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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · cultural da passagem do monge João Maria por Mangueirinha, ... na procissão que ocorre na sexta-feira santa, nas lendas do monge no município

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

VOLU

ME I

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MONGE JOÃO MARIA: SUAS LENDAS, SUAS FONTES DE ÁGUA SANTA E A

PRÁTICA DO BATISMO.

Lucia Alma Muller1

Ariel José Pires2

RESUMO

Este trabalho pretende identificar e analisar a Guerra do Contestado como importante momento da História do Paraná, estudando principalmente a herança cultural da passagem do monge João Maria por Mangueirinha, e hoje presente nos poços de água santa, na prática do batismo, na procissão que ocorre na sexta-feira santa, nas lendas do monge no município e nos seus mandamentos. Analisa a Guerra do Contestado, não apenas tendo por causa a indefinição dos limites interestaduais entre o Paraná e Santa Catarina, mas também, e principalmente, a expulsão dos caboclos de suas terras, que se reuniram em torno do monge José Maria e que foram atacados em Irani, fato que desencadeou toda a guerra civil no sul do Brasil. Trabalhar a Guerra do Contestado como História do Paraná, na quinta série, desperta novos pesquisadores, pois os alunos sentem-se envolvidos, e conhecedores da própria História local e familiar, identificando os símbolos culturais e cívicos, fazendo uma leitura histórica dos mesmos. Trata-se de um testemunho de valor histórico e cultural da memória do monge João Maria. Além da participação dos alunos para o desenvolvimento da pesquisa, foi utilizada uma bibliografia especializada sobre o assunto.

1 INTRODUÇÃO

(...) o santo não é João Maria de Agostini nem João Maria de Jesus. É, apenas, João Maria, São João Maria (CABRAL, 1979, p.166).

1 Graduada em Filosofia pela UNIOESTE – Toledo – PR. Especialista em Ensino Religioso. Professora de História da Rede Pública Estadual de Educação do Paraná, participante do PDE 2009/2010. E-mail: [email protected] Professor Orientador, Doutor e Docente de Departamento de História da UNICENTRO – Guarapuava – PR.

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Este artigo, como resultado da aplicação da Unidade Didática e requisito do

Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), tem o objetivo de analisar a

imagem, a memória e a presença do monge/profeta3 João Maria, com suas lendas,

suas fontes de água santa, com a prática do batismo, no Município de Mangueirinha,

Estado do Paraná, por ser uma região que fez parte da Guerra do Contestado4.

Sabe-se que o ensino de História tem por finalidade a formação do

pensamento e da consciência histórica, por isso o grande desafio atual, apresentado

nas novas Diretrizes Curriculares de História do Estado do Paraná (DCEs, 2008), é:

partir dos conteúdos estruturantes - relações de trabalho, relações de poder e

relações culturais - estudar as ações e relações humanas que constituem o

processo histórico. E se não bastasse, a Lei nº 13.381/01, obriga a Rede Pública

Estadual, no Ensino Fundamental e Médio, além dos conteúdos historicamente

consagrados, a trabalhar os conteúdos da História do Paraná.

Um dos grandes temas, do século XX, da História do Paraná, foi a Guerra do

Contestado, conflito que começou por questões de limites entre os Estados de Santa

Catarina e Paraná, mas que teve outros desdobramentos importantes para o

imaginário político, econômico e social das regiões em pauta.

A indefinição das divisas entre os dois estados “marcou profundamente a

natureza da ocupação demográfica da região e o perfil social e político destas

comunidades” (MACHADO, 2004, p. 123). E na ausência da assistência política e

religiosa, o monge João Maria, em suas peregrinações pela região, principalmente

seguindo o caminho dos tropeiros e da estrada de ferro que ligaria Rio Grande do

Sul a São Paulo, deu atenção à vida dos caboclos/sertanejos5, e estes viam nele e

em sua pregação, um refúgio, uma segurança para garantir seus direitos à vida e a

um pedaço de terra.

Para realizar este estudo, foram utilizadas, primordialmente, fontes

bibliográficas, e o resultado da experiência da própria aplicabilidade da Unidade

Didática com os alunos das quintas séries, no ano letivo de 2010, na Escola

Estadual Cel. Misael Ferreira Araújo, Mangueirinha – PR, resultando numa produção

historiográfica como parâmetro da História local e regional.

3 Monge, religioso, como ficou chamado João Maria pelos caboclos; profeta, pessoa que faz previsão, vidente, como a Igreja tenta justificar João Maria, na região do Contestado.4 Contestado é como ficou conhecida a região disputada pelos Estados do Paraná e de Santa Catarina, no período de 1912 – 1916 e que resultou em uma guerra civil.5 Caboclo, filho de branco com índio; sertanejo, morador do sertão. Durante o trabalho estarei usando as duas expressões para designar os moradores da região do Contestado.

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2 JOÃO MARIA, SUAS LENDAS E MANDAMENTOS

Não há como separar a Guerra do Contestado do monge João Maria, pois

mesmo anos antes das batalhas, ele deu atenção aos caboclos e por isso, estes

viam nele, promessas de segurança de vida.

Os autores em sua maioria admitem três monges com o mesmo nome, que

andaram pelo território do Contestado. O primeiro João Maria, chamado de João

Maria de Agostini, chegou ao Brasil vindo de Piemonte da Itália em 1844, fazendo

suas peregrinações pelo sudeste e sul do país. “João Maria, a par de prescrições

religiosas, aconselhava, como no Campestre, a água que ali perto corria. Para todas

as enfermidades e para todas as queixas” (CABRAL, 1979, p.133). Era um homem

religioso simples, “mantinha ele (...) os seus hábitos de ascetismo6. Nada aceitava,

salvo algumas ofertas de frutos e leite. Se lhe deixavam outros alimentos ou

dinheiro, quando não recusava de imediato, distribuía-os aos pobres logo depois”

(CABRAL, 1979, p.133). Devido a esta vida errante, peregrina, João Maria não

aceitava que pessoas o seguissem em suas andanças.

