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    CAPTULO DOIS

    A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia*

    O propsito deste captulo no argumentar que o corpo humano um importante objeto de estudo antropolgico, mas que o paradigma dacorporeidade pode ser elaborado para o estudo da cultura e do sujeito. Porparadigma entendo uma perspectiva metodolgica consistente que visa en-

    corajar a releitura de dados existentes e propor novas questes para a pesqui-sa emprica. Embora eu deva argumentar que o paradigma da corporeidadetranscende diferentes metodologias, no proponho sintetizar a vasta litera-tura multidisciplinar sobre o corpo.37 A abordagem que desenvolverei des-

    * Agradecimentos: a pesquisa apresentada neste captulo foi financiada pelo NIMH, auxlio1R01MH 40473-03. Agradeo aos participantes do seminrio semanal sobre AntropologiaMdica de Relevncia Clnica na Universidade de Harvard, dirigido por Arthur Kleinman

    e Byron Good por criarem um ambiente que estimulou o desenvolvimento deste trabalhoem vrios estgios. Comentrios sobre uma primeira verso do estudo foram oferecidos porPierre Maranda e Byron Good durante um simpsio organizado por Gilles Bibeau e EllenCorin no ICAES XII em Zagreb, Crocia. Gananath Obeyesekere, Robert Levine e NancyScheper-Hughes deram grande encorajamento ao selecionar o trabalho como vencedor doPrmio Stirling. O argumento foi refinado em resposta a uma crtica construtiva de RichardShweder. Finalmente, agradeo a Janis Jenkins, cujo dilogo terico e caneta editorialmuito contriburam para o que, de qualquer ponto de vista, um argumento experimental.

    37 Alm dos trabalhos citados no texto, vrios grandes tericos desenvolveram perspectivassobre o corpo (Douglas, 1973; Foucault, 1973, 1977; Ong, W., 1967; Straus, E., 1963).

    Antroplogos examinaram periodicamente o significado social e simblico do corpo e dos

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    de a perspectiva da antropologia psicolgica encaminha-se na direo dafenomenologia. Essa abordagem da corporeidade parte da premissa meto-dolgica de que o corpo no um objeto a ser estudado em relao cultura,mas o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura.38

    O trabalho de Irving Hallowell se apresenta como um bom ponto departida, j que a sua denominao do selfcomo culturalmente constitudomarcou uma mudana metodolgica que se afasta da preocupao com aestrutura da personalidade, e permanece atual no pensamento antropolgi-co. No seu artigo mais influente, Hallowell (1955) articulou duas conside-raes principais que designarei por percepo e prtica. Percepo umelemento-chave na definio de Hallowell do selfcomo conscincia de si, oreconhecimento de si mesmo como um objeto num mundo de objetos.Ele considerou a conscincia de si como necessria ao funcionamento dasociedade e tambm como um aspecto genrico da estrutura da personali-dade humana. Ele chamou seu ensaio metodolgico para o estudo do selfde fenomenolgico, por falta de um termo melhor, mas eu diria queaquilo que faltava era uma fenomenologia mais elaborada. Entretanto, aotratar diretamente do problema da percepo, Hallowell foi o precursor de

    uma crtica antropolgica da distino entre sujeito e objeto.Contudo, apesar de reconhecer explicitamente o selfcomo uma auto-

    objetificao e como produto de uma mentalidade reflexiva, Hallowell ela-

    sentidos (por exemplo, Benthall; Polhemus, 1975; Blacking, 1977; Hanna, 1988; Hertz,1960; Howes, 1987; Leach, 1958; Obeyesekere, 1981; Tyler, 1988). Campos particularesque deram contribuies recentes incluem antropologia mdica e psiquitrica (Devisch,

    1983; Favazza, 1987; Frank, G., 1986; Good, 1988; Kleinman, 1980, 1986; Kirmayer,1984; Martin, 1987; Scheper-Hughes; Lock, 1987), antropologia social (Jackson, 1981),sociologia (Armstrong, 1983; Turner, B., 1984), filosofia (Johnson, 1987; Levin, 1985;Tymieniecka, 1988), histria (Bell, 1985; Bynum, 1987; Feher, 1989), e crtica literria(Berger, 1987; Scarry, 1985; Suleiman, 1986). Esta naturalmente apenas uma amostragemde trabalhos relevantes, e a lista segue se expandindo. [Para bibliografia adicional desde apublicao da verso original deste captulo em 1990, veja Lock (1993) e Csordas (1999a,1999b)].

    38 O argumento que estou desenvolvendo sobre o corpo como fundamento existencial dacultura deve ser distinguido daquele de Johnson (1987), que analisa o corpo enquanto

    fundamento cognitivo da cultura.

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    borou sua anlise em termos de um selfj objetificado. Um relato fenome-nolgico completo reconheceria que, apesar de sermos capazes de nos cons-tituir em objetos para ns mesmos, isso raramente ocorre na vida cotidiana.Um relato assim daria o passo decisivo de comear com a experincia pr-objetiva e pr-reflexiva do corpo, mostrando que o processo de auto-obje-tificao j antecede culturalmente a distino analtica entre sujeito e objeto.Hallowell no foi alm do conceito antropolgico convencional de que osujeito constitudo no processo ontogentico de socializao, sem levarem considerao a constante reconstituio do self, incluindo as possibilida-des no apenas para a mudana criativa em algumas sociedades, mas para avariao intercultural de graus na prpria auto-objetificao.

    O segundo fator considerado por Hallowell est sintetizado na expres-so ambiente comportamental, emprestada da psicologia gestaltiana deKoffka. A abordagem protofenomenolgica da percepo que ns identifi-camos contempla um trao essencial do ambiente comportamental, qualseja, que ele inclui no apenas objetos naturais como tambm objetos cul-turalmente reificados, especialmente seres sobrenaturais e prticas associa-das a eles. O conceito fez mais do que localizar o indivduo na cultura,

    ligando o comportamento ao mundo objetivo, mas tambm vinculou pro-cessos perceptivos com restries sociais e significados culturais. Assim, ofoco da formulao de Hallowell era a orientao em relao ao sujeito,aos objetos, tempo e espao, motivao e normas. Nesse sentido que otermo prtica relevante para a descrio da questo de Hallowell. Se,como Sherry Ortner (1984) argumentou, a conceitualizao antropolgicada prtica ocorreu em certo momento terico, ento o conceito de ambien-te comportamental um compsito terminolgico que representa o con-

    texto em que uma prtica levada adiante, e vale como a pedra de toqueterica entre comportamento e prtica. Isso de particular relevncia para oargumento presente, posto que a teoria da prtica pode se estabelecer me-lhor no corpo socialmente informado, como veremos.

    H outros modos de justificar a necessidade de um paradigma da cor-poreidade, dos quais mencionarei um apenas. Mauss (1950b), em sua frag-mentria porm influente discusso sobre a noo de pessoa, sugeriu quetodos os humanos possuem uma noo de individualidade espiritual e cor-

    poral. Ao mesmo tempo, ele argumentou que condies sociais particulares

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    estariam associadas com diferenas qualitativas entre a personagem totmi-ca, apersonaclssica, e a pessoa crist.39 de importncia emprica para omeu argumento ele ter remetido o desenvolvimento da pessoa individualis-ta arena dos movimentos sectrios dos sculos XVII e XVIII, j que asinformaes que analisarei provm do equivalente desses movimentos nosculo XX. de relevncia metodolgica que, tal como Descartes e Spino-za, ele tenha considerado a pessoa nos termos da distino entre o mundodo pensamento e o mundo material, j que o paradigma da corporeidade secaracteriza pelo colapso das dualidades entre corpo e mente, sujeito e obje-to. Sob esse prisma, torna-se relevante que o prprio Mauss (1950b) jtenha reproduzido tal dualidade ao elaborar seu conceito de la notion de lapersonnede maneira bastante independente do conceito de les techniques ducorps(Mauss, 1950a). Aqui novamente encontramos os temas da percepoe da prtica como domnios do sujeito culturalmente constitudo; mas aoescrever quase duas dcadas antes de Hallowell, Mauss no podia aindatrat-los conjuntamente, muito menos num consistente paradigma dacorporeidade.

    Meu plano para delinear tal paradigma comea com um exame crtico

    de duas teorias da corporeidade: Maurice Merleau-Ponty (1962), que ela-bora a corporeidade na problemtica dapercepo, e Pierre Bourdieu (1977,1984), que situa a corporeidade num discurso antropolgico da prtica.Minha exposio hermenutica, no sentido especfico de transitar pela apre-sentao de conceitos metodolgicos e por demonstraes de como pensarem termos de corporeidade, influenciou minha prpria pesquisa sobre lin-guagem ritual e cura num movimento religioso cristo contemporneo.Primeiro, eu examino dois servios de cura religiosa, interpretando o imagti-

    co multissensrio como um processo cultural corporificado. Depois, exami-no a prtica de falar em lnguas (ou glossolalia) como experincia corporificadano interior de um sistema ritual e como um operador cultural na trajetriasocial do movimento religioso. Por fim, eu retorno a uma discusso geral dasimplicaes da corporeidade enquanto paradigma metodolgico.

    39 Essas distines vagamente prenunciam o delineamento emprico de um continuum de

    pessoas-conceitos entre egocntricos e sociocntricos por Shweder e Bourne (1982).

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    Orientao metodolgica para a corporeidade

    A problemtica de ambos, Merleau-Ponty e Bourdieu, formuladaem termos de dualidades incmodas. Para Merleau-Ponty, a principal dua-lidade no domnio da percepo a do sujeito-objeto, ao passo que, paraBourdieu, no domnio da prtica, estrutura-prtica. Ambos tentam nomediar, mas colapsar essas dualidades, e a corporeidade o princpio meto-dolgico invocado por ambos. O colapso das dualidades na corporeidadeexige que o corpo enquanto figura metodolgica seja ele mesmo no-dua-lista, isto , no distinto de ou em interao com um princpio antag-nico da mente. Assim, para Merleau-Ponty o corpo um contexto emrelao ao mundo, e a conscincia o corpo se projetando no mundo; paraBourdieu, o corpo socialmente informado o princpio gerador e unifica-dor de todas as prticas, e a conscincia uma forma de clculo estratgicofundido com um sistema de potencialidades objetivas. Eu devo elaborarbrevemente essas vises como esto sintetizadas no conceito depr-objetivode Merleau-Ponty e no conceito de habitusde Bourdieu.

