34
Recolher: dores, bolores, disritmias. Não posso, sei
que não posso. Morar em farpas da voz, deslizar
por cacofonias. Ofício de agregar os ossos. O morto
e o abortado, moer. Moer até o nada, moer até o pó.
Lançar o pó em vias públicas. Não esquecer rostos
e nomes, cidade parada no tempo. No tempo.
—
Sou-me única medida de mim mesmo.
E, enquanto caminho, pressinto no gosto – no
tato
a verdade de um corpo
e a verdade de um verbo
conciliadas no grito
E volto a me visitar de pés descalços
chafurdando o barro do caminho
já tornado barro do corpo desfeito.
35
Se te quisesse, Assim: esbarro das tuas mãos, a me
estragar o corpo.
—
Desejo de habitar as farpas da palavra. O corpo
ferido, sangue tingindo o sentido. Queria habitar
as farpas da palavra, mas é preciso, é preciso corrê-
las. Um dia, quando eu morrer, talvez faça morada
nas farpas da palavra morte, ou nas do meu nome,
o que dá no mesmo. Os vivos ficarão a repeti-lo
até que perca o fio, até torná-lo macio e dócil, até
que, como tudo mais, ele perca seus chifres.
na segunda-feira de uma semana sem dias,
folheio meu rosto como a um livro sem páginas
Ainda canto. Ainda caminho. E cobro do meu
corpo um pouco mais do que ele pode dar-me. Sei.
Mas não me canso. Não há mais pressa, os anos
36
não me dizem o que sou. É sempre no agora o
meu combate.
Pouco a pouco os amores criaram em mim um
corpo de nós. Que a tensão, antes de arrebentar, ata
mais firme. Por isso eu amo a cidade. Há sempre
muitas forças. Todo um complexo trançado de
vetores. O campo tem lá seus vazios, suas escarpas
inacessíveis, suas planícies. A cidade trabalha a
todo o vapor. Seu ócio e seu silêncio são como
brechas, pequenos abismos cuja largura cabe num
passo e a profundidade no infinito.
Eu também ouvi o que os
falantes falavam. Eu sempre ouço. Mas a palavra
nasce tarde em boca de dizer tolices.
Ponderada sua desmedida desmesura
violência, atravessa a fina peneira do dia-a-dia
para vir instalar-se no bojo da circunstância.
—
37
Só se visita o espelho de pés descalços. Do contrário
o chão, infecundo, seduz menos que a miragem.
Dizia-me meu pai. E eu vivia de espelhos cegos.
Já criança, lançando a lanterna dos olhos pelo
inescrutável do quarto, corpo tênue de escuro. Ali,
ali. Embaixo da cama, em cima da escrivaninha.
Era eu, fazendo disso meu ofício, a negação de
minha sonolência.
Ali, ali, não, não. Ali, do outro lado. Melhor, aqui,
aqui, debaixo do cobertor.
—
Prevejo no passo a apoteose do corpo.
E a decadência dos mundos.
É isso. E talvez não seja tão imperdoável. Penso.
O tempo. Passa. No princípio era o corpo, o grito,
o choro. Só depois veio o verbo. Vai se chamar
Maurício. Como se faltassem farpas ou chifres.
Nunca mais,
nunca mais
38
habitarei o deserto, não quero mais sorrisos de
gafanhoto a me perfurar o rosto. Ou lembranças
de Ti, Pai. Não serei, nunca mais, refém do infinito.
Jogando os Teus jogos, a Palavra, Tua palavra
enfastiada de gargantas,
e atravessada nos ouvidos.
—
Então será como nunca ter existido,
como se eu tirasse o meu bigode e você nem
percebesse
assim, sobrevivendo à minha indiferença dentro
de um vestido novo.
Como desconhecidos,
– cicatriz insensível e sem memória
para a qual não há repetição ou novidade.
3�
Então será como não ter existido
habitar o vazio do tempo
como se não a conhecesse.