O segundo monge surgiu em 1890, era Anastás Marcaf, e adotou o nome de

João Maria de Jesus, talvez por ter ouvido falar tanto do primeiro monge, resolveu

adotar a personalidade do eremita7 facilitando a sua missão, que segundo um sonho

que tivera, deveria levar “uma vida ascética e um tempo delimitado de peregrinação

e de provação” (MONTEIRO, 1974, p. 89).

Diz Cabral, 1979, que “João Maria, para essa gente, é santo. É São João

Maria. Faz milagres. Atende aos que lhe imploram proteção. Restitui-lhes a saúde,

conserta-lhes as dificuldades da vida quotidiana” (p. 276). Ele se fazia próximo dos

sertanejos e “sua atividade foi ligada à localização de vertentes de água, logo

batizadas pela população de águas do monge ou águas santas, que os sertanejos

acreditavam (e ainda acreditam) possuir poderes terapêuticos especiais”

(MACHADO, 2009, p. 292).

Segundo Cabral, 1979,

6 Religioso dedicado à oração e vida de solidão.7 Idem.

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Este João Maria é que, em verdade, é o santo, o que é reputado como tal pelas nossas populações sertanejas, não o primeiro, cujos contatos com o povo foram muito rápidos e fugazes. São deste as fotografias que correm – e não de Agostini, que não as deixou de si; são deste os milagres que se contam e as lendas que se formaram. Este e não o outro, a quantos conseguem distinguir dos monges, é que é o santo; neste é que toda gente acredita, que toda a população sertaneja venera e de quem correm os prodígios (p.163).

A verdade é que para a população do Contestado, os dois personagens são

como um só. “Aliás, o santo não é João Maria de Agostini nem João Maria de Jesus.

É, apenas, João Maria, São João Maria” (CABRAL, 1979, p.166). Ele atendia todas

as pessoas que a ele se achegavam, dando uma palavra de conforto, um remédio e

o batismo que muitos buscavam nas suas fontes sagradas, “pois criam que o seu

batismo traria felicidade aos pobres filhos que deitavam no mundo” (CABRAL, 1979,

p.178). Muitos esperavam a sua passagem para batizar seus filhos, podendo passar

alguns anos no aguardo, mas ao chegar, o convidavam como padrinho e /ou davam

o seu nome ao filho.

Já o terceiro monge apareceu na região do Contestado em 1911, no

município de Campos Novos, SC. “Dizia-se irmão do Monge João Maria d’Agostinho

e passou a adotar o nome de José Maria de Santo Agostinho. Receitava ervas,

como fizeram seus antecessores” (FACHEL, 1995, p.54). E sendo ex-militar, Miguel

Lucena de Boaventura, admitia ajuntamentos e organizou acampamentos, participou

e morreu na primeira batalha da Guerra do Contestado em Irani - SC. “Para os

sertanejos não importava a identidade de José Maria, não tinha sentido perguntar

por isso – importava, sim, que José Maria estava lá com eles, era como eles e,

sobretudo, demonstrava na sua prática diária ter o poder do sagrado” (AURAS,

1984, p. 59).

Entre as lendas de João Maria, três fazem referência à cidade de

Mangueirinha – PR. O livro “Lendas e Contos populares do Paraná”, coordenado por

Renato Augusto Carneiro JR, da Secretaria de Estado da Cultura, 2005, faz alusão a

elas, a História do Queijo, a História da Galinha e a História do Peixe.

Reescrevendo-as, pode-se dizer que, na História do Queijo conta-se que a

mulher do Coronel Misael Ferreira de Araújo, ao saber que o monge passaria pela

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fazenda, disse que daria um queijo a ele, porém o coronel contestou dizendo que

chegaria a metade, pois o monge era sozinho, mas mesmo contrariando o coronel, a

esposa deu o queijo inteiro. Ao receber o queijo, João Maria pediu uma faca, cortou-

o e mandou a metade de volta ao Coronel Misael dizendo que tal parte não lhe

pertencia.

Na História da galinha, também citada por Cabral, 1979, p 330, estava o

monge acampado na comunidade do Covó, próximo da fonte de água. Uma senhora

ao procurá-lo para pedir conselhos, resolveu levar de presente uma galinha. Tenta

pegar a galinha no terreiro, mas como não estava conseguindo, grita: “Oh! Galinha

do diabo”! Pouco tempo depois consegue pegá-la. Pois bem, ao dar a galinha, João

Maria diz que não queria, pois a galinha já tinha sido dada ao diabo.

E por fim, na História do peixe, conta-se que numa de suas passadas por

Mangueirinha, o monge quis pousar numa família. O homem logo o convidou para

dormir em sua casa, mas sua mulher não aceitou dar sua cama a um andarilho e o

colocou para dormir na estrebaria. Na hora do jantar, tendo por prato um peixe, o

marido quis levar um pedaço para João Maria, mas a mulher novamente não

permitiu e disse que depois daria se sobrasse. Durante o jantar, a filha do casal se

afogou com um osso do peixe. Desesperados e não conseguindo tirar o osso,

lembraram do santo, que logo o homem foi chamá-lo para salvar a filha. João Maria

não aceitou e disse ao homem que a criança tinha se afogado não com o osso, mas

com o peixe inteiro. Mas para salvar a filha ele próprio deveria colocar a mão na

cabeça da menina e dizer: “home bão, muié malina, osso de peixe pra baixo e pra

cima”. Feito isso, o osso saiu na mesma hora e a menina foi salva8.