    A constituio perceptual de objetos culturais

    Merleau-Ponty apresenta sua posio como uma crtica ao empiris-mo.40 Ele examina a hiptese da constncia, a qual afirma que, uma vezoriginada a percepo em estmulos externos registrados por nosso aparatosensrio, h uma correspondncia ponto a ponto e conexo constante en-

    40 Enquanto o empirismo postula erroneamente um mundo de impresses e estmulos nelemesmo, o erro antittico do intelectualismo postula um universo de pensamentodeterminante, constitutivo. O intelectualismo (simbolizado por Descartes) confunde aconscincia perceptual com as formas exatas da conscincia cientfica. Ambas as posiesiniciam com o mundo objetivo ao invs de seguir de perto a percepo, e nenhuma delaspode expressar, como escreveu Merleau-Ponty, o modo peculiar pelo qual a conscinciaperceptual constitui seu objeto. O intelectualismo enfraquecido, diz ele, por sua falta decontingncia nas ocasies do pensamento, e sua exigncia de uma capacidade abstrata de

    julgamento que transforma sensao em percepo (Merleau-Ponty, 1962, p. 26-51).

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    tre o estmulo e a percepo elementar (Merleau-Ponty, 1962, p. 7). Masisto no experiencialmente verdadeiro, ele argumenta; longe de ser cons-tante, a percepo indeterminada por natureza. H sempre mais do quechega aos olhos, e a percepo nunca pode ir alm dos seus limites ou esgo-tar as possibilidades daquilo que percebe. Quando fazemos um esforo es-pecial para ver duas linhas aparentemente desiguais numa iluso de ticacomo realmente iguais, ou para ver que o tringulo no passa realmente detrs linhas relacionadas por certas propriedades geomtricas, estamos fazen-do uma abstrao, no descobrindo o que realmente percebemos e depoischamamos de tringulo ou iluso. Aquilo que realmente percebemos ,no primeiro caso, uma linha sendo mais longa do que outra, e no segundo,o tringulo. Comear do ponto de vista objetivo (o tringulo como objetogeomtrico e as linhas de comprimentos objetivamente paralelos) e retroce-der analiticamente ao sujeito perceptivo no apreende precisamente a per-cepo como um processo constitutivo.41

    Assim, Merleau-Ponty quer que nosso ponto de partida seja a experi-ncia de perceber em toda a sua riqueza e indeterminao, pois, de fato, notemos quaisquer objetos anteriores percepo. Pelo contrrio, nossa per-

    cepo termina nos objetos, o que equivale a dizer que os objetos so umproduto secundrio do pensamento reflexivo; no nvel da percepo, noexistem objetos, ns simplesmente estamos no mundo. Merleau-Ponty quer,ento, perguntar onde a percepo comea (se ela termina nos objetos), e aresposta no corpo. Ele quer recuar do mundo objetivo e comear com ocorpo no mundo. Isso tambm deveria ser possvel para o estudo do sujeitoconcebido nos termos de Hallowell, como um objeto entre outros.

    41 A referncia de Merleau-Ponty desigualdade de linhas de uma iluso de tica o bemconhecido diagrama de Muller-Lyer. Estudos transculturais sugerem que tanto a moldagemda percepo geomtrica no ambiente comportamental (a hiptese do mundo fruto dacarpintaria) como fatores psicofisiolgicos (variaes na pigmentao retiniana) podemajudar a determinar se o diagrama percebido enquanto ilusrio (Cole; Scribner, 1974).So essas mesmas diferenas que tornam importante que se comece com o sujeito perceptivoao invs do objeto analiticamente constitudo no estudo da percepo como processo

    psicocultural, especialmente quando mudamos da percepo visual para autopercepo.

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    J que a distino sujeito-objeto um produto de anlise, e os prpri-os objetos so resultados finais da percepo mais do que dados da percep-o emprica, um conceito necessrio para nos permitir estudar o processocorporificado de percepo do incio ao fim ao invs do inverso. Com essepropsito, Merleau-Ponty oferece o conceito dopr-objetivo. Seu projeto coincidir com o ato da percepo e romper com a atitude crtica (Mer-leau-Ponty, 1962, p. 238-239) que equivocadamente inicia com os obje-tos. A fenomenologia uma cincia descritiva dos princpios existenciais,no de produtos culturais j constitudos. Se nossa percepo termina nosobjetos, o objetivo de uma antropologia fenomenolgica da percepo capturar aquele momento de transcendncia no qual a percepo comea, e,em meio arbitrariedade e indeterminao, constitui e constituda pelacultura.

    Pode-se objetar que o conceito de pr-objetivo implica que a existn-cia corporificada se encontra no exterior ou antes da cultura. Tal objeono estaria de acordo com a idia de Merleau-Ponty (1962, p. 303, 311),do corpo enquanto um certo contexto em relao ao mundo ou um po-der geral de ocupar todos os ambientes que o mundo contm. De fato, o

    corpo est no mundo desde o incio:

    [] a conscincia se projeta num mundo fsico e possui um corpo,enquanto ele se projeta num mundo cultural e possui seus hbitos: poisno pode ser conscincia sem jogar com significaes dadas, seja no pas-sado absoluto da natureza ou no seu prprio passado pessoal, e porquequalquer forma de experincia vivida tende a uma certa generalidade,seja a de nossos hbitos ou aquela de nossas funes corporais. (Mer-

    leau-Ponty, 1962, p. 137).

    to falso nos colocarmos como um objeto entre outros objetos nasociedade quanto colocar a sociedade dentro de ns mesmos como umobjeto de pensamento, e em ambos os casos o erro consiste em tratar osocial como um objeto. Ns devemos retornar ao social com o qual esta-mos em contato pelo mero fato de existir, e que carregamos inseparavel-mente conosco antes de qualquer objetificao. (Merleau-Ponty, 1962,p. 362).

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    Ao comear assim com o pr-objetivo, no estamos postulando umpr-cultural, mas um pr-abstrato. O conceito oferece anlise cultural oprocesso humano em aberto de assumir e habitar o mundo cultural no qualnossa existncia transcende, mas permanece enraizada nas situaes de fato.

    Merleau-Ponty nos d o exemplo de um rochedo, que j est ali paraser encontrado, mas no percebido como um obstculo at que esteja alipara ser transposto.42 A constituio do objeto cultural depende assim daintencionalidade (o que faria algum querer transpor o rochedo?), mas tam-bm do dado de nossa postura ereta (Straus, E., 1966), que torna a escaladado rochedo um modo particular de negoci-lo (uma opo mesmo que sepudesse contorn-lo). A anedota antropolgica contada por David Schnei-der, do juiz de basebol que declara que os arremessos no rebatidos noforam bolas perdidas pelo rebatedor nem bolas fora enquanto ele no api-tar,43 nos fala de um ato de conferir significado cultural, mas ele pressupealgo sobre o fato cultural de que os arremessos j foram feitos e esto l paraserem apitados. Ele pressupe objetificao de um espao particular do cor-po entre os joelhos e os ombros (a zona da rebatida) em conjuno com ummodo particular de afastar os braos dos ombros (balanando o taco). para

    o processo dessa objetificao que Merleau-Ponty chama nossa ateno.

    Habitus e o corpo socialmente informado

    O objetivo metodolgico de Bourdieu para a teoria da prtica deli-near uma terceira ordem de conhecimento para alm da fenomenologia44 ede uma cincia das condies objetivas de possibilidade da vida social. Para-

    42 Hallowell (1955) observa de forma semelhante que os recursos ambientais no soobjetificados na qualidade de recursos at serem reconhecidos como tal por um povo e atque haja uma tecnologia desenvolvida para a sua explorao.

    43 O primeiro rbitro declara, Eu apito a jogada como ela . O segundo replica, Eu apitoela como eu a vejo. O terceiro anuncia, A jogada no nada enquanto eu no apitar.

    44 Bourdieu rejeita a fenomenologia de Schutz e dos etnometodologistas de um lado e deSartre de outro, citando favoravelmente os antigos trabalhos de Merleau-Ponty (1942)

    sobre comportamento.

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    lelamente ao objetivo de Merleau-Ponty de deslocar o estudo da percepodos objetos para o processo de objetificao, o propsito de Bourdieu iralm da anlise do fato social como um opus operatum, para a anlise domodus operandida vida social. Sua estratgia colapsar as dualidades decorpo-mente e signo-significao no conceito de habitus. Esse conceito foiintroduzido por Mauss em seu ensaio seminal sobre as tcnicas do corpo,para referir-se soma total de usos culturalmente padronizados do corponuma sociedade. Para Mauss, foi um modo de organizar o que de outramaneira seria uma miscelnea de comportamentos culturais padronizados,merecendo apenas um pargrafo de elaborao. Ainda assim, Mauss anteci-pou como um paradigma da corporeidade pode mediar dualidades funda-mentais (mente-corpo, signo-significao, existncia-ser)45 em sua declaraode que o corpo simultaneamente o objeto original sobre o qual o trabalhoda cultura se desenvolve e a ferramenta original com a qual aquele trabalhose realiza (Mauss, 1950a, p. 372). , de uma vez, um objeto da tcnica, ummeio tcnico e a origem subjetiva da tcnica.

    Bourdieu (1977, p. 72) vai alm dessa concepo de habituscomouma coleo de prticas, definindo-o como um sistema de disposies du-

    rveis, princpio inconsciente e coletivamente inculcado para a gerao e aestruturao de prticas e representaes. Essa definio promissora, poisfocaliza o contedo psicologicamente internalizado do ambiente compor-tamental. Para os nossos propsitos, importante que o habitusno gereprticas assistemticas ou aleatrias, porque se trata do

    [] princpio gerador e unificador de todas as prticas, o sistema dasinseparveis estruturas cognitiva e avaliativa que organizam a viso do

    mundo de acordo com as estruturas objetivas de um determinado esta-do do mundo social: esse princpio nada mais do que o corpo social-mente informado, com seus gostos e desgostos, suas compulses erepulses, com, numa palavra, todos os seus sentidos, isto , no apenas

    45 A distino entre existncia e ser essencial ao pensamento de Merleau-Ponty e, em geral, fenomenologia e psicologia existencial. Em termos antropolgicos, ela pode sergrossomodo traduzida como a distino entre ao intencional e cultura constituda.

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    os tradicionais cinco sentidos que nunca escapam da ao estruturantedos determinismos sociais , mas tambm o senso de necessidade e o

    senso de dever, o senso de direo e o senso de realidade, o senso deequilbrio e o senso de beleza, o senso comum e o senso do sagrado, osenso ttico e o senso de responsabilidade, o senso para os negcios e osenso de propriedade, o senso de humor e o senso do absurdo, o sensomoral e o senso prtico, e assim por diante. (Bourdieu, 1977, p. 124,grifo do autor).

    Bourdieu (1984, p. 99) sustenta essa fundamentao no corpo mes-

    mo discutindo o senso do gosto como operador cultural em sua anlisesocial da esttica, insistindo que ele inseparvel do gosto no sentido dacapacidade de discernir os sabores de comidas que implica numa prefernciapor algumas delas.