Nós desatados pelos anos
restaremos na flacidez dos corpos.
Quando te conheci, deixei de existir por uns
instantes
Eu te digo como isso vai acabar
Mas como vai
ser
—
Era meu nome, era meu nome que eu estranhava.
Não que não o reconhecesse, é claro. Nem bem
refeito o corpo entre os lençóis, meu nome vindo
à tona na sua voz.
Seus lábios libidinosos lembravam-se. Lembravam-me.
40
e meu ossos de repente tendo de se encontrar de
novo, meus músculos. Meus olhos de supetão
voltando a se enxergar. Cicatrizando o delírio, não
esperava isso. Não de você.
—
Farei disso uma confissão.
Não há lembrança que não seja torta, não
há voz que não se queira ouvida.
Há um corpo, quase me
esqueço. Um corpo que se quer tênue.
Sempre que falo, falo do que sou
Não porque seja, mas sim por que fale.
sempre assim, sendo assim o meu corpo, cortado,
lanhado, atravessado. Corpo doente de nomes.
41
Algoz do meu silêncio, tenaz das
minhas forças,
não era mais pra você me
aparecer assim.
E me escapar assim
corpo doente de nomes, morada de palavras
díspares. Esticado, distendido por palavras díspares,
tensionado e arrebentado por elas.
é preciso aprender a ter um
corpo.
depois, chifres.
—
Cada rua que passa deixa um rastro em meu
sorriso.
Todo passo, todo passo é irretraçável. Porque,
como tudo mais, ele habita o instante.
42
A vida já não corre pelas linhas da minha mão
ou pelas veias do meu corpo. Nunca correu. Não
poderia mesmo correr e isso já não suscita nenhum
temor.
Sei.
Irremediavelmente. Sei.
Quero agora
Quero agora sempre
Não ter o que dizer, não saber o que dizer, ter
ainda o que dizer,
É bom, é sempre bom, errar, ter ainda o que fazer,
um caminho adiante os pés ou longe o chão, vejo a
beleza que se resguardou e se resguarda, a beleza
que se esconde, é bom é sempre bom quando
alguma beleza ainda se esconde
quero agora quero agora sempre
algo por querer,
43
Algo que se quer é às vezes a única certeza de se
estar vivo. Mas também o pensamento Quando
era pequeno, mãe me dizia do outro mundo. Do
outro mundo onde nossos olhos acordam quando
vamos dormir.
Como é lá? Como é lá? – Pequeno, pequeno, outro
mundo é outro mundo. Só uma outra língua pra
dizer como é.
Eu fazia do silêncio minha resposta.
Percebia pela primeira vez que não poderia
dizer tudo. E às vezes achava que se abrisse a boca
bem aberta, se falasse bem alto, qualquer palavra
que eu dissesse valeria por todas.
—
Do tempo. Nada me diz. Nada me comunica mais.
Nada me comunica mais da singeleza do tempo.
44
Nada me comunica mais da singeleza do tempo
do que. Do que um rugido de motor de ônibus
ansioso por um sinal verde.
Nada me diz mais da singeleza do instante.
do instante
da força
da força, da força. Das intempéries
do tempo. Das intempéries do tempo. Dos nós,
das voltas.
Das vozes. Do amor, do amor,
da força, do tempo
da ruína. Das ruas. Das ruas vazias onde não
me perco mais. (Os braços caindo pela lateral do
corpo, os olhos revoltos, nenhum desejo, passos.)
Nada me transmite mais a singeleza do instante
do que um ronco de motor de ônibus aguardando
o sinal verde.
45
Da espera, da espera. / da ânsia/ da força, do retorno/
do instante, de tudo o que é instantâneo.
Do erro/ Da voz, do grito/ Da
palavra.//
Rude ou cansada, do cansaço/
do caminho e da colheita. Da cidade. Das coisas do
corpo/ do corpo.
do corpo
Cada rua que passa deixa um rastro em meu
sorriso
— Adiante.