Quanto aos “mandamentos de são João Maria” ditos como “Leis da

natureza”, foram recolhidos pelo pesquisador Euclides Felipe, junto a Emídio

Conceição, capelão leigo da “água santa” de Curitibanos, citado nas notas por

Machado, 2004, segue abaixo alguns dentre outros:

1. Não se deve queimar folhas, cascas e nem palhas das plantações que dão mantimentos. O que a terra dá emprestado, quer de volta;2. É errado jogar palhas de feijão nas encruzilhadas. É o mesmo que comer e virar o coxo. A terra se ofende;

8 Há ainda outras lendas, porém se repetem em outras cidades, por este motivo não as citei aqui. Como a lenda da cobra e da cidade que viraria um purungal.

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3. Ao cortar uma árvore ou pé de mato, não se deixa mamando (agonizando). Se corta por inteiro. Enquanto as plantas agonizam, os negócios da gente também vão abaixo;4. Quem descasca a cintura das árvores para secá-las, também vai encurtando sua vida. Árvore é quase bicho e bicho é quase gente; 5. (...)6. A terra é nossa mãe. A água é o sangue da terra-mãe. Cuspir e urinar na água é o mesmo que escarrar e urinar na boca de sua mãe;7. O pai da vida é Deus. A mãe da vida é a terra. Quem judia da terra é o mesmo que estar judiando da própria mãe que o amamentou;8. Quem não sabe ler o livro da natureza é analfabeto de Deus (p. 230) 9.

Ou seja, esses “mandamentos”, na verdade, são um arrazoado importante

de respeito à própria natureza, dito em um tempo em que nem se pensava em

respeitar e cuidar do meio ambiente.

2.1 OS POÇOS DE ÁGUA SANTA E A PRÁTICA DO BATISMO

A prática do batismo nas fontes vem de muito longe e continua ainda hoje,

quer queira ou não a Igreja oficial. Já antes do Contestado tinha-se o costume de ter

dois batismos: um doméstico e o outro eclesiástico. Auras, 1984, confirma a

presença destes dois batismos:

um “batismo doméstico”, intraclasse (os padrinhos apresentavam a mesma condição econômico-social dos pais da criança), efetuado por algum morador local ou – o que era preferível – pelo monge, na oportunidade de sua eventual presença; outro, “batismo eclesiástico”, interclasse (os padrinhos escolhidos gozavam de melhor condição econômico-social; geralmente a opção recaía sobre o “coronel”), realizado pelo padre, na oportunidade também de sua eventual presença (p. 34).

9 Segundo a Cartilha “Mandamentos da Natureza – Monge João Maria D Agostinho. “Deus” do Contestado, S/A, 1999, o total são 29 mandamentos. Cito, ainda, outros que merecem particular atenção, o 9o “As horas de chuva são as horas de Deus. É quando a Mãe-Natureza vem trazer água para seus filhos na Terra”; 19o “Quer morrer novo? Não respeite os velhos!”; 25o “A pobreza não é defeito: a sujeira, sim!”

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Os fazendeiros batizavam os filhos dos peões e agregados e como,

compadres que se tornavam, estabeleciam uma relação de compromissos, o

fazendeiro dava auxilio ao afilhado e recebia lealdade e obediência do compadre,

sendo também uma forma de regular e legitimar a subordinação social. “Assim, o

agregado escolhe o fazendeiro como padrinho do filho porque o fazendeiro é seu

patrão. Ao mesmo tempo, é leal a esse patrão porque ele é seu compadre.”

(MONTEIRO, 1974, p. 13). O afilhado obedece ao patrão, ou melhor, ao padrinho, e

este, por sua vez, é responsável materialmente e moralmente por aquele.

Já o batismo entre os amigos, os compadres da mesma classe, era sim um

“importante vínculo de respeito mútuo, amizade e solidariedade” (MACHADO, 2004,

p. 68), principalmente se o próprio João Maria batizasse e fosse o padrinho. O

batismo doméstico tinha e tem por local apropriado as fontes de água santa.

Em Mangueirinha - PR há três poços, considerados de água santa do monge

João Maria, dois próximos da cidade e um na Reserva Indígena. São fontes que

inspiram devoção e esperança de cura. Muitos usam água destas fontes para beber,

para passar em dores do corpo e para o sacramento do batismo. No poço do distrito

do Covó, além das ações acima citadas, é forte a prática da procissão na sexta-feira

santa, com saída de madrugada numa caminhada de 16 km. Os motivos são vários,

vão desde agradecimentos de graças alcançadas, pedidos de ajuda ao monge João

Maria, sacrifício quaresmal, desafio e aventura para os mais jovens. Vejamos alguns

depoimentos: 10

1. Faz oito anos que participo. Em 2002 eu comecei a ir por causa da minha

mãe, ela teve um AVC, eu achei que era uma maneira de eu fazer uma penitência

por ela ter ficado boa, e comecei a ir e enquanto eu tiver força vou continuar indo.

2. Eu venho desde 1991, quando fiz a cirurgia no joelho. (...) Graças a São

João Maria e a Nosso Senhor Jesus Cristo, estou andando e fazendo o que eu

gosto... Eu chego aqui e dou um mergulho e lavo a alma.

3. Nós temos uma fé, uma fé que eu levo a água e eu boto nas panelas, um

pouquinho, jogo na casa. São João Maria é um santo, não é um profeta, é um santo,

pra mim ele é um santo.

10 Depoimentos coletados durante a procissão da sexta-feira santa, dia 2 de abril de 2010, no pocinho de água santa do Covó – Mangueirinha - PR.

