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desígnios da certeza

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DESÍGNIOS DA CERTEZA NUM RIO DE INCERTEZASDISCURSO E PRÁTICA NO URBANISMO CARIOCA APÓS BRASÍLIA

ANDRÉ LUIZ PINTOTESE DE DOUTORAMENTO APRESENTADAÀ FACULDADE DE ARQUITETURA DA UNIVERSIDADE DO PORTOEM ARQUITETURA

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à Mar

à Joana

à família

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Esta investigação foi realizada entre os anos de 2010 e 2015, junto ao Programa

de Doutoramento da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Durante o

período fui acolhido pelo Centro de Estudos em Arquitetura e Urbanismo (CEAU),

pouso seguro nesse período de trabalho, e apoiado pela Fundação para Ciência e

Tecnologia. Meus agradecimentos iniciais são dirigidos a essas instituições, seus

dirigentes, corpos docentes, colegas e funcionários.

Guardo agradecimento especial a dois mestres que há muito orientam meus

caminhos profissionais. Ao meu orientador Professor Nuno Portas a quem agradeço a

paciência, a disponibilidade e tudo que pude aprender em nossas aulas e conversas desde

o Mestrado e agora neste Doutoramento, e ao co-orientador Professor Sérgio Magalhães,

companheiro de tantas empreitadas no qual espelho minha atuação profissional. Aos dois

meu muito obrigado por me tornarem um profissional mais qualificado e atento às

oportunidades e incertezas.

Deixo também o agradecimentos especial aos professores que observaram com

mais proximidade essa jornada, nomeadamente os professores Manuel Fernandes de Sá,

sempre com uma palavra de incentivo, Álvaro Domingues, e nossas infindáveis conversas

sobre o tema e o Professor Rui Braz com o apoio amigo desde sempre.

Agradeço também aos amigos para a vida que fiz neste período de estudos na

FAUP: Ana Fernandes, Attílio Fiumarela, Helena Amaro, Ivo Martins, José Martins, Marta

Martins, Teresa Cálix, Francisco Lourido e Nuno Travasso, obrigado pelas discussões, pelo

tanto que aprendi com vocês, e por todo o apoio logístico, intelectual e afetivo.

Agradeço aos dedicados funcionários da FAUP que sempre estiveram

disponíveis para ajudar apesar da distância. Também agradeço pela paciência e

disponibilidade em ajudar a desvendar factos e publicações aos funcionários das

Bibliotecas do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto Municipal de

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Urbanismo Pereira Passos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, do

Centro Cultural Banco do Brasil e do Acervo do Jornal O Globo. A todos os atores

entrevistados para esta investigação deixo também meu agradecimento pelo tempo

dispensado, pela simpatia com que me receberam e pelas informações que tanto ajudaram

a desenvolver esta investigação. Deixo igualmente o meu muito obrigado a Sofia Silva,

fundamental nos últimos metros desse percurso.

Agradeço à minha família. À minha Joana com o apoio, companheirismo e amor

dispensado desde o primeiro momento em que nos conhecemos. À minha Maria do Mar,

presente de Deus, que transformou o fim desta jornada num grande turbilhão, superado

graças ao maior amor que alguém pode sentir. Ao carinho do meu avô Irineu e minha avó

Nair (que não chegou a ver concluída essa caminhada). Ao amor e suporte incondicional

de meus pais. Ao exemplo na busca por me qualificar mais e melhor de meu irmão e ao

meu querido sobrinho Felipe. Como não poderia deixar de ser, agradeço à família

Carvalho Neto, sogros, cunhadas, cunhados, sobrinhos e primos por todo o apoio e

carinho desde sempre.

À todos que passaram pela minha vida nesse período e ajudaram de alguma a

forma a desvendar caminhos e a que tudo fosse mais leve, meu muito obrigado.

E vamos à Jornada!

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Esta tese pretende abordar os caminhos do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro

no intuito de compreender as principais tensões emergentes dos preparativos para a

realização dos Jogos Olímpicos de 2016.

Os Jogos Olímpicos são para a cidade do Rio um coroamento de um processo iniciado

nos anos 90 vinculado a um urbanismo que se pretende alinhado a um discurso baseado em

princípios estabelecidos, em um momento onde a Modernidade passa a absorver as incertezas

inerentes à sua própria constituição.

Com o intuito de compreender este processo, procura-se conhecer a própria

constituição da Modernidade e seus princípios. Constroem-se “objetivas” baseadas nos

princípios da mudança, do progresso e do projeto, segundo as diferentes fases destes processos

de modernização e, a partir de então, buscam-se os “filtros” que tornam possível reconhecer as

diversas vertentes de expressão da(s) Modernidade(s) no urbanismo.

Aplicam-se ao Estudo de Caso essas “objetivas” e “filtros” conceituais, dando a direção

da análise feita sobre o contexto da cidade do Rio de Janeiro, sempre numa perspetiva ampliada,

observando o contexto político, económico e urbano entre dois períodos desenvolvimentistas, os

50 anos em 5 de Juscelino Kubitschek e os anos Lula, ambos períodos especiais para o país e para a

cidade, momentos de (re)afirmação da imagem, busca da autoestima e renovação da promessa de

construção de um futuro róseo. Uma espécie de fé religiosa, uma “parusia”, no primeiro

momento, baseada pela confiança irrestrita nas mãos dos especialistas movidos pela razão

Moderna, e no segundo, pela fé vinculada a realização dos Jogos e seu legado.

Este processo percorre meia década e revela um descolamento entre o discurso e a

prática do urbanismo carioca. Esta condição é o que se pretende evidenciar nesta dissertação,

não como resposta única para a complexidade do processo, mas como uma das várias respostas

possíveis consoante a “lente” com que se fotografa a realidade, incorporando-se ao esforço de

tantos outras perspetivas para compreendê-la.

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This thesis aims to address the urban paths in the city of Rio de Janeiro in order to

understand the key emerging strains of preparations for the Olympic Games in 2016.

The Olympics are for the city of Rio a crowning of a process initiated in the 90’s

linked to an urbanism that is to be aligned to a speech based on principles established at a

time when modernity begins to absorb the uncertainties inherent to its own constitution.

In order to understand this process, we seek to understand the own constitution of

Modernity and its principles. Built up “objective” based on the principles of change,

progress and the project, according to the different phases of these modernization

processes and, thereafter, to seek the “filters” that make it possible to recognize the various

aspects of Modernity expression in urbanism.

Are applicable to the case study these concepts of “objective” and “filters”, giving

the direction of the analysis in the context city of Rio de Janeiro, always in a broader

perspective, noting the political, economic and urban differences between two periods:

developmentalist, 50 years on 5 Juscelino Kubitschek and the Lula years. Both periods were

special times for the country and the city, moments of (re)affirmation of the image, search

for self-esteem and renewal of the promise of building a rosy future. A kind of religious

promise based first, on the unrestricted trust in the hands of experts moved by Modern

reason, and the second one, based on the faith linked to the Olympic Games and its legacy.

This process that goes through half a decade, reveal a detachment between the

speech and the practice of carioca’s urbanism. This condition is what this thesis want to

show, not as the only answer to the complexity of the process, but as one of several

possibilities depending on the “lens” that is photographing the reality, incorporating the

efforts of so many other perspectives to understand it.

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Esta tesis tiene como objetivo abordar los caminos urbanos en la ciudad de Rio de

Janeiro con el fin de comprender las principales tensiones emergentes de los preparativos para

los Juegos Olímpicos en 2016.

Los Juegos Olímpicos son para la ciudad de Rio la coronación de un proceso

iniciado en los años 90 vinculados a un urbanismo que ha de estar alineado a un discurso

basado en los principios establecidos en momentos en que la modernidad comienza a

absorber las incertidumbres inherentes a su propia constitución.

Para entender este proceso, se busca satisfacer la constitución misma de la

modernidad y sus principios. Construir el “objetivo” sobre la base de los principios de

cambio, progreso y proyecto, de acuerdo con las diferentes fases de los procesos de

modernización y, a partir de entonces, a buscar los “filtros” que permiten reconocer los

distintos aspectos de la expresión de la Modernidad en el urbanismo.

Aplicar para el estudio de caso éstos “objetivo y filtros conceptuales”, dando la

dirección del análisis del contexto de la ciudad de Rio de Janeiro, siempre con una perspectiva

amplia, teniendo en cuenta la situación política, económica y urbana entre dos períodos de

desarrollo, el de Juscelino Kubitschek y los años Lula, ambas ocasiones especiales para el país y

la ciudad, momentos de (re) afirmación de la imágen, la búsqueda de la autoestima y la

renovación de la promesa de construir un futuro de color de rosa. Como una especie de

promesa religiosa basada primero en la confianza ciega en manos de expertos movidos por la

razón moderna, y segundo por la fe vinculada a los Juegos Olímpicos y su legado.

Este proceso ha recorrido una década revelando un desprendimiento entre el

discurso y la práctica del urbanismo carioca. Esta es la condición que pretende mostrar este

trabajo, no como única respuesta a la complejidad del proceso, sino como una de las varias

respuestas posibles en función de la “lente” con la que se retrata la realidad, incorporándose a

los esfuerzos de tantas otras perspectivas de su comprensión.

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ACRJ – Associação Comercial do Rio de Janeiro. ADEMI – Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário. AP – Área de Planejamento. BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. BRICS – Bloco de países emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. BRT – Bus Rapid Transit. CBD – Central Bussines District. CEDUG – Comissão Executiva para o Desenvolvimento Urbano da Guanabara. CEF – Caixa Econômica Federal. CEPAC – Certificado de Potencial Adicional de Construção. CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. CIDEU – Centro Iberoamericano de Desenvolvimento Estratégico. COB – Comité Olímpico Brasileiro. COI – Comité Olímpico Internacional. COL – Comité Olímpico Local. COT –Centro Olímpico de Treinamento. DER – Departamento de Estradas de Rodagem. EUA – Estados Unidos da América. FHC – Fernando Henrique Cardoso. FIFA – Fédération Internationale de Football Association. FIRJAN – Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro. IBC – International Broadcasting Center. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. JK – Juscelino Kubitschek . LDDC – London Docklands Development Coporation. MCMV – Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida. MEC – Ministério da Educação e Cultura. MPC – Main Press Center. PAA – Plano Aprovado de Alinhamento. PAC –Programa de Aceleração do Crescimento. PAL – Plano Aprovado de Loteamento. PDDCRJ – Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro. PDDUS – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável. PECRJ – Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. PECRJ-II – 2º Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. PEPRJ –Plano Estratégico da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. PEU – Plano de Estruturação Urbana. PIB – Produto Interno Bruto. PLAN-RIO – Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro. PLUA – Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio2016. PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. PND – Plano Nacional de Desenvolvimento. PT – Partido dos Trabalhadores. PUB-RIO – Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro. RJ – Rio de Janeiro. SUDEBAR - Superintendência de Desenvolvimento da Barra da Tijuca. SWOT – Metodoloia de análise Strengths; Weaknesses; Opportunities; Threats. TSE – Tribunal Superior Eleitoral. UEP – Unidade Especial de Planejamento. UIA – União Internacional de Arquitetos. URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. WWW – World Wide Web. ZE – Zona Especial.

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“No começo da minha jornada, eu era ingênuo. Eu ainda não sabia que as respostas desaparecem enquanto a pessoa continua a viajar, que há apenas mais complexidade, que há ainda mais inter-relações e mais perguntas”.

KAPLAN, 1996. p. 07 apud STRAUSS; CORBIN, 2008, p. 63.

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INTRODUÇÃO À JORNADA

Esta investigação teve início no primeiro dia do mês de Outubro de 2009,

véspera do anúncio da escolha da cidade sede da trigésima primeira edição daquele

que se tornou o maior evento desportivo do mundo: os Jogos Olímpicos. Nesse dia,

numa reunião entre importantes arquitetos e urbanistas cariocas, questionei a

realização do evento no Rio de Janeiro. Com o plano olímpico ainda pouco

divulgado, a referência possível era a dos Jogos Pan-americanos realizados dois anos

antes, que pouco acrescentaram à cidade.

No dia seguinte, o Rio de Janeiro foi escolhido como sede dos Jogos e, a partir deste

facto, a cidade viu emergir várias tensões importantes em diversos âmbitos, sobretudo na

questão urbana. Tensões estabelecidas a partir da primeira análise expedita, das promessas

suscitadas pela proposta olímpica, de transformação nas formas e nas dinâmicas urbanas

estabelecidas. Quanto mais avançava o conhecimento sobre a proposta, mais a reflexão sobre

o tema indicava a importância da compreensão dessas tensões e de seu contexto.

Potenciada pela experiência profissional pessoal como coordenador de um

estudo desenvolvido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – RJ que promoveu uma

alternativa à proposta olímpica vitoriosa a pedido da Prefeitura da Cidade do Rio de

Janeiro, e que resultou nas bases para a realização do concurso de projeto para a Zona

Portuária: o “Porto Olímpico”, a ideia de investigar as principais linhas que estruturaram

as respostas do plano olímpico para a cidade ganhou corpo e concretizou-se com o

acolhimento no âmbito do perfil Formas e Dinâmicas Urbanas do Programa de

Doutoramento em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto.

Nos debates junto à professores e colegas, a necessidade de enfrentar a jornada

munido do conhecimento mais amplo, para além daquele circunscrito pelas disciplinas

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da arquitetura e do urbanismo strictu senso, apresentava-se como uma condição cada vez

mais clara. Por isso, esta investigação procurou ir além da simples análise dos Jogos

Olímpicos como evento isolado, superando as questões mais práticas e restritas à

realização do evento em si. Pretendeu-se, uma análise multidisciplinar tendo como base

todo o contexto que envolve a política, a economia, os atores e a própria disciplina do

urbanismo, no momento atual e no passado que o influencia.

Uma rápida análise do atual contexto em que se situava o Estudo de Caso já

impunha a necessidade de se ampliar a visão para esse contexto mais alargado. Na primeira

década do século XXI, a cidade do Rio de Janeiro inseriu-se numa espiral de

desenvolvimento positiva suportado por um ciclo igualmente positivo da economia

brasileira. Tal quadro promoveu um conjunto de processos de transformação da sociedade

e da cidade. A expectativa de realização dos Jogos Olímpicos, foi (e ainda é) apresentada

como um acelerador desses processos, um catalisador para a sonhada Modernidade, que se

reflete no desejo de afirmação de identidade e autoestima, presente desde os primeiros

passos da “Modernidade brasileira”, ainda no início do século XX.

Atrelado ao discurso da oportunidade, das catálises e sinergias, vinculado a uma

Modernidade que reconhece em seus princípios a incerteza, a possibilidade dos Jogos

Olímpicos é promotora de uma expectativa, que se apresenta reforçada (ou seria

legitimada?) pelo que parece ser uma espécie de “fé cega” depositada em uma espécie de

releitura das certezas do passado, prometendo um resultado absolutamente positivo para

o desenvolvimento e reafirmação da imagem da cidade no contexto global. Nesta

perspectiva, de que Modernidade se trata? Aquela apoiada nas certezas, ou a que

reconhece as incertezas dos processos e procura lidar com esta condição?

Na busca pela compreensão do processo em questão, entendeu-se necessária

como primeiro passo, o reconhecimento das características desses dois momentos dos

processos de modernização. Esta identificação se dá através dos princípios que

sustentaram, e sustentam, estes processos e que foram identificados por François Ascher

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como – mudança, progresso, projeto1. Através deles pretende-se desenvolver para esta

investigação um modo de observar o Estudo de Caso e seu contexto de modernização,

refletindo, nas palavras de Berman, o ambiente da Modernidade, “[...] de aventura, poder,

alegria, crescimento, auto-transformação e transformação das coisas em redor — mas

[que] ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o

que somos [...][Fazendo parte] de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo o que é

sólido desmancha no ar’” 2.

Assim sendo, o objeto empírico desta investigação constitui-se como o

conjunto dos caminhos do urbanismo carioca, seus processos, planos e projetos que se

estabeleceram nestas perspectivas da(s) Modernidade(s), que são, de certa forma, causa e

consequência das tensões que se estabelecem. Já o objeto teórico constitui-se como lente

de observação do objeto empírico. Procurar-se-á assim, desenvolver duas “objetivas” de

análise correspondentes com estes momentos e seus princípios, e ainda, os “filtros” que

permitem a observação das diferentes vertentes urbanísticas inseridas nesse contínuo

processo de modernização. Os princípios que servem de base para estas “objetivas”

promovem as respostas às certezas e/ou às incertezas que são inerentes aos processos em

que estão inseridos. Pretende-se que através destas “lentes”, seja possível identificar como

os princípios da mudança, do progresso e do projeto se constituem e se transformam,

referenciando assim os caminhos do urbanismo carioca.

Tendo esta perspectiva como referência, fez-se necessária a definição de uma janela

temporal que melhor permitisse a compreensão de uma série de eventos e caminhos

diversos, na política, na economia, na auto-estima e no urbanismo brasileiro e carioca. Tal

janela é delimitada por dois grandes eventos e dois importantes momentos para o país e

para o Rio de Janeiro nestes diversos âmbitos, nomeadamente: a inauguração de Brasília

(1960) e o Governo de Jucelino Kubitschek (1956/60), e a futura realização dos Jogos

Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 e os Anos Lula (2003/10).

1 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 23.

2 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Os caminhos do urbanismo carioca dentro dessa janela temporal, permite a

análise de uma série de processos, planos e projetos, que permite caracterizar a cidade

como um palimpsesto de experiências. Estarão presentes nesta investigação: caminhos

identificados com os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), outros

promovidos por dissidentes do mesmo, passar-se-á ainda pela perspectiva operacional e

burocrática do planeamento, por importantes exemplos de atuação através de projetos

urbanos e do planeamento estratégico, por experiências de inovação e também de

tentativa de reprodução de práticas internacionais, e ainda por importantes processos

técnicos e políticos de ruptura, até alcançar, finalmente, a perspectiva do sonho

proporcionado pelo legado olímpico.

De um modo geral, o foco das investigações já realizadas na perspectiva de análise

do urbanismo carioca dá-se mais sobre os planos e projetos de forma isolada, limitadas à

questões formais e autorais específicas. Há muitas vezes uma lacuna no que diz respeito a

ter-se em conta os contextos mais alargados dos processos, tanto na sua perspectiva

conceitual de significação, quanto nas condições que levam às propostas, observando

referências culturais, político-económicas e sociais. Ao quadro de investigação sobre o

urbanismo carioca falta ainda, desenvolver a própria relação de influência entre os próprios

processos, planos e projetos, existentes, brecha que esta investigação pretende auxiliar a

preencher, e que ambiciona colaborar com a identificação de importantes questões,

sobretudo aquelas que emergem do especial momento que vive a cidade, aquando da

preparação e realização dos Jogos Olímpicos em 2016.

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Logo à partida nesta investigação, uma pergunta de fundo foi apresentada,

formulada questionando os caminho das decisões quanto ao desenvolvimento da cidade

do Rio de Janeiro a partir da oportunidade de sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Com

isso, outros questionamentos surgiram tanto no campo conceitual, que serve de base para

a análise, quanto na própria observação do Estudo de Caso.

Das primeiras prospecções surgiram, como já dito, questões advindas daquelas

decisões que viabilizaram a realização dos Jogos Olímpicos, deixando emergir uma série

de tensões. Como o que interessa nesta investigação é a compreensão do processo que

chega até os factos em si, desde os princípios condutores até a influência do contexto

mais amplo no processo decisório e de legitimação dos quais são resultado. Pretende-

se observar uma relação que possa clarificar a pergunta de fundo: Como as decisões

tomadas em função dos Jogos Olímpicos de 2016 condicionam as decisões do urbanismo carioca tendo

em vista os princípios adoptados no processo de decisão?

É na perspectiva de desenvolver uma resposta original que esta investigação

lança mão, sob a óptica conceitual, da construção das “objetivas” de análise

mencionada anteriormente, que, ao fim e ao cabo, caracterizam o contexto conceitual

desses processos em andamento na cidade do Rio de Janeiro. Estes princípios

estabilizados nas “objetivas” serão utilizados para relacionar os pontos a explicar.

Também na perspectiva de originalidade, esta investigação procura analisar o contexto

do Estudo de Caso de forma alargada, procurando identificar uma série de correlações

entre processos, planos e projetos, entre o discurso e a prática nos diferentes

momentos do urbanismo carioca.

Tendo em vista a identificação da escolha da Barra da Tijuca como “coração

dos Jogos”, como principal tensão que emerge da oportunidade de realização dos

Jogos Olímpicos de 2016, define-se a hipótese que se pretende por à prova nesta

investigação afirmando que: Os Jogos Olímpicos fazem emergir tensões que indicam que são os

princípios de uma Modernidade que traduz tempos de certezas, aqueles que promovem as linhas que

guiam o urbanismo carioca em pleno século XXI.

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Seguindo o caminho que pretende por à prova a hipótese apresentada, definem-

se os objetivos geral e específicos desta investigação. Como objetivo geral estabelece-se,

à partida, a necessidade de compreensão mais ampla sobre o tema da Modernidade,

procurando entender os processos de modernização que a constitui e sua reprodução na

reflexão sobre as cidades, abrangendo dois momentos: o da Modernidade dotada de

certezas como base legitimadora de suas decisões, e outro, no qual a Modernidade se vê

condicionada pelo reconhecimento da incerteza. Pretende-se desta forma, construir um

arcaboiço conceitual capaz de definir as duas “objetivas” de análise

correspondentes aos diferentes momentos da Modernidade, aquele em que se

destilava certezas e outro, de reconhecimento das incertezas. Pretende-se explorar

como interagem os princípios da(s) Modernidade(s), suas representações (filosófico-

culturais e conceituais sobre a cidade) e a realidade (de um contexto urbano específico)

como base para a tomada de decisões dos principais atores técnicos e políticos e

consequentes tensões.

A partir das “objetivas” definidas como objetivo geral desta investigação

procurar-se-á enfrentar os objetivos específicos que dizem respeito diretamente ao

Estudo de Caso – a cidade do Rio de Janeiro, que são:

• Examinar o papel dos principais atores envolvidos nos processos

decisórios com especial destaque para aqueles que representaram o Estado

em seus respectivos períodos, explicitando motivações políticas,

socioeconómicas e simbólicas que sustentaram as decisões.

• Assinalar em cada período investigado o contexto urbano e

sociocultural, desde a escala nacional até a local, procurando

identificar as ferramentas de legitimação utilizadas como suporte

das decisões tomadas.

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• Traçar as trajetórias intelectuais dos principais atores envolvidos na

realização dos planos e projetos, sendo eles especialistas da disciplina do

urbanismo ou mesmo políticos responsáveis efetivos pelos rumos da cidade.

• Identificar, através das “objetivas” desenvolvidas para estruturação do quadro

conceitual geral, como os princípios da(s) Modernidade(s) caracterizam

as soluções, suas particularidades, inovações e também tensões.

• Compreender como os caminhos do urbanismo carioca, suas

formas e dinâmicas estabelecidas, influenciam e são influenciadas

pelas possibilidades incitadas pelos Jogos Olímpicos, deixando

emergir tensões importantes para o desenvolvimento da cidade.

Esta investigação foi desenvolvida sob o desafio constante entre a possibilidade da

análise criteriosa e a própria vivência de alguns dos processos em “tempo real”. Na busca

por consolidar um quadro de investigação sólido, procurar-se-á centrar em duas vertentes:

uma de compreensão teórica permitindo a constituição de “objetivas” que serviram como

base de análise, instituindo um pilar fixo para o processo de investigação; e outra, tendo a

primeira como referência, de investigação pormenorizada sobre os caminhos do urbanismo

carioca, seus processos, planos e projetos nos últimos cinquenta anos.

Nesta perspectiva, e em consonância com o objetivo geral desta investigação, a

primeira parte deste documento trata da compreensão conceitual que pretende servir de base

para a o entendimento da génese dos princípios que constituem a ideia da Modernidade,

segundo François Ascher, os princípios da mudança, do progresso e do projeto.

Apoiado na compreensão de que a Modernidade se constituí como um conjunto de

processo de modernização contínuo, e ainda presente, nas sociedades, cidades e no

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pensamento sobre elas, procurou-se identificar nos dois primeiros capítulos as duas

“objetivas” de análise, para em seguida associá-las às diversas perspectivas e experiências, que

compartilham os processos da modernização, desenvolvidas em contextos e tempos diversos.

Adaptam-se as “objetivas” a uma série de “filtros” que exprimem características diversas de

uma mesma visão e processo, que se refere às diferentes transformações ocorridas e aos

distintos modos como as cidades foram pensadas em variados momentos, constituindo assim,

o terceiro capítulo que encerra a primeira parte deste documento. Esta parte objetiva a

estabilização das referências conceituais que permitem estabelecer “fotografias”, para manter a

linha da metáfora utilizada, do Estudo de Caso que permitam uma estabilidade para a análise e

reflexão sobre o tema tornando possível observar os processos de modernização, viabilizando

a comparação entre experiências, sendo também aplicável à compreensão de outros campos

disciplinares como o da História urbana e política.

A execução dos primeiro e segundo capítulos desdobra-se a partir da análise

cruzada e comparativa de diferentes fontes bibliográficas, de diversas origens disciplinares

como a geografia, a filosofia e a sociologia, procurando identificar as bases dos princípios

que definiram as “objetivas”. Neste processo dá-se relevante destaque à obra de François

Ascher, que fornece o suporte para a identificação dos princípios da Modernidade e seus

processos; e também à autores como Alvin Toffler, Antony Guiddens, David Harvey,

Domenico De Masi, Edgard Morin, Gilles Lipovetsky, Jean-François Lyotard e Zygmunt

Bauman, entre outros pensadores que permitem desenvolver uma fundamental

compreensão da(s) Modernidade(s), da origem de seus princípios e dos processos das

transformações que os caracterizam nos diferentes contextos e tempos de certezas e

incertezas. O terceiro capítulo procura definir o impacto desses princípios sobre as cidades

e a forma de pensá-las. São os “filtros” aplicáveis às “objetivas”. Na definição desses

“filtros”, dá-se novo destaque à Ascher, mas também à Alain Bourdin, Bernardo Secchi,

Françoise Choay, Jordi Borja, Leonardo Benévolo, Nuno Portas, Peter Hall, Sérgio

Magalhães, entre outros, incluindo ainda a literatura fruto dos CIAM e os caminhos

estabelecidos por seus dissidentes, em especial o traçado por Constantinos Apostolou

Doxiadis. O cruzamento e interpretação das informações obtidas desses diversos autores

será utilizada como forma de melhor compreensão dos princípios da(s) Modernidade(s)

aplicados à disciplina do urbanismo e o cumprimento do objetivo geral desta investigação.

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A Segunda Parte deste documento se debruça sobre a Cidade do Rio de

Janeiro como Estudo de Caso, e exige uma especial atenção a diferentes âmbitos

disciplinares recorrendo então à História política, económica e urbana do Brasil e do

Rio de Janeiro. Este momento da investigação tem seu ápice na análise dos principais

processos, planos e projetos desenvolvidos dentro do período estabelecido pela janela

temporal escolhida para este estudo.

A investigação desenvolve uma vasta pesquisa temática sobre a História política e

económica, sempre na perspectiva do geral/país para a local/cidade. Recorre à vasta

produção literária e de investigação sobre os diferentes âmbitos abordados. Nesta fase da

jornada, os acervos das bibliotecas do Centro Cultural Banco do Brasil, da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro deram suporte fundamental à pesquisa. Deu-se

destaque a autores como Almeida Magalhães, Armelle Enders, Carlos Lessa, Eduardo Bueno,

Flávio Villaça, Marcelo Neri, Marly Silva da Motta, Maurício Dominguez Perez, entre outros.

Seguindo para o tema urbano propriamente dito, são estudados a fundo os

principais processos, planos e projetos da cidade do Rio de Janeiro, através de literatura e

documentos específicos, desde as transformações de Haussman na virada do século XIX

para o XX, passando por Agache na década de 1930, mas sobretudo, dando especial

destaque àqueles desenvolvidos a partir da década de 1960, quando o Rio de Janeiro

deixou de ser capital da República, constituindo assim o quarto e o quinto capítulo desta

dissertação. O acesso aos registos de processos, planos e projetos em suas publicações

originais se deu através das bibliotecas do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira

Passos, e do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, ambos vinculados à Prefeitura

da Cidade do Rio de Janeiro.

Quanto mais a investigação se aproximava dos dias atuais, paradoxalmente, mais difícil

tornou-se o acesso à informação sobre planos e projetos destinados à cidade. Observa que os

documentos tornaram-se cada vez mais fugazes, menos importantes como perspectiva de

futuro a ser seguida e por isso mesmo, de menor necessidade de manutenção de seus registos.

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Nesta perspectiva, essa dificuldade foi equacionada através da recolha de

informações cedidas por atores influentes, disponibilizados nem sempre de forma fácil, e

através de pesquisa realizada em arquivo dos médias, jornais revistas e artigos variados,

que permitissem obter informação consistente sobre os processos mais recentes do

urbanismo carioca. Dá especial destaque à pesquisa feita junto ao acervo do “O Globo”,

principal jornal impresso carioca, além de outros jornais e publicações variadas, muitas

vezes disponíveis apenas na World Wide Web.

Outro importante recurso utilizado na investigação foi uma série informações

verbais coletadas através de entrevistas semidiretivas, ou semidirigidas, no sentido de que

não foram inteiramente abertas nem encaminhadas por um grande número de perguntas

precisas, onde se procurou deixar os entrevistados livres para falar abertamente,

esforçando-se somente para os deixar dentro do tema proposto. Também se recorreu à

informações obtidas em palestras e apresentações quando houve dificuldade de conseguir

entrevistas com alguns dos atores de interesse. O foco principal na escolha dos

entrevistados esteve direcionado a representantes políticos, incluindo atores do poder

executivo local e representantes do legislativo. Também foram ouvidos formadores de

opinião e membros da academia, atores fundamentais na busca por identificar questões

relevantes para a construção da narrativa que se pretendeu desenvolver neste trabalho.

Na perspectiva de análise do plano olímpico para os Jogos de 2016, que ao fim

e ao cabo é o ponto inicial que motiva esta investigação, procurou-se suporte na ampla

literatura sobre o tema olímpico, onde se pode destacar alguns autores como Eva

Kassens-Dor, Gilmar Mascarenhas, James Miyamoto, Luís Millet, Michael Payne, entre

outros. No entanto, a maior parte deles tiveram como foco o evento como objeto

isolado e, por vezes a análise das consequências específicas de cada experiência. Há

pouco sobre as relações de causa e efeito entre o porquê das decisões tomadas em

favor do evento e seus resultados a posteriori, menos ainda da relação destes com os

princípios base da ideia de Modernidade.

O facto desta investigação tratar de um processo em andamento, do qual não

podemos aferir resultados concretos, é um dos desafios a se ter em conta nesta jornada.

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Caracterizando bem o momento atual de incertezas, as decisões, embora contratualizadas,

indicam uma condição de efemeridade, comportando-se ao sabor das circunstâncias. Por

isso, optou-se por concentrar a análise na proposta apresentada na candidatura da cidade,

apresentando apenas as alterações fundamentais para o processo que leva à confrontação

da hipótese apresentada. Vale registar a dificuldade encontrada durante o processo de

investigação, que impossibilitou o contato com actores vinculados diretamente ao Comité

Olímpico Brasileiro, embora não tenham sido poucas as investidas, restando apenas a

possibilidade de abordagem a partir de palestras abertas ao público em geral.

Outro constrangimento para a investigação digno de nota refere-se à reprodução

de grande parte das imagens dos planos e projetos do Rio de Janeiro. A reprodução do

material consultado nos acervos públicos tornou-se por vezes inviável, em geral pela

burocracia dos processo internos das bibliotecas. Por isso, parte da iconografia desta

dissertação foi retirada de outras publicações, acervos jornalísticos e mesmo da World Wide

Web, após serem confrontadas com o conhecimento prévio dos temas. Optou-se por

privilegiar a importância de ilustrar o documento de forma ampla como maneira de

complementar as informações escritas, tendo a preocupação de que se trata de uma

investigação sobre o Rio de Janeiro realizada num contexto académico externo à cidade.

Com a análise e reflexão sobre a vasta informação coletada sobre o Rio de

Janeiro, seu urbanismo e contexto geral, e munido das “objetivas” de análise

desenvolvidas a partir do reconhecimento dos princípios da(s) Modernidade(s), pode-se

desenvolver a reflexão necessária à prova da hipótese apresentada, compondo o 6ª

capítulo deste documento, que trata da conclusão da investigação.

Introduzidos os diversos aspectos que balizaram este processo de investigação,

passa-se ao registo desta Jornada, materializado nesta dissertação que, conforme

apresentado, se estabelece em duas partes, uma conceitual e outra referente ao Estudo de

Caso, onde estão contidos os próximos seis capítulos que seguem, sob o título:

“Desígnios da certeza num Rio de incertezas: discurso e prática no urbanismo

carioca após Brasília”.

14

15

I

(IIN)CERTEZAS

A Modernidade é um conjunto de processos que se dão num largo período

histórico que, embora seja de difícil definição, esta investigação considera que teve início

entre os séculos XV e XVI, desenvolvendo-se, depois, até à contemporaneidade. É causa

e consequência de uma série de processos de modernização da sociedade, da política e do

modo de pensar e intervir nas cidades que, assim como diz Françoise Ascher, estas

possuem no centro das suas dinâmicas três princípios fundamentais que servirão de base

para o desenvolvimento deste trabalho: a mudança, o progresso e o projeto3.

Podem ser variadas, as “objetivas” para analisar e caracterizar a Modernidade e

o conjunto complexo de processos que a constitui. Nesta primeira parte, esta

investigação procura construir um quadro de referências conceituais de forma a

constituir duas “objetivas” de análise que estabeleçam uma grelha de leitura e de

compreensão desses princípios centrais, que compõem a essência da Modernidade,

desde a sua constituição até a contemporaneidade.

Segundo François Ascher4, podemos identificar três grandes fases da Modernidade.

As duas primeiras fases correspondem, na perspetiva do autor, a tempos de construção de

certezas que acabam por ser questionadas numa fase posterior – um período ao que David

Harvey5 classificara como “Pós-Modernidade”. Esta última classificação (“Pós-

Modernidade”) também foi usada por Zygmunt Bauman6 a propósito das fases da

3 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 23.

4 Idem, ibidem, p. 25.

5 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 45.

6 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

16

Modernidade em suas primeiras obras. Contudo, o autor viria posteriormente a substituí-la

pela expressão “Modernidade líquida”, por contraponto à ideia de “Modernidade sólida” –

correspondente às duas primeiras fases definidas por Ascher. Identificam-se assim, na

perspetiva de Bauman, dois momentos ou fases principais de um ideário de projeto de

mundo e de visão de sociedade, um baseado em certezas e outro condicionado pelo

reconhecimento da incerteza. Outros autores utilizam diferentes nomes para designar os

mesmos momentos, conforme se lerá ao longo desta dissertação.

17

certeza nome feminino. 1. qualidade do que é certo 2. firmeza no que se afirma; convicção 3. coisa certa; evidência 4. estado de espírito caracterizado pela crença de que se está na posse da verdade 5. estabilidade.7 “...havia alguma teologia inerente a ação (talvez até de inspiração divina) a que o espírito humano estava fadado a responder...”8

A certeza é um tema fundamental na constituição da Modernidade, nas

suas primeiras fases.

Este primeiro capítulo tratará dos diversos processos que compõem a

“Modernidade sólida”, na terminologia de Bauman, que tem como referência a ideia de

certeza. Procurar-se-á encetar uma aproximação às bases que conduziram à afirmação dos

princípios fundamentais destas fases primevas da Modernidade, e seus componentes

característicos, desde os seus primeiros movimentos, passando pela sua consolidação, até ao

momento em que se assiste à perceção de que as impurezas contidas no processo

resultaram em sua transformação e “fusão”9.

7 certeza In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. Disponível na WWW: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/certeza>[Consult. 2014-02-17].

8 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 24.

9 Fazendo uma metáfora com a Química, lembramos que o ponto de fusão de uma substância pura corresponde à temperatura em que a fase sólida e a fase líquida coexistem e que o acréscimo de energia, mantém, ainda assim, a temperatura constante até que a substância tenha-se fundido completamente. No entanto a presença de impurezas produz considerável aumento do intervalo de fusão. A metáfora consiste na observação de que uma série de impurezas, no sentido de condições fora do controle pretendido, promoveram a paulatina fusão das ideias da “Modernidade sólida” como será visto no decorrer do capítulo.

18

Embora não haja consenso quanto à definição do momento onde tem início10 a

“primeira” ou “alta Modernidade”, na designação de François Ascher11, esta investigação

segue as perspetivas desenvolvidas por Marshal Berman12 e Sérgio Magalhães13,

considerando que – ainda que num estágio embrionário e sem consciência de sua

condição – as primeiras ideias modernas surgiram ainda entre o século XV e XVI, a partir

de acontecimentos que, de certa forma, questionavam o próprio statu quo da humanidade.

Como marco inicial dos processos de modernização, pondera-se o período das

grandes navegações e da expansão marítima ocorrida ainda no século XV14, quando foi

iniciado um primeiro processo de questionamento acerca do mundo e do lugar do

Homem nesse lugar, então expandido. A própria descoberta do “Novo Mundo”, assim

designado, representa fortemente esse momento, aventando a possibilidade de um futuro

num lugar novo. A partir de então, novas possibilidades surgem além daquelas antes

conhecidas, não raras vezes afrontando o receio e a desconfiança quanto à possibilidade

de enfrentamento do mar, aquele ao qual Deus teria dado “o perigo e o abismo”15...

As grandes descobertas estabeleceram uma nova esperança e contribuíram para o

germinar de um processo de substituição de um conjunto de crenças e de verdades de

base teológica, assentes numa perspetiva de tempo linear, em que o Apocalipse era uma

possibilidade sempre próxima. Conforme destacado por Sérgio Magalhães, é no ciclo das

descobertas de “Novos Mundos” e do “Paraíso nos confins do Oriente” que, quase

paradoxalmente, se “[inaugura] o período em que, com a supremacia da ciência,

10 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 11.

11 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 25.

12 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

13 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 18.

14 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed.,2003, p. 28.

15 Referência ao Poema "Mar Português" de Fernando Pessoa.

19

pretendendo-se orientada pela razão, o [H]omem constrói as novas bases que permitirão

estruturar a noção de que o Paraíso pode ser na Terra. Isto é, o futuro pode ser aqui”16.

Além da nova perspetiva sobre o mundo e da possibilidade de um futuro

diferente daquele que era definido pela religião, o desenvolvimento da ciência e da

navegação, que permitiu a movimentação em mar aberto a partir da referência nos astros,

inaugurou a importância da precisão e da técnica. Segundo Domenico de Masi17, a

relevância dada à precisão e à técnica aumentou gradativamente: no século XVI através

de Leonardo da Vinci; no século XVII, pelas mãos de Galileu e Newton; e no século

XVIII, através dos Iluministas. Estes últimos aplicaram a importância da noção da

precisão à vida quotidiana e procuraram preencher todos os vazios da compreensão

humana, estabelecendo as premissas que se tornariam as bases de desenvolvimento da

ciência e da construção posterior de uma sociedade industrial utilizadora dos artefactos

tecnológicos, das normas genéricas do mercado da circulação livre e de suas respetivas

racionalidades. Esta mudança quanto ao statu quo da realidade se estabeleceu lentamente e,

no século XVII, este processo de transformação (ou processo de modernização, como

preferiria Ascher), estabeleceu-se de forma definitiva. Instaurava-se assim, a via

modernorum de que falava René Descartes, rumo ao novo projeto para a humanidade,

garantido pela confiança no progresso permanente.

Importantes pensadores como Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-

1642), René Descartes (1596-1650) ou Isaac Newton (1642-1727), entre outros, iniciaram

um extraordinário esforço intelectual em prol do desenvolvimento de uma ciência

objetiva, leis universais e arte autónoma nos termos da própria lógica interna dessas,

resultando na construção de doutrinas baseadas em ideais como igualdade, liberdade, fé

16 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 19.

17 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 265.

20

na inteligência humana e razão universal18. Apresentavam-se desta forma, os conceitos

Iluministas que resultariam na transformação do mundo através da almejada mudança

profunda em relação ao entendimento de toda a existência humana.

As ideias do Iluminismo estabeleceram o primado da razão sobre a

superstição, consolidando uma ideia de mudança ancorada não na verdade de uma

revelação divina, mas no conhecimento obtido através da exploração científica. Os

desígnios da Providência foram substituídos pela fé depositada nos desígnios da razão

e da ciência. O homem tornava-se livre dos laços da fé, da tradição e do saber

adquirido a partir de instituições e autoridades externas à lógica da razão: o primado

da razão e da ciência transformaria o mundo19. O sociólogo polaco Zygmunt Bauman

reflete sobre essa mudança perseguida pela Modernidade através da metáfora dos

“sólidos”. Os ideais solidificados pela certeza na razão e no desenvolvimento das

ciências substituíram “outros sólidos”, nomeadamente aqueles que haviam sido

constituídos a partir da tradição e das crenças teológicas. Para a Modernidade,

representavam um passado vinculado à imperfeição. Os novos “sólidos” impostos

pela Modernidade, ao contrário, foram concebidos no sentido da perfeição20. A

Modernidade constituiu-se a partir desse princípio de mudança orientada pelo desejo

de criação de uma nova ordem que subjugasse tudo aquilo que não se estabelecesse

dentro de uma classificação e reconhecimento do mundo apoiado na razão.

Ao princípio da mudança desenvolvido e acarinhado na “Modernidade

sólida”, estava subjacente a crença de que a ação política e a ação técnica poderiam

ser direcionadas para eliminar toda a contradição do mundo, sendo que a destruição

criativa, inerente à implementação desse projeto, se afirmava como condição sine qua

non para alcançar o progresso – “Afinal como poderia um novo mundo ser criado

sem se destruir boa parte do que viera antes?”21. Através de uma nova ordem que

18 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 23.

19 MARCONDES, Danilo, Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 140.

20 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 09.

21 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 26.

21

procurava a substituição do antigo pelo novo, promovendo a “destruição criativa”, a

Modernidade consolidava, a cada tabula rasa, a certeza de uma vitoriosa marcha rumo

ao futuro, onde o progresso inequívoco era o caminho definitivo não só das cidades,

como também da sociedade.

Para os Iluministas, o sentido da vida e a felicidade eram elementos, que não mais se

colocavam como sendo forjados pela salvação eterna, teológica. Sendo assim, a felicidade

terrena, individual e coletiva seria o único destino possível e desejável para a humanidade, no

qual Homem e o Estado22 deveriam concentrar todos os esforços, sulcando um caminho para

uma felicidade23 que seria alcançada naturalmente, através do progresso. Neste sentido,

tendencialmente sucede “o novo [é] considerado melhor ou mais avançado do que o

antigo”24, ratificando-se dessa forma, o corte com o passado e de sucessivas versões do

próprio projeto moderno25. A ideia de progresso da Modernidade, segundo Bauman26,

fundava-se numa profunda confiança no presente, consequência de que a humanidade

poderia construir o futuro conforme a sua conveniência e desejo. O otimismo refletido na

certeza da possibilidade de controlar o mundo e torná-lo melhor através da razão e da técnica

acabou por transformar-se numa confiança que se aproxima de um ato de fé27.

A ideia de um progresso incansável e inexorável era entendida como

cumprimento de um desígnio superior28, o qual tinha como representantes os profetas da

razão e da ciência. Para Guiddens, tratava-se, num certo sentido, de uma confiança cega,29

e essa espécie de fé moveu o homem na sua convicção sobre as possibilidades

22 Segundo François Ascher (2010, p. 25), nessa fase observa-se a emancipação da política e o nascimento do Estado-nação.

23 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 290.

24 MARCONDES, Danilo, Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 140.

25 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 17.

26 Idem, 2001, p. 152.

27 GIDDENS, Antony, As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991, p. 35.

28 DE MASI, Domenico, op.cit., p. 292.

29 GIDDENS, Antony, op.cit., p. 35.

22

libertadoras da razão na construção de um futuro que não teria seus limites estabelecidos

aquém da possibilidade de perfeição30.

A certeza no progresso e a confiança nos desígnios e meios disponibilizados para

a construção do futuro – a fé na razão e a opção por um Estado fomentador –

permitiram e alimentaram o desenvolvimento de utopias e de experimentações que, na

perspetiva defensora da instauração da mudança almejada, buscavam a construção desse

pretenso futuro perfeito, conduzido pelas mãos do homem e seu projeto.

A certeza depositada numa ideia de mudança rumo a um futuro instaurando uma

nova ordem, conferia uma nova importância também, quase paradoxalmente, aos conceitos

de caos e de desordem, aos quais o princípio do projeto da Modernidade se manteve alerta

e em constante e radical oposição. Nesta medida, sendo o caos a alternativa contrastante

com a nova ordem desejada, o caminho estabelecido como unicamente desejado e possível

seria o próprio projeto moderno31. Tal princípio essencial da “Modernidade sólida”

encontrou suas bases fundamentais de implementação e legitimação no Estado-nação, bem

como no desenvolvimento da crença na razão e na ciência.

O Estado, atuando como uma espécie de “jardineiro” tornou-se responsável por

efetivar a nova ordem32, e como tal, tornou-se o fornecedor dos critérios para avaliar a realidade.

Legitimado pela razão e pela ciência, promoveu a conquista e subordinação da própria Natureza

às necessidades humanas, dividindo as “plantas úteis [ –aquelas] a [ser] estimuladas e

cuidadosamente cultivadas” e as “ervas daninhas a [ser] removidas ou arrancadas”33. Tudo

aquilo que permanecesse dúbio nesse contexto de dicotomia seria descartado, todas as

30 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 33.

31 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 14.

32 Idem, 2007, p. 104.

33 Segundo Bauman (1999, p. 29), o Estado nação nasce na Modernidade como uma “força missionária” empenhada examinar e transformar a sociedade segundo a ordem da razão. A sociedade racional seria a finalidade do Estado que como jardineiro podava segundo seus interesses numa “arte topiaria” na direção do projeto racional.

23

ambivalências deveriam ser exterminadas através do uso da categorização e do controle estatal e

científico, num exercício intenso de racionalização. Assim, a ordem suplantaria a ameaça do caos

através dos desígnios estabelecidos pelo Homem – isto é, do seu projeto.

As bases fincadas na certeza quanto às possibilidades de mudança através dos

avanços da ciência e da confiança irrestrita na razão laica e no progresso histórico linear

impediam o reconhecimento das características dogmáticas34 que marcavam a conceção do

projeto da Modernidade. Nele, a razão e a ciência em rutura com a tradição e a religião,

pretendiam controlar não só as “forças naturais como também a compreensão do mundo e

do Eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos”35.

A mudança e o progresso rumo à ordem desejada pela Modernidade realizar-se-iam então,

através do desígnio do Homem, e através dele seria construído o futuro perfeito para a

humanidade. O projeto dessa nova ordem desenvolver-se-ia como único caminho possível,

tendo como base a confiança moderna, revigorando à eterna curiosidade humana sobre o

futuro36. As utopias modernas foram reflexo desses desígnios e não sendo apenas meras

profecias ou sonhos inúteis, de forma clara ou mais ou menos velada, “eram tanto

declarações de intenções quanto expressões da fé em que o que se desejava podia e devia

ser realizado”37. O lema da Modernidade era conhecer para prever e prever para agir, como

defendia Auguste Comte (1798-1857), defensor da possibilidade do conhecimento positivo

sobre a sociedade, ao qual atribuía as mesmas características de método de construção

seguido pelas ciências físico-naturais, nomeadamente, a Física38. O projeto, a antecipação do

porvir e, por isso, a própria produção de futuro, tornaram-se o método por excelência de

“domínio do mundo” preconizado pela Modernidade.

A cidade foi o palco privilegiado das transformações da Modernidade e o rosto

mais visível dos seus efeitos contrastantes, positivos e negativos, sobretudo no que se

refere às condições de vida das suas populações, e à possibilidade de conceber o futuro

34 MORIN, Edgar et al, Os problemas de fim do século. Lisboa: Editorial Noticias, 1991, p. 09.

35 HABERMAS, Jurgen, “Modernity: an incomplete Project” in FOSTER, Hal (ed.), The anti-aesthetic: essays on post-mdern culture. Washington: Post Townsend, 1983 apud HARVEY, 2006, p. 23.

36 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 151.

37 Idem, ibidem, p. 151.

38 À ciência positiva sobre o social chamava Auguste Comte a Sociologia, também designada, à luz da sua concepção epistemológica sobre o conhecimento, de Física Social (CRUZ, 1995).

24

das cidades segundo um propósito específico contribuindo fortemente para a emergência

de uma disciplina vinculada ao tema urbano. Da diversificada reflexão que compartilhava

em todas as suas vertentes, a confiança no projeto moderno, na razão, no

desenvolvimento científico-tecnológico e no conhecimento integral, enciclopédico do

mundo, aplicada às cidades, emergiu o urbanismo. A partir de então, o futuro das cidades

poderia ser efetivamente projetado pela mão do Homem. Os planos e os projetos dos

especialistas eram ferramentas que na “Modernidade sólida”, traduziam na prática modos

de alcançar desígnios baseados na confiança na razão e no desenvolvimento científico. Os

planos e projetos39 da Modernidade tornavam-se através das mãos dos especialistas o

caminho único para a consolidação da mudança rumo ao progresso.

Importantes fatos históricos consolidaram a caminhada da Modernidade enquanto

período de grandes e profundas transformações. Alguns configuraram-se como verdadeiros

momentos de revolução no campo social, político, económico e também urbano.

As Revoluções Burguesas possibilitaram a correspondência, no âmbito político,

da representatividade que a burguesia emergente havia conquistado através da

acumulação de poder económico. Após acontecimentos como a Revolução Gloriosa

Inglesa (1688), que pôs fim ao absolutismo na Inglaterra e estabeleceu, nesse país, uma

Monarquia Constitucional, seguiram-se outros momentos: da Revolução Americana

(1776), que deu a independência aos Estados Unidos da América; à Revolução Francesa

de finais do século XVIII (1789), que depondo a Monarquia absolutista afirmou como

ideais a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade – estes amplamente difundidos e

venerados juntamente com a fé na inteligência humana e na razão universal. Momentos

39 Neste momento da Modernidade os conceitos de plano e projeto se confundiam como objeto de materialização dos desígnios dos especialistas. Mais tarde, em outro momento, os conceitos se distanciarão e o primeiro se estabelecerá como ferramenta de processos mais alargados na sua escala e definições e o segundo se constituirá mais como desenho que se efetiva no território numa escala mais pontual.

25

que abriram o caminho definitivo para a afirmação do liberalismo e para a supremacia da

nova indústria que surgiria sobre a velha agricultura40.

Nascia assim o modelo liberal que, sobre a base iluminista, teve como

conceitos basilares a centralidade conferida ao indivíduo, a liberdade e democracia,

somados aos do livre mercado teorizado por Adam Smith (1723-1790) e ao do Estado-

nação. Estes preceitos tornaram-se ponto de referência para o desenvolvimento do

sistema capitalista. O cruzamento do livre pensamento de Voltaire com o livre mercado

de Adam Smith, para quem o crescimento económico, guiado pela “mão invisível” do

mercado poderia ser infinito (debalde a omissão sobre a finitude dos recursos do

planeta41), permitiu que, no século XIX, o liberalismo se desenvolvesse como um

modelo que criava as condições básicas para a superação do capitalismo mercantil,

aquele que media a potência das nações apenas segundo o desempenho da balança

comercial, medido pelo saldo entre exportações e importações.

Paralelamente, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do

século XIX, a Revolução Industrial, que das Revoluções Burguesas seria aquela com

impactos mais profundos – muito além da mudança do modo produtivo da manufatura

para a indústria de lógica capitalista, estes impactos seriam sentidos em vários âmbitos,

também na reflexão sobre as cidades.

Instaurava-se o momento que Ascher42 designa como a “segunda Modernidade”

ou a “Modernidade média”, onde os avanços tecnológicos, a revolução agrícola, o

liberalismo e o desenvolvimento do capitalismo industrial, ganham a capacidade de gerar

grandes impactos transformadores numa sociedade que consolidava a razão e a técnica

como pontos centrais do pensamento. A revolução passada no campo, possibilitada pela

desagregação da propriedade feudal e pela política de emparcelamento (enclosures), iniciada

ainda no século XVI, expulsou população campesina em direção aos centros urbanos.

40 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 307.

41 Idem, ibidem, p. 344.

42 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 26.

26

Como consequência, houve um inchaço das cidades, concomitante com a disponibilidade de

uma significativa reserva de mão-de-obra, ao serviço do desenvolvimento da indústria.

Figura 1. Dudley street; gravura de Gustave Doré de 1872.

O modelo liberal que se constituiu tornar-se-ia a base do capitalismo industrial,

desenvolvendo-se uma série de transformações na organização do trabalho:

universalizando o trabalho assalariado, privatizando e concentrando os meios de

produção, convertendo a força de trabalho em mercadoria, ratificando a indústria

manufatureira como locomotiva das economias, e concentrando a força de trabalho nas

grandes fábricas. Essas transformações, em conjunto com os conceitos iluministas e

liberais voltados para a racionalização, a eficiência e a produtividade, foram absorvidas

pela sociedade e rapidamente chegaram à vida quotidiana, conformando o que pode ser

definido como a sociedade industrial43.

No âmbito das ideias liberais, o progresso, “manifestação mais extrema do otimismo

radical”44, dar-se-ia pela conquista da felicidade através da livre iniciativa do Homem munido

da razão45. Racionalidade era a palavra-chave que permeava todos os campos da vida. Para

Bauman, a busca pelo estabelecimento de uma ordem da razão levava à fragmentação das

questões, ou seja, a possibilidade de fragmentar os problemas tornava mais fácil a sua

43 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 358.

44 BAUMAN, Zygmunt, Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 16.

45 Como se verá mais a frente no 2º capítulo, essa certeza no progresso contínuo, entrou em crise após a Iª Guerra Mundial que instaurara as primeiras dúvidas quanto as consequências possíveis do primado da razão, do avanço tecnológico e do laissez faire.

27

compreensão e governação, abrindo espaço a uma ciência onde o entendimento do todo

provinha da soma de várias partes46, indo ao encontro da afirmação da ordem almejada.

Dentro desta perspetiva, o engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor

(1856-1915) compreendeu que a eficiência industrial poderia ser potenciada a partir da

instalação de um sistema racional de produção que primasse pela aplicação do método

científico à organização do trabalho, criando com isso um novo paradigma que serviria de

base para a vida moderna. Este método assentava na ideia da divisão e da especialização das

diversas fases do processo produtivo, e está essencialmente explanado na obra “Os princípios da

administração científica” (1911), onde foram estabelecidos os conceitos de organização e gestão

do trabalho que dão corpo à doutrina que, em Gestão, se designa como “Taylorismo”.

Dois anos depois da obra de Taylor, Henry Ford (1863-1947), também engenheiro

e norte-americano, aperfeiçoou o processo de especialização e desenvolveu o conceito da

linha de montagem, que acrescentaria uma novidade às ideias de Taylor: o estímulo à produção

e ao consumo em massa. Esta combinação foi batizada como “Fordismo”.

Figura 2. Linha de montagem do Modelo T na fábrica de Highland Park.

Segundo Bauman, essa combinação “foi sem dúvida a maior realização até hoje da

engenharia social orientada pela ordem”47. As ideias “Fordo-Tayloristas” encaixaram-se

perfeitamente num “mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos

46 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 20.

47 Idem, 2001, p. 68.

28

supervisores; [um] mundo de homens dirigidos por outros, buscando fins de modos

determinados ambos por outros”, e “por essa razão era também o mundo das autoridades:

de líderes que sabiam mais e de professores que ensinavam a proceder melhor”48.

O modelo industrial, sintetizado por Alvim Toffler49, identificava seis preceitos

centrais na sua composição: a padronização e o parcelamento da produção ilustrados no

“Taylorismo” e na linha de montagem “Fordista”; a sincronização dos tempos de vida em

favor da otimização do trabalho; a economia de escala, estruturas cada vez maiores e mais

especializadas na produção e nos serviços; a centralização do poder e a rígida ordem

hierárquica piramidal; e a maximização da eficiência e da produtividade.

O modelo industrial consolidou em larga escala o projeto da Modernidade,

sedimentando a ideia de que “somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades

universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas”50. Revelação essa que

se daria na condição de que a tradição e a falta de perspetiva de construção do amanhã,

fossem substituídas pela experimentação científica e pela programação precisa no sentido

de previsão de um futuro planeável e executável por meio de estudos, pesquisas, análises,

estatísticas, estudiosos e escolas51 capitaneadas por especialistas. A Modernidade prometia

o progresso contínuo, linear e positivo ad aeternum, concretizado através de um projeto de

mudança orientado para a libertação definitiva de tudo aquilo que era irracional - o mito,

a religião, a superstição e o uso arbitrário do poder.

O projeto da Modernidade e todas as certezas a ele atreladas, também sofreu

momentos de abalo estrutural. Contudo, de certa forma, esses abalos foram superados e

transformados em catalisadores temporários do próprio projeto. Assim sucede em sede

do desenvolvimento de modelos de organização social e económica alternativos ao

capitalismo liberal, como seja o modelo comunista, gerado no caldo reflexivo que se

debruçava sobre os problemas da sociedade industrial, da desigualdade social e sobre a

questão do bem comum. No entanto, os princípios fundamentais da Modernidade

48 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 75.

49 TOFFLER, Alvin, A Terceira Onda. Rio de Janeiro: Record, 16ª ed., 1980.

50 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 23.

51 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 375.

29

mantiveram-se sempre preservados. Segundo Bauman, as ideias socialistas e comunistas,

frutos desses questionamentos, possuem a mesma base histórica daquela sociedade a que

se opunham, e isso contribuiu para a manutenção duradoura da ideia de sociedade

moderna. Tanto o socialismo quanto o comunismo constituíram-se como outras versões

do projeto da Modernidade, sendo que neles as promessas modernas eram aguçadas e

radicalizadas52. Os socialistas almejavam a construção de uma nova sociedade que seria

projetada para libertar a humanidade das suas restrições a partir do domínio científico

pleno da natureza. Bauman afirma que, segundo o pensamento socialista, o modelo

capitalista e liberal era ele próprio, “um travão” ao desenvolvimento da própria

Modernidade calando a razão, que só podia falar de plena voz através da planificação

global53. Nessa perspetiva, a racionalidade, a eficácia e a produtividade desejadas pelo

modelo socialista, seriam dependentes de projetos grandiosos, de uma planificação social

ilimitada, imensa e pesada da tecnologia e da transformação total da natureza, que seriam

levados a cabo através de instituições sociais racionalmente concebidas e previstas pelo

projeto socialista. A ideia do bem-estar e da intervenção do Estado para corrigir

desigualdades e suportar o essencial demonstra a dedicação do socialismo ao sonho de

igualdade universal, e o entendimento da importância da coletividade que a partir deste

momento é efetivamente absorvido pelo discurso da Modernidade.

Em certo sentido, o comunismo que também aspirava ao ideal moderno de

uma sociedade planeada racionalmente, surgiu em resposta ao facto de que, na sua

visão, o socialismo pecava por manter a crítica mais no nível do discurso, sem efetivá-la

no poder. Para o comunismo, tal inércia era inaceitável já que urgia a necessidade de

derrubar a administração “inepta” e “corrupta” imposta pelo capitalismo liberal54.

Através do modelo comunista estabeleceu-se uma crítica radical ao capitalismo, que

passou a ser reconhecido como um “tumor cancerígeno no corpo sadio do progresso

moderno”55 e um estágio a ultrapassar no caminho de uma sociedade que desejasse

perseguir os sonhos modernos. Nem a importância de ter fundido os “sólidos do

52 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 278.

53 Idem, ibidem, p. 280.

54 Idem, ibidem, p. 282.

55 Idem, ibidem, p. 278.

30

passado”, profanado os sacramentos e impelido a força criativa da humanidade a limites

sem precedentes, salvava o capitalismo da feroz crítica comunista. Com a nova visão

proposta, pretendia-se a consciência exata de todas as necessidades da sociedade e a

construção da mesma deveria ser provida através da ação dos seus planeadores e

especialistas, que, por sua vez, deveriam assumir o governo da sociedade sem esperar

pelas consequências do que era considerado o desgoverno capitalista e liberal. O

comunismo era o caminho mais curto para o reino da razão. A assunção ao poder dos

planeadores que compartilhavam essas certezas resultaria na elaboração de grandes

planificações gerais e projetos tecnocráticos em larga escala. Na experiência soviética,

que resultou nos planos quinquenais de Stalin, onde toda a sociedade, a economia e a

própria natureza tinham seus respetivos desenvolvimentos definidos a partir da lógica

racional e científica, garantidas nas infinitas possibilidades da tecnologia posta ao

serviço da humanidade e do consequente progresso rumo à felicidade futura.