    O locusdo habitusde Bourdieu a conjuno entre as condies obje-tivas da vida e a totalidade das aspiraes e das prticas completamentecompatveis com tais condies. Condies objetivas no causam prticas,tampouco prticas determinam condies objetivas:

    O habitus a mediao universalizante que torna a prtica de um agenteindividual, sem razo explcita ou propsito significativo, sensata erazovel apesar de tudo. Essa parte das prticas que permanece obscu-ra aos olhos de seus prprios produtores o aspecto pelo qual elas soobjetivamente ajustadas a outras prticas e s estruturas cujo princpiode produo ele mesmo um produto. (Bourdieu, 1977, p. 79).

    Em outras palavras, o habitus, enquanto mediao universalizante, seinveste de dupla funo. Na sua relao com estruturas objetivas, o princ-pio gerador de prticas (Bourdieu, 1977, p. 77), enquanto na sua relao comum repertrio total de prticas sociais, o princpio unificador (Bourdieu,1977, p. 83).46 Com esse conceito, Bourdieu oferece uma anlise da prtica

    46 No acredito que a referncia de Bourdieu a um princpio gerativo implique uma buscapor uma gramtica profunda das prticas, como numa reminiscncia da lingstica de

    Chomsky. Na medida em que o princpio gerativo e unificador de Bourdieu o corpo

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    social enquanto necessidade transformada em virtude, e sua imagem da ativi-dade humana a agulha magntica de Leibniz que parece, de fato, apreciarvoltar-se em direo ao Norte (Bourdieu, 1977, p. 77; 1984, p. 175).

    Nesta seo, eu mostrei que o paradigma da corporeidade engloba osdistintos interesses empricos e propenses metodolgicas dos dois tericosinfluentes. Encontramos, assim, o aparente paradoxo de posies compat-veis com o paradigma da corporeidade, mas articuladas nos discursos meto-dologicamente incompatveis da fenomenologia e do que poderamos chamarde estruturalismo dialtico.47 natural, entretanto, que contradies emer-jam entre as tentativas incipientes de forjar um paradigma. No restantedeste captulo, eu elaborarei um paradigma no-dualista da corporeidadepara o estudo da cultura. Os conceitos de pr-objetivo e habitusguiaro aanlise no domnio emprico da experincia e prtica religiosas.

    Imagtico corporificado na cura ritual

    As prticas de cura que descrevo so as do cristianismo carismtico

    praticadas na Amrica do Norte contempornea. Essa religio essencial-mente uma forma de pentecostalismo, que desde o final dos anos 1950

    socialmente informado, ele deve ser considerado como dado num sentido existencial aoinvs de inato no sentido da instalao cognitiva. Bourdieu (1977, p. 10-30) incluiexplicitamente Chomsky em sua crtica da concepo objetivista da regra na teoria social elingstica. A distino crtica que o habituse suas disposies constitutivas so no-

    representacionais, ao contrrio do modelo objetivista e de suas regras constitutivas. Ao explicarprticas governadas por regras desconhecidas pelos agentes e, assim, fora de sua experincia,ele evita a falcia da regra que implicitamente coloca na conscincia dos agentes individuaisum conhecimento construdo contra aquela experincia (Bourdieu, 1977, p. 29).

    47 Sobre a relao entre Merleau-Ponty e o estruturalismo propriamente dito, veja Edie(1971). Boon (1982, p. 281) oferece uma breve mas inspirada anlise do paralelismoentre as tentativas mtuas de Lvi-Strauss e Merleau-Ponty de superar a dualidade sujeito-objeto promulgada por Sartre: Para Lvi-Strauss, totemismos institucionalizam relaesrecprocas objeto-objeto do ponto de vista do sistema de classificao totalizante (langue).Para Merleau-Ponty, pronomes, arte, etc., institucionalizam relaes recprocas sujeito-sujeito

    (artistas e pronomes vem objetos enquanto sujeitos) do ponto de vista da intersubjetividade.

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    introduziu um complexo de prticas, incluindo a cura pela f e o falar emlnguas, em denominaes crists j estabelecidas como a metodista, a an-glicana, e a catlica romana. Historicamente, pode-se dizer que o movi-mento originou-se na busca por estabilidade do perodo ps-Segunda GuerraMundial, acelerou e adquiriu adeptos mais jovens durante os distrbiossociais dos anos 1960, atingiu um apogeu de fervor apocalptico e apelopopular nos anos 1970 e acomodou-se num nicho socialmente conserva-dor mas teologicamente entusistico na ecologia religiosa norte-americanados anos 1980. Sua manifestao mais visvel est nos televangelistas quevo desde os Bakkersdo PTL (Praise the Lord) Club ao Roman CatholicMother Angelica.48 Menos conhecidos so os servios de cura conduzidospor leigos com dons espirituais, clrigos ou redes de comunidades intenci-onais, congregaes no-especificadas e pequenos grupos de orao sediadosem congregaes eclesisticas. Os participantes variam desde as classes m-dias baixas at as profissionais, e com exceo dos membros mais jovens dascomunidades intencionais carismticas, a faixa bsica de idade gira em tor-no da casa dos 50. A informao que apresento nesta seo inclui dois exem-plos de imagtico multissensorial49 em sesses de grupos de cura conduzidas

    por evangelistas carismticos famosos, e um de uma sesso privada de curaconduzida numa comunidade carismtica.

    Demnios e auto-objetificao

    A primeira sesso de cura conduzida pelo reverendo Derek Prince,uma figura de liderana na prtica da Libertao, ou expulso de espritosmalignos. Em geral, o reverendo Prince reza nomeando espritos malignos

    de diversos tipos, que ele ento manda sair de seus hospedeiros. Quando os

    48 Roman Catholic Mother Angelica: Freira Catlica Romana Madre Anglica. Praise the Lord:Louvemos ao Senhor (N. de T.).

    49 Eu evito o termo imagtico mental porque ele levanta a questo de nossas distinesproblemticas entre corpo e mente, porque ele tende a implicar um foco no imagticovisual ao invs de na integrao dos sentidos em processos de imagem (confira Ong, W.,1967 sobre o sensorium), e porque ele desqualifica a necessidade de examinar a relao de

    imagem e emoo.

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    espritos so expulsos das pessoas presentes na assemblia, eles produzemuma manifestao fsica como sinal de sua partida. Vamos primeiramenteolhar para a natureza dos espritos malignos no cristianismo carismticocontemporneo, com a dupla finalidade de fornecer um fundo etnogrficoe examinar como, ao se constiturem em objetos culturais, eles ilustram aimportncia do conceito de pr-objetivo em Merleau-Ponty.

    Se ns ignorarmos as implicaes metodolgicas da afirmao de quenossa percepo termina nos objetos, comearemos com o objeto j cons-titudo, o esprito maligno cristo. Ele pode ser descrito como um ser inte-ligente e no-material que irremediavelmente maligno, est sob o domniode Satans, e tem domiclio fixo no Inferno. Espritos malignos interagemcom humanos ao atorment-los, oprimi-los ou possu-los. Dada essa defi-nio cultural, poderia se esperar reconstruir uma demonologia semelhantes demonologias abstratas e especulativas da Idade Mdia, e descobrir umdiscurso de interioridade/exterioridade no qual demnios transpem os li-mites do corpo e so expelidos. De fato, referncias a espritos sendo ex-pulsos e a definio cultural de manifestaes fsicas como sinais dosespritos saindo do sustentao a uma salincia experiencial de interiori-

    dade/exterioridade, ainda que possa ser descritivamente to esclarecedor di-zer que eles esto sofrendo um ataque performtico. Contudo, esses sotodos momentos tardios no processo de objetificao cultural. As pessoasno percebem um demnio dentro de si, elas sentem um pensamento, com-portamento ou emoo especial fora de seu controle. o curador, especia-lista em objetificao cultural, que tipicamente discerne se o problema dosuplicante de origem demonaca ou no, e que ao ser confrontado comuma pessoa autodiagnosticada como possuda tende, por outro lado, a

    atribuir tais manifestaes a problemas emocionais.Para ilustrar essa demonologia na prtica, cito um relato editado de

    um informante que participou num servio de cura conduzido pelo reve-rendo Prince:

    E medida que alguns [dos demnios] saam [de seus hospedeiros hu-manos], alguns saam com um rugido. Alguns saam com um arroto.Alguns saam com um tossido assombroso ou engasgo ou giro de pesco-

    o para trs e para frente. Havia todo tipo de coisas estranhas e horrveis

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    [] Um bom nmero deles saiu com vmito. J que existem mais de150 tipos de espritos que foram identificados, [] talvez 20 deles sai-

    ro com vmitos. Dez deles sairo sibilando. Dois deles sairo se retor-cendo no cho como uma cobra. Cinco deles sairo girando os olhospara o alto da cabea. Todo esprito de feitiaria [] sai ali com umbarulho muito parecido com a gargalhada de uma hiena. No importa-va se era homem ou mulher, jovem ou velho, o que fosse [] Eles todossaram com a coisa idntica.Vou lhe contar a histria do que aconteceu comigo [] Ele lidou comgrupos inteiros [de espritos]. E ele chegou ao grupo de aberraes sexu-

    ais. Em algum ponto do caminho, ele lida com o esprito da masturba-o [] [Ele disse] Voc sabia que isso era pecado [] e mesmo assimvoc fez. Voc fez de propsito. Se voc absorveu um esprito, agora elese torna compulsivo e voc SENTE aquela compulso. Se voc catlicoou luterano ou episcopal voc pode ter confessado este pecado de tem-pos em tempos. Voc luta e voc no gosta e voc odeia isso e vocrenuncia a isso e isso ainda est com voc. Todos estes so sinais, o pacoteinteiro. Voc quase certamente est com um esprito. Qualquer um devocs que tem esse pacote em particular e acha que gostaria de ser alivi-

    ado do esprito, se levante.Ento nesse caso, eu levantei. E havia cerca de 15 ou 20 outras pessoas.Eu aposto que muitos outros deviam ter, mas [risadinhas] em todo caso,provavelmente uns 15 ou 20 de ns se levantaram [] Ele disse, Seuesprito nojento da masturbao, eu estou assumindo o controle sobrevoc em nome de Jesus e pelo poder do Seu precioso sangue, eu te ex-pulso em Seu santo nome. E todos, suas mos foram l para trs. Est-vamos de p. Ele havia pedido ao grupo para ficar em p e fizemos uma

    orao de Renncia e Arrependimento. Ento, eu estava de p e pratica-mente sem pensar em nada, eu no tinha idia do que estava para acon-tecer. As mos se ergueram assim, os braos at esta altura, e as mosforam alm do que eu alcanaria por conta prpria, bem para trs. Nodoeu. E havia um tipo de sensao de eletricidade, como um pequenochoque eltrico.Bem, ele no nos disse de antemo o que era de se esperar, mas o quehouve que todos fizeram a mesma coisa. Agora eu no sei o que elessentiram. Mas eu sei o que eu senti. Alguma coisa estava acontecendo

    aqui. Ento numa certa altura, tudo passou e minhas mos caram.