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4. Eu já fiz vários pedidos e fui bem atendido, graças a Deus. Pelo menos uma

ou duas vezes por semana eu passo por aqui e rezo. Eu sempre fui atendido, a

gente foi criado nesta fé e, pretendo passar para os meus filhos.

5. Eu tinha medo do tempo, mas numa noite, rezando o terço, estava escuro, aí

eu me lembrei do profeta João Maria e pedi que me livrasse. Agora estou tranquila,

não tenho mais medo e insegurança, pra mim foi uma graça.

6. É muito bom fazer a caminhada. Pra mim é uma penitência, sacrifício que a

gente pode se doar é caminhando.

7. Eu tinha uma dor de dente que não conseguia mais, aí falaram para eu

passar aqui no poço e lavar com a água do João Maria, aí comecei a lavar a boca,

foi o primeiro ano, depois nunca mais tive problema.

8. Eu fui, por curiosidade, fomos rezando, mas quando cheguei lá e vi pessoas

com tanta fé rezando, que também eu resolvi lavar o meu joelho. Rezei com fé, me

lavei e não senti mais nada. Se João Maria é santo não sei, só sei que me curou.

Por meio dos depoimentos, confirma-se a fé na pessoa e na água do João

Maria ainda nos dias atuais. “Dou um mergulho e lavo a alma” (depoente 2);

comecei a lavar a boca com a água do João Maria e nunca mais tive problemas

(conf. depoente 7); “rezei com fé, me lavei e não senti mais nada” (depoente 8).

Mesmo que a Igreja oficial tente esclarecer que ele não é santo declarado por

ela, talvez fosse um profeta que anunciava previsões, isso não importa, a questão é

que ele cura, “Se João Maria é santo não sei, só sei que me curou” (depoente 8). A

fé existe e os motivos vão desde libertação do medo de tempestade (depoente 5)

até cura de dor de dente (depoente 7), enfim, de doenças diversas.

É simples e verdadeiro o relato do terceiro depoente: Nós temos uma fé,

uma fé que eu levo a água e eu boto nas panelas, um pouquinho, jogo na casa. São

João Maria é um santo, não é um profeta, é um santo, pra mim ele é um santo. O

fato de tentar justificar se João Maria é santo ou profeta, é um resquício de uma

catequização da Igreja Católica oficial, ao mesmo tempo, a conclusão é segura,

pessoal e relata a verdade para os caboclos: “pra mim ele é um santo”. E por isso o

desejo de transmitir aos filhos (depoente 4) e praticar a caminhada, a procissão na

sexta-feira até quando tiver forças (depoente 1).

2.2 O MONGE X A VIDA DOS CABOCLOS

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Nas terras contestadas, os caboclos e pequenos posseiros viviam nas sedes

e nos distritos dos municípios, de forma simples em comunidades, em seus

casebres feitos com rachões de pinheiro e telhados de folhas de palmeiras, com

suas práticas religiosas e o trabalho de mutirão, chamado de “puxirão”, onde os

vizinhos se ajudavam nos trabalhos da roça. “O grupo partilhava o trabalho de

roçada, capina ou colheita, coletivamente, tendo um final festivo, com farta

alimentação e regado com muita bebida e cantoria” (TONON, 2009, p.322).

Estavam divididos socialmente em dois grupos: os coronéis, grupo

minoritário que tinha as posses de grandes porções de terras, e a classe mão-de-

obra braçal, que não tinha posse legal de terras: os ervateiros, os peões e os

agregados – moradores das fazendas que recebiam de favor um pedaço de terra.

Para Queiroz (1981), a sociedade era assim dividida: “a) coronéis, b) fazendeiros, c)

criadores ou meio-fazendeiros, d) lavradores, e) agregados, f) peões” (p. 43).

A economia principal dos caboclos girava em torno da agricultura de

subsistência, principalmente o milho, o feijão, a abóbora e a melancia; da criação de

porcos alimentados com o pinhão no inverno e milho no verão, da coleta de pinhão

que, segundo Queiroz (1981), “o pinheiral é o paiol dos pobres” (p. 37) e coleta da

erva-mate, que trocavam principalmente com os tropeiros em passagem pela região.

Conservavam a carne de porco na banha depois de frita, era “a geladeira dos

pobres”.

Suas condições sociais, políticas, econômicas e religiosas não eram das

melhores, não eram assistidos nem pelos políticos nem pelos religiosos. No entanto

não se sentiam abandonados, pois o monge João Maria passava fazendo suas

rezas e profecias de novos tempos, de felicidade, de fartura e de justiça.

“Representava ele um lenitivo, um consolo, e uma esperança para os oprimidos.

João Maria se identificava com eles e eles com João Maria” (FACHEL, 1995, p.56).

Porém, uma questão que afetou a vida tranquila dos colonos posseiros na

terra do Contestado foi a construção da ferrovia que ligava Rio Grande do Sul a São

Paulo, na linha entre União da Vitória e Marcelino Ramos – RS, concluída em 1910

e de União da Vitória a Rio Negro, concluída em 1913, passando pelo território

contestadas entre o Paraná e Santa Catarina, rasgando uma vasta porção de terras

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férteis devolutas, com grandes áreas de ervais e pinheirais e, em consequência,

interferindo nas colônias e na vida dos caboclos.

Esta ferrovia teve seu início em 1889, com D. Pedro II, dando a concessão

ao engenheiro Teixeira Soares, para organizar e providenciar a construção da

estrada. Em 1904 - 1905, a empresa norte-americana Brazil Raiway Company,

assumiu o controle da construção da estrada de ferro Rio Grande – São Paulo,

tendo como moeda de pagamento, a cessão gratuita de 15 a 30 km das terras

marginais da estrada.