Mesmo os próprios liberais percebiam os danos promovidos pelo capitalismo

industrial e, como tal, procuraram retocar a doutrina socioeconómica no sentido de

reduzir os seus efeitos indesejáveis, criando uma versão desses modelos supracitados que

acabou sendo consolidada através do welfare típico do modelo industrial europeu, levado a

cabo especialmente no período do pós-guerra.

A Iª Grande Guerra abalou fortemente as estruturas que suportavam as ideias

basilares da Modernidade. Até onde o desenvolvimento científico e a constituição dos

Estados modernos levariam a humanidade? As dúvidas que emergiram do conflito não

impediram o aproveitamento dos acontecimentos subsequentes à Revolução Russa de

1917, inspirada e comandada por Lenine, que utilizou o momento para guiar a revolução

armada interna contra o Czar e a burguesia, tomando o poder e consolidando a primeira

experiência de revolução comunista da história56. A efetivação dos comunistas no poder

56 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 501-503.

31

foi seguida de uma radicalização da certeza demiúrgica num destino rumo à felicidade da

humanidade através do desenvolvimento tecnológico e racional. Enquanto isso, no

ocidente, o modelo liberal instaurou-se definitivamente como locomotiva da reconstrução

das economias e da sociedade no pós-primeira Guerra, e se sustentaria até à crise

financeira de 1929, que abalaria gravemente os Estados Unidos e a Europa.

De facto, a mão invisível não foi capaz de reorganizar o caos que se seguiu após o crash

da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Apenas com o New Deal, de Franklin Roosvelt (1882-

1945), que se afastava da ortodoxia liberal de Adam Smith e se aproximava das ideias de John

Maynard Keynes (1883-1946), foi possível desenvolver um plano de reformas caracterizado

pelo protagonismo do Estado no alavancar das ações que procuravam assegurar a retoma das

economias locais e a própria recuperação económica mundial.

Keynes duvidava que a mão invisível fosse suficiente para assegurar a resolução

das grandes depressões económicas e desequilíbrios do mercado. Por isso, a mão visível e

intencional do Estado era necessária a um conjunto de intervenções que garantissem o

equilíbrio da economia e do mercado. No entanto, Keynes, de base liberal e capitalista,

defendia que as intervenções públicas na economia deveriam ser aplicadas em ciclos

breves, e que o progresso tecnológico responderia aos problemas sociais desde que as

novas tecnologias se traduzissem em maior bem-estar e não em maior desemprego.

Os temas da desigualdade social e a atenção conferida ao bem da coletividade

marcaram, além do modelo comunista, também o advento da social-

democracia. Articulando a crença na superação conciliatória da luta de classes com a

defesa de um modelo liberal atento aos preceitos do “Keynesianismo” – esta viria a

desempenhar, sobretudo no pós-segunda Guerra Mundial, um papel fundamental no

modelar, particularmente no contexto europeu, de sistemas políticos baseados na

combinação entre a democracia representativa, o Estado-Providência e um modo de

financiamento da economia assente no crescimento económico mas também no

angariar, por parte do Estado, de significativas receitas fiscais. As abordagens de

pendor “Keynesiano” revelaram-se, de resto, fundamentais na recuperação das

32

economias e das sociedades que haviam sofrido a destruição e a tabula rasa promovidas

pelos conflitos bélicos de 1914-1918 e 1942-1945.

Figura 3. Dresden, Alemanha, e a destruição da Guerra, 1945.

As duas Grandes Guerras do século XX puseram à prova a confiança na

Modernidade, e a certeza no seu projeto foi colocada em cheque. No entanto, o abalo

nas estruturas da Modernidade foi absorvido e transformado em motivo para a

radicalização de algumas de suas ideias. De facto, a confiança na razão e no

desenvolvimento científico foram as alavancas centrais na construção de respostas às

necessidades urgentes, geradas pelo próprio conflito – “Foi quase como se uma

versão nova e rejuvenescida do projeto do Iluminismo tivesse surgido, como fênix, da

morte e destruição do conflito global”57.

Especialmente no urbanismo, disciplina com um papel fundamental nas

reconstruções dos pós-guerras, assumiu-se uma retórica bastante dogmática, suportada pela

figura dos especialistas que se apresentavam quase como messias, no que reforçava a crença

num caminho único baseado na racionalização e no desenvolvimento técnico-científico.

A atuação do Estado baseada nas políticas “Keynesianas” foi de fundamental

importância para a solidificação da ideia da possibilidade de progresso, assegurando

57 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 71.

33

as principais necessidades da população através de grandes programas sociais e

serviços públicos em áreas então consideradas básicas, tais como a alimentação, a

educação, a saúde e o acesso à moradia. O Estado-Providência e a retórica do

urbanismo que se consolidou no mesmo período foram elementos fulcrais e

definitivos na manutenção da confiança moderna de construção da sociedade e da

“cidade do futuro”, mesmo após todas as dúvidas que emergiram como resultado do

belicismo e do totalitarismo das engenharias sociais nos períodos de guerra.

A tabula rasa da guerra ofereceu-se, de facto, como uma oportunidade para o

reforço do projeto da Modernidade - no que veio a refletir-se, na afirmação de um

urbanismo e um planeamento baseados nas certezas, assumidos como correspondendo a

uma das funções de regulação do Estado Providência, que garantia a implementação dos

seus desígnios. O urbanismo que optara pela ordem ao invés do caos refletiu como nunca, a

confiança cega no futuro e apresentou-se como o responsável pela conceção do projeto que

guiaria o caminho do progresso até à cidade ideal e à sociedade da perfeição.

No entanto, embora a experiência das guerras tenha proporcionado a renovação

ou sedimentação da fé na salvação moderna – em muito alimentada pelo tipo de papel

desempenhado pelo Estado-Providência – a incerteza passou a ser um tema

omnipresente e indissociável das reflexões operadas sobre as mais variadas temáticas.

34

35

incerteza /ê/ nome feminino 1. falta de clareza; dúvida 2. estado de espírito caracterizado pela dúvida e pela indecisão; irresolução; perplexidade 3. situação possível mas que não se sabe se vai ocorrer; contingência 4. situação cuja resolução é imprevisível; incógnita58 “Because something is happening here But you don't know what it is Do you, Mister Jones?”59

A incerteza reconhecida e aceite nos processos de modernização, define um

novo momento em que os princípios base da Modernidade – mudança, progresso e

projeto – sofreram transformações importantes instituindo uma outra Modernidade.

Assim como observado no capítulo anterior, referente à fase das certezas que

constituíram a Modernidade, sobre esse novo momento, define-se uma “objetiva”

diferente. Da sua proximidade temporal - as transformações ainda se fazem presentes -

decorre diversificadas compreensões, resultando em diferentes expressões que tentam

definir esse novo momento da história da humanidade de várias formas: “Pós-

modernidade”, “Terceira Modernidade”, “Terceira Onda”, “Hipermodernidade”,

“Modernidade líquida”, entre outras. Tal variedade de visões revela uma dificuldade

metodológica de abranger todas as vertentes de análise deste momento. Contudo,

procurou-se observar, principalmente, os mesmos autores que colaboraram com a

compreensão dos processos da Modernidade levada a cabo no primeiro capítulo deste

documento, sem no entanto estar fechado para outras contribuições igualmente

58 incerteza In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/incerteza> [Consult. 2014-02-17].

59 Trecho da música Ballad of a Thin Man de Bob Dylan, 1965.

36

importantes. Procurou-se uma definição que se pretende mais neutra, logo, para se referir

a este novo momento que se inicia com a revisão dos princípios da Modernidade e invade

nossa contemporaneidade, esta investigação utilizará a expressão outra Modernidade. Nem

“nova” nem “pós”, de forma que não seja possível, a partida, tomar juízo de valor desse

novo momento no sentido de superação e substituição absoluta das ideias e princípios

estabelecidos até aqui. Desta forma define-se apenas como uma “outra” possibilidade,

transformada, mas não necessariamente sobrepujada por completo.

Procurar-se-á então, neste segundo capítulo, compreender esse novo momento à luz

de diferentes perspectivas nomeadamente as definições dadas por: François Ascher (2010)

que define esse período como “Terceira Modernidade”; a idéia da “Pós-modernidade” de

David Harvey (2006) e a “Modernidade Líquida” de Zygmunt Bauman (2001). Além desses

autores, a complexidade dessa outra fase da realidade, leva também a outros nomes como:

Alvin Toffler (1980) e sua “Terceira Onda”, Jean-François Lyotard (1993) e o fim das

“metanarrativas da Modernidade”, e também a “Hipermodernidade” de Lipovetsky (2004).

Várias “objetivas”, ou simplesmente termos e definições, possíveis para observar um outro

momento em que a certeza dá lugar à incerteza sem contudo optar por uma rutura radical e

completa com aquilo o que o precedeu, buscando ainda apoios que possam legitimar os

caminhos que se pretendem estabelecer dentro de um contexto das mais variadas dúvidas.

Como abordado no capítulo anterior, os preceitos Iluministas formavam, em

grande medida, as bases do processo de profundas transformações que conformaram as

fases primevas da Modernidade. Entre estes preceitos, a confiança na razão e na ciência,

bem como o desejo de mudança contínua do real, alimentavam a certeza da possibilidade

de construir um futuro róseo, calcado segundo uma rota linear e programável (chamada

progresso), definida pelo próprio Homem através de um projeto.

37

Conforme notado por De Masi, este novo momento não se formou, contudo, de

uma hora para outra60. Ele processou-se de forma ora mais lenta, ora mais acelerada, ao

sabor de alguns movimentos e acontecimentos concretos, os quais foram criando o

distanciamento histórico que permitiu pensar sobre as próprias transformações que vinham

conformando a Modernidade – refletindo sobre seus ganhos e perdas, e sobre a descoberta

de intenções incongruentes não explícitas61.

Alguns desses movimentos e acontecimentos deram-se ainda à medida em que se

consolidava a própria Modernidade, confirmando assim a afirmação de De Masi. Ainda

no início do século XX, em 1900, o rompimento de Sigmund Freud (1856-1939) com as

certezas da psicologia tradicional e a proposta do paradigma psicanalítico, foi um dos

movimentos precursores. Pouco tempo depois, em 1905, Albert Einstein (1879-1955)

publicava os seus primeiros trabalhos sobre a teoria da relatividade consolidados, dez

anos mais tarde, na sua “Teoria Geral da Relatividade” (1915). Nas artes, em 1907, Pablo

Picasso (1881-1973) desafiava a perspectiva com a exibição do cubismo e, em 1922,

James Joyce (1882-1941) publicava “Ulisses”, apresentada como “obra aberta”62, conceito

consolidado por Umberto Eco em 1962. Ascher destaca ainda o surgimento de novos

paradigmas que alteraram significativamente os próprios instrumentos de ação reflexiva,

nomeadamente a teoria dos jogos e das escolhas limitadas, as ciências cognitivas e as

teorias da complexidade, do acaso e do caos63. Estes novos avanços produziram reflexos

na economia e demais ciências sociais , na ciência política e no planeamento, ocorrendo

por reação àqueles ideais dominantes da Modernidade na primeira metade do século XX.

Acontecimentos e paradigmas como os acima referidos sinalizam e, simultaneamente,

engendram o início de um movimento de revisão crítica operada sobre os próprios princípios

basilares da Modernidade, transformando-os. Eles contribuem para introduzir e fazer

reconhecer – como novas condições filosóficas de vida, análise e intervenção sobre o mundo –

60 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 530.

61 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 288.

62 DE MASI, Domenico, op. cit., p. 530.

63 Para saber mais sobre esses paradigmas consultar: ECO, Umberto. Opera Aperta. Milão: Bompiani 1962; NEUMANN, John Von; MORGENSTERN, Oscar. Theory of Games and economic behavior. Princeton: Princeton University Press: 1953.; MORIN, Edgard. O método, vol.1-6. Lisboa: Publicações Europa-América 1991-1992; ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 34.

38

a complexidade, a incerteza e, suportes de uma noção de racionalidade pensada como constante

“adaptação dos meios para [atingir] um determinado fim”64.

Essas transformações foram definitivamente consolidadas a partir da

compreensão do caráter regressivo da engenharia social totalitarista dos excessos das

grandes narrativas da Modernidade, bem como através de experiências traumáticas como

os próprios conflitos bélicos, o Holocausto, e os bombardeamentos de Hiroshima e

Nagasaki65. A compreensão dessas experiências potenciaram a paulatina tomada de

consciência da ambivalência do progresso científico, acabando por colocar por terra

grande parte das certezas da Modernidade66. Os ideais Iluministas de racionalidade e

positividade científica, assim como as grandes narrativas projetadas pelos modelos

sociopolíticos e económicos, sejam liberais, capitalistas industriais ou comunistas,

passaram a ter as suas certezas questionadas.

Figura 4. Bomba atómica de Hiroshima (06-08-1945), uma hora após a explosão e a destruição dois meses depois.

64 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 35.

65 LYOTARD, Jean-François, O pós- moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 4ª ed., 1993.

66 MORIN, Edgar et al, Os problemas de fim do século. Lisboa: Editorial Noticias, 1991, p. 10.

39

A confiança no presente, baseada na crença de que o “tempo estaria sempre ao

nosso lado” e de que “somos nós [os Homens] que fazemos acontecer”67, que guiavam o

projeto da Modernidade rumo ao progresso permanente se liquefez nas incertezas que

emergiram a partir do reconhecimento da própria condição de ambivalência da Modernidade.

Nas suas fases primevas, a Modernidade estabelecera-se como uma ideia clara nos

seus princípios – na metáfora de Bauman, estávamos perante uma “Modernidade sólida”68. O

fator tempo era desconsiderado no processo de transformação que, invariavelmente, se

completaria por meio de um processo contínuo e garantido pelas possibilidades da razão e da

ciência, na conquista de um futuro perfeito. O resultado seria sempre o mesmo independente

das transformações que o tempo pudesse apresentar. No entanto, o reconhecimento da

incerteza liquefez estas ideias tidas como “sólidas”, para novamente recorrer à metáfora de

Bauman, abrindo espaço a processos de modernização fluidos, multiformes, propensos a uma

constante adaptação às transformações provenientes do fator tempo. Passa-se então, na

expressão de Bauman, para uma “Modernidade líquida”, onde os novos processos de

modernização fluem gerando ideias que se adaptam aos obstáculos que se apresentam, e

absorvem ou dissolvem outros mais no seu caminho69.

O projeto moderno dogmático, absolutamente confiante num progresso

constante e orientado a um futuro róseo (onde uma nova sociedade se estabeleceria em

contraponto e substituição total a tudo que a ela era precedente), se liquefez nos horrores

da guerra, nas respostas fracassadas de modernização, no desmontar das grandes

narrativas e das “sólidas” instituições que serviam de base de sustentação para o projeto

da Modernidade. O projeto das primeiras fases da Modernidade se liquefez, em suma, na

incerteza dos tempos contemporâneos70.

São muitos e complexos os novos processos que resultaram nesta outra

Modernidade, definida a partir da crise das grandes narrativas e a da revisão dos princípios

base que haviam estruturado a Modernidade na sua fase inicial. Estes últimos – mudança,

67 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 152.

68 Idem, 1999, p. 08.

69 Idem, ibidem, p.08.

70 MORIN, Edgar et al, Os problemas de fim do século. Lisboa: Editorial Noticias, 1991, p. 10.

40

progresso e projeto – viram abaladas as suas bases de segurança geradas pela ideia de

certeza e de legitimidade que emanava razão, e foram recolocados como ideias

processuais que necessitam de compreensão e legitimação permanente.

“O pós-modernismo abandona todo sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história a absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente”71.

Segundo Bauman, a mudança imprimida na fase da “Modernidade sólida” assentou

na fusão de ideias tidas como sólidas – como a tradição e as crenças sagradas – as quais

passavam a ser entendidas como resíduos de um passado imperfeito, substituindo-as por

outros novos “sólidos”, concebidos para a perfeição72. No entanto, nesta outra Modernidade

estes novos “sólidos” vêm passando por um novo processo, agora, de fusão causado,

sobretudo, pelo reconhecimento da condição ambivalente do projeto que se baseava na

certeza da razão e da ciência, e da desconstrução das grandes narrativas modernas. Neste

sentido, a crise da Modernidade passa, em grande medida, pelo reconhecimento da ideia de

incerteza. A ideia de construção de uma nova ordem perfeita deixou, como tal, de ser uma

possibilidade absolutamente credível e tal intenção foi gradativamente retirada da “agenda”73.

Ainda assim, o princípio da mudança permanece intrínseco ao contínuo e

incessante processo de modernização. No entanto perde força a retórica da

“destruição criativa”, bem como a ambição de substituição completa do “velho” pelo

“novo”, isto é, da rutura como caminho inexorável para o progresso. No âmbito da

arquitetura e do urbanismo, estas concepções traduzem-se na opção por construir

71 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 58.

72 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 09.

73 Idem, ibidem, p. 12.

41

novas formas sem abrir mão do que pré-existe, sem necessariamente esvaziar o espaço

ocupado pelo que já lá está74. Trata-se da constante adaptação às condições pré-

existentes aos processos que se constituem, cada um único e individual. Nesta outra

Modernidade, a valorização e aproveitamento das pré-existências não se referem apenas

às dimensões edificadas do espaço, mas também aos aspectos sociais e culturais dos

terrenos de intervenção – desmerecendo-se a busca pela perfeição, em prol da

admiração de uma imperfeição intencional e do inacabado.

“[Tende-se, portanto,] à apropriação, à inclusão, à colocar junto, ao mélange de estilos, à collage, ao pasticho, ao patchwork, ao multifuncional, à [preservação da] coexistência de múltiplos níveis de realidade”75.

Neste caminho, o princípio da mudança integra e absorve tudo o que existe,

desenvolvendo uma colagem de possibilidades e estilos, onde a memória, as

experiências passadas, e tudo o que já é existente, passa a ter um importância decisiva

em todos os processos. Segundo Lipovetsky, o que define este momento

“[...] não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das instituições modernas, é também a [revisitação da] memória [...], a remobilização das crenças e tradições, a hibridização individualista do passado e do presente”76.

No âmbito da arquitetura e do urbanismo, esta ideia de absorção das pré-

existências e incorporação, como um dado de projeto, da complexidade de tudo aquilo já

estabelecido, é tratada por Sérgio Magalhães como um novo princípio – a “contigüidade”77.

Expressando este novo momento, a “contigüidade” trata da relação de

convívio entre o pré-existente e o novo, debruçando-se em como a modernização

se adapta e interessando-se pelo aproveitamento do potencial da relação entre o

novo e o pré-existente. Conforme apresentado por Magalhães, a “contigüidade”

distingue-se do que se define como “continuidade”. Esta última, constituiu-se como

74 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 110.

75 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 542.

76 LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p. 98.

77 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 81.

42

um contínuum de características inerentes a um determinado contexto. Uma sucessão

de processos conservadores onde a permanência é essencial. No entanto,

“[...] no caso da contigüidade, interessa a permanência, mas não de modo constitutivo [isto é, como algo indispensável, essencial]. Ela pode se dar, mas não é essencial, não é uma condição sine qua non. [...] A contigüidade é a própria possibilidade de renovação sem as amarras da estagnação. Nesse sentido, a contigüidade é uma noção simultaneamente conservadora e transformadora”78.

No entanto, a transformação implícita na ideia de contigüidade, diverge daquela

preconizada pela rutura moderna. Não se trata mais da interrupção de continuidade,

quebra de relações sociais e compromissos, referentes a toda a herança da tradição

daquele passado imperfeito: “a contigüidade relaciona, mas não aprisiona, ela

contextualiza. A contigüidade não é determinista”79, ao contrário da mudança

universalizante da “Modernidade sólida”, ela absorve o existente reinterpretando,

otimizando e potenciando as relações entre processos já estabelecidos e outros que

surgem, no sentido de sua retificação ou ratificação.

Ao absorver as pré-existências, cada processo torna-se específico, pensado por

relação a um determinado terreno. O que está em consonância com a ideia de que uma das

características mais marcantes desta outra Modernidade prende-se com o tema da

individualização como destacam vários autores com Ascher, Bauman, Harvey80, entre outros.

O facto de se desenvolver processos com características únicas, resultam em respostas

complexas, que podem se constituir e gerir de diferentes modos, não há uma resposta única,

correta e garantida. Por isso, nesta outra Modernidade atua-se sob uma vigilância constante e

esforço perpétuo de “manter os fluidos em uma forma” onde possam ser reconhecíveis e

administráveis, sem no entanto saber se haverá sucesso nessa empreitada81.

Ainda assim, na tentativa de reduzir a incerteza que decorre da complexidade e da

individualização, procura estabelecer-se modelos, receitas a ser seguidas, na tentativa, muitas

78 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 82-84.

79 Idem, ibidem, p. 84.

80 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 33; BAUMAN, Zygmunt, Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 105; HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 195.

81 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 14.

43

vezes vã, de manter um formato de mudança que permita algum controle e planeamento

prévio dos processos. Respostas formatadas que pretendem lidar com processos, que

embora sejam reconhecidamente diferenciados, perseguem resultados semelhantes aos

modelos já aplicados. Como exemplo, é possível apontar as grandes operações de

revitalização de áreas portuárias e as intervenções vinculadas a mega eventos como

exposições internacionais e os Jogos Olímpicos.

“O progresso é possível. Ele não é garantido, e nenhum progresso, mesmo adquirido, é definitivo; tem de se regenerar inces-santemente. O progresso é a partir de agora tanto mais precioso quanto não obedece a nenhuma necessidade objectiva, quanto não dispõe de nenhuma garantia histórica”82.

A Modernidade alimentava a certeza de um progresso concebido como contínuo,

linear, guiado pelos desígnios de especialistas detentores do conhecimento sobre os modos

de fazer que levassem a um futuro radioso. A crise da Modernidade abre espaço a uma

revisão alimentada pelo reconhecimento da ambivalência dos processos de modernização e

pela consciência de que a mudança que leva ao novo não necessariamente conduz a uma

situação melhor do que a precedente. De alguma forma, “o devir não é necessariamente

desenvolvimento”83 e, assim sendo, a noção de progresso cultivada nas primeiras fases da

Modernidade já não poderia mais ser uma certeza.

A incerteza passa assim a assumir-se como uma condição e uma condicionante

da/na construção do futuro. As dúvidas levantadas em relação à fé no progresso fundado

na razão e no desenvolvimento tecnológico e científico colocaram por terra o otimismo e

a pretensão de conhecimento e de controlo integral do mundo. O progresso linear deixou

82 MORIN, Edgar et al, Os problemas de fim do século. Lisboa: Editorial Noticias, 1991, p. 15.

83 Idem, ibidem, p. 11-12.

44

de ser visto como inexorável e – ao invés de ser tomado como um destino – assume-se,

agora, como “uma conquista”84.

A partir dessa compreensão, o caminho para o futuro não permite mais confiar na

possibilidade de sua programação como outrora se imaginava possível. Principal

responsável por essa programação, o Estado-Providência perde força como o agenciador

da construção do futuro85. Essa perda enquadra-se na crise mais vasta do próprio Estado-

Providência como base de um modelo de organização social, sobretudo, por conta do

colapso do pacto político do pós-guerras no qual havia sido forjado, bem como da

influência mais tarde das perspectivas neo-liberais de Reagan e Thatcher que iniciaram o

período de desregulação. A crise de caráter financeira, económica e fiscal, a burocratização e

centralização excessiva e a incapacidade de responder às novas demandas do modelo pós-

industrial, foram essenciais para o abalar do Estado-Providênia, garantidor de todas as

possibilidades, base para a confiança no progresso.

O desenvolvimento apoiado na construção de um futuro linear, garantido, deu

lugar a uma outra perspectiva onde qualquer que seja a visão de futuro desejada, sua

construção não se dá mais de forma contínua e garantida na linha do tempo. O fator tempo

passa a ter novo e fundamental papel. A possibilidade de progresso passa a se dar de forma

fragmentada na linha do tempo. O futuro radioso já não é inexorável e nem as instituições

que o balizavam são capazes de os garantir. Sob esta perspectiva o futuro é algo a ser

conquistado dia após dia, e não é possível prever se será apocalíptico ou radioso. Passa-se

da certeza num futuro sempre positivo, à limitação de momentos mais esparsos de visão do

futuro, que no entanto não são controláveis como se imaginava; passamos às oportunidades

e ao risco86, o que resulta na necessidade de novas formas de garantia e justificação, já que

não há mais o apoio legitimador das convicções das certezas da Modernidade.

84 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 24.

85 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 153.

86 GIDDENS, Antony, As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991; BECK, Ulrich, The risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage, 1992; GUELL, José Miguel Fernández, Planificación Estratégica de Ciudades. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1997, p. 127; PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.2: A cidade imperfeita a fazer. Guimarães: DAAUM, 2012, p. 92.

45

Figura 5. O FUTURO NA LINHA DO TEMPO

O progresso deixa de ser concebido como uma linha contínua, definidora de

um devir conducente a um futuro perfeito. A própria ideia de futuro constrói-se

como uma sequência de episódios. Neste sentido, ele não existe como fim de uma linha,

deslocando-se permanentemente para o instante ou o episódio posterior a cada

decisão tomada. Cada episódio ou “fragmento-de-futuro” apresenta-se como uma

oportunidade, a aproveitar. O aproveitamento desses episódios, destas oportunidades,

“[...] muitas vezes é um ato único: armação de um bricoleur, um trapaceiro, que mira o que está à mão e é inspirado e limitado pelo que está à mão, mais formado que formador, mais o resultado de agarrar a oportunidade que o produto de planeamento e projeto”87.

O reconhecimento da condição ambivalente relativa à razão e ao

desenvolvimento das ciências e tecnologias comporta também a ideia do risco88. Nuno

Portas chama a atenção para o facto de que as decisões tomadas no sentido de

aproveitamento de oportunidades não são nada previsíveis, mesmo a médio prazo, o seu

êxito está condicionado ao acerto de “juízos ad hoc tão claros como arriscados”89. Assim,

esta condição pode resultar, segundo Nuno Portas “em probabilidades de sinergias e

efeitos catalíticos - ou de metástases, se nos enganarmos!”90.

A concepção Newtoniana sobre a relação entre causa e efeito, sustentando a

confiança em que cada fragmento de futuro ocorrerá conforme o planeado, ficou para

trás. A compreensão de que há apenas uma certa probabilidade de se alcançar o previsto,

87 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 160.

88 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 36.

89 PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.1: A cidade feita e refeita. Guimarães: DAAUM, 2005, p. 100.

90 Idem, ibidem, p. 100. Estas noções serão abordadas no 3ª capítulo desta dissertação.

CERTEZA REVISÃO E CRISE INCERTEZA

___________________________I _ _ _ _ _ _ _ contínuo, garantido e róseo condicionado pelas oportunidades

46

torna insustentável agir como se o risco fosse um fator que pudesse ser ignorado. Cada

vez menos é possível acreditar numa capacidade mágica do crescimento económico e da

expansão tecnológica, a percepção das pessoas é que estas produzem um crescente

desconforto e perigo91. A ideia de progresso, ganha um sentido mais ambíguo, estando

associado não apenas a um futuro radioso, para representar, também, uma ameaça. O

otimismo quanto as possibilidades compartilhadas de um futuro radioso é substituído

pelo presságio de crise e por uma tensão constante.

“Em vez de grandes expectativas e sonhos agradáveis, o progresso evoca uma insônia cheia de pesadelos de ser deixado para trás - de perder o trem ou cair da janela de um veículo em rápida aceleração”92.

A incerteza inerente a esta outra Modernidade, liquefez a ideia de progresso linear.

Não obstante, a possibilidade do progresso, não foi posta completamente de lado, e não é

provável que o encantamento moderno com o desejo de construção de um futuro mais

perfeito termine tão cedo.

A conquista do futuro por meio do aproveitamento das oportunidades

transfere o processo de planeamento, do panteão dos especialistas e das grandes

narrativas, para o âmbito dos processos políticos. O planeamento já não se estabelece

como um processo que pretende atuar globalmente sobre a sociedade. Ele passa por

decisões pontuais, por decisões ad hoc, ou de âmbito “meramente” estratégico, na

perspectiva de que ele - mais do que decidir com legitimidade técnica o futuro - possa

criar sinergias e catálises que potencializem visões de futuro possíveis.

O modelo que emerge nesta fase da Modernidade caracteriza-se pela

readequação das forças que movem os processos de modernização. Em certo sentido, o

poder de decisão (ou a sensação de poder de decisão) mudou de mãos (dos especialistas

para os políticos). No entanto, as estruturas políticas não foram capazes de acompanhar

plenamente essa transformação de transferência do planeamento para a esfera dos

processos políticos – ou seja, a consideração do planeamento não apenas como

91 GIDDENS, Antony, As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991; BECK, Ulrich, The risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage, 1992; BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 292.

92 BAUMAN, Zygmunt, Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 17.

47

processo técnico, mas também político93. Num mundo mais incerto, que muda cada vez

mais rapidamente, que é crescentemente complexo e individualizado, outras instituições

– nomeadamente, aquelas ligadas ao mercado/setor privado da economia – ganham

força, acentuando a complexidade e potencial ambiguidade das decisões94. As decisões

emergem e desenvolvem-se em processos estabelecidos sob uma pressão temporal

crescente95, construídos como pertencendo ao âmbito político e económico e não

apenas ao técnico. E assume-se que tais ações possam criar sinergias e potenciar

processos de desenvolvimento na direção de um futuro positivo, o qual se agiganta

como algo reconhecidamente incerto.

A crise e revisão da concepção do projeto que marcava a Modernidade, faz

emergir a condição de ambivalência que o caracteriza. Já foi referido no capítulo anterior

que o projeto da Modernidade, ao mesmo tempo em que buscava impor uma nova

ordem, produzia simultaneamente o caos e a desordem96. O reconhecimento dessa

ambivalência e a aceitação da imprevisibilidade do mundo real e da incerteza quanto às

reais possibilidades de antecipação do futuro, inviabilizaram o discurso dogmático que

proporcionava as garantias para a concepção de projetos de futuro a longo prazo. Assim,

o sentido quase dogmático e mítico do projeto como meio único de planeamento e

legitimação da ação, abre espaço a um novo caminho que traduz as transformações na

concepção de mudança e de progresso para se constituir como algo reflexivo, adaptativo

e aberto à participação de diferentes atores na definição das ações pretendidas. Passa-se

da ideia de projeto fechado, absoluto, para uma outra, em que este é concebido como

parte de um processo mais reflexivo que absorve os seus próprios riscos e dá importância

93 TOFFLER, Alvin, A Terceira Onda. Rio de Janeiro: Record, 16ª ed., 1980.

94 É por três causas: a) porque são mais stakeholders a considerar, com interesses considerados legítimos; b) porque ao contrário do que acontece teoricamente com as instituições públicas, essas organizações perseguem objectivos não directamente associados, necessariamente, ao bem-comum. c) porque elas participam de novas figuras institucionais, políticas e de planeamento (Exemplo: as comumente designadas parcerias público-privadas).

95 LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p. 75.

96 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 14.

48

acrescida à programação das ações tendo em conta a finitude dos recursos existentes e as

possibilidades de variações suscitadas pelo fator tempo.

Na “Modernidade sólida”, a ideia de projeto reportava a uma obra de “cabeças

iluminadas” que detinham, a priori, o conhecimento necessário para indicar o caminho do

futuro. Na metáfora de Bauman, tais especialistas assumiam-se como “jardineiros” que:

“[...] esse projeto pré concebido ao terreno estimulando o crescimento dos tipos certos de plantas (principalmente aquelas que ele mesmo semeou ou plantou) e extirpando e destruindo todas as outras, agora rebatizadas como ‘ervas daninhas’, cuja presença sem convite e indesejada, indesejada porque sem convite, não [poderia enquadrar-se] na harmonia geral do projeto”97.

A perda da credibilidade dos dogmas e das grandes narrativas que os

legitimavam, contribuem para a emergência de uma “reflexividade” favorável à revisão

constante das ações pretendidas e levadas a cabo. O permanente exame das decisões

tomadas e das suas consequências definem o chamado feedback. Na expressão de Ascher,

a ideia de projeto passa a ser indissociável da ideia de “reflexão antes, durante e depois”

de um processo de intervenção98.

O enfraquecimento da perspectiva das ações globais e a longo prazo, assim

como das estruturas sociais responsáveis por sua elaboração e efetivação, somada à

passagem para o processo reflexivo, contribuiu para o desmembramento da ideia

sequencial de progresso, resultando no direcionamento para projetos episódicos de

curto prazo, vinculados a oportunidades99. Novamente seguindo a metáfora de

Bauman, à figura do “jardineiro”, sucede a do “caçador” que persegue vorazmente o

aproveitamento de cada oportunidade100.

Mais do que a ideia de destruição criativa e de possibilidade de “concepção [do

que seria] eterno”, a noção de projeto passa a atender sobretudo ao fator tempo, à

97 A metáfora de Bauman parece válida para descrever tanto a atuação do Estado (como se fez no capítulo anterior) quanto dos especialistas (BAUMAN, 2007, p. 104.).

98 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 33.

99 BAUMAN, Zygmunt, Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 09.

100 Idem, ibidem, p. 108.

49

simultaneidade de processos e à necessidade de responder rapidamente às oportunidades,

esta última, uma componente crítica do sucesso101. Neste âmbito, o pragmatismo afirma-

se como filosofia de ação possível 102.

O facto de o futuro passar a ser algo construído a partir do aproveitamento

de oportunidades limitadas, torna o projeto algo associado a um processo de escolhas

urgentes, vinculadas a estratégia de antecipação de um futuro não programável mas

que pode apenas ser orientado probabilisticamente, de acordo com algumas ideias

mestras103 que, na maior parte dos casos, buscam construir alguma forma de consenso

no sentido de sua legitimação.

A construção deste consenso possível envolve e requer novos modos de fazer e

uma atenção especial aos processos participativos, que por sua vez, são influenciados de

diversas maneiras no processo de legitimação das decisões de construção do futuro. À

técnica cabe sobretudo apoiar a decisão política e viabilizar a implementação das ações

decididas em outra esfera, a política, cada vez mais influenciada pela questão económica,

pelo sistema financeiro e pelos média104.

Este modo de construir o consenso e a legitimação dá-se de formas variadas e

complexas. A utilização do que Alain Bourdin define como “palavras-contentor” é um

recurso importante, nesses processos. As “palavras-contentor” são definidas pelo autor

como um conjunto de termos vagos, fluidos e de difícil definição que permitem um

leque de interpretações facilitadoras da comunicação, através de uma compreensão que

é feita por ajustes sucessivos105. Na legitimação dos processos de decisão é constante o

uso de “palavras-contentor”, as quais auxiliam a exacerbação de discursos técnico-

científico-ambientais, tornados mais impressivos pelo recurso ao tema do risco, e

também associados à sedução pela “venda” da possibilidade de catálises, sinergias,

contaminações positivas e legados.

101 TOFFLER, Alvin, A Terceira Onda. Rio de Janeiro: Record, 16ª ed., 1980.

102 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 55.

103 MORIN, Edgar et al, Os problemas de fim do século. Lisboa: Editorial Noticias, 1991, p. 14.

104 DE MASI, Domenico, O Futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 539.

105 BOURDIN, Alain, O urbanismo depois da crise. Lisboa: Livros Horizonte, 2011, p. 26.

50

A análise do uso de “palavras-contentor” que geram conceitos de mais fácil

compreensão e aceitação é de grande interesse para esta investigação. Desta forma de

comunicar resultam processos diversificados onde a ideia de otimização e potenciação de

recursos desaguam em outras, que se tornam novos combustíveis para a possibilidade de

alcance do progresso rumo ao futuro que se deseja. No entanto, o reconhecimento de

que esses novos processos são influenciados pela incerteza e complexidade, não

permitem a sustentação da previsão otimista apoiada na confiança irrestrita e no

progresso linear e contínuo que outrora era prática. Não há garantias, o futuro róseo

deixou de ser uma certeza possível. Das ações que se estabelecem na expectativa das

catálises e outros processos, pode-se encontrar, ao fim e ao cabo, “metástases”

prejudiciais à ideia de construção de um futuro melhor, sendo estas associadas à ideia de

ambivalência das ações, as quais podem ter resultados maus ou bons.

“A prática moderna continua − agora entretanto despojada do objetivo que outrora a desencadeou”106.

O reconhecimento da incerteza dos novos tempos transformou os princípios

que regiam as primeiras fases da Modernidade. Para alguns, será possível falar-se

mesmo de uma outra Modernidade. São várias as terminologias usadas para descrever e

refletir essa nova condição que, segundo Bauman,

“[...] não é mais (nem menos) que a mente moderna a examinar-se longa, atenta e sobriamente, sem gostar muito do que vê e percebendo a necessidade de mudança”107.

Françoise Ascher definiu esse momento de reflexão como uma nova fase de um período de

intenso processo de modernização. A esta nova fase, Ascher chama “Terceira Modernidade”.

106 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 10.

107 Idem, ibidem, p. 288.

51

Sob essa perspectiva, o autor observa que a crítica aos processos de modernização junta

“numa categoria [...], ao mesmo tempo filósofos e sociólogos que crêem distinguir os sinais de

uma crise radical e de superação da Modernidade, e criadores, em particular arquitectos, que

se [empenham] num projeto pós-modernista108 sob a forma de uma crítica à estética

funcionalista”109. Ascher definiu esse novo momento como um processo de libertação “de

um racionalismo que se [tornara] demasiado simplista e das suas certezas, e que se

desembaraça das formas de pensamento messiânico ou providencial que caracterizavam ainda

a ideia moderna [inicial] de progresso”110.

Nesse novo momento, Ascher identifica ainda, como marcas principais: a

aceleração dos processos de mudança; a permeabilidade das ações e do pensamento à ideia

de reflexividade; a maior importância e valorização conferida ao fator tempo e seus efeitos

como elemento de projeto; o reconhecimento da complexidade como algo intrínseco à

ciência e à técnica; a importância do risco na conformação dos comportamentos individuais

e coletivos; e a complexificação das estruturas sociais e de acesso a oportunidades e

recursos de vida bem como das condições de individuação e individualização111.

Outro autor, David Harvey, utiliza a expressão “Pós-modernidade”, para definir

este “outro momento”. Numa primeira aproximação, o prefixo “pós” indicaria a

superação de uma condição anterior. No entanto, para o autor, mesmo havendo a crítica

às ideias da Modernidade não há convicção, nem clareza, quanto aos sistemas de

108 Vale a pena lembrar a distinção epistemológica entre Modernidade e Modernismo. Aqui, nesta frase, alude-se ao Modernismo como a corrente estética da arquitetura e outros domínios da arte.

109 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 32.

110 Idem, ibdem., p. 32-33.

111 Vale a pena sublinhar a distinção entre três conceitos que, não raras vezes, são entendidos como sinónimos. Refere-se à diferença entre individuação, individualização e individualismo – este último, um termo muitas vezes associado, no senso comum, às ideias de isolamento e egoísmo. Conforme explicitado por Johan Fornas (apud PEREIRA, 2012, p. 24-25), a individuação refere-se a “um conceito psicológico relativo à conquista progressiva de uma identidade adulta”. O individualismo reporta, por sua vez, “a uma tradição filosófica ou ideológica que dá prioridade ao indivíduo sobre o colectivo”. Quanto à individualização, ela trata de “processo histórico que se (con)funde com o próprio processo de modernização”, associado a uma “uma libertação [da vida individual] face ao apriorístico”. Este ganho de liberdade e de possibilidade de superação dos indivíduos relativamente àquilo que os precede – ampliando a sua autonomia crítica e as possibilidades múltiplas de construção de um futuro – acentua também as ideias de “deslinearização” (LASH, 2005) e, portanto, de “imprevisibilidade” do futuro e das próprias trajetórias de vida (PEREIRA, 2012, p. 25). Tanto nos originais como nas traduções, não é explícita nem clara a distinção anterior. Ainda assim, e tendo presente o sentido geral dos textos, assume-se que ao falar de individualismo, se alude sobretudo ao ganho de autonomia crítica dos sujeitos, combinado com a diversificação dos estilos e modos de vida e de consumo. Isto é, estamos falando, assim, de individualização..

52

pensamento e ação supostamente substitutos. Isso leva o autor a questionar: “o pós-

modernismo [...] representa uma ruptura radical com o modernismo ou é apenas uma

revolta no interior deste último contra certa forma de ‘alto modernismo’?”112

Gilles Lipovetsky utiliza o prefixo “hiper” para marcar o que considera ser um

momento de exacerbação dos princípios da Modernidade, o qual designa como

“Hipermodernidade”113. Para ele, assim como para Ascher, não há propriamente uma

refutação plena da Modernidade já que características como a valorização da razão e dos

avanços técnico científicos mantém a sua força. Sucede é que, em sua opinião, na

“Hipermodernidade” abre-se espaço para uma sociedade liberal, em constante movimento,

fluida e flexível, e que é sobretudo “indiferente como nunca antes se foi aos grandes

princípios estruturantes da modernidade”114. Simultaneamente, ela caminha sobre um

aparente paradoxo – ou mesmo uma contradição, segundo Lipovetsky. O aumento da

velocidade e intensidade das coisas, acentuando a urgência das ações, promove tanto uma

cultura do excesso e da espetacularidade (como quando se investe quase tudo num único

projeto, quase megalómano, espetacular, na perspectiva do “sempre mais, aqui e agora”…)

– como uma cultura de parcimónia e de quase frugalidade (na qual cabe todo o discurso

acerca da necessidade de potenciar recursos, poupar forças, criar sinergias, ganhar escala

seguindo baby-steps, pensar tendo por limite os riscos e as incertezas…). De alguma forma, a

espetacularidade como estratégia de ação convive com o apelo a uma quase ética da moderação

no aproveitamento dos recursos e aproveitamento das oportunidades.

Outro ponto fundamental dessa outra Modernidade é o processo de desregulação e

de privatização das tarefas e deveres modernizantes, que se traduz no desmontar do

Estado-Providência, o qual vinha assumindo a responsabilidade coletiva da sustentação

dos processos de modernização. A administração da sociedade e de seus recursos que

eram de responsabilidade do coletivo, corporizado no Estado, passam a ser cada vez mais

(es)partilhada com a crescente participação e ganho de importância de iniciativas

individuais, privadas e ligadas também ao terceiro setor (social e cooperativo).

112 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 47.

113 LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

114 Idem, idibem, p. 26.

53

Nessa outra Modernidade, ou nesta fase mais recente da Modernidade, o contínuo

desenvolvimento científico promoveu, e ainda promove, novas racionalidades que são

fruto de uma ação menos dogmática e menos reivindicadora de todo o conhecimento e

classificação do mundo. Ao invés, assiste-se à emergência de uma racionalidade mais

reflexiva, capaz de absorver de forma retroativa, por feedback, os resultados de sua própria

reflexão, focada num processo contínuo, estruturada em torno do próprio

desenvolvimento desta racionalidade dita reflexiva. A “Terceira Modernidade” de Ascher,

ou a “Modernidade líquida” de Bauman, assim como a “Hipermodernidade” de

Lipovetsky são ideias que concordam no reforço de processos característicos dos

primeiros momentos da Modernidade − processos esses que continuam a suportar os

princípios fundamentais da própria Modernidade (mudança, progresso e projeto), mas

fazendo de forma diferente e alternando a forma como tais princípios são entendidos e

transpostos para a intervenção sobre a realidade.

A ideia de mudança da Modernidade excluía tudo que era precedente. A tradição

e os modelos pré-industriais foram postos em causa pelo avanço científico e pelas

utopias, que buscavam uma condição ideal. Nesta nova fase da Modernidade, a

perspectiva da mudança permanece como um princípio mas ela funda-se tendencialmente

na adesão a formas de produção de conhecimento e de intervenção reflexivas, críticas,

que não se opõem ao que é precedente em nome de tudo o que é novo e considerado

pretensamente, inexoravelmente, melhor.

Neste outro momento da Modernidade, é abalada a ideia do progresso como

certeza num futuro radioso, construído a partir da confiança no presente. Além disso, a

construção desse futuro, que era suportado pela coletividade sobretudo através da ação

do Estado-Providência também se desfaz paulatinamente. A falta de certeza no presente

gera a ideia de que o progresso se dá de forma fragmentada na linha do tempo e que deve

ser construído no dia-a-dia. O futuro inexoravelmente radioso não está à espera da

Humanidade, nem as instituições que o viabilizariam são olhadas como garantias. A

incerteza faz emergir a ideia do risco de realização de um futuro ainda desejado, através

de oportunidades que se constituem como únicas e pouco previsíveis.

54

O impacto da incerteza nesses dois princípios da Modernidade – mudança e

progresso – interfere de forma crucial no princípio do projeto, este último associado à

ideia de que a concepção do futuro seria possível através da previsão, do desenho, do

desígnio definido pelo Homem, naturalmente conducente à perfeição. O projeto dessa

outra Modernidade, se é que ele existe efetivamente, enquadra-se num rol de desejos

múltiplos cada vez mais individualizados, respondendo mais ao que é possível do que ao

que é idealizado. A verdade única, demiúrgica, imposta individualmente por líderes, mitos

do pensamento moderno, abre espaço para o desenvolvimento de um processo aberto,

de múltiplas possibilidades, construído por múltiplos atores, que absorvem e respondem

à complexidade da realidade, atuando sob a perspectiva de uma racionalidade reflexiva,

adaptando-se às demandas individualizadas e a oportunidades escassas e imprevisíveis,

aproveitadas ou não a partir de decisões e escolhas políticas.

A racionalidade advinda do processo industrial, limitada ao desígnio das certezas

de um planeamento global, dá lugar a uma racionalidade reflexiva, constituída pelo

somatório de pequenas certezas construídas caso a caso, resultando num palimpsesto que

acolhe uma larga variedade de possibilidades, caminhos e ações que seguem, em geral,

uma estratégia de aproveitamento máximo de oportunidades. O futuro é a possibilidade do

imediato e a ação imediata necessita de justificação para ser posta em prática – o

(re)conhecimento da incerteza fragiliza a capacidade de auto-legitimação que a fé na

certeza da razão e da ciência proporcionava ao projeto moderno.

Todas estas transformações ocorridas no campo conceptual foram causa mas

também consequência de processos igualmente importantes naquela que foi o maior (ou mais

expressivo) palco da Modernidade: a cidade. O próximo capítulo procura reconstituir e

analisar como é que as diferentes fases da Modernidade se manifestaram nas cidades e como

foram gerando modos de pensar e intervir sobre elas.

55

As transformações que envolveram os processos de construção da Modernidade

tiveram grande impacto na construção e na reflexão produzidas sobre aquele que foi o

seu maior palco: a cidade. Foram inúmeros os fenómenos ocorridos no âmbito social,

económico e político que marcaram a história das cidades neste período. No entanto,

como lembra Secchi, as cidades não se transformaram imediatamente após os eventos

ocorridos, já que estes estão situados em diferentes planos e deslizam uns sobre os outros

com diferentes graus de atrito e capacidades de influenciar o devir histórico115. Entre

esses eventos, a revolução agrícola e o desenvolvimento do capitalismo industrial foram

aqueles que tiveram maior influência na alteração das estruturas sociais,116 influenciando

diretamente a tendência de crescimento demográfico exponencial117 que se tornou uma

das mais importantes tendências observadas nas cidades a partir do advento da

Modernidade. O êxodo rural que migrava em direção às grandes cidades acarretou a

expansão espacial dos perímetros urbanos que, gradativamente, passaram a ter uma

definição cada vez menos clara sob o ponto de vista da perceção “de onde acaba a

cidade” pelos indivíduos, até os dias de hoje. A possibilidade de crescimento de um

perímetro indefinido e desmesurado da cidade e, por consequência, o seu próprio

desaparecimento (da forma como era reconhecida) tornou-se, segundo Secchi, um dos

principais fenómenos a ser equacionados pela Modernidade118.

Londres, por exemplo, em todo o século XIX, quase quintuplicou os seus

habitantes. De facto, as cidades inglesas com mais de cem mil habitantes passaram de

duas, no início do século XIX, para trinta no final do mesmo século. Na Alemanha, a

variação foi de duas para vinte e oito e na França de três para doze. Nos Estados Unidos

da América, que iniciaram o século XIX sem que qualquer cidade tivesse mais de cem mil

115 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 24.

116 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 27.

117 Idem, ibidem, p. 27.

118 SECCHI, Bernardo, op. cit., p. 31.

56

habitantes, em 1850 já possuía seis cidades com estes números populacionais, chegando a

ter vinte e oito no final do século XIX119.

O século XX apresentou números ainda mais impressionantes: em 1900, apenas

10% da população mundial vivia em cidades; o século XXI iniciou-se com uma taxa de

50% da população mundial nesta condição, segundo o Urban Age Project, programa da

London School of Economics. Dessa população, em 2000, 67% vivia em países em

desenvolvimento, e 33% nos países desenvolvidos. Em cinquenta anos (2050), projeta-se

que 75% da população mundial possa viver em cidades e, em aproximadamente trinta

anos (2030), quase 80% dessa população estará nos países em desenvolvimento120.

Na primeira fase dessas transformações que conformaram o processo da

Modernidade, a falta de melhores condições de vida nos centros urbanos motivou todo o

tipo de críticas à cidade existente. Esta deixava de ser o abrigo da coletividade, passando a

assumir-se como o lugar onde brotavam e eram mais visíveis as mazelas da sociedade

industrial. A questão da mobilidade física tornou-se, pouco a pouco, também questão

essencial. A circulação das pessoas, dos bens e da informação ganhou importância e a

evolução científica e técnica voltou esforços para a construção das infraestruturas que a

viabilizava. Este processo engendrou e muito contribuiu para a ocupação em larga escala

do território, expandindo as cidades e fazendo surgir os chamados subúrbios.

Os princípios da Modernidade, da mudança, do progresso e do projeto foram

reproduzidos no contexto da reflexão sobre o fenómeno urbano, fazendo surgir o

urbanismo como disciplina autónoma, estabelecendo assim a ferramenta de interpretação

e aplicação desses princípios, absorvendo grande parte das transformações, modificando

as cidades e a forma de pensar sobre elas121. A partir de então a construção da cidade

119 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 03-04.

120 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyn, The endless city. London: Phaidon Press, 2007, p. 09, 58.

121 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 33.

57

passa a fazer parte de uma ideia mais ampla de construção de uma nova sociedade e

mesmo de um “[H]omem novo”122.

O Estado assumiu de forma gradativamente crescente essa responsabilidade,

garantindo a oferta de infraestruturas, de habitação e equipamentos, produzindo-os na

lógica industrial “Taylor-Fordista” de especialização e consumo de massa. A atividade

estatal no planeamento das cidades cresceu gradualmente e dela resultou a criação de

organismos e procedimentos racionais e científicos de atuação dentro do tema urbano. Mais

tarde, ante críticas que atacavam a burocratização excessiva, o Estado, sob nova roupagem,

abdicou parcialmente dessas responsabilidades. O urbanismo, a disciplina assumida e

tomada pelo Estado, que se tornara expressão da racionalidade simplificadora, dos

zonamentos mono funcionais, das estruturas hierarquizadas e adaptadas ao consumo e

produção em massa, encontrou no auge de sua racionalização também os motivos que

levaram à revisão do modo de compreensão e de enfrentamento da incerteza.

Aconteceu, segundo Ascher, nas três fases da Modernidade que ele mesmo

identifica, uma sucessão de verdadeiras revoluções urbanas. A cada uma dessas fases ou a

“cada uma destas épocas corresponderam modelos de pensar e de criar, atores

dominantes e concepções de poder, representações da sociedade, critérios de eficácia,

formas de organização e, obviamente, princípios e modos de concepção e de organização

do território”123. Seguidamente, estabelece-se as principais linhas que definem esses

diferentes momentos de revolução.

122 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 20.

123 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 26.

58

A primeira revolução urbana da Modernidade, segundo Ascher, configurou-se

a partir da passagem da cidade medieval para a cidade Iluminista, configurada à luz do

indivíduo e da razão como pilares centrais de sua estrutura. Nela, o Estado-nação

desenvolveu e refletiu a ideia de pertença dos povos a um grupo de características

semelhantes quanto à cultura, língua, e história, sob a tutela de uma estrutura

governamental, económica e de defesa única, no que garantia, teoricamente, uma

certa referência de confiança, de certeza e segurança apoiada sobre uma base

coletivamente assegurada124.

Nesse contexto, a cidade medieval abriu espaço para a cidade Iluminista onde

o Estado, como fomentador de uma nova cidade e sociedade, atuou no redesenho

sobretudo do espaço coletivo, comummente coroado com monumentos que se

pretendiam marcantes. Os desígnios dos projetos eram endossados pela possibilidade

de “previsão do futuro” através do desenvolvimento da perspetiva sob o olhar do

indivíduo. Inaugurava-se uma cidade projetada racionalmente, onde a arte, a técnica

da perspetiva e a noção de pertença a uma estrutura maior permitiam vislumbrar o

futuro, ao contrário do que acontecia na Idade Média, quando a falta de estruturas

que estabelecessem e significassem pertenças, somada à crença na possibilidade de

que o Apocalipse poderia ocorrer a qualquer momento, tornava a projeção do futuro

numa questão menos importante. No entanto, nesta primeira fase, “o determinismo

racionalista ainda não se fizera exigente. Na ocasião, o futuro não era ainda uma

garantia de eterna felicidade”125. Segundo Ascher, essa cidade é moderna porque é

concebida de forma racional e porque ela própria “é projeto”; de alguma forma: “ela

cristaliza a ambição de definir o futuro, de o controlar, de ser a concretização espacial

de uma sociedade nova: ela é o desenho de um desígnio. De facto, dela nascerão as

utopias, que serão as suas formas-limite”126., onde “teorias e métodos surgiram: de

124 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 211.

125 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 31.

126 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 27.

59

‘fábricas modelos’ a ‘cidades utópicas’, de ‘cidades industriais’ a ‘cidades jardins’

dependendo da filiação teórica, partidária ou científica que lhe dava guarida”127.

Numa fase prévia à consolidação de uma disciplina urbana, os modelos de

cidade surgiram a partir de reflexões que se orientavam em “duas direções

fundamentais do tempo, o passado e o futuro, para tomar as formas da nostalgia ou do

progressismo”128. A racionalidade promovida por um conjunto de filosofias políticas ou

sociais ou ainda por utopias definidas segundo Françoise Choay como um pré-

urbanismo129 que configura diferentes formas de reflexão e de ação sobre a cidade que

compartilham preocupações principalmente no que dizia respeito à necessidade de

melhorar as condições de vida da sociedade industrial através da transformação da

própria sociedade130, constituindo verdadeiras utopias, comprometidas e adaptadas às

novas realidades da industrialização. Eram herdeiras das ideias de Thomas More131, e

previam a conceção de uma cidade nova, num novo lugar que se desenvolveria em

harmonia com o campo – sendo que a confiança na razão impelia a que a cidade

herdada fosse o lugar a ser superado. Nesse sentido, não havia “continuidade

possível, nem morfológica nem [territorial], e sequer é possível uma continuidade do

agente: o homem é um novo [H]omem, a sociedade industrial e maquinista é uma

nova sociedade”132. Estas utopias formaram a base da primeira “revolução urbana”,

consubstanciando, segundo Leonardo Benévolo, a antecipação “da pesquisa coletiva

da arquitetura moderna”133, iniciando a aplicação dos princípios da Modernidade ao

tema urbano em busca da mudança que levaria ao progresso, através da ação do

Homem munido do projeto enquanto concretização de um desígnio.

127 NASPOLINI, Vicente, Paradigmas do urbanismo: a contribuição de François Ascher. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Tese de Mestrado, 2009, p. 29.

128 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 07.

129 Idem, ibidem, p. 07.

130 Em Choay, a cidade seria apenas parte do problema e apenas o poder revolucionário da sociedade sem classes poderia conduzir para o futuro. (Idem, ibidem, p. 15).

131 MORE, Thomas, Utopia ou A melhor forma de governo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

132 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 35.

133 BENEVOLO, Leonardo, Origenes de la urbanistica moderna. Buenos Aires: Ediciones Tekne, 1967, p. 569.

60

Figura 6. Xilogravura da Ilha de Utopia de Ambrosius Holbein, reprodução da ilustração da edição de “Utopia” de Thomas More, 1518.

61

As profundas mudanças ocorridas nas estruturas económicas, sociais e urbanas

em consequência da revolução industrial, fomentaram a reflexão sobre as cidades.

Movimentos de observação, reflexão e ação surgiram em variadas vertentes: algumas mais

descritivas, observavam cada fato isoladamente procurando estabelecer uma ordem

através da sociologia emergente; outras surgiram através de grupos que atuaram de forma

mais ampla sobre o pensamento político; e ainda outros onde a ação se deu através de

administradores políticos134, religiosos e, sobretudo, através de médicos “inspirados por

sentimentos humanitários”135 que denunciavam e atuavam objetivamente sobre o

péssimo estado físico e moral da vida na grandes cidades136.

A migração vinda do campo densificou os centros, que ainda guardavam seu

desenho original, e promoveu expansão espacial do perímetro urbano. Este, ganhava

uma definição cada vez menos clara. A periferia era entendida como uma espécie de

terreno livre para a iniciativa privada, e, de forma independente, surgiam bairros

novos e unidades industriais que formavam nos chamados subúrbios europeus, um

tecido que mais tarde se fundiria numa malha urbana mais compacta137. Aos poucos,

o papel do projeto, do desígnio do Homem, ganhava mais importância e concentrava-

se na mão de uma grande geração de intelectuais que se animavam sob a ideia de que

construir a cidade faria parte de um processo de construção também de uma nova

sociedade, fincando raízes nas utopias e atuando “com diferentes graus de clareza, em

diferentes contextos sociais e políticos”138.

134 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 05.

135 Idem, ibidem, p. 05.

136 As transformações Haussmanianas de Paris buscando a adaptação das exigências económicas e sociais do período do Segundo Império são exemplos dessa atuação. (Idem, ibidem, p. 04-05).

137 SPOSITO, Maria da Encarnação B., Capitalismo e Urbanização. São Paulo: Editora Contexto, 1988.

138 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 21.

62

O século XIX, foi marcado pela transformação da forma e da escala das cidades.

Tanto na construção das complexas estruturas e morfologias urbanas que marcaram o apogeu

da cidade tardo-barroca tradicional do fim do século, quanto na propagação pelo território de

novas tipologias urbanas que foram preparando a cidade moderna para sua consolidação.

As intervenções do final do século XIX, como a modernização da Paris de

Haussmann entre 1852 e 1870, inauguraram uma tradição monumental que serviu, mais

tarde, de modelo para a constituição de um “Urbanismo Formal”139 no início do século

XX. A melhoria da mobilidade na cidade, a intervenção sobre problemas de higiene e

sanidade física e a revalorização e enquadramento de monumentos pela perspetiva de

novos eixos viários, foram objetivos específicos da atuação de um urbanismo que

germinava, sempre no sentido de antecipação das condições necessárias ao futuro a

construir. A promoção da adequação da cidade burguesa e industrial pela incorporação

dos avanços tecnológicos e o desenvolvimento dos novos modos de vida e suas

respetivas necessidades prenunciou a evolução que se acentuaria pelo desenvolvimento

dos meios de transporte e das infraestruturas de abastecimento.

Num outro sentido, foi concebido o Ensanche de expansão na Barcelona de

Ildefonso Cerdà (1815-1876), que se tornou um marco do urbanismo moderno que

despontava140. Cerdà, considerado como o primeiro urbanista no sentido moderno do

termo, na sua proposta para a Barcelona da segunda metade do século XIX, tratava a

cidade como um organismo complexo, formado por diferentes sistemas: espaciais, físicos,

funcionais, sociológicos, económicos e administrativos. Estes diversos sistemas foram

tomados em conta no plano traçado, o qual se destacou por ordenar a expansão

extramuros da cidade através do traçado em quadrícula e do quarteirão como formas

privilegiadas de demarcação (e) da ocupação do território.

139 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 229.

140 CERDÀ, Ildefons, Teoría general de la urbanización y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona. Madrid: Imprenta Española, 1867. (Reeditado por el Instituto de Estudios Fiscales, 1968-1971).

63

Figura 7. Mapa indicativo dos Grands Travaux na Paris de Haussmann.

Figura 8. O ensanche da Barcelona de Cerdà.

As anteriores experiências, embora diferentes (na medida em que uma trata

do aproveitamento e adaptação à/da cidade existente enquanto a outra privilegia a

organização da expansão), marcaram o apogeu de uma tendência de

monumentalização, também em resposta às transformações decorrentes do processo

de industrialização. A partir deste período, o urbanismo se constitui como disciplina

de caráter reflexivo, crítico, e de larga pretensão científica, qualidades inerentes ao

surgimento da disciplina no contexto da modernidade141.

141 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 02.