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    A importante distino para nossa discusso entre demnios comoobjetos culturais e suas manifestaes experienciais como auto-objetifica-es concretas nos participantes religiosos. Como objetos culturais, os de-mnios so, nas palavras de Irving Hallowell (1955, p. 87),

    no mais fictcios, num sentido psicolgico, do que o conceito de self.Conseqentemente [enquanto] objetos reificados culturalmente no am-biente comportamental [eles] podem ter funes que se mostrem direta-mente relacionadas s necessidades, motivaes e metas do sujeito.

    O papel dos demnios no ambiente comportamental dos cristos ca-rismticos de mo dupla. Enquanto sistema de representaes, a demono-logia que esse informante estima ter 150 entidades uma imagemespelhada do selfculturalmente ideal, representando o espectro de seus atri-butos negativos. Em termos de comportamento pragmtico, eles so seresinteligentes que podem ser encontrados na vida diria e podem afetar opensamento e o comportamento de uma pessoa.

    Contra esse fundo cultural, as manifestaes descritas acima podem

    ser entendidas como exemplos de processos corporificados da auto-objeti-ficao. O elemento pr-objetivo desse processo repousa no fato de queparticipantes, como o informante citado, experimentam essas manifesta-es como espontneas e sem contedo pr-ordenado. As manifestaesso atos originais de comunicao que, entretanto, tem um nmero limita-do de formas comuns porque elas emergem de um habituscompartilhado.Esse trao do pr-objetivo resumido por Merleau-Ponty (1962, p. 166):

    Anterior aos meios convencionais da expresso, os quais revelam meuspensamentos para os outros apenas porque, tanto para mim como paraeles, os significados j so providos para cada signo, e, nesse sentido, nodo lugar a qualquer comunicao genuna, devemos [] reconhecerum processo primrio de significao no qual a coisa expressada noexiste separadamente da expresso, e no qual os prprios signos indu-zem sua significncia externamente [] Essa significncia encarnada ofenmeno central do qual corpo e mente, signo e significncia so mo-

    mentos abstratos.

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    Eu sugeriria que a coisa expressada que no existe separadamente daexpresso nesse caso no o objeto cultural, o esprito maligno, pois odiscurso de espritos um exemplo do que Merleau-Ponty quer dizer pormeio convencional de expresso. O que expressado a transgresso ou aultrapassagem de um limiar de tolerncia definido pela intensidade, genera-lizao, durao ou freqncia de aflies. H excesso de um pensamento,comportamento ou emoo particular. A autopercepo dessa transgressoj pode ter acontecido e a auto-objetificao pode ter ocorrido pela adoodo idioma demonaco convencional. Contudo, o momento expressivo queconstitui essa forma de auto-objetificao como cura a imagem corporifi-cada que acompanha a expulso do esprito. Essa imagem tem uma signifi-cao mltipla: Eu no tenho controle sobre isso isso tem controle sobremim eu estou sendo libertado.

    Essa interpretao desafia a descrio etnogrfica comum de espritosmalignos na linguagem de interioridade/exterioridade, enquanto transgres-sores das fronteiras do corpo. Numa cura crist carismtica, a linguagem docontrole/libertao no parece estar menos prxima da experincia. O cura-dor frisa a libertao da sujeio ao esprito maligno sobre a expulso do

    esprito que invade e ocupa a pessoa. O porqu disso compreensvel quan-do lembramos novamente que o pr-objetivo no pr-cultural. O contro-le (dos sentimentos, aes, pensamentos, curso de vida, sade, ocupao,relacionamentos de algum) um tema difuso no contexto cultural norte-americano desse sistema de cura. Crawford (1984), por exemplo, ofereceuma anlise ideolgica da sade como um smbolo que condensa metfo-ras de autocontrole e alvio de presses. Um grau substancial de consistnciacultural evidente com a formulao no sistema de cura carismtico de

    problemas como a perda de controle para influncia demonaca, a cura comolibertao do jugo dessa influncia e a sade como entrega para a vontade deDeus, cuja fora ajuda a restaurar o autocontrole.

    Cabe um breve aparte metodolgico para enfatizar que a anlise noparadigma da corporeidade no lida diretamente com a transgresso dasfronteiras corporais como a descrio da ao demonaca. Tal descrio cons-taria como sendo objetivista, no sentido que ela assume que o demnio j objetificado, j um meio convencional de expresso. Trazer para um pri-

    meiro plano a metfora um tanto foucaultiana da subjugao aponta para

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    um estado pr-objetivo concretamente corporificado dos aflitos mais doque ao invasiva do objeto demonaco expressa convencionalmente. Ametfora da subjugao invoca simultaneamente tanto uma condio cor-poral/material quanto uma condio espiritual/psicolgica enfocada pela cura.

    A anlise do controle e da libertao nos ajuda tambm a entenderalguns tpicos da indeterminao experiencial no trato com espritos ma-lignos. H dois locida percepo pr-objetiva de demnios enquanto emo-o, pensamento ou comportamento que so indeterminados na prtica.Primeiro, o limiar do controle no qual uma emoo como raiva se tornao esprito maligno da Raiva, e a subseqente determinao do grau de aqui-sio que o esprito tem sobre a vida de uma pessoa em ordem de severi-dade de assdio opresso, possesso. Enquanto os graus de controle soassim objetivamente categorizados, no h critrios objetivos para a suadeterminao na prtica, j que a prtica opera no nvel da intersubjetivida-de pr-objetiva (empatia e intuio); curadores no diagnosticam, masdiscernem.

    Segundo, o limiar de generalizao, onde o mal-estar do sofredor expresso em mltiplas caractersticas retratadas como grupos de espritos

    relacionados. Novamente, embora esteja estabelecido na prtica da cura queos conjuntos de espritos so hierarquicamente organizados em torno deum esprito administrador ou raiz e que alguns espritos tendem a apare-cer conjuntamente, na cura com uma nica pessoa qualquer nmero deespritos pode emergir. Em princpio, a identificao de espritos pode seruma excurso interminvel por todo um domnio de possveis nomes deespritos. Novamente, esse domnio culturalmente predeterminado, e tantoa descoberta espontnea de uma srie de espritos tipicamente relacionados

    como a sua salincia experiencial emprica para o suplicante podem ser enten-didas em termos do modo com que disposies so orquestradas no habitus.

    Essa orquestrao tambm a base para a coordenao aparentementeespontnea de imagens cinestsicas culturalmente definidas como manifes-taes de tipos distintos de espritos malignos na sesso narrada acima: vo-mitar, contorcer-se no cho, sibilar, rolar os olhos para o topo da cabea.Dado o fato etnogrfico de que espritos malignos saindo de uma pessoanormalmente produzem uma manifestao fsica como um sinal de sua

    partida, o qual podemos explicar em termos puramente culturais ou con-

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    vencionais, como vamos explicar a associao regularizada de espritos espe-cficos com sinais especficos?

    Duas instncias so narradas com suficiente detalhe para comentrio.O fato de que o esprito do feitio sai com a estridncia de uma hiena deveser compreendido com respeito definio cultural da bruxaria como umaprtica oculta conectada com Satans, e, portanto, extremamente maligna.O grito horripilante um componente somtico profundamente enraizadona experincia e no simbolismo do mal na Amrica do Norte da a cone-xo aparentemente natural entre o grito e o esprito. No mbito de umgrupo como o descrito pelo informante, faz pouca diferena se o esprito

    identificado primeiro e ento emerge com um grito, ou se o grito emerge esubseqentemente identificado como o sinal do esprito; em ambos oscasos ele exemplifica a necessidade arbitrria (Bourdieu, 1977) do mal nohabituscristo carismtico.

    A experincia do narrador com o esprito da masturbao tambm sepresta a uma tal interpretao. Comeamos com a definio cultural damasturbao como um comportamento fortemente proscrito mas com-pulsivo (portanto demonaco). O gestual coletivo espontneo dos braos

    no ar pode ser entendido como um poderoso no tocar enfatizado pelaforte flexo para trs das mos. O fato de que esta flexo no di, emboraela seja maior do que algum conseguiria realizar naturalmente, consis-tente com o conceito de libertao de um cativeiro em contraste com o depunio pelo pecado. Da mesma forma, a sensao do pequeno choqueeltrico entendida no como um choque punitivo, mas como a corporei-dade de um poder espiritual. No est em questo aqui se a maioria doshomens estava imitando um ou dois outros, j que a impresso de uma

    espontaneidade coletiva indica a imediata apreenso intuitiva do significadoimplcito dos gestos por todos eles.

    Imagem, emoo e sntese corporal

    O segundo evento de cura, descrito da minha prpria observao, foiconduzido no contexto de uma comunidade intencional carismtica catli-ca romana. A sesso foi conduzida por dois curadores evangelistas catlicosvisitantes. Esses curadores tinham adotado recentemente o estilo atualmen-te popular do reverendo John Wimber, que, em contraste com a nfase do

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    reverendo Prince nos espritos malignos, evoca a diversidade de sinais emilagres naquilo que ele chama de evangelismo poderoso. Os sinais emilagres so compreendidos como manifestaes do poder divino destina-das a promover a converso dos descrentes e a ampliar a f dos crentes.Alm da cura pela f de males fsicos, emocionais e demonacos, eles inclu-em uma diversidade de imagens multissensoriais, emoes e manifestaessomticas que indicam o fluxo do poder divino nos e entre os participantes.Elementos comuns do repertrio so o rpido tremular ou vibrar de mos ebraos, e sensaes somticas como leveza ou peso, poder ou amor fluindopelo corpo, calor e formigamento. Risos espontneos ou lgrimas podem se

    espalhar contagiosamente atravs de ondas pela congregao. Muitos partici-pantes descansam no Esprito e experimentam uma dissociao motora naqual uma pessoa arrebatada pelo poder do Esprito Santo e cai num semi-desmaio, geralmente experienciado como um relaxante e revigorante mo-mento na presena de Deus. Tambm comum a palavra de conhecimento,uma forma de revelao entendida como um dom divino de conhecimentosobre pessoas ou situaes no adquirido por qualquer canal de comunicaohumana, mas vivenciado como um pensamento ou imagem espontneos.