Mais um som, mais uma luz,
que venha outra voz
talvez outro corpo
— Adiante.
Por exemplo o beco cinzaQ
uando passo o beco cinza,Quando volto os olhos pelos passos dados dentro do beco cinza,Q
uando penso que volto os olhos pra reconstituir os passos que transpuseram
o beco cinza,As ruas m
udam de lugar,eos paralelepípedosA
trás de mim
à minha frenteE sou um
desaparecidoÀ
s vezes atravesso a rua aos pedaços. Chega prim
eiro o carrilhão dos olhos. Depois o vagão das pernas. E por últim
o chega a maria-
fumaça dos nom
es. Meio descarrilada. M
eio m uo acríiEu e o B
rasil, aliNa A
venida Brasil, em
frenteAo Jornal do B
rasil,Jogando um jogo feitoEm
Taiw
anEu e o Brasil, aliN
a Av. B
rasil, em frenteA
o JB,Falando em um
celular de umaFábrica chinesaD
iscutindo Revolução C
ubana,Com
entando um
autor Francês,Cantarolando um
a música em
inglês,Vestindo um
a camisa com
um dizer hindu.Falando num
a língua européia,Sobre o amor de um
casal italiano,Q
ue adorava comida japonesa.A
ssociando um N
azareno,Nascido em
Belém
,Aos pinheiros da A
mérica do N
orte.Lembrando russos no
espaçoE bandeiras na lua.Imaginando gelo em
MarteO
u vida inteligente na Terra.Eu e o Brasil, aliN
a Avenida B
rasil, em frenteA
o Jornal do Brasil,
esperandoO 345 ou um
a invasão extraterrestreO que viesse prim
eiro.Estes versos dedico à mem
ória dos deusesque
Outros
4�
Por exemplo
o beco cinza
Quando passo o beco cinza,
Quando volto os olhos pelos passos dados dentro
do beco cinza,
Quando penso que volto os olhos pra reconstituir
os passos que transpuseram o beco cinza,
As ruas mudam de lugar,
e os paralelepípedos
Atrás de mim
à minha frente
E sou um desaparecido
50
Às vezes atravesso a rua aos pedaços. Chega
primeiro o carrilhão dos olhos. Depois o vagão das
pernas. E por último chega a maria-fumaça dos
nomes. Meio descarrilada.
Meio m u c
a í
r io
51
Eu e o Brasil, aliNa Avenida Brasil, em frente
Ao Jornal do Brasil,
Jogando um jogo feito
Em Taiwan
Eu e o Brasil, ali
Na Av. Brasil, em frente
Ao JB,
Falando em um celular de uma
Fábrica chinesa
Discutindo Revolução Cubana,
Comentando um autor Francês,
Cantarolando uma música em inglês,
Vestindo uma camisa com um dizer hindu.
Falando numa língua européia,
Sobre o amor de um casal italiano,
Que adorava comida japonesa.
52
Associando um Nazareno,
Nascido em Belém,
Aos pinheiros da América do Norte.
Lembrando russos no espaço
E bandeiras na lua.
Imaginando gelo em Marte
Ou vida inteligente na Terra.
Eu e o Brasil, ali
Na Avenida Brasil, em frente
Ao Jornal do Brasil, esperando
O 345 ou uma invasão extraterrestre
O que viesse primeiro.
53
Estes versos dedico à memória
|dos deuses que fartos de seu desconhecer
Lançaram-se frutos em abismos de nada.
Aos deuses que, cansados de plantar o que hoje é
adubo dos campos,
Enforcaram-se em caules de videira,
A eles dedico este canto.
E o que eles viram,
que os fez assim arrefecer,
que os fez querer ver mais, ou nada mais querer
ver;
O que eles viram,
O que nunca virei a conhecer,
Permanece lá guardado
desde que arruinei o oráculo dos tempos.