64

Como afirma Leonardo Benevolo, a disciplina do urbanismo não nasceu

exatamente com o processo de modernização que construiu a chamada cidade

industrial142. Esta disciplina nasceu a posteriori, como decorrência dos efeitos dos conflitos

e evoluções tecnológicas que se desenvolveram nesses processos de modernização, os

quais mostravam a necessidade de uma intercessão reparadora por parte do Homem, que

adquiriu a consciência das transformações e suas consequências, assim como a confiança

necessária para agir sobre as cidades, tratando o tema urbano como disciplina.

A disciplina do urbanismo, fundeada nos desígnios de muitas das utopias que

tiveram grande importância na conceção do projeto moderno, começava a emergir

movida pelos avanços tecnológicos e, sobretudo, pela confiança no progresso e na

construção do futuro perfeito. Desde os pré-urbanistas, Robert Owen (1771-1858) e sua

New Lanark, passando pelo Falanstério de Charles Fourier (1772-1837), pela “cidade da

luta de classes” de Friederich Engels (1820-1895) e Karl Marx (1818-1883), chegando às

ideias chave do urbanismo moderno, da Cidade Jardim de Ebenezer Howard (1850-1928)

e suas variantes, da cidade radiosa de Le Corbusier (1887-1965) ou da Broadcare city de

Frank Lloyd Right (1867-1959), as utopias modernas “nunca foram meras profecias, e

menos ainda sonhos inúteis: abertamente ou de modo encoberto, eram tanto declarações

de intenções quanto expressões de fé [de] que o que se desejava podia e devia ser

realizado. O futuro era visto como os demais produtos nessa sociedade de produtores:

alguma coisa a ser pensada, projetada e acompanhada em seus processos de produção”143.

O urbanismo estabeleceu-se como disciplina autónoma colocando o

conhecimento técnico e artístico à disposição da compatibilização entre o

desenvolvimento das cidades e os avanços do mundo industrial, que se processavam de

forma acelerada, ampliando (não sem desigualdades e conflitos) a todas as classes sociais

os benefícios potenciais da revolução industrial144. A renovação proposta para as cidades

142 BENEVOLO, Leonardo, Origenes de la urbanistica moderna. Buenos Aires: Ediciones Tekne, 1967, p. 05.

143 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 151.

144 BENEVOLO, Leonardo, op. cit., p. 44.

65

se sustentou nos princípios da Modernidade vistos no primeiro capítulo deste documento

– mudança, progresso e projeto. A reflexão disciplinar manteve o sentido da mudança da

cidade do passado, tanto por readequação do pré-existente, como por “rutura”, buscando

“modelos de perfeição” que garantissem a certeza no progresso rumo a um “futuro

róseo”145. Essa confiança traduziu-se na conceção de um projeto de cidade que

representou firmemente a ideia de que o Homem seria capaz de construir a sua felicidade

na terra. Sendo que o urbanismo trataria do assunto através do projeto – o desígnio do

Homem – meio para alcançar o futuro radioso.

Figura 9. A New Lanark de Robert Owen.

Figura 10. Falanstério de Charles Fourier.

145 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 33.

66

Figura 11. Esquema da Cidade Jardim de Ebenezer Howard.

Figura 12. Broadcare city de Frank Lloyd Right.

Os séculos XIX e XX trouxeram a rápida evolução das inovações científicas no

âmbito das infraestruturas, especialmente aquelas ligadas à mobilidade de pessoas, bens e

informação146, essenciais ao funcionamento da modelo industrial. O desenvolvimento

destas infraestruturas estabeleceu-se como condição fundamental para a expansão das

cidades no território, vendo-se surgir imensas fábricas situadas fora dos centros das

cidades, ao redor das quais se dispunham bairros operários. O desenvolvimento dos

transportes e a popularização do automóvel a partir da produção e do consumo em

146 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 28.

67

massa, multiplicou os deslocamentos e alargou ainda mais os limites das cidades. Nessa

altura, “o problema era a própria cidade-gigante”147 que passava por um processo de

expansão de grande intensidade.

A partir da Iª Grande Guerra os problemas das cidades agravaram-se,

especialmente aqueles ligados à questão habitacional. Em grande medida, crises de natureza

não apenas qualitativa (qualidade habitacional) mas também quantitativa (falta de casas),

sendo de destacar a emergência de extensões de habitação ilegal, clandestina, aconteceram

em muitas cidades. A crescente presença do Estado na sua reconstrução consolidava, a

partir daí, uma forma de atuação de base “Keynesiana”.

O princípio da mudança aplicado à reflexão urbana foi sobretudo focado na

rutura com a cidade existente, na substituição da “velha cidade” por outra “nova”, ao

invés da adequação do contexto pré-existente às novas ideias de intervenção. O

movimento dominante foi no sentido de defender que uma nova cidade projetada seria

capaz de construir também uma outra sociedade, mais “perfeita”. O abandono da cidade

do passado, da sua forma, espaços, significado e memória148 era condição sine qua non para

a promoção de um futuro melhor e racional. Em certa medida,

“[A razão] não reconhece nenhuma aquisição, faz tabula rasa das crenças e formas de organização social e política que não descansem [ou assentem] [sob/numa] uma demonstração de tipo cientifico”149.

A IIª Grande Guerra, tragicamente possibilitando a tabula rasa resultante da

destruição provocada pelo conflito, abriu espaço à reflexão dos especialistas emergentes,

reforçando, ainda mais, a legitimação do modelo de intervenção dominante, atrás

referido. A tabula rasa foi a oportunidade de aplicação do ideal moderno de construção de

um novo desígnio de futuro, conseguido através da reconstrução das cidades, das

economias e da consolidação do Estado-Providência. Estas tarefas tornaram-se matéria

exclusiva de especialistas e, tendencialmente, da atuação estatal. Embora os especialistas

147 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 47.

148 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 33., p. 60.

149 TOURAINE, Alain, Crítica de la Modernidad. México: Fondo de Cultura Económica, 2000 apud MAGALHÃES, 2007, p. 33.

68

em si aspirassem a uma condição despolitizada150, o Estado, corresponsável pela

destruição e “refazimento” da cidade, assegurava, ora pela forma urbana, ora pelas

estruturas económicas e sociais, a construção da nova cidade que favoreceria, teórica e

desejavelmente, o surgimento de uma sociedade democrática e igualitária151.

A partir de então, o urbanismo consolidou-se como uma disciplina “filha da razão”

demiúrgica do urbanista-arquiteto-artista152, e dela emergiram variadas teorias e experiências

de novos modelos de conceção de cidade153, em que a rutura com o passado se afigurava

como principal condição para alcançar o progresso. A disciplina partiu em busca de utopias

com identidades sempre à frente, direcionadas a futuros perfeitos que nunca foram

alcançados, numa parusia moderna, que, segundo Bauman, só poderia existir exatamente

como projeto não realizado154.

No período anterior à Primeira Grande Guerra (ocorrida entre 1914 e 1918),

foram muitas as transformações a que foram submetidas as grandes cidades europeias.

Essas transformações motivaram o pensamento sobre o tema urbano e a profusão deste

pensamento resultou na consolidação do urbanismo como disciplina. Contrariamente ao

que ocorria mais comumente no século XIX, em que as experiências urbanísticas estavam

vinculadas mais ao desenho como atividade empírica ou arte urbana, o século XX abriu

espaço para um urbanismo de maior abrangência, científico, absorvendo os avanços da

indústria e da ciência e, mais tarde, aspirando também em resolver questões mais

próximas da componente social das utopias urbanas, tais como os efeitos do crescimento

demográfico, a expansão territorial, a criação e distribuição de infraestruturas, as

150 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 18.

151 MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, Ed. PROURB, 2007, p. 59.

152 Demiúrgico apesar das supostas pretensões de cientificidade do chamado urbanismo (NASPOLINI, 2009, p. 34).

153 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 27.

154 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 37.

69

condições de vida na cidade, das questões de higiene e saneamento à própria estrutura de

desigualdades e de oportunidades de vida.

Em todo o caso, nesse início de século, até a Iª Grande Guerra, constituiu-se uma

“Urbanística Formal”155, a qual manteve o foco da questão na forma urbana dando

continuidade às morfologias tradicionais e aceitando contributos de outras áreas

nomeadamente aquelas referentes às questões supracitadas, associadas ao desenvolvimento

da ciência, da indústria. Para José Garcia Lamas,

“[…] foram, sem dúvida, os arquitectos da ‘Urbanística Formal’ quem conduziu o urbanismo europeu na primeira metade do século XX, já que os arquitectos modernos, adversários desse entendimento morfológico da cidade, se encontravam desligados dos trabalhos de ordenamento urbano”156.

Esta definição de “Urbanismo Formal” confunde-se com aquela da “Cidade dos

Monumentos”, vinculada ao movimento do “City Beautiful” que, segundo Peter Hall, era

influenciado pelas experiências oitocentistas dos boulevards e passeios públicos das grandes

capitais europeias, como Paris e Viena157. No entanto, essas cidades não eram projetadas

como mera reprodução daquelas experiências, já que estavam atentas não apenas a novas

soluções espaciais formais, como ao conjunto de questões urbanas e socioeconómicas

suscitadas e/ou reveladas pelos processos de modernização em curso.

A atuação do “Urbanismo Formal” concentrou-se sobretudo fora da Europa –

tendo-se destacado na construção da autoestima “para superar complexos de

inferioridade coletivos e impulsionar os negócios”158 no centro-oeste norte-americano e

nas cidades coloniais de Marrocos, Vietname, Índia, Angola, Macau, entre outras. Mais

tarde voltaria à Europa onde, “seguindo uma tendência que culminaria nos anos 30,

ditadores totalitários, procuraram impor, em suas capitais, megalomaníacas visões de

155 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 229.

156 Idem, ibidem, p. 234.

157 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 207.

158 LAMAS, José M.R. Garcia, op. cit., p. 240.

70

glória”159. Este facto levou, no pós IIª Guerra, à identificação estabelecida entre formas

urbanas e ideologias políticas sociais e ao repúdio moral de ambas.

A consolidação do Movimento Moderno, reduziu a importância do “Urbanismo

Formal”. A ampliação dos interesses dos arquitetos do chamado Movimento Moderno

passando da atenção dedicada ao edifício de habitação para as questões urbanas,

paulatinamente delegou o “Urbanismo Formal” às sombras da academia. O novo

movimento que se consolidava privilegiava a inovação e a superação da tradição do

passado. Era a vanguarda contra o academicismo, o urbanismo da libertação e da

democracia contra o representante de um totalitarismo160.

A organização e realização dos designados Congressos Internacionais de

Arquitetura Moderna (CIAM), abriam espaço à construção e difusão de um novo

modelo, que progressivamente entusiasmaria os jovens arquitetos de então. Os debates

que opunham as perspetivas defendidas e/ou baseadas nas propostas de Camillo Sitte –

considerado representante maior do urbanismo formal – e aquelas defendidas por Le

Corbusier – expoente mais destacado do Movimento Moderno – revelavam o empenho

deste último em ultrapassar, superando, o primeiro. O “Urbanismo Formal” tornava-se,

então, obsoleto e identificado de forma pejorativa como excessivamente académico.

O relegar do “Urbanismo Formal” para segundo plano abriu espaço para a

afirmação do modelo de urbanismo defendido pelo Movimento Moderno nos CIAM.

Este último, enquadra-se na corrente que Françoise Choay designa como progressista161,

focada num pensamento que assenta na ideia do indivíduo-tipo, e orientado para a

perseguição do progresso garantido e de um futuro róseo.

159 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 207.

160 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 240.

161 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998.

71

Na origem histórica deste modelo estão diferentes experiências, algumas apenas

projetadas. Exemplo disso mesmo, a cidade industrial de Tony Garnier (1896-1948),

assente na defesa da análise e separação da funções urbanas, na exaltação dos espaços

verdes desempenhando o papel de elementos isoladores, e na utilização sistemática de

novos materiais, em particular do betão armado162. A construção do urbanismo dos

CIAM acolhe também a influência de Ebenezer Howard e a sua rede de cidades-jardim

sob uma nova leitura, ligada a uma conceção estreitamente capitalista da produção

industrial, representada pela obra do francês Georges Benoit-Lévy (1880-1970) - La Cité-

Jardin (1904). Essa perspetiva não partilhava da visão comunitária da cidade de Howard,

caracterizando-se mais pela criação de uma cidade, “verde e higiênica, destinada a obter

dos operários que ali [moravam] o melhor rendimento possível”163. Também Walter

Gropius (1883-1969) influenciou as discussões ocorridas nos CIAM, com os temas

fundamentais da Bauhaus, a “estandardização” da cidade, influenciando o urbanismo

numa perspetiva civilizadora de ordenação:

“As grandes épocas da história permitem verificar que a existência de standards – dito de outro modo, o uso consciente de formas-tipo – é o critério de qualquer sociedade civilizada e bem ordenada; pois é um lugar-comum que a repetição dos mesmos meios em vista dos mesmos fins exerce sobre o espírito humano uma influência estabilizadora e civilizadora”164.

Mas o urbanismo dos CIAM teve, sobretudo, a influência e a liderança de

Charles-Édouard Jeanneret (1887-1965), mais conhecido por Le Corbusier. As ideias do

mestre da arquitetura e do urbanismo confundiram-se de forma profunda com aquelas

que os CIAM difundiram durante toda a sua existência. Para Peter Hall, a visão de Le

Corbusier, pode ser vista como um somatório “semi-aparentado” das ideias que,

supracitadas, influenciaram o urbanismo do CIAM. Nelas, incluía-se ainda o tema da

monumentalidade desenvolvido no movimento City Beautiful e as ideias de planeamento

regional de Patrick Geddes.

162 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 163.

163 Idem, ibidem, p. 171.

164 Idem, ibidem, p. 177.

72

O objetivo de Le Corbusier era inventar uma nova cidade, diferente e totalmente

independente das limitações que o passado impunha/estabelecia165. Nos congressos, Le

Corbusier encarnou a figura do “profeta da Modernidade”166, difundindo a ideia de que

projetar cidades, sendo uma tarefa fundamental do Homem, deveria ser entregue a

especialistas, e nunca aos cidadãos ordinários167. Segundo Peter Hall,

“[…] [n]esse sistema [novo, defendido por Le Corbusier], tudo seria determinado pelo plano, e o plano seria produzido ‘objetivamente’ por peritos; ao povo caberia apenas dizer quem administraria esse plano”168.

O plano seria formulado por entendidos da disciplina urbana com total liberdade

de conceção, sem pressões de interesses políticos e privados, resultando numa perspetiva

coletiva da sociedade, em grandes conjuntos de habitação (Unités) e no acesso amplo a

serviços coletivos169. Inaugurava-se o projeto de cidade suportado por uma condição

heroica dos arquitetos e urbanistas, reflexo mais intenso da fé demiúrgica na construção de

um futuro radioso. Harvey explica este facto observando que, no início do século XX,

“já não era possível dar à razão iluminista uma posição privilegiada na definição da essência eterna e imutável da natureza humana. Na medida em que Nietzsche dera início ao posicionamento da estética acima da ciência, da racionalidade e da política, a exploração da ciência estética […] deu um novo papel e imprimiu um novo ímpeto ao modernismo cultural”170.

Com isso, foi dado ao “artista moderno” a possibilidade de desempenhar um

papel na definição da essência da humanidade, reforçando a ideia de uma função

heroica171. Essa nova função permitiu que Le Corbusier desenvolvesse uma solução

“segundo a qual um mestre urbanista todo-poderoso demoliria por completo a cidade

existente, substituindo-a por [uma] outra[,] feita de altas torres erguidas no meio de um

165 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 21.

166 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 251.

167 Idem, ibidem, p. 245.

168 Idem, ibidem, p. 247.

169 Idem, ibidem, p. 249.

170 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 27.

171 Idem, ibidem, p. 27.

73

parque”172. Este modelo que traduzia a ideia de “destruição criativa” foi aquele levado a

cabo pelos CIAM – o da tabula rasa.

Na conceção da sua Cidade Contemporânea (apresentada na obra La Ville

Contemporaine, de 1922) e, sobretudo, na da sua Cidade Radiosa (no livro La Ville Radieuse, de

1933), Le Corbusier desenvolveu e esclareceu sobre os princípios a observar na construção da

cidade ideal: conseguir melhores condições de circulação, mais espaço livre e a opção por

grandes torres, que permitissem uma alta densidade populacional pontual, no território

viabilizado pela construção em altura. Para a realização desse “modelo corbusiano”, seria

necessário promover a destruição da “cidade tradicional”; o fomentar da “destruição criativa”

era uma condição para o progresso173. Este modelo acabou por constituir-se como aquele que

promoveu a exacerbação maior das ideias Iluministas da modernidade, no que diz respeito à

recusa e ao desprezo pela história, salvando apenas objetos específicos, reconhecido pelos

especialistas como tendo/sendo de relevante valor histórico e patrimonial.

Figura 13. Ville Contemporaine - Le Corbusier.

172 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 11.

173 HARVEY, David, Condição pós-moderna - Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 26.

74

Figura 14. Ville Radieuse - Le Corbusier.

A primeira cidade proposta por Le Corbusier era uma cidade que possuiria uma

estrutura diversificada correspondendo a uma estrutura social segregada e especializada

consoante a atividade exercida por cada indivíduo. Já na segunda, a Cidade Radiosa,

embora os princípios da “religião corbusiana” permanecessem incólumes, ocorreram

importantes modificações “teológicas”174 em algumas crenças sobre modelos de

organização social e económica. Como efeito da Grande Depressão de 1929-30, a fé na

capacidade dos capitalistas de financiar a nova cidade foi fortemente abalada. Em face

disso, Le Corbusier abraçou a virtude do planeamento centralizado e total, financiado e

controlado pelo Estado que se estabelecia como providência.

Os CIAM passaram por três fases distintas: uma primeira fase, focada nas questões

habitacionais; uma segunda que, fortemente influenciada por Le Corbusier, que tratou da

cidade além do edifício – defendendo-se uma cidade funcionalista, organizada segundo uma

divisão em quatro áreas da vida (trabalho, lazer, circulação e habitação). Nesta fase, todos os

conceitos que formaram este modelo foram sistematizados na designada Carta de Atenas

(1933). A terceira fase foi marcada pela emergência de um grupo de dissidentes e críticos da

cidade funcionalista. Esse movimento influenciaria a extinção dos Congressos, em 1959.

Na próxima secção, recuar-se-á contudo às primeiras e segunda fase dos CIAM,

detendo um pouco sobre as características que definiam a Carta de Atenas.

174 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 247.

75

“Regras invioláveis assegurarão aos habitantes o bem-estar da moradia, a facilidade do trabalho, o feliz emprego das horas livres. A alma das cidades será animada pela clareza do planejamento”175.

Síntese das ideias dominantes nos CIAM, a Carta de Atenas (1933) foi um

documento resultante do IV desses encontros, o qual se deu num cruzeiro que,

partindo de Marselha, viajou até Atenas. A sua formulação final (e conhecida) foi

redigida por Le Corbusier e influenciou fortemente o urbanismo até ao final dos anos

de 1970, e ainda, de certa forma, nos dias de hoje:

“A [sua] larga divulgação, aliada ao dogmatismo, clareza e sistematização com que os pontos doutrinários [nele] são redigidos estarão na origem do impacte deste texto polémico e apaixonado”176.

A Carta de Atenas divide-se em três partes. A primeira, intitulada Generalidades,

abriga o tema “A Cidade e sua Região”. Nela a cidade é vista como parte de um

sistema económico, social e político, que constitui a região. Defende-se que “o plano

da cidade é só um dos elementos do todo constituído pelo plano regional”177, e

justapõe aos sistemas supracitados (económico, social e político), valores de ordem

psicológica e fisiológica, individual e coletiva. Nessa primeira parte destaca-se, na

ideia de um todo regional, a influência de Patrick Geddes, o que confirma a afirmação

de Peter Hall quando nota a relação “semi-aparentada” do urbanismo dos CIAM com

a ideia da “Cidade Região”178. Esse tema indica ainda qualquer coisa sobre a

influência de outros autores que falaram na questão da cidade pensada como região e,

nomeadamente, Doxiadis, o qual é guardado um papel de relevo no quarto capítulo

desta dissertação, face à sua intervenção direta na estruturação do plano realizado

para o Rio de Janeiro na década de 1960.

175 CARTA DE ATENAS, 1943. Escrita em 1933. Versão em português disponibilizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-Brasil).

176 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 344.

177 CARTA DE ATENAS, op. cit., p. 01.

178 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 161.

76

Na Carta, a “era do maquinismo”, onde “tudo é movimento”179, tem amplo

destaque atrelando definitivamente a questão da mobilidade em geral ao

desenvolvimento dos equipamentos tecnológicos. Com isso, o automóvel entra em

evidência, uma vez que à circulação a pé, “somou-se uma medida em plena evolução,

a velocidade dos veículos mecânicos”180.

A segunda parte da Carta de Atenas, intitulada “Estado atual Crítico das

Cidades”, faz observações sobre os temas fundamentais do urbanismo do CIAM:

Habitação, Lazer, Trabalho, Circulação e Património Histórico das Cidades. Das

observações feitas destacam-se diversos temas, entre eles, aquele dominante no entre-

guerras e após 1945: a questão da habitação, tomada como o centro das preocupações

urbanísticas e o ponto de articulação de todas as medidas. Também a relação entre

densidade construída e superfície ocupada merece uma atenção especial, sendo que o

documento opta por propostas de construção em altura; e a necessidade de

cumprimento de requisitos de salubridade baseados nos postulados formadores do

que seria a matéria-prima básica do urbanismo: sol, vegetação e espaço181.

A especialização e distribuição das áreas da cidade através do zonamento,

com o objetivo de atribuir a cada função e a cada indivíduo o seu justo lugar

delimitando sua área de solo exclusiva também é um dos principais pontos. O

zonamento foi amplamente utilizado e difundido como forma de harmonizar as

funções chave da cidade, ordenando o território e criando vínculos fortalecidos por

uma rede racional de grandes artérias de circulação mecânica/automóvel.

Adicionalmente, a divisão de funções da circulação tem relevo, defendendo-se a

separação da mobilidade de automóveis e dos pedestres já que “as calçadas [...] são

um remédio irrisório”, e “as velocidades [distintas] [...] devem ser separadas”182. A

segregação entre automóveis e pedestres tornou-se uma realidade em que os

primeiros passaram a ser privilegiados causando inúmeros constrangimentos àqueles

que optaram por se deslocar sem o auxílio de pneus.

179 CARTA DE ATENAS, 1943, p. 04.

180 Idem, ibidem, p. 04.

181 Idem, ibidem, p. 08.

182 Idem, ibidem, p. 13.

77

Os subúrbios construídos a partir do grande crescimento das cidades eram alvo

de forte crítica na Carta de Atenas. “Organizados sem plano e sem ligação normal com a

cidade [...] símbolo, ao mesmo tempo, do fracasso e da tentativa [sem plano,

considerados] um erro urbanístico”183. Segundo a Carta, os subúrbios, só poderiam ser

resolvidos com a apropriação da gestão do solo pela administração pública, estabelecendo

um meio de propor, fiscalizar e garantir um desenvolvimento harmonioso, assim evitando

que a “sua feiura e sua tristeza [envergonhassem] a cidade”184.

No tema referente ao Lazer, a Carta ressalta o que seria uma suposta

insuficiência da quantidade de superfícies livres nas cidades. Desta forma, estimula a

tabula rasa da cidade pré-existente: os seus quarteirões insalubres deveriam ser

demolidos e substituídos por superfícies verdes. A existência de parques e áreas de

prática destinadas à prática de desporto deveria ser assegurada em toda a parte,

mesmo que isso significasse grandes distâncias a se percorrer. A questão da distância

física na conceção da Carta de Atenas, não era considerada propriamente um

problema. Afinal, “graças ao aperfeiçoamento dos meios mecânicos de transporte, a

questão da distância não [desempenhava] mais, no caso, um papel preponderante.

Mais [valeria] escolher bem [o local], ainda que se tenha que procurar um pouco mais

longe”185. A ideia de possibilidade de expansão permanente da cidade se viabilizava na

medida em que as redes de mobilidade se ampliavam e a máquina permitia avaliar as

distâncias pelo tempo de deslocação e não pelos quilómetros percorridos.

O último tema contemplado nesta segunda parte da Carta de Atenas refere-se

ao Património Histórico. A promoção da tabula rasa do pré-existente, dispensando a

contribuição da cidade existente, foi uma das principais condições que o urbanismo

do CIAM estabeleceu para viabilizar o progresso. Não obstante, a Carta de Atenas

pretendeu salvaguardar o que poderia ser identificado e validado pelos especialistas

como património de significativo valor arquitetónico e cultural. Nesse caso, apenas

edifícios isolados e, quiçá alguns conjuntos urbanos, poderiam encaixar-se nesta

183 CARTA DE ATENAS, 1943, p. 10.

184 Idem, ibidem, p. 11.

185 Idem, ibidem, p. 18.

78

exceção; “o resto [seria] modificado”. A ideia de restringir ao máximo essa

preservação do passado pode ser observada na seguinte afirmação da Carta:

“Em nenhum caso, o culto do pitoresco e da [H]istória deve ter primazia sobre a salubridade da moradia da qual dependem tão estreitamente o bem-estar e a saúde moral do indivíduo [...] tais iniciativas não serão toleradas de forma alguma”186.

As conclusões, na terceira e última parte da Carta, definem os “pontos

doutrinais” que viriam a ser amplamente divulgados nos/pelos CIAM através dos

seus “profetas e seguidores”. Numa toada dogmática, afirma-se que as cidades

oferecem a imagem do caos e logo não correspondem à sua função de abrigar bem os

Homens – revelando, tal caos, o ascendente incessante dos interesses privados

movidos sobretudo pela atração do lucro187. Essa constatação leva à convocação da

administração pública no sentido de assumir a responsabilidade de zelar pelo destino

das cidades. No entanto, segundo a Carta, as administrações seriam hostis às

transformações propostas, já que eram consideradas pouco esclarecidas e nada

enérgicas na sua atuação. Por isso, a cidade, deveria “assegurar, nos planos espiritual e

material, a liberdade individual e o benefício da ação coletiva, [estaria condenada a

um] inevitável fracasso”188, ao desprezar o progresso e a inexorável mudança da

Modernidade. Neste ponto observa-se várias relações possíveis com o que foi

apresentado no primeiro capítulo deste documento. A busca incessante pela ordem

em oposição ao caos de que fala Bauman; o chamamento do Estado como

fomentador do progresso; e a imposição dogmática do projeto moderno como

caminho único rumo ao futuro róseo.

Seguindo a doutrina do urbanismo dos CIAM, apoiada em análises rigorosas,

feitas por especialistas, e utilizando os recursos da técnica moderna, a administração

pública tendo em mãos as rédeas do planeamento, poderia desenvolver um

“urbanismo total”, capaz de promover o equilíbrio na região e no país. Assim, o

desenvolvimento das cidades, “ao invés de produzir uma catástrofe, [seria] um

186 CARTA DE ATENAS, 1943, p. 26-27.

187 Idem, ibidem, p. 28.

188 Idem, ibidem, p. 29.

79

coroamento”189 das ideias iluministas da Modernidade, garantindo todas as

transformações necessárias ao progresso que levaria ao futuro perfeito. Com isso,

“o acaso [cederia] diante da previsão, o programa sucederá a improvisação. [...] sempre subordinadas aos interesses coletivos. [...] Com a ajuda dos seus especialistas, [respaldaria] a arte de construir com todas as garantias da ciência e [enriquecendo-a] com as invenções e os recursos da época”190.

Sendo o principal documento resultante dos CIAM, foi através da Carta da

Atenas que se difundiram as ideias estabelecidas nos Congressos, propagando os seus

ideais por todo o mundo, prometendo uma nova etapa civilizatória, baseada na

racionalidade e na crença cega na tecnologia, no funcionalismo e no repúdio da

cidade existente. Abolindo o desenho tradicional, o lote, apostando na libertação

máxima do espaço livre disponível para a ocupação isolada e em altura e, sobretudo,

criando e defendendo um novo papel de relevo para os especialistas da disciplina.

Após a IIª Grande Guerra, o urbanismo dos CIAM foi amplamente difundido como

modelo a seguir na reconstrução das cidades vitimadas pela tabula rasa decorrente do conflito.

Contudo, a terceira fase dos CIAM, comentada anteriormente, foi marcada também pelo

surgimento de um grupo de dissidentes que promoveu uma série de questionamentos sobre o

que se impunha como dominante. Tais interrogações, em parte emergentes exatamente da

reflexão advinda do próprio conflito bélico, traduziram-se também em questionamentos

lançados às certezas do urbanismo difundido pelos CIAM. Estabeleceu-se uma crítica ao

funcionalismo e à validade das formas propostas, contestando-se que favorecem uma

correspondência entre o espaço físico construído e as demandas emocionais e materiais do

Homem191. Embora as ideias desenvolvessem uma forte crítica aos CIAM nem sempre

conseguiam descolar por completo dos dogmas que haviam sido tão fortemente

189 CARTA DE ATENAS, 1943, p. 31-32.

190 Idem, ibidem, p. 33.

191 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 337-338.

80

estabelecidos. O auge desse momento de crítica deu-se no X Congresso, em Dubrovnik

(1956) resultando na dissolução definitiva dos Congressos em Otterlo, três anos depois.

O Team X, grupo liderado por Peter & Alison Smithson e Jacob Bakema, talvez

tenha sido o exemplo de maior destaque e mais estudado no âmbito dos dissidentes, que

evitou a consolidação de suas ideias em um “manifesto” ou “carta” aceitando o “desafio

permanente da realidade em movimento”, sem fórmulas ou modelos prévios192. No

entanto, outros dissidentes foram importantes e contribuíram para o surgimento de novas

perspectivas disciplinares como Constantinos Apostolos Doxiadis (1913-1975), autor da

Ekistics, proposta teórica que foi divulgada num periódico193 desenvolvido em parceria com

Jaqueline Tyrwhitt (1905-1083), a partir de 1955, e que seria consolidada na publicação do

livro “Ekistics - an introduction to the science of human settlements”, publicado em 1968.

A Ekistics assume um particular interesse no âmbito desta investigação, já que

serviu de base para o Plano de Desenvolvimento Urbano para o Estado da Guanabara

(1964/65), atual Município do Rio de Janeiro, elaborado por Doxiadis, o qual

abordaremos oportunamente, na segunda parte deste documento.

É importante perceber a conjuntura na qual se deu a formação do pensamento de

Doxiadis e do período de formulação e desenvolvimento da teoria da Ekistics. O arquiteto

grego formou-se no curso de arquitetura e engenharia da Universidade Técnica de Atenas

em 1935. Dois anos antes, em 1933, foi realizado o IV CIAM – precisamente em Atenas –

no que viria a ser, provavelmente, o mais marcante dos encontros, organizado sob o tema

“A Cidade Funcional”. Nesta ocasião, foi redigida a Carta de Atenas, manifesto que

estabeleceu os preceitos do urbanismo moderno e que foi aplicado na grande maioria das

cidades europeias no pós-guerra (e não só, conforme visto anteriormente). No auge do

urbanismo do Movimento Moderno, não seria prudente desconsiderar a influência do IV

192 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 15.

193 The Journal Ekistics, teve sua primeira edição em Outubro de 1955. Doxiadis e Tyrwhitt se conheceram em 1954 em Delhi no primeiro U.N. International Symposium on Housing and Community Planning. Doxiadis era um participante ilustre do evento e Tyrwhitt era diretora do simpósio. Convencidos da importância de desenvolver um periódico que mantivesse arquitetos e planeadores dos países em desenvolvimento atualizados com a expertise internacional Tyrwhitt aceitou promover a publicação que nos seus primeiros dois anos teve o nome de Tropical Housing and Planning Monthly Bulletin. Disponível na WWW: <URL: http://www.ekistics.org/ejournal.htm > [Consult. 2015-02-22].

81

CIAM. Mas o jovem arquiteto, que nunca foi membro oficial dos CIAM194, estabeleceu no

seu percurso profissional, uma nova teoria que procurou dissociar-se daquela estabelecida

(ou assim predominantemente reconhecida) pelos CIAM. No entanto, a influência

marcante dos princípios da Modernidade não permitiria uma distanciamento maior. A

Ekistics195 propunha o desenvolvimento de uma nova ciência específica para os

assentamentos humanos, tendo como meta o equilíbrio entre o Homem e seu habitat,

baseando-se no entendimento das relações existentes entre a natureza, o Homem, a

sociedade, as estruturas do território e as variadas redes que instituem as dinâmicas das

cidades. Doxiadis pretendia a formação de uma ciência multidisciplinar, capaz de visitar a

geografia, a ecologia, a psicologia, as ciências sociais, políticas e culturais, para desta forma

se constituir e compreender a dinâmica e a complexidade do tema urbano.

“A fim de criar as cidades do futuro, precisamos desenvolver sistematicamente a ciência dos assentamentos humanos. Esta ciência, denominada Ekistics, levará em consideração os princípios do homem na construção de seus assentamentos, bem como a evolução dos assentamentos humanos ao longo da história em termos de tamanho e qualidade. A meta é construir a cidade de tamanho ideal, isto é, uma cidade que respeite as dimensões humanas. [...] Devemos tentar acomodar a evolução tecnológica e as necessidades do homem dentro do mesmo assentamento”196.

A Ekistics é uma teoria associada diretamente ao contexto de dissolução e ruptura

com os CIAM, e é, também, fruto das discussões estabelecidas dentro dos próprios

194 SOSA, Marisol Rodríguez, A Guanabara de Doxiadis e a Havana de Sert. Ekistics e Urban Design, novas direções na ruptura do CIAM. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, PROURB. Tese de Doutoramento, 2008, p. 164.

195 O nome Ekistics foi utilizado por Doxiadis para definir a ciência dos assentamentos humanos e o termo deriva de diferentes palavras do grego antigo com diversos significados: “casa”, “edifício”, “habitação” e “estabelecimento de uma colônia, um acordo, ou uma cidade”. Disponível na WWW: <URL: http://www.ekistics.org/ekistdef.htm> [Consult. 2015-02-22].

196 DOXIADIS, Constantinos A., “Ekistics, the Science of human settlements” in SCIENCE, v.170, n. 3956, Outubro 1970, p.393-404. (tradução livre do autor).

82

Congressos a partir da sua fase final. Possui na base da sua concepção os mesmos

princípios fundamentais da Modernidade destacados até aqui: mudança, progresso e

projeto, embora possam nela ser identificadas novas noções, produzidas segundo a

perspectiva de uma revisão das teorias do urbanismo e das certezas da Modernidade.

Não obstante, Doxiadis desenvolveu uma estrutura teórica focada na ideia de

futuro, absorvendo tanto a confiança na capacidade do Homem criar a cidade ideal,

quanto a condição de incerteza sobre a possibilidade de construção desse futuro desejado.

A convicção de que a viabilidade do futuro residiria na aplicação da teoria desenvolvida

por Doxiadis – a Ekistics – é um dos factos que demonstra que o arquiteto trabalhava

ainda sob a égide da confiança irrestrita na capacidade do projeto, do desígnio, da técnica

levada a cabo pelo Homem.

Segundo o autor, para pôr em prática a teoria da Ekistics, seria fundamental

entender as forças reais que condicionam o futuro, isto é, “o quadro em que nós vamos

viver e os problemas criados por ele”197. O desejo de compreensão da realidade a priori

move aquela que se tornou uma das bases principais da sua teoria: a necessidade de

concepção de um prévio levantamento, amplo e completo da realidade como forma de

balizar o caminho para o futuro. Esta diretriz revela que Doxiadis sofreu forte influência

do modelo de planeamento regional, do início do século XX, proposto pelo biólogo

escocês Patrick Geddes (1854-1932)198. Foi Geddes, sobretudo, o principal formulador da

ideia de compreensão prévia da cidade, indispensável como forma de viabilizar a tentativa de

previsão científica do futuro, evitando assim os “perigos da utopia”199. É dele a máxima

que afirmava: “o levantamento precede o plano”200. E foi dele também a ideia de

elaboração de uma “Enciclopédia cívica, para a qual todas as cidades deveriam contribuir por

meio de uma informação exaustiva com respeito à trilogia passado, presente, futuro”201.

Nada mais moderno do que o processo de catalogação enciclopédica iluminista, aqui

197 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 03 (tradução livre do autor).

198 Idem, ibidem, p. 04.

199 CHOAY, Françoise, O Urbanismo - utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 5ªed.,1998, p. 274.

200 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 166.

201 CHOAY, Françoise, op. cit., p. 275.

83

aplicado às cidades. Doxiadis possuía clara influência dessa linha de pensamento como

podemos ver a sua afirmação: “Não podemos adquirir conhecimento adequado sobre as

nossas aldeias, vilas e cidades a menos que consigamos ver toda a gama de sistemas feitos

pelo homem e dentro dos quais vivemos, desde o mais primitivo aos mais desenvolvidos

- ou seja, toda a gama de assentamentos humanos”202.

Doxiadis destacava também a questão da escala da cidade no território e com ela,

o fato de que a “cidade-gigante” se havia tornado uma realidade com a qual a

humanidade nunca havia realmente lidado203. Observa-se assim, mais uma vez, a

influência de Geddes, segundo Peter Hall, o “pai” do planeamento regional204; autor a

quem se deve, segundo Choay, o conceito de conurbação, publicado em 1915 no seu

livro Cities in Evolution – onde Geddes destacava que as novas tecnologias promoviam a

dispersão das grandes cidades formando grandes conglomerados205.

Doxiadis também se dedicou ao planeamento à escala regional tendo em conta o

enfrentamento da “metrópole-gigante”, criticando a expansão sem rígido controle e o

consequente desperdício de recursos naturais. Deste modo, adiantava, de certa forma, o

tema ambiental, que ganhou força na década de 70 do século XX206. De facto, a escala do

que havia de ser a cidade no futuro foi um ponto fundamental na teoria da Ekistics.

Doxiadis criticava os modelos utópicos assentes na ideia de pequenas cidades limitadas

em sua dimensão, estáticas – o que não correspondia ao forte dinamismo observado nas

cidades reais. Para Doxiadis, o caminho único, realista, era o da aceitação da condição de

“metrópole-gigante” como um fenómeno inevitável, admitindo as suas qualidades e

buscando melhorar os seus aspectos negativos207. A Ekistics de Doxiadis encaixava-se

mais numa estratégia de reestruturação da cidade existente, e condução da expansão,

202 DOXIADIS, Constantinos A., “Ekistics, the Science of human settlements” in SCIENCE, v.170, n. 3956, Outubro 1970, p. 01. (tradução livre do autor).

203 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 02.

204 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 161.

205 Idem, ibidem, p. 171.

206 DOXIADIS, Constantinos A., op. cit., p. 04.

207 DOXIADIS, Constantinos A., “Ekistics, the Science of human settlements” in SCIENCE, v.170, n. 3956, Outubro 1970, p. 05. (tradução livre do autor).

84

seguindo, portanto, uma linha diferente daquela presente na retórica dos CIAM, que

priorizava a sobreposição arrasadora das pré-existências.

A capacidade transformadora plena e absoluta do plano físico, estático,

concebido e expresso num desenho era, para Doxiadis, um mito. A cidade como

organismo dinâmico em crescimento necessitava de uma política de planeamento que se

expressasse no espaço segundo um plano físico de desenvolvimento, mas também

segundo um diagnóstico de necessidades económicas, sociais, políticas, administrativas,

tecnológicas e, também estéticas208. Com isso, a cidade, em sua complexidade, não

poderia ser encaixada num plano estático. Ainda assim, Doxiadis propôs o controle das

várias dinâmicas implícitas nas diversas escalas territoriais através de preceitos racionais.

Doxiadis acreditava que toda a cidade poderia ser dividida em unidades físicas de

tamanho ideal, base para o planeamento do desenvolvimento e do crescimento dinâmico

e que resultaria numa grande rede que se estenderia pelo território criando uma única

cidade mundial a Ecumenopolis.

A relação entre o espaço da cidade, o automóvel e o Homem, também foi alvo

de reflexão por Doxiadis. Nesse tema, observa-se a influência da prática CIAM sobre o

autor, na medida em que propõe a separação entre o automóvel e o ser humano, o espaço

de circulação da máquina e do pedestre. Doxiadis, cita Herbert George Wells que, em

1895, escrevera "The time machine" descrevendo um futuro onde haveria uma cidade na

superfície formada de ruínas das civilizações passadas, e um outro mundo, subterrâneo,

onde a humanidade viveria209. Talvez aí se encontrem as bases das propostas que

estabeleciam a circulação de automóveis e também de transporte de massas da cidade do

futuro sob a terra. Segundo Doxiadis, residiria aí “a solução definitiva”210.

Na perspectiva de Doxiadis, as redes de transportes (assim como as de

comunicações) atuaria como um “sistema nervoso” da cidade. Na sua visão, a circulação

dar-se-ia a pé nas pequenas distâncias, de automóvel nos deslocamentos um pouco

208 DOXIADIS, Constantinos A., “Ekistics, the Science of human settlements” in SCIENCE, v.170, n. 3956, Outubro 1970, p. 13.

209 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 05.

210 Idem, ibidem, p. 19 (tradução livre do autor).

85

maiores, e por avião ou “foguetões” nas distâncias realmente grandes. Nesse sistema, o

tempo deveria ser otimizado ao máximo e as “linhas de movimento” não poderiam

cruzar-se. A exceção, pontual, seria concedida à circulação de pedestres já que estes

seriam identificados como “organismos de autorregulação de grande flexibilidade, que

não apenas não encontram nenhuma necessidade de evitar cruzamentos entre os outros

caminhos, como assim o querem [...]” 211.

“Ecumenopolis, que a humanidade terá construído 150 anos a partir de agora, pode ser a cidade real do homem, porque, pela primeira vez na história, o homem terá uma cidade em vez de muitas cidades pertencentes a diferentes grupos nacionais, raciais, religiosos ou locais, cada uma pronta para o proteger, mas também prontos para lutar contra aqueles de outras cidades, grandes e pequenas, interligado a um sistema de cidades. Ecumenopolis, a única cidade do homem, vai formar uma textura contínua, diferenciada mas também unificada que consiste em muitas células, as comunidades humanas” 212.

Segundo Doxiadis, o desenvolvimento de assentamentos cada vez maiores e

mais complexos, em grandes conurbações regionais, de crescimento dinâmico,

acabaria por conformar uma única cidade mundial: “the unique city of mankind”213.

Esta última, designada pelo autor como Ecumenopolis, estruturar-se-ia segundo

uma hierarquia clara: da habitação familiar, aos pequenos e grande bairros, passando

pela cidade, pela metrópole, a megalópole, unidades consecutivas, conformando um

sistema estruturado hierarquicamente. Uma estrutura universal em sua expressão à

escala alargada – nacional, local – na escala da cidade, e pessoal – individualizada na

expressão das habitações. Nessa única estrutura, os sistemas de transporte e

211 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 22-23 (tradução livre do autor).

212 Idem, ibidem, p. 21 (tradução livre do autor).

213 Idem, ibidem, p. 15.

86

comunicações atuariam simultaneamente como um sistema nervoso e circulatório,

unificando à cidade universal214.

Figura 15. Representação do que seria a Ecumenopolis.

Doxiadis, considerava fulcral o entendimento de que as cidades eram

dinâmicas e cresciam rapidamente, e de que a urgência de decidir era um dado do

presente. Para Doxiadis, as decisões a tomar quanto ao destino das cidades nas duas

gerações seguintes teria efeitos comprometedores ainda maiores do que tudo o que

a humanidade já havia feito antes da década de 1960215.

Doxiadis vê-se, contudo, pressionado pelo conflito entre o desejo de

conceber a cidade ideal e a constatação de que seria difícil procurar soluções ideais

– atendendo à constante mudança de funções, dimensões, estruturas, texturas e

densidades das mesmas. Em certa medida, afirmava: “nothing remains static”216. Para

enfrentar esse desafio, Doxiadis buscou relacionar as estruturas da natureza com as

estruturas urbanas. Considerando que durante o crescimento de um organismo, a

214 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 22.

215 Idem, ibidem, p. 27.

216 DOXIADIS, Constantinos, A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 2ª ed., 1969, p. 355.

87

maior parte das células se mantém do mesmo tamanho, concluía que a necessidade

de encontrar uma solução ideal exigia a orientação segundo células estáticas,

vinculadas a um crescimento dinâmico de reprodução das unidades estáticas217. Para

abarcar as duas ideias de célula estática, controlável, e de compreensão do

dinamismo inerente às cidades, propôs o crescimento através da criação de novas

células, as quais deveriam permanecer amplamente conectadas entre si218. Não se

trata da construção de novas cidades isoladas, limitadas em si mesmas; estas seriam

novas partes de um mesmo organismo que continuava em desenvolvimento.

A cidade, ou a polis, como se refere o próprio Doxiadis, seria a célula

estática que se desenvolveria pela sua reprodução dinâmica, que na sua forma ideal,

o autor designava como Dynapolis. Nela, os processos constantes de transformação

estariam controlados de forma a tornar possível a criação das condições para

desenvolver efetivamente as necessidades humanas219. Para Doxiadis, o principal

problema para se alcançar o ideal da Dynapolis, seria a dificuldade de controlo do

seu crescimento, que deveria se dar dentro de um padrão a partir de seu centro, que

não permitisse novas adições que destruíssem o padrão já existente220. Vale a pena

voltar a registar como a perspectiva de manutenção do padrão urbano existente é

contrastante com a ideia da vantagem da tabula rasa promovida pelos CIAM, da

mesma forma a ideia do crescimento unidirecional, no sentido estabelecido pelas

lógicas locais ratificadas pela decisão do plano, formando uma cidade polinucleada,

de estruturas estáticas com alguma dependência em relação a um núcleo central.

Passando da idealização da cidade para a metrópole ideal, Doxiadis propõe a

Dynametropolis que se diferencia da Dynapolis basicamente pela sua dimensão e pela

existência de múltiplas centralidades com algum grau de independência entre elas – o que,

paradoxalmente, dificultaria a percepção de uma estrutura única221. Nela, sedimentam-se

217 DOXIADIS, Constantinos, A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 2ª ed., 1969, p. 355.

218 Idem, ibidem, p. 356.

219 Idem, ibidem, p. 364.

220 Idem, ibidem, p. 363.

221 Idem, ibidem, p. 371.

88

as forças que conduzem à construção da Ecumenopolis. Constituem áreas de grande atração

de população e o seu crescimento é de grande importância porque, segundo Doxiadis, a

encaminham para o seu próprio sufocamento e morte se não conduzidas segundo a

Ekistics222. A busca pelo ideal da Dynametropolis seria a sua salvação e se constituiria pela

repetição de Dynapolises posicionadas de forma a criar lacunas, sobreposições, e novos

centralidades capazes de equilibrar a pressão exercida sobre o centro principal223, conceito

que utilizou no Rio de Janeiro.

Figura 16. Esquema de formação da Dynapolis.

Na proposta de Doxiadis, haveria ainda que considerar a designada

Dynamegalopolis224, entidade que elevaria as questões da Dynametropolis a uma outra escala,

uma “ordem superior”, com sistemas de centralidades, transporte e comunicação ainda

maiores e mais complexos. A sua evolução dinâmica e gradual rumo à condição de

222 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. London: Hutchinson of London, 1968, p. 27.

223 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. (2ªed.) London: Hutchinson of London, 1969, p. 374.

224 Idem, ibidem, p. 374.

89

“cidade ideal” levaria à consolidação da Ecumenopolis. Esta seria constituída por um

sistema integrado de centralidades que teriam como base uma rede de transportes e

comunicação que suportariam a pressão exercida pelo desenvolvimento da cidade até à

sua consolidação como Ecumenopolis. Até lá, o processo de crescimento passaria pela

concentração na criação de novos sistemas compostos por centralidades ligadas por uma

rede de transporte de “ordem superior”, que aliviassem a pressão nas áreas já ocupadas225.

O conceito de Ecumenopolis, questiona a cidade ideal finita, pensada como tendo

todos os seus limites previamente definidos, como eram aquelas imaginadas por

Ebenezer Howard e Le Corbusier. Ele ambiciona lançar as bases para sustentar e

encaminhar o crescimento dinâmico das cidades (facto tido como inevitável), permitindo

a livre expansão de um organismo vivo, sujeito a mudanças. Para isso, seria preciso

garantir espaço para a expansão, direcionando assim o crescimento da cidade segundo os

desígnios definidos pela teoria.

Para Doxiadis, a Ecumenopolis seria o estágio final da evolução das cidades. Estas,

conformariam uma cidade única mundial, espalhada sobre todo o território global. De

certa forma, Doxiadis com a ideia da conurbação dos sistemas físicos de centralidades,

transportes e comunicações que sustentariam tal estrutura, previu o efeito da globalização

que mais tarde se daria. A partir da conquista da tão aguardada condição de cidade

mundial, a humanidade, e por consequência a cidade, entraria num período de maior

tranquilidade quanto às transformações urbanas, relativamente estático, se observada a

relação com as outras fases anteriores226.

Segundo Doxiadis, a construção da cidade mundial não estava tão distante.,

considerando que ela “havia já começado a tomar forma”227. Utilizando o Rio de Janeiro

como exemplo deste início de processo de construção, defendia que, no caso desta

cidade, “por causa do crescimento esperado da população até o final deste século [XX],

225 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. (2ªed.) London: Hutchinson of London, 1969, p.374-375.

226 Idem, ibidem, p. 376.

227 Idem, ibidem, p. 380.

90

um vale muito maior será coberto por 20 milhões de pessoas ou mais”228. O arquiteto

grego errou, contudo, as previsões. No ano 2000, a região metropolitana do Rio de

Janeiro229 possuía pouco menos que 11 milhões de habitantes. Não obstante, a cidade

triplicou a sua área de ocupação entre os anos sessenta e o final do século230, quando a

metrópole também manteve, provavelmente, o mesmo ritmo de expansão.

Não obstante a produção e a discussão de novas teorias dissidentes ao

urbanismo dos CIAM no período do pós-segunda Guerra, a emergência associada à

reconstrução das cidades destruídas pelo conflito resultara na necessidade de respostas

rápidas, de baixo custo e de produção em massa. Estes eram elementos considerados

importantes na célere superação do trauma e subsequente recuperação da esperança no

futuro. O urbanismo moderno dos CIAM, amplamente difundido, assumiu essa

empreitada como parte integrante da sua proposta teórica, prática e epistemológica231. A

disponibilidade de jovens arquitetos crentes nos seus dogmas, juntamente com a

facilidade técnica e operativa, potenciava a construção rápida, económica e em grande

quantidade, viabilizaram o domínio do modelo modernista dominante no CIAM, no

processo de reconstrução. A eficácia dos projetos, considerando as três zonas/atividades

definidas na Carta de Atenas - habitação, circulação e equipamentos - facilitava tanto o ato

de projetar, quanto a sua execução. E entre os sistemas não havia acertos necessários,

apenas o espaço livre preconizado pela Carta de Atenas.

228 DOXIADIS, Constantinos A., Ekistics: an introduction to the science of human settlements. (2ªed.) London: Hutchinson of London, 1969, p. 380 (tradução livre do autor).

229 A região metropolitana do Rio de Janeiro é composta por 17 municípios: Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica, Mesquita e Tanguá.

230 Pelos dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] a região metropolitana do Rio de Janeiro, no ano 2000, possuía 10.894.156 habitantes. Entre os anos 1960 e o final do século XX, a população da cidade cresceu de 3 milhões para 5,8 milhões. Enquanto isso, a área urbana ocupada expandiu-se, triplicando a área ocupada. Como consequência, a densidade populacional caiu de 15mil hab/km2 para aproximadamente 10 mil hab/km2. Para saber mais sobre o tema ver: MAGALHÃES, Sérgio, A Cidade na Incerteza: Ruptura e Contigüidade em urbanismo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, ed. PROURB, 2007, p. 182.

231 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 47.

91

A rápida reconstrução das cidades, apostada no alimentar de um processo de

(re)produção construtiva em massa, proporcionava a própria aceitação e banalização

daquelas ideias (como se fossem soluções óbvias), promovendo um planeamento

operacional focado fundamentalmente, e quase que exclusivamente, na construção veloz

e de baixo custo. A estandardização foi mais do que nunca o caminho seguido. O

desenho foi perdendo a sua importância, assim como a preocupação com as

especificidades das realizações dos arquitetos urbanistas do período “heroico” do

modernismo, as quais passaram também para segundo plano.

Avançada a reconstrução do pós-guerra o desenvolvimento prosseguia, nas

décadas de 1960 e 1970, e a população aumentava tanto nos países desenvolvidos quanto

naqueles em via de desenvolvimento. Nestes últimos, onde havia um mix de recursos

materiais, financeiros e técnicos, mais escassos e grande necessidades de intervenção (desde

logo, por conta do crescimento demográfico e do afluxo de pessoas que migravam rumo às

cidades), importantes iniciativas foram realizadas a partir de grandes planos. Planos, esses,

não raras vezes projetados por mãos estrangeiras, vindas dos países mais desenvolvidos232.

Na América Latina destacam-se exemplos como na Venezuela, as cidades de Guayana

(1961), El Tabazo (1968) e Tuy Medio (1968), supervisionadas pelos ingleses Llewelyn-

Davies, Wakes, Forestier-Walker e Bor. Na Ásia, no Paquistão, a nova capital – Islamabad

(1959) – concebida como cidade de crescimento infinito, nascida das mãos do inglês Robert

Mathew e do grego Doxiadis; e na Índia, a icónica Chandigarh (1947) de Le Corbusier. De

volta à América do Sul, agora no Brasil, Doxiadis foi também responsável pelo Plano para a

o Estado da Guanabara (1965).

Em geral, esses foram projetos de dimensões exageradas em relação às reais

necessidades e embora alguns deles tenham sido levados a cabo, a vertente utópica é

claramente identificada. Essas experiências serviram sobretudo para demonstrar os

problemas do modelo estabelecido233. Os principais objetivos definidores de uma cidade

disciplinada pelos “planos urbanísticos e providas de serviços públicos, estradas, parques,

232 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 73.

233 Idem, ibidem, p. 81.

92

etc., apenas atingem uma parte da população”234, mantendo um outro largo segmento à

margem desse ordenamento. Ocupações ilegais, construção precária, reduzida infraestrutura

geral são a tónica desse processo que margeia o planeamento “operacional e burocrático”.

A burocracia fruto da institucionalização dos aparelhos de Estado, com seus

corpos técnicos e administrativos próprios – robustecidos no pós-segunda Guerra, se

juntava a um contexto onde emergia um planeamento menos atento as especificidades da

definição da forma da cidade. Com a definição do traçado do sistema viário e os

zonamentos sob o território, o plano estaria cumprido se respeitados todos os parâmetros

e variáveis funcionais e quantitativas. Como destacado por José Lamas, “um tal sistema

não exigiria compromissos maiores de ordem espacial ou arquitectónica, porque as partes

constituintes não se estruturam através de um desenho rigoroso, gerador de relações,

integração e encaixe recíproco entre edifícios e espaços urbanos”235. O urbanismo

passava a tratar de planos significativamente genéricos, onde os parâmetros de projeto se

limitavam a índices e definições abstratas sob as manchas de um zonamento, por vezes,

pouco relacionado com a realidade do território.

A aparente eficácia de gestores operacionais e tecnocratas na elaboração desses

planos reforçou a ideia de um urbanismo seccionado, focado em sistemas diversos e

distinguíveis, fomentando estruturas que se enquadravam impecavelmente nos

departamentos estanques da burocracia das administrações. A especialização dos sistemas

urbanos preconizada nos/pelos CIAM foi, de certa forma, desvirtuada pela burocracia

estatal, no que viria a resultar em experiências negativas para a disciplina do urbanismo.

Isto acabou por gerar a perda da confiança de arquitetos e da população em geral numa

disciplina que resultava numa cidade em que, embora se equacionassem questões

funcionais, não se conseguiam, do ponto de vista da qualidade de vida, um resultado

efetivamente satisfatório. Os planos de larga escala da segunda metade do século XX

foram sendo executados embora a revisão disciplinar do urbanismo já permitisse observar

os factos segundo outras objetivas, muito havia se modificado.

234 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 130.

235 LAMAS, José M.R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 376.

93

Enquanto isso, a expansão das cidades manteve o seu curso, mesmo sabendo-se

que apenas o novo não satisfaria as demandas crescentes. E questionava-se, nesse

sentido, até que ponto seria mais conveniente o reconhecimento e aproveitamento das

pré-existências236, mas não só por causa das demandas, não só por uma questão de

número. A questão da valorização das pré-existências emerge a partir de outros valores,

ligados à consideração da cidade como património, além dos monumentos e áreas de

exceção. Iniciava-se um processo para uma mudança de “objetiva”.

***

Esta segunda revolução urbana, na designação de Ascher, observou o nascimento e a

ascensão da disciplina do urbanismo, a qual se estabeleceu de forma vigorosa e pujante

durante toda a primeira metade do século XX, tentando “superar as discriminações

resultantes da gestão urbana tradicional e […] [buscando] interpretar objetivamente, através da

investigação científica, as necessidades de todos os cidadãos”237. No entanto, como vimos, a

disciplina foi também paralelamente questionada, facto que se desenrolou a partir de novos

movimentos de transformação tanto na arquitetura e no urbanismo como noutros campos do

saber, constituindo, mais tarde, um outro momento, em que Ascher considera constituir a

terceira revolução urbana moderna, que será aprofundada no próximo ponto.

Definem-se até aqui os “filtros” atrelados à “objetiva” da certeza definida no

primeiro capítulo. Destacando-se em importância aqueles que possuem maior interesse

para esta investigação e posterior aplicação na análise do Estudo de Caso, nomeadamente

aqueles relativos ao urbanismo do CIAM; à teoria dissidentes de Doxiadis, a Ekistics; e

por fim, o “urbanismo operacional e burocrático” do pós-segunda Guerra que marcou a

derrocada desta “objetiva” abrindo caminho para a da incerteza.

236 BENEVOLO, Leonardo, O último capítulo da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 151.

237 Idem, ibidem, p. 146.

94

As transformações ocorridas a partir da crise da Modernidade e o

estabelecimento de processos que configuraram um outro momento da sua evolução,

atingiu, como acontecera durante a “Modernidade sólida”, as cidades e a forma de as

pensar. Os processos sociais, políticos e económicos marcantes dessa outra fase da

Modernidade estabeleceram o que Ascher definiu como a “terceira revolução urbana”,

essencialmente caracterizada pela emergência de novas atitudes em relação ao futuro, as

quais influenciaram o surgimento de diferentes modos de pensar e de agir também nos

campos da arquitetura e do urbanismo238. Tais processos são identificáveis, segundo o

autor, a partir de cinco tendências evolutivas: (i) a metapolização, (ii) a transformação dos

sistemas urbanos de mobilidade, (iii) a formação de espaços tempo individuais, a (iv)

redefinição das relações entre interesses individuais, coletivos e gerais, e (v) a existência de

um novo modo de as sociedades se relacionarem com os riscos239.

(i) A primeira tendência refere-se a um duplo processo, que envolve o

estabelecimento tanto de “metrópoles” como de “metápoles”. A “metropolização” diz

respeito ao crescimento das cidades e à concentração materiais ou humanas nas grandes

aglomerações. Já a constituição das “metápoles” resulta de um outro fenómeno advindo do

desenvolvimento dos meios de transporte e de armazenamento de bens, informação e

pessoas, bem como do desenvolvimento das tecnologias de comunicação à distância que

promovem “vastas conurbações, extensas e descontínuas, heterogéneas e

multipolarizadas”240, bastante características da paisagem europeia, mas não só.

(ii) A seguinte aplica-se às transformações dos sistemas de mobilidade241,

consequência do já referido desenvolvimento do campo das tecnologias de transporte e de

comunicação. Segundo Ascher, o incremento da globalização e da própria “metápole”

configuram um processo de retroalimentação, que promove o desenvolvimento mútuo das

238 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 60.

239 Idem, ibidem, p. 61.

240 Idem, ibidem, p. 62.

241 Idem, ibidem, p. 64.

95

duas realidades. Essas transformações não causam mais o receio da derrocada da ideia de

cidade como um lugar de trocas e encontros, que é substituída por uma cidade de fluxos

racionais e objetivos. A banalização desses avanços parece ter acabado por valorizar “o face

a face, os contactos directos, (...) a acessibilidade física, a possibilidade do encontro”242,

como importantes riquezas dos lugares urbanos, promovendo, ainda assim, “uma cidade

móvel e telecomunicante, feita de novas arbitragens entre as deslocações das pessoas, dos

bens e das informações, animadas por acontecimentos que exigem co-presença e na qual a

qualidade dos lugares mobilizará todos os sentidos”243.