    O evento que observei foi uma conferncia de cura de dois dias, para aqual os lderes trouxeram sua prpria equipe de ministros curadores. A con-ferncia consistia em perodos alternados de orao coletiva, cano religio-sa, orao de cura e palestras. Era enfatizado que a cura e a salvao soquase sinnimas, e que os participantes deveriam esperar que a cura ocor-resse ao longo das sesses, no apenas durante os momentos distintos emque os ministros de cura estavam rezando com as mos sobre eles. Os lde-res afirmaram que havia uma diferena entre um encontro destinado ao

    culto e um para a experincia do poder divino. Muitas coisas acontecero,eles disseram, e os participantes deveriam levantar as suas antenas espiritu-ais para receber o poder. Durante os procedimentos, um deles suplicou,Mais poder, Pai; libere mais poder.50

    50 Este no o lugar para discutir conceitos culturais de poder, mas pode ser dito que oconceito aqui evocado tem muito mais em comum com noes etnologicamente familiaresde poder espiritual tais como mana, orenda, ou manitou do que com as noes

    etnopsicolgicas norte-americanas atuais de empoderamento pessoal.

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    Na primeira fase da orao, os lderes receberam inspirao atravs dapalavra de conhecimento de que Deus queria curar as pessoas com proble-mas nas costas, respiratrios, artrite, cartilagem ou tendinite. Para tais pes-soas era pedido que viessem frente para a imposio de mos e as oraesda experiente equipe de orao. Na fase seguinte, todos eram convidados aparticipar, alternando papis como ministros de cura e pessoas recebendooraes. Os lderes postularam que algumas pessoas na audincia estavamexperimentando um peso no peito e na cabea, uma sensao de calor nasfaces ou nos lbios, ou um formigamento nas mos. Pediam a tais pessoasque levantassem as palmas das mos para cima numa postura de orao paraidentificarem-se, e aqueles sua volta eram solicitados a pr as mos sobreelas em orao para fortalecer a manifestao do poder divino e espalhar opoder entre eles. Participantes eram convidados a experimentar a palavra deconhecimento eles mesmos, e eram emparelhados para rezar com quemrespondesse ao problema que eles identificaram.

    Em contraste com o evento previamente narrado com o reverendoPrince, o imagtico multissensrio neste caso uma manifestao no delibertao do mal, mas de seu inverso cultural, incorporao do poder divi-no. A enumerao pelo lder do grupo dos acompanhamentos fsicos dopoder divino que alguns participantes experimentariam (peso, calor, formi-gamento) recapitula um repertrio adquirido de sua prpria experincia ede relatos de participantes em eventos similares. Essas imagens somticasesto sendo aqui inculcadas como techniques du corpsque corporificarodisposies caractersticas do ambiente religioso. Rir, chorar e cair tambmpodem ser objetificados como sagrados se a sua ocorrncia espontnea fortematizada como fora do comum, a outridade,51 que de acordo com Eli-ade (1958) o critrio formal do sagrado.

    Por outro lado, a enumerao inspirada do lder de indisposies fsi-cas similar identificao do reverendo Prince de espritos malignos nodomnio psicolgico de emoes negativas, pensamentos e comportamen-tos. Num grupo de duzentos, inspiraes que discriminam enfermidades

    51 Other-nessno original (N. de T.).

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    culturalmente comuns, ou enfermidades de sistemas orgnicos particulares,tm chances estatsticas de obter resposta. Isso reforado quando o conhe-cimento culturalmente partilhado do corpo e suas indisposies explora-do convidando participantes a experimentarem inspiraes similares, demodo que a tcnica opere comunalmente e no de forma unidirecional doslderes aos participantes. O fato de que esse conhecimento no puramenteconceitual evidenciado pela apresentao dessas revelaes numa variedadede modos sensoriais: participantes no apenas evocam uma listagem cogni-tiva de doenas, como podem tambm visualizar uma parte do corpo, ouexperimentar a dor em seu prprio corpo. Tampouco h um mapeamen-to cognitivo, seja de uma lista de doenas ou de partes do corpo, paraaquilo que a gente sente que est bem. As inspiraes emergem esponta-neamente, na medida em que os participantes tm acesso imediato ao co-nhecimento corporal inculcado como disposies culturalmente partilhadas.

    De que seja esta uma forma estruturada de conhecimento, contudo, afirmada pela possibilidade de uma inspirao mal elaborada no dar certo.Durante a sesso, cada participante que tinha uma inspirao devia ser pro-

    curado pelas pessoas que reconheciam seu prprio problema, e elas rezariamjuntas por tal problema. Os problemas enumerados eram especficos e loca-lizados, suficientemente especficos para parecerem especiais, mas no espe-cficos o bastante para serem improvveis: a rea do joelho esquerdo at aponta da coxa, dor no ouvido esquerdo, inflamao no ouvido direito,surdez no ouvido direito, dores agudas na parte de baixo das costas, proble-mas de alinhamento com os tornozelos, viso (especialmente olho direito),inchao prximo ao lado direito da garganta, artrite, fisgada no tendo es-

    querdo, hemorridas ruins, gravidez impossibilitada por toro dos ovrios,perda de cabelo por causa de eczema no couro cabeludo, angstia pela perdade uma criana, hrnia, fumo, acidez crnica do estmago, necessidade deaconselhamento. Todos que articularam um problema pareciam ter recebi-do respostas da audincia, com exceo de uma mulher meio obesa e com aaparncia de no estar se ajustando bem aos procedimentos coletivos. Eladisse que algum estava sofrendo de uma dor no pulmo direito, e suainspirao demasiadamente especfica caiu no vazio. Finalmente, uma jo-

    vem aproximou-se dela para rezar, admitindo para mim, mais tarde, que ela

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    no tinha dor no pulmo. Ela foi motivada, em vez disso, por uma sensa-o de que a mulher cuja inspirao caiu no vazio era aquela identificada poruma outra palavra de conhecimento como necessitada de aconselhamento.J que a mulher mal ajustada aparentemente no podia reconhecer tal ne-cessidade, e j que a prpria mulher mais jovem estava treinando para serconselheira, esta ltima tomou a iniciativa de se apresentar, prevenindo odesapontamento e oferecendo uma interao de apoio.

    O jogo entre modalidades sensoriais, interao social e atribuio designificado ilustrado pela experincia de uma outra pessoa que pude acom-panhar durante a sesso. Ele tinha 30 anos de idade, era casado e trabalhavacomo assistente da gerncia de uma loja. O episdio ocorreu depois de umperodo de orao de cura guiada durante o qual um dos temas do lder eraa necessidade de se curar das experincias de rejeio. O homem estava rece-bendo a orao com imposio de mos de um amigo que o acompanhavae de um membro da equipe de cura; a mo livre deste ltimo se agitavacontinuamente durante a reza. O jovem comeou a rir, e continuou porvrios minutos at que um dos lderes reagiu levando os trs para o fundodo saguo, onde a orao podia seguir com maior privacidade. Ele pergun-

    tou ao jovem o que estava acontecendo, agachando-se ao lado dele enquan-to ele e o amigo sentavam e o membro da equipe de cura ficava de p dolado deles. O homem disse que tinha respondido ao tema da rejeio, edepois ao da passividade, com a imagem de um riacho correndo sobre pe-dras atravs de um muro quebrado. Ao surgir esta imagem ele sentiu alegriae comeou a rir. Ele declarou ao lder que aquilo tinha sido um duplo alviopara ele, tanto pelo lado de no estar sendo aceito por outros como pelo deque normalmente ele apenas ria por dentro, e de repente foi capaz de rir

    abertamente. Seu amigo ento relatou a imagem de uma mquina de lavarroupas em ao, o que foi entendido como uma confirmao divina deque a experincia era de limpeza e libertao da emoo negativa. O lder dogrupo de atendimento resumiu dizendo que Deus queria continuar esseprocesso, mas avisando que o jovem seria testado. Esse perodo de acom-panhamento durou menos de dez minutos.

    Nesse breve exemplo encontramos a invocao de uma influncia ne-gativa culturalmente comum, levantada pelo jovem atravs de um imagti-

    co ao mesmo tempo visual e cinestsico. Em contraste com a compulso

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    objetiva evocada ao nomear o demnio em nosso exemplo anterior, o ldernomeia um tema afetivo indeterminado. A significao religiosa no quetodos os participantes respondem a esse tema do mesmo modo, mas queDeus fala a cada indivduo de maneira a concordar com a experincia dapessoa. A indeterminao de um tema como a rejeio no o mesmo quea ambigidade, no sentido da aplicabilidade a qualquer nmero de situa-es diversas. Nesse caso, a rejeio indeterminada na medida em que apessoa pode se sentir rejeitada por causa de um evento particular, pode estartemperamentalmente disposta a se sentir rejeitada, ou pode ser oprimidapor um esprito maligno de Rejeio. A cura no muda o comportamentode rejeio dos outros exceto na medida em que eles respondem diferente-mente ao comportamento da prpria pessoa curada; da a relevncia dadeclarao do lder de que o homem ser testado no futuro. Para o gerentede loja, no so os casos de rejeio que so tratados, mas o sentimento deser rejeitado que substitudo pelo sentimento de jbilo.

    A concretude da experincia repousa na sntese corprea da visualiza-o (riacho), afeto (alegria) e cinestesia (risadas). Essas expresses, esponta-neamente coordenadas no habitus norte-americano, no representam e

    expressam uma experincia interna, mas objetificam e constituem uma curacorporificada. O corpo socialmente informado lida com a emoo negativaem imagens de atravessamento de uma fronteira (fluxo de gua atravessan-do um muro de pedra quebrado), alvio de uma represso (capacidade de rirabertamente), limpeza dos efeitos marcantes da emoo negativa (gua seagitando numa mquina de lavar). Alm disso, o que vemos uma varianteparticularmente masculina do habitus, respondendo combinao emocio-nal de rejeio e passividade. Isso exclui a experincia tpica para as mulheres

    norte-americanas em contextos de devoo, do tipo: Eu no me sinto maisrejeitada porque me sinto amada por Deus. Enquanto a variante femininatradicional substitui a rejeio pela aceitao (freqentemente passiva naimagem somtica de ser segurada e nutrida), esse exemplo masculino a subs-titui por alegria (ativa na capacidade de rir alto).

    Como no caso do gracejo, que como Bourdieu (1977, p. 79) assinalamuitas vezes surpreende tanto o seu autor quanto a audincia, as imagensreligiosas espontneas invocam aquela parte das prticas que permanece

    obscura aos olhos de seus prprios produtores, o reino da possibilidade

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    oculta no qual as prticas so objetivamente ajustadas a outras prticas e sestruturas cujo princpio de produo ele mesmo o produto. Atravsdessas imagens corporificadas, as disposies do habitusso manifestadasem comportamento ritual. Por serem compartilhadas em um nvel abaixodo consciente, elas so inevitavelmente confundidas, e o princpio de suaproduo identificado como Deus e no como o corpo socialmente infor-mado. Esta concluso deve tanto ser diferenciada da abstrao funcionalistade Durkheim do sagrado como auto-afirmao da moralidade social e dasolidariedade quanto de uma aceitao encarnada de que Deus habita ocorpo socialmente informado. Em vez disso, ela sugere que o corpo vivido um princpio irredutvel, a base existencial da cultura e do sagrado.