Este “presente”, a empresa norte-americana, tomou posse em 1909 e 1910:

A Brazil Railway fez cumprir seu domínio sobre os terrenos devolutos das margens de até 15 quilômetros de cada lado do leito da sinuosa estrada de ferro. O objetivo era preparar este território adjacente para a exploração de madeira e venda de terras a imigrantes estrangeiros ou a filhos de colonos já nascidos no país (MACHADO, 2004, p. 148).

Assim, a partir de 1911, ocorreu a expulsão dos posseiros das terras

marginais da estrada de ferro, que buscaram refúgio junto ao Monge José Maria.

Estes sofreram muitas perdas culturais, sociais e religiosas.

Tonon (2009), afirma:

Focando o cultural, as perdas foram infinitas, o espaço socialmente construído, no qual estão enterrados seus ancestrais, no qual conviveu profundamente com a religiosidade popular, tendo nas festas, nos monges e no mutirão a constituição de uma identidade, que a modernidade hostilizou e rejeitou (p.330).

Em relação ao caminho das tropas de mulas, um dos únicos caminhos que

unia o Centro do Brasil ao Extremo Sul, rasgando o território de Serra Acima, numa

rede de atalhos e picadas, tendo os caboclos da região oportunidade de fomentar

suas economias, as consequências também foram imensas:

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O antigo caminho das tropas foi à extinção quase completa, levando à depressão econômica trilhas inteiras pontilhadas de vendas, locais de pouso, descanso e invernada das tropas, principalmente no interior dos municípios de Lages, Campos Novos, Curitibanos e Canoinhas. A ferrovia São Paulo – Rio Grande obtinha suas mais altas rendas da receita de passagens e mercadorias; sendo irrisórias as receitas provenientes de transporte de animais, o antigo Caminho das Tropas de mulas foi substituído pela ferrovia, e o transporte dos animais deixou de existir (MACHADO, 2004, p. 143).

O monge José Maria não estava mais sozinho, um bando de caboclos

estava com ele, o que aos olhos do governo de Santa Catarina e dos fazendeiros

não lhes parecia bem.

Para livrar-se desse grupo, o governo de Santa Catarina, convenceu José

Maria a se deslocar com o grupo dos fanáticos para além do Rio do Peixe, no

território sob a jurisdição do governo do Paraná. Este por sua vez não recebeu de

bom grado.

Para evitar um confronto do qual nem sabia a razão, José Maria preferiu abandonar Taquaruçu em setembro de 1912, seguindo para o oeste, atravessando Campos Novos, transpondo o rio do Peixe para viver entre os habitantes dos campos de Palmas, mais precisamente do faxinal do Irani, onde contava com amigos (MACHADO, 2004, p. 182-183).

Para o Paraná não se tratava de um grupo de sem-terras em busca de um

pedaço de terra, de marginais em busca de refúgio, sob a mística e orientação do

monge João Maria, mas “era a invasão dos catarinenses, organizada para acabar

naquela região o uti-possidetis, que era o elemento de convicção dos direitos do

Paraná sobre as terras contestadas” (CABRAL, 1979, p.205).

Com esse pensamento, ou com essa desculpa, tendo, ao mesmo tempo,

uma polícia mais numerosa e atuante, oficiais da Guarda Nacional e coronéis como:

“Juca Pimpão e Domingos Soares, de Palmas; Amazonas Marcondes e Cleto Silva

de União da Vitória; Arthur de Paula e Agostinho Ribeiro, no Timbó; Fabrício Vieira,

no médio do vale do Iguaçu; (...)” (MACHADO, 2004, p. 129), o governo paranaense

age com força e rapidez.

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Esta causa é, sem dúvida, a absoluta falta de condições de vida para o caboclo morador de Serra-Acima, resultado de uma estrutura político-social profundamente injusta e autoritária. Para o homem errante do planalto, órfão do Estado, não fazia a menor diferença se o chão por ele pisado pertencia ao Paraná ou a Santa Catarina. O governo de ambos os Estados, assim como o governo da República, era exercido por pessoas diretamente responsáveis pela criação e manutenção dessa estrutura opressiva que o asfixiava (AURAS, 1984 p. 127).

A questão era bem mais profunda. Num período onde havia tanta área em

litígio, por que não havia para os sertanejos? Pode-se dizer que a Guerra do

Contestado ocorreu primeiro, por uma questão política de divisas territoriais e,

segundo, pelo jogo de interesses de uma empresa estrangeira e pelos governantes

da época, não se levando em consideração a questão social em jogo.

2.3 GUERRA DO CONTESTADO

O governo do Paraná enviou uma repressão policial-militar, comandada por

João Gualberto, para convencer o monge José Maria a debandar com seu grupo, a

dispersar os sertanejos. Mas ele afirmou que não havia questão nenhuma com o

governo do Paraná nem com outro qualquer, que não desejava brigar, mas que se

fosse atacado reagiria. Pediu três dias para dispersar o grupo e sair em paz do

território contestado pelo Paraná, porém não lhe deram. No dia 22 de outubro de

1912 atacaram o reduto em Irani, houve um confronto com várias mortes, entre eles

o líder religioso, o monge José Maria e um terço das forças policiais e seu

comandante, João Gualberto.

A partir deste momento e em resposta aos ataques, eles se armaram com

“quarenta carabinas, três mil cartuchos, a metralhadora e quatro fitas carregadas

com duzentos e cinquenta tiros, (que, acréscimo meu) foram abandonados pelos

soldados no Irani e, logicamente, incorporados ao precário arsenal de defesa dos

caboclos” (AURAS, 1984, p.70) e começaram uma luta sangrenta e temida,

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conhecida como Guerra do Contestado, entre os anos 1912 a 1916, com muitas

batalhas e mortes.