Também a desconcentração dos processos produtivos que tinham a antiga

fábrica como elemento central, resultou na fragmentação e distribuição da produção

sobre o território. A consequência é a distribuição de novas centralidades por todo o

território, resultando na necessidade de garantia de um eficiente e amplo sistema de

mobilidade, e também, na valorização desses espaços de interconexão que se confundem

com o próprio espaço da cidade, onde é a própria rua como espaço coletivo que faz a

ligação entre as diversas fases de produção. O que antes foi coeso e central passou a ser

fragmentado e interconectado pelo transporte e pelas tecnologias de comunicação, sem

que, no entanto se desprezasse a presença física das relações que se estabelecem não num

lugar único, central, mas em vários pontos e nos seus espaços coletivos de interligação.

(iii) O desenvolvimento dessas tecnologias de transporte e comunicação também são

fundamentais na constituição de uma terceira tendência notada por Ascher: o reforço da

individualização da/na vida social: a individualização do “espaço-tempo”. A flexibilização

possibilitada pelas tecnologias de transporte e comunicação promovem uma dessincronização

da lógica produtiva racional, “Fordo-taylorista”. A autonomia individual resulta na própria

individualização dos processos produtivos que podem ser levados a cabo sem vínculos

temporais ou espaciais específicos, tendo o seu foco na performance produtiva.

Num tempo em que os “caçadores” substituem os “jardineiros”, é compreensível o

agravamento da individualização que é uma das características mais marcantes dessa outra

242 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 64.

243 Idem, ibidem, p. 64.

96

Modernidade. Como consequência no processo produtivo, promove-se uma dessincronização

das atividades que individualizadas passam também a estarem muito mais focados em

respostas finais particularizadas, customizando respostas e o próprio consumo.

(iv) A tendência da redefinição das relações entre interesses individuais, coletivos

e gerais dá-se por conta de laços sociais menos estáveis, embora mais numerosos e

diversificados, que promovem um menor sentimento de partilha ampla de interesses, no

que resulta em dificuldades para as instituições estatais que historicamente trataram de

responder a demandas coletivas supostamente consensuais. No tema urbano, esta

tendência resulta na necessidade de se estabelecer instrumentos de escalas flexíveis e na

contínua e variada consulta aos stakeholders, redefinindo o modo de tomada de decisão dos

atores públicos segundo novas perceções do que se constitui como interesse público.

Estabelecendo um novo desafio para a sociedade moderna avançada “o de renovar [das]

concessões e [das] modalidades do político, da política e da construção das decisões

políticas, em particular no campo das políticas urbanas”244.

(v) Por fim, a tendência para o reconhecimento e preocupação quanto à

ambivalência dos processos de modernização e a incerteza quanto às suas consequências

promove o tema do risco a uma posição de destaque na reflexão sobre a cidade. Os

avanços da “terceira revolução urbana” fazem emergir “novos riscos”, e o amplo acesso à

informação contribui para o potenciar do sentimento ligado ao perigo na medida em que

há uma “expansão da quantidade de eventos contingentes que afetam a todos”245. O

conhecimento de catástrofes dá-se em tempo real e situações de risco iminente são

percebidas num território que é cada vez mais compartilhado de forma globalizada.

Esta sociedade do risco, assim teorizada por Ulrich Beck (1992)246, é uma realidade que

se instaura a partir do reconhecimento da incerteza e ambivalência inerente aos processos de

modernização. E, “por essa razão, os indivíduos, assim como os actores sociais e económicos,

244 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 73.

245 GIDDENS, Antony, As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991, p. 126.

246 BECK, Ulrich, The risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage, 1992.

97

procuram cada vez mais tudo o que possa proteger, tranquilizar e produzir confiança”247.

Nesse contexto, desenvolve-se o princípio da precaução, que “surge, com efeito, quando há

incerteza sobre as consequências possíveis de uma decisão, seja porque não conseguimos

conhecê-las ou medi-las, seja porque os especialistas não estão de acordo”248 e transfere ao

político o “peso da decisão, da medida suspensiva ou dilatória ou da assunção do risco”249.

A questão do risco, faz emergir com maior acuidade o tema da legitimação. A

incerteza quanto aos resultados efetivos das decisões resulta na necessidade de promoção

de garantias mínimas de segurança, de confiança, que se criam e dão através de processos

diversificados de legitimação. Estes processos passam a ser elementos fundamentais na

constituição do urbanismo contemporâneo.

A “terceira revolução urbana” define-se então num quadro de grande

complexidade onde se lida, além disso, com a cidade alargada. Nessa condição, a

necessidade de aperfeiçoamento da mobilidade e das conexões, o atendimento a

demandas cada vez mais específicas e individualizadas sem no entanto esquecer a

necessidade de garantir a equidade. A constante necessidade e a dificuldade de construção

de consensos e o reconhecimento da incerteza e do risco como constantes inerentes a

toda esta complexidade, faz emergir a importância da decisão política no projeto que, por

sua vez, se apoia em processos de legitimação tão complexos e ambíguos quanto a

própria condição da contemporaneidade.

As tendências que se estabelecem e definem a “terceira revolução urbana”

constituíram-se paulatinamente, através da exacerbação dos próprios processos de

modernização, como destacam tanto Ascher quanto Lipovetsky. No campo disciplinar do

urbanismo, essas transformações produziram críticas que se constituíram ainda em

247 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 77.

248 Idem, ibidem, p. 77.

249 Idem, ibidem, p.77.

98

paralelo à prática daquela Modernidade baseada na certeza que promoveu as cidades

resultantes dos modelos estabelecidos principalmente no período entre-guerras,

alicerçados no esforço da reconstrução. Dessa forma, estes modelos enfrentaram, ainda

na década de 1960, importantes reações de oposição.

A exposição dos males causados pela aplicação dos modelos e a sua consequente

recusa eram baseadas na constatação da pobreza espacial, funcional e qualitativa dessas

intervenções assentes num urbanismo simplista, demasiadamente focado na questão

operacional, tornando-se burocrático. Paralelamente, o potencial e a qualidade das cidades

pré-existentes, sobretudo daquelas organizadas pelas populações das periferias, especialmente

na América Latina, sem o toque demiurgo dos especialistas eram (re)descobertas.

O período de reflexão e crítica dentro do campo disciplinar do urbanismo

resultou num conjunto teórico-crítico em que se destacaram importantes autores.

Alguns procuraram demonstrar as várias contradições existentes no funcionalismo do

Movimento Moderno, contribuindo para o reconhecimento da própria ambivalência

inerente àqueles modelos.

Henri Lefebvre (1966) foi um dos autores que fez a defesa da rua como

espaço para o desenvolvimento da vida social, lugar da circulação, das trocas e dos

encontros, em oposição à rua como lugar exclusivo de circulação de fluxos,

nomeadamente automóveis. Também Jane Jacobs (1961) elegeu a rua como lugar

essencial dos contatos sociais quotidianos, acrescentando a importância do mix de

funções na produção e desenvolvimento de um organismo social e económico. Cada

vez mais, a ideia de que o espaço da rua serviria apenas para sua função de circulação

foi sendo posta em causa. Gordon Cullen (1961) indicara, por sua vez, a utilização

dos designados “elementos urbanos” como meio de produzir impactos emocionais na

vida da cidade. Aparentemente, não bastava o funcionalismo, e as hierarquias e metas

de produtividade, a cidade era composta por mais elementos do que os da

racionalidade moderna. Kevin Lynch (1960), também trabalhou nesse sentido e foi

capaz de, na tentativa de dar caráter científico ao empirismo e à subjetividade,

sistematizar a imagem produzida pela cidade como ferramenta determinante para a

99

compreensão da psicologia e comportamento social dos seus habitantes. Aldo Rossi

(1966), defendeu o desenvolvimento e a estruturação da cidade, da forma urbana, sem

perder de vista o “locus da memória coletiva”, resgatando assim a ideia da preservação

da tradição vinculada ao passado. Há ainda a contribuição fundamental de

Christopher Alexander (1965). Na célebre obra “The city is not a tree”, Alexander

discorre sobre o embate entre cidades planeadas que conformam um conjunto de

cidades segundo um modelo hierarquizado em estrutura de “árvore”, defendido pelo

urbanismo moderno, e a experiência empírica de outras cidades não planeadas, onde

se observa uma grande diversidade de elementos do conjunto urbano, estabelecidos

num avançado grau de complexidade, formando uma rede de reciprocidades sem

hierarquia clara e definida. Alexander atingiu e abalou importantes conceitos como o

funcionalismo, o zonamento, e as regras e esquemas facilmente utilizáveis e passíveis

de repetição que eram endossadas pelo urbanismo moderno.

Todos estes nomes foram fundamentais à crítica ao urbanismo moderno

estabelecida a partir da década de 1960, influenciando as características sob as quais o

urbanismo contemporâneo se desenvolve, em contraponto àqueles dogmas que

reproduziam fielmente os princípios da “Modernidade sólida”: mudança, progresso e

projeto. Não abandonando esses princípios mas, sim, transformando-os, em resposta aos

desafios da “terceira revolução urbana”. A importância desses autores acontece na

medida em que, como afirma Bernardo Secchi, a cidade sempre foi construída por atores

concretos, portadores de interesses, culturas e imaginários específicos250.

À crítica teórica somou-se aquela fundamentada na prática. As dificuldades

económico-financeiras que emergiram da crise energética, resultado dos choques

petrolíferos nos anos setenta do século XX, marcaram o fim do crescimento económico

do pós-guerra, para o qual havia sido fundamental uma política económica de

características “Keynesianas”. Segundo Peter Hall, a grande recessão dos anos 70 do

século XX, que se alastrou pelos anos 80 do mesmo século, acarretou uma mudança na

natureza do problema básico observado pela disciplina do urbanismo, ameaçando, assim,

a própria legitimidade do planeamento. O golpe que atingira a economia foi rude e expôs

250 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 25.

100

profundas debilidades estruturais251. Já não era possível confiar cegamente no urbanismo

dos especialistas e no Estado-Providência para a exclusiva construção do futuro. Assim,

“[depois] de um prolongado período de desenvolvimento em condições estáveis e de

sólidas convicções intelectuais, abre-se um período de oscilações, de riscos e de

reconsiderações”: chegava-se a “idade da incerteza”, definição do economista, John

Kenneth Galbraith em seu livro homónimo, The Age of Uncertainty de 1977.

O planeamento urbano foi atacado e censurado, e logo, “a noção de declínio

estrutural [tornou-se] parte do pensamento institucional aceito”252. Os grandes programas

urbanísticos desenvolvidos até então ficaram condicionados e foram paulatinamente

encerrados. O questionamento sobre em que medida haviam sido eficazes e bem sucedidas

as ações subjacentes à construção de cidades novas e de grandes conjuntos habitacionais

foram multiplicando. A degradação dos centros urbanos históricos com a migração dos

recursos para a expansão na periferia potenciava esses questionamentos. As décadas de 70 e

80 do século XX seriam marcadas pelo descrédito do planeamento que há muito havia

parado de controlar o crescimento urbano e passara a promotor da expansão a todo o

custo253. O questionamento dos grandes planos de longo prazo conduziram a reflexão do

urbanismo de uma escala global e total, para outra local – pontual, específica. O debate

urbano passou da ideia da conquista da perfeição na construção do futuro róseo, para

concentrar seus esforços em como viabilizar o melhor futuro possível254.

A busca por uma mais fácil operacionalidade e a possibilidade de se obter

resultados mais rápidos, abriu espaço para as intervenções de pequena escala, alternadas

com grandiosas operações específicas, guiadas por estratégias extraordinárias com grande

pendor imagético e mediático. Ocorrendo dentro de um processo de retração económica,

estas últimas tornavam-se muito importantes na medida em que permitiriam o acesso a

financiamentos igualmente extraordinários, aproveitando oportunidades que surgiam.

251 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 407.

252 Idem, ibidem, p. 411.

253 Idem, ibidem, p. 407.

254 Idem, ibidem, p. 411.

101

Tanto as operações extraordinárias quanto as ações ordinárias passariam a

atuar de forma complementar, costurando um “tecido” que se tornou fragmentado

por intervenções desconectadas do contexto, ou por transformações dos modos de

vida e de produção. Exemplos de grandes áreas industriais entretanto obsoletas

acabaram por constituir grandes hiatos urbanos, fragmentando o conjunto do tecido

urbano de várias cidades em diferentes realidades. Por outro lado, essas áreas

tornaram-se oportunidades de recuperação, reutilização de recursos e

desenvolvimento urbano. Indústrias ou infraestruturas obsoletas e decadentes

tornaram-se oportunidades para recomposição, com sinais urbanos de grande valor

morfológico255. Ganharam força, também, as ações estratégicas, que resultaram na

figura do Plano Estratégico, que por sua vez tiveram como principal ferramenta de

realização os chamados Projetos Urbanos.

Bernardo Secchi definiu este momento, que se iniciava já na segunda metade

do século XX, através de uma metáfora, assente no conceito de renovato urbis256. Tal

conceito refere-se à utilização de políticas que promovem um número limitado de

projetos pontuais, destinados a mudar as funções, papéis e significado de partes da

cidade, na perspetiva de alcançar metas mais globais. Essa opção, consolidou o

abandono da lógica universal/total do urbanismo moderno e suas pretensões de

“legitimamente, dizer coisas precisas sobre a disposição de cada pequena porção do

território urbano, coisas tão precisas e legítimas a ponto de poderem ser transformadas

em normativas”257. O conceito de renovato urbis permitiu confiar o projeto da cidade a

uma sorte de ações limitadas e por isso necessariamente estratégicas.

255 CALABI, Donatella, História do Urbanismo Europeu: questões, instrumentos, casos exemplares. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 396.

256 Bernardo Secchi revisita o conceito de renovatio urbis venetiarum, adotado pelo arquiteto e historiador italiano Manfredo Tafuri (1935-1994), que caracterizava as políticas de reestruturação da cidade europeia no século XVI (2009, p. 86).

257 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 86.

102

“A flexibilidade, globalização e complexidade da nova economia do mundo exigem o desenvolvi-mento do planejamento estratégico, apto a introduzir uma metodologia coerente e adaptativa face à multiplicidade dos sentidos e sinais da nova estrutura de produção e administração”258.

O Planeamento Estratégico aplicado às cidades em resposta às condições de

complexidade características da “terceira revolução urbana”, foi difundido mais

amplamente a partir da década de 80 do século XX. Este é um momento marcado

pelo agravamento da crise de confiança nos princípios da Modernidade, desta feita

aplicados à arquitetura e ao urbanismo. No entanto, o modelo estratégico havia

surgido nos anos de 1960 como forma de conquista de novos mercados aquando da

adaptação do tema estratégico do âmbito militar para o empresarial, para sua

aplicação nas cidades.

A origem do modelo estratégico, no âmbito empresarial, remete àquele

desenvolvido pela Harvard Business School, que procura estabelecer um entrosamento

entre a empresa e o meio de atuação da mesma. Metodologias que funcionam a partir

da compreensão dos pontos fortes e fracos, das ameaças e oportunidades que

envolvem processos decisórios específicos ganham particular importância. Tal

metodologia reflete-se numa das ferramentas mais utilizadas e conhecidas no sistema

de planeamento estratégico: a avaliação SWOT259, cuja criação é atribuída a Kenneth

Andrews e Roland Christensen, ambos pertencentes à Harvard Business School. Não

obstante a importância da estruturação de um cenário claro, definidos por

metodologias específicas, Dacorso lembra-nos que é preciso ter em conta que a

decisão estratégica se move do âmbito técnico para o âmbito da decisão política,

“tipicamente não estruturada, no sentido de que não existe processo semelhante na

258 CASTELLS, Manuel, The worlds has changes: can planning change? (KeynoteSpeech, ACSP Anual Meeting). Austing: mimeo, 1990, p. 14.

259 Essa metodologia analisa a posição competitiva de uma organização no mercado, através de uma matriz onde se avaliam os pontos fortes (Strenghts), os pontos fracos (Weaknesses), as oportunidades e ameaças (Opportunities e Threats) envolvidas no processo em desenvolvimento, apoiando a tomada de decisão na definição de estratégias.

103

memória da organização. [...] A qualidade da decisão estratégica depende

principalmente do processo e da competência daqueles que participam dela”260.

Na década de oitenta do século XX, os sistemas desenvolvidos segundo as

ideias de Planeamento Estratégico passaram a ser intensamente utilizados no setor

púbico e, principalmente, nos processos relativos ao tema urbano. Dessa forma,

difundiu-se a ideia de que as cidades estariam submetidas aos mesmos desafios e

implicações enfrentados pelas grandes empresas no mercado261. Questões como o

crescimento desordenado, o uso dos grandes equipamentos coletivos, a racionalização

do uso do solo foram problemas de certa forma postos de lado e a questão do

reposicionamento na rede global através do aperfeiçoamento do grau de

competitividade ganhou peso como um dos mais importantes temas de reflexão na

disciplina urbana. A consciencialização da globalização da economia e da

comunicação resultou, a partir de então, na “crescente competição entre territórios e

especialmente entre [os] seus pontos nodais ou centros, isto é, as cidades”262.

Segundo Carlos Vainer, a globalização, a sociedade em rede e o novo espaço

de geometria variável configurado por essas condições abrem oportunidades de

desenvolvimento. Elas definem um quadro, em que a cidade “deixa de ser um veículo

de evolução geográfica natural, e passa a demandar um processo amplo de criação,

unindo as demandas locais aos condicionamentos globais”263. Esta condição de

grande complexidade admite a escala global de ação, e leva a disciplina urbana a

concentrar-se em decisões que intervém na cidade a partir de propósitos e objetivos

bastante bem definidos264, abrindo espaço para a implementação de processos

criativos (ou vistos como criativos), de inovação, estabelecidos dentro de uma

determinada linha estratégica.

260 DACORSO, Antônio Luis Rocha, Análise experimental de geração de alternativas em decisões estratégicas não estruturadas. São Paulo: Universidade de São Paulo. Tese de Doutoramento, 2005, p. 05. apud PINTO, 2008, p. 70.

261 BOUINOT, Jean; BERMILS, Bernard, La gestion stratégique des villes. Entre compétition et cooperatión. Paris: Armand Colin Editeur, 1995, p. 12.

262 BORJA, Jordi, Barcelona: Un modelo de transformación urbana. Quito: Programa de Gestión Urbana / Oficina Regional para América Latina y Caribe, 1995, p. 276.

263 VAINER, Carlos; ARANTES, Otília & MARICATO, Ermínia, A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 77.

264 LOPES, Rodrigo, A cidade intencional - o planejamento estratégico de cidades. Rio de Janeiro, MAUAD, 2ª ed., 1998, p. 68.

104

Nesta perspectiva, ao Planeamento Estratégico não basta criar uma “visão”.

Importa também delinear as ações no presente que permitam desenvolver o caminho

pretendido. Abrindo mão de algumas demandas de rotina, que podem mesmo ser

urgentes, o Planeamento Estratégico precisa observar o todo que contempla os

desafios impostos, posicionando-se num processo de desenvolvimento que enfrenta

as questões da globalização através de uma visão coerente. Este permite aplicar uma

“metodologia prospectiva que integra as múltiplas variáveis e determinantes. Num

mundo de recursos financeiros escassos, o planeamento estratégico é a técnica que

hierarquiza prioridades e faz a selecção das acções-chave para a mudança”265. Nesse

sentido, as decisões deixam de ser estabelecidas como certezas e passam a definir-se

como escolhas possíveis dentro de um quadro reconhecido de complexidade e não

mais de simplificação.

As escolhas realizadas dentro desse contexto, encontram no Projeto Urbano

a sua ferramenta privilegiada de efetivação e realização física. Bourdin destaca que a

palavra “projeto” define um termo que pode aludir a estratégia, como à expressão de

uma estratégia, ou ainda a um modo de organização e método de ação – além de

significar uma obra física a realizar266. A ideia de Projeto Urbano que será apresentada

a seguir, consolidou-se nestes vários sentidos a partir do momento em que a certeza

se esvaiu, quando as técnicas de previsão se mostraram progressivamente incapazes

de lidar com a rapidez das demandas da contemporaneidade267, e o declínio do

Estado como fomentador dos grandes planos totalizantes limitou as decisões a

escolhas, oportunidades e possibilidades incertas.

265 FERREIRA, António Fonseca, Gestão Estratégica de Cidades e Regiões. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 125-126.

266 BOURDIN, Alain, O urbanismo depois da crise. Lisboa: Livros Horizonte, 2011, p. 57.

267 SOLÁ-MORALES, Manuel de, La frustración del urbanista, “Epílogo”, 2005. p. 01.

105

O Projeto Urbano268 consolidou-se dentro do quadro estratégico como opção

àquela prática urbanística que atuava fundamentalmente sobre planos totalizantes e

respetiva construção de grandes estruturas norteadas pelo zonamento definido nos

mesmos. O reconhecimento da complexidade e as limitações impostas principalmente

pela retirada do Estado como fomentador que garantia o progresso, conduziram a

prática da disciplina urbana “à procura de intervenções mais limitadas na dimensão,

mas mais intensas na visibilidade e, talvez, mais exemplares na tipologia, desistindo

assim da ambição de reforma integral e instantânea de toda a cidade como

imaginavam os especialistas pioneiros”269.

Na década de 1970 do século XX, segundo Nuno Portas, surgiu uma nova

geração de Projetos Urbanos, mais pontuais, por vezes fragmentados e por outras

estruturado por linhas estratégicas, tendo como suporte legitimador a assinatura da

arquitetura de autor270. Inaugurava-se então, o Projeto Urbano identificado com a

expressão cunhada por Jaime Lerner no livro homónimo: a “acupuntura urbana”271.

Diga-se que a acupuntura é um ramo da medicina tradicional chinesa que trabalha com

a lógica da reflexologia; onde uma determinada área possui pontos reflexos em todo o

corpo. Aplicada às cidades a “acupuntura urbana” pretende atuar de forma semelhante

– selecionando e trabalhando a partir de pequenas intervenções, estratégicas – “na

esperança de [...] contribuir, indirectamente, por contágio, na requalificação de áreas

mais vastas”272 do tecido urbano. Ou seja, através do projeto que tem como focos

determinada edificação e o seu entorno imediato, seria possível catalisar outras

268 É preciso desde já registar uma diferenciação mais efetiva entre as figuras do “plano” e do “projeto” no que diz respeito às suas características fundamentais dentro da disciplina urbana. Se na “Modernidade sólida” os dois se confundiam como resultado de certezas absolutas, na “Modernidade líquida” o “plano” discorre mais numa perspetiva aberta, adaptativa e reflexiva, mais afeito ao tema estratégico, enquanto o “projeto”, se estabelece de forma mais objetiva não como certeza mas como escolha, como opção tomada dentre tantas possíveis para a efetivação de uma ação específica, normalmente apoiada na perspetiva de um plano estratégico.

269 PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.2: A cidade imperfeita a fazer. Guimarães: DAAUM, 2012, p. 87.

270 Idem, ibidem, p. 87.

271 LERNER, Jaime, Acupuntura Urbana. Rio de Janeiro: Record, 2003.

272 PORTAS, Nuno, op. cit., p. 88.

106

transformações urbanas desejadas, não necessariamente garantidas (embora haja uma

forte retórica quanto a um certo grau de certeza na sua concretização).

As experiências que decorreram no período entre os anos 70 e 80 do século

XX foram relativamente insuficientes para sustentar o leque de ações necessárias para

lidar com a complexidade das questões que surgiram a partir dessa última década273.

Da reflexão entre as questões que se mantiveram pendentes dentro dos processos de

realização e os sistemas de conceção dos planos, nasceu uma nova geração de

projetos. Cada vez mais, o protagonismo desloca-se para um processo de legitimação

que se estabelece a partir da soma de diversas tendências emergentes que se

constituem, principalmente, a partir do plano político. O alinhamento à definição de

uma estratégia minimamente consensualizada é uma dessas tendências, assim como a

busca por realizações com potencial mediático, que associem marcas promotoras à

ação, seja através do recurso aos arquitetos do star-system, seja pela vinculação a

marcas e megaeventos globalmente reconhecidos274.

O Projeto Urbano constitui-se então, como uma ferramenta de um outro

modo de pensar a cidade. Desenvolve-se não só a partir da iniciativa do poder

público, concretizando-se muitas vezes em parceria com os privados. Sobretudo, ele

acontece a partir do aproveitamento de oportunidades nem sempre previstas nos

planos, em geral, ainda fruto de um desenvolvimento em tempos de certezas. Por

isso, impõe-se a necessidade de adaptação dos projetos à diversidade dos novos

contextos políticos, onde a incerteza se aplica tanto aos fins de quem toma a decisão,

quanto às fontes de recursos públicos ou privados disponíveis para atuar sobre o

tema urbano. Deste modo, as respostas objetivas da reflexão urbana passam a

depender mais da forma como é possível viabilizá-las e legitimá-las no contexto

complexo em que são propostas. Passam a ser concebidas como respostas mais

“selectivas e estratégicas, mais participadas em formas de parcerias com outros

273 PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.2: A cidade imperfeita a fazer. Guimarães: DAAUM, 2012, p. 88.

274 Idem, ibidem, p. 88.

107

agentes, buscando efeitos qualitativos e colectivos mais reprodutivos (ditos

sinérgicos, catalíticos, de contaminação positiva, etc.)”275.

O relevo dado à programação do Projeto Urbano, tendo em conta a

necessidade de resposta a oportunidades não previstas, acentua a importância do

âmbito da política, em detrimento do âmbito exclusivamente técnico. Portanto, o

programa assume o papel de suporte da decisão política, a qual ocorre em contexto de

grande pressão devido à urgência do aproveitamento dessas mesmas oportunidades. O

tempo, ao contrário do que ocorria nas primeiras fases da Modernidade, assume um

papel fundamental num contexto em que são necessárias respostas rápidas e imediatas a

uma série de demandas que emergem e se transformam muito rapidamente, numa

sociedade que exige cada vez mais de uma série de estruturas institucionais que, de tão

mutáveis, quase se abeiram da volatilização276.

É nesse quadro de complexidade que ocorre a definição dos programas

subjacentes aos Projetos Urbanos. Neles se estabelecem os modos de relação e

parceria entre o público e o privado, neles são tratados os interesses e conflitos no

intuito de construir consensos possíveis, e é através deles que se procura produzir a

aceitação ou legitimação política das decisões.

Esse urbanismo de oportunidade, estratégico, estabeleceu-se tendo como

mote ações mediáticas, que incluem uma vasta gama de experiências reais mais, ou

menos, bem sucedidas. Entre elas, destaca-se um repertório que inclui, tipicamente: a

recuperação de áreas centrais abandonadas a renovação de áreas industriais e frentes

marítimas abandonadas tanto pela desatualização de atividades económicas como pela

alteração de modos de transporte de cargas; a construção de grandes equipamentos

culturais afetos a instituições de reconhecido valor cultural, geralmente projetadas por

grandes nomes da arquitetura277 e, principalmente, a realização de megaeventos

globais, tendo os Jogos Olímpicos como grande vedeta dessas experiências.

275 PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.2: A cidade imperfeita a fazer. Guimarães: DAAUM, 2012, p. 89.

276 SECCHI, Bernardo, A cidade do século vinte. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 80.

277 De que o Museu Guggenheim se torna principal exemplo e símbolo.

108

Cinco experiências desse reportório foram analisadas no quadro desta

investigação. Foram escolhidas pela identificação de algumas de suas características com

as experiências ocorridas no Rio de Janeiro e que serão analisadas oportunamente na

segunda parte dessa dissertação. A primeira, uma das experiências precursoras de

revitalização e empreendedorismo urbano: a recuperação da área central e do porto de

Baltimore nos Estados Unidos da América. A segunda, a marcante experiência ocorrida

quando da transformação das Docklands de Londres, levada a cabo sob o governo de

Margareth Thatcher. A terceira experiência é a dos Grands Travaux de Mitterrand em

Paris. Seguindo, aquele que se tornou modelo de sucesso desejado, no âmbito da

realização de megaeventos por inúmeras cidades mundo afora: os Jogos Olímpicos de

1992, realizados na cidade de Barcelona; e por fim, mas uma experiência em Espanha,

aquela vivida na cidade de Bilbau com a construção do Museu Guggenheim.

No “Novo Mundo”, sob a tradição da livre iniciativa, o planeador que de “guarda

caça” se transformava em “caçador furtivo”278, iniciou a sua caminhada na direção de um

“empreendedorismo urbano”, onde este possui, como elemento principal, a noção de parceria

público-privada. Baltimore iniciou esse processo, numa primeira fase, em 1958 com a

recuperação de sua área central conhecida como Charles Center, dando prioridade naquele

momento a construção de edifícios comerciais, obtendo então bons resultados a partir de

1961279. No fim dos anos 70, movido pelo sucesso do processo em andamento na área

central, iniciou-se também a revitalização urbana da zona portuária de Baltimore – o Inner

Harbor (porto interior). Desta vez com uma maior variedade de usos incluindo habitação e

278 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 407.

279 DEL RIO, Vicente, Voltando as origens: a revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos. Revista eletrónica Vitruvius, Arquitextos 015.06, ano 02, Agosto 2001.

109

atracões especiais voltadas para temas científicos e ligadas ao tema da marítimo280. O projeto

promoveu um processo de renovação do waterfront da área central ribeirinha tornando-a

principal ponto de atracão da cidade281. Estas intervenções foram promovidas inicialmente

através de um projeto contratado por um grupo de empresários ao urbanista David Wallace

(1917-2004), sendo que, posteriormente, o projeto acabou sendo absorvido pela

administração local282. Foi criada uma agência própria que ficou responsável pela gestão dos

projetos, conhecida como Charles Center-Inner Harbor Management Inc. que fornecia à cidade a

habilidade e a experiência necessária para o grande empreendimento comercial normalmente

não encontrada nas fileiras do serviço público283. A agência operava dentro de um quadro

estabelecido pelo prefeito (mayor) e o Department of Housing and Community Development e,

diferentemente dos setores do planeamento ordinário da cidade com funções permanentes, a

agencia trabalhava fornecendo um serviço especializado definido numa base contratual. A

cidade adiantava recursos para a agência que fazia o pagamento de despesas de manutenção

da estrutura, ordenando menos do que 2% de todos os recursos públicos envolvidos284.

Constituiu-se desta forma, um modelo de parceria entre o governo municipal e o setor

privado que além de reduzir os custos públicos de operação do processo, garantia o knowhow

para a elaboração de um projeto que reconhecia a necessidade de recuperação da área central

desenvolvendo um caminho “pró-crescimento que habilmente manipulou o apoio público e

combinou fundos federais e privados para promover uma urbanização comercial [no sentido

do “empreendedorismo urbano”] em grande escala”285.

A promoção do consumo daquela nova parte da cidade resultou em um importante

papel na atração do turismo, e levou o capital privado a tomar gradativamente conta da cidade,

tendo como base a utilização das pré-existências, adaptando e reciclando as antigas estruturas

físicas com novos usos, sobretudo aqueles que reforçavam a ideia de cidade para o consumo.

280 Incluindo a construção de um edifício icónico como âncora da intervenção inaugurado em 1981: o Aquário Nacional projeto selecionado por concurso vencido pelo grupo Cambridge Seven. (BRAMBILLA; LONGO, 1979, p. 55).

281 DEL RIO, Vicente, Voltando as origens: a revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos. Revista eletrónica Vitruvius, Arquitextos 015.06, ano 02, Agosto 2001.

282 Idem, ibidem.

283 BRAMBILLA, Roberto; LONGO, Gianni, What makes cities livable? Learning from Baltimore. New York: Institute for Environmental Action, Transaction Publishers, 1979, p. 55.

284 Idem, ibidem.

285 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 413.

110

Figura 17. Panorama do Inner Harbor, Baltimore.

Figura 18. Aquário Nacional de Baltimore.

O Inner Harbor de Baltimore, tornou-se assim um importante ponto de atração da

cidade que permitiu uma “contaminação positiva”, originando outras transformações em

áreas adjacentes como por exemplo: Fells Point, área portuária localizada a leste do projeto do

Inner Harbor, caracterizada por um urbanismo de usos mistos e uma condição social de

diversidade étnica, características que potenciaram o sucesso também dessa área. A

revitalização do Inner Harbor e a “contaminação” gerada em outras áreas, permitiu uma

significante alteração da imagem da cidade entre o final dos anos 50, até o fim dos anos 80 do

século XX. No entanto, segundo Vicente Del Rio, o fim da continuidade político-

administrativa que ocorreu naquele espaço de tempo (e que subscreveu o contrato por uma

sucessão de seis governos286), levou a retrocessos significativos no quadro da cidade que se viu

implicada num quadro de elevados índices de criminalidade, fuga de moradores e de comércio

para outras localidades, e queda nos números da economia local287.

286 BRAMBILLA, Roberto; LONGO, Gianni, What makes cities livable? Learning from Baltimore. New York: Institute for Environmental Action, Transaction Publishers, 1979, p. 55.

287 O Prefeito de Baltimore, Schaeffer foi reeleito quatro vezes e depois eleito Governador (DEL RIO, 2001).

111

Outra importante experiência ficou marcada como fundadora da prática neoliberal

aplicada à atuação nos Projetos Urbanos e se deu, no fim dos anos 70 do século XX, nas

extensões de terras devolutas, ruínas de fábricas e armazéns que aguardavam por uma

possibilidade de transformação na zona das docas da cidade de Londres, junto ao rio Tamisa,

em que essas áreas vazias, abandonadas, decrépitas eram abundantes. As chamadas Docklands

haviam sido o maior porto do mundo que, no entanto, acabara por ser arruinado pela

transferência das atividades portuárias para outras cidades e áreas como Southampton, Felix Stowe e

Roterdão – e também pela conteinerização das cargas transportadas por via marítima. Este

último motivo, foi um golpe fundamental que levou ao declínio e abandono de um sem número

de importantes portos, em todo o mundo, criando áreas que ficaram conhecidas como

brownfields288 junto às mais dinâmicas cidades portuárias. A ideia de equacionar estas áreas foi um

dos provocadores da grande febre de projetos urbanos de waterfronts ao longo das décadas de

1980 e 1990, causa comum a maior parte das experiências aqui apresentadas.

Na primeira metade da década de 1970, através do governo conservador de

Edward Heath, uma firma de consultores de engenharia propôs um primeiro plano para a

zona das Docklands, que passava por uma substancial mudança de caráter da área com a

previsão de áreas residenciais novas e luxuosas, áreas de serviços e lazer, além de uma

marina. O programa escolhido resultou numa forte reação das comunidades locais, que

estavam vinculadas especialmente à então decadente atividade portuária local.

Houve um recuo, mas no entanto, o Great London Council (autoridade de

planeamento estratégico constituída legalmente) assumiu o compromisso de produzir

uma estratégia para o desenvolvimento local. A promoção desta estratégia foi entregue à

Comissão mista das Docklands. Em 1976, a equipa destacada especialmente para gerir e

implementar o plano de transformação da área, elaborou uma outra estratégia que refletia

288 Termo concretizado nos EUA na lei pública H.R.2869 intitulada Small Business Liability Relief and Brownfields Revitalization Act (2002): “Brownfields são instalações industriais ou comerciais abandonadas, ociosas e subutilizadas cuja refuncionalização é dificultada devido à contaminação real ou percebida, mas que tem um potencial ativo para reuso” (tradução livre do autor). Disponível na WWW: <URL: http://www. epa.gov/brownfields/ overview/glossary.htm.> [Consult. 2014-12-12].

112

a realidade política em que estava envolta. Embora fossem evidentes os contínuos cortes

dos gastos públicos com habitação e a crescente ampliação e/da obsolescência dos vazios

industriais, foi definida para as Docklands uma nova urbanização onde propunha-se uma

vasta zona de habitação popular somada a alguma atividade industrial e armazenagem.

Nessa ocasião muito pouco ficou destinado a escritórios e serviços.

Foi também significativa a crítica e o desapontamento com a estratégia definida

naquele momento. A partir de então, surgiu mais uma linha estratégica que levava em conta

uma realidade na qual os investimentos públicos eram cada vez mais reduzidos. Tal condição

levou à criação de uma Corporação de Urbanização, supostamente livre de interferências

políticas, para realizar, enfim, o projeto de transformação das Docklands, garantindo assim um

processo mais eficiente e rápido. Esta foi a condição para criar a confiança que permitisse aos

investidores privados aderirem ao projeto, o que de facto veio a acontecer, mais tarde.

No ano de 1979, os conservadores chegaram ao poder chefiados pela “dama de

ferro”, Margareth Thatcher (1925-2013). A concretização da revitalização das Docklands foi,

de certa forma, o símbolo de um novo momento político onde o neoliberalismo foi

adotado como estratégia central, o que gerou reflexos diretos nas ações do planeamento

que se tornaram mais centralizadas e vinculadas a um “empreendedorismo urbano”. Em

1981, o governo Thatcher instituiu a London Docklands Development Corporation (LDDC) que

fez a gestão dos recursos públicos usados para a transformação da área num centro

financeiro de alcance global. Para isso, foi atraído o capital privado através da constituição

de uma enterprise zone desprovida de regulação urbanística, cerceando e fintando o papel do

planeamento ordinário. O planeamento ordinário, considerado burocrático, foi posto de

lado e subjugado à outro, que passou a confundir-se, no caso das Docklands, com o próprio

empreendimento urbanístico – nesse sentido, esse projeto passou a ser considerado

exemplo paradigmático. A tarefa do planeamento passou a ser facilitar a transformação, o

mais rapidamente possível, daqueles áreas devolutas, servindo outros objetivos, interesses e

entidades, mesmo que isso resultasse em consequências negativas para atores mantidos a

parte do processo. Consequências como a gentrificação, das populações por conta da

113

transformação da área em zona de usos “mais elevados e melhores”289 seriam situações a

serem ultrapassadas em nome do objetivo principal do próprio processo.

No longo prazo, para um planeamento que prezava a liberdade como modo de

levar a cabo seu objetivo transformador, já não era tão importante a existência de

processos já iniciados que não cumprissem este papel. Se em qualquer momento, a

revisão das ações propostas, deitando por terra o que já havia sido iniciado, servisse

para viabilizar a realização de outras ações, comprovadamente mais lucrativas, nada

impediria que assim fosse feito. A ideia de exploração de toda e qualquer oportunidade

que surgisse era elevada ao seu máximo expoente. Estava-se perante algo bastante

diferente daquilo que era o rígido planeamento de tempos de certezas.

Figura 19. Docklands em 1950.

Figura 20. Docklands em 2013.

289 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 418.

114

No modelo de intervenção seguido para as Docklands, o desenvolvimento local foi

perseguido a partir do empreendimento sobre controlo privado, sobrepondo-se ao controlo

estatal mediante ao planeamento urbano ordinário. As Docklands consolidaram-se como

exemplo de um urbanismo calçado na livre iniciativa e na redução da burocracia ao mínimo

absoluto, solidificando desta forma, uma característica dos anos Thatcher (ou do Thatcherism como

ficou conhecido o período) que encarna uma vertente económica neoliberal que compreende

políticas monetárias, a facilitação do livre mercado, o desejo de reduzir a burocracia, e as

intervenções do Estado, assim como as empresas e despesas deste mesmo Estado290. Este

modelo desenvolvido através de um quadro conceitual identificado como autoritário e

neoliberal afetava os princípios e procedimentos dos processos de decisão e como resultado o

critério do mercado dominava, em oposição as distorções de um viés político e de lentidão

burocrática291. A retirada de forma autoritária do poder local e consequente centralização que se

deu neste período foi utilizada como mecanismo que assegurava os processos de decisão

segundo os interesses do mercado. O sentimento antiburocrático tornou-se parte desse

processo de dominação dos critérios do mercado. Burocratas eram acusados de justificar as suas

intervenções com base em conceitos sem sentido, discricionários, a fim de manter a sua posição

de poder. Este ataque desqualificava à partida todos os critérios não mercantis292. Em termos

gerais convencionava-se que o planeamento, parte desse sistema burocrático, possuía grandes

falhas e que o processo de determinação do uso e controle sobre o solo deveria se descolar do

sistema de planeamento e seu contexto político, movendo-se para a arena legal e do mercado.

Esta mudança “permitiria regras generalizadas e imparciais a serem impostas. Estas regras

substituiriam as decisões incertas e ambíguas de planejadores que variam de lugar para lugar e de

pessoa para pessoa”293.

Nesta perspetiva deu-se o desmanche progressivo do sistema de planeamento

pré-existente, que se manteve numa atividade residual de planeamento do uso do solo.

Com isso, a disciplina urbana sofreu grande impacto. Assistiu-se à retração do mercado

relativamente à mão de obra especializada – se o planeamento não interessava e era

290 THORNLEY, Andy, Urban planning under thatcherism: the challenge of the market. London: Routledge, 1993, p. 57.

291 Idem, ibidem, p. 90.

292 Idem, ibidem, p. 91.

293 Idem, ibidem, p. 117.

115

subjugado pelos Projetos Urbanos, para quê planeadores? Com isso, ocorreram

efetivamente, cortes ao financiamento às universidades e ao fecho de diversas

faculdades de urbanismo294. O governo Thatcher “aplicara-se com clara determinação a

libertar o empreendedor das algemas do planeamento”295, ou do que era visto enquanto

tal. Tratando então de desenvolver modificações no sistema de planeamento, através de

mecanismos de by-pass do sistema pré-existente e mesmo de reposição do mesmo296.

Segundo Andy Thornley este by-pass estruturou-se a partir de três mecanismos

específicos: concursos de arquitetura; ordens de desenvolvimento especiais (Special

Development Orders) e corporações de desenvolvimento urbano (Urban Development

Corporations). A primeira estabelecia um sistema de julgamento apoiado num painel de

especialistas sem oportunidades de discussão ou participação. O segundo concedia

licenças programadas que precisavam ser aprovadas pelo Parlamento com o intuito de

estimular o desenvolvimento em certas localidades acelerando o processo de

planeamento. Por último, o mais importante mecanismo de by-pass, utilizado na área das

Docklands, que dava ao poder central a possibilidade de designar áreas da cidade que

estavam sob outras responsabilidades, como áreas de desenvolvimento urbano já que as

autoridades locais estariam muito ocupadas envolvidas em suas responsabilidades mais

amplas. A área escolhida passava então para o total controlo de corporações de

desenvolvimento urbano, mas antes passava pelo crivo do Parlamento e de um

Committee of the House of Lords297. O exemplo das Docklands tornou-se um modelo mundo

afora. Embora tenha problemas, mostrou ser viável a possibilidade de, através do

investimento de fundos públicos relativamente modestos, alavancar a quantia necessária

– através de investimentos privados – para o financiamento do projeto em todo o seu

potencial dinamismo e flexibilidade, mas também em seus mecanismos de by-pass

superando assim as amarras do planeamento ordinário298.

294 HALL, Peter, Cidades do Amanhã - uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1ª ed. ampliada, 2002, p. 425.

295 Idem, ibidem, p. 426.

296 THORNLEY, Andy, Urban planning under thatcherism: the challenge of the market. London: Routledge, 1993, p. 121.

297 Idem, ibidem, p. 162-168.

298 HALL, Peter, op. cit., p. 423.

116

François Mitterrand (1916-1996) foi o primeiro presidente francês socialista à

frente da república, entre os anos de 1981 e 1995. Em seu mandato, deu prioridade à

cultura, disponibilizando por isso, recursos para a pasta como nunca antes na história.

Neste processo Mitterrand teve importante contribuição do então Ministro da Cultura,

Jack Lang (1939-), “com quem lançaria uma equação política durável, aliando a

mediatização da cultura nacional à realização de obras públicas impactantes – os

denominados Grands Travaux”299.

Em Maio de 1981, Mitterrand tomou posse e prontamente lançou o

programa que ficaria na berlinda durante todo o seu mandato. Neste período dos

Grands Travaux, Paris vivenciou uma série de intervenções arquitetónicas e

urbanísticas promovidas pelo então presidente sobretudo na condição de

desenvolvimento da cultura. As intervenções procuravam alavancar uma nova

dinâmica, tendo como objetivo último, como diz Nuno Grande, organizar uma

Grande Exposição Universal em 1989 como forma de coroar o bicentenário da

Revolução Francesa, propósito abandonado dois anos depois por constrangimentos

económicos. O fim do objetivo aglutinador não impediu que os projetos tivesse

andamento, estabelecendo a “obra pública” como principal marca do governo

Mitterrand, “dando continuidade ao simbolismo inscrito, ao longo dos séculos, no

perfil urbano de Paris, pelos poderes monárquico, imperial e republicano”300.

Os Grands Travaux além de marcarem o traço da política de Mitterrand,

reforçaram Paris como capital política e cultural nacional e também global. Foram

levados a cabo uma série de investimentos para a construção de equipamentos culturais

seguindo uma lógica de monumentalidade e mescla, entre a cidade pré-existente e

intervenções tecnológicas arrojadas. Os projetos, desenvolvidos em grande parte por

299 GRANDE, Nuno, Arquitecturas da Cultura: política, debate, espaço - Génese dos Grandes Equipamentos Culturais da Contemporaneidade Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia. Tese de Doutoramento, 2009, p. 296.

300 Idem, ibidem, p. 298.

117

arquitetos do star-system, promoviam a arquitetura, provendo também novas

oportunidades de emprego no campo da construção civil301. Mitterrand reforçou as

capacidades do Ministério da Cultura e com isso pode transformar Paris num laboratório

de arquitetura contemporânea. Desde Haussmann, no século XIX, sobre comando de

Napoleão II, que a capital não via a construção de tantos edifícios públicos, nada tão

audacioso e controverso havia sido proposto e realizado, grandes intervenções pontuais

que tiveram fortes reflexos na cidade de Paris. De facto, a política instituída ampliou as

receitas e desenvolveu uma nova roupagem contemporânea para a cidade de Paris,

aumentando sua competitividade global. Também alguma áreas menos privilegiadas e

degradadas pelas transformações ocorridas com a desindustrialização ganharam nova vida

e se reposicionaram dentro do circuito cultural parisiense.

A motivação do próprio presidente determinado a sublinhar a permanente juventude

de um velho país sempre na avant-garde das iniciativas culturais e sociais302, juntamente com o

suporte e a determinação de Jack Lang, são dois dos mais importantes fatores de sucesso dos

Grands Travaux. Assim como o bom relacionamento com Jacques Chirac (1932-), então

prefeito de Paris e finalmente, o facto de que o tempo pereceu estar ao lado de Mitterrand,

permitindo a realização de praticamente todos os projetos lançados por ele, quase sempre

através de concurso público de projetos, tendo como exceção a revitalização do Louvre,

entregue ao arquiteto Ieoh Ming Pei (1917-), por determinação do próprio presidente.

Entre os grandes projetos construídos no período estão: (a) o Grande Arche de La

Défense; (b) o Grand Louvre; (c) o Musée D'Orsay; (d) o 'Institut Du Mode Arabe; (e) a Opéra de La

Bastille; (f) o Ministère des Finances; (g) a Cité des Sciences et de L'Industrie; (h) o Parc de La Villette; e

(i) a Cité de La Musique. Esta última é de particular interesse para esta investigação, tendo, mais

tarde, correspondência na experiência carioca. Projetada pelo arquiteto francês Christian de

Portzamparc (1944-), laureado com o Prémio Pritzker em 1994. O projeto com 23.000m2,

possui diversificados e fartos espaços exclusivos para o tema da música. Mais de vinte anos

depois, desta experiência, Portzamparc projetou uma segunda “Cidade da Música”, desta vez

mais do que quatro vezes maior, com 97.400m2, no Rio de Janeiro.

301 HUGHES, Alex; READER, Keith. (ed.), Encyclopedia of Contemporary French Culture. London: Routledge, 2003, p. 130.

302 LE GUAY, Béatrice (coord), Architectures capitales - Paris 1979-1989. Paris: Electa Moniteur, 1989, p. 11.

118

Figura 21. Os Grands Travaux de Mitterrand (1989).

O sucesso das intervenções dos Grands Travaux pode ser avaliado por seus

respetivos números como os 3,6 milhões de visitantes do Musée d’Orsay, 2,6 milhões em

La Cité des Sciences et de L’Industrie de La Villette e os mais do que 9,7 milhões no Louvre, em

2012303. Embora tenha havido muitos questionamentos e polémicas quanto aos custos

destas empreitadas, o caso é que Mitterrand deixou sua marca na capital francesa.

No entanto, esta marca tem também outras características específicas, resultantes

de um quadro onde os circuitos administrativos usuais não estavam adaptados ao

303 Institut national de la statistique et des études économiques. Disponível na WWW: <URL http://www.insee.fr/fr/themes/tableau.asp?ref_id=nattef13501>[Consult. 2015-01-15].

119

processo requerido para a realização dos Grands Travaux: necessidades vinculadas ao

cronograma, volume de investimentos e a intensidade de realização pretendidas não

tinham correspondência dentro do sistema estabelecido. Como resposta a este quadro,

foram criadas organizações específicas com o intuito de garantir a realização do processo

que, ao contrário das experiências apresentadas até aqui, vinculada à modelos privados304,

se constituía através de uma nova “autoridade pública” que assumiu a chamada “Mission

de coordination des grandes opérations d'architecture e d'urbanisme”305. Embora concebido e

executado sob um sistema de governo democrático, a implementação dos Grans Travaux

implicou na intervenção decisiva de Mitterrand o que muitas vezes significou burlar tanto

procedimentos da legislação ordinária, quanto compromissos políticos que poderiam

ameaçar obstruir o seu progresso, deixando assim, um travo autoritário no processo que

se dilui aquando da perspetiva de análise de uma noção paternalista de Estado típica da

realidade francesa onde havia um dirigisme referente ao papel benevolente e protetor,

garantidor da igualdade e direitos dos cidadãos306.

Os Grans Travaux foram atribuídos à Mitterrand quase no mesmo sentido em

que a as intervenções do século XIX foram vinculadas à Haussmann, ambos

estiveram envolvidos na descoberta de dispositivos urbanísticos e arquitetónicos

pelos quais procuravam monumentalizar a cidade307. Em ambos os séculos, XIX e

XX, a busca pela nova imagem da cidade tinha a intenção de posicionar a França na

primeira linha de países tecnologicamente avançados. No entanto, diferentemente de

Haussmann, Mitterrand desejava que os novos edifícios e espaços urbanos fossem

lidos como uma construção realmente nova, em contraste com a cidade existente. Ao

invés de transformar a cidade no sentido de enfatizar monumentos existentes, os

projetos de Mitterrand, estrategicamente, estimulava o imaginário tecnológico nos

novos edifícios e espaços públicos numa nova estética com o intuito de

304 No governo de Mitterrand, o setor público na França foi bastante ampliado, através da pronta nacionalização de trinta e seis bancos e uma série de empresas industriais e da ampliação da rede ferroviária para áreas mais pobres da cidade, e a ideia de um estado beneficente em se consolidava em oposição ao liberalismo de outros lugares (FIERRO, 2003, p. 03).

305 LE GUAY, Béatrice (coord), Architectures capitales - Paris 1979-1989. Paris: Electa Moniteur, 1989, p. 11.

306 FIERRO, Annette, The Glass State - The Technology of the Spectacle - Paris, 1981-1998. Cambridge: The MIT Press, 2003, p. 02.

307 Idem, ibidem, p. 10-12.

120

“rejuvenescer” toda a grandeza daquela cidade do século XIX308, também

proporcionando a várias áreas o reforço ou a construção de uma identidade a partir

de uma realização arquitetónica espetacular e pontual,

“[...]os Grands Travaux foram concebidos de forma holística. Ao invés de incisões cirúrgicas de infra-estrutura de Haussmann, eles apresentam uma estratégia difusa de reabilitação, distribuindo uniformemente projetos de dimensão espetacular em toda a cidade. Especialmente para projetos localizados em áreas periféricas com dificuldades económicas, o ganho de capital com o turismo era esperado para revitalizar e regenerar essas áreas. Isso explica o apoio do então prefeito conservador Jacques Chirac. Ao invés de simplesmente criar novos significados e poder simbólico, como na época de Haussmann, também era esperado na época de Mitterrand ganhos económicos significativos”309.

Os ícones da contemporaneidade parisiense foram construídos a partir de

uma conceção política, que procurava atingir objetivos específicos do contexto no

qual estavam inseridos. Nenhum deles surgiu ao acaso, foram concebidos

intencionalmente no sentido de transformação, valorizando a área de inserção,

dinamizando a cidade mas também causando polémica, alguma controvérsia que

gerasse o debate mediático e garantisse a berlinda.

Recorrer a ícones arquitetónicos nesta perspetiva, como catalisadores de

processos de requalificação urbana, é uma opção muitas vezes utilizada como

ferramenta para alavancar o desenvolvimento local através da repercussão da

monumentalidade. É um movimento global, sobretudo nas cidades que se

predispõem a promover seu reposicionamento como centros internacionais, tendo

uma marca significativa na gestão política e que, de certa forma, se reproduz nas

experiências que seguem.

308 FIERRO, Annette, The Glass State - The Technology of the Spectacle - Paris, 1981-1998. Cambridge: The MIT Press, 2003, p. 14.

309 Idem, ibidem, p. 18-19 (tradução livre do autor).

121

Foi na Catalunha, em Barcelona, que ocorreu a experiência, que viria a tornar-se

o modelo mais disseminado de boa prática do Projeto Urbano e do Planeamento

Estratégico. Este foi um processo iniciado a partir dos anos oitenta do século XX, e que

chegou ao seu auge em 1992, com a realização dos Jogos Olímpicos que consagraram o

sucesso do que se tornou um exemplo a ser (per)seguido.

No mesmo ano em que Margareth Thatcher assumiu o poder na Inglaterra, em 1979,

esta experiência teve início. No período da democratização pós-Franco, foram iniciadas uma

série de processos de renovação urbana em várias cidades espanholas, que se intensificaram a

partir de 1986 com a entrada da Espanha no bloco europeu. O processo ocorrido em

Barcelona nos anos oitenta tornar-se-ia um das mais importantes experiências de planeamento

tornando-se referência no debate urbanístico e instituindo um modelo referente à aplicação dos

Projetos Urbanos, dando nova vitalidade à cidade, segundo uma estratégia baseada em

critérios de oportunidade e de qualidade desses Projetos e seus processos310. O comummente

chamado “modelo Barcelona” teve como características essenciais: “[…] a importância do

projeto urbano acima do plano; a ênfase no espaço público, [...], e os mecanismos para pôr

em acordo a iniciativa privada com as instituições públicas. Estas três grandes características

se complementam com a intenção de reequilibrar a cidade repartindo valores urbanos,

interconectando-a muito mais e terciarizando-a” 311.

Nestes processos foram estabelecidas linhas estratégicas, que buscavam não só

consolidar Barcelona como um centro europeu mas também robustecer o seu

posicionamento na rede global de cidades; e que procuravam a melhoria da qualidade de

vida da população e a eficiência da gestão, além da qualificação da cidade para potenciar a

industria e os serviços empresariais avançados. Essas linhas de ação envolveram

310 SOLÁ-MORALES, Manuel de. Diez Lecciones sobre Barcelona. Barcelona: COAC, 2ª ed., 2008, p. 15.

311 MONTANER, Josep Maria, “La evolución del ‘modelo Barcelona’ (1973-2004)” in MONTANER et al., 2011, p. 13 (tradução livre do autor).

122

transformações físicas urbanas como também posturas e ações políticas312, consolidando-

se, mais tarde, a partir de 1988, no Plano Estratégico que ratificava a experiência de

Barcelona também como modelo deste tipo de planeamento e de capacidade de gestão

positiva de megaeventos globais, no caso, os Jogos Olímpicos.

A primeira etapa destes processos durou entre 1979 e 1986, e deu-se de forma

mais lenta. Nela foram processadas as respostas dadas ao acumular das experiências

construídas a partir da discussão e da prática que se desenvolvia junto às comunidades

locais. Estabeleceu-se depois das primeiras eleições democráticas pós-franquista, e ficou

marcada pela atuação significativa do setor público no sentido de equacionar a escassez

de recursos disponíveis, reformando e racionalizando a administração, descentralizando

funções para o governo local, aproximando-se da escala dos bairros e da atuação por

meio de projetos pequenos de requalificação dos espaços públicos.

É importante ressaltar que esta experiência de planeamento teve como base

um plano previamente existente, elaborado em 1976: o chamado Plan general de

ordenación urbana del area metropolitana de Barcelona, não se constituindo dessa forma num

processo de mera adoção de projetos ad hoc. Numa primeira fase, este Plano foi

levado a cabo através de processos inovadores, definidos a partir de uma nova

perceção de mudança, assente no aproveitamento das próprias qualidades da cidade

existente a partir do desenvolvimento de uma série de Projetos Urbanos que, no seu

conjunto, entendiam a cidade como um laboratório de possibilidades urbanas313. O

Plano em questão, previa a aquisição de terrenos privados para a construção de

equipamentos e espaços urbanos de uso coletivo, combatendo o défice herdado do

período franquista. Para conseguir dar continuidade aos processos instalados,

Barcelona optou pela tentativa de sediar um grande evento como forma de captação

desses recursos, foi apresentada então a possibilidade de candidatura para sediar os

312 LOPES, Rodrigo. A cidade intencional - o planejamento estratégico de cidades. Rio de Janeiro, MAUAD, 2ª ed., 1998p. 153.

313 MONTANER, Josep Maria, “La evolución del ‘modelo Barcelona’ (1973-2004)” in MONTANER et al., 2011, p. 13.

123

Jogos Olímpicos, no que replicava a tradição local de organização de grandes eventos,

nomeadamente as Exposições Mundiais realizadas em 1888 e 1929314.

Com o processo de recuperação económica iniciado em 1986, e respaldado

por uma maioria política e social estável, e uma cumplicidade entre políticos e

profissionais do urbanismo da arquitetura e da engenharia315, a oportunidade

extraordinária concretizou-se com a conquista do direito a sediar os Jogos Olímpicos

de 1992. Uma nova fase virtuosa se desdobrou nos seis anos seguintes de preparação

para o megaevento. A conquista apresentou-se como uma espécie de catalisador dos

processos já estabelecidos dentro dos planos da cidade. De facto, a conquista, em

1986, do direito de sediar os Jogos Olímpicos de 1992, viabilizou a captação dos

recursos necessários para a efetivação das ações pré-estabelecidas pelo Plano

elaborado uma década antes. A possibilidade olímpica se estabeleceu como uma

espécie de catalisador de um caminho já definido e de certa forma já consolidado. A

realização dos Jogos permitiu a Barcelona avançar nas intervenções que até então

eram constituídas por ações pontuais, principalmente voltadas para a recuperação do

designado Casco Vejo (Casco Velho) da cidade, aproveitando a concentração de

recursos públicos e privados, investidos também em infraestrutura urbana.

Um dos principais técnicos responsáveis pelas transformações ocorridas

nesse período foi o arquiteto Oriol Bohigas (1925-) que capitaneou o processo

utilizando o urbanismo como ferramenta para melhorar a cidade. O antigo Plano o

qual Bohigas havia liderado permitiu utilizar o Projeto Urbano como meio de

construção e transformação da cidade. O Projeto Urbano então, consolidou-se como

uma ferramenta de mais fácil e rápida realização, respondendo às necessidades

condicionadas pelo fator tempo316, em face da necessidade de garantir a realização

dos Jogos Olímpicos. Para Montaner:

314 De facto vale lembrar que algumas das primeiras edições dos Jogos foram realizadas em conjunto com este tipo de evento nomeadamente em Paris (1900); em Saint Louis (1904); e em Londres (1908).

315 BORJA, Jordi in MONTANER et al., 2011, p. 228.

316 CALABI, Donatella, História do Urbanismo Europeu: questões, instrumentos, casos exemplares. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 393.

124

“[…] a partir deste momento [que Barcelona ganha o direito de organizar os Jogos Olímpicos de 1992] os projetos previstos deveriam ser realizados com a máxima urgência e precisão, e a dependência entre uns e outros aumentou de forma alarmante. […] a escolha de Barcelona como sede Olímpica - um marco contido na base do programa municipal - causou uma mudança de ritmo, de escala e de contextos. Os projetos deviam ser realizados dentro dos estreitos prazos previstos, as operações passaram a ter uma dimensão maior e transcendência, as leis do mercado da cidade foram transformadas, aumentando as expectativas de especulação urbana . A partir de intervenções de grande detalhe e muito mais difíceis […] Os novos projetos deviam estar pensados segundo um tamanho e um ritmo de construção inimigo de cidades, restaurações e negociações delicadas” [grifo meu]317.

A transformação do ritmo do planeamento da cidade – que se acelera –

adicionada à injeção de subsídios do Estado que se somavam aos investimentos

privados, nacionais e estrangeiros, abriram espaço para o estabelecimento de grandes

operações de qualificação urbana318. Com isso, a própria escala de diálogo entre

stakeholders foi modificada, passando dos atores locais, para processos que se

desenvolviam a partir da relação com grandes operadores nacionais e internacionais,

no âmbito, não raras vezes, de parcerias público-privadas.