    O entrelaamento, a mimese e a intersubjetividade

    O terceiro exemplo um balano retrospectivo que obtive numa en-trevista com um casal que liderava uma comunidade carismtica de crentes,mas que tambm tinha experincia no ministrio da cura. Ele enfatiza tantoa possibilidade como a natureza impositiva do imagtico multissensrio,

    ou seja, imagens complexas em mais de uma modalidade sensorial ao mes-mo tempo:

    HL: Uma vez eu estava orando sobre um homem [para curar]. Ele tinhaum tumor no crebro e o doutor o mandou para casa e disse, Esquea.Acabou. E eu tinha uma imagem muito forte do tumor encolhendo.Quando ele saiu o tumor ainda estava l, veja s, mas eu senti, quandoeu tinha minha mo sobre a cabea dele, eu senti como se fosse uma

    bola na mo e ela foi ficando cada vez menor. E eu apenas, no s atravsdo sensorial, mas atravs de uma imagem na minha mente, eu senti queestava encolhendo. Bem, eu acho que foi uma ou duas semanas maistarde, e [ele voltou e] disse que os mdicos simplesmente no sabiam oque havia acontecido. Sumiu. No estava mais l.TC: Espere um pouco, voc sentiu com a sua mo, encolhendo tambm.HL: No estava encolhendo na realidade, o tumor ainda estava ali [den-tro da cabea dele]. Mas eu o senti na minha mo. Eu o senti na minhamo encolhendo. Mas no foi na realidade. E eu tinha, e ento eu tinha

    uma imagem dele encolhendo, tambm, na minha mente.

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    TC: Estava completamente dentro da cabea dele, ou voc podia sentirde fora?

    HL: , ele tinha um calombo na cabea. Eu senti de fato o calombo. Eeu pressenti muito fortemente que ele iria ser curado, e eu lembro departilhar isso com ele [i.e., falar com ele sobre isso]. E ele voltou e tinhasumido, sumido completamente. Os mdicos ficaram perplexos.

    Aqui est um curador lutando para desembaralhar o emaranhado depercepes sensoriais (sentindo um calombo) do imagtico nas modalida-des tteis e visuais (uma imagem complexa do tumor encolhendo). Esse

    exemplo reala a ntima conexo entre toque e viso de uma forma queapela diretamente para a noo de corporeidade como a base existencial dacultura e do sujeito. Certamente, como Walter Ong (1967, p. 1) escreve:os sentidos tteis combinam com a viso para registrar profundidade edistncia quando estas se apresentam no campo visual, mas o que elesregistram quando se apresentam no campo imagtico? Michael Taussig (1992,p. 144), elaborando as idias de Walter Benjamin sobre dadasmo, filme earquitetura, tambm sugere que tatilidade, constituindo um hbito, exerce

    um impacto decisivo na recepo ptica. Para ele, contudo, esta pticattil estreitamente ligada mimese, que implicaambasa cpia e a cone-xo substancial, ambasa replicao visual e a transferncia material (Taus-sig, 1992, p. 145, grifo do autor).

    No caso do curador carismtico a imagem mimtica no mera repre-sentao, mas possui uma materialidade enraizada na experincia corporifi-cada que ao mesmo tempo constitutiva do poder divino e evidncia deeficcia. Essa materialidade ainda mais instigante porque arregimenta em

    performanceritual o entrelaamento existencial do ttil e do visual descritopor Merleau-Ponty (1968, p. 143):

    Existe um crculo do tocado e o tocante, o tocado pega o tocante; h umcrculo do visvel e o vidente, ao vidente no falta existncia visvel; hat mesmo uma inscrio do tocante no visvel, do vidente no tangvel e o reverso; h finalmente uma propagao dessas mudanas para todosos corpos do mesmo tipo e do mesmo Estilo que eu vejo e toco e isso

    por virtude da fisso fundamental ou segregao do senciente e do sen-

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    svel que, lateralmente, faz os rgos do meu corpo se comunicarem eencontra transitividade de um corpo para outro.

    A riqueza existencial capturada nessa passagem de fato uma caracte-rstica da vida diria como existncia corporificada. O exemplo da curaritual performaticamente exagerado, mas pode ser apenas atravs de exem-plos assim to vvidos que as intuies sobre a corporeidade podem come-ar a ser captadas e elaboradas. Tais exemplos podem levar a uma clarificaono apenas da constituio intersensorial (nesse caso em relao experin-cia reveladora) da sntese corporal atravs da imaginao, mas a constituio

    imagtica da intersubjetividade (nesse caso entre curador e paciente) atravsda mimese.

    Corpo e fala: qual tipo de fala falar em lnguas?

    Se para corporeidade atingir o statusde um paradigma, ela deveriapermitir a reinterpretao de informaes e problemas j analisados por

    outras perspectivas; e se para isso acontecer de forma impactante, deveriaser possvel at mesmo construir uma abordagem corporificada da lingua-gem, tipicamente domnio da lingstica, da semitica e das anlises textu-ais. Com essa agenda, eu retorno ao problema da glossolalia (ou falar emlnguas) como fenmeno expressivo e cultural. A glossolalia pentecostal(veja May, 1956 sobre glossolalia em outras tradies) uma forma deelocuo ritual caracterizada pela falta de um componente semntico. As-sim, todas as slabas so slabas sem sentido. Contudo, os carismticos

    contemporneos que falam em lnguas podem desenvolver distintos pa-dres sinttico-fonolgicos, e alguns podem ter mais de uma linguagemde orao glossollica, usadas em diferentes situaes e com diferentes in-tenes. Alm disso, eles acreditam que , por vezes, possvel sua vocaliza-o incompreensvel ser de fato uma linguagem natural (xenoglossia). Adespeito de sua indeterminao semntica e variabilidade sinttico-fonol-gica, a glossolalia carrega um significado global como uma forma inspiradade louvar a Deus, e tambm pode ser utilizada como uma prece profunda-

    mente vivenciada rogando por interveno ou orientao divinas. s vezes

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    ela chega a ser compreendida como a elocuo de uma mensagem inspiradaou profecia divina. Ela pode ser falada ou entoada de improviso, e pode serusada na devoo privada ou em um ritual coletivo. um princpio doutri-nrio que os poderes expressivos da glossolalia transcendem as inadequaesdas lnguas naturais (veja Csordas, 1997).

    Semiose e corporeidade na constituio gestual do sujeito

    Quando comecei a estudar linguagem ritual pela primeira vez, a glos-solalia pentecostal estava sendo examinada de trs maneiras: como um fe-

    nmeno do transe ou estado alterado de conscincia (Goodman, 1972),como um mecanismo de vinculao a um movimento religioso perifrico(Gerlach e Hine, 1970), ou como um ato discursivo ritual numa comuni-dade de fala religiosa (Samarin, 1972). Cada uma dessas posies nos ajudaa compreender o fenmeno, mas nenhuma delas exaure o significado cultu-ral da glossolalia como uma forma de entoao que e ao mesmo tempono linguagem. A questo tornou-se para mim no qual a funo socialque a glossolalia desempenha no comprometimento religioso ou como ato

    discursivo ritual, nem de quais estados mentais ela acompanhada, mas oque o uso ritual da glossolalia pode nos dizer sobre a linguagem, a cultura,o sujeito e o sagrado.

    No meu ponto de vista, os dois fatores-chave eram que a glossolaliatomava essa forma inarticulada ou sem sentido e que seus porta-vozes viama lngua verncula como inadequada para a comunicao com o divino. Aelocuo glossollica parece assim desafiar os cnones da expressividade einteligibilidade vernacular, pondo em questo desse modo as convenes de

    verdade, lgica e autoridade. O fato de que a glossolalia tem esse potencialpara o desafio e a crtica est implcito nos esforos do pentecostalismocontemporneo para construir o reino de Deus na terra. Isso fica ainda maisclaro no relato de Field, K. (1982) da criminalizao de tais falas comosubversivas pelas autoridades coloniais britnicas aps a Primeira GuerraMundial durante um movimento de Torre de Vigia na Zmbia (ento Ro-dsia do Norte). Na ausncia da violncia de fato, de qualquer outraforma de atuao poltica por parte da populao subjugada, as autorida-

    des estavam extremamente temerosas e o falar em lnguas tornou-se o foco

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    de sua campanha de represso.52 Por uma avaliao semitica, portanto, aglossolalia rompe o mundo de significado humano, como uma cunha abrin-do caminho fora pelo discurso e criando a possibilidade de mudana cultu-ral criativa, dissolvendo algumas estruturas para facilitar a emergncia de outras.

    O potencial criativo na glossolalia est no fato fenomenolgico de queela inarticulada, e portanto ameaadora, apenas para no-participantes. Omais interessante sobre a glossolalia ela ser mais do que uma dramatizaoda perda ps-bablica de uma lngua unificada. Pelo contrrio, falar em ln-guas experienciado como uma redeno da lucidez pr-bablica (Samarin,1979), pois apesar da existncia de uma glosa distintamente discernvel, osignificado global da elocuo glossollica pode ser apreendido imediatamente.

    A interpretao semitica no incorreta, mas luz adicional lanadasobre o potencial criativo da imediaticidade da glossolalia quando ela vistacomo um fenmeno da corporeidade. Merleau-Ponty (1962) v na raiz dafala um gesto verbal com significado imanente, ao contrrio de uma noode fala como representao de pensamento. Nessa viso, fala e pensamentoso coextensivos, e ns possumos as palavras em termos de seu estilo arti-culatrio e acstico como um dos usos possveis de nossos corpos. Fala no

    expressa nem representa pensamento, j que pensamento na sua maiorparte incipiente at ser pronunciado (ou escrito). Em vez disso, a fala umato ou gesto fontico no qual se adota uma posio existencial no mundo.Seguir essa linha de raciocnio no significa que devamos tratar a glossolaliaapenas como um gesto, pois devemos admitir sua realidade fenomenolgi-caenquanto linguagem para seus usurios. Eu argumentaria, com Merleau-Ponty, que toda linguagem possui esse significado existencial ou gestual, eque a glossolalia, por sua caracterstica formal de eliminar o nvel semntico

    da estrutura lingstica, reala precisamente a realidade existencial de corposinteligentes habitando um mundo repleto de significao. Ao atuar na ca-

    52 A narrativa de Field pode ser comparada com a proibio dos tambores entre escravosafricanos nos Estados Unidos pr-Guerra Civil. Aqui havia uma situao onde a grandeameaa no era explicitamente lingstica, mas semanticamente era uma forma mais completade comunicao corporificada na medida em que verdadeiras mensagens podem ser enviadaspor tambores falantes. Da perspectiva dos donos de escravos o tamborilar era, ao mesmo

    tempo, ininteligvel e uma ameaa concreta ordem social.