Em memória de mim mesmo manuscrevo
54
estas curtas palavras:
De como, carcomido o fruto, brotei da semente
abismal
De quando pelos templos da memória adentrei
De que lanças me usei
De quando profanei meu nome
E rosto e pele e torso
De como silenciei minha boca de filho,
minha língua de fiel.
De desde então me ser dito:
Manhã.
E pulso
Do que salta como assinalado
Pra dentro do espaço.
55
Cantiga para ninar
papagaios
para Luís Augusto
Sempre que falo, falo do que sou
Não porque seja, mas, sim, porque fale.
56
Nunca fui a Cuba.Mas posso dizer: Cuba.
Sem conhecer suas ruas, suas chuvas, suas putas;
Posso dizer: Cuba.
E ‘inda assim continuo sem conhecê-la.
Poderei um dia visitar
Cuba.
Verei talvez suas vielas, sua salsa, suas mulheres
Mas, por enquanto, por enquanto ao menos,
Me basta visitar palavras:
Cuba. Cuba. Cuba.
57
Prevejo no passo a apoteose do corpo
E a decadência dos mundos.
Sei que quando vou
O que quero não me vale
E que quando quero
O que sou não mais me entende.
Meio seta, meio abraço
Já não sou o que almejo
Tanto mais do que o que faço.
Ainda não.
Porque bem como a terra
É a diferença dos mares
Compreendo-me à distância
Disritmias
58
Entre o passo e o penso
Entre o vejo e o quero
Entre o quero e o tenho.
Bem contido (ou bem aberto)
Entre cabeça e pé, quero e faço,
Sou-me a eterna distância
Entre o que almejo e o que enlaço.
5�
1/9 – Carta para Ronaldo Ferrito
Meu cobertor – quase um véu de luto.
É manhã
E daqui da praia posso ver as enormes velas
brancas hasteadas no horizonte
Como se o mundo fosse partir.
O céu jamais saúda o nosso setembro como
olhos azuis
É sempre esse sorriso pálido que acena
A estampa desses dentes brancos pelo lado de
dentro:
Fomos engolidos e não resta lá muito mais a ser
visto.
Díptico
60
E me levanto.
Vindo à tona de debaixo das cobertas como quem
desenterra orgasmos
Rompendo a veia dessa boca
Não sei se em nascimento ou anunciação.
Eu sempre te saúdo como palavras rubras
Como as de antes
Como as manhãs. Como as paixões colhidas em
silêncio.
Ah! meu caro! O quanto fomos irmãos! O
quanto ainda o somos!
O quanto me dizias que cada passo celebra o
último
e o próximo.
Quero ainda ver! Quero ainda ver!
Não esgotei minha vida num berro de saudade
Ou num soluço!
61
A exata e justa medida de qualquer coisa,
Quis não deixar pra trás nenhum futuro de
pretérito
e fui.
— Mando saudades de cá da terra e abraços
O céu iça suas velas
No horizonte, o carrancudo semblante de um
relâmpago,
E eu clamo por ventos.
62
Primavera nos dentes
Mas outubro,
Outubro se anuncia entre esses dentes.
Não sei se de dentro
– como vômito
Ou se de fora
– como soco
Mas outubro, outubro se anuncia.
E aqui, ao lado o fantasma do meu desejo,
Jaz a acidez raquítica do meu silêncio.
Os últim
os anos de SibilaSegundo me foi dado coletar de um
a fonte infimam
ente confiável, Sibila, sacerdotisa de Apolo a quem
o deus concedera o poder da profecia, pedira-lhe, a certa altura da vida, o dom
da longevidade. O deus concedeu-lhe o núm
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pediu que seu corpo não acompanhasse esta longevidade e perecesse m
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resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. A
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o se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. C
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os aplausos.
Os últimos anos de
Sibila
Os últimos anos de Sibila
Segundo me foi dado coletar de uma fonte
infimamente confiável, Sibila, sacerdotisa de
Apolo a quem o deus concedera o poder da
profecia, pedira-lhe, a certa altura da vida, o dom
da longevidade. O deus concedeu-lhe o número
de anos igual ao de grãos de areia que pudesse
segurar, o que não impediu que seu corpo não
acompanhasse esta longevidade e perecesse
mesmo antes dela. E mais: antes de sua voz.