Abafando os questionamentos sobre qual o melhor modelo de

desenvolvimento para a cidade, os Jogos Olímpicos atuam como legitimador de todo

o processo, oferecendo a possibilidade de criação de um consenso social bastante

amplo quanto à importância da sua própria realização319. A possibilidade de sediar os

Jogos viabilizou, finalmente, a concentração de grande investimentos seguindo o

plano de 1976, realizando assim “a façanha de conjugar a natureza e as exigências dos

Jogos com os objetivos fundamentais da gestão urbana” 320.

317 MONTANER, Josep Maria, “La evolución del ‘modelo Barcelona’ (1973-2004)” in MONTANER et al., 2011, p. 14.

318 CALABI, Donatella, História do Urbanismo Europeu: questões, instrumentos, casos exemplares. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 394.

319 CASELLAS, Antónia, “Gobernanza y ciudad. La evolución del modelo de colaboración público-privado en Barcelona” in MONTANER, et al., 2011, p. 63.

320 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 48.

125

Foi nesse contexto que se estabeleceu “o primeiro Plano Estratégico e

Económico e Social de Barcelona, aprovado em 1990, [e que] pode ser interpretado como

um esforço por parte da administração pública local para incluir, no processo de

consenso sobre o futuro da cidade, um espectro económico e social abrangente”321.

Foram desenvolvidos sete eixos principais de atuação322: (i) a revitalização do centro

histórico; (ii) a recuperação da zona portuária; (iii) a alteração do uso do solo, criando

parques públicos, novas centralidades e recuperando equipamentos obsoletos e

abandonados; (iv) a aposta na implantação de novas tecnologias sobretudo de

comunicação; (v) a ampliação da infraestrutura de mobilidade e, em contraponto, a

redução da circulação automóvel na área central da cidade; (vi) a implantação de rede de

infraestruturas e de equipamentos por todo o território da cidade; e (vi) o dar alguma

ênfase às políticas sociais embora ainda haja alguma crítica quanto a este tema,

especialmente na questão da moradia e de processos de gentrificação.

Munida das experiências práticas de implementação de Projetos Urbanos, de um

Plano Estratégico e da oportunidade de sediar um dos maiores eventos mundiais, Barcelona

não desperdiçou a oportunidade. Segundo Payne, Barcelona entendeu desde o primeiro

momento o que significava sediar os Jogos Olímpicos e “como a celebração olímpica

poderia ser usada para apresentar uma nova identidade para a cidade e para o país”323.

Para o Prefeito e Presidente do Comité Organizador dos Jogos, Pasqual

Maragall (1941-), uma questão era fundamental: “colocar Barcelona no mapa”324. Os

Jogos de 1992, talvez tenham sido o evento de maior sucesso de todas as edições já

realizadas. O retorno aconteceu em diferentes sentidos – de fortalecimento da marca

olímpica, mas também de transformação para a cidade. No espaço de tempo entre a

eleição em 1986 e a realização do evento em 1992, a cidade teve investimentos que,

de outro modo, poderia levar trinta anos para mobilizar/concretizar.

321 CASELLAS, Antónia, op. cit., p. 64 (tradução livre do autor).

322 CARRERAS, Carles; TELLO, Rosa, “Aménagement urbain et aménagement stratégique Barcelone: internationalization et nouveaux paysages urbains”. École Française de Rome Palais Farnese, 1988, mimeo apud MASCARENHAS et al., 2011, p. 45-46.

323 PAYNE, Michael, A virada olímpica, como os jogos olímpicos tornaram-se a marca mais valorizada no mundo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/COB, 2006, p. 180.

324 Idem, ibidem, p.181.

126

Figura 22. Plano Geral Metropolitano (PGM) - 1976.

Figura 23. Mapa indicativo dos projetos do sistema de mobilidade.

127

Barcelona procurou alterar o esquema clássico de estruturação da cidade olímpica a

partir de um grande Parque Olímpico, que concentrava todos os equipamentos afetos aos

Jogos. Foram criados quatro parques distribuídos pela cidade, o que reduziu o risco de

construção dos chamados “elefantes brancos”, equipamentos construídos em duplicado,

posteriormente subutilizados, concentrados numa região específica e permitiu um maior

número de intervenções no sistema de transporte atingindo uma escala mais alargada.

Grandes equipamentos como a arena de basquete e de hóquei são exemplos dessa

preocupação – por isso foram construídos em cidades vizinhas de Barcelona, que estavam

carentes de equipamentos desportivos. No caso, Badalona e Terassa, respetivamente. De

quarenta e três equipamentos necessários para a realização dos Jogos, apenas quinze foram

construídos de raiz325. Segundo Kassens-noor, dois destes “parques olímpicos” construídos

em áreas com desenvolvimento não previsto no Plano de 1976 (Montjuic e Diagonal),

acabaram por resultar em alterações compulsórias no sistema de mobilidade existente para

acomodar os movimentos dos atletas e espectadores entre todas as áreas olímpicas,

incluindo: novas paradas e reforma da linha de metropolitano mais utilizada, revisão do

sistema de gestão de tráfego, instalação de funiculares e escadas rolante entre outros

projetos não programados antes da vitória da candidatura olímpica326.

9

Figura 24. Clássico registo fotográfico dos jogos Olímpicos de 1992. A disputa dos saltos ornamentais em Montjuic, com a cidade ao fundo e a Catedral de Gaudí em destaque.

325 TRUÑÓ, Enric, “Barcelona, ciudad del deporte” apud MASCARENHAS et al., 2011, p. 47.

326 KASSENS-DOR, Eva, Planning Olympic Legacies - Transport dreams and urban realities. New York: Routledge, 2012, p. 35.

128

Figura 25. Vila Olímpica dos Jogos de 1992.

Segundo Lluis Millet, diretor da divisão de infraestruturas do Comité

Organizador dos Jogos Olímpicos de 1992, Barcelona historicamente concentrava grande

parte dos investimentos públicos na região mais a oeste, onde se localizavam os bairros

mais nobres da cidade e o aeroporto. A zona leste da cidade, operária, industrial e carente

de infraestruturas, mantinha-se preterida aos olhos da municipalidade. Com a

oportunidade olímpica, Millet explica que:

“ocorreram pressões enormes para situar os grandes conjuntos olímpicos perto do aeroporto, [criando] uma área nova de colonização. Havia interesses especulativos, havia interesses particulares de pessoas ligadas à própria organização da olimpíada. Foi, digamos, realmente um exercício democrático o de não cedermos a essas pressões (...) dando à cidade aquilo que o crescimento urbano dos últimos quarenta anos lhe havia negado (...) a operação de Barcelona foi de reconquista da cidade, uma operação de renovação urbana”327.

Conseguindo equacionar os investimentos viabilizados pelos Jogos em

consonância com os interesses do desenvolvimento urbano da cidade articulando

“interesses privados, monumentalidade e projeção urbana” 328, Barcelona consolidou

para o mundo a ideia de legado, constituindo um conceito muitas vezes vago

vinculado à herança proveniente dos Jogos. O legado estruturou-se a partir da

experiência de Barcelona como um objetivo fundamental do próprio evento e de um

327 MILLET, Lluis, “Los juegos de la ciudad” in MORAGAS; BOTTELLA, 1996, p. 232-249.

328 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al, 2011, p. 48.

129

modelo de planeamento capaz de absorver todas aquelas benesses desejadas em que

se baseia a promessa estabelecida pela atuação do Projeto Urbano e do Planeamento

Estratégico - as catálises, sinergias e contaminações positivas...

Embora haja o reconhecimento de uma ampla difusão do advento de um

modelo vinculado a experiência de Barcelona, Jordi Borja, considerado um dos

difusores desse “modelo Barcelona” cogita a necessária desmistificação do mesmo.

Para o geógrafo catalão, há três razões fundamentais para isso: (i) primeiro o que seria

uma inadequação do termo. Um “modelo” se refere a uma “construção conceitual,

abstrata, que facilita a análise de realidades concretas mas não é uma fotografia do

objeto real-material” 329. (ii) Também a ideia de “modelo” pressupõe um desenho

formal que se possa reproduzir invariavelmente, no entanto, para Borja a

transformação de Barcelona não pode ser reeditada. Pode-se falar em um método

urbanístico ou mesmo de um projeto político mas não de um “modelo formal”

reproduzível. Por último, (iii) quando o “modelo Barcelona” tenta ser absorvido em

outras localidades é costume interpretá-lo como um conjunto de normas e atuações

que configuram uma proposta urbanística ideal e transferível. Uma inverdade na

medida em que cada caso é uma experiência específica, “os problemas podem ser

similares, critérios e objetivos compartilhados, mas as respostas devem ser

necessariamente diferentes”330. Ainda segundo o autor, houve uma mistificação da

experiência de Barcelona, que num primeiro momento foi fator importante de

promoção da cidade mas teve também efeitos negativos331. “Na Europa e outras

partes do mundo se admirou uma cidade, que com os Jogos Olímpicos entrou em um

processo de encantamento de auto-satisfação cujos governantes foram perdendo o

sentido crítico. Gradualmente, especialmente a partir do novo século, uma parte da

cidadania e da opinião especializada internacional começou a mostrar um certo mal

estar e cansaço, mesmo decepção” 332, principalmente com uma tendência mais

329 BORJA, Jordi in MONTANER et al., 2011, p. 225 (tradução livre do autor).

330 Idem, ibidem, p. 225.

331 São variados os autores críticos ao “modelo Barcelona”, inclusive alguns dos que já foram entusiastas do mesmo. Entre eles figuram Josep Maria Montaner, Manuel Herce, Jordi Borja,Horacio Capel, Manuel Delgado, entre outros.

332 BORJA, Jordi in MONTANER et al., op. cit., p. 226 (tradução livre do autor).

130

recente de “perversão do modelo” pelo abuso de objetos arquitetónicos

descontextualizados e assinados por arquitetos do star-system.

Borja indica ainda que na América Latina o “modelo” foi amplamente vendido,

por vezes com boa fé, por outras com oportunismo, por profissionais da área do

urbanismo, uns efetivamente vinculados à experiência, outros vagamente conhecedores

do processo. Com isso, a mistificação nem sempre correspondeu a um conhecimento

preciso do urbanismo barcelonês, resultando muitas vezes na tentativa de copiar

programas e projetos sem a adequação necessária.

Por fim, mas não mesmo importante para esta investigação, a experiência levada

a cabo na cidade de Bilbau, onde se observa um caminho semelhante ao de Barcelona,

mas que no entanto guarda características específicas que apontam na direção do

destaque dado “ao papel reservado para a capacidade expressiva e simbólica das novas

arquiteturas, dos edifícios de grife à cenografia dos city tableaux, muitas vezes criticadas

pelos deslocamentos temporais e geográficos que seus ambientes promovem”333. Com

isso, o projeto arquitetónico de autoria de um arquiteto do star-system, de grande

visibilidade mediática seria o catalisador ideal da renovação urbana local.

Localizada no norte de Espanha, Bilbau é capital da província Basca lembrada

nos anos 80 e 90 mais como palco das ações do ETA (Euskadi Ta Askatasuna), grupo

nacionalista determinado a livrar o País Basco do domínio espanhol334. Uma cidade que

cresceu entre o fim do século XIX e início do século XX através do seu porto e do

parque industrial vinculado à mineração, siderurgia e construção naval, que a partir dos

anos 70 passou pelo processo de desindustrialização comum a grande parte das cidades

europeias chegando a estagnação na década seguinte.

333 BOYER, M Christine, “The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments” in DEL RIO, 2001.

334 GLANCEY, Jonathan, A história da arquitetura. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 225

131

“Em meados dos anos de 1970, o setor industrial de Bilbau passou por uma crise provocada pela insuficiente capacidade de adaptação às mudanças tecnológicas e aos novos desafios da globalização e pela concorrência de outros países. Durante os anos de 1980, como resultado desses fatores, a região metropolitana de Bilbau perdeu 80.000 empregos industriais e 70.000 residentes sobre um total de um milhão. A crise económica agravou a deterioração urbana e ambiental, ao mesmo tempo em que gerou mais exclusão social”335.

Com o sentimento de crise causado por este cenário, instalava-se a condição

necessária ao movimento que iria ao encontro da linha de reabilitação das áreas devolutas

da indústria e da atividade portuária através do planeamento estratégico. Dessa forma, em

1987, a cidade de Bilbau elaborou o seu primeiro Plan general de ordenación urbana, na

perspetiva de enfrentar além das dificuldades da desindustrialização outros fatores de

transformação como aquelas resultantes da entrada da Espanha na União Europeia.

No início dos anos 1990, a cidade ainda se apresentava de forma contida na rede

europeia de cidades segundo o informe RECLUS de 1989, Bilbau figurava entre as

cidades de categoria 6, classificada no 56º posto entre as cidades europeias e aguardava o

estabelecimento de grandes empresas multinacionais que contribuíssem firmemente para

a recuperação económica local336. Dando início ao processo que perspetivava a

recuperação da cidade, em 1992, foi criada a Sociedad Anónima Bilbao Ría 2000, uma

parceria entre governo espanhol, basco e a cidade através de diversos órgãos

governamentais dos diferentes níveis de governo e mais a autoridade portuária, com o

objetivo de desenvolver um conjunto de áreas que envolviam o centro histórico e as

zonas industriais e portuárias junto ao rio Nérvion. Segundo Borja, desde o início, esse

processo foi concebido como uma operação complexa, que articulava diferentes

intervenções, como a própria transferência do porto, o novo aeroporto, o metropolitano,

a melhoria do centro histórico e atuações nas áreas periféricas. Neste quadro de atuação

um fator não previsto abriu novas possibilidades: a construção de um elemento que se

tornou emblemático e dinamizou a operação mudando a imagem da cidade lançando-a

335 MELO, Raphael Ferraz Almeida de Melo, “O papel das instituições de gestão de programas na conservação de áreas urbanas de interesse cultural” Arquimemória 3 in ENCONTRO NACIONAL DE ARQUITETOS SOBRE A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO. Salvador: Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia, Salvador, 2008, p .06.

336 ZULAIKA, Joseba, Crónica de una seducción: el Museo Guggenheim Bilbao. Madrid: Editorial NEREA, 1997, p. 59.

132

para o mundo: o Museu Guggenheim337. Foi através deste e de outros investimentos no

campo cultural que a cidade deu um salto ampliando a sua conexão com a rede global de

cidades, vendo a transformação de sua base industrial em outra que a metamorfoseou em

polo cultural do norte da Espanha. Ficava para trás a imagem de pequena cidade em crise

e castigada pelo problema do terrorismo separatista do País Basco.

O caso não previsto do Museu Guggenheim foi, segundo Borja, levado a cabo

por argúcia do secretário-geral da Câmara de Comércio e do conselheiro de Cultura do

governo Basco, seriam eles os responsáveis pela conceção da ideia de um grande

equipamento cultural338, ação não prevista no plano estratégico, que parecia não avançar

com as dificuldades de implementação do mesmo. Neste contexto, houve uma tentativa

frustrada (1990) de criação de um projeto conhecido como “El Cubo de la Alhóndiga”,

projeto de museu associado ao escultor Jorge Oteiza e os arquitetos Sáenz de Oiza e

Fullaondo, que foi fortemente criticado pelos arquitetos bascos e acabou encerrado com

a demissão do alcalde José Maria Gorordo que o promoveu339.

A definição da área para a construção do Museu possui diferentes versões

controversas, além desta apresentada por Borja, Leonardo Benévolo atribuiu a escolha

do local ao desejo do arquiteto Frank Gehry340. Já Joseba Zulaika, autor do livro Crónica

de una Seducción, onde disseca todo o processo político de implementação do Museu,

indica que a opção pelo sítio de implantação foi feita pelo diretor da Fundação

Guggenheim Thomas Krens341 –

“Efetivamente era um lugar especial. Havia feito falta um visionário como Krens para abrir-lhes os olhos para o óbvio. Era o capitão que necessitavam para traçar o caminho de um novo Eldorado, o líder indomável que em meio a noite inspirava confiança ao grupo de

337 BORJA, Jordi in MONTANER et al., 2011, p. 232.

338 Idem, ibidem, p. 232

339 ZULAIKA, Joseba, Crónica de una seducción: el Museo Guggenheim Bilbao. Madrid: Editorial NEREA, 1997, p. 27-29.

340 BENEVOLO, Leonardo, A arquitetura no novo milênio. São Paulo: Estação Liberdade, 2007, p. 205

341 ZULAIKA, Joseba, op. cit., p. 100 (tradução livre do autor).

133

conspiradores dispostos a arriscar tudo para restaurar Bilbau e seu entorno a sua antiga grandeza” 342.

Foi Krens que iniciou os primeiros contatos para a implantação do Museu e a

primeira experiência frustrada indicava que apenas através de um forte apoio político

poder-se-ia confirmar de forma contundente que o Museu Guggenheim superava as

aspirações locais e teria assim o apoio necessário para a construção do caminho do

“Eldorado”. Esta indicação de apoio político firmou-se apenas após confirmação do

interesse do governo central de Madrid. Desta forma o desejo de Bilbau tornava-se

também um assunto de Estado, e assim a negociação se firmou de forma definitiva –

“E foi mesmo Madrid que estava dizendo, não um conselheiro qualquer em Bilbau

[...] era como prerrogativa de Estado que interessava realmente à Krens”343.

Consolidava-se assim a possibilidade da construção do Museu Guggenheim

em Bilbau, um “edifício- âncora de uso cultural, ícone mais conhecido da

transformação da antiga cidade industrial em locus turístico, cultural e de serviços”344.

A previsão inicial ainda contava com a possibilidade de envolver o edifício Alhóndiga,

potenciando sua revitalização em sinergia com o novo Museu. No entanto, esta ideia

foi renegada por Krens, que desejava a construção de um edifício novo e único –

“Por que não forçá-los a realizar um edifício inteiramente novo?”345. A esta negativa

juntou-se o desejo do arquiteto do star-system dando suporte a decisão. A escolha de

Frank Gehry foi fundamental, não deixando nenhuma dúvidas quando ele próprio

afirmou que: “la Alhóndiga não serviria para o grande museu que ele poderia

desenhar” 346. A presença de um nome reconhecido internacionalmente foi decisiva

para a legitimação do produto e para a decisão do poder público de investir o que

342 ZULAIKA, Joseba, Crónica de una seducción: el Museo Guggenheim Bilbao. Madrid: Editorial NEREA, 1997, p. 103 (tradução livre do autor).

343 Idem, ibidem, p. 83 (tradução livre do autor).

344 ARANTES, Pedro, O grau zero da arquitetura na era financeira. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, n. 80, 2008, p. 59.

345 ZULAIKA, Joseba, op. cit., p. 93 (tradução livre do autor).

346 Idem, ibidem, p. 95 (tradução livre do autor).

134

fosse necessário numa obra que se tornaria emblemática – “emblemas da cidade que

encarnam ideias de progresso, cultura, justiça, da comunidade pacífica” 347.

Nesta perspetiva, segundo Krens, o País Basco que necessitava de um

grande desafio, teria no Museu seu repto348. O novo Museu Guggenheim de Frank

Gehry, seguindo uma tipologia tipo laissez-faire, resultou num projeto que foi capaz

de estar extremamente entrosado com as circunstancias gerais de viabilização e

legitimação do processo. Bilbau aproveitava então a oportunidade única, sem

poupar nenhum esforço para a construção do Museu que tornara-se de vital

importância. Mais do que um gasto foi a possibilidade de reversão de um futuro

incerto, “um ato de fé”349, que garantiu a transformação da imagem do País Basco e

o futuro de Bilbau na rede global de cidades.

O projeto se concretizou em meio à slogans que resumiam o discurso

urbanístico de grande parte das intervenções promovidas em cidades industriais em

crise: renovação do tecido urbano e renovação da economia através de

investimentos maciços em cultura. Desta forma, toda uma zona deprimida da

cidade, em apenas quatro anos, entre 1993 e 1997, transformou-se num dos mais

importantes e desejados modelos de intervenção arquitetónica com profunda

capacidade de “contaminação positiva”, no sentido da recuperação urbana. O

sucesso do projeto de arquitetura mediático, incentivou a continuidade do modelo

em Bilbau com a contratação de toda uma sorte de arquitetos do star-system para

vários outros projetos, nomeadamente: Foster; Calatrava; Isozali; Moneo; Soriano e

Palácio; Legoretta; Stern; Zaha Hadid entre outros.

O “efeito Guggenheim”350, embora possa ser denominado como um caso de

serendipty351, logo não previsto, acabou por constituiu uma espécie de modelo que

inspirou e segue inspirando políticos em cidades do mundo inteiro. O Rio de Janeiro

347 ZULAIKA, Joseba, Crónica de una seducción: el Museo Guggenheim Bilbao. Madrid: Editorial NEREA, 1997, p. 235 (tradução livre do autor).

348 Idem, ibidem, p. 71.

349 Idem, ibidem, p. 287.

350 BALIBREA, Mari Paz in MONTANER et al., 2011, p. 248.

351 BORJA, Jordi in MONTANER et al., 2011, p. 232.

135

é uma delas. Todas acreditam que mesmo com a perspetiva de gastos exorbitantes na

contratação e construção de projetos desenhados por arquitetos do star-system, haverá

sempre a possibilidade de com isso transformar suas realidades. O arquiteto e o

projeto de griffe se posicionam deste modo como o centro de uma ideologia de

renovação urbana que “busca convencer os próprios residentes e atrair turistas para

uma nova realidade urbana higienizada e estetizada, frequentemente tão auto-

complacente como apolítica”352.

A experiência do Museu Guggenheim em Bilbau passou a representar um

modelo de uma política institucional de city marketing que gira em trono de

intervenções urbanas que permitissem o reforço da comunicação da imagem da

cidade. Na perspetiva de inserção da cidade no mercado cultural global optando por

mais do que um museu, e sim uma marca internacional, um símbolo por si só,

potencializado pelo projeto desenhado por um arquiteto do star-system. Essa

perspetiva simbólica traz atrelada a ideia de que sua promoção pode também catalisar

uma série de iniciativas de revitalização pontual e também para o desenvolvimento da

cidade como um todo.

No entanto, a promoção desse “modelo Gugenheim” nem sempre reproduz

os impactos positivos da experiência de Bilbau. A exportação desses modelos de

cidades globais advindos dos países desenvolvidos e consequente importação por

cidades interessadas em se reposicionar globalmente, embora pertencentes a uma

realidade ainda de desenvolvimento, nem sempre resulta de forma apropriada para

estas últimas. Contextos diferenciados em vários aspetos inviabilizam a reprodução

ipsis litteris dos modelos de sucesso internacionais.

352 BALIBREA, Mari Paz in MONTANER et al., 2011, p. 248.

136

Figura 26. Evolução da Ria 2000 entre 1991 e 2010.

137

Foi visto até aqui que durante grande parte do século XX, as cidades se desenvolveram

segundo um urbanismo que seria possível ser classificado como “da certeza”. Nele, a mudança

na perspetiva de resposta às transformações da sociedade, das tecnologias e da vida urbana, se

dava a partir da rutura total com a cidade existente e consequente construção de uma cidade

idealizada. O desígnio – projeto – estabelecido para essa cidade ideal era fruto da razão e do

conhecimento das novas técnicas científicas, e estava sob o controle de especialistas, e

salvaguardado pelo Estado, centro do poder e dos recursos disponíveis, garantidores da ideia de

progresso, que se estabelecia a partir da confiança na capacidade de construção de um futuro

róseo que se prospetava mas que no entanto nunca era plenamente alcançado.

Os processos de transformação, de modernização, durante todo o século não

cessaram. No entanto, a partir da década de 1960, intensificaram-se os movimentos de

reconhecimento da ambivalência inerente à razão e aos avanços tecnocientíficos, que somado

à crise do Estado, em especial na década de 1970 em diante, e à burocratização dos processo

de planeamento, resultaram da “liquefação” de grande parte daquelas “certezas”. Com isso, os

princípios da modernidade transformam-se assumindo novas características em consonância

com a nova realidade. A ideia de mudança deixou de se estabelecer em condição de rutura

com o existente e passou a se constituir em função das pré-existências, valorizando, caso a

caso, a memória e atribuindo à história uma nova roupagem. O projeto, a ação, deixou de ser

uma intenção traduzida num desenho e passou a ser “também um instrumento cuja

elaboração, expressão, desenvolvimento e execução revelam potencialidades e as limitações

impostas pela sociedade, pelos actores em presença, os lugares, as circunstancias e os

acontecimentos. O projecto [passa a ser] igualmente um instrumento de análise e de

negociação”353, atuando sobretudo pontualmente, na perspetiva do que é possível, do

aproveitamento de oportunidades refletindo escolhas específicas, ao invés de desígnios gerais.

Tudo isso sob a expectativa de construção de um futuro reconhecidamente incerto, pela

condição de “liquefação dos sólidos”, da razão e do Estado garantidor.

353 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p. 80.

138

Sem as certezas que legitimavam as ações através da razão e da técnica segundo os

princípios da “Modernidade sólida”, estabelecem-se novas perspetivas para os princípios que

regem os processos de modernização vistos até aqui. Sob essa condição de reconhecimento da

incerteza e complexidade, a prática do urbanismo procura desenvolver novos modos de

legitimação, que possam ajudar a construir consensos o mais amplos possíveis, mesmo que para

isso seja preciso utilizar raciocínios genéricos e de definição vaga, através do uso, por vezes, de

uma hipervalorização de argumentações técnica, e por outra, o oposto, utilizando ideias que

transmitem uma espécie de promessa mágica de resultados positivos. Entram em jogo as

“palavras-contentor” a que se refere Alain Bourdin354 que com seu largo espectro semântico,

acaba por mascarar eventuais contradições entre o que é obra efetiva, a estratégia definida e o

método utilizado para a sua realização, levando na prática a uma tentativa de “redução da

complexidade por processos que tem que ver com magia” 355. Entre elas aquelas que tratam da

atuação indireta, consequência de algum tipo de intervenção urbana – as sinergias, catálises,

contaminações positivas e sobretudo a ideia de legado dos grandes projetos.

legado nome masculino. 1. aquilo que se deixa por disposição testamentária a quem não é herdeiro legítimo; sucessão a título particular 2. aquilo que as gerações passadas transmitem às atuais 3. dádiva.356

Um dos termos mais utilizados nos processos de programação estratégica e Projeto

Urbano é aquele que refere-se à ideia de uma herança positiva fruto das ações do presente –

a possibilidade de legado. Esta ideia torna-se amplamente divulgada no campo da disciplina

urbana a partir dos anos 80, e particularmente nos anos 90, ajudando a estabelecer modelos

354 BOURDIN, Alain, O urbanismo depois da crise. Lisboa: Livros Horizonte, 2011.

355 Idem, ibidem, p. 59.

356 legado In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. Disponível na WWW: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/legado>[Consult. 2014-06-21].

139

de atuação com base em casos de sucesso que ganham grande destaque pelo mundo,

sobretudo a partir de atuações vinculadas a grandes projetos e megaeventos.

Para a legitimação das ações estabelecidas nestes contextos citados, é necessária a

construção intelectual e política de consensos o mais alargados possíveis, sem os quais se

torna mais difícil efetivá-las. Trata-se de um tipo de urbanismo dependente da adesão às

decisões dele emergentes. Nesta perspetiva, Jordi Borja destaca a fundamental a

constituição de uma identidade social e coletiva local que resulte na “geração de um

patriotismo da cidade que permita [aos] seus líderes, atores e [ao] conjunto da cidadania

assumirem (sic) com orgulho seu passado e seu futuro” [grifo meu]357.

O “patriotismo de cidade” é assumido como um elemento favorecedor dos

consensos políticos necessários à estabilização e implementação das decisões. A sua

emergência é perseguida, também, de variadas formas, destacando-se entre elas, a

utilização de “palavras-contentor” como recurso de comunicação e negociação, como

notado por Alain Bourdin. As “palavras-contentor” definem-se a partir de conceitos

vagos, que permitem várias interpretações e uma comunicação feita por ajustes

sucessivos358. Ou seja, é um recurso adaptável à incerteza dos processos, assumindo

diferentes possibilidades e se adaptando às circunstâncias que surgem. A ideia de legado

afigura-se, como uma dessas “palavras-contentor”. Na sua ampla possibilidade de

definição, legado é aquilo que se herda das gerações passadas, mas é também uma dádiva,

um presente que se ganha, não exatamente algo que se conquista. A ideia de legado

institui a perceção de uma espécie de “procedimento mágico” que respaldado pela

“aparência científica do processo, [...] consiste em negar a incerteza [encerrando-a] num

quadro redutor [suportado pela sua promessa]” – ignora as várias componentes,

eventualmente positivas, eventualmente negativas, futuras359. Assim como outras

“palavras-contentor”, o legado vulgariza certas convicções ou crenças, que se reforçam e

consolidam cada vez mais, na medida do seu próprio sucesso. Neste sentido,

transformando casos exemplares em verdadeiros modelos, como aconteceu com a

357 BORJA, Jordi; FORN, Manuel de, Políticas da Europa e dos Estados para as cidades in Espaço e Debates. São Paulo: n. 39, 1996, p. 46.

358 BOURDIN, Alain, O urbanismo depois da crise. Lisboa: Livros Horizonte, 2011, p. 22.

359 Idem, ibidem, p. 60.

140

experiência de Barcelona. As “palavras-contentor”, como legado, permitem a afirmação

categórica, dificultando o questionamento e a possibilidade de uma análise mais detalhada

e cuidadosa, que procure observar toda a complexidade dos factos do real. Palavras como

legado transportam preconceitos cognitivos sobre os quais ninguém se interroga360. Nesse

sentido, segundo Crompton, a ideia de legado acaba sendo usada como forma de

embaciar, propositadamente, a visão sobre o tema e as decisões tomadas, legitimando as

ações estabelecidas para a realização de grandes projetos mediáticos e megaeventos361.

Talvez o caso mais paradigmático do anterior fenómeno suceda com os Jogos

Olímpicos, que são eventos de grande importância mediática, cultural, económica e

desportiva, possuindo um simbolismo internacional bastante relevante e suscitando,

geralmente, um significativo envolvimento popular362.

Nesse caso específico, as cidades, seus cidadãos e decisores, absorvem a ideia de

legado como estando associada ao aproveitamento da oportunidade de ações que possam

contribuir para a conquista de metas locais em diversos âmbitos: social, cultural, político,

económico e ambiental. Por outro lado, a adoção da ideia de legado resulta como uma

espécie de válvula de escape para os possíveis conflitos resultantes das decisões tomadas,

legitimando um sem número de ações que são absorvidas e integradas no processo de

construção, montagem e realização do megaevento.

O termo legado, vinculado especificamente à realização dos Jogos Olímpicos,

apareceu pela primeira vez na candidatura da cidade de Melbourne (Austrália) em

1956.Naquela ocasião, o termo limitava-se à questão do uso pós-evento das estruturas

desportivas criadas especialmente para a sua realização363.

A conotação mais complexa da palavra, a afirmação da noção de legado positivo

– associada a um potencial de melhoria da qualidade de vida nas cidades sede dos Jogos –

360 BOURDIN, Alain, O urbanismo depois da crise. Lisboa: Livros Horizonte, 2011, p. 23.

361 CROMPTON, John L, Economic impact analysis of sports facilities and events: Eleven sources of misapplication. Texas: A&M University, Journal of Sports Management, n. 9, 1995, p. 14-35.

362 ROCHE, Maurice, Mega-events and modernity: Olympics and expos in the growth of global culture. New York: Routledge, 2000.

363 LEOPKEY, Becca, The Historical Evolution of Olympic Games Legacy . Ottawa: University of Ottawa, 2009, p. 08.

141

só se tornou um requisito presente e obrigatório nas candidaturas a partir do ano 2002,

em sessão realizada no México. Nesta data, inscreveu-se na Carta Olímpica (2002) o

compromisso do Comité Olímpico Internacional (COI):

“para promover um legado positivo dos Jogos Olímpicos para a cidade-sede e do país anfitrião, incluindo um controle razoável do tamanho e custo dos Jogos Olímpicos, e incentivar os Comitês Organizadores dos Jogos Olímpicos, as autoridades públicas no país anfitrião e as pessoas ou organizações que pertencem ao Movimento Olímpico a agir em conformidade”364.

O facto de os organizadores estarem cada vez mais atentos à produção de um

“legado positivo” para a cidade que recebe o evento365, dá-se por conta da necessidade de

promover e reproduzir a ideia de que sediar um megaevento é, necessariamente, uma ação

com resultados 100% positivos. A difusão dessa ideia auxilia a que os decisores possam

legitimar de forma facilitada as suas ações e os gastos de recursos das mais variadas fontes,

sobretudo aqueles provenientes dos cofres públicos. É como se toda a decisão já nascesse sob

o que supõe ser um amplo consenso, assente numa ideia de difícil definição366.

A reflexão sobre o que é e o que será o legado de um megaevento como os

Jogos Olímpicos envolve desde questões bastante práticas, como o destino das

instalações ou a utilização de novas mobilidades pós-Jogos, mas também abrange

questões imateriais, associadas à construção de uma imagem específica de cidade

sede, olímpica, que transcende a herança concreta do evento367. Sucede que o legado

pode também ser negativo. Neste sentido, ele pode reportar ao que Nuno Portas

identifica como as possíveis “metástases” oriundas dos Projetos Urbanos, ou seja,

resultados imprevistos e que comportam consequências contraproducentes negativas

no contexto de realização do megaevento. Exemplos dessas “metástases”, são entre

364 Carta Olímpica (2002), Regra 2.13 apud POUND, Richard W.; CHAIRMAN, Q.C., Olympic Games Study Commission Report to the 115th IOC Session. Prague: IOC, 2003.

365 Como confirmado em artigo de Jacques Rogge, Presidente do COI no Jornal O GLOBO, Opinião p.7 de 11 de Fevereiro de 2010: “Mas o COI e as cidades anfitriãs ao redor do mundo também vem se dedicando nos últimos anos ao legado económico e ambiental dos Jogos. A crescente atenção ao planejamento do legado é dirigida pelas realidades económicas e ambientais. [...] Planejamento de legado, em termos gerais, é atualmente parte integral da organização de qualquer olimpíada. Cidades interessadas em sediar os Jogos de Verão ou de Inverno têm de apresentar um plano compreensivo de legados em suas candidaturas”.

366 No entanto, há muitas vezes movimentações populares contrárias às decisões atreladas a subjacentes à realização de megaeventos. No entanto é sempre muito difícil a atuação crítica contrária às ações definidas em contrato e com prazo estabelecido para a realização dos mesmos.

367 RUBIO, Kátia, Os jogos olímpicos e a transformação das cidades: os custos sociais de um megaevento. Barcelona: Universidad de Barcelona, Revista electrónica de Geografia y Ciencias Sociales, v. IX, n. 194 (85), 2005.

142

outras: dívidas, má utilização dos equipamentos após o evento, e fundamentalmente

desconexões entre o que se realizou e as reais necessidades da cidade sede.

Tendo em conta o anterior enunciado, a definição proposta por Gratton e Preuss

(2008) parece mais consentânea com a complexidade do tema; segundo os autores, o legado

estrutura-se em três dimensões: (i) a dimensão do planeamento considerando as ações e

consequências das estruturas planeadas e não planeadas; (ii) a dimensão conotativa sobre as

consequências das ações e decisões, definindo estruturas positivas e negativas; e (iii) a dimensão

relativa a natureza as ações e decisões definido as estruturas quantificáveis como intangíveis e

tangíveis. A análise dos autores sobre o tema do legado em suas diferentes dimensões resulta

na representação de um esquema que assume a forma de um “cubo do legado”. Este cubo é,

como esquema reproduzido a seguir, repartido em oito outros cubos numa perspetiva de

análise holística para identificação do legado. No entanto, usualmente, apenas as áreas que

cruzam as informações entre o que é planeado e seus resultados positivos tangíveis são

equacionadas à partida nas candidaturas e nos processos pré realização dos eventos, assim

como nas avaliações tendenciosas depois da realização do mesmo368.

Figura 27. Cubo do Legado.

368 GRATTON, Chris; PREUSS, Holger, Maximizing Olympic Impacts by Building Up Legacies. in THE INTERNATIONAL JOURNAL OF THE HISTORY OF SPORT, 25:14, 1922-1938, 2008, p. 1924.

143

No entanto, a condição de incerteza coloca também em jogo o que não foi planeado

e o que é intangível.369 Nessa conjuntura de grande complexidade e de várias combinações

possíveis para a mensuração do legado370 é que se conclui que suas dimensões podem

surpreender tanto positivamente quanto podem se constituir como “metástases” negativas.

Ainda assim, a ideia de legado tem sido cada vez mais utilizada amplamente

como panaceia para o mais variado tipo de questões desde o sucesso da realização dos

Jogos em Barcelona no ano de 1992. A partir de então, a ideia de legado vem

gradativamente aumentando a sua importância dentro dos projetos de megaeventos,

embora no contrato estabelecido entre o COI e a cidade do Rio de Janeiro, apenas o

“legado cultural” apareça de forma explícita no documento371.

Não obstante, há claramente um movimento de ênfase no que se convencionou

chamar “legado urbano”. Ações vinculadas ao desenvolvimento das cidades sede, com

foco estabelecido sempre na previsão positiva daquilo que é planeado para o evento,

ignorando de certa forma, na maioria das vezes, o que pode ser antecipado de impacto

negativo. O artigo do Presidente do COI, Jacques Rogge, evidência essa ênfase dada à

construção de um legado positivo:

“O COI incentiva ativamente cada cidade que se candidata para sediar as Olimpíadas a refletir desde o início sobre como poderá utilizar o evento para proporcionar benefícios positivos e duradouros para [a] sua área e [seus] cidadãos. Este tipo de planejamento começa em geral dez anos antes do início dos Jogos Olímpicos”372.

É possível concluir que a ideia de legado é utilizada, ou mesmo manipulada, nas

diferentes dimensões de Gratton e Preuss, que demonstram seus graus de planeamento,

quantificação e condição positiva ou não, como forma de convencimento das

possibilidades inerentes à oportunidade de realização de um megaevento como os Jogos

369 Segundo Kaplanidou e Karadkis, o legado intangível se constitui com aquele que resulta de exemplos como a regeneração urbana, o aumento da reputação internacional, a produção de valores culturais e experiencias emocionais. (KAPLANIDOU; KARADKIS, 2010).

370 POYNTER, Gavin, From Beijing to Bow Bells: measuring teh Olympics effect. London: University of East London, 2006, p.19.

371 Item 28, página 18, do contrato estabelecido com o Rio de Janeiro em versão traduzida. Disponível na WWW: <URL http://www.cidadeolimpica.com.br> [Consult. 2014-11-03].

372 ROGGE, Jacques, “A Chave para o legado dos Jogos Olímpicos” in JORNAL O GLOBO, Opinião, 23 de Novembro de 2012.

144

Olímpicos. No entanto não se pode ignorar a existência dessas dimensões que envolvem

também aquelas dimensões desprezadas na construção da retórica da panaceia do legado:

o não planeado, o intangível e, sobretudo, a perspetiva de consequências negativas

resultantes tanto do que foi planeado para o evento, quanto do que não era espectável.

Ainda na perspetiva conclusiva do item anterior e como já foi referido, é a partir da

experiência de Barcelona que se estabelece a tendência para associar a realização de

megaeventos como os Jogos Olímpicos com metas de desenvolvimento estabelecidas ao

nível de um planeamento estratégico mais alargado. Nessa ótica, o legado deve ser

consonante com os objetivos estabelecidos por uma estratégia pré definida. Assim,

megaeventos como os Jogos Olímpicos tendem a constituir-se como uma espécie de

catalisador de decisões estratégicas tomadas a priori. A partir do sucesso obtido por

Barcelona, o que se viu foi a criação uma aura inquestionável em torno desta ideia de

legado, que traz consigo a crença na possibilidade de transformação das cidades sede a

partir do aproveitamento da oportunidade de um amplo conjunto de intervenções

urbanísticas voltadas para os Jogos. Contudo, e embora as metas de desenvolvimento sejam

projetadas como parte de uma estratégia global e positiva, a concretização das mesmas

aparece comumente mais voltada para as lógicas da realização exclusiva do evento e dos

interesses de atores específicos envolvidos na realização do mesmo. Neste âmbito, ganham

destaque atores afetos ao setor privado (exemplo, grandes financiadores, construtoras, entre

outros, os comités de organização e os partidos políticos que estão no poder.

É possível desenvolver uma metáfora desportiva, relacionando o “poder mágico” do

legado do megaevento (ou atribuído a esse legado) com o comportamento das substâncias

utilizadas no doping desportivo – prática proibida mas amplamente disseminada, não raras

vezes sob orientação dos responsáveis pela preparação de alto nível, como forma de

aproveitar a um máximo falseado, as capacidades do corpo na disputa desportiva.

145

No desporto, esse processo dá-se pelo consumo de substâncias químicas

utilizadas para melhorar artificialmente o desempenho competitivo do atleta. No caso das

cidades sede de megaeventos, existe uma espécie de “doping urbano”. A cidade sede, em

competição global com outras cidades, recebe o megaevento como uma espécie de

“substância mágica” que permite acelerar e ampliar a concretização de todos os processos

urbanos previstos e ainda não antecipados pelos planos, podendo também ajudar a

promover outras novas possibilidades, tidas como ainda mais competitivas.

A história dos Jogos, até à IIª Grande Guerra, deixou-nos poucos vestígios dessa

possibilidade de “legado urbano” na paisagem urbana das cidades sede. A seguir ao

conflito, o olimpismo ganhou força e despertou maior interesse desportivo e,

principalmente, governamental. No terreno de jogo, a polarização entre EUA e URSS

reproduzindo as tensões da Guerra Fria, demonstravam o foco de interesses dos governos.

Os Jogos Olímpicos em Helsínquia (1952) foram os precursores da aposta de

associação entre os projetos habitacionais vinculados aos planos da cidade e as necessidades

do evento373. A partir da edição de Melbourne (em 1956), primeira no hemisfério sul do

planeta, iniciou-se um modelo que incorporou na realização dos Jogos, além da aposta na

habitação, os investimentos realizados em transportes e nas infraestruturas urbanas em

geral, no entanto, ainda sem a perspetiva da ideia de legado374. Roma (1906) representou

bem a atenção conferida a este modelo de intervenção mais ambiciosa, extrapolando os

limites do evento375, realizando a sua vila olímpica dentro da lógica clara de plano urbano de

expansão. Foi a partir dessa experiência, que se tornou possível observar a gradativa

tendência para se estreitar os laços entre a realização do evento e a execução do

planeamento urbano local. Mais tarde, em Tóquio (1964), essa perspetiva era reforçada.

Segundo o Official Reporto f the Organizing Committee dos Jogos de Tóquio,

“uma eficiente conclusão de um empreendimento com a escala dos Jogos Olímpicos requereria não apenas adequadas organizações esportivas e de

373 Na vila olímpica de Helsínquia, as edificações construídas para acomodar 7.500 participantes foram distribuídas em sete localidades atendendo assim os planos habitacionais da municipalidade (MIYAMOTO, 2006, p. 153).

374 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 30.

375 MIYAMOTO, James S., Os grandes eventos esportivos e a requailifcação urbana. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, PROURB. Tese de Doutoramento, 2006, p. 163.

146

acomodação, mas igualmente satisfatórios níveis das estradas, facilidades de transporte e condições ambientais das intalações e nos seus entornos. [...] A necessidade de preparar-se para os XVIIIº Jogos Olímpicos deu um ímpeto ao Plano de Desenvolvimento de 10 anos já proposto, e aquelas construções que pudessem ter direta utilidade para sediar os Jogos foram consideradas prioritárias, o que inclui não apenas as instalações recreacionais ou esportivas, mas envolve também estradas, portos, serviços hidráulicos em uma escala considerável da cidade e do seu entorno”376.

Além da ampliação da rede viária, foi realizada de forma astuciosa, e depois de

grande negociação, a recuperação de áreas que desde a IIª guerra estava sob utilização das

Forças Armadas dos EUA entre elas a conhecida como “US Forces Camp Drake”, em Asaka,

na Província de Saitama e a “Washington Heights”, Shibuya, Tóquio377.

Quatro anos mais tarde, na Cidade do México (1968), primeira e única cidade da

América Latina a receber os Jogos, duas vilas olímpicas inauguravam um modelo de

construção em altura nos Jogos, com edifícios de dez andares. Estas foram construídas sob

a ótica de integração do tecido urbano da periferia da cidade, numa distância aproximada de

15 km da zona central da Cidade do México378.

A partir dos anos 70 do século XX, influenciada pela crítica que se estabelecia em

relação ao urbanismo de expansão e à opção de mudança por substituição – que

resultavam no abandono dos centros – as propostas vinculadas aos eventos passaram a

aproximar-se dessas áreas centrais. James Miyamoto, Ph.D., professor da Universidade

Federal do Rio de Janeiro e especialista no tema olímpico, considera que a partir deste

momento, se inicia uma nova fase para os Jogos Olímpicos que se estabelece pela busca

por uma dimensão qualitativa através de equipamentos desportivos de alta qualidade

arquitetónica, da diversidade de usos, e de uma nova oferta consistente de transporte

urbano com novas estradas e metropolitano379. Os planos associados à realização dos

Jogos Olímpicos de Munique (1972) e de Montreal (1976) são exemplos desse

movimento, se estabelecendo a 5 km e 10 km de distância do centro das cidades

376 Organizing Committee of the Olympic Games. The Games of the XVIII Olympiad Tokyo, 1964 – The Official Report of the Organizing Committee. 1964, p. 46 apud MIYAMOTO, 2006, p. 172-173.

377 Idem, ibidem, p. 176.

378 Idem, ibidem, p. 189.

379 Idem, ibidem, p. 192.

147

respetivamente. No entanto ambos ficaram marcados por outros temas: o primeiro pelo

atentado terrorista que vitimou onze membros da equipe de Israel e o segundo pelo

desastre financeiro resultante de um custo quase cinco vezes maior do que o previsto380.

Moscovo (1980) foi, nesse processo, a exceção à anterior tendência. No auge da

“Guerra Fria” e sofrendo o boicote dos EUA e nações aliadas, teve como foco

demonstrar as capacidades da organização do governo comunista. Embora tenha sido

seguida a linha de investimentos em infraestruturas como novas estradas, linhas de

comunicação e facilidades, em consonância com o “Plano Diretor para Desenvolvimento

e Reconstrução de Moscovo” como indicado na publicação específica sobre essa edição

dos Jogos: “Moscou-80 –Games of the XXII Olympiad”, reproduziu-se especialmente na

construção de sua Vila olímpica o modelo urbano “rígido e de austeridade quase

ideológica [...]. Uma sintomática expressão da crise do modernismo”381.

Com os Jogos subsequentes, em Los Angeles (1984), o modelo de realização dos Jogos

transformou-se, assumindo claramente uma estratégia de mercado associada à realização do

evento. Pela primeira vez, os Jogos deixavam de ser responsabilidade dos governos e passavam

para a responsabilidade de um Comité Olímpico Local (COL). Na estreia desse novo modelo, o

impacto urbanístico foi pequeno na medida em que foram utilizadas instalações já existentes,

contribuindo para que a ideia de legado ainda não se estabelecesse.

A partir de Seul (1988) e especialmente de Barcelona (1992) é que a ideia de

legado passaria a ser gradativamente utilizada como forma de legitimação das ações

necessárias à realização do evento. Segundo Miquel de Moragas,

“As operações olímpicas de Seul, 1988 e Barcelona, 1992, foram caracterizadas pela existência de grande planos de renovação urbana, com um duplo conteúdo: de um lado, o desenvolvimento económico e urbano da cidade, claramente focado no encorajamento de níveis de internacionalização

380 Organizing Committee of the Olympic Games. The Games of the XVIII Olympiad Tokyo, 1964 – The Official Report of the Organizing Committee. 1964, p. 46 apud MIYAMOTO, 2006, p. 199-200.

381 MIYAMOTO, James S., Os grandes eventos esportivos e a requailifcação urbana. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, PROURB. Tese de Doutoramento, 2006, p. 217.

148

urbana e globalização, e de outro lado, a recuperação de elementos urbanos até então marginalizados”382.

As duas experiências investiram em Projetos Urbanos que se constituíram como

fundamentais na evolução dos quadros urbanos locais, projetando para o mundo uma nova

imagem das respetivas cidades. Embora as duas cidades tenham apresentado inovações

importantes dentro dessa visão de legado, foi Barcelona (1992) a que melhor soube

capitalizar, de forma mais intensa, o legado obtido, tornando-se a mais bem-sucedida

experiência olímpica e estabelecendo um novo patamar de definição de “legado urbano”.

No entanto é importante destacar que Barcelona já desenvolvia à época da

candidatura à realização dos Jogos um sistema de planeamento urbano claro com foco no

Projeto Urbano – dedicando especial atenção à pequena escala, intervencionada dentro de

uma coerência de conjunto. Ou seja, atuando sobre um “atleta” bem preparado, com

orientação e com um bom planeamento, a realização dos Jogos atuou como catalisador

do desenvolvimento da cidade, permitindo obter, através do “doping urbano”, resultados

consistentes, maximizados e reconhecidamente positivos. Desde então, a este nível,

nenhuma outra edição dos Jogos Olímpicos foi capaz de superar a experiência Catalã.

Os Jogos realizados na cidade norte-americana de Atlanta (1996), ficaram

marcados por consolidar e levar ao limite o conceito de evento realizado pela iniciativa

privada383. O Governo local decidiu à partida que “nem um único centavo dos fundos dos

contribuintes ou da cidade seria gasto nos Jogos. Todos os custos [...] seriam cobertos pelo

programa de marketing dos Jogos”384. Ficaram conhecidos como os “Jogos Coca-Cola”, uma

das principais patrocinadoras do evento, e que tem a sua sede na própria cidade.

A ação radical de aproveitamento imediato das oportunidades de “fazer

dinheiro” através do citado “programa de marketing” manchou a realização dos Jogos. A

Câmara municipal “parecia resolvida a agarrar a oportunidade olímpica para ganhar cada

centavo possível, sem se preocupar com as consequências para a imagem da cidade” e os

382 MORAGAS, Miquel de, Olympic Villages: Hundred Years of Urban Planning and Shared Experiences. Lausanne: International Olympic Committee, 1996, p. 37.

383 PAYNE, Michael. A virada olímpica, como os jogos olímpicos tornaram-se a marca mais valorizada no mundo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/COB, 2006, p. 188.

384 Idem, ibidem, p. 188.

149

médias, atingidos pelo caos da organização do evento, logo condenaram a edição dos

Jogos385. Com isso, não foi possível obter o legado do evento como fizera Barcelona

quatro anos antes. Após os Jogos, Dick Yarborough, membro do Comité Organizador

dos Jogos de Atlanta afirmou após os Jogos que: “a cidade não conseguiu fazer frente às

suas pretensões e mostrou isso ao mundo [...] A administração da cidade de Atlanta

acabou com os Jogos – pura e simplesmente. O que poderia ter sido uma oportunidade

de mostrar ao mundo que éramos a grande cidade que afirmávamos ser foi, em vez disso,

uma exibição embaraçosa”386 voltada para o negócio, sem se preocupar com as

possibilidades de retorno para a cidade. Segundo Matthew Burbank, somente 10% dos

recursos utilizados no evento foram aplicados “nos entornos olímpicos mais pobres”387.

Quatro anos mais tarde, Sydney (Austrália) foi sede dos Jogos do Ano 2000 e nele

os gastos públicos voltaram a constituir-se como a mais importante contribuição para a

realização do evento388. Pressionado pelas criticas à edição anterior, Sydney seguiu à risca os

parâmetros delineados pelo Comité Olímpico Internacional, dando especial ênfase às

questões ambientais. Embora seja uma experiência positiva, talvez o relativo isolamento

geográfico de Sydney em relação às grandes forças do mercado global não tenha permitido

gozar da mesma exposição mediática e reconhecimento do legado de Barcelona.

Se o “doping urbano” em Barcelona resultou porque encontrou um sistema de

planeamento consistente, a experiência de Atenas (2004) é reveladora do fenómeno oposto.

Atenas foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2004, num período em que

a Grécia vivia um estado de otimismo muito grande. O país havia acabado de adotar o

Euro como moeda (em 2001) e pretendia divulgar aos olhos do mundo a condição positiva

385 PAYNE, Michael. A virada olímpica, como os jogos olímpicos tornaram-se a marca mais valorizada no mundo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/COB, 2006, p. 183-184.

Michael Payne destaca as notícias dos Jornais da época: “Medalha de ouro para o caos” (Sport Business Journal); “Os Jogos da ganância” (Los Angeles Time); “A ganância obscurece a fé nos Jogos, no mercado de pulgas olímpico. Atlanta prometeu os maiores Jogos de todos os tempos, mas nunca mencionou que também seriam os mais deselegantes” (Atlanta Constitution); “A ridicularizada Atlanta [foi] trazida à realidade” (The Times); “Os ideais [foram] deixados para trás na corrida do ouro de Atlanta... A cidade entrará para a história dos Jogos como aquela que fracassou na produção de uma estratégia sensata” (The Independent). (Idem, ibidem, p. 205).

386 Idem, ibidem, p. 189.

387 BURBANK, Matthew J.; ANDRANOVICH, Gregory; HEYING Charles, Olympic Dreams – The Impact of Mega-Events on Local Politics. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 2001. apud MIYAMOTO, 2006, p. 234.

388 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 34.

150

em que se encontrava, sustentada numa imagem de crescimento e “Modernidade”. Assim

como Barcelona, Atenas pretendeu fazer dos Jogos Olímpicos o elemento de catálise do

desenvolvimento e do marketing urbano. No entanto, a oportunidade de realização dos

Jogos Olímpicos não encontrou uma estrutura de planeamento suficientemente consistente.

De facto, ante a oportunidade, o desejado efeito catalítico deu-se apenas ao nível dos

projetos relacionados aos temas dos transportes e mobilidade urbana que se apresentavam

muito vinculados à realização do evento389.

Segundo a Ph.D. do departamento de planeamento e estudos urbanos do

Massachusetts Institute of Technology (MIT), Eva Kassens-dor, que se aprofundou no caso grego, a

fragilidade do sistema de planeamento local permitiu no entanto, que o projeto tivesse grande

influência direta do COI, alterando-se decisões nos planos originais (principalmente quanto às

questões associadas aos transportes), resultando em ações mais voltadas para a realização do

evento do que para as necessidades efetivas da cidade390. O facto da cidade ter “perdido” três

importantes anos para a preparação do evento e planeamento do pós-Jogos, postergando os

trabalhos, implicou no aumento da urgência e dos seus défices e isso gerou um ritmo

frenético de ação, bem como a maior presença e pressão do COI para garantir a realização do

evento segundo o padrão exigido.

A promessa do Governo de melhorias urbanas, principalmente quanto ao

transporte, não se efetivou, embora as obras tenhas sido realizadas sob o efeito da catálise

olímpica. O evento alterou planos pré-existentes e, para agravar a situação, grande parte

dos equipamentos construídos especificamente para os Jogos Olímpicos cedo ficaram

subutilizados e, alguns, totalmente abandonados. A oportunidade do evento e os recursos

investidos na sua concretização, justificados com a ideia de legado que alavancaria um

novo futuro para a cidade e para o próprio país, foram aparentemente desperdiçados,

somando-se a grave crise económica que atingiria a Grécia. Quanto às possibilidades pós-

Jogos a Vice-Ministra de Cultura da Grécia, em Março de 2005, Fani Petralia declarou

389 A pós os jogos, Atenas possuía: um novo aeroporto, mais de 100km de novas estradas, 90km de estradas reformadas, transporte adaptado a portadores de necessidades especiais, 9,6km de novas linhas de metro, 23,6km de novos elétricos, 32km de comboios suburbanos, além de estacionamentos, estações reformuladas e um novo sistema e centro de gestão do transporte e do tráfego. (ATHOC - Athens Organizing Committe for Olympic Games. Athens 2004 Info Kit - Infrastructure and Transportation. Athens: ATHOC, 2002 apud KASSENS-DOR, 2012, p. 67.

390 KASSENS-DOR, Eva. Planning Olympic Legacies - Transport dreams and urban realities. New York: Routledge, 2012, p. 83.

151

que não havia um projeto pós-olímpico e que “muitas instalações foram desenvolvidas

sem saber o que seria feito depois dos Jogos”391. A afirmação de Spyros Kapralos,

presidente do Comité Olímpico Local, à Reuters confirma a sensação emergente de se ter

passado por uma oportunidade perdida:

“É claro que perdemos nossa chance. […] O sucesso da Olimpíada de 2004 acabou quando as luzes da cerimônia de encerramento se apagaram, pois nosso país não tinha um plano para capitalizar esse sucesso”392.

Figura 28. Destaque para a falta de planeamento pós-Jogos em Atenas resultando no abandono de equipamentos e espaços utilizados para o evento.

391 Jornal O GLOBO, 13 de Março de 2005, p.45.

392 “Do céu ao inferno: em oito anos, Grécia vira anti-exemplo de legado olímpico”. (Reuters) Disponível na WWW:<URL.http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/redacao/2012/02/07/do-ceu-ao-inferno-em-oitoanos- grecia-vira-antiexemplo-de-legado-olimpico.htm> [Consult. 2014-07-10].

152

A partir da análise das diversas experiências olímpicas até aqui expostas, é

possível afirmar que o “doping urbano” proporcionado pelo megaevento ao se deparar

com um sistema de planeamento frágil e desestruturado, há maior possibilidade de se

obter efeitos que resultem na perda de oportunidades e, até mesmo, em prejuízos àquilo

que são as possibilidades de desenvolvimento dos contextos locais. Pode até constatar-se

um primeiro momento de “glória” mas, no entanto, os possíveis erros decisórios podem

resultar em risco à “saúde urbana” e à exclusão do processo competitivo global de forma

abrupta – tal como poderia acontecer com um atleta que utilizasse o doping como forma

de melhorar artificialmente os seus resultados, prejudicando e comprometendo a sua

saúde e a verdade desportiva.

Depois dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, seguiram-se aqueles realizados

em Pequim, em 2008. Pode dizer-se que foram muito peculiares e é factível estabelecer um

paralelo entre estes e aqueles realizados em Moscovo, em 1980. Os Jogos na China foram

os mais caros de sempre393. O foco principal foi apresentar ao mundo um país que liderava

e impulsionava a economia global. A busca incessante pela espetacularidade e pela perfeição

foi muito bem representada pelo ocorrido na cerimónia de abertura: o diretor musical da

mesma admitiu que, nessa ocasião, “uma menina que apareceu cantando durante o evento

[havia sido dobrada] por outra menina, que não foi considerada bonita o bastante para se

apresentar no palco”394. Na experiência de Pequim, o foco foi todo na realização do evento.

O legado que ficou, embora possa ser considerado relativamente positivo no

desenvolvimento económico local e em setores como os média e telecomunicações, não foi

suficiente para apagar a marca dos prejuízos associados aos grandes equipamentos que

viriam a estar subutilizados no pós-Jogos, e à dificuldade de recuperar o mais de 34 bilhões

de dólares investidos no evento395.

Londres, mais recentemente, empenhou-se profundamente na realização dos

Jogos Olímpicos de 2012, na perspetiva de garantir um legado positivo para a cidade.

393 PAIVA, Ellayne Kelly Gama de, A cidade para o cidadão - o legado urbano dos jogos olímpicos. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Tese de Doutoramento, 2013, p. 170.

394 “Menina que cantou na abertura da Olimpíada foi dublada” (BBC Brasil). Disponível na WWW: <URL.http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/08/080812_cantorachinesaplayback _fp.shtml> [Consult. 2014-07-10].

395 PAIVA, Ellayne Kelly Gama de, op. cit., 2013, p. 170.

153

Mais uma vez tendo como referência os Jogos de Barcelona, foi utilizado como base para

as definições do Plano Olímpico que se concentrou numa área pobre a leste da cidade de

Londres, o Plano Estratégico, definido a partir dos estudos de Richard Rogers e

desenvolvido em 1998. A realização dos Jogos foi usada como oportunidade para

revitalizar talvez a área mais degradada da cidade: o East End. Durante dois anos foram

realizadas todo o tipo de ações de planeamento, relacionando e integrando, numa visão

de conjunto, as atividades previstas para a realização do evento, envoltas numa aura de

sustentabilidade em diversos âmbitos e preocupação com o erário público. Sendo ainda

muito recente, a avaliação da efetivação do legado destes Jogos pede talvez um maior

distanciamento temporal, que autorize a produção de conclusões mais estruturadas. No

entanto, a previsão e a preocupação com o planeamento e o compromisso com cada uma

das ações prevista, indica que é possível imaginar que Londres se tornará ainda um novo

marco na realização deste tipo de megaevento.