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    racterstica gestual do fato lingstico, o falar em lnguas uma declaraoritual de que os seus oradores moram em um mundo sagrado, j que o domda linguagem ritual uma ddiva de Deus. Arrancar a dimenso semnticada glossolalia no provoca uma ausncia, mas antes o arredamento de umacortina discursiva para revelar os fundamentos da linguagem na vida natu-ral, enquanto ato corporal. A glossolalia revela a linguagem como encarna-da, e esse fato existencial homlogo ao significado religioso do Mundofeito Carne, da unidade do humano e do divino.

    A experincia de glossolalistas contemporneos d apoio a essa posi-o. Uma prtica carismtica comum falar em lnguas para se abrir orien-tao divina. As inspiraes tomam freqentemente a forma de imagens,mas tambm incluem verbalizaes plenamente formadas que parecememergir espontaneamente. Aqui eu sugeriria que, da mesma forma que afala vernacular facilita e a prpria corporificao do pensamento verbal, aglossolalia facilita e a corporificao do pensamento no-verbal. A falavernacular colocar em palavras; a fala glossollica colocar em ima-gens. Na glossolalia, a experincia fsica da fala (parole) oferece um contra-ponto experincia intelectual da linguagem (langue). Eu no diria que

    corpo e mente se fundem na elocuo glossollica, mas que a elocuo se dnum momento fenomenologicamente anterior distino entre corpo emente, uma distino que parcialmente contingente no poder da lingua-gem natural de constituir objetos. Os processos pr-objetivos do selfemer-gem, e o que percebido inclui atributos incipientes do self, dos outros, etambm situaes e o que a psicanlise chamaria de contedos do inconsci-ente. Os resultados no se mantm incipientes, contudo, mas so tipica-mente apropriados na linguagem discursiva. O fato de os carismticos

    geralmente oscilarem entre a glossolalia e o vernculo e de algumas dasinspiraes aparentemente espontneas emergirem em forma verbal suge-re que falar em lnguas serve ao processo cultural de auto-objetificao e no simplesmente um estado onrico de conscincia meditativamente esvaziada.53

    53 A linguagem cultural da auto-objetificao aqui prefervel linguagem psicanaltica deregresso a servio do ego (Kris, 1952), porque a ltima est menos em sintonia com o

    tipo de ego nesse caso, constitudo em termos religiosos, o que est em questo.

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    Linguagem, expresso emocional e gestual so de um mesmo conjun-to como superposies de um mundo humano num mundo natural oubiolgico. Por causa de um gnio para a ambigidade que pode servir paradefinir o homem []. O comportamento cria significados que so trans-cendentes em relao ao aparato anatmico, e ainda assim imanentes con-duta como tal, j que se comunica e compreendido. (Merleau-Ponty,1962, p. 189). Assim, um sorriso para os americanos e para os japoneses sebaseia no mesmo aparato anatmico, mas o transcende ao ser apropriadoou tematizado num caso como amizade e noutro como raiva (Ekman,1982). Na linguagem, tambm, essa transcendncia um engajamento es-pontneo com outros e um locusde criatividade cultural, pois a fala otransbordar de nossa existncia sobre o ente natural (Merleau-Ponty, 1962,p. 197), vale dizer, de nossa existncia enquanto pessoas para alm de merosseres como objetos ou coisas.

    Dessas duas maneiras (engajamento espontneo e criatividade cultu-ral), a ausncia do componente semntico na glossolalia novamente revela osignificado gestual da linguagem, de modo que o sagrado torna-se concretona experincia corporificada. Com referncia ao engajamento humano, e

    em comparao com o paciente com leso no crebro que nunca sente anecessidade de falar ou para quem a experincia nunca sugere um questio-namento ou convida ao improviso, Merleau-Ponty (1962, p. 196) citaGoldstein: No momento em que o homem usa a linguagem para estabe-lecer uma relao viva com ele prprio ou com seus semelhantes, a lingua-gem deixa de ser um instrumento, deixa de ser um meio; passa a ser umamanifestao, uma revelao da natureza ntima e do vnculo psquico quenos une ao mundo e aos nossos. Mas este elemento de communitasna

    elocuo lingstica eclipsado pelo fato de que, uma vez destroado osilncio primordial por um ato de expresso, um mundo lingstico e cul-tural constitudo. A fala se desenvolve e irrompe em linguagens constitu-das, a palavra em curso se torna a palavra j dita, e a transcendncia ocorresomente em atos de autntica expresso como os de escritores, artistas efilsofos. Qual forma melhor haveria de maximizar o elemento gestual decommunitas, e que melhor forma de prevenir a petrificao de paroleemlanguedo que falar em lnguas, sempre um puro ato de expresso e nunca

    sujeito codificao. Isso nos leva muito alm do escopo da anlise semi-

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    tica, que baseamos na falta de um componente semntico da glossolalia eno seu conseqente e claro desafio aos cnones da inteligibilidade. Pareceque a glossolalia oferece no apenas uma crtica da linguagem, mas umaassero positiva sobre a expressividade, sendo sua fora crtica realada pelafora moral de sua reivindicao ser pura comunicao, incapaz de enunciarquaisquer palavras erradas.

    O aspecto totalizante da glossolalia no impede a possibilidade acimaobservada dos glossolalistas terem mais de uma configurao fontica sint-tica ou glosa, usadas em diferentes situaes e comportando diferentes va-lncias expressivas e emocionais. Podemos perceber isso como umacontradio, ou como um dos frutos da indeterminao e do gnio paraambigidade. Contudo, a multiplicidade de lnguas reverbera com a su-gesto de Merleau-Ponty de que a forma verbal pode no ser to arbitrriaquanto a teoria lingstica a teria considerado. Ele sugere que as estruturasfonticas de vrias lnguas constituem vrios modos para o corpo humanocantar as glrias do mundo e em ltimo recurso viv-las (Merleau-Ponty,1962, p. 187). Da perspectiva da corporeidade, portanto, compreensvelque a glossolalia adapte seus contornos fonticos aos contornos afetivos dediferentes situaes; e numa validao inesperada da metfora de Merleau-Ponty, eu noto outra vez que a glossolalia pentecostal consistentementetematizada como orao de glorificao, e que freqentemente entoadaou salmodiada com linhas meldicas e harmonias improvisadas.

    Aperformancemusical de lnguas no ritual carismtico sugere que suaestrutura temporal pode ser mais prxima da msica do que da linguagem,e de fato foi tecida uma analogia entre ela e o scat singingno jazz. A principaldiferena que tal scat singing uma forma de msica instrumental na quala voz o instrumento, enquanto a glossolalia insiste em ser um discursocantado. Mesmo quando improvisada livremente, faltam-lhe os contornostemporais e a resoluo da forma musical. Por carecer da linearidade daelocuo semntica ou musical, mas tambm por destacar o significadogestual da linguagem como um puro ato de expresso, a glossolalia permitea existncia da linguagem fora do tempo. Para quem fala em lnguas, atemporalidade se torna eternidade, pois no h progresso lgica, mas tam-bm porque cada momento um comeo existencial.

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    Linguagem corporificada e prtica ritual

    Se a corporeidade realmente nos ajuda a compreender uma prticaparticular, ela deveria tambm nos ajudar a compreender como as prticasse relacionam entre si essa a contribuio do conceito de habitusdeBourdieu. Repousar no Esprito uma prtica carismtica que em umprimeiro momento parece bem diferente de falar em lnguas como experi-ncia religiosa. Nessatechnique du corps, uma pessoa dominada pelo po-der do Esprito Santo e cai num estado de dissociao motora, emboramantendo certa noo dos arredores e subseqente memria da experincia.

    Esta tipicamente caracterizada como pacfica, relaxante, rejuvenescedora,curadora e imbuda de um senso da presena divina. Entre os carismticoscatlicos romanos,54 essa prtica gerou muito mais controvrsia do que a defalar em lnguas. A principal questo a autenticidade da experincia. Ofato de que esse problema nunca emergiu com a glossolalia pode ser enten-dido em termos de diferentes usos do corpo nas duas prticas.

    Em suma, a glossolalia no pode ser inautntica, na medida em que acompanhada por uma inteno de orar. J repousar no Esprito no pode

    ser intencional, pois a experincia ocorre, por definio, espontaneamente.Para ser mais exato, uma pessoa que comea pela primeira vez a falar emlnguas entrega-se ao dom, ou seja, passivamente permite que ele se mani-feste atravs de elocuo mais ou menos espontnea. Ao mesmo tempo,diz-se que o nefito deve retirar-se na f, ativamente proferindo quaisquerslabas sem sentido que ele possa formular. A combinao de usos ativos epassivos do corpo em uma prtica parece ser o operador concreto que per-mite a comunho experiencial do humano e do divino em um corpo falan-

    te. O status ritual de repousar no Esprito diferente, enfatizando apassividade subjetiva de repousar e a passividade objetiva de ser domina-do. O termo protestante para esta prtica, Sacrificar no Esprito, enfatizaainda mais fortemente o poder externo sobrepujando um receptor passivoou mais fraco. Repousar no esprito no envolve ato da vontade assim comono h um ato propositado da fala a prtica muda e tambm passiva. H

    54 Porque os sistemas rituais de diferentes ramos do cristianismo carismtico variam de algum

    modo, a discusso nesta sesso se restringe Renovao Carismtica Catlica Romana.

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    assim a possibilidade de inautenticidade se uma pessoa escolhe cair, ou caiem conformidade com aqueles ao seu redor.

    Essa interpretao oferece um entendimento corporificado da relaoentre vida social e ritual no movimento carismtico catlico romano aolongo de seus 20 anos de histria. A introduo do repouso no esprito veiobem depois da fala em lnguas, e correspondeu a uma transformao socialdo movimento, de uma autopercebida vanguarda da renovao ativa nofinal dos anos 1960 para uma fonte de refgio passivo, um movimentoconservador entre outros na Igreja Catlica Romana do fim dos anos 1980.Em conjuno com o clima sociopoltico mudado atravs dessas dcadasnos Estados Unidos, a base demogrfica do movimento mudou para umgrupo mais velho e mais conservador, predominantemente na faixa doscinqenta, e tambm para um grupo que inclui mais trabalhadores e gentede classe mdia-baixa. Assim, a relao entre falar em lnguas e repousar noEsprito representa a corporeidade na prtica ritual de diferenas no habitusgeracional e de classe.