Assim, pode-se afirmar com MACHADO, 2004, que:

O movimento social do Contestado iniciou-se como um fenômeno religioso de exaltação milenar com fortes características messiânicas, mantendo basicamente estas características místicas, com maior ou menor intensidade, até a sua liquidação final. Neste aspecto, o Contestado apresentou um certo ineditismo pelo fato de a principal liderança mística – o monge José Maria – ter sido morta no primeiro combate, no faxinal do Irani, em outubro de 1912. Porém a expectativa pela “volta” do monge, além de provocar uma nova reunião de seu grupo inicialmente restrito de seguidores no ano seguinte, acabou por agregar diferentes segmentos sociais, como posseiros e sitiantes expulsos de suas terras, comunidades negras e caboclas do planalto, ervateiros, trabalhadores desempregados pela estrada de ferro, médios fazendeiros, antigas lideranças federalistas e opositores políticos dos coronéis de Curitibanos, Canoinhas, Lages, Rio Negro, Timbó e União da Vitória (p. 25).

José Maria/João Maria, mesmo não estando mais entre eles, continuou

sendo o líder da guerra, porém, representados por jovens-virgens-videntes, como:

Teodora, Eusébio Ferreira dos Santos, Querubina, Manoel, menino Linhares e Maria

Rosa, que legitimavam o poder dos adultos, que requeriam a liderança pela

facilidade de estratégias e organização militar, citando alguns: Chiquinho Alonso,

Venuto Baiano, Olegário Ramos, Alemãozinho, Castelhano, Aleixo Gonçalves de

Lima, Papudo, Adeodato Manoel Ramos.

Os colonos lutaram ora com os militares do Paraná e os vaqueanos - civis

que os auxiliavam, ora com os de Santa Catarina, não em vista dos limites entre os

dois estados nas terras contestadas, mas em vista de um pedaço de chão e de

melhorias para viver, em união e sob as palavras do Monge José Maria/João Maria.

Com Manoel, em 1913, eles passaram a cortar o cabelo “rente” à cabeça e por isso

foram chamados de “pelados” enquanto que as forças do governo eram chamadas

de “peludos”.

Houve muitas lutas e movimentação dos caboclos, fazendo suas cidades

santas, pois como afirma Auras (1984): “crescia, então, a fé e a quantidade de

seguidores do monge (bem como o arsenal de defesa deles). José Maria, ao lado de

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São Sebastião, estendia o seu manto protetor sobre a ‘cidade santa’” (p. 82). Os

redutos eram locais onde os caboclos sentiam-se protegidos, ali tudo era partilhado,

traziam seus bens e colocavam ao uso de todos. “Está claro que, para a quase

totalidade dos fiéis, viver no reduto era bem melhor que viver fora dele” (AURAS,

1984, p. 87).

Dentre os redutos, destacamos os de Taquaruçu, Caraguatá, Bom Sossego,

Caçador, Santa Maria, Curitibanos, Canoinhas, Perdizes, Timbozinho, Potiguara,

São Miguel e Pedras Brancas. Por exemplo,

Acredita-se que, em janeiro de 1915, mais de 10 mil pessoas estivessem morando no super-reduto conturbado. Em Santa Maria, não havia lavouras em extensão suficiente para alimentar toda aquela população. O gado arrebanhado era consumido com rapidez por uma população crescente (MACHADO, 2004, p. 306).

Os líderes dos redutos usavam de muitas práticas religiosas (rezar, benzer,

etc.), mas quando acirrou o conflito com as forças policiais, as práticas militares com

suas estratégias, passaram a ter importância no preparo dos caboclos. Mesmo

assim, a prática comunitária era observada com rigor: “Quem tem, mói; quem não

tem, mói também, e no fim todos ficarão iguais” (Jornal “Diário da Tarde”,

22/02/1914, in AURAS, 1984, p. 88).

Após 1914 os sertanejos começaram a saquear as fazendas próximas dos

redutos. Para Monteiro, (1974), “saque não significa a mera expropriação do inimigo,

mas a reapropriação pela Irmandade daquilo que, de direito, lhe pertencia” (p. 15).

Em janeiro de 1915, o general Setembrino estabeleceu um duro cerco aos

caboclos nos redutos, não permitiu a entrada de alimentos, impediu a caça, o

comércio de troca, enfim, foram forçados à fome. Isto levou muitos a se entregarem,

tornando prisioneiros do governo.

Há registro de caboclos que ao se entregarem ao governo, cruzaram o Rio

Iguaçu, e se tornaram posseiros no Paraná, realizando a coleta da erva-mate, e

terem com isso, apenas e estritamente o necessário para a sobrevivência. Outros se

dirigiam para as prisões já superlotadas, onde diariamente era tirada uma grande

leva de caboclos, para na primeira curva serem degolados, por Pedro Ruivo. Isto era

frequente na prisão de Canoinhas, onde os homens de Pedro Ruivo “agiam com

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extrema violência, matando, roubando, estuprando mulheres e incendiando casas”

(AURAS, 1984, p. 131). Muita gente morreu depois da guerra, simplesmente

executada quando se rendiam.

Havia verdadeiro campo de concentração na porção norte das terras

contestadas, e, famílias inteiras eram conduzidas a trabalhos forçados, para com

isso, ressarcir os prejuízos provocados. Entre dezembro de 1915 e janeiro de 1916

“estima-se que 4 mil sertanejos apresentaram-se em Canoinhas e 6 mil, em

Curitibanos. Em sua maioria, os sertanejos apresentavam-se em condições

miseráveis” (MACHADO, 2004, p. 321). Sabe-se que muitos chegaram a se

alimentarem de couro cru, cavalos e até cachorros.