Na história das edições mais contemporâneas dos Jogos Olímpicos, sumarizada

nas páginas anteriores, observa-se que a ideia do legado enquanto “palavra-contentor” é

capaz de abarcar os mais variados e complexos efeitos (negativos e positivos) resultantes

das ações promovidas no âmbito da preparação e realização dos megaeventos. O

reconhecimento da ambivalência e dos riscos inerentes ao de “doping urbano” não resulta

necessariamente na conclusão de que os megaeventos são, necessariamente, danosos aos

processos de planeamento das cidades. No entanto, o reconhecimento dessa condição de

incerteza parede ser fundamental para o melhor aproveitamento da oportunidade de

realização de um megaevento como os Jogos Olímpicos.

Aliás, a esperança de resultados positivos insinuada pela interpretação mais

comum da ideia de legado, é amplamente utilizada pelos decisores políticos como um

mecanismo de auto-legitimação das próprias decisões e ações correspondentes. Um

mecanismo útil face à pressão imposta pela necessidade de esse legado ser, de facto,

positivo e pela urgência e tempo reduzido, adstrito ao aproveitamento das oportunidades.

A próxima edição dos Jogos Olímpicos é prevista para acontecer no Rio de

Janeiro, em 2016. A esse propósito, vale a pena atender a algumas das afirmações

154

produzidas, já no decorrer dos preparativos para os Jogos, por Eduardo Paes,

Prefeito da cidade396, em entrevistas a relevantes órgãos de comunicação social. Elas

ilustram bem o potencial “contentor” e legitimador da ideia de legado, conforme a

vimos procurando desconstruir. Em conversa com a BBC Brasil em Março de 2012,

Eduardo Paes afirmava:

“O legado é a grande questão das Olimpíadas. A cidade vai mudar muito e a maioria das coisas vai acontecer porque temos as Olimpíadas. Eu uso as Olimpíadas para tudo agora. [...] É assim: você precisa de uma meta, uma data, um desafio. É como o atleta, que treina muito e sabe que naquele dia ele vai competir. As Olimpíadas são assim, é como um desafio para a cidade. Antes de ter os jogos, poderíamos fazer tudo, mas não precisávamos fazer. Agora fazemos porque teremos os jogos, então é uma desculpa

fantástica” .

Mais tarde, em nova entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em

Outubro de 2012, o Prefeito do Rio de Janeiro declarava:

“Esse negócio de Olimpíada é sensacional para você utilizar como desculpa para tudo. Então tudo o que eu tenho que fazer, eu vou fazer para a Olimpíada. Isso é para a Olimpíada... Tem coisa que tem a ver com a Olimpíada, tem coisa que não tem nada a ver, mas eu uso”398.

“Uma coisa são as justificações e outras são as desculpas. Uma justificação constrói um sistema de argumentações mediante um processo que se pretende rigoroso. Eram desta ordem os raciocínios [...] das ideologias do passado. Uma desculpa é uma coisa mais modesta, um artefacto caseiro da estratégia política [...] apenas manejos oportunistas da atenção que não exigem o esforço teórico das grandes justificações ideológicas” 399.

Dadas as declarações do prefeito carioca, vale ressaltar a posição de Innerarity

quanto a esta perspetiva que difere a “justificação” das “desculpas”. A primeira é

construída através de um sistema de argumentação que se dá mediante a um processo que

se pretende baseado em algum rigor – “Eram desta ordem os raciocínios [...] das

396 O Prefeito da cidade é o chefe do poder executivo municipal no Brasil, equivale ao Presidente de Câmara em Portugal.

397 Disponível na WWW:<URLhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/03/120308_eduardo_ paes_entrevista_jc.shtml> [Consult. 2014-07-10].

398 Disponível na WWW: <URL. http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/1168849-todo-governante-tem-inveja-de-mim-ate-a-dilma-diz-eduardo-paes-veja-entrevista.shtml> [Consult. 2014-07-10].

399 INNERARITY, Daniel, A sociedade invisível. Lisboa: Teorema, 2004, p. 59-60.

155

ideologias do passado”400. Já a segunda, a desculpa, “é uma coisa mais modesta, um

artefacto caseiro da estratégia política [...] apenas manejos oportunistas da atenção que

não exigem o esforço teórico das grandes justificações ideológicas” 401.

A ideia de legado acaba por se consolidar como um mecanismo impositivo de

legitimação que, desempenhando um papel importante na crença da redução da incerteza,

e na produção/conquista de consensos quase que instantâneos, muito difíceis de

contestar. Com isso, a tendência a valorizar a componente positiva da ideia de legado

estabelecendo as bases necessárias aos decisores que atuam pressionados pela urgência

das oportunidades e sob concorrência global, obscurece o mecanismo inerente à mesma

tendência que permite a imposição das decisões sem nenhum tipo de reflexão e discussão

acerca dos resultados das mesmas no desenvolvimento da cidade.

***

Definem-se assim mais uma série de “filtros” agora adaptáveis a “objetiva” da

incerteza, vinculados principalmente a questão do planeamento estratégico e dos projetos

urbanos segundo diferentes experiências escolhidas para esta investigação pela

aproximação cm a experiência carioca. O Rio de Janeiro como palimpsesto de

experiências diversas, observado segundo estes “filtros”, permite identificar tendências

dos processos estabelecido, fazendo emergir questões que demonstram a sua

complexidade, como será visto nos quarto e quinto capítulos, que seguem.

400 INNERARITY, Daniel, A sociedade invisível. Lisboa: Teorema, 2004, p. 59-60.

401 Idem, ibidem, p. 59-60.

156

157

II

O RIO DE JANEIRO COMO ESTUDO DE CASO

“O futuro não é um o lugar para onde estamos indo, mas sim um lugar que estamos criando. Os caminhos para isso não são encontrados, são sim construídos, e a atividade de fazê-los muda tanto quem o constrói quanto o lugar da chegada” 402.

A primeira década do século XXI no Brasil foi de prosperidade económica alta,

de um ciclo de crescimento sólido e consequentemente de construção de grandes

oportunidades. Porém, tal condição não é necessariamente sinónimo de reflexos efetivos

nos caminhos escolhidos para o desenvolvimento das cidades. Mesmo havendo

conjunturas positivas, o resultado dessas oportunidades para as cidades não são

garantidos e dependem das decisões tomadas para a construção incerta do amanhã.

O Rio de Janeiro é uma das 20 cidades globais segundo Saskia Sassen403. A

segunda maior cidade do país foi, desde sempre, reflexo do momento da nação. No

entanto, e não obstante ao fato de haver inúmeros progressos na sua condição, o quadro

ainda é bastante complexo. O Rio de Janeiro alargado, com quase 12 milhões

habitantes404, é uma cidade metrópole de tecido urbano praticamente contínuo, onde

vários municípios se confundem entre si territorialmente e nos diversos quadros de

402 John Schaar (teórico político da Universidade da Califórnia). (tradução livre do autor). Disponível na WWW: <URL: http://www.ithaca.edu/president_emerita/speeches/commence04.php> [Consult. 2012-08-17].

403 Disponível na WWW: <URL: http://www.urban-age.net/0_downloads/archive/_SA/ 02_NewsPaper_ Essay_Sassen_por.pdf> [Consult. 2012-02-08].

404 Segundo o IBGE, em 2014 a Região Metropolitana do Rio de Janeiro possuía 11.973.505. Disponível na WWW: <URL: http://www.ibge.org.br > [Consult. 2015-04-30].

158

fragmentação, de fragilidade e de interdependência social, política e ambiental. A taxa de

urbanização da metrópole é a mais alta do país – 99,3%405 – e atualmente apresenta-se

como uma cidade inserida em um mix de desigualdades e prosperidade.

O contínuo crescimento urbano desenfreado carioca, sobretudo desde meados

do século XX, se deu com um défice de suporte de estrutura de planeamento consistente,

contínua e permanentemente atualizada. Como resultado dessa condição o que se viu foi

a construção de uma cidade que se caracteriza como um palimpsesto de experiências,

consoante os especialistas envolvidos, interesses variados e oportunidades. Muitas destas

experiências foram desenvolvidas de forma fragmentada, atuando usualmente de forma

setorial, com linhas mestras que ora variam profundamente em um curto período, ora

subsistem, ficando em desacordo com o tempo em que se efetivam.

O Rio de Janeiro na sua história procurou de forma permanente a transformação,

especialmente a partir da proclamação da República e, ainda mais, quando da intensificação

dos ideais da Modernidade. Esta vertente se constrói especialmente após a perda da

condição de capital da República até os dias de hoje. Desde então, a cidade desejou a

mudança e o progresso através da ação do homem, se numa fase anterior à tentativa era de

abandonar seu passado colonial e transformar-se numa “cidade europeia”, com constituição

e afirmação da sua própria imagem e condição de expressão da nação tanto no contexto

nacional quanto internacional. A condição atual da cidade, em pleno século XXI, mantém

esta perspetiva, fazendo emergir questões que são foco desta investigação.

Ao panorama geral positivo para o país e para a cidade na primeira década do

século XXI, somou-se um quadro de urgência promovido pelas oportunidades que

surgiram com as novas dinâmicas positivas, proporcionadas sobretudo pela realização

dos Jogos Olímpicos de 2016, que traz atrelado a promessa de uma série de

transformações urbanas associadas a um possível legado olímpico. O Rio, quase 50

anos após a perda da condição de capital, tornou-se novamente foco principal dos

investimentos coletivos do Brasil. A conjuntura apresentada de alinhamento entre o

especial momento económico e político vivido pelo país, e a possibilidade de

405 Disponível na WWW: <URL: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/09/regiao-metropolitana-do-rio-tem-maior-taxa-de-urbanizacao-do-pais.html> [Consult. 2012-03-12].

159

realização de um megaevento, resulta, num primeiro momento, numa perspetiva

positiva para a cidade. Porém é fundamental perceber, recorrendo mais uma vez a

Portas, “o que isso significa em probabilidades de sinergia e efeitos catalíticos – ou de

metástase, se nos enganarmos”406.

A compreensão e o debate sobre o tema tornam-se fundamentais na medida

em que a concentração de investimentos previstos para os 6 anos anteriores à realização

dos Jogos Olímpicos é equivalente a 20 anos de investimento médio da cidade407. Não

há horizonte que permita vislumbrar outra oportunidade como essa para uma cidade

como o Rio. O momento, apesar de positivo, pode tornar-se também de grande risco,

na medida em que a cidade parece promover um desencontro entre o discurso e a

prática adotados, entregando aos desígnios da certeza as respostas à urgência e à

incerteza, como definido na hipótese de investigação. O Rio pode não admitir os erros

que resultam desta afirmação. Como contributo a esse processo de compreensão, esta

investigação pretende desenvolver, através das “objetivas” estabelecidas na primeira

parte desta dissertação, novas possibilidades de perceção da construção da própria

cidade nesta janela temporal após Brasília, calcorreando os caminhos de certezas e

incertezas, pretendendo assim criar alguma densidade para a qualificação do debate

sobre o Rio de Janeiro. Procura também por à prova a hipótese apresentada: a de que a

cidade do Rio de Janeiro se desenvolve, em pleno século XXI, influenciado por

desígnios estabelecidos em tempos de certezas já que as decisões tomadas estão

atreladas a princípios vinculados aos planos realizados entre as décadas de 1960 e 1970.

406 PORTAS, Nuno, Os tempos das formas. vol.1: A cidade feita e refeita. Guimarães: DAAUM, 2005, p. 100.

407 Disponível na WWW: <URL: http://oglobo.globo.com/rio/rio2016/mat/2010/11/ 24/investimentos-para-jogos-olimpicos-copa-de-2014-podem-chegar-r-30-bilhoes-923098670.asp> [Consult. 2013-03-06].

160

161

Este quarto capítulo pretende compilar e analisar de forma crítica os highlights do

urbanismo carioca a luz dos princípios que dão base à Modernidade em seus momentos

de certezas, conforme “objetiva” estabelecida na primeira parte deste documento. A

janela temporal que se abre para investigação é aquela que se inicia com o processo de

perda da condição de capital, momento fundamental na história da cidade que a motivou

no sentido de planear seu futuro, segundo as lógicas daquela Modernidade que conduziria

à mudança rumo a um futuro róseo.

Serão apresentados e analisados com especial dedicação, e segundo esta

“objetiva”, os planos que possuem como referência a fase em que os princípios da

“Modernidade sólida” estavam na berlinda no Brasil, nomeadamente: o Plano Doxiadis de

desenvolvimento urbano da Guanabara (1965); o Plano-Piloto de Lúcio Costa para urbanização da

baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal da Sernambetiba e Jacarepaguá (1969); e o

Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-RIO (1977). Nesse momento da

investigação procurar-se-á destacar as características principais de cada um. De forma

geral, podemos caracterizá-los de forma que o primeiro se constitui como busca por uma

atuação mais metropolitana, sob desígnios estabelecidos por uma teoria desenvolvida por

um dissidente dos CIAM; o segundo, ao contrário, é claramente vinculado aos dogmas

estabelecidos pelos Congressos, e está limitado a uma área específica, não obstante, tendo

pretensões de alcançar consequências metropolitanas; e o último, com atuação restrita ao

território municipal do que hoje equivale à Cidade do Rio de Janeiro, embora também

adote o discurso metropolitano, que se caracteriza por uma perspetiva voltada para a

operacionalidade do sistema de planeamento tornando-se bastante burocrático, lançando

mão de delimitações mais ou menos genéricas, e de zonamentos, sem equacionar a vasta

legislação existente, alimentando o aparato burocrático do sistema de planeamento que se

pretendia instituir. A esta investigação parece se fazer necessário somar à descrição e

análise dos planos uma compreensão mais alargada através dos contextos gerais do país e

da própria cidade, que somadas à “objetiva” conceitual já desenvolvida, pretende

descortinar os pontos relevantes que indicam a compreensão da hipótese levantada.

162

Não obstante a decisão tomada nessa investigação pela concentração dos

esforços nos planos desenvolvidos a partir do momento em que o Rio de Janeiro perde a

condição de capital da República, parece importante retroceder de forma expedita aos

primeiros momentos do século XX para estabelecer uma melhor compreensão

cronológica do processo de estabelecimento da Modernidade em terras cariocas.

A ideia de Modernidade no tema urbano, tanto no Brasil, quanto no Rio, pode

ser identificada de forma mais clara no período que compreende as últimas décadas do

século XIX e o início do século XX. Tendo como influência a experiência das

intervenções de Haussman em Paris, a cidade do Rio de Janeiro buscou sua

transformação através das obras realizadas pelo Prefeito Pereira Passos (1836-1913), que

promoveu uma verdadeira revolução na cidade, processo que ficou conhecido como o

Bota-abaixo (1902/06)408. As transformações estabelecidas nesse período concentraram-se

em temas como a higienização, a abertura de novas ruas, e a construção de um grande

bulevar que estimulava a expansão rumo as áreas mais ao sul (litoral), contrariando a

movimento estabelecido pela chegada da Família Real, quase um século antes (1808), na

direção norte, seguindo para o interior.

Através desse processo, o Brasil procurava superar o “ranço” de ex-colónia

portuguesa na capital, mostrando ao mundo o que se pretendia constituir como uma

“Paris nos trópicos”409, símbolo de uma nova nação confiante no presente e na

construção do seu futuro. As novas ruas e avenidas, além de possibilitarem a constituição

de uma cidade renovada, abriram espaço para novas infraestruturas como a que

possibilitou a circulação do transporte sobre trilhos (sobretudo os elétricos), que

estabeleceu uma rede de mobilidade que, mais tarde, foi fundamental para a ocupação do

território. Iniciou-se também um novo sentido de expansão, para o sul, seguindo a costa e

408 Para saber mais sobre o tema consultar: BENCHIMOL, Jaime Larry, Pereira Passos: um Haussmann Tropical. A renovação urbana na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992.

409 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho, Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999, p. 10.

163

passando a constituir definitivamente uma nova relação de valorização do mar que se

consolidara, definitivamente, na década de 1940. Este período foi definido por Villaça

como a primeira fase do urbanismo brasileiro, onde a disciplina do urbanismo se

estabelecia através dos planos de embelezamento410.

Figura 29. Francisco Pereira Passos. Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, o promotor do Bota-abaixo.

Figura 30. À esquerda, a Avenida dos Campos Elísios em Paris (1900) que serviu de inspiração para a construção da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco) em foto de 1920, à direita.

410 VILLAÇA, Flávio, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” in DEÁK; SCHIFFER, 1999, p. 193.

164

Nos anos 1920, a Modernidade como movimento cultural se estabeleceu

definitivamente no Brasil através da chamada Semana de Arte Moderna de 1922411, em São

Paulo. No Rio de Janeiro, quatro anos mais tarde, o arquiteto francês Donat Alfred

Agache (1875-1959), membro da Société Française des Urbanistes, iniciou seus trabalhos para

conceção de um plano para o qual foi contratado pelo prefeito da cidade Antônio Prado

Júnior (1880-1955). O arquiteto francês pertencia a uma escola que se caracterizava pela

visão integrada que incluía questões de infraestrutura, arruamento, habitação e

equipamentos variados sempre com um forte sentido estético de ordenamento urbano,

utilizando o recurso dos traçados clássicos em desenhos de grande força que fixavam o

ordenamento visual e que qualificaram seu trabalho como um artigo de exportação412.

Agache era um dos representantes do “Urbanismo Formal”, apresentado no 3º capítulo

deste documento, e seu Plano foi desenvolvido entre 1926 e 1930, pretendendo

promover a renovação da capital brasileira, ficando conhecido como o Plano Agache413.

Figura 31. Antônio da Silva Prado Júnior. Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro entre 1926 e 1930, que convidou Alfred Agache para elaborar um plano para a cidade.

411 Para saber mais sobre o tema consultar: GONÇALVES, Marcos Augusto, 1922 – A Semana que Não Terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

412 LAMAS, José M. R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 259.

413 AGACHE, Alfred, Cidade do Rio de Janeiro: Remodelação, Extensão e Embellezamento, 1926-1930. Paris: Foyer Brésilien, 1930.

165

Figura 32. Alfred Hubert Donat Agache. Ao fundo o desenho de sua proposta para o Rio de Janeiro.

Figura 33. Imagens do Plano Agache (1930). Planta de Zoneamento e Perspetiva Monumental.

166

Embora José Garcia Lamas indique a sua aprovação no ano de 1932414, o

plano nunca foi efetivamente aprovado como nos confirma Verena Andreatta415.

Agache inaugura a ideia moderna de planificação da cidade, dando um passo adiante

nas transformações do início do século, mais atento à questão infraestrutural, sem no

entanto deixar de estar atento à toda questão do desenho e da estética. O Plano Agache

influenciou realizações posteriores na cidade do Rio de Janeiro, representando o

início de uma fase de “planos de conjunto”416, onde questões técnicas começavam a

ganhar importância embora o desenho ainda tivesse um grande destaque sob

influência do movimento do City Beautiful. A ideia de “plano de conjunto” resulta

num modelo que destaca a realização de vasto diagnóstico, de um esquema de

transportes mais alargado e de proposição de leis urbanísticas que resultaram na

definição de um primeiro zonamento para a cidade. Estava aberto o caminho para

que a Modernidade, através do designo do homem, desenvolvesse sua caminhada

através da disciplina do urbanismo.

A não aprovação do Plano Agache nos revela um contexto velado de um

momento de disputa entre o “Urbanismo Formal” de Agache e o modelo que se

estabeleceu em torno dos CIAM. No mesmo período de formulação do Plano Agache para

o Rio de Janeiro a cidade recebeu a visita do arquiteto símbolo dos CIAM: Charles-

Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965). Le Corbusier visitou o Brasil em 1929 para uma

série de conferências após passagem pela Argentina, graças a insistência de um grupo de

arquitetos brasileiros, que tinham à frente a figura do Arquiteto Lúcio Costa (1902-1998),

que mais tarde desenharia Brasília, e a Baixada de Jacarepaguá e a Barra da Tijuca no Rio

de Janeiro, plano este que será analisado mais tarde no decorrer deste capítulo. Nessa

visita, Le Corbusier apresentou o famoso estudo do “edifício fita” que se relacionava em

larga escala com toda a paisagem da cidade superando-a e dominando-a.

414 LAMAS, José M. R. Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 273.

415 ANDREATTA, Verena, Cidades Quadradas, Paraíso Circulares: Os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, p. 62.

416 VILLAÇA, Flávio, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” in DEÁK; SCHIFFER, 1999.

167

Figura 34. Em destaque (sentados) Roberto Burle Marx, Le Corbusier e Lúcio Costa (1936).

Figura 35.“Edifício-fita” proposto por Le Corbusier em visita ao Rio de Janeiro em 1929.

No mesmo período, a troca de correspondências entre Le Corbusier e Paulo

Prado, importante incentivador do modernismo brasileiro, registra o incómodo com a

presença de seu colega, Agache, “conhecido por suas pequenas conceções pitorescas e

românticas”417. Preocupava sobretudo um tema muito particular discutido três anos

antes: o interesse de Paulo Prado em conversar sobre a possibilidade de construção de

uma cidade inteiramente nova, que lhe chegou aos ouvidos através de correspondências

de Fernand Léger e Cendrars418 – Planaltina seria a nova capital do país.

417 DOS SANTOS, Cecília Rodrigues; PEREIRA, Margareth Campos da Silva; PEREIRA, Romão Veriano da Silva, SILVA, Vasco Caldeira, Le Corbusier e o Brasil. São Paulo: Tessela: Projeto editora, 1987, p. 43.

418 Idem, ibidem, p. 41-45.

168

Tão expressivo convite interessou imediatamente a Le Corbusier que, em carta

destinada a Paulo Prado deixou claro sua preocupação com a presença de Agache como

responsável pelo planeamento da cidade do Rio de Janeiro afirmando que o via “já com

um pé em Planaltina. E isto seria muito triste”419. Em contraponto ao “Urbanismo

Formal” de Agache, Le Corbusier representava o modelo sintetizado na Carta de Atenas e

seus desígnios destinados a planificar as cidades racionalmente e cientificamente,

reproduzindo a certeza de um futuro perfeito que se daria através da construção de uma

sociedade da igualdade e da razão por sobre aquela cidade do passado420. Le Corbusier

não fez a nova capital segundo esses desígnios, porém, mais tarde, seu discípulo Lúcio

Costa, realizaria aquilo que talvez nem mesmo ele achasse possível: a construção de

Brasília (1960) que retirou do Rio de Janeiro a sua condição de capital da República. Iniciou

um movimento de busca de afirmação, um novo momento, onde se optou também por um

plano que conduzisse à mudança, ao progresso e ao futuro róseo, mas que de certa forma

fizesse um contraponto à algoz e nova capital, Brasília, como será visto mais adiante.

As décadas de 1930 e 1940 seriam marcadas sobretudo pelo “Getulismo”,

personificado na figura de Getúlio Vargas (1882-1954), tanto no período do Estado Novo

quanto no seguinte, quando eleito democraticamente. Neste período observou-se uma

política cultural nacionalista e de definição de uma identidade nacional. Gustavo Capanema

(1900-1985), ministro da educação e da cultura, que trouxe Le Corbusier ao Brasil em 1936,

apoiou firmemente os arquitetos pioneiros da arquitetura moderna influenciada na Carta de

Atenas, constituindo um período em que se estabeleceu a ideia de construção de “um

brasileiro novo”421. No Rio de Janeiro, a Esplanada do Castelo, local onde seria

construído Ministério da Educação e Cultura (MEC)422, e a abertura da Avenida

Presidente Vargas seriam as principais marcas do período.

419 DOS SANTOS, Cecília Rodrigues; PEREIRA, Margareth Campos da Silva; PEREIRA, Romão Veriano da Silva, SILVA, Vasco Caldeira, Le Corbusier e o Brasil. São Paulo: Tessela: Projeto editora, 1987, p. 43.

420 FERREIRA, António Fonseca, Gestão Estratégica de Cidades e Regiões. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 28.

421 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 181.

422 Ver mais sobre o tema no Item III.B que segue mais a frente neste capítulo.

169

“BRASÍLIA, capital aérea e rodoviária; cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca”423 “Deste planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino” 424.

Em 1956, iniciou-se no Brasil um dos governos mais populares da história do

país. Tomou posse, a 31 de Janeiro, o Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira

(1902-1976). Um dirigente considerado “moderno, [e que estava] pronto para ser o

presidente bossa-nova e comandar um país que voltava a acreditar em si mesmo”425.

O otimismo contagiava a nação426 e o plano de metas do governo de JK – os “50 anos em

5”, com trinta objetivos prioritários nos setores de energia, transportes, alimentação,

indústria de base e educação427, perspetivava tempos áureos para a nação tendo como

base os investimentos que levariam a cabo o processo que ficou conhecido como

“nacional desenvolvimentismo”428.

O período foi de grande impulso à indústria automobilística, o Brasil nesse

momento fez a opção, que perdura até os dias de hoje, pela mobilidade sobre

pneus. Foram construídos 15 mil quilómetros de estradas, três mil a mais que o

prometido no plano de metas429. Incentivos fiscais foram criados para a produção

423 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 295.

424 Frase de JK no “Livro de Ouro” de Brasília, gravada no mármore do Museu da Cidade, na Praça dos Três Poderes. (HELIODORO, 2005, p. 45).

425 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 351.

426 Idem, ibidem, p. 352.

427 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 188.

428 Expressão forjada no Governo de JK, que segundo Eduardo Bueno se define como “uma astuciosa política econômica que combinava a ação do Estado com a empresa privada nacional e o capital estrangeiro” (BUENO, 2003., p. 352).

429 ENDERS, Armelle, op. cit., p. 188

170

automobilística, onde o Fusca430 foi o protagonista deste momento. O Brasil

produziu, entre 1957 e 1960, “mais de 320 mil veículos, 90% acima do previsto. O

Brasil se movia sobre quatro rodas”431.

Figura 36. Propaganda de venda do Fusca (Carocha) em Abril de 1960, bom senso era ter um automóvel.

O plano de metas de JK resultou num crescimento do Produto Interno Bruto

(PIB) brasileiro a taxas de 7% ao ano (1957/1961). Comparativamente à América

Latina, durante a década de 1950, o PIB brasileiro foi três vezes maior do que dos

outros países vizinhos432. O Brasil crescia e vivia um momento especial na sua

história, e a autoestima do brasileiro crescia junto com a confiança na construção do

futuro. Essa condição se elevaria a uma certeza quase inabalável a partir de uma

decisão de JK que mudaria a história: durante um comício em Jataí, Estado de Goiás,

no dia 4 da Abril de 1955, o mineiro JK prometeu ser o último presidente a entrar no

Palácio do Catete433, no Rio de Janeiro, e para isso construiria uma nova capital

federal, no planalto central do país, antes do fim do seu mandato. A construção da

430 O automóvel Fusca, nome que surge de uma corruptela da palavra Volkswagen, era fabricado no ABC Paulista (região das cidades de Santo André, São Bernardo e São Caetano no Estado de São Paulo). O mesmo veículo em Portugal é chamado de Carocha. Disponível na WWW: <URL:http://g1.globo.com/platb/ portugues> [Consult. 2014-02-29].

431 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 352.

432 IDEM, ibidem, p. 355.

433 Sede do Poder executivo brasileiro entre 1897 e 1960, ficou marcado por abrigar o suicídio do Presidente Getúlio Vargas em 1954.

171

nova capital, Brasília, profetizada desde 1883434 e prevista na Constituição de 1891435,

foi inserida no plano de metas de seu governo como a meta-síntese436.

Figura 37. Presidente JK saúda a população na inauguração de Brasília em 21 de Abril de 1960.

Figura 38. No dia da inauguração da nova capital a população ocupa a laje da cobertura do edifício do Congresso Nacional.

434 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 352.

435 A capital interiorizada no Planalto Central do País estabelecida na constituição de 1891, já era debatida muito antes. “Em 1821, nas instruções que os deputados paulistas às Cortes levam a Lisboa, José Bonifácio sugeria: ‘Que se levante uma cidade central no interior do Brasil para assento da corte ou da regência e que poderá ser na latitude pouco mais ou menos de 15 graus, em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável. Os deputados incluíram, em 1822, a reivindicação no Parecer da Comissão encarregada da redação dos artigos adicionais à Constituição Portuguesa referentes ao Brasil” (BOJUNGA, 2001, p. 393).

436 JK percebeu que Brasília poderia desencadear novo ciclo bandeirante, acrescentando por isso sua construção como a meta 31ª do Programa de Metas - a meta-síntese. (BOJUNGA, 2001, p. 396).

172

JK desejava que Brasília fosse instrumento de “integração nacional”,

centro de uma rede de estradas que se conectavam na nova capital437,

reequilibrando o território em benefício do interior estimulando a economia, mas

acima disso, pretendia que fosse o símbolo da Modernidade brasileira e do futuro

que se traçava róseo. Em Setembro de 1956, o projeto apresentado ao Congresso

Nacional resultou na aprovação da Lei nº 2.874 que criou a “Companhia

Urbanizadora da Nova Capital”. No ano seguinte, sob os traços de Lúcio Costa e

Oscar Niemeyer, após vitória do primeiro no concurso público de projeto,

iniciavam-se as obras, com três mil “candangos”438 nos canteiros de obras.

Definia-se “um momento chave da própria construção do ‘brasileirismo’, de

muitos exorcismos e expectativas e, sobretudo, da fundação de uma identidade

nacional”439. A decisão tomada por JK é um marco simbólico de mudança e

fundação de um “Brasil moderno”440 e de uma nova forma de pensar a cidade, que

se enraizou e perdura nas entrelinhas dos discursos e do processo de formação

das cidades em todo o Brasil, inclusive no Rio de Janeiro.

A transferência da capital, em 1960, foi motivo de abalo profundo na estrutura

da até então capital da República. A sorte administrativa da cidade do Rio de Janeiro,

após Brasília, não foi amplamente debatida, muito menos definida com rigor. O Jornal

Correio da Manhã, quinze dias antes da inauguração da Brasília441 publicava:

“A União se separa do Rio, mas que estado civil resta ao Rio? Divorciado, repudiado, simplesmente abandonado? Depois de dois séculos de vínculos legais, deixado na incerteza da autonomia, da fusão, da intervenção”442.

437 O governo de JK construiu mais de cinco mil quilômetros de estradas ligando Belém, Acre e Belo Horizonte à nova capital federal (ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 188).

438 “Candango” foi a alcunha dado aos trabalhadores que, de todos os cantos do Brasil, seguiram para o Distrito Federal na busca da consolidação dos sonhos da nação e dos seus próprios.

439 DOMINGUES, Álvaro, “Prefácio” in TAVARES, 2009, p. 09.

440 ENDERS, Armelle, A História do Rio de Janeiro. Gryphus, 2008, p. 271.

441 Brasília foi inaugurada em 21 de Abril de 1960, não por acaso data do martírio de Tiradentes e da conjuração mineira, movimento de caráter separatista ocorrido no Estado onde nasceu JK, Minas Gerais em 1789, com o intuito de libertar o Brasil do domínio português.

442 apud MOTTA, 1997, p. 90.

173

O Rio não se preparou e não reivindicou efetivamente as contrapartidas pela

perda da condição de capital, aceitando Brasília “como uma piada”443. Despreparado,

o Rio de Janeiro foi então transformado em Cidade-Estado: o Estado da Guanabara

que subsistiu até 1975.

O Estado da Guanabara444 teve como primeiro445 e mais marcante administrador

Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977), polémico jornalista e político, que

abraçou o desafio de converter a antiga capital em uma Cidade-Estado organizada e

estruturalmente recuperada. Na campanha para eleição, em Junho de 1960, aquele que

seria o futuro governador declarou em tom ufanista:

“Nós não somos uma capital decaída, mas uma cidade libertada. Os que partiram daqui com saudade sabem que o Rio é uma cidade insubstituível, uma cidade na qual todos os brasileiros, ontem, hoje, e sempre, estarão em casa. Esses brasileiros sabem que nós somos uma região sem regionalismo. Pensamos nossos problemas em termos mundiais, não só continentais ou nacionais. Eles achavam que, ao abandonarem, levavam a civilização para o interior, mas foi aqui que a deixaram. Porque nós somos síntese do Brasil, porque somos a porta do Brasil para o mundo, e somos para o mundo a verdadeira imagem que ele faz de nós” [grifo meu]446.

A condição destacada por Lacerda de uma cidade “sem regionalismos” é ratificada

pelo Professor Carlos Lessa quando da análise da imparcialidade regional do Rio:

“Desta diversificada base produtiva urbana que dependia do desempenho da economia nacional como um todo. O seu fortalecimento não havia colidido, no passado, com os interesses de outras regiões. O interior fluminense

443 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 289.

444 Denominação dada ao território do Rio de Janeiro após a perda de sua condição de capital. O Rio tornou-se uma Cidade-Estado. Ou seja, uma cidade com representação institucional equivalente ao dos demais entes federativos que compõem a República Federativa do Brasil. Mais tarde essa condição foi abolida e o mesmo território transformou-se numa municipalidade ordinária que compõe o Estado do Rio de Janeiro.

445 Lacerda foi o primeiro Governador eleito do Estado da Guanabara antes dele, José Sette Câmara Filho (1920-2002) foi nomeado pelo Senado como Governador provisório exercendo o cargo entre Abril e Dezembro de 1960.

446 apud MOTTA, 1997, p. 90., p. 168.

174

[relativo ao Estado do Rio de Janeiro], sendo um vazio, permitiu que a cidade, cosmopolita e nacional, pudesse conviver sem atritos com as demais economias regionais”447.

O Rio de Janeiro havia sido construído numa espécie de posição neutra permitindo

que a cidade fosse vista como imagem do Brasil para o mundo, ratificando o entendimento

de que a cidade era a “Síntese do Brasil”448. A visão ufanista, amplamente compartilhada,

ratificava à antiga capital a condição de detentora de um “Brazilian way of life”.

Figura 39. Carlos Lacerda, por: John Loengard. Time & Life Pictures (01.01.1964)

Figura 40. Selo comemorativo da promulgação da constituição do Estado da Guanabara (1961).

447 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 346.

448 LACERDA, Carlos, “Discurso do IV Centenário” in DOMINGUEZ PEREZ, 2007, p. 225.

175

À Cidade-Estado, órfã de sua condição de capital, faltava um projeto de

mudança, de transformação, que permitisse criar a confiança necessária para a

construção de seu futuro. A Guanabara teve que ser concebida por inteira, já que não

possuía a estrutura administrativa e os serviços públicos necessários ao seu

desenvolvimento. A cidade que se tornava autónoma politicamente necessitava de uma

retomada e de um norte para se desenvolver.

“A sensação de esvaziamento e a preocupação com a perda do status de capital, o surgimento de um novo estado sui generis encaminharam os especialistas para um conjunto de medidas que, segundo acreditavam, seria capaz de reverter o quadro e dinamizar a economia local. [...] O núcleo central da pauta de desenvolvimento econômico na prática foi o investimento na infra-estrutura urbana” .

Naquele período, já havia duas décadas, o país e a cidade cresciam

transformando áreas urbanas, o transporte, as comunicações e a moradia, em grande

parte devido aos altos índices de migração. Esses eram, à época, temas definitivos para o

desenvolvimento urbano. No entanto, o descompasso entre o crescimento e a oferta de

respostas do poder público tornavam o problema ainda maior. Lacerda, astutamente,

percebeu que o investimento na cidade traria consequências políticas positivas,

qualificando-o para a disputa à Presidência da República. O foco de sua administração

voltou-se então para a urgente requalificação da cidade e preenchimento do vazio

económico que se identificava através do pouco expressivo parque industrial.

O atraso industrial detetado na região, devido aos altos custos da terra na antiga

capital, era uma das questões mais importantes a se tratar. No Rio, as indústrias desde o

século XIX desenvolveram um certo nomadismo em busca de áreas para se localizarem. Até

as primeiras décadas do século XX se localizaram no Bairro de São Cristóvão, próximo do

porto, em seguida, desenvolveram-se junto às ferrovias. Já em meados do século XX partiram

para junto da Avenida Brasil e para as zonas oeste e metropolitana da Baixada Fluminense. O

atraso industrial, principalmente se comparado com São Paulo, foi um dos focos de atuação

da estratégia de desenvolvimento. Na tentativa de prover terrenos com menor custo para a

criação de distritos industriais, foram disponibilizadas novas áreas à oeste do território,

449 DOMINGUEZ PEREZ, Maurício, Lacerda na Guanabara - a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 211.

176

promovendo a expansão da mancha ocupada. Foi dado início então, à construção do distrito

industrial de Santa Cruz que se estabelecia no caminho onde no passado era feita a ligação

entre o sul do Estado do Rio de Janeiro e o núcleo central da cidade capital450.

Todo o período de existência do Estado da Guanabara, especialmente no governo

de Carlos Lacerda451, ficou marcado também por grandes obras de infraestrutura. Neste

período as obras públicas, em resposta às necessidades práticas mas também à opção feita

pelo Brasil pelo transporte sobre pneus, tiveram como foco principal a adequação da cidade

às necessidades do automóvel. “De 1957 a 1964, o número de veículos de passageiros no

estado passou de 63 mil para 140 mil, um aumento de mais de 100% em apenas oito anos”452.

Figura 41. Folheto de propaganda do Governo de Carlos Lacerda.

Figura 42. Abertura do Túnel Rebouças que promoveu a principal ligação Centro/Zona Norte com a Zona Sul da cidade.

450 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 348.

451 Além de Lacerda (1961/1965) a Guanabara teve ainda como Governadores: José Sette (1960); Francisco Negrão de Lima (1965/1970 e Antônio Chagas Freitas (1970/1975).

452 GUANABARA (Estado). “Mensagem à Assembléia: 5 anos de governo”. (1965: tabela após p.146) apud DOMINGUEZ PEREZ, 2007, p. 227.

177

Figura 43. Parque do Flamengo, aterro sobre a Baía de Guanabara com projeto paisagístico de Roberto Burle Marx.

O conceito de Modernidade que se apresentava à época expressava-se através da

construção de vias expressas, novos túneis e viadutos. Sendo assim, grandes obras ficaram

marcadas na memória carioca: a conclusão do Túnel Santa Bárbara e do parque do Flamengo,

a construção do Túnel Rebouças, do primeiro trecho da Avenida Radial Oeste e do Trevo

dos Marinheiros. E no subúrbio, os investimentos concentrados na construção de acessos por

viadutos à Avenida Brasil, a mais importante via de acesso da cidade. Os investimentos nos

serviços de transporte público abriram espaço para as frotas de autocarros, retirando os

elétricos das ruas o que levaria, paulatinamente, a rede ferroviária de comboios suburbanos à

decadência, exatamente os dois pilares que colaboraram com a estruturação da forma e das

dinâmicas da cidade. Saiu de cena a inspiração parisiense do início do século XX e do

“Urbanismo Formal” e, em substituição, surgia a dinâmica das grandes cidades norte-

americanas, seu pragmatismo e funcionalismo453.

No entanto, nesse período, Lacerda tinha um projeto, mas não tinha um roteiro454,

faltava-lhe o desenho. Sua preocupação era não parar, tirando do papel as soluções ad hoc que

se apresentavam de forma fragmentada, por vezes com projetos provenientes de governos

anteriores455. Em 1964, Lacerda refutou esta condição e, aspirando à Presidência da República

nas eleições de 1965, contratou um plano para desenvolvimento do Estado da Guanabara,

procurando fazer frente ao Plano de Brasília executado por JK, seu opositor político. Naquele

momento, duas vertentes eram protagonistas no ato de conceber as cidades em sua totalidade:

453 DOMINGUEZ PEREZ, Maurício, Lacerda na Guanabara - a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 225.

454 Idem, ibidem, p. 226.

455 Idem, ibidem, p. 226.

178

por um lado focando na construção de cidades inteiramente novas como Brasília, mesmo que

para isso fosse preciso fazer tabula rasa da cidade existente; e por outro lado, construindo algo

novo a partir reestruturação da cidade existente, dentro de uma ótica racionalista. Seguindo

esta última vertente, foi elaborado por um estrangeiro, um dos mais influentes planos da

história urbana do Rio de Janeiro, como será visto a seguir.

Através de Alfredo Machado456 e Lota Macedo Soares457, Carlos Lacerda foi

apresentado ao arquiteto e urbanista Constantinos A. Doxiadis (1913-1975) que o

convenceu a contratá-lo458. O arquiteto grego já possuía vasta experiência no tema

urbano. Havia sido nomeado Diretor de Planeamento da área metropolitana de Atenas

em 1937, e durante a Segunda Grande Guerra (1940-1945), ocupou o cargo de Chefe do

Departamento de Planeamento Regional e Municipal, no Ministério das Obras Públicas,

trabalhando também como cabo da Exército grego. Em 1951, fundou a Doxiadis Associates

que resultou na possibilidade de desenvolver projetos urbanos em mais de 40 países459.

Uma destas experiências deu-se exatamente no Rio de Janeiro.

Contratado em 1964, deu início ao desenvolvimento de um masterplan para o

desenvolvimento da Guanabara pretendendo orientar e ordenar o crescimento da

cidade até o ano de 2000. No entanto, a contratação do arquiteto e urbanista

estrangeiro não passou incólume à época. Nem mesmo o currículo de Doxiadis foi

suficiente para conter as críticas das entidades de classe e dos arquitetos e urbanistas

locais à sua contratação. A decisão de Lacerda não passou em branco pela crítica dos

mais influentes arquitetos e órgãos de classe da época.

456 Alfredo Machado (1923-1991), editor carioca.

457 Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (1910-1967) arquiteta autodidata e paisagista emérita, foi uma das responsáveis pelo projeto do Parque do Flamengo. Famosa também pelo seu relacionamento com a poetisa americana Elisabeth Bishop (1911-1979), retratada no Filme Flores Raras de Bruno Barreto (2013).

458 DOMINGUEZ PEREZ, Maurício, Lacerda na Guanabara - a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 231.

459 Disponível na WWW: <URL: http://www.doxiadis.org/page/default.asp?la=1&id=10> [Consult. 2013-03-01].

179

Figura 44. O urbanista grego Constantino Doxiadis explica seu plano para o Rio.

A começar pelo grande expoente do urbanismo nacional, o arquiteto Lúcio

Costa. Em artigo no Correio da Manhã, Lúcio caracterizou o escritório grego como

“uma firma de empreiteira para explorar planos urbanísticos de países

subdesenvolvidos” dirigida por um “cabotino”460. O Clube de Engenharia e o

Instituto de Arquitetos do Brasil se opuseram ao contrato, este último, “por

considerá-lo incompatível com o nosso estágio de desenvolvimento técnico e

atentatório à cultura nacional”461, o Caderno “ELA” do Jornal O Globo462 registrou a

opinião de alguns arquitetos:

“Não sei ao certo o que ele vem fazer aqui. [...] não vejo razão para que fôsse contratado. Aqui há ótimos arquitetos e urbanistas, dos melhores do mundo, capazes de resolver qualquer problema”463.

“[...] endosso o comentário do Deputado Carvalho Neto em que êle estranha que com tão bons arquitetos e urbanistas se entregue um planejamento de tamanha importância à um firma estrangeira”464.

460 COSTA, Lúcio, “O contrato com Doxiadis Internacional Associados”. in CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: 4 de Fevereiro de 1964.

461 NOBRE, Ana Luisa de S., Fios cortantes: projeto e produto, arquitetura e design no Rio de Janeiro (1950-70). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Tese de Doutoramento, 2008.

462 Jornal O GLOBO. Caderno “ELA”, Rio de Janeiro 25 de Janeiro de 1964, p. 05.

463 Vera Figueiredo, arquiteta.

464 Ricardo Menescal, arquiteto.

180

Figura 45. “Constantinos Doxiadis é hoje homem-berlinda, personagem discussão [...]”

A partir do conhecimento do trabalho de Doxiadis, a possibilidade de

desenvolver um plano para a Guanabara tendo princípios alternativos àqueles adotados

no plano de seu opositor político, JK, para a nova capital, foi certamente um estímulo

para que Lacerda contratasse o “forasteiro”. Em entrevista ao Jornal do Brasil (1972),

Carlos Lacerda defendeu sua escolha:

“[...] Uma campanha demagógica explorou temores vãos e ressentimentos políticos para impedir a contratação dos serviços de Doxiadis. ‘Temos urbanistas capazes!’ diziam, o que ninguém negava. O que se afirmava era a necessidade de sistematizar os estudos, de promover um levantamento com uma infra-estrutura de serviços de que não se dispunha no Brasil, e de criar uma escola, um contingente de pessoas capacitadas, uma experiência para dotar o Brasil de instrumentos elementos de futuros trabalhos”465.

465 “Doxiadis acha inevitável a interligação de cidades”. Entrevista com Carlos Lacerda. in Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de Março de 1972.

181

Doxiadis, como dissidente do CIAM, era uma alternativa ao modelo adotado em

Brasília. O foco no desenvolvimento económico e humano, somado a particularidade de

seu trabalho e de sua experiência internacional, iam ao encontro dos desejos de Lacerda

de desenvolvimento da Guanabara que se pretendia avançar através da construção das

suas infraestruturas e da eficiência de suas dinâmicas.

Figura 46. A confiança de Doxiadis no futuro, lugar da “cidade do homem”(1963).

Figura 47. A confiança de Carlos Lacerda no futuro concebido por Doxiadis (1964).

182

O Plano Doxiadis foi o primeiro a tratar efetivamente de uma escala mais alargada,

metropolitana, para o Rio de Janeiro466. Sua proposta se estendia por todo o território da

metrópole na expectativa de um contínuo crescimento rumo a construção de uma única

“cidade mundial”, a “Ecumenopolis”, como visto no 3º capítulo. Embora contratado por

Lacerda em 1964, o Plano só foi entregue em Dezembro de 1965, no Governo de

Francisco Negrão de Lima (1901-1981), já sob o controle dos militares que chegaram ao

poder através do golpe de Estado no ano anterior. Talvez por conta desta mudança, o

Plano Doxiadis nunca tenha sido aprovado467. Desprezado pelos governos seguintes,

pouco foi realizado como previsto pelo grego, porém sua ideias gerais foram capazes de

influenciar fortemente o urbanismo carioca ao longo dos anos.

Neste contexto descrito até aqui, Doxiadis desenvolveu a encomenda feita pelo

Estado da Guanabara em 1964. Por quase dois anos, a equipe da Doxiadis Associates,

juntamente com a Comissão Executiva para o Desenvolvimento Urbano da Guanabara

(CEDUG)468, desenvolveu um vasto relatório onde se encontra minucioso diagnóstico

que serviu de base para o plano. A equipe de Doxiadis realizou todo o trabalho que

incluía processos informáticos de compilação de dados estatísticos, a partir de Atenas,

sendo entregue em 1965, ocasião de sua publicação em inglês469 e traduzido para o

português pela Secretaria de Governo em 1967 em três volumes470.

Seguindo uma da principais ideias da Modernidade, a de completa catalogação

que permitisse compreender a priori o objeto foco do plano, foi realizada então uma

ampla análise sistemática de dados e informações as mais variadas: sobre o meio-

466 Embora Agache em seu plano tecesse observações sobre o tema metropolitano é com Doxiadis que observaremos a efetiva análise da escala mais alargada no plano, inclusive com a sua representação em planta.

467 ANDREATTA, Verena, Cidades Quadradas, Paraíso Circulares: Os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, p. 70.

468 Na equipe brasileira da CEDUG, destacava-se a presença do arquiteto Hélio Modesto (1921-1980).

469 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965. Disponível para consulta no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

470 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara, um plano para o desenvolvimento urbano (Plano Doxiadis), Vol. I, II, III, tradução CEPE 1. Rio de Janeiro: Secretaria de Governo, 1967. Disponível para consulta na Biblioteca do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP.

183

ambiente, a economia, a demografia e as características físicas da cidade incluindo sua

geologia, e o levantamento dos planos existentes sobretudo no tema da mobilidade. Tal

levantamento, que teve auxílio de técnicas informáticas, resultou na elaboração de um

documento que pretendia respaldar as propostas, buscando estimar as necessidades exatas

para o futuro em relação à temas como a infraestrutura, o transporte, o equipamentos e

os serviços públicos. Mais do que a exclusiva definição de um desenho para o território,

embora este tivesse um protagonismo importante, procurou-se desenvolver um detalhado

plano de ações que estivesse de acordo com as necessidades e as possibilidades do novo

Estado da Guanabara tendo em conta inclusive os recursos existentes.

O trabalho de Doxiadis, em correspondência com sua teoria da Ekistics, foi

baseado em três escalas: (i) uma macroescala referente à influência do Estado da

Guanabara no cenário nacional e as relações com outros centros regionais importantes;

(ii) uma mesoescala, atingindo o próprio Estado e a sua Região Metropolitana, definida

como a escala principal da proposta, “onde se analisa a situação existente, equacionando-

se os problemas, fixando-se as diretrizes e propondo-se o plano diretor, desenvolvido por

programas qüinqüenais num horizonte de 35 anos [até o ano 2000] e os respectivos

projetos físicos”471; e (iii) a microescala, lidando com as comunidades específicas e

exemplares, nomeadamente o Bairro de Copacabana e do Mangue, buscando soluções

locais e apresentando protótipos de desenho que pudessem ter aplicações mais amplas

em outras localidades.

Doxiadis no seu plano para a Guanabara mostra características específicas de seu

pensamento teórico que o posiciona como um dissidente dos CIAM. Embora não abra mão da

possibilidade de um planeamento a longo prazo e da previsão do futuro almejado, afirmando:

“A ordem de grandeza dos nossos problemas futuros só pode ser compreendida por projeções de muito longo prazo. Olhar distante para o futuro e arriscar uma previsão, é melhor do que a não olhar suficientemente à frente [Reconhece que o] […] Planeamento para o futuro distante deve ser elástico o suficiente para permitir a mudança e os planos devem

471 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 04.

184

ser construídos para que possam ser alterados sempre que se tornam irrealistas ou obsoletos [grifo meu]”472.

Tal reconhecimento da necessidade de adaptação ao tempo é confirmada quando da

definição dos “Princípios Gerais do Plano”, onde Doxiadis dá destaque à necessidade de se

ter em conta a “dimensão do tempo” que seria “um elemento muito importante e dinâmico

na vida de nossas cidades”473, influenciando o “crescimento e [a] mudança em cidades ao

redor do mundo [que] é muito mais rápido do que era antes e porque as coisas mudam mais

rápido, hoje, somos confrontados com o problema de pensar duas vezes mais rápido e mais e

mais à frente”474. O reconhecimento da “dimensão do tempo”, não corresponde

necessariamente ao reconhecimento da incerteza, logo da ambivalência das ações

referenciadas pela razão. Em Doxiadis a confiança na técnica permanece irrestrita para a

“resolução dos problemas de uma maneira que que pavimentaria o caminho para o futuro”475.

O Plano Doxiadis foi desenvolvido numa perspetiva de crescimento onde as

projeções para o ano 2000 estabeleciam uma população de aproximadamente 18,2

milhões de pessoas para a Região Metropolitana do então Estado da Guanabara. E com

isso, a cidade se espalharia transbordando por sobre os limites da área metropolitana, a

oeste, para o Vale do Paraíba, a leste, ao longo da Baixada Fluminense e do litoral em

direção à cidade de Campos, desenvolvendo uma grande conurbação. Essa projeção de

Doxiadis justifica o foco nas tendências “megalopolitanas presentes e futuras” que, ao

final, consolidavam a ideia de que no Rio de Janeiro se observava o início da formação da

“Ecumenopolis”, que se encontrava ainda em sua fase de crescimento. O Plano Doxiadis

identificou assim, as linhas de atração que considerava ser o embrião de uma rede

totalmente urbanizada de cidades que resultaria na “Ecumenopolis” que, segundo ele,

haveria de se desenvolver no Brasil por volta do fim do século XX. Na escala regional, a

proposta tinha como destaque a estruturação das forças atuantes de forma alargada no

território. Foram identificados três eixos de atração de maior relevância que atravessavam

a área metropolitana e que estruturavam a proposta:

472 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 183 (tradução livre do autor).

473 Idem, ibidem, p. 182 (tradução livre do autor).

474 Idem, ibidem, p. 182 (tradução livre do autor).

475 Idem, ibidem, p. 190 (tradução livre do autor).

185

(i) O primeiro deles no sentido este-oeste, passando à norte da Baía de

Guanabara, tendo à oeste, a direção de São Paulo e do Vale do Paraíba, e para o lado

oposto, conectando com a Baixada Fluminense e a cidade da Campos no Norte do

Estado do Rio de Janeiro.

(ii) Outro eixo iniciado no Central Business District (CBD) do então Estado da

Guanabara, rumando no sentido Norte, beirando a Baía de Guanabara e atravessando

toda a área metropolitana em direção a cidade de Petrópolis e além, seguindo para

Belo Horizonte e Brasília.

(iii) Identifica-se ainda um segundo eixo este-oeste, mais próximo do litoral,

interrompido pela Baía que se desenvolve ligando o CBD da Guanabara à cidade de

Santos no Estado de São Paulo, passando pelos bairros de Bangu, Campo Grande e

Santa Cruz. Este eixo conectava a centralidade principal com a Baía de Sepetiba.

Para o lado leste, na direção da Baía de Guanabara, o mesmo eixo, seccionado,

ligaria as cidades de Niterói e São Gonçalo, as de Cabo Frio e também Campos

sempre pelo litoral.

Figura 48. Eixos de atracão este/oeste e norte/sul.

186

O plano indicava também uma série de núcleos urbanos ao longo dos principais

sistemas de mobilidade, sobre trilhos e sob pneus, onde se concentravam as principais

atividades económicas do Estado. O destaque maior foi dado às linhas ferroviárias da

sistema Central do Brasil e à recém-construída, à época, Avenida Brasil, tanto no seu

primeiro trecho norte-sul de ligação com a região metropolitana, quanto após a sua

inflexão na direção da expansão para oeste.

Figura 49. Todo o conjunto de intervenção metropolitana com destaque para a rede de mobilidade conectando as diversas centralidades espalhadas pelo território.

Além da identificação dessas dinâmicas estabelecidas e que se

perspetivavam ainda mais significativas para o futuro, foi tido em conta uma série

de forças económicas que atuavam sobre o território da Guanabara, vinculadas

principalmente a investimentos industriais, sobretudo aqueles que se instauravam

em Santa Cruz, no extremo oeste do Estado. Junto à Baía de Sepetiba, formava-se

um complexo industrial, encorajando o desenvolvimento urbano da região.

Também foi reconhecida a importância do CBD do Estado da Guanabara – a

própria cidade do Rio de Janeiro – como principal núcleo urbano do país, onde se

encontrava grande parcela dos empregos e atividades económicas da região,

possuindo grande potencial histórico, cultural e administrativo. Doxiadis também

187

incorporou uma série de projetos de mobilidade já existentes na grande maioria dos

casos voltados para ações de cunho rodoviário, mas também absorvendo os estudos

existentes para o Metropolitano. Vale destacar ainda que o Plano Doxiadis possui um

capítulo dedicado ao tema das favelas476, incluindo um mapeamento das comunidades

existentes no Estado da Guanabara477, dados que mais tarde serão excluídos dos

mapas da Prefeitura só retornando nos anos 1990. Doxiadis mais uma vez indicando

sua perspetiva como um “dissidente”, apontava tanto a relocação das favelas para

novas áreas dentro da cidade com acessos e serviços para a população, como a

reurbanização das favelas existentes e relocação dos seus habitantes originais478.

Doxiadis, munido da confiança moderna no futuro que ele próprio

concebia através de sua teoria da Ekistics, defendia um plano que daria lugar à um

novo e “inquestionavelmente correto”479 padrão de desenvolvimento. O Plano

Doxiadis definia como objetivos principais: “primeiro criar a necessária infra-

estrutura física, que [possibilitasse] o desenvolvimento sadio da cidade do Rio e do

Estado da Guanabara e segundo, resolver problemas urgentes dentro do atual

tecido urbano, sem violentar indevidamente a qualidade, a beleza, o encanto e o

caráter da cidade”480. O discurso da “preservação do caráter da cidade” indica, mais

uma vez, o seu posicionamento como dissidente dos CIAM que, provavelmente,

definiria a tabula rasa como meio de construção de uma cidade nova. Nessa

perspetiva, Doxiadis determinou, através das dinâmicas existentes, as funções

centrais de comércio e negócio como estruturadores do território, além disso,

projetou uma vasta rede de mobilidade, sobretudo rodoviária, facilitadora do que se

pretendia como expansão e desenvolvimento.

476 Para saber mais sobre o tema consultar: DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 350-354.

477 Para saber mais sobre o tema consultar: Idem, ibidem, p. 138-138.

478 Idem, ibidem, p. 350.

479 Idem, ibidem, p. 256.

480 Idem, ibidem, p. 259.

188

Figura 50. Duas manchas circulares indicando as áreas de influência das duas grandes centralidades concebidas por Doxiadis. Cruzando de este à oeste do território o eixo de conexão entre elas: “espinha dorsal do plano”.

Seguindo as teorias da Ekistics, como visto no segundo capítulo, uma nova centralidade

seria necessária para atingir o equilíbrio desejado do território. A nova centralidade foi então

proposta por Doxiadis no extremo oeste do território junto à Baía de Sepetiba, na zona de Santa

Cruz que como já dito, comportava à época um complexo industrial nascente.

As duas centralidades polarizariam a promoção da “espinha dorsal do plano”,

constituindo uma zona de funções centrais de “categoria superior” (uma Zona Central de

Classe VII) que cruzaria todo o território no sentido este-oeste, se estendendo desde o

CBD, passando por Méier, Madureira, Bangu e Campo Grande, restabelecendo um eixo

interno histórico481, formado especialmente por aquele definido pela Linha Férrea da

Central do Brasil, fazendo a ligação a Santa Cruz e consequentemente à Baía de Sepetiba.

Para Doxiadis esta Zona Central de Classe VII deveria incluir funções centrais com

significado para todo o próprio Estado da Guanabara. Esta área conteria edifícios

administrativos e institucionais locais, zonas de negócios, de comércio de varejo e de

parques e de recreação, além de áreas residenciais de grande densidade incluindo áreas de

habitação de baixa renda482. Esta Zona Central constituída ao longo da Linha Férrea da

Central do Brasil foi proposta também como parte de um sistema de mobilidade que

481 Doxiadis identificou este eixo como aquele que serviu de caminho para os carregamentos de ouro que chegavam através da Baía de Sepetiba, vindo de Paraty. (DOXIADIS, 1965, p.12).

482 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 340.

189

definia uma série de hierarquias para uma vasta gama de conexões rodoviárias por todo o

território. Neste caso, teria uma “high-speed expressway” e uma linha de Metropolitano.

Antevendo os altos custos da implementação dessa infraestrutura, Doxiadis previu a

reutilização do leito da Linha Férrea e o uso e comercialização dos direitos de construção

sobre essas estruturas, tendo como perspetiva a construção do eixo de mobilidade

rodoviário em mão e contramão, além da linha de Metropolitano. A perspetiva da

liberação do “espaço aéreo” possibilitaria a construção de uma “Multi-Storey Central Zone”,

segundo esquema da figura 24.

Esta Zona Central conformaria desta forma a ligação entre os dois importantes

núcleos urbanos previstos para o Estado da Guanabara, pontos focais do

desenvolvimento urbano, a partir da conexão entre uma centralidade constituída pela área

industrial e o novo porto de Sepetiba, com outra centralidade historicamente consolidada

que se estabeleceria como uma Zona Central Classe VII.

Figura 51. Indicação da Zona Central Classe VII que ligaria o CBD original à nova centralidade localizada em Santa Cruz junto ao porto de Sepetiba.

190

Figura 52. Corte esquemático da ocupação proposta para o espaço por sobre a Linha Férrea da Central do Brasil constituindo uma “Multi-Storey Central Zone.

Esta zona de funções centrais historicamente consolidada, de âmbito regional e

nacional, se desenvolveria ainda mais no sentido de um eixo de desenvolvimento saindo

do CBD em direção à região norte do Estado da Guanabara junto ao litoral da Baía de

Guanabara, estendendo-se até o extremo norte do Estado, conectando-se com a “Baixada

Fluminense”483 na Região Metropolitana. Essa Zona Central de Classe VIII, segundo

Doxiadis, seria o “centro de gravidade” de toda a área metropolitana, disponibilizando o

espaço necessário para a localização de funções servindo a região de forma mais ampla e

garantindo assim, a manutenção do domínio do Estado da Guanabara nos assuntos

metropolitanos484. Nessa área se estabeleceriam funções de importância regional e

nacional como Instituições administrativas de cunho Federal e Estadual (no caso do

Estado do Rio de Janeiro); usos comerciais e de negócios; parques e espaços abertos de

483 Trata-se da área pertencente à Região Metropolitana que se apresenta em maior conexão em relação ao tecido da cidade do Rio de Janeiro, confundindo-se num só continuum com diferentes definições administrativas. A Baixada Fluminense é composta pelos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti, Mesquita e Nilópolis.

484 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 336.

191

uso para recreação; assim como áreas de grande densidade para uso residencial incluindo

habitação de baixo custo para a população que seria empregada nesta Zona e na área do

Porto do Rio de Janeiro485. Desta forma a área definida manteria o CBD como ponto

focal regional e nacional, tendo seu desenvolvimento progredindo no sentido norte na

faixa entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara.