    A perspectiva da corporeidade tambm pode nos ajudar a entender arelao entre orao glossollica e uma segunda forma de linguagem ritual

    carismtica, a profecia. A profecia inclui um componente semntico dotipo mais sagrado, pois a elocuo proftica compreendida como umamensagem direta de Deus. O falante no inteiramente passivo, j que devediscernir quando, onde e se deve proferir as palavras inspiradas, mas aelocuo invariavelmente na primeira pessoa, tendo Deus como falanteostensivo. A profecia carismtica raramente prediz o futuro, mas em vezdisso estabelece ritualmente um estado de coisas no mundo (por exemplo,Vocs so o meu povo, eu estou fazendo um grande trabalho com vocs,

    sacrifiquem suas vidas por mim). A natureza gestual da elocuo proftica evidente no seu contedo, quase como uma forma verbal de apontar como dedo. Esse significado gestual concretizado na prtica por um vnculodireto com a glossolalia, no qual a profecia pode s vezes ser expressa pri-meiro em lnguas, e subseqentemente interpretada numa elocuo ver-nacular idntica a qualquer outra profecia. A diferena entre orao e profeciaem lnguas inteiramente baseada no tom de voz, volume e estridncia.Assim, por meio do corpo, a relao entre glossolalia como orao e como

    profecia estabelecida no como relao atividade/passividade, mas como

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    relao entre intimidade (orao) e autoridade (profecia) na relao entreDeus e humanos.

    Visto que essa relao entre orao glossollica e profecia vernacular baseada na experincia corporificada de intimidade e autoridade, ns pode-mos entender mais um paralelo entre as duas formas na prtica ritual. Des-crevi anteriormente o significado gestual da glossolalia como uma celebraoritual do modo indeterminado e aberto pelo qual a linguagem, o gesto e aemoo assumem uma postura existencial no mundo. Na prtica, a oraoglossollica enquanto intimidade corporificada improvisao livre paraalguns indivduos, mas para outros a repetio redundante de uma fraselimitada ou uma srie de slabas, muito ao modo de um mantra. Assim, aprtica segue um continuum entre indeterminao e redundncia. A profe-cia como autoridade corporificada segue um continuum inverso entre deter-minao e redundncia, pois na prtica ela vai da nica e criativa elaboraode metfora com conseqncias retricas explcitas para o humor e a motiva-o, at a reproduo altamente redundante de significados bsicos atravs desimples exortaes profticas, a mais simples forma de apontar verbalmente.

    Em conjuno com o modo pelo qual a atividade e a passividade ritu-

    ais foram corporificadas na vida social desses cristos carismticos, um mo-vimento da intimidade autoridade pode ser visto no desenvolvimento dascomunidades intencionais carismticas. Essas comunidades intencionaiscultivaram a mentalidade de vanguarda dos primeiros dias do movimentoem larga medida atravs da nfase na profecia enquanto palavra orientadorae impositiva de Deus. A crescente dependncia da profecia e a mensagemcada vez mais radical anunciada levou a uma ciso entre duas importantesredes de comunidades intencionais, a uma autoconcepo dessas comuni-

    dades como um movimento distinto da Renovao Carismtica Catlicacomo um todo, e finalmente a uma tenso protocismtica entre as comuni-dades e a hierarquia catlica. Esta ltima alcanou certa visibilidade pblicanuma controvrsia recente sobre a obedincia de uma comunidade autori-dade proftica de outra, em oposio autoridade eclesistica do bispo lo-cal. O caso resultou em litgio da comunidade intencional no Vaticano, ena resignao do bispo.

    Da perspectiva da corporeidade, ento, a glossolalia afirma a unidade

    de corpo e mente, estabelece um mundo humano partilhado e expressa a

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    transcendncia como toda linguagem faz. O pensamento no indepen-dente da elocuo, o mundo humano constitudo de um amlgama devozes corporificadas, e toda enunciao uma enunciao inicitica, umcomeo transcendente. Ainda assim, a glossolalia faz isso de forma radical,j que o significado gestual da linguagem predomina. Desde a perspectivada corporeidade, a indeterminao da glossolalia no apenas semntica.Num nvel mais fundamental, a indeterminao glossollica subsiste na suacapacidade de participar em modos de pura comunicao e crtica absoluta,intimidade e autoridade, atividade e passividade, privado e coletivo, umalinguagem unitria pr-babeliana e uma multiplicidade de lnguas situacio-nalmente delimitadas.55 Glossolalistas experimentados no constroem suaselocues como balbucio infantil, embora o tema religioso da simplicidadede criana seja algumas vezes invocado para descrever uma primeira fala semsentido e embaraada. Em vez disso, eles se vem como maduros usuriosde um dom espiritual, cujo propsito intensificar seu relacionamentocom o divino.

    Dualidades colapsadas: explanaes objetivistas da experinciareligiosa

    Na medida em que o argumento acima delineado logra vincular ouintegrar domnios de percepo, prtica e experincia religiosa, eu diria queum paradigma da corporeidade tem, de fato, implicaes paradigmticas.Nas duas sees de concluso vou discutir algumas dessas implicaes. Ten-do me concentrado no domnio da experincia religiosa, eu me voltarei

    55 Esse nvel de indeterminao tornou a glossolalia um smbolo-chave na fico ps-modernade Pynchon, que no apenas evoca constantemente Pentecostes e falar em lnguas, masimpregna suas pginas com uma multido de linguagens e pseudo-linguagens. ParaPynchon, Pentecostes uma verso do estado de entropia que toma o que h, e o celebra.Pentecostes entropia com valor agregado o valor da comunicao (Lhamon, 1976, p.70). Eu no usei Pentecostes como imagem de um mundo entropicamente ps-modernono qual tudo se refere a todo o restante, mas argumentaria que o princpio de indeterminao

    essencial corporeidade torna tal mundo possvel.

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    primeiramente crtica das explanaes fundadas na dicotomia objetivistade corpo-mente e oferecerei uma alternativa fenomenolgica.

    As prticas rituais so freqentemente explicadas em termos de suges-to psicolgica ou comportamento aprendido no lado mental e de meca-nismos psicolgicos de transe ou catarse no lado fsico. A sugesto e aaprendizagem so inadequadas para dar conta do fenmeno acima discuti-do. Na situao de grupo, o poder de sugesto no nos leva alm da invo-cao do curador para que libere mais energia, Senhor. Ele explica aconfigurao de humor e tom, mas no a estrutura e a eficcia das prticasrituais corporificadas, e nem o seu carter de aparente espontaneidade. A

    aprendizagem tampouco pode explicar por que a glossolalia tem um lugarespecial no sistema ritual (por que glossolalia e no alguma outra prtica?).A aprendizagem pode comear a explicar sua transmisso em resposta asugestes, e seu significado teolgico culturalmente consistente, mas nocomo ela pode ser percebida enquantopoderna prtica ritual.

    Da mesma forma, explanaes fisiolgicas em termos de transe e esta-dos alterados de conscincia, ou catarse e descargas nervosas-emocionais,no nos levam muito longe a no ser que queiramos aceitar transe e catarse

    como fins neles mesmos em vez de como modus operandipara o trabalhoda cultura. Por exemplo, a mais avanada teoria da catarse, a de Scheff (1979),define o riso catrtico como a expresso de embarao. Ela no pode ir almdessa formulao objetivista para explicar como tal risada tematizada, ousistematicamente confundida, como a alegria no exemplo do gerente deloja analisado anteriormente, ou como a troa em outras instncias nasquais um demnio recusa levar a srio as tentativas dos piedosos paralivrar um dos fiis de suas influncias.

    Parte da inadequao dessas explanaes que elas so freqentementederivadas de pesquisas em situaes experimentais, e pesquisas focadas emeventos concretos que no procuram transcender esses eventos. Essas aborda-gens partilham da precariedade descrita por Bourdieu (1977, p. 81-82) como

    [] a iluso ocasionalista que consiste em relacionar prticas direta-mente s propriedades inscritas na situao [] a verdade da interaonunca inteiramente contida na prpria interao. Isso o que a psico-logia social e o interacionismo ou a etnometodologia esquecem quando,reduzindo a estrutura objetiva da relao entre os indivduos reunidos

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    estrutura conjuntural da sua interao em uma situao e grupo parti-culares, eles buscam explicar tudo o que ocorre numa interao experi-

    mental ou observada em termos das caractersticas experimentalmentecontroladas da situao, tais como as posies espaciais relativas dos par-ticipantes ou a natureza dos canais utilizados.

    Isso verdade em relao s explanaes psicolgicas e fisiolgicas aci-ma delineadas. As primeiras assumem um tipo de influncia interpessoalimediata, e as ltimas, que a interao ritual opera como um mecanismo degatilho, bem como os fenmenos da experincia religiosa so resultados de

    um padro de estmulo-resposta que opera inteiramente no mbito do eventoritual circunscrito.

    Em contraste com essas posies, colapsar a dualidade de mente e cor-po traz uma fenomenologia da percepo e autopercepo que pode colocara pergunta de o que religioso sobre a experincia religiosa sem incorrer nasfalcias tanto do empirismo quanto do intelectualismo.56 Para explicar essaabordagem devo voltar minha concluso anterior de que certos fenme-nos pr-objetivos so confundidos como originados em Deus ao invs de

    no corpo socialmente informado.57 Eu discordaria de Durkheim, que iden-tifica esta confuso, mas adota uma definio funcionalista do sagrado comoa sociedade se mistificando e se adorando e, assim, estabelecendo a morali-dade e a solidariedade social. Este foi um dos argumentos fundamentaispelo qual ele estabeleceu o social como uma categoriasui generis, mas acre-dito que ao faz-lo ele equivocadamente tambm aboliu o sagrado comouma categoriasui generispara a teoria antropolgica.

    O argumento de Durkheim (1965) de que a sociedade cria o sagrado

    como algo que parece radicalmente diverso e externo ao indivduo, e, no

    56 Veja nota 40 sobre a crtica paralela de Merleau-Ponty do empirismo e intelectualismo.Para uma crtica contempornea da linguagem empirista na cincia mdica, veja Good eDelvecchio-Good (1981).

    57 Um exemplo adicional fornecido por Fernandez (1990), que nota que a experinciacorporal induzida por drogas entre participantes fang na religio bwiti confundidaexatamente com o seu contrrio, um estado de descorporeidade normatizado como uma

    aproximao da descorporeidade serena e purificada dos ancestrais.

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    CORPO/SIGNIFICADO/CURA

    mistrio e na enormidade dessa alteridade, estabelece uma autoridade moralabsoluta. Ao restringir a expe