Portanto, o fim da guerra se deu principalmente pela fome, mas também

pelas intensivas batalhas das forças federais e estaduais aos redutos, pela deserção

dos sertanejos e divergência no reduto por causa de rendição ou não às tropas do

governo. Só mais tarde, no dia 20 de outubro de 1916, no Palácio do Catete o

presidente Venceslau Brás acompanhado por Afonso Alves de Camargo, autoridade

do Paraná, e Felipe Schmidt de Santa Catarina, assinou a Convenção de Limites

entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. Este ficou com 20.310 km² e aquele

com 27.510 km² das terras da região do Contestado.

Segundo Cabral (1979),

Depois que cada Estado entrou na posse da zona que lhe tocou na divisão feita, cada um cuidou carinhosamente da sua parte. Colônias instalaram-se umas após outras. Escolas surgiram. Igrejas construíram-se e sacerdotes ensinaram as verdades evangélicas ao povo. A Justiça instalou-se, coroando a obra de um policiamento melhor. A ordem estabeleceu-se. A segurança tornou-se maior. O trabalho surgiu em maior escala – e a economia entrou em ascensão, baixando o índice do desajustamento, o marginalizado (p.348).

Ou seja, com o fim dos conflitos e com este acordo, os sertanejos tiveram as

condições de vida e de espaço para viver, como realmente esperavam alcançar com

a luta.

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3 O CONTESTADO E A EXPERIÊNCIA ESCOLAR

Como componente do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE),

houve a aplicação da Unidade Didática, com os alunos das 5ª séries do Ensino

Fundamental da Escola Estadual Cel. Misael Ferreira Araújo, do município de

Mangueirinha – PR, no ano letivo de 2010, numa primeira instância, e numa

segunda fase, ampliou-se aos professores municipais de 1ª a 4ª série e aos

acadêmicos do Ensino Superior dos cursos de licenciatura de Arte, Pedagogia e

Matemática, da Faculdade UNILAGOS da já referida cidade.

A intervenção junto aos alunos, teve por objetivo principal estudar a Guerra

do Contestado como História local e regional. Partiu-se daquilo que aos alunos era

próximo: poço do João Maria; alunos lá batizados; hino do município; tropeiros;

origem do nome do município; Rio Iguaçu; lendas do monge na cidade. Enfim, os

alunos se motivaram, faziam perguntas inteligentes, sentiam-se parte do processo.

Os pais também se envolveram, eles desejavam ler e conhecer melhor a história do

João Maria, principalmente suas lendas e mandamentos.

Esta experiência consistiu no estudo do material produzido pela professora

PDE, uma Unidade Didática, seguindo da visita nos pocinhos do monge, na

comunidade do Covó, na Reserva Indígena e no Pouso Alegre, no município de

Mangueirinha – PR, com entrevistas a pessoas indicadas, coletas de depoimentos e

fotos. No retorno à sala de aula, a escrita do resultado pertinente ao estudo e por

fim, a exposição do resultado à comunidade escolar na Feira do Conhecimento da

escola e em publicação no jornal da cidade.

Houve também o coroamento com a palestra do professor Vicente Telles de

Irani – SC, que expôs o tema, de forma teatralizada e musicalizada, principalmente a

batalha ocorrida em Irani. Esta palestra foi aberta a todos os alunos das quintas e

das oitavas séries, do turno matutino e vespertino, da Escola Estadual Cel. Misael

Ferreira Araújo, aos acadêmicos da UNILAGOS, aos alunos da escola particular do

município, aos professores municipais e ao público em geral.

A visita nos pocinhos e a coleta de depoimentos das pessoas entrevistadas,

foi a concretização/materialização do estudo, mesmo que na Reserva Indígena não

sendo possível visitar, pois choveu, mas a convidada falou aos alunos no ônibus

mesmo, os quais acompanharam atentos e com diversas perguntas.

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O próprio hino de Mangueirinha, na sua primeira versão assim o citava:

“Mangueirinha do olho d’água do profeta João Maria, dos antigos carroceiros

transportando mercancias. Da bandeira do Divino das festas de Romaria”

(TRAUTMANN, 1991).

O estudo e a visita nos poços de água santa, por si só, produziu o resultado

do reconquistar a própria História e cultura. Assim destaca uma aluna: Aqui em

minha cidade tem três desses pocinhos, lá fazem batizados e nas sextas-feiras

santas, fazem uma caminhada até lá. Nota-se o uso do pronome possessivo: “minha

cidade” e não mais aqui na cidade. Também aos não nascidos em Mangueirinha, o

estudo proporcionou conhecimento: Eu gostei muito desse estudo e da visita ao

poço, porque isso me trouxe um conhecimento que eu não tinha, porque eu sou

novo aqui na cidade.

Ao trabalhar a questão da vida e estrada dos tropeiros, o jovem Maurício

apresentou-se pilchado e relatou a história destes, que passavam por Mangueirinha,

como dizia o hino do município: “Mangueirinha foste rota, das tropas de bois

franqueiros e de muares transportados, por peões e fazendeiros, pois ainda resta

vestígio da pousada dos tropeiros” (TRAUTMANN, 1991).

O nome do município teve sua origem nessa prática de acolher os tropeiros

e proporcionar espaço de descanso ao gado nas mangueiras, para no dia seguinte

continuar a caminhada rumo às feiras de São Paulo. Portanto, a origem de

Mangueirinha tem raíz nessa prática dos tropeiros que por aqui passavam e, com

certeza, sofreu também consequências com a construção da estrada de ferro.

Mauricio relatou a própria experiência de tropeiro que era, sempre presente nas

festas do município e dos padroeiros, bem como, nos rodeios, mostrou inclusive os

materiais utilizados nas tropeadas.