66
I
Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não
sei se me vem primeiro a perda de consciência
dos movimentos, ou sua incessante repetição.
Quando jovem, em cada curva, um dilema vital,
em cada questão, uma resposta absoluta. Mas
a maturidade antecipa a leveza de todas as
coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco
os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo
à minha frente, ou se escorrego cada vez mais
rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.
67
II
O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que
tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A
princípio falava consigo. Depois, resguardava ao
pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos.
Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde
as palavras não chegam. A mesma casa, mas já
não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a
interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra
tempo. O mundo não – mundo – .
68
III
Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam.
Quase como se, finalmente, entendesse a vida e
agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem
os aplausos. Como se, curvada em reverência, me
fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida
nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos
de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-
me. E comigo o mundo.
6�
IV
A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante:
comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A
total automatização de cada ato: a inconsciência. A
mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até
que se removesse toda a distância entre azulejo e
vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária
a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – .
Até que não mais se impusesse, entre a mão e o
cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a
palavra mão, ou mesmo madeira.
70
V
Olho pela janela. A cidade, profusão incessante
de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem?
Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está
em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo
na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A
vida exalta a si mesma com a música e exala seu
silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua
afasia em nomes.
71
VI
Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras
retornaram. Mas não todas. Algumas levaram
anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas
palavras não voltaram. Não voltaram nunca
– inomináveis? Mas mesmo as que retornaram,
ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo,
traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um
certo frescor de novas.
72
VII
Me observava. Cada movimento. Como se pronto
a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia
e aparentava calma. Levou umas duas linhas no
livro da vida para que se tornasse um gato. Sim,
algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha
de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um
tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor.
Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara
momentos antes. Não. Não há nada mesmo de
engraçado. O braço ainda não braço a transpirar
as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já
foi um dia mão. E eu, entre soluços e engasgos.
Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez.
Imaginar eu, dizer – eu – .
73
VIII
Algumas palavras não voltaram. Algumas
coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez
precisassem destes. Como por exemplo o ato
de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no
tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a
pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece.
A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a
envergadura da alma para suportar o peso dos
anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de
transpirar sílabas: sibilar.
74
IX
O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome
a rostos que nunca nascerão. À minha volta
dançam palavras sem qualquer significado.
Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis.
– O que virá e o que passou se encontram no
compasso oracular da minha música: no raso
verbo da voz só há tempo para dizer o que passa.
Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou
bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos
parágrafos. E recomeçar.
75
X
O entorno transpira – parede – . O embaixo
soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus
nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por
exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas
– gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As
palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo
não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não
voltam a ter nomes. Os nomes voltam.
76
XI
Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei
o mundo, desci às profundezas do pensamento
e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto
em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta
– garganta qualquer – a vontade de cantar! Não,
não virão mais injúrias! A vida também chora
quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice
não é a fatal negação aos mortais, é a vida a
dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que
a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se
concilia. E, mesmo assim, em nenhum momento
o mundo se entristece.
77
XII
Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos
e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía.
Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes
ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras
viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as
coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu
para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi
somente voz. E quando o proprietário adentrou o
apartamento com a moção de despejo, ainda soava
um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o
chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se
uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.
À minha bisavó Angelina
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.
Nasceu em 1984 no Rio
de Janeiro, onde mora
até hoje. Estuda Letras
na UFRJ e toca saxofone
nas horas vagas.
Maurício
Chamarelli
Gutierrez
OEstelivro foi
composto em papelultra branco 90g, comtítulos em Optima OT
e corpo de texto em Aldus OT pela Oficina Raquelem abril/maio de 2006.
“Que este livro dureaté antes do fim
do mundo”