Essas duas zonas de funções centrais de categoria superior, uma “espinha dorsal”

(este-oeste) e outra “coração da área metropolitana” (centro-norte), somadas ao CBD,

tornar-se-iam as principais fontes do emprego e desenvolvimento da Guanabara486.

Figura 53. Indicação da Zona Central de Classe VIII que se desenvolveria a partir do CBD, à margem da Baía de Guanabara, na direção da Baixada Fluminense, no sentido norte metropolitano do território.

485 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 336.

486 Idem, ibidem, p. 259.

192

Além das questões apresentadas até aqui, interessa destacar a proposta de criação de

duas importantes áreas de recreação, de áreas verdes e de preservação. A primeira localizada

ao longo da faixa litorânea da Baía de Guanabara seguindo o eixo centro-norte de

desenvolvimento da Zona Central Classe VIII como mencionado anteriormente487, criando

parques, áreas de recreação e praias como uma possibilidade de recreação para a Zona Norte

da cidade, valorizando a Baía de Guanabara, repetindo o tema que se estende desde o CBD

até a Zona Sul da cidade na orla oceânica488. Outra área se desenvolveria por toda a orla

oceânica mais à oeste, se estendendo desde a margem da Baía de Sepetiba, passando pelo

Recreio, Barra da Tijuca, São Conrado e alcançando a Zona Sul da cidade. É importante para

esta investigação destacar que a proposta de Doxiadis manteve grande parte da Baixada de

Jacarepaguá (Barra da Tijuca) preservada, protegendo assim a zona agreste e ambientalmente

frágil do movimento que ele mesmo previa para a expansão da cidade, e que acabaria por

acontecer como será visto mais a frente no decorrer desta investigação.

A proposta do Plano Doxiadis buscava a construção de uma metrópole

polinucleada, que na lógica da teoria da Ekistics proporcionaria uma distribuição

equitativa de funções no Estado da Guanabara e para tal, além da constituição de

novas centralidades, fazia-se necessário desenvolver paralelamente uma nova rede de

alta velocidade organizada segundo corredores rodoviários489, mas que também

absorveu a perspetiva de planos existentes para o transporte por Metropolitano490. O

masterplan previa a construção de cerca de 403 quilómetros de autopistas e 517

quilómetros de vias principais que ajudariam a compor um padrão em grade que

favorecia a expansão, e um sistema, segundo o plano, mais equilibrado de mobilidade

em contraponto a convergência da rede existente na direção do CBD.

487 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 259.

488 Idem, ibidem, p. 336.

489 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 366.

490 Doxiadis apresenta no seu diagnóstico local as propostas da Comissão de Obras da Guanabara e a do Engenheiro Jorge Schnoor - Metropolitano do Rio de Janeiro - Secretaria Geral de Viação e Obras, Departamento de Urbanismo, 1962 (DOXIADIS, 1965, p. 105).

193

Figura 54. Mapa resumo da proposta com uma indicação de um zonamento geral.

A nova rede de vias concebida sob rígida hierarquia possuía um desenho

que conformava circunvalações estabelecidas dentro de uma malha, mais ou menos

em xadrez, alterada pela necessidade presente de submissão às características da

paisagem local. Essa rede especializada de mobilidade, privilegiando o

deslocamento sobre pneus foi de grande influência para a instalação, mais tarde, de

grandes artérias viárias que saíram do papel ao longo dos anos e que segundo

Carlos Lessa, contribuíram para a transformação do território à oeste já que a

concepção desta malha viária completaria “a metamorfose da Zona Oeste de rural

em industrial”491.

Por fim, merece ainda especial destaque um dos últimos itens da descrição

geral do Plano Doxiadis reproduzido a seguir:

“O plano diretor apresentado nas seções anteriores deve ser considerado como orientação geral para o desenvolvimento do Estado e não como um regulamento de zoneamento que libere desde logo grandes áreas de terra para expansão urbana. Tal

491 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 401.

194

procedimento resultaria em uma situação caótica e num desenvolvimento urbano disperso ao acaso. O Governo do Estado não pode suportar as despesas excessivas que resultam de um desenvolvimento urbano largamente disseminado, visto que a cada área em desenvolvimento devem ser prestados os serviços adequados. A expansão urbana deve por conseguinte, realizar-se em etapas, permitindo o aumento, num ritmo econômico, das redes urbanas e dos serviços de utilidade pública que o Estado precisa instalar a fim de servir a população dessas novas áreas” [grifos meus]492.

A posição contrária quanto à aplicação de suas orientações como mero

zonamento indica um posicionamento crítico de Doxiadis quanto ao uso burocrático da

ferramenta de zonamento. Mas sobretudo, a ideia de risco na utilização inadequada dos

preceitos do plano adianta preocupações que caracterizarão uma outra linha de

urbanismo que ainda levaria algum tempo para se estabelecer de forma mais efetiva, assim

como a realização da expansão proposta por etapas num “ritmo económico”. Esta última

característica encontra sua oposição no Plano que será apresentado em seguida, e que

buscava promover a ocupação quase que “instantânea” do território em que era aplicado

– uma cidade que já nascia pronta.

Quanto ao trabalho desenvolvido no Rio de Janeiro, pode-se dizer que Doxiadis

promoveu um plano baseado num estudo profundo da realidade do Estado da

Guanabara refletindo uma das principais características da Modernidade: a necessidade de

garantir o amplo conhecimento prévio do problema, seguindo a ideia de catalogação

iluminista, que dá a base para a mudança desejada. A partir daí, aplicou os desígnios de

uma teoria que ele próprio desenvolveu – a Ekistics. Uma racionalidade que poderia ser

adequada às cidades existentes em busca da construção de uma cidade ideal que se

espalharia pelo mundo afora como uma única estrutura – a “Ecumenopolis”. Este facto

sustenta a crítica, feita por Rezende, que enxerga uma desconexão entre a realidade e a

conceção por conceitos e medidas externas493. No entanto, a própria teoria aplicada inclui

a necessidade do conhecimento prévio e exaustivo da realidade presente e a atenção dada

às dinâmicas pré-existentes, atitude levada a cabo no processo de desenvolvimento do

492 DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da Guanabara, 1965, p. 294.

493 REZENDE, Vera, Planejamento Urbano e Ideologia: Quatro planos para a cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

195

plano que é comprovada a partir da análise tanto dos documentos originais quanto dos

três volumes de compilação de dados traduzidos, o que de certa forma enfraquece a

crítica quanto a uma incoerência entre a realidade da Guanabara e as ideias “forasteiras”

de Doxiadis. Não obstante, os princípios da Modernidade são identificáveis no Plano

Doxiadis: a certeza na mudança a ser executada através de um projeto amplamente

apoiado na razão e na análise científica rumo ao progresso definitivo. Este é o pano de

fundo da proposta. Embora como dissidente do modelo CIAM que levou ao limite esses

princípios, seja possível observar alterações importantes, especialmente no modo de

entender o princípio da mudança, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento das

dinâmicas históricas. No entanto, a ideia de construção de uma “Ecumenopolis” e a

construção de uma nova centralidade deixou uma marca na história do urbanismo local.

A ideia de expansão possível e desejável por sobre todo o território metropolitano e além,

e ainda a suposta necessidade de criação de uma nova centralidade, nesse caso em

equilíbrio com a já existente, são ideias que ficaram marcadas profundamente na reflexão

do urbanismo da cidade do Rio de Janeiro.

A influência de Doxiadis ficou registrada de diversos modos: na revisão do

Plano Rodoviário do Estado da Guanabara (1970), na ocasião de sua adaptação ao

Plano Rodoviário Nacional, quando da definição das autoestradas urbanas batizadas

como “linhas policrómicas”494; na consolidação da ideia da construção do Porto de

Sepetiba e consolidação de seu Distrito Industrial em Santa Cruz; na realidade da

expansão da cidade metropolitana e; de certa forma, na ratificação da ocupação

principalmente a oeste que se deu, de forma diferente do que previa Doxiadis,

acabando por tornar-se realidade junto ao litoral oceânico, através do Plano Piloto

para a urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de

Sernambetiba e Jacarepaguá de autoria de Lúcio Costa, doravante denominado como

Plano Lúcio Costa, que transformou e ainda transforma a cidade até os dias de hoje.

494 É comum se atribuir as “linhas policromáticas” diretamente ao Plano Doxiadis, no entanto é um erro já que no plano não há nenhuma indicação nesse sentido. Também as Avenidas Radial Oeste e a incompleta Radial Sul comumente consideradas de autoria de Doxiadis. No entanto, são projetos anteriores, propostos pela “Comissão do Plano do Rio de Janeiro” dirigida por José de Oliveira Reis entre os anos de 1938-48, que foram incluídos no diagnóstico e absorvidos pelo Plano.

196

No início da década de 1960, o Brasil era uma nação otimista em grande

efervescência cultural e, principalmente através da música transmitia para o mundo

uma gente de autoestima renovada. “Após quase duas décadas de democracia, o país se

sentia jovem, ousado, esperançoso e otimista” . JK tornara-se uma referência para os

presidentes brasileiros, conciliando desenvolvimento e democracia . Para o seu lugar o

Brasil elegeu Jânio Quadros (1917-1992), paulista de personalidade controversa como

registou a Revista TIME em 30 de Junho de 1961, quando publicou:

“Saindo não se sabe de onde para liderar a maior votação popular da história, Jânio Quadros aparece ao mundo como a própria imagem do Brasil – temperamental, brilhando com independência, ambicioso, assombrado com a pobreza, lutando para aprender, ávido de grandeza”498.

Figura 55: A posse do Presidente Jânio Quadros (centro), com o vice João Goulart (esquerda) e JK (direita) que entregava o cargo.

495 “O otimismo brasileiro exprimiu-se em uma nova corrente musical a bossa nova” (ENDERS, 2012, p. 189).

496 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 348.

497 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 189.

498 apud BUENO, Eduardo, op. cit., p. 355.

197

O momento positivo que perdurou durante o governo de JK era trocado por

outro bem mais conturbado politicamente, resultando em 25 de Agosto de 1961, menos

de seis meses depois de sua posse, na renúncia de Jânio e na posse do Vice-presidente

João Goulart (1919-1976). Jango, como era conhecido, governou num período de grande

instabilidade agravada por conta de “um choque entre duas visões conflitantes da política

e, especialmente da economia”499, levando os rumos da nação ao encontro do golpe de

Estado que mergulhou o país nas sombras da ditadura militar, sob um regime de exceção

que perduraria por mais de duas décadas.

A segunda metade da década de 1960 encontrou então o país sob o comando de

um regime militar que teve início após o golpe de 31 de Março de 1964. O Governo da

ditadura militar que se estabeleceu no Brasil foi dos mais precoces e mais duradouros da

América Latina,

“não foi o mais violento, mas ao fazer da guerra à subversão seu objetivo principal, o regime militar caracterizou-se pela criação de um sistema de repressão complexo, cujos órgãos tornaram-se cada vez mais autônomos e ousados. À mediada que a repressão intensificava-se, o regime militar procurou atrair a adesão da população, graças a uma política econômica com resultados espetaculares e uma propaganda ultranacionalista, que exaltava a grandiosidade e o poder do Brasil”500.

Figura 56. Emílio Garrastazu Médici, General de Exército e Presidente do Brasil (1969/1974).

499 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 360.

500 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 193.

198

O período do “milagre económico” brasileiro (entre 1967 e 1973) coincidiu com

os chamados anos de chumbo, “período mais esquizofrênico na vida da nação: oficialmente

tudo ia as mil maravilhas – o Brasil era o ‘país grande’ que ninguém segurava, o ‘país que

vai para a frente’. Enquanto isso, nos porões da ditadura, havia tortura, repressão e

morte”501. A declaração do General Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) em uma de

suas raras entrevistas dizendo “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”502, representava

bem o momento do país.

Após o fim do mandato de Carlos Lacerda em 1965, a Guanabara ficou, até

1970, sob a batuta de Francisco Negrão de Lima (1901-1981), que manteve o processo de

estruturação do Estado da Guanabara concentrado sobretudo nas grandes obras de

infraestruturas rodoviárias entre os anos de 1965 e 1970.

Grande parte das intervenções que tiveram curso na segunda metade da década

de 1960, ficaram, principalmente, sob a responsabilidade de um órgão técnico e setorial, o

Departamento de Estrada de Rodagem do Estado da Guanabara (DER), tendo como

foco principal a abertura de uma nova rede rodoviária no Estado. A atuação

predominante em área urbana obrigou o DER a adaptar as soluções para o tráfego

rodoviário à esta condição503. Assim, para aproveitar recursos federais, foram

desenvolvidos projetos especialmente adaptados para a construção de vias especiais

dentro da cidade, classificando-as como estradas. Dentro desta condição, foi proposto a

construção da continuação da estrada federal BR-101 cruzando a cidade no sentido este-

oeste. – “A partir da Rio-Santos, seria construída uma avenida entre o Recreio dos

Bandeirantes e Barra da Tijuca, abrir-se-ia o túnel Dois Irmãos (hoje túnel Zuzu Angel),

um trecho que estava por fazer da avenida Borges de Medeiros, o túnel Rebouças, o

501 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 375.

502 Idem, ibidem, p. 375.

503 Disponível na WWW: <URL: www.der.rj.gov.br/historico.asp > [Consult. 2013-03-03].

199

viaduto dos Marinheiros e a ponte Rio-Niterói”504. Esta possibilidade potencializou o

desenvolvimento no eixo este-oeste da cidade, e disponibilizou uma nova área do

território “que se estende dos campos e do Pontal de Sernambetiba até a Barra da Tijuca,

abrangendo em profundidade a vasta baixada de Jacarepaguá”505.

Apesar da perda da condição de capital e do início de tempos difíceis após o

golpe militar em 1964, o Rio, dividido entre as consequências negativas desses factos e o

desejo de se afirmar “Moderno” em contraponto à Brasília, aproveitou a oportunidade

para tentar reafirmar sua imagem e autoestima na Baixada de Jacarepaguá, num território

até então agreste que foi disponibilizado ao traço do mesmo arquiteto e urbanista que

havia concebido a nova capital do país. Lúcio Costa, quatro anos depois de Doxiadis,

assumiu o planeamento daquela nova área de expansão que era, em boa parte preservada

no Plano de Doxiadis, elaborado quatro anos antes. Os princípios da Modernidade

voltaram a ser postos em prática, mas agora numa proposta alinhada às ideias dos CIAM.

Com isso, “a resposta do Rio seria fazer outro movimento pela costa para, como Fênix,

renascer. Entra e Novacap e a Belacap o carioca, confiante quanto ao futuro, apostou nesta

última e voltou seu olhar em direção à Barra da Tijuca”506.

Figura 57. A metade inferior do anel rodoviário a ser construída ligaria as duas pontes da Avenida Brasil

504 DOMINGUEZ PEREZ, Maurício, Lacerda na Guanabara - a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007, p. 230.

505 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 344.

506 Os termos Novacap e Belacap referem-se à Brasília e Rio de Janeiro respectivamente. (LESSA, 2001, p.289).

200

passando pela Zona Sul e franqueando o litoral à oeste à ocupação (1966).

Figura 58. A Barra da Tijuca e a Baixada de Jacarepaguá vistas como lugar do Futuro sob o traço de Lúcio Costa (1970).

Lúcio Costa (1902-1998) foi um dos mais importantes arquitetos brasileiros,

formado pela Escola Nacional de Belas Artes em 1924. Tornou-se diretor da Escola seis anos

mais tarde, um ano após a primeira visita de Le Corbusier ao Rio de Janeiro. Foi um adepto

convicto das práticas estabelecidas nos CIAM após ser apresentado aos seus dogmas por

Carlos Azevedo Leão (1906-1983), amigo e sócio, que havia trabalhado com Gregori Ilych

Warchavchik (1896-1972), arquiteto ucraniano que construiu em São Paulo (1928) a primeira

casa brasileira dentro dos preceitos dos CIAM. A identificação de Lúcio Costa com as ideias

dos CIAM foi grande e logo percebida. Foi ele o principal entusiasta do retorno do mestre Le

Corbusier, em 1936, para avaliar o projeto do edifício do Ministério da Educação e Cultura

(MEC), que se tornaria manifesto e obra-prima da arquitetura moderna brasileira507.

A partir da década de 1930, o urbanismo moderno dos CIAM foi consolidando,

pouco a pouco, a sua hegemonia no Rio de Janeiro508. O Plano Lúcio Costa foi o ponto alto

desse processo509. Os princípios da Modernidade, como vistos até aqui, eram amplamente

507 Le Corbusier já havia estado no Rio de Janeiro, sete anos antes em 1929.

508 Também o Plano de Affonso Eduardo Reidy para urbanização da área do desmonte do Morro de Santo António (1948), a Cidade Universitária de Jorge Machado Moreira (1955) e o próprio parque do Aterro do Flamengo (1965) são exemplos desta tendência. Para saber mais sobre estes projetos consultar: MINDLIN, Henrique E., Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999.

509 REZENDE, Vera; LEITÃO, Gerônimo, O Plano Piloto para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá: Intenções e realizações após três décadas. Rio de Janeiro: UFF, 2004, p. 13.

201

compartilhados por aquela geração de arquitetos. Nesta perspetiva, Lúcio Costa alertava para

a importância da razão num discurso quase teológico em defesa da “inteligência moderna”:

“O Novo Mundo não está mais à esquerda ou à direita, mas acima de nós; precisamos elevar o espírito para alcançá-lo, pois não é mais questão de espaço, mas de tempo, de evolução e de maturidade. O Novo Mundo agora é a Nova Era, e cabe a inteligência retomar o comando” [grifo meu]510.

Figura 59. O Edifício do Ministério da Educação e Cultura - Edifício Gustavo Capanema (1937-43) projetado pela equipe composta por: Lúcio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani

Vasconcellos e Jorge Moreira Machado, com consultoria de Le Corbusier.

Figura 60. Risco de Le Corbusier para o Edifício do Ministério da Educação e Cultura (1936).

510 Lúcio Costa, para alunos da "Law School" em Harvard, em 1962. apud REZENDE; LEITÃO, 2004, p. 13.

202

No ano de 1957, Lúcio Costa, venceu o concurso para a conceção da cidade de

Brasília com um projeto que viabilizava a concretização do sonho de JK. Uma cidade

inteiramente nova, moderna, foi concebida no longínquo e deserto planalto central. No

Plano Piloto para Brasília, Lúcio Costa aplicou, viabilizando o símbolo do futuro sonhado

pela nação, as principais linhas desenvolvidas pelos CIAM na Carta de Atenas.

Quase uma década depois, teria então a oportunidade de trabalhar com os

anseios de futuro dos cariocas, desenvolvendo um plano para a região quase intocada da

Barra da Tijuca, do Pontal de Sernambetiba e de Jacarepaguá, a oeste do território, junto à

orla, zona que se disponibilizava para a expansão da cidade. O Plano Lúcio Costa foi

desenvolvido para esta região, limitada pelos maciços da Tijuca e da Pedra Branca, com

aproximadamente vinte quilómetros de praia disponíveis, e cerca de cento e vinte

quilómetros quadrados de terrenos praticamente planos511, uma “tabula rasa natural”

disponível aos ideais dos CIAM e de Lúcio. Seria a oportunidade de construir para o Rio

um “novo futuro”, “Moderno”, “róseo”, redenção tão sonhada depois da perda da

condição de capital.

Embora o Plano Lúcio Costa não seja um plano para toda a Cidade-Estado, ainda

menos para a Região Metropolitana, seu autor, seguindo os preceitos dos CIAM, não

poderia desenvolvê-lo sem observar a escala alargada da região, propondo novas

dinâmicas para a Metrópole: “Para perceber devidamente o vulto e alcance do problema,

será conveniente antes de mais nada, encarar o futuro provável desta área no quadro geral

do destino urbanístico da Guanabara”512.

Lúcio Costa fez na sua proposta uma expedita análise da formação da Cidade do

Rio de Janeiro, sua paisagem e a formação do núcleo original, bastante diferente daquela

produzida por Doxiadis que era muito mais ampla e completa, absorvendo inclusive

propostas já existentes. Nesta perspetiva simplificadora, Lúcio concluiu que o

511 REZENDE, Vera; LEITÃO, Gerônimo, O Plano Piloto para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá: Intenções e realizações após três décadas. Rio de Janeiro: UFF, 2004, p. 16.

512 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 346.

203

desenvolvimento da cidade se deu seccionada entre as zonas norte, “espraiada e difusa”, e

sul, “concentrada e densa” (croqui nº 4 reproduzido na página 198). A partir desta

perspetiva, propôs a área do plano como eixo “natural” norte-sul de ligação por entre os

maciços existentes concebendo o que seria um novo CBD, uma nova estrutura para a

cidade no intuito de forçar um certo equilíbrio onde este novo centro não seria apenas

“o futuro Centro Metropolitano norte-sul, (...) mas também leste-oeste, ou seja, como o correr do tempo, o verdadeiro coração da Guanabara” [grifo meu]513 (croqui nº 5 reproduzido na página 198).

O Plano Lúcio Costa, de certa forma, implementava decisões de carácter mais

amplo, derivadas do Plano de Doxiadis514. Tal afirmação pode ser comprovada tendo-se em

conta pelo menos três pontos específicos: (i) a questão da expansão da ocupação do

território, (ii) o desenvolvimento de uma nova centralidade e a (iii) estruturação de dois

eixos de desenvolvimento norte-sul e este-oeste.

O próprio Lúcio Costa utiliza o Plano Doxiadis para construir a retórica de sua

proposta. Louva o levantamento elaborado pelo arquiteto grego – de facto essa compilação

de dados foi única e extremamente útil por um largo período de tempo como indica Vera

Rezende515, comentando-o positivamente sem deixar de ser ácido no que lhe interessa:

Figura 61. A retórica de Lúcio Costa como salvadora da “unidade” do Rio (1969).

513 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 348.

514 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 366.

515 FREIRE, Américo; OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org), Novas memórias do urbanismo carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 89.

204

Figura 62. O Plano Lúcio Costa.

Figura 63. Os croquis de Lúcio Costa da análise expedita do território da Cidade-Estado que ajudaram a construir a retórica do Plano.

205

“[O Plano Doxiadis é uma] valiosa compilação e coordenação de dados visando ao estabelecimento de um arcabouço de infra-estrutura capaz de permitir o crescimento harmônico da cidade – plano elaborado com a cooperação de técnicos locais –, dá a devida ênfase à dupla penetração no sentido da base industrial e portuária de Sepetiba e reconhece a fatalidade da criação de um novo pólo CBD (Central Business District) para contrabalançar o CBD original, isto é, o atual centro da cidade, mas propõe a sua localização em algum ponto ao longo desse eixo de preferência na altura de Santa Cruz” [grifos meus]516.

No entanto, Lúcio Costa desdenha das opções feitas por Doxiadis no intuito de

reforçar e construir a retórica da proposta que desenvolvia:

“É que na ânsia de atapetar o estado de fora a fora para o ano 2000, ou seja, para amanhã, com uma trama esquemática uniformemente urbanizada, talvez subestimassem a carga propulsora representada pela implantação da BR-101, escapando-lhes então que – sem embargo do acerto da previsão de um centro complementar em Santa Cruz, vinculado à área industrial e portuária de Sepetiba – a baixada de Jacarepaguá é o ponto natural de confluência dos dois eixos leste-oeste, o do norte rodoferroviário, e o rodoviário do sul” [grifos meus]517.

Também aqueles que estiveram imbuídos do desenvolvimento do Plano Lúcio Costa

não perderam a oportunidade para alfinetar o Plano Doxiadis. O Engenheiro Raymundo de

Paula Soares, em prefácio da publicação do Plano descreve-o da seguinte forma:

“Começa a erguer-se na Baixada de Jacarepaguá a mais bela cidade oceânica do mundo. O Rio do futuro nasce com filosofia própria, planejado, medido, calculado, imposição e conseqüência do anel rodoviário e das obras do DER na região. Traz, também, no seu bojo conceito nosso de que tal planejamento não poderia resultar do raciocínio frio de computadores. Daí a presença de Lúcio Costa. [...] É a transformação em realidade do sonho de ‘Cidade Maravilhosa’” [grifos meus]518.

O Engenheiro Secretário de Obras Públicas do Governo da Guanabara não

deixa de tecer crítica mais ou menos velada ao modelo desenvolvido pelo Plano Doxiadis,

contratado pelo Governo anterior, e de destacar o mito heroico do especialista capaz de

transformar o sonho em realidade, garantindo o progresso rumo ao futuro róseo.

516 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 347.

517 Idem, ibidem, p. 347.

518 Idem, 1969.

206

Mas é na diferença entre as ideias que se tocam em Doxiadis e Lúcio, no que

tange aos três pontos já citados que envolvem o tipo de expansão, a criação de uma

centralidade nova e a criação de dois eixos de desenvolvimento para a cidade, que o Plano

Lúcio Costa se torna de grande importância para o entendimento da estrutura e das

dinâmicas da cidade até os dias de hoje.

Já foi dito que ambos conceberam seus Planos com o intuito de influenciar o

quadro geral metropolitano alterando o destino da estrutura urbanística da Guanabara.

Enquanto Doxiadis procurava o equilíbrio da estrutura metropolitana sem abrir mão do

que estava em parte consolidado, Lúcio se colocou em oposição à cidade existente. Se

observado o croqui nº 6 reproduzido na página 198, pode-se concluir que Lúcio Costa

altera a posição do eixo norte-sul proposta por Doxiadis junto à Baía de Guanabara, por

uma proposta mais “cartesiana”, em função apenas do território da cidade (excluindo a

metrópole), passando pelo centro geográfico do território, ignorando deliberadamente a

existência de uma dinâmica histórica de conexão norte-sul que se dá a partir do CBD.

Inclusive, vale destacar que Lúcio Costa não indica em seus desenhos a região

metropolitana embora tenha a pretensão de promover a mudança de seu “centro

nervoso” através de sua proposta. Não foi por descuido que Lúcio ignorou o território

metropolitano. Se levado em conta, poria por terra a retórica da centralidade “cartesiana”

na Baixada de Jacarepaguá. Também o eixo este-oeste que ligaria o CBD até Sepetiba

observado no mesmo croqui nº6, demonstra uma indicação forçada, em “V”, com vértice

na nova centralidade proposta, quando o “mais natural”, se observada as pré-existências

da cidade, seria essa ligação mais à norte do território, evitando os maciços, e respeitando

o território por onde a cidade já se desenvolvia.

Figura 64. Pedra da Panela em destaque na paisagem da baixada.

207

Figura 65. O “Novo Centro Metropolitano”, proposto por Lúcio Costa em montagem sobre foto de satélite de 2014.

Figura 66. Comparação entre as dimensões da Barra da Tijuca e de Brasília.

No entanto, para Lúcio Costa as pré-existências da cidade não eram

propriamente um impasse para o seu desenho que pressupunha a tabula rasa, no máximo

as referências naturais avaliadas como de maior destaque paisagístico poderiam ser

relevantes, assim como a Carta de Atenas destacava e previa preservar o património

construído escolhido “a dedo” pelos especialistas. O que interessava era a retórica que

permitiria a mudança, erguendo na Baixada de Jacarepaguá uma nova cidade, o novo e

208

verdadeiro “coração da Guanabara”. Sob esta perspetiva, o designo estabelecido por

Lúcio Costa supera qualquer expectativa de que se tratava tão-somente de uma área de

expansão da cidade que continuava seu caminho a beira-mar enquanto houvesse costa.

Também não se tratava da construção de uma rede de novas centralidades capazes de

reduzir as pressões sob as outras existentes e por ventura estagnadas como pregava

Doxiadis. Para ele, “o que está concomitante e verdadeiramente em jogo é a própria

estruturação urbana definitiva da Cidade-Estado”519. Lúcio Costa propunha a substituição

da centralidade histórica metropolitana por uma outra, nova e “moderna”, concebida de

raiz, assim como Brasília. Não apenas uma nova área de expansão da cidade mas sim uma

nova capital: “O Centro Metropolitano norte-sul/leste-oeste, fará da baixada, de certo

modo, a futura capital do estado” [grifo meu]520.

A preocupação com as questões ambientais como quando destaca o “ar lavado e

agreste”, as dunas e praias que promovem a sensação de que “o primeiro impulso,

instintivo, há de ser sempre o de impedir que se faça lá seja o que for”521, encobria uma

retórica de valorização da área. A preservação seria flexibilizada quando as benesses do

progresso se impusessem e apenas as “obras de exceção” da natureza teriam destaque,

sempre numa perspetiva de composição estética da paisagem. A pedra de Itaúna e da

Panela foram as eleitas por Lúcio Costa522 como duas daquelas “peculiaridades que

importa[va] preservar”523. O aterro inevitável, as Palmeiras Imperiais deslocadas do

contexto524 e a construção de pontes por sobre áreas de reserva biológica, seriam também

519 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 348.

520 Idem, ibidem, p. 351.

521 Idem, ibidem, p. 348.

522 Idem, ibidem, p. 349-350.

523 Idem, ibidem, 1995, p. 348.

524 Sobre as Palmeiras Imperiais é curioso destacar o trecho do memorial de projeto onde fica evidente a imposição pictórica de ordem exclusivamente estética estabelecendo uma contradição com o próprio discurso retórico do autor de preservação da paisagem local. Lúcio Costa, por sua vez, reconhecia esta condição contraditória, no entanto, não abria mão do seu traço de autor:

“Esse problema paisagístico da Baixada é fundamental devendo a tarefa caber, por todos os títulos, a Roberto Burle Marx, senhor de Guaratiba. E a primeira impugnação que ele certamente fará, há de ser a esta sugestão, um tanto contraditória, referente à arborização da Via 11 no trecho reto compreendido entre a BR-101 e o futuro Centro: a importância dessa via nobre, cujas margens deverão levar aterro apropriado, só comporta uma espécie de vegetação - a palmeira imperial. Dirão que ela não vingará, que destoa das dunas e contradiz o que anteriormente se estipula. Pouco importa, deve-se preparar o terreno e plantar. Elas estarão em harmonia com a futura ambientação arquitetônica [grifo meu]” (COSTA, 1995, p.353).

209

exceções viáveis “para a composição paisagística do conjunto”525. Ainda, a proposta de

proibição de telhados “vermelhos” que deveriam ser pintados de verde, confirmam a

preocupação fundamentalmente estética, até pictórica, na definição da paisagem local,

buscando “a coerência urbano-ambiental capaz de compensar, numa certa medida, pelo

agreste perdido”526.

Lúcio Costa era um especialista em promover um desenho que possibilitasse a

realização plena de seu projeto em curto espaço de tempo, Brasília havia sido o mais

vitorioso exemplo, construída em cinco anos. No, entanto Brasília guardava importantes

diferenças com a área disponibilizada pela cidade do Rio de Janeiro. Brasília era

significativamente menor e a propriedade fundiária era outra importante diferença. Em

Brasília toda a área de implantação da nova capital era de propriedade do Estado,

podendo assim aplicar com rigor as definições estabelecidas pelo plano527. No caso da

Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá o sítio era basicamente de propriedade

privada. Ao Estado caberia a responsabilidade de definir e investir na construção da

estrutura viária e infraestruturas, e promover diretrizes para a ocupação. Lúcio Costa

tentou lidar com este facto propondo uma Comissão permanente de análise dos

empreendimentos privados onde ele, o autor, figuraria como principal nome.

Lúcio traçara dois grandes eixos como em Brasília, em formato de cruz, e

promoveu um rigoroso zonamento tendo como base dogmas dos CIAM – edifícios

isolados, cercados de vasto espaço livre. O eixo horizontal (este-oeste), composto pela

BR-101, construída pelo DER, garantia a integração rodoviária com a Zona Sul da cidade,

seguindo até o CBD. O outro eixo vertical estruturaria localmente a própria região

conectando-a ao que se tornaria o novo Centro Metropolitano. Este eixo claramente não tinha

a mesma importância daquele proposto por Doxiadis, no mesmo sentido norte-sul, não

possuindo a característica de integração metropolitana da proposta anterior. Vale destacar

que Lúcio Costa propôs, ainda, um “mono trilho” até a Cidade Universitária e o

Aeroporto Internacional, passando pelo eixo Madureira-Penha, hoje rota de novas

525 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 350.

526 Idem, ibidem, p. 356.

527 REZENDE, Vera; LEITÃO, Gerônimo, O Plano Piloto para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá: Intenções e realizações após três décadas. Rio de Janeiro: UFF, 2004, p. 10.

210

propostas da rede de mobilidade vinculados à realização de megaeventos no Rio de

Janeiro, por sua vez influenciada pela malha viária de Doxiadis528.

Centrado na ocupação da nova área de expansão que se disponibilizava ao seu

traço, Lúcio lançou mão de um estratagema que permitisse a ocupação rápida e completa

de toda a área do Plano. A ocupação do território foi proposta de modo a constituir-se

um conjunto de núcleos de urbanização diversa e autónoma, ao longo de toda a BR-101,

com afastamento de um quilómetro entre eles e diferentes tipologias, dando destaque

para torres de grande altura, entre vinte e cinco e trinta pavimentos. Os diversos núcleos

espaçados, segundo esse esquema de Lúcio, permitia a ocupação quase que imediata de

todo o território opção que ia de encontro ao discurso de Doxiadis que indicava a

necessidade de uma expansão paulatina por conta dos custos implicados ao poder público

que envolvia às infraestruturas, serviços e a manutenção. O Plano Lúcio Costa, motivado

pelas ações setoriais do DER, que disponibilizava o território com a abertura de vias e

construção de viadutos que permitiram acesso franco à região, optou pela sua rápida

ocupação como forma de assegurar o desenho proposto. O desejo era o de garantir “a

escala definitiva” do Plano, como dizia o próprio autor.

O Plano Lúcio Costa foi consolidado no dia 23 de Julho de 1969 através do

Decreto-lei nº42 (incorporado posteriormente ao Decreto E nº3.800 de 20 de Abril de

1970, regulamento da lei de desenvolvimento urbano e regional do Estado da

Guanabara), estabelecendo que a região constituída pela Barra da Tijuca, nos limites

definidos pelo “Plano de Alinhamento - 5.596”, seria disciplinada pelo Plano Lúcio Costa.

Neste mesmo dia, o “Decreto E - nº2.913”, criou o grupo de trabalho de

coordenação do desenvolvimento e implementação do Plano, a SUDEBAR

(Superintendência de Desenvolvimento da Barra da Tijuca), que teve Lúcio Costa como

consultor legalmente nomeado, onde seria possível analisar propostas de

empreendimentos quanto a sua adequação às ideias do Plano, “a fim de evitar que

exigências secundárias cheguem a ponto de invalidar numa penada empreendimentos

528 Ver 5º Capítulo, item III.B.

211

merecedores de aprovação”529. A relativa flexibilidade proposta por Lúcio Costa com a

criação da comissão de avaliação da SUDEBAR permitiu que, com o passar dos anos,

modificações fossem realizadas, alterando gabaritos, usos e condições de parcelamento530.

Figura 67. Afinal, o paraíso é aqui! Na Barra da Tijuca! (1973).

Figura 68. A Barra vendida como novo polo económico do Estado (1974).

529 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 357.

530 REZENDE, Vera; LEITÃO, Gerônimo, O Plano Piloto para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá: Intenções e realizações após três décadas. Rio de Janeiro: UFF, 2004, p. 17.

212

Com a alta valorização dos bairros localizados no litoral da Zona Sul da cidade, já

amplamente ocupados, o setor imobiliário, passou a pressionar de forma cada vez mais

intensa no sentido de disponibilização das zonas de litoral mais à oeste. A partir de então,

em consonância com os interesses do mercado, o desenvolvimento da região tornou-se

prioridade dos governos que desestimularam a ocupação em outras áreas da cidade.

Enquanto isso, novos incentivos para garantir a conexão com a zona de expansão da

cidade foram levados a cabo. Ainda no Governo Francisco Negrão de Lima, são

exemplos a pavimentação da Avenida Alvorada (via 11), eixo norte-sul do Plano, hoje

Avenida Ayrton Senna, e da Avenida das Américas, eixo este-oeste; e a construção do

elevado dos Bandeirantes (túnel Dois Irmãos, Joá e São Conrado) também conhecido

como Elevado do Joá531. Este último só foi concluído no Governo de Chagas Freitas

(1914-1991), no poder entre 1975 e 1979, que executou também novas obras de conexão.

No Governo do Prefeito Marcos Tamoyo (1926-1981), foi definida uma legislação

específica para incentivar o uso e ocupação da região, levando a efetivação dos conceitos

do Plano de Lúcio Costa, no dia 5 de Março de 1976, foi publicado o “Decreto nº324” que

institucionalizou o Plano de forma definitiva.

Figura 69. Anúncios de lançamentos imobiliários na Barra da Tijuca; (1977 e 1979).

531 Atualmente em duplicação para servir à logística dos Jogos Olímpicos de 2016.

213

A explosão dos lançamentos imobiliários de condomínios cercados por

segurança e serviços variados e a multiplicação das grandes superfícies de comércio e

lazer formaram o mote do desenvolvimento da região até os dias de hoje. Nesse contexto

de crescimento imaginava-se que, na Barra da Tijuca, como no sonho de Lúcio Costa,

fortemente influenciado pelos CIAM e Le Corbusier532,

“um dia afinal [surgiria], definitiva, a Metrópole”533.

O que mais importa reter da análise do Plano Lúcio Costa é a proposta de

desenvolvimento de uma nova centralidade metropolitana e a intenção de com isso,

instaurar a Modernidade. O desejo de mudança e a confiança no futuro preconizado pelo

desígnio do especialista incentivou, desde então, amplo e irrestrito investimento público

para a expansão à oeste, que se deu sob um aura quase mística de legitimação. Magalhães

comenta essa característica observando que

“Não foi necessário que o projetado Centro Metropolitano até hoje não se tivesse materializado [hoje em vias de concretização]; o próprio autor considerava que ele seria construído muitas décadas à frente. A mística, assim adquire valores que transcendem as possibilidades reais e alcançam o beneplácito das certezas – porque, no futuro, todos poderemos comprovar... Trata-se pois, do mesmo arcabouço ético que promoveu, e continua a promover, a ruptura com a cidade existente e permitiu que grandes trechos pudessem ser descaracterizados ou demolidos na perspectiva de que o futuro já estava definido”534.

Lúcio Costa, alinhado com as ideias dos CIAM, estabelecia para a construção do futuro

do Rio de Janeiro, um plano que seguiu a risca os princípios da “Modernidade sólida”. A ideia

de mudança se realizava através da oposição à cidade, com a definição de uma nova centralidade

532 Lúcio Costa de forma sutil indica essa influência “Corbusiana” no fim do memorial do Plano através de uma metáfora história referindo-se à chegada dos franceses em terras cariocas no século XVI: “De volta, assim, ao chão do futuro Centro da cidade, encerra-se esta “randonnée” urbanística imaginária. Tal como no primeiro século, quando nasceu, com Villegagnon, na Guanabara, também agora, ao renascer na Barra, a presença da França se faz sentir, pois foi provavelmente na praia de Sernambetiba, protegida pelo Pontal, que Du Clerc desembarcou a sua tropa, e não em Guaratiba, onde ancorou, porque, dispondo de uma praia acessível e resguardada, não teria o menor cabimento, já que o propósito era alcançar a cidade, desembarcar do outro lado da serra.

Seja como for, é comovente a lembrança, nesta oportunidade, quando se cogita de urbanizar a região, daquelas centenas de soldados de Luís XIV, de botas e tricórnio, a embrenhar-se terra adentro em busca dos vales, ou a bordejar as faldas da montanha, para evitar as lagoas e os canais, seguindo então a trilha que seria depois a estrada de Guaratiba, atual Bandeirantes, e passando ao largo deste descampado onde um dia afinal surgirá definitiva a Metrópole [grifos meus] ” (COSTA, 1995, p. 354).

533 COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 354.

534 MAGALHÃES, Sérgio, Ruptura e Contigüidade. A cidade na incerteza. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, PROURB. Tese de Doutoramento, 2005, p. 154.

214

metropolitana em substituição a existente. Na oportunidade da expansão sob o vazio se

construiria a nova cidade, confiante de que o progresso estabelecido pelo projeto, pelo dogma

do urbanista especialista, resultaria na construção de um futuro radioso.

Os anos 1970, ainda sob o regime militar, abrigaram a parte final do momento positivo

da economia brasileira que ficou conhecido como o período do “milagre económico”535. O final

dessa fase foi também o início de uma crise que se estendeu até o fim do século XX. Embora, o

“milagre” tenha-se desenrolado até 1973, uma crise especulativa ocorrida dois anos antes já

indicava seu desfecho e suas consequências. Em 1972, Robert McNamara, presidente do Banco

Mundial, criticava o “milagre” e o próprio país por sua política de concentração de renda e

aumento das desigualdades: “O ‘milagre econômico’ em vez de favorecer a ‘integração nacional’

agravou o desequilíbrio entre as diferentes regiões do Brasil”536. O primeiro choque do petróleo

em 1973, com a guerra do Yom Kippur, agravou a situação iniciando o processo de alta da

inflação e aumento da dívida externa.

Figura 70. Guerra do Yom Kippur. (1973).

535 A partir de 1967 quando o país apresentava um quadro com sinais de recessão, o Governo passou a estimular investimentos nas empresas estatais nas áreas petroquímicas, de siderurgia, de energia entre outras, gerando assim um efeito positivo que gerou um grande número de empregos aumentando a renda especialmente da classe media. Como consequências negativas desse processo apontam-se o crescimento da dívida externa e do abismo de desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres.

536 apud ENDERS, 2012, p. 207.

215

Com o início do governo do General Ernesto Geisel (1907-1996), a partir de 1974,

deu-se o início do processo “lento, gradual, e seguro” de abertura política, que se deu num

quadro de grande crise económica. Como resposta a esta condição o Governo criou o II PND -

Plano Nacional de Desenvolvimento, que ficou conhecido como o projeto “Brasil Grande

Potência”, procurando dar conta dos impactos do primeiro choque petrolífero de 1973 e

salvaguardar a construção do futuro da nação através de um novo ciclo desenvolvimentista. No

entanto, embora tenha conseguido movimentar, em parte, a economia, os resultados foram

ainda mais críticos em relação à dívida externa do país e à inflação.

Entre 1979 e 1985, durante o governo do General João Figueiredo (1918-1999), o

país passou pelo primeiro quadro de recessão desde 1945537. A crise se agravou, influenciada

pelo segundo choque petrolífero de 1979, causado pela Revolução Iraniana e a Guerra Irão-

Iraque. Como consequência houve a disparada dos juros, aumento da dívida e a inflação

alcançou o patamar de 211% ao ano em 1983, levando o país a pedir ajuda ao Fundo

Monetário Internacional. Na política, a “abertura” teve continuidade com a concessão da

amnistia “ampla, geral e irrestrita”, e com o fim do bipartidarismo, levando paulatinamente a

mobilização popular e partidária que resultou no movimento das “Diretas Já!”, “onde boa

parte da população urbana do Brasil saiu às ruas para promover, em Abril de 1984 e também

em Abril do ano seguinte, enormes manifestações populares, comoventes e intensas, que

trouxeram a história de volta às praças e avenidas do país”538.

O saldo do movimento foi importantíssimo, não obstante, parcial, resultando na

eleição indireta de Tancredo Neves (1910-1985) para a Presidência da República em 1985.

O ânimo da conquista foi subitamente extinto e trocado por um rol de incertezas com a

trágica morte de Tancredo antes mesmo de tomar posse. O momento histórico positivo

para a nação, deixou ainda um travo amargo devido à ligação do vice, José Sarney (1930-),

levado ao poder em 15 de Março de 1985, com os próprios militares.

O Brasil tinha o primeiro presidente civil depois de vinte e um anos de ditadura

militar, e durante os cinco anos de mandato que se seguiram foram grandes as dificuldades

537 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 208.

538 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 396.

216

económicas e constante o combate fracassado contra a inflação. Na tentativa de combater a

herança económica do regime militar, uma divida interna e externa e uma inflação altíssima e

sem controlo, o governo de José Sarney pôs em prática diversos planos económicos que não

surtiram o efeito desejado539, resultando num salto da inflação entre 1986 e 1990, de 57% para

aproximadamente 1.200% ao ano, respetivamente.

Figura 71. TAXA ANUAL DE INFLAÇÃO NO BRASIL (1983-1995)

1983 211,02% 1984 223,90% 1985 237,72% 1986 57,40% 1987 365,70% 1988 933,60% 1989 1.765,00% 1990 1.198,50% 1991 481,50% 1992 1.158,00% 1993 2.708,50% 1994 1.304,40% 1995 23,30%

A década de 1980 ficou marcada negativamente como a “década perdida” para os

brasileiros540. No entanto, foi em 5 de Outubro de 1988, promulgada a Constituição

Federal do Brasil, que permanece até os dias de hoje, um marco histórico para a recém-

nascida democracia brasileira, e que estabeleceu em seu artigo 182 a obrigatoriedade da

elaboração de Planos Diretores para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes. Era

alvissareiro a inserção do tema urbano no debate nacional. No entanto, segundo Flávio

Villaça, a ideia refletida no artigo 182 nunca havia sido reivindicada por nenhum grupo,

nem mesmo pelo setor imobiliários. No entanto, foi este último que acabou por

promover o tema na tentativa de neutralizar em contraponto, as pressões populares

reivindicando questões envolvendo temas como o da propriedade imobiliária urbana, o

acesso à terra, habitação, gestão urbana, entre outras541.

539 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 218.

540 A denominação “década perdida” é utilizada para caracterizar a grave estagnação econômica que os países latino-americanos sofreram nos anos 1980. No Brasil, durante esse período, foram marcantes o desemprego, os altos índices de inflação, a diminuição da capacidade de consumo e o aumento do déficit público e da dívida externa (MOTTA, 2001, p. 47).

541 VILLAÇA, Flávio, A crise do Planejamento Urbano. São Paulo em Perspectiva, 9(2), 1995, p. 50.

217

Entre as décadas de 1970 e 1980, as cidades brasileiras consolidaram um processo

acelerado de crescimento. Em 1970 “eram 90 milhões em ação”542, no ano de 1991 o Brasil

chegaria a quase 148 milhões de habitantes, e destes somente 30% estavam em áreas rurais543,

e assim as cidades cresciam proporcionalmente. Ainda que este tenha sido um desafio

importante, o país, focado na luta política por democracia e nas questões económicas como a

batalha que se perdia contra a inflação, deixou as cidades à margem da atenção e dos esforços

do país. Os estudos de Magalhães, que demonstram o aumento da construção irregular no

período e a falta de crédito disponível para moradia, corroboram com a afirmação de que as

cidades não estiveram na agenda política brasileira544.

Figura 72. Jornal da Tarde - O Estado de São Paulo. São Paulo, 26 de Janeiro de 1984.

542 Verso da canção que embalou o tri campeonato mundial de futebol: “Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil/ Do meu coração/ Todos juntos vamos/ Pra frente Brasil/Salve a Seleção”. Segundo o IBGE a população brasileira em 1970 era de 93.139.037 habitantes.

543 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 190.

544 Para saber mais sobre o tema consultar: MAGALHÃES, Sérgio; IZAGA, Fabiana; PINTO André Luiz, Cidades: mobilidade habitação e escala, um chamado à ação. Brasília: CNI, 2012, p. 51 et. seq.

218

No Rio de Janeiro, as décadas de 1970 e 1980 reproduziram a crise que assolou o

país sendo agravada pelo confronto com importantes ajustes administrativos. Em 1974, o

Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, foi surpreendido mais uma vez. Assim como

quando deixou de ser capital do país, foi rebaixada na sua qualidade de ente da Federação

através da extinção da sua condição de Cidade-Estado, consolidando uma linha de

esvaziamento potenciada pelas inúmeras dificuldades sociais e económicas que se

estabeleciam refletindo o quadro brasileiro.

A perda da condição de Cidade-Estado, com a fusão das unidades da

Federação correspondentes ao Estado da Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro, já

havia sido cogitada nas Constituintes de 1934 e na de 1946 como consequência da

transferência da capital para o interior do país545. No entanto, a mudança só foi

decretada pelo Presidente Ernesto Geisel no dia 1º de Julho de 1974, e efetivada em

15 de Março do ano seguinte, cercada por uma aura autoritária que refletia interesses

políticos e estratégias económicas.

O novo Estado do Rio de Janeiro, onde a cidade de Niterói perdeu a condição de

capital para a cidade do Rio de Janeiro, nasceu enfrentando importantes desafios: como

viabilizar a fusão real entre dois Estados bastante diferentes em termos sociais, políticos e

económicos; e como identificar o real papel do Projeto “Brasil Grande Potência” de Geisel no

equilíbrio do renovado ente federativo. A conjuntura política do país, e os mecanismos

autoritários do regime militar, facilitaram a composição política necessária à efetivação da

fusão546. A integração política entre Guanabara e Estado do Rio de Janeiro era vista como

uma forma de realizar também a integração económica entre os Estados, consolidando um

novo polo produtivo com efeitos para a nação547. No entanto, havia dificuldades importantes

em relação à identidade política e cultural carioca e a cidade se ressentiu por ter perdido,

545 MOTTA, Marly Silva da, “A fusão da Guanabara com o Estado do Rio: desafios e desencantos” in FREIRE et al., 2001, p. 21.

546 Idem, ibidem, p. 24.

547 Idem, ibidem, p. 25.

219

sucessivamente, o estatuto de Capital Federal e de Estado da Federação548, perdendo sua

representatividade política. O Vice-Almirante Floriano Peixoto Faria Lima (1917-2011),

indicado para efetivar a missão da fusão de forma apartidária549, foi nomeado Governador do

Estado do Rio de Janeiro em 1975, declarando que:

“o Rio era um município como outro qualquer”550,

desprezando assim a história da cidade que foi capital do país por quase duzentos anos, e

corroborando com o desmonte de qualquer sentido de capitalidade que ainda se

sustentava, por inércia, desde 1960.

O desenvolvimento do então Município do Rio de Janeiro manteve-se nas linhas

estabelecidas enquanto Estado da Guanabara após a fusão – grandes infraestruturas e

fomento industrial sem, no entanto, ser possível observar a constituição de nenhum

sistema industrial efetivamente virtuoso e integrado551. Mas foi nos anos 80, a “década

perdida”, que “ficou visível o fracasso da retomada de industrialização do Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo, patenteou-se o efeito corrosivo da transferência da capital e a

expressão ‘esvaziamento’ do Rio tornou-se lugar-comum”552. A exaustão do modelo de

desenvolvimento económico e social brasileiro, explícita nos anos 80, fez emergir em

bloco as deficiências553.

O Rio, refletindo as condições de transformações políticas, e sobretudo de

dificuldade económica do país, passou por um período difícil. A crise e a luta contra a inflação

concentraram, mais do que nunca, todos os esforços. O vazio económico instaurado no Rio

de Janeiro levava cada vez mais as grandes empresas e instituições que antes tinham sede na

cidade para outras localidades, sobretudo São Paulo. A competição voraz instaurada pela

aquela que ser transformaria na maior e mais importante metrópole brasileira foi fatal para o

548 MOTTA, Marly Silva da, “A fusão da Guanabara com o Estado do Rio: desafios e desencantos” in FREIRE et al., 2001, p. 29.

549 Idem, ibidem, p. 32.

550 FREIRE, Américo; OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org), Capítulos da memória do urbanismo carioca. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002, p. 198.

551 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 349.

552 Idem, ibidem, p. 351.

553 Idem, ibidem, p. 349.

220

desenvolvimento da cidade. “Dos 50 maiores bancos brasileiros, nove tinham sede no Rio em

1970; em 1991 só restavam cinco. São Paulo, desde então, tem funcionado, em relação ao Rio,

como um buraco negro”, afirma o Professor Carlos Lessa554.

A tendência à desindustrialização, denunciada pelos empresários cariocas desde

os anos 1950, permaneceu crescente e o Rio cada vez mais apoiou sua economia no setor

dos serviços. Parte significativa dos empregos estavam vinculados às diversas esferas

governamentais, portanto a cidade permaneceu vulnerável aos ajustes e cortes da

administração pública frente a crise instaurada555. A depressão económica e o crescimento

dos índices da violência e de favelização transformaram a cara da cidade. Segundo Carlos

Vainer556, nesse período o Rio entrava numa “crise de hegemonia”, com o

estabelecimento de uma linha política que não possuía “organicidade” nem nas bases

populares nem nas dominantes, resultando numa falta de projeto para a cidade

(informação verbal). César Maia, ex-prefeito da cidade, afirma que nesse período se

constituiu uma “crise urbana gigantesca que foi a prevalência da ideia de um grupo

político que entendia o enfrentamento das questões sociais a partir da permissividade

com tudo que era informal” (informação verbal)557. Nesse mix de falta de projeto e de

efetiva representatividade e de permissividade, o Rio passou a ter uma imagem desgastada

local e internacionalmente. A população passou a negar a condição de “Cidade

Maravilhosa”, aceitando a condição de “purgatório da beleza e do caos”558.

Não obstante este quadro de dificuldades, os anos 80 apresentaram a população

da cidade e da metrópole o que parecia ser uma “luz no fim do túnel”. Mais propriamente

no fim do túnel do Joá, que fazia a ligação com aquela região que era vendida desde a

década de 1970 como “novo Eldorado urbano”, em contraponto à “velha” cidade cada

vez mais deprimida, violenta, sem investimentos significativos desde a Guanabara: a Barra

554 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 352.

555 ENDERS, Armelle, A História do Rio de Janeiro. Gryphus, 2008, p. 309.

556 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

557 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

558 Trecho da música Rio 40 graus composta por Fernanda Abreu, Fausto Fawcet e Laufer. (1992) que faz referência ao filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos (1955), inspirador do cinema novo, mostrava a realidade brasileira através do cotidiano da “Cidade Maravilhosa” e suas contradições.

221

da Tijuca do Plano Lúcio Costa apresentava-se, mais do que nunca, disponível para tornar-

se o futuro do Rio de Janeiro.

No auge da problemática da violência a opção do carioca, triste e deprimido com

as mazelas de sua cidade, era sorrir logo após atravessar o túnel do Joá ao se deparar com

a famosa placa que intimava: “SORRIA VOCÊ ESTÁ NA BARRA!”

Com a concentração de investimentos públicos na expansão para oeste

franqueando o acesso para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá, também o setor da

construção redefiniu sua estratégia passando a concentrar sua atuação na Barra da Tijuca,

com lançamentos imobiliários para alta renda, construindo condomínios fechados que

disponibilizavam o trio – segurança, conforto e comodidade. Na nova cidade, futuro

róseo do Rio de Janeiro, disponibilizava-se um sem fim de condomínios fechados, que

reproduziam as necessidades citadinas cercadas por muros a toda volta e com a segurança

que o poder público não conseguia prover.

A participação da Barra da Tijuca nos lançamentos imobiliários da cidade se

multiplicou. Até 1976 era de 1,4%, passando em 1978 a 20%, e entre 1991 e 1995 a

participação nos lançamentos alcançara 30%559. Em 2004 o percentual alcançava os 42%

e somados aos Recreio dos Bandeirantes e Jacarepaguá chegava aos incríveis 71%, e dois

anos mais tarde alcançou 76%, percentual mantido na década seguinte, segundo a

Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI)560.

As ideias expansionista de Doxiadis, a cidade “moderna” de Lúcio Costa e sua

ratificação durante a década de 1970 através do Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de

Janeiro - PUB-RIO (que será visto a seguir), concretizavam a postura em oposição

completa à cidade existente que se sufocava em suas próprias mazelas. A Barra da Tijuca

desenvolveu-se como alternativa, tornando-se opção de um “novo-riquismo” tropical,

559 ABRAMO, Pedro; FARIA, Teresa Cristina, Mobilidade Residencial na Cidade do Rio de Janeiro: Considerações Sobre os Setores Formal e Informal do Mercado Imobiliário in Encontro Nacional De Estudos Populacionais Da ABEP. Caxambu (Minas Gerais): ABEP, Outubro 1998, v. 11, p. 425.

560 Disponível na WWW: <URL: http://www.ademi.org.br/article.php3?id_article=18841> [Consult. 2013-08-27].

222

reproduzindo símbolos, principalmente, ligados a cultura americana resultando na

alcunha de “Miami da América do Sul”561.

Com esta consolidação dos movimentos dos investimentos públicos e privados

na direção da consolidação do Plano Lúcio Costa, grandes áreas tradicionais servidas de

infraestrutura da cidade perderam população para a Barra da Tijuca. Andréa Redondo

afirma que: “de 1973 para cá, o que se viu foi uma renovação urbana brutal na cidade

com o surgimento da Barra da Tijuca. [...] Ela sugou os investimentos públicos”

(informação verbal)562.

O Rio de Janeiro e os cariocas entraram na nova década profundamente

deprimidos, como se, só 30 anos depois, percebesse efetivamente as consequências da

perda da condição de capital.

Figura 73. A Barra e seu projeto moderno, como Brasília, seria a vacina necessária para o combate ao adensamento dos quarteirões fechados de Copacabana (1979).

561 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 404.

562 Arquiteta, ex-subsecretária municipal de urbanismo da PCRJ. Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

223

Figura 74. O foco dos recursos se concentrava cada vez mais na barra da Tijuca (1982).

Figura 75. E o sonho da Barra era a emancipação e sua transformação em Beverly Hills. (1987).

Figura 76. Antiga placa na saída do túnel do Joá, principal entrada da Barra da Tijuca, instalada pela primeira vez em 1986.

224

Figura 77. O “MundoNovo” proporcionado pela Barra da Tijuca: condomínios de edifícios altos e isolados circundados por grandes áreas verdes, muros, grades e seguranças armados.

Figura 78. Shopping New York City Center: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se uma imensa Miami da América do Sul...”

225

O Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-RIO de 1977,

estabeleceu-se no planeamento carioca como uma série de diretrizes ou “sugestões”, que

corresponderam à efetivação de um “Urbanismo Operacional e Burocrático”, que tinha

como objetivo traçar um caminho para a cidade após a “fusão”. Um traço ainda de

confiança e certeza na possibilidade de construção de um futuro róseo para a cidade,

como nos indica o Prefeito Marcos Tamoyo (1926-1981) em prefácio do Plano:

“Ninguém tem dúvida de que o Estado do Rio de Janeiro será próspero e rico, cumprindo um dos principais objetivos da fusão, mas para que isso aconteça o mais depressa possível, é necessário que a cidade do Rio de Janeiro também colabore maciçamente neste difícil início, pois ainda é ela o pólo principal da economia fluminense. [...] O PUB-RIO, a partir do retrato e da radiografia da cidade atual apresenta sugestões para que, ao fim de quatro anos, tenhamos criado o Rio Município sem os problemas dos seus irmãos mais velhos” [grifos meus].

Segundo Villaça, no Brasil, no período entre os anos 70 e o início dos anos 90,

“os planos passam da complexidade, do rebuscamento técnico e da sofisticação

intelectual para o plano singelo, simples – na verdade, simplório – feito pelos próprios

técnicos municipais, quase sem mapas, sem diagnósticos técnicos ou com diagnósticos

reduzidos se confrontados com os de dez anos antes. [Onde] Seus dispositivos são um

conjunto de generalidades”563, mais no sentido da operacionalização do sistema do que

no sentido propositivo de ação.

O PUB-RIO, embora tivesse ainda o suporte de amplo diagnóstico atualizado a

partir daquele feito por Doxiadis, caracteriza-se na fase destacada por Villaça em que os

planos apenas indicavam um certo número de objetivos e diretrizes genéricas, ocultando

os conflitos resultantes da diversidade de interesses aplicados ao espaço urbano564. O

PUB-RIO foi desenvolvido a partir de determinação legal, com sua elaboração prevista no

Decreto-Lei Estadual nº168, de 7 de Julho de 1975, que criou o Sistema Municipal de

563 VILLAÇA, Flávio, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” in DEÁK; SCHIFFER, 1999, p. 221.

564 Idem, ibidem, p. 221.

226

Planeamento. Foi concebido como Plano de nível municipal, em simetria com o I PLAN-

RIO (Plano de Desenvolvimento Económico e Social do Estado do Rio de Janeiro) no

nível estadual, e com o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) no nível federal.

Segundo Borges, o PUB-RIO veio ratificar uma série de regulamentos anteriores

estabelecidos por decretos administrativos entre eles: o regulamento de zonamento

(Decreto E nº3.800/70), a orientação de uso do solo (Decreto nº322/76), a aprovações

de projeto aprovado de alinhamento e loteamento (PAA e PAL), a definição de áreas de

especial interesse para a construção do Metropolitano (Decreto nº1.271 e 1.299/77), a

definição de áreas para recuperação urbana de interesse social, a implementação de

equipamentos urbanos, e as condições de geração e atração de polos de tráfego de acordo

com a capacidade do sistema viário, entre outros565.

O objetivo geral do PUB-RIO era fortalecer a cidade do Rio de Janeiro como

polo da Região Metropolitana, através da organização da estrutura urbana com o

estabelecimento de diretrizes que ajudariam a operacionalizar o desenvolvimento urbano.

Ao Plano interessava, assim como em Doxiadis e Lúcio Costa, o resultado de impacto

metropolitano, no entanto, sem com isso abarcar efetivamente o território equivalente,

fora de sua alçada de atuação. O Plano não foi elaborado propriamente a partir de

desenhos específicos, Villaça o considerava numa categoria de plano sem mapas,

característica de um período que, segundo o autor, se estendeu entre 1971 e 1992 (mas

que continua em vigor). Em geral, enumerava objetivos, políticas e diretrizes os mais

louváveis e bem-intencionados possíveis, eliminando discórdias e ocultando os

conflitos566. O Plano propunha uma estrutura físico territorial, apresentando uma visão

abrangente e multidisciplinar do funcionamento da cidade, tratando de tendências e

alternativas de desenvolvimento, tendo como ferramentas principais a divisão do

território por áreas com afinidades identificadas, o zonamento e as diretrizes gerais para a

estruturação do território.

565 BORGES, Marília Vicente, O Zoneamento da Cidade do Rio de Janeiro: gênese, evolução e aplicação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Tese de Mestrado, 2007, p. 124.

566 VILLAÇA, Flávio, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” in DEÁK; SCHIFFER, 1999, p. 221.

227

Na primeira parte do PUB-RIO, é apresentado uma visão estática da cidade,

embora abrangente e multidisciplinar. Na parte seguinte, o Plano analisa as dinâmicas da

cidade e, na terceira parte, trata de tendências, alternativas e hipóteses de

desenvolvimento. Na quarta e última parte, sugere um elenco de diretrizes gerais e

setoriais que serviriam para a estruturação global do município. Embora tenha vasto

diagnóstico, o PUB-RIO configurou-se como um plano onde não há um detalhamento

das ações propostas, tornando-o superficial, como um conjunto de ideias, limitadas a

estabelecer diretrizes que indicam para onde a cidade deveria crescer, para tal região

segundo tais vetores, e pouco mais do que isso567, não existindo propostas de desenho.

Como contribuição a destacar, o PUB-RIO procurou estabelecer uma forma de

atender administrativamente as diversas localidades, ou bairros, dentro do município.

Para isso, dividiu a cidade em seis grandes Áreas de Planeamento (AP), que por sua vez,

foram divididas em outras tantas Unidades Espaciais de Planeamento (UEP). Estas últimas

teriam planos específicos chamados Planos de Estruturação Urbana (PEU) que, ao fim ao

cabo, são planos reguladores, não desenhados, conformando “um conjunto de regras

norteadas por políticas e ações definidas para orientar o desenvolvimento físico

urbanístico de um conjunto de bairros vizinhos com características semelhantes”568. Os

PEUs que se efetivaram foram os que tiveram como carro-chefe a questão do património

e da preservação do ambiente urbano. Embora esse tenha sido um avanço no sentido de

dotar áreas específicas com uma legislação correspondente, segundo Andréa Redondo,

nenhum PEU conseguiu esgotar toda a legislação existente. Com isso, o que foi feito para

simplificar, o processo acabou por criar ainda mais complicação na medida em que ao

final do texto que definia os PEUs indicava-se um artigo que remetia todas as questões

não esgotadas à legislação anterior. Ao invés de uma substituição renovada, houve um

acrescento de complexidade no processo (informação verbal)569.

Embora seja caracterizado mais por um plano de diretrizes do que por desenho

efetivo e detalhado, o PUB-RIO possui uma importante exceção no seu interior: o Plano

567 REZENDE, Vera, “Entrevista” in FREIRE; OLIVEIRA, 2008, p. 92-93.

568 Disponível na WWW: <URL: www.rio.rj.gov.br/web/seu/exibeconteudo?id=2800015> [Consult. 2013-07-15].

569 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

228

Lúcio Costa. O Mapa 51570 do PUB-RIO mostra um resumo do plano indicando algumas

linhas de mobilidade uma espécie de zonamento onde uma das áreas é definida com uma

mancha apontada como o Plano Lúcio Costa.

Figura 79. Reprodução fotográfica do mapa resumo do PUB-RIO e, em destaque, respetivo quado de legenda indicando o Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá – Plano Lúcio Costa

570 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-RIO. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 1977, p. 241

229

O Plano Lúcio Costa e a SUDEBAR foram incorporados ao PUB-RIO, através do

“Decreto E nº3.800/70”, definindo a Baixada de Jacarepaguá sob os limites da “Zona Especial-

5” (ZE-5) que está contida na “Área de Planejamento 4” (AP-4) através das Regiões

Administrativas XVI (Jacarepaguá) e XXIV (Barra da Tijuca). Como apresentado no próprio

documento do PUB-RIO, desde 15 de Março de 1875, a Prefeitura da Cidade do Rio já abraçava

medidas de restrição e racionalização do uso e ocupação nas áreas tradicionais e já ocupadas da

cidade, adotando o discurso de que era preciso manter a oferta de habitação e a manutenção do

emprego na construção civil. Com isso, a administração municipal definiu a área da Baixada de

Jacarepaguá como prioritária para o desenvolvimento da cidade, confirmando a linha de

expansão para oeste. O PUB-RIO também ratificou, através de suas diretrizes, as intenções que

indicavam a expansão da cidade que se consolidava na direção oeste, ratificando ideias contidas

no Plano Doxiadis e o próprio Plano Lúcio Costa, como prova o trecho do plano:

“Os estudos físicos territoriais realizados, desde Doxiadis e Lúcio Costa até o próprio PUB-RIO, são unânimes em indicar o quadrante oeste como aquele que dispõe de áreas de dimensões e características mais adequadas à expansão da metrópole” [grifo meu]571.

Figura 80. No contexto do PUB-RIO a notícia mostra o destaque dado

ao Plano Lúcio Costa: Além da preocupação de compatibilizá-los, demonstra a imprescindível presença do especialista – “não existe a

menor hipótese de que o professor Lúcio Costa [...] ‘possa deixar de participar de nossas tarefas’” (1978).

571 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-RIO. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 1977.

230

Figura 81. O anúncio sobre o início dos trabalhos do PUB-RIO (1976).

O documento do PUB-RIO reafirma também o caráter de oposição entre a

proposta do Plano Lúcio Costa e a cidade existente na linha desejada de

desenvolvimento da cidade onde

“o Plano para ocupação da Baixada de Jacarepaguá [pretendia] ser um instrumento capaz de desenvolver a área para todas as camadas da população da cidade, através de novos conceitos urbanísticos que evitem os erros porventura contidos no tecido mais antigo da cidade e que certamente representam, menos do que falhas, as conseqüências do estágio, na época, do desenvolvimento econômico e social do país” [grifo meu]572.

O PUB-RIO critica a forma da cidade consolidada, considerada

congestionada e excessivamente adensada, valorizando a ocupação pouco densa e

privilegiando a expansão da cidade. Esta perspetiva em busca de uma nova cidade

em oposição a existente perdura há muitos anos influenciando fortemente os rumos

do urbanismo carioca.

Tendo como base o “Urbanismo Operacional e Burocrático”, o PUB-RIO

limitava a sua atuação aos parâmetros e variáveis funcionais, deixando de lado

compromissos mais significativos com a questão espacial ou arquitetónica, e além

572 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-RIO. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 1977.

231

disso, foi concebido segundo um planeamento estático, faltando a capacidade de se

ajustar ao fator tempo. A reação a estas características do PUB-RIO, procurou deixá-

lo para trás e abrir novas portas para a compreensão de um sistema mais complexo

que exigia a utilização de um outro conceito de atuação sobre a cidade, mais

reflexivo, adaptativo, estratégico e atento às oportunidades. Um momento que

absorvia as transformações conceituais de uma outra Modernidade como será

apresentado a partir do próximo capítulo.

232

233

Dando continuidade a segunda parte desta dissertação, este quinto capítulo, assim

como o anterior, apresenta e analisa de forma crítica os processos de desenvolvimento da

cidade, sem perder de vista o contexto geral do país e da própria realidade carioca; debruça-se

sobre o discurso e a prática do urbanismo carioca à luz daqueles mesmos princípios que

sustentaram a Modernidade mas que, num outro momento, se transformaram trazendo à

tona a questão da incerteza como condicionante deles mesmos, tornando-se a causa e

consequência de avanços e retrocessos nos caminhos do desenvolvimento carioca.

Neste capítulo, mais do que de planos desenhados, tratar-se-á de processos,

sobretudo políticos, que sobrepujaram, em alternativa capaz de lidar com a nova realidade de

uma “outra Modernidade”, o planeamento de tempos de “certezas”. Processos concretizados

através de ações e estruturas específicas, pontuais, vinculadas a importantes oportunidades.

Este período tem como referências a década de 1990, que se confunde com o retorno

definitivo da democracia ao país e o equacionar das questões da economia; e a primeira

década do século XXI que se refere a um momento de especial conjuntura económica interna

e externa, que permitiu o estabelecimento de um novo impulso desenvolvimentista.

Tendo estas referências, esta investigação passará por um conjunto de processos de

planeamento que inclui o desenvolvimento do Plano Diretor Municipal (1992-2011) conforme

obrigatoriedade estabelecida pela Constituição de 1988, e os Planos Estratégicos

desenvolvidos para a Cidade (1993, 2004) registando as transformações ocorridas nas

diferentes versões. Ter-se-á em conta também o importante processo de “rutura técnico-

política”, ocorrida na virada para o século XXI. E será dado ainda, especial destaque aos

principais passos calcorreados rumo ao “sonho olímpico”, incluindo a proposta carioca

para os Jogos Olímpicos de 2004, a realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 e a proposta

vitoriosa para os Jogos Olímpicos de 2016.

A partir da investigação estabelecida neste capítulo, é possível perceber uma série de

tensões que fazem emergir as evidências que permitirão pôr a prova a hipótese apresentada.

234

Antecedido por anos difíceis de crise intensa, o início da década de 1990

apresentou-se de certa forma próspero, enchendo o peito dos brasileiros de esperança. A

primeira eleição direta para Presidente da República desde Jânio Quadros em 1961 criou

expectativa. O primeiro turno do pleito se deu em 15 de Novembro de 1989 e no

segundo turno, em 17 de Dezembro de 1989, com 53% dos votos válidos, Fernando

Collor de Mello (1949-)573, derrotou Luiz Inácio Lula da Silva (1945-) e foi eleito

presidente de um país com esperança renovada.

O “caçador de Marajás”574, jovem e ousado, prometia uma rutura com o passado

e enchia de esperança um povo cada vez mais urbano e massacrado pela inflação

galopante. No entanto, o otimismo durou pouco. No período de dois anos, uma política

económica radical e ineficiente575, e um processo de impeachment por corrupção foi o que

restou. Se por um lado esta rápida e triste experiência afetou negativamente a autoestima

brasileira, por outro, o impeachment de Fernando Collor “foi recebido pela opinião pública

como a prova da consolidação democrática, um sinal de bom funcionamento das

instituições e uma vitória sobre a corrupção e a impunidade das elites”576. A democracia

brasileira mostrou-se estabelecida em bases sólidas, e esta demonstração foi vista de

forma enfática nas cidades, onde o espaço urbano foi o palco principal de mobilização da

população e de entidades da sociedade civil para depor o Presidente.

573 Fernando Collor “era o representante nato de um tipo de elite política que permaneceu no poder durante todo o século XX e que continua a exercer influência até hoje, [...] se caracterizavam pela grande flexibilidade ideológica” (ENDERS, 2012, p. 220).

574 Expressão que foi utilizada como marca de campanha de Collor de Mello, por conta da promessa de combate aos supersalários do funcionalismo público. Entrevista “1989: Collor conta origem da expressão ‘caçador de marajás’”. Disponível na WWW: <URL: http://noticias.uol. com.br/Luton/multi/2009/11/15/0402346ADCA17366.jhtm> [Consult. 2012-08-21].

575 O Plano Collor, como ficou conhecido, foi um conjunto de reformas económicas para estabilização da inflação, iniciado no dia seguinte da tomada de posse do novo presidente combinando liberação fiscal e financeira e ações radicais para estabilização da inflação entre elas a de maior impacto ficou conhecida como “o confisco” – que foi uma retenção geral das poupanças e aplicações bancárias a partir de um certo valor estipulado (50mil Cruzados Novos). Durante o período de 18 meses e que seriam devolvidos atualizados segundo uma taxa de inflação menor do que a real.

576 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 223.

235

Figura 82. A repercussão do “Plano Collor”(Março de 1990).

Figura 83. Em 1992, centenas de milhares de pessoas saíram de casa para se fazer ouvir.

Assim como 30 anos antes com Jango, em 1992, um “vice” chegava ao poder. Itamar

Franco (1930-2011), bem mais discreto que seu antecessor, recebeu um país afundado numa

depressão criada pela combinação entre deceção política, desemprego, dívida externa e interna

devastadoras e inflação, que neste momento alcançava 1.158% ao ano, e que no ano seguinte

alcançou os incríveis 2.708,5% ao ano577.

577 LINHARES, Maria Yedda (org.), História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 9ª ed., 2000, p.384-404 apud ENDERS, 2012.

236

Para enfrentar este quadro, em 1993, primeiro ano de um governo que duraria até

1995578, promoveu a primeira política económica que se tornaria realmente efetiva no

combate a inflação. Pelas mãos de Fernando Henrique Cardoso (1931-), professor,

sociólogo, perseguido pela ditadura militar, o então Ministro da Fazenda, deu início ao

plano económico conhecido como Plano Real que, em 1994, criou uma nova moeda que

permanece até os dias de hoje – o Real (R$). O advento da nova moeda e todo o novo

programa económico resultou no equilíbrio da economia e na contenção da inflação

galopante que afligia o país e a autoestima dos brasileiros. A inflação “caiu de 929% em

1994 a 22% em 1995, a 9% em 1996 e a 2,5% em 1998 e o plano Real também resultou na

redução da pobreza de 40% a 34%, que beneficiou 53 milhões de pessoas”579. O quadro

tornava-se positivo, – “Com a inflação aparentemente controlada e com o Brasil campeão

da Copa do Mundo de Futebol, o governo Itamar se viu preparado para assegurar uma das

sucessões mais tranqüilas da história”580. O Brasil, sem inflação, com uma moeda nova

fortalecida, voltava a ser o melhor do mundo no desporto de maior importância nacional –

o futebol. Dentro desse contexto, o reflexo positivo na autoestima do brasileiro podia ser

constatado na eleição, em primeiro turno, do Ministro da Fazenda que “arrumou a casa”.

Figura 84. Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a dupla que equacionou a inflação brasileira com a criação do Plano Real para a estabilização da economia.

578 Itamar Franco assumiu o poder em Dezembro de 1992.

579 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 225.

580 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 416.

237

Figura 85. Notas de Cruzeiro Real foram incineradas às vésperas do início da circulação de seu sucessor o Real.

Figura 86. O Jornal O Globo dando conta do início da batalha entre o Plano Real e a inflação que assolava o Brasil (1994).

Em 1995, Fernando Henrique Cardoso (FHC), “pai do Plano Real”, eleito

Presidente da República com 54,3% dos votos, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva,

assumiu o poder. Permaneceria durante oito anos no cargo (1995/2002), tendo como

foco principal de seu governo o combate a inflação e a manutenção do equilíbrio da

economia nacional através da reforma do Estado581. O Brasil parecia que finalmente

começava a despertar para um novo momento onde “é provável que o primeiro mandato

da FHC passe para a história sob a égide do sucesso do Plano Real, que não apenas

conteve os índices inflacionários como de fato melhorou a vida dos brasileiros”582.

581 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 225.

582 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 419.

238

O caminho escolhido, tachado como neoliberal, foi fundamentado

principalmente na estabilidade da moeda e na visão sacramentada pelo Consenso de

Washington, na direção da renuncia pelo Estado à intervenção na economia, assim

sendo, “os mecanismos do mercado deveriam comandar a economia, o que [implicava]

a ampla e irrestrita abertura de economia nacional à movimentação de capitais e

mercadorias”583. O momento de estabilidade pelo qual passou o país possibilitou

viabilizar uma série de empréstimos que permitiu importantes experiências urbanas584.

Talvez os maiores exemplos dessas experiências sejam os programas de urbanização de

favelas e os projetos de requalificação urbana que ocorreram especialmente no Rio de

Janeiro, como será visto ainda neste capítulo.

No segundo Governo de FHC, foi tomada uma decisão importante para as

cidades. Em 10 de Julho de 2001, o Presidente sancionou a lei 10.257 do Estatuto da

Cidade, um importante momento para a política urbana brasileira585. O segundo mandato

de FHC (1999/2002), após nova derrota de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciou-se a meio de

uma forte crise financeira e da necessidade de negociação de uma ajuda junto ao Fundo

Monetário Internacional. O rigor do acordo e a volatilidades dos mercados criaram um

clima de incerteza forte. Significativos contratempos aconteceram, levando o país a um

baixo crescimento económico e ao aumento do desemprego586. Às crises económicas,

contornadas com ações que impactaram a popularidade de FHC, somaram-se as críticas

quanto à falta de transparência do governo e o comprometimento com supostos escândalos

políticos e financeiros. No período final do governo FHC, o Brasil ficou com a “bola

murcha, evidência que nem mesmo a conquista do pentacampeonato [de futebol], obtida em

Junho de 2002, na Copa do Mundo da Coréia e do Japão, foi capaz de modificar”587. No

entanto o ano seguinte ficaria marcado na história do Brasil com a eleição do sucessor de

FHC, como será apresentado mais a frente, no item II deste 5º capítulo.

583 ALMEIDA MAGALHÃES, João Paulo de, MINEIRO, Adhemar S., LESSA, Carlos et al, Os Anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 20.

584 Por exemplo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial.

585 Para saber mais sobre o tema consultar: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia, O Estatuto da Cidade: comentado. São Paulo: Ministério das Cidades, Aliança das Cidades, 2010.

586 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 227.

587 BUENO, Eduardo, Brasil: uma história – a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 419.

239

“O olhar orgulhoso e confiante foi sucedido pelo olhar satisfeito e complacente e deu lugar ao olhar acanhado e fugidio. O Rio trafega para a pós-modernidade, sujeito aos efeitos e influências da globalização, e a perplexidade inunda o seu olhar. Da construção do mito Rio chega-se à sua destruição”588.

No final dos anos 1980, as condições da cidade estavam de “mal a pior”, e talvez

tenha sido imperativa a chegada “ao fundo do poço” para que os cariocas percebessem a

condição em que se encontravam e iniciar a busca de um novo caminho. O Rio que fora o

locus da civilização brasileira passou a palco principal das mazelas sociais produzidas pela

própria história da nação, combinando violência e desigualdades sociais. O turbilhão de crises

que se somavam, atingia em cheio a autoestima dos cariocas e também dos brasileiros –

“A seqüela de perturbações macroeconômicas como a inflação galopante e, posteriormente, o desemprego crônico, associados ao lento amadurecimento das instituições democráticas e à penetração ideológica da globalização, fizeram renascer a sensação de inferioridade na inteligência brasileira”589.

A difícil condição do país atingia a imagem do Rio de Janeiro, sacrificando a

identidade, fonte de significado e experiência590 do carioca. Porém, as cidades são

dinâmicas e conseguem superar crises económicas, políticas e de estados d'alma. As crises

que se alimentavam dos problemas sociais vinham desde a década anterior fortalecendo a

ideia de segregação e com isso reforçando ideias de rutura com a cidade existente. Como

reflexos deste desejo de rutura, a Barra da Tijuca consolidava-se cada vez mais como

opção de “Eldorado urbano”, e também proliferava por toda a cidade as grades e muros

altos à volta de todo o tipo de edificação. No entanto, tais circunstâncias mostram-se,

talvez, uma espécie de acidente de percurso para a condição historicamente positiva da

cidade, e no meio de um turbilhão de ceticismo, novas ideias surgiram e os anos 90 viram

esta tendência iniciar uma espécie de reversão gradual juntamente com o quadro

588 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 413.

589 Idem, ibidem, p. 417.

590 CASTELLS, Manuel, A era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Volume II. O Poder da Identidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 02.

240

nacional591. A cidade vivenciava a “sensação generalizada de crise” que Borja e Castells

destacam como combustível para estabelecer uma reação ao quadro negativo,

estabelecendo as condições necessárias para a construção de uma unidade, de consensos

em torno de um líder, ou de uma proposta que permitissem viabilizar oportunidades para

a cidade592. No caso carioca, aos poucos, o sonho de receber os Jogos Olímpicos e as

possibilidades atreladas ao evento, serviriam como amálgama de um amplo consenso que

fez despertar um “patriotismo de cidade” que impulsionou diversos processos de

transformação efetivamente ligados, ou não, à possibilidade do evento.

César Epitácio Maia (1945-) assumiu a prefeitura em 1 de Janeiro de 1993 e deu

início a um novo período na cidade do Rio de Janeiro. Nesta nova fase sucessivas

administrações de perfil político próximos, ficaram marcadas por uma certa descrença em

relação à eficácia dos grandes planos de vasta abrangência e da legislação ordinária de uso

e ocupação do solo, se posicionando em contraponto ao sistema de planeamento

existente593. Nesta perspetiva, desencadeou-se uma série de ações urbanísticas atreladas a

um novo modelo de planeamento voltado mais para os processos de gestão da cidade

que, segundo Flávio Villaça, inaugurava a fase do Planeamento Estratégico594, onde o foco

principal era a busca pelo posicionamento da cidade na competitiva rede global de

cidades, através da requalificação urbana promovida através do Projeto Urbano que se

estabelecia como principal ferramenta de atuação urbanística.

Neste período, uma geração de arquitetos e urbanistas cariocas, influenciados por

discursos teóricos de revisão do urbanismo moderno, tiveram a oportunidade de

591 ENDERS, Armelle, A História do Rio de Janeiro. Gryphus, 2008, p. 310.

592 BORJA, Jordi, CASTELLS, Manuel, Local y Global, La gestión de las ciudades en la era de la información. Madrid: Taurus, 1997, p. 166.

593 Neste momento formado por planos anteriores e por uma série de legislações ordinárias como o “Código de Obras” que regula as construções na cidade e as Leis de “Parcelamento do Solo Urbano” e de “Uso e ocupação do Solo Urbano”.

594 VILLAÇA, Flávio, “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil” in DEÁK; SCHIFFER, 1999, p. 169-174.

241

desenvolver uma crítica importante e atuar diretamente na cidade graças a um conjunto

significativo de intervenções que foram desenvolvidas, levando a cabo ações que

possuem paralelo com o conceito de renovato urbis595 apresentado no terceiro capítulo

desta dissertação. Grande parte das intervenções urbanas neste período colaborou com

uma certa reversão da ideia de mudança na expansão através da rutura com a cidade

existente, atrelada a Doxiadis e Lúcio Costa, e que se apresentava como hegemónica na

prática e no discurso de políticos, técnicos e mesmo da população em geral. Não obstante

a esta reversão, a Barra da Tijuca mantinha ainda uma forte dinâmica movida pela força

do mercado imobiliário.

Foram exemplos importantes deste movimento, projetos estabelecidos dentro

de programas da Prefeitura como: o Rio-Orla (1992-1993), requalificando a principal

linha de costa oceânica da cidade; o Rio Cidade (1994-1996), atuando na revitalização

de importantes centralidades espalhadas no território municipal, e também o Favela-

Bairro (1994)596 que se estabeleceu dentro da nova política habitacional da cidade

tendo como intenção o desejo de integrar a Cidade do Rio de Janeiro em si mesma

através da urbanização de Favelas, todos programas que aturaram através da

ferramenta do Projeto Urbano na requalificação do espaço público597.

Figura 87. Transformação feita pelo Favela-Bairro na comunidade do Parque Royal.

595 Busca-se aqui a referência à reflexão de Bernardo Secchi. (2009, p. 86).

596 A partir de 2000, no segundo Governo de César Maia, foram elaboradas novas versões tanto do Rio Cidade quanto do Favela-Bairro, no entanto ambos muito aquém dos projetos realizados nesta primeira fase e por isso menos expressivos.

597 Para saber mais sobre os temas ver: PCRJ/IPLAN RIO – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio Cidade: o urbanismo de volta às ruas. Rio de Janeiro: Mauad, 1996a; PCRJ/SMH – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Habitação, Cidade Inteira: a politica habitacional da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: A Prefeitura/A Secretaria, 1999; CONDE, Luiz Paulo, MAGALHÃES, Sérgio, Favela-bairro: Uma outra história da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vivercidades, 1ª ed., 2004.

242

Figura 88. Rio Cidade nas esquinas dos bairros de Ipanema e do Leblon respetivamente.

Os Projetos Urbanos do Programa Rio-Cidade (1994-1996) fizeram parte de

um processo onde se procurou, segundo Luiz Paulo Conde,

“[...] democratizar as decisões de projeto e obras públicas, descentralizando-as e abrindo-as às participações da comunidade. De outro lado, [buscava-se] uma política urbanística informada pelos mais recentes avanços teóricos do setor que enfatizasse o local, o desenho, a imagem e a cultura urbana”598.

Seguindo uma tendência de descrença na eficácia dos grandes planos e

influenciados pela teoria dos escritos de Aldo Rossi, Denise Scott-Brown, Kevin

Lynch e Jane Jacob, entre outros, o Rio-Cidade afirmava a importância das ruas para o

equilíbrio da vida social tendo como objetivo principal a sua reabilitação.

As transformações ocorridas na cidade no período observado, desde a década

de 1960 até aqui, sobretudo aquelas vinculadas à prioridade dada ao deslocamento

sobre pneus, em que obra pública era quase sinónimo de obra rodoviária, esvaziou o

papel social do espaço coletivo, estimulando a promoção de espaços “exclusivos”:

condomínios fechados, shoppings centers, clubes privés, que encontravam seu “paraíso” na Barra

da Tijuca. Também o gradual esvaziamento político e económico da cidade colaborava com

todo um grau de dificuldades e recusa da cidade existente. O Rio-Cidade foi então um

programa que procurou resgatar as ruas, restituindo aos cidadãos o direito à cidade,

integrando objetivos sociais económicos e culturais, esquivando-se do idealismo, da

megalomania, das soluções totalizantes, da falta de sintonia com os atores envolvidos,

598 PCRJ/IPLAN RIO – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio Cidade: o urbanismo de volta às ruas. Rio de Janeiro: Mauad, 1996a, p 13.

243

das propostas politicamente inviáveis, das grandes “cirurgias” traumáticas e dos altos

custos sociais do desprezo sobre o existente para a construção do novo. Optou-se

pelo compromisso entre o desejo e a viabilidade, intervenções que induzissem, por

sinergias, iniciativas similares de outros agentes sociais, “não havendo recursos

financeiros e gerênciais para intervir no todo, cabia promover ações localizadas e

exemplares, conquanto coerentes, entre si e com o objetivo estratégico definido”599.

Nesta perspetiva concentraram-se os esforços numa série de quinze centralidades

para onde foram desenvolvidos uma série de projetos específicos escolhidos por concurso

público onde se procurava reforçar a identidade, elevar a autoestima e o sentido de

enraizamento das comunidades locais. Privilegiava-se o projeto: não havia obra sem desenho

detalhado, sem discussão pública e sem a participação dos arquitetos durante a execução. O

programa teve taxas de aprovação de 75% da população carioca.

Figura 89. MAPA DE LOCALIZAÇÃO DOS PROJETOS RIO CIDADE

(a) Bonsucesso; (b) Botafogo; (c) Campo Grande; (d) Catete; (e) Centro; (f) Copacabana; (g) Ilha do

Governador; (h) Ipanema; (i) Leblon; (j) Madureira; (k) Méier; (l) Pavuna; (m) Penha; (n) Tijuca; (o) Vila Isabel

599 PCRJ/IPLAN RIO – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio Cidade: o urbanismo de volta às ruas. Rio de Janeiro: Mauad, 1996a, p. 25.

244

No mesmo diapasão conceitual foi elaborado o Programa Favela-Bairro (1996) parte

da Política Habitacional da Cidade600, com o intuito de promoção da integração urbanística

entre “a favela e o asfalto”, respeitando o esforço realizado pelas famílias que produziram

suas moradias na precariedade e dando as condições de cidade aos assentamentos

populares. Esta integração se dava através da promoção da “cidade formal”, no interior da

“cidade informal”, levando infraestruturas e serviços públicos de saúde, educação, limpeza e

segurança, rompendo o isolamento. A construção de moradia como política habitacional

passou então a ser tratada como item articulado com uma série de medidas que visavam,

antes de tudo, responder às necessidades da vida urbana. Reconhecendo as pré-existências,

partia-se do pressuposto de que os habitantes da favela, ao longo dos anos, realizaram um

expressivo investimento na construção de suas moradias e este esforço devia ser valorizado

através da implantação das redes de infraestruturas e de equipamentos urbanos, e da

presença dos serviços públicos como suportes para a cidadania. Desta forma, evitava-se o

reassentamento em outras áreas através de bairros económicos, onde tudo deveria ser

construído de raiz, inclusive as próprias moradias, além disso esquivava-se dos altos custos

sociais de uma intervenção de retirada das populações que rompe com as relações

socioeconómicas, familiares e de amizade.

“A política Habitacional do Rio de Janeiro [na qual se inclui o Favela-Bairro] foi concebida, portanto a partir do princípio de que o morar, muito mais que ter uma casa, é dispor de um conjunto de bens, equipamentos e serviços que permitem o desenvolvimento da pessoa a partir da própria moradia. E ainda, que esse conjunto é próprio da coletividade, não podendo ser promovido pelas famílias”601.

A partir desta perspetiva, assim como no Rio Cidade, foram realizados concursos

públicos, mas de propostas metodológicas de intervenção urbanística. No final de 1995, o

Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID aprovou o financiamento de 60% de um

total de US$ 300 milhões para o programa. O Favela-Bairro passava então a atuar no

universo das favelas de porte médio (entre 500 a 2.500 domicílios) chegando a atuar em 148

600 A Política Habitacional da Cidade incluía ainda os Programas: Bairrinho; Grandes Favelas; Morar sem Risco; Regularização de Loteamentos; Novas Alternativas; e o Morar Carioca.

601 PCRJ/SMH – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Habitação, Cidade Inteira: a politica habitacional da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: A Prefeitura/A Secretaria, 1999, p. 12.

245

comunidades, representando cerca de um terço do número total de favelas da Cidade, e

abrigando cerca de 60% da população favelada do Rio de Janeiro.

Figura 90. MAPA DE LOCALIZAÇÃO DOS PROJETOS FAVELA-BAIRRO

A abrangência do Favela-Bairro chegou a um total de 148 favelas.

Um dos nomes mais importantes para a definição desses novos rumos traçados foi

o do arquiteto e urbanista Luiz Paulo Conde (1934-). Inicialmente como Secretário de

Urbanismo dos primeiros quatro anos do governo de César Maia, Conde foi o principal

incentivador desse processo de transformação da prática urbanística, estando à frente de

importantes programas de intervenção urbana, como já citados anteriormente. Com o

sucesso do trabalho desenvolvido nesse período, o arquiteto, apoiado por Maia, aventurou-

se no ramo da política e venceu as eleições seguintes, assumindo o mandato como Prefeito

da Cidade do Rio de Janeiro no período entre 1997 e o ano 2000.

246

Figura 91. Luiz Paulo Conde e César Maia, juntos nas eleições de 1996. Quatro anos mais tarde, seriam promotores de uma rutura “técnico-política” de grande importância para o Rio de Janeiro, como será visto a partir do item II deste capítulo.

Luiz Paulo Conde manteve a atuação sobre a cidade segundo as linhas

estratégicas que foram estabelecidas pelo Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro

(1993-1996) (que será apresentado em seguida no item I.C deste capítulo), e segundo

o conceito de renovato urbis. Durante seu mandato, somou aos principais programas

como o Favela Bairro e o Rio Cidade, outros novos projetos, como o da Frente Marítima

da Praça XV de Novembro (1998-2000) e o Projeto SA'S (1997-1999), ambos na área

central da cidade, e a conclusão da construção da Linha Amarela, oficialmente

denominada Via expressa Governador Carlos Lacerda, com a execução das alças de

acesso aos bairros limítrofes. Esta via resulta da influência do Plano Doxiadis na

definição das “Linhas Policromáticas”, ligando a Ilha do Fundão à Barra da Tijuca,

conexão importante na estratégia da proposta olímpica realizada para os Jogos de

2004 (que será apresentada também a seguir, no item I.C.2 deste capítulo).

O projeto da Frente Marítima da Praça XV de Novembro, que se desenvolveu

seguindo também as linhas do Rio Cidade, tinha como principal objetivo para além

de valorizar e estabelecer uma nova continuidade entre os espaços públicos da zona

história do Centro do Rio de Janeiro, incluindo a Praça XV de Novembro, antigo

terreiro do Paço Imperial; procurava ordenar o tráfego, parqueamento de

automóveis e autocarros bem como a renovação e a introdução de atrações

culturais para a cidade. O projeto teve a coordenação dos consultores estrangeiros

Nuno Portas e Oriol Bohigas.

247

Figura 92. Imagem do modelo de parte do projeto da Frente Marítima da Praça XV de Novembro.

Figura 93. Memória do Projeto SA's em croquis..

O Projeto SA's, referente à revitalização do corredor viário formado pelas

Avenidas Estácio de Sá, Salvador de Sá e Mem de Sá, também sob consultoria de Nuno

Portas, foi igualmente um projeto dirigido à revitalização urbana. Localizado numa região

deprimida na franja do CBD, constituindo uma oportunidade para novas possibilidades,

possuía uma componente física de instalação de infraestruturas que permitissem a

promoção de ações do tipo imobiliárias e sociais, tendo ainda uma componente

económica de engenharia financeira que envolvia tanto o governo municipal como a

iniciativa privada com a promoção de uma série de oportunidades que legitimavam o

investimento realizado, assim como uma outra componente social que procurava

potenciar a participação, e autoestima através de uma nova animação urbana.

248

Figura 94. LINHA AMARELA: Via Expressa Governador Carlos Lacerda. Ligando a Ilha do Fundão à Barra da Tijuca. Construção iniciada no primeiro governo de César Maia e concluída por Luiz Paulo Conde.

A cidade manteve durante mais quatro anos a sua estratégia de investimentos

numa prática de planeamento urbano que teve como foco a realização de Projetos

Urbanos de requalificação e reestruturação urbana, dando prioridade à cidade

existente, fosse ela formal ou informal, segundo uma coerência estratégica. Um

conjunto de intervenções realizadas na expectativa de promover uma mudança que,

no entanto, respeitava e reforçava as formas e dinâmicas existentes, através de

projetos pontuais e específicos, alinhados com as estratégias estabelecidas e levados a

cabo a partir de oportunidades que contribuíam a demais, com a possibilidade de

assumirem um papel sinérgico, catalítico e de contaminação positiva na construção de

novas oportunidades para o futuro.

249

Um pouco antes da eleição de Maia, foi aprovado e instituído através do

Projeto de Lei Complementar nº16, de 04 de Junho de 1992, o primeiro Plano Diretor

Decenal da Cidade do Rio de Janeiro (PDDCRJ), que em consonância com o quadro de

revisão constitucional de 1988, tornava obrigatória a sua execução em cidades com mais

de 20 mil habitantes, estabelecia normas e procedimentos para a realização da política

urbana municipal pautada pelo movimento da reforma urbana602 encarada à época

como receituário do planeamento democrático. O PDDCRJ, que compilou normas

gerais e procedimentos para a realização de uma política urbana, fixando diretrizes e

prevendo instrumentos de execução603, procurava assim fortalecer políticas sociais,

ambientais e culturais, pretendendo garantir a participação popular no processo de

planeamento e acesso a informação.

No entanto, o contexto de processo democrático e participativo que se

procurava instaurar através do PDDCRJ, fruto ainda do contexto onde se deu a

abertura política brasileira, escondia ainda alguma perspetiva ideológica e

tecnocrática. Flávio Villaça faz uma crítica aos processos de desenvolvimento dos

Planos Diretores no Brasil quanto ao excesso de confiança, e certezas, instaurada

nesses procedimentos que possuem como base a ideia de que “a boa técnica [teria] o

poder mágico de resolver os problemas urbanos. [Quando na verdade os Planos

Diretores seriam uma] mera construção mental, que despolitiza a questão do

[planeamento, sendo] ideológico no sentido de uma ideia dominante que se

autonomiza [e se] descola da realidade”604.

Foi exatamente nesta ótica que o PDDCRJ foi desenvolvido, o que acarretou

uma paulatina desvalorização do mesmo enquanto ferramenta de desenvolvimento,

602 Movimento de articulação entre entidades da sociedade organizada formado desde 1987, que tem como foco uma política de planeamento social a fim de democratizar o direito à cidade. Disponível na WWW: <URL: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&id=178:reforma- urbana & Item id=163&lang=pt> [Consult. 2015-03-09].

603 Art.1º, Lei complementar, nº16, de 04 de Junho de 1992.

604 VILLAÇA, Flávio, A crise do Planejamento Urbano. São Paulo em Perspectiva, 9(2), 1995, p.47-48.

250

acrescentando-o ao rol de planos que caíram em descrédito, assim como os processos e

planeamento influenciados por um “Urbanismo Operacional e Burocrático” do final

dos anos 70 e que perdurou pela década seguinte como visto no terceiro capítulo.

O PDDCRJ foi desenvolvido descolado do território, constituindo-se em meras

diretrizes de atuação, por isso mesmo caracterizando-se como um “plano sem mapa”,

como nos diz Villaça605. Embora possua alguns mapas genéricos de análise e zonamentos,

nenhum é capaz de especificar um desenho de atuação efetiva no território, além disso é

um Plano que não revoga os anteriores, tornando-se assim mais um dado a se ter em

conta no sistema já pouco estruturado.

Talvez essas características justifiquem o seu enfraquecimento como

ferramenta de desenvolvimento urbano para a cidade, o que acarretou no seu

abandono em favor de outras ferramentas mais dinâmicas. Segundo a ex-subsecretária

municipal de urbanismo Andréa Redondo, o processo de desenvolvimento do

PDDCRJ foi, de certa forma, “uma grande mentira” na medida em que enquanto o

mesmo era elaborado, o Governo municipal mantinha uma atuação ad hoc

construindo paralelamente a cidade segundo interesses imediatos e casuísticos em

desacordo com o próprio PDDCRJ (informação verbal)606.

Recorrendo novamente a Flávio Villaça podemos compreender em parte esse

desinteresse, já que para o autor os políticos em geral não acreditam na figura do

Plano Diretor e nunca o desejaram resultando num processo em que, seguindo uma

regra geral, a elaboração e implementação dos Planos Diretores se dão da seguinte

forma: “o Prefeito conclui seu plano, envia-o à Câmara no final do mandato e seu

sucessor retira o projeto para revisão”607. Assim foi com o PDDCRJ que teve seu

processo de revisão postergada entre “idas e vindas”, numa discussão estabelecida

entre a Câmara dos Vereadores e o Poder Executivo. Este longo processo resultou na

fragmentação setorial do Plano dentro das diversas secretarias da Prefeitura, mas que

entre aprovações e novas revisões foi reagrupado, mais tarde, num documento que

605 VILLAÇA, Flávio, A crise do Planejamento Urbano. São Paulo em Perspectiva, 9(2), 1995.

606 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

607 VILLAÇA, Flávio, op. cit., p. 47-48.

251

ficou conhecido como Substitutivo 3. Este foi aprovado em sua última versão no ano

de 2011, dando um novo título para o Plano: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

Sustentável do Município do Rio de Janeiro (PDDUS). Nele, novos e diferentes interesses

foram atrelados, sobretudo àqueles que se vinculam a ações para a realização dos

Jogos Olímpicos de 2016, alterando a legislação nas áreas de intervenções para o

evento. O PDDUS resulta assim, de um arremedo de plano, onde o corpo de normas

se constitui como um modelo aplicável a qualquer cidade e em que apenas nos seus

anexos, numa quantidade infinda de emendas realizadas, se encontram as ações de

real impacto para a cidade (informação verbal)608. Em parte, essas ações indicam que

em várias circunstâncias, o evento que se realizará em 2016, serviu de pauta para a

elaboração das diretrizes de desenvolvimento da cidade.

Concomitantemente a este processo, ainda na primeira metade da década de

1990, foi construído um novo caminho para cidade como opção ao modelo

desacreditado. Processo esse que nascia, segundo Carlos Wainer, de uma “nova

coalizão [coligação] política” (informação verbal)609, resultando num novo quadro de

discussão sobre o tema urbano concretizado num processo de planeamento

estratégico que se estendeu permanentemente em paralelo com o longo e conturbado

processo de conceção e revisão do Plano Diretor.

Como já referido, no período dos governos de César Maia e Luiz Paulo Conde

(1993/2000), o destaque dado aos Projetos Urbanos constituía a busca por um novo modelo de

gestão/planeamento, que se implementava tendo como referência aquele que foi promovido

pela cidade de Barcelona entre os anos 80 e 90. O novo modelo tomou corpo a partir do

608 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

609 Informação verbal dada por Carlos Wainer, em entrevista para esta investigação, Mas também expressa em MASCARENHAS et al., 2011.

252

desenvolvimento do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro – Rio Sempre Rio (PECRJ), que se

iniciou em 1993 e teve a sua última e definitiva versão publicada no ano de 1996.

O PECRJ foi realizado através de um processo de discussão estabelecido por

meio de uma parceria institucional firmada entre a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

(PCRJ), a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação das Indústrias

do Rio de Janeiro (FIRJAN), desenvolvido sob a liderança do diretor executivo Professor

Carlos Lessa, tendo o apoio da consultoria catalã da TUBSA (Tecnologias Urbanas Barcelona

S/A) e da assessoria do Centro Ibero-americano de Desenvolvimento Estratégico

Urbano (CIDEU). Este processo estratégico compôs um consórcio de 46 empresas e

associações empresariais que financiaram uma nova linha de atuação de grande

importância no discurso e na prática urbana na cidade do Rio de Janeiro, formando

coligações políticas e consensos abrangentes sobre os rumos da cidade.

O PECRJ procurava uma maior adaptação ao novo contexto de competição

em que a cidade se propunha a participar, possibilitando a elaboração de projetos

urbanos mais adaptativos e flexíveis, livres das limitações impostas pelo PDDCRJ e

de toda uma legislação considerada obsoleta. De facto, é importante destacar a

diferença entre os dois modelos de plano que se estabeleceram em paralelo, como

vistos anteriormente, possuindo objetivos, modos de desenvolvimento e efetivação

diversos, assim como nos diferentes horizontes temporais e escalas de atuação de

ambos. Enquanto o PECRJ nos remete a uma ação efetiva, o Plano Diretor

procurava tratar da regulação dos aspetos territoriais e ordinários. Segundo Rodrigo

Lopes, os dois modelos se caracterizam da seguinte forma:

“o Plano Estratégico de cidades [seria] um plano de ação, formulado a partir do consenso de atores públicos e privados, dentro de uma visão ampla dos espaços e da sociedade local e global, definindo projetos tangíveis e intangíveis, cuja implementação se baseia no compromisso de um grande número de atores públicos e privados. Já o Plano Diretor Urbano [deveria ser] um plano de ordenamento urbano, com o objetivo de determinar os usos do solo e os sistemas de integração e

253

comunicação, partindo de normas definidas em um arcabouço legal, geradas por uma visão integral de construção da cidade desejada”610.

Figura 95. QUADRO PLANO ESTRATÉGIO vs. PLANO DIRETOR

Na experiência carioca, a coordenação entre os dois processos não se deu de

forma complementar, e o PECRJ foi adotado de forma preponderante acabando por

se sobrepujar à efetivação do Plano Diretor.

O PECRJ foi desenvolvido dentro de um quadro de atuação e

reposicionamento da cidade como um todo, que se pretendia competitiva

nacionalmente e no conjunto da rede mundial de cidades globais, através

principalmente do investimento na qualificação de suas estruturas, seus espaços e da

vida da população. Para seus promotores, a proposta apresentada não era

“um plano de governo, mas de toda uma cidade que quer ser acolhedora, participativa, competitiva, integrada interna e externamente e que quer dar ao carioca acesso e oportunidades para uma vida melhor, ou seja, uma cidade pólo de atratividade regional, nacional e internacional”611.

610 LOPES, Rodrigo, A cidade intencional - o planejamento estratégico de cidades. Rio de Janeiro, MAUAD, 2ª ed., 1998, p. 94.

611 Promotores: Cesar Maia, Humberto Eustáquio Cesar Mota, Arthur João Donato in PCRJ/IPLAN RIO, 1996, p. 09.

PLANO ESTRATÉGICO PLANO DIRETOR Plano integral com alguns objetivos de uso do solo

Ordenação do espaço urbano

Prioriza projetos, mas não os localiza necessariamente no espaço

Determina os usos do solo no seu conjunto e localiza com precisão os sistemas gerais e as grandes atuações públicas

Baseado no consenso e na participação em todas as suas fases

Responsabilidade da administração pública

Utilização de análises qualitativas e de fatores críticos

Utilização de estudos territoriais e de meios físicos

Plano de compromissos e acordos entre agentes para a ação imediata ou de curto prazo

Plano normativo para regulamentar a ação privada futura e possível

É um plano de ação É um plano para regulamentar a ação

254

Quando observado o objetivo central do plano, percebe-se uma clara

tendência à valorização da construção de uma nova condição para a imagem da

cidade, além disso, há também o desejo de estabelecer uma qualidade que viabilize a

competitividade dentro e fora do país, a promoção da imagem e da identidade carioca

que estavam na berlinda em busca de uma renovação da autoestima local, assim como

a ideia de um “empreendedorismo urbano” conectado globalmente:

“[pretendia-se tornar] o Rio de Janeiro uma metrópole com crescente qualidade de vida, socialmente integrada, respeitosa da coisa pública, e que confirma sua vocação para a cultura e a alegria de viver. Uma metrópole empreendedora e competitiva, com capacidade para ser um centro de pensamento, de geração de negócios para o país e sua conexão privilegiada com o exterior” [grifo meu]612.

A partir deste objetivo central do Plano, que se alargava sobre uma

perspetiva também metropolitana, embora tivesse sua atuação limitada ao

município, foram estabelecidas sete linhas estratégicas a serem seguidas e que foram

definidas da seguinte forma613:

(I) O CARIOCA DO SÉCULO XXI: “Oferecer às pessoas oportunidades e facilidades para acesso ao emprego e aos bens sociais e culturais em seu sentido mais amplo”.

(II) RIO ACOLHEDOR: “Melhorar a relação da cidade com seu entorno é uma exigência de qualidade do ambiente urbano necessária para conseguir que o Rio de Janeiro, seja identificado como uma cidade receptiva, funcional e capaz de promover e ampliar a convivência e a vizinhança” [grifo meu].

(III) RIO PARTICIPATIVO: “As profundas obrigações da vida urbana obrigam a mudanças na estrutura do governo local. À reorganização da vida comunitária, ao incremento da participação coletiva na construção da cidade, a novas formas de cidadania e convivência, e a uma administração pública eficaz e eficiente, que estabelece novas formas de relação e comunicação com o cidadão” [grifos meus].

(IV) RIO INTEGRADO: “O processo de integração crescente será alcançado através de melhor vertebração da cidade, do equilíbrio territorial e das

612 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro - Rio Sempre Rio. Rio de Janeiro: A Prefeitura: Imprensa da Cidade, 1996, p. 23.

613 Idem, ibidem, p.23.

255

novas centralidades que facilitam a difusão da qualidade urbana por toda a cidade, a normalização da habitação, o fortalecimento do centro e a melhor mobilidade dos cidadãos” [grifo meu].

(V) PORTAS DO RIO: “A cidade do Rio de Janeiro se configure como um centro articulador da Região Metropolitana e, ao mesmo tempo, como eixo vertebrador da mais importante região econômica do país. Sua situação privilegiada exige que suas portas de entrada e suas infra-estruturas de acesso sejam adequadas para os importantes fluxos econômicos. A qualificação das portas internas, articulando as Zonas Sul, Norte e Oeste com o Centro é um pré-requisito para que o Rio seja um pólo integrador da Região Metropolitana” [grifo meu].

(VI) RIO COMPETITIVO: “Recuperar a competitividade do Rio, no contexto da economia globalizada, enfrentando os desafios para a modernização dos processos produtivos, tais como: o fortalecimento dos setores econômicos tradicionais, o suporte para o desenvolvimento de setores emergentes, a implementação de serviços avançados e a potencialização de tecnologias e inovações” [grifo meu].

(VII) RIO 2004 - PÓLO REGIONAL, NACIONAL E INTERNACIONAL: “O Rio desenvolverá uma série de projetos com prazos definidos e efeitos sobre a sua imagem interna e externa, de modo a se tornar um pólo de atratividade regional, nacional e internacional. O Plano estabelece como marco estratégico o fim de 2004, quando serão colhidos resultados expressivos nos campos da atratividade cultural, do esporte e de eventos [grifo meu].

O Rio tem, na sua imagem, um ativo valioso e elemento decisivo para o seu desenvolvimento. Muitas de suas atividades estão estruturadas sobre este fator de atratividade. Cultura e lazer, esporte e turismo são importantes como geradores de emprego, de integração social e ‘marca’ do Rio. Sua oferta cultural é bem dotada de equipamentos, diversificada e capaz de criar e de ser vanguarda (moda, escola de samba, música). Tem vocação para os esportes ao ar livre e boa oferta de instalações esportivas. É a única Metrópole-rr e s o r t do mundo. Possui oferta singular de áreas para o turismo verde – inclusive em cidade próximas. E apresenta-se como cidade reconhecidamente hospitaleira. Falta porém maior coordenação entre os vários níveis de governo e melhor relação governo-iniciativa privada. É preciso melhorar a gestão, organizar a informação, recuperar áreas turísticas e o setor do exporte e melhorar a distribuição espacial dos equipamentos de cultura, lazer e exporte” [grifos meus].

Merecem destaque nesta investigação três das sete linhas estratégicas

apresentadas, são elas: (IV); (V) e (VII), “RIO INTEGRADO”; “PORTAS DO RIO” E

256

“RIO 2004 –POLO REGIONAL, NACIONAL E INTERNACIONAL”, respetivamente. As

duas primeiras são importantes na medida em que ratificam a afirmação de que, a

partir deste período, há uma retomada de interesse na recuperação de sua imagem

através da área central da cidade (o CBD como se referem Doxiadis e Lúcio Costa) e

das relações desta com as outras áreas da cidade, além da própria Metrópole; e

também, de forma alargada, das relações que extrapolam as fronteiras locais atingindo

a rede global. Embora o PECRJ também não fosse um plano desenhado, a definição

de ações como a requalificação da malha urbana existente, a incorporação das favelas

à cidade formal e a atuação em diferentes núcleos urbanos existentes, absorveram as

experiências de Projetos Urbanos já citados anteriormente como o Rio Cidade e o

Favela-bairro e que eram levados a cabo em paralelo e em consonância com a

elaboração do PECRJ, dando assim, nestes casos específicos, um caráter de ação mais

desenhada vinculada ao Plano.

Demonstrava-se uma outra forma de investir na cidade, mais na sua

estruturação e recuperação e menos na sua expansão e transformação total, mais por

projetos pontuais e específicos que refletem oportunidades, do que por grandes

planos totalizantes de viés modernista614.

A primeira experiência estratégica do Rio de Janeiro foi concebida sob forte

influência do que ocorreu em Barcelona, observada amplamente e transformada em

paradigma após a realização dos Jogos Olímpicos de 1992. Através da consultoria de

técnicos catalães como Jordi Borja e Lluis Millet entre outros, a intenção de abrir a

cidade do Rio de Janeiro para o mundo em diversos aspetos, através de ações no

sentido de preparar a cidade para a competição global foi um dos, se não o mais,

importante foco, como indica a linha estratégica (V). A afirmação de Jordi Borja

reflete essa condição que se estabelecia para o Rio quando diz que:

“‘em uma cidade nada é o que é senão o que suscita, o que atrai, o que provoca e transforma. A atuação integral só é possível quando se combina a gestão descentralizada com a experiência de um projeto

614 No entanto, deve-se sempre ressalvar que na Barra da Tijuca, sempre ela, mantinha-se a forte dinâmica de investimentos, sobretudo privados, como apresentado anteriormente através dos lançamentos imobiliários, sempre em acordo com o Plano Lúcio Costa.

257

global. Seja qual seja a escala’. Neste sentido o Plano será um instrumento novo para intervir na cidade, definindo ações imediatas que permitam sua transformação e adaptação ao novo ambiente econômico e social, resolvendo confrontos da lógica do mercado e da lógica do cidadão e buscando objetivos e linhas estratégicas mais adequadas para posicionar-se no mercado de cidades” [grifo meu].615.

A relação entre Rio e Barcelona tornou-se estreita, não apenas pela presença

dos consultores catalães em apoio ao PECRJ como também, e principalmente, por

conta do “sonho olímpico” que compartilhavam. Desejo demonstrado na linha

estratégica (VII) RIO 2004 –PÓLO REGIONAL, NACIONAL E INTERNACIONAL, que

ratificava a vontade do Rio de se tornar sede olímpica, inserindo-se assim, de forma

mais contundente, na rede global de cidades. Assim como Barcelona fez, tendo o seu

caminho olímpico já percorrido, com resultados que permitiram colher frutos

positivos da experiência de sediar um megaevento como os Jogos Olímpicos.

Como referido, a tentativa de conquistar igualmente um “lugar ao sol” na

rede global de cidades leva à sétima linha estratégica do PECRJ denominada: RIO

2004 –PÓLO REGIONAL, NACIONAL E INTERNACIONAL. Nesta linha estratégica

foram definidas as ações de marketing urbano, com o intuito de reforçar a cidade do

Rio de Janeiro como centro de atração nacional e internacional. Para realização de

tal estratégia, deu-se destaque a pontos como: a imagem da cidade como importante

ativo; a suposta vocação desportiva local; e a necessidade de integração

intergovernamental e também com a incitativa privada. A ação objetiva de maior

destaque que absorveu estes pontos foi a perseguição à candidatura à Sede dos

Jogos Olímpicos tendo sua primeira tentativa no ano de 1997, para sediar os Jogos

de 2004. A partir de então, e apesar da tentativa frustrada, a cidade passou a investir

grandes esforços para a realização deste megaevento mundial.

615 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro - Rio Sempre Rio. Rio de Janeiro: A Prefeitura: Imprensa da Cidade, 1996, p. 19.

258

Entre os diversos passos calcorreados que contribuíram na caminhada para

a construção de capacidades para atingir o objetivo de sediar os Jogos, os primeiros

e mais significativos aconteceram alguns anos antes da primeira tentativa. O Rio de

Janeiro, ainda na década de 1990, por duas ocasiões, recebeu um evento mundial de

porte significativo que foi de grande importância nesse início do processo de

reposicionamento da cidade na agenda mundial. No ano de 1992, foi realizada a

Conferência das Nações Unidas, conhecida como ECO-92. O evento acolheu 180

representantes de diferentes países, sendo 125 deles chefes de Estado ou de

Governo, e recebeu significativos investimentos (300 milhões de dólares ) para

renovação e melhoria dos principais pontos da cidade, reforçando sua ideia de

cidade símbolo do país. A conferência ocorreu em duas áreas diferentes da cidade:

uma parte ficou situada na Barra da Tijuca, tendo um outra sediada na área central

da cidade, no Parque do Flamengo. Para esta ocasião, diversas obras foram

executadas na cidade, entre elas a mais significativa foi a construção da ligação

rodoviária entre o Aeroporto Internacional e o CBD, a chamada Linha Vermelha, RJ-

071, oficialmente denominada Via expressa Presidente João Goulart, mais uma das

“Linhas Policromáticas” que se desenvolveram sob influência do Plano Doxiadis.

Outro evento semelhante teve ocasião no ano de 1999. Quando, já com o

PECRJ em andamento, a cidade recebeu a Primeira Conferência de Cúpula entre União

Europeia e os países da América Latina e do Caribe, outro importante evento que reuniu

vários chefes de Estado. Este conjunto de eventos globais paulatinamente alçavam

a cidade a postos de maior interesse na rede global de cidades.

616 ENDERS, Armelle, A História do Rio de Janeiro. Gryphus, 2008, p. 315.

259

Figura 96. Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e o Desenvolvimento (1992).

Figura 97. Na inauguração da Linha Vermelha, os cariocas puderam passear pela via expressa (Abril de 1992).

Estes momentos extraordinários para o desenvolvimento da cidade, que incluíram

eventos como conferências internacionais, e que tiveram como foco, sobretudo, a

promoção de uma imagem que demonstrasse as múltiplas qualidades urbanas existentes na

cidade, através de ações de marketing urbano que superavam o impacto local da própria

realização dos eventos. Tais ações redefiniam assim, paulatinamente, a escala global da

cidade e, de certa forma resgatava, internamente, um passado positivo remetendo ao tempo

em que o Rio era capital da República. Não obstante à importância desses eventos descritos

acima, segundo o PECRJ, o grande evento que coroaria esse momento de transformação

como um marco estratégico para o final do ano de 2004, seria aquele proporcionado pela

conquista do direito de sediar os Jogos Olímpicos. Uma estratégia para a regeneração e

reinvenção da cidade do Rio de Janeiro.

260

O sonho de realizar uma edição dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro,

iniciou-se em Março de 1993, quando, segundo o Prefeito César Maia, ele próprio

recebeu de Roberto Marinho617 (1904-2003) e João Havelange618 (1916-) a ideia de

inscrever a cidade como candidata aos Jogos619. Nessa ocasião considerava-se de

antemão o facto de que seria bastante difícil a conquista na primeira tentativa

(informação verbal)620. O acolhimento desta ideia somada às perspetivas que se

abriam com o desenvolvimento do PECRJ, resultou no início de um processo que se

alongou por dezasseis anos.

Em 1997, o Rio de Janeiro disputou a eleição para escolha da cidade sede dos

Jogos Olímpicos de 2004. A proposta foi eliminada, numa disputa que teve como

vencedora a cidade de Atenas na Grécia. Esta primeira proposta de candidatura do

Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos teve na ocasião, grande apoio dos

consultores responsáveis pela experiência de Barcelona que já haviam firmado

cooperação nesse sentido desde a parceria para a realização do PECRJ.

Nos registos do Seminário promovido em 1996, pela Prefeitura do Rio,

sobre as condições urbanísticas das áreas selecionadas para a proposta dos Jogos

Olímpicos de 2004, antes da disputa que deu vitória à Atenas , Lluís Millet, ex-

diretor de infraestrutura dos Jogos Olímpicos de Barcelona, afirmou à época em

favor da candidatura carioca:

“Vejamos um pouco do projeto do Rio em comparação ao de Barcelona. Eu me sinto bastante autor do projeto de Barcelona, que foi o vencedor e que trouxe benefícios para a cidade, mas acredito que o projeto do Rio

617 Roberto Pisani Marinho (1925-2003) foi jornalista e empresário brasileiro. Proprietário das Organizações Globo de 1925 a 2003, foi um dos homens mais poderosos e influentes do país no século XX.

618 Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange (1916-) é advogado, empresário, ex-atleta e dirigente desportivo brasileiro. Foi Presidente da FIFA entre os anos de 1974/1998 e é membro do COI desde 1963.

619 Houve uma candidatura do Rio para os Jogos Olímpicos de 1936 que foi vencida pela cidade de Berlim na Alemanha, onde a participação carioca na disputa se deu de forma isolada e residual.

620 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

621 PCRJ/IPLAN RIO – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Seminário sobre as Condições Urbanísticas das Áreas selecionadas para os Jogos Olímpicos. Rio de Janeiro: Imprensa da Cidade, 1996.

261

seja melhor do ponto de vista olímpico. Se o projeto de Barcelona ganhou, estou certo de que o projeto do Rio deve ganhar também”622.

O Jornal Folha de São Paulo destacava, seis meses antes do anúncio da

cidade sede, que entre as onze cidades candidatas, o Rio era superado apenas por

Roma na primeira avaliação do Comité Olímpico Internacional; e na mesma

reportagem chamava a atenção para as declarações do Prefeito Luiz Paulo Conde e

do Presidente do Comité local, Ronaldo César Coelho, que apontavam o “resgate

social” do Rio como ponto principal que teria sensibilizado a comissão de avaliação.

“Esse é o nosso grande diferencial. A Candidatura do Rio é um símbolo contra a

exclusão social [– afirmava Coelho] [...]; A agenda social é importante. O [Comité

Olímpico Internacional] quer juntar a Olimpíada com o social. E nossa candidatura

oferece isso” [– disse Conde]623.

A proposta da cidade do Rio tinha como base a escolha de seis áreas dentro

da cidade para abrigar o evento, descentralizado conforme o projeto de Barcelona,

mas no entanto em uma escala