A luta pela terra e pelo direito à vida, que foi o grande desejo dos caboclos

na Guerra do Contestado, tendo no monge, um refúgio, uma segurança, é também o

anseio motivador de qualquer família na atualidade, que busca melhoria em

emprego, moradia e qualidade de vida. Embora não faça parte do objeto desse

estudo, vale acrescentar, que o município de Mangueirinha ainda vive um fenômeno

parecido, onde há diversas comunidades de reassentamentos de barragens – Itá,

Segredo, Chapecó – e assentamentos do movimento do MST11.

11 Reassentamentos de Usina: Usina do Segredo, da cidade de Mangueirinha e Reserva do Iguaçu – Comunidades do Santo Antônio Segredo I, Segredo IV Sede I, Segredo IV Sede II; Usina do Itá da cidade do Itá – SC – Comunidades do Itá I e Itá II; Usina do Rio Chapecó – Comunidade Mãe Terra.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Guerra do Contestado fez parte da História do Paraná, por isso a

necessidade de estudá-la como História local e regional na quinta série e não

apenas como um movimento social do Brasil, na oitava série. Costumeiramente ela

é estudada acostada à Guerra de Canudos: como no nordeste teve Canudos, no sul

teve Contestado; lá houve o beato Antônio Conselheiro, aqui o monge João Maria.

Esta maneira de estudar é simplista para relatar um período tão intenso e

significativo, inclusive da História do Brasil, visto que também interferiu no

estabelecimento de limites interestaduais.

Estudar a Guerra do Contestado como História do Paraná é aproximar o

conteúdo da vivência dos alunos e seus familiares, é envolvê-los como protagonistas

da História local e atual, portanto, é motivador estudá-la dessa forma, possibilitando

assim, formação de novos pesquisadores.

Os sinais da passagem do monge por Mangueirinha e região, como os

poços de água santa, a prática do batismo e a procissão realizada na sexta-feira

santa nas fontes, continuam tendo significado ainda hoje no sudoeste do Paraná. A

fé no monge João Maria e nos dotes curativos da água dos pocinhos, é uma

herança cultural da região, quer queira ou não a Igreja Católica oficial ou qualquer

outra denominação Pentecostal ou Neo-pentecostal.

Por fim, estudar a História local é dar condições cognitivas, pedagógicas,

históricas e culturais aos alunos para compreender os fenômenos sociais no tempo,

e, sentir-se parte dela, como construtores e agentes dessa mesma História. É dar

condições de identificar e compreender os símbolos cívicos, religiosos-culturais

presentes no seu cotidiano e ter uma leitura crítica da realidade, cujos valores

devem ser preservados.

Diante desse cenário, este artigo pretendeu contribuir para a historiografia

local, com destaque ao legado cultural da passagem do monge João Maria pela

região, com a expectativa de que surjam novas pesquisas sobre esse tema.

Assentamento do MST as comunidades: 13 de Maio, 12 de Outubro, Planalto, Conquista, Três Capões, Natal da Esperança, Anjo da Guarda, Nossa Senhora Aparecida, Nova Prata Centro e Agrovila Nova Prata; João Maria, São Gonçalo.

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Ressalte-se ainda, que, esse tipo de religiosidade popular, ainda que não encontre

eco no chamado mundo acadêmico, é parte importante na constituição de

identidades locais.

REFERÊNCIAS

AURAS, M. Guerra do Contestado: a organização da irmandade cabocla.

Florianópolis, Editora da UFSC, 1984.

CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A campanha do contestado. 2. ed. Florianópolis:

Lunardelli, 1979.

Cartilha “Mandamentos da Natureza – Monge João Maria D Agostinho. “Deus” do

Contestado, s/a, 1999.

Entrevistas realizadas com pessoas da comunidade, em 02 de abril de 2010, na

localidade de Covó, Município de Mangueirinha – PR.

Entrevistas com alunos da 5ª série, em 28 de outubro de 2010, na Escola Estadual

Cel. Misael Ferreira Araújo, Município de Mangueirinha – PR.

FACHEL, José Fraga. Monge João Maria: recusa dos excluídos. Porto Alegre;

Florianópolis. Editora da UFRGS; UFSC, 1995.

Hino de Mangueirinha, letra de Ribamar Trautmann, música de Valdir Alves da

Silva, 21 de novembro de 1991.

JR, Renato Augusto Carneiro (Coord.). Lendas e Contos Populares do Paraná.

Curitiba, Secretaria de Estado da Cultura, 2005. Cadernos Paraná da Gente Nº. 3.

MACHADO, Paulo Pinheiro. Colonização e conflitos no sul do Brasil: estudos

sobre os Campos de Palmas. In: Motta, Márcia Menendes; Olinto, Beatriz Anselmo;

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Oliveira, Oséias. (Org.). História Agrária: Propriedade e Conflito. 1ª ed. Guarapuava:

Unicentro, 2009, p. 279-296.

MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação

das chefias caboclas (1912-1916). Campinas, SP: UNICAMP, 2004.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o

surto milenerista do Contestado. São Paulo, Duas Cidades, 1974.

QUEIROZ. Maurício Vinhas de. Messianismo e Conflito Social: A Guerra

Sertaneja do Contestado – 1912-1916. 3 ed. São Paulo, Ed. Ática, 1981.

Secretaria de Estado da Educação, Diretrizes Curriculares da Educação Básica

para História. Curitiba, 2008.

TONON, Eloy. A força da tradição: dos faxinais às irmandades místicas do

Contestado. In: Motta, Márcia Menendes; Olinto, Beatriz Anselmo; Oliveira, Oséias.

(Org.). História Agrária: Propriedade e Conflito. 1ª ed. Guarapuava: Unicentro, 2009,

p. 319-340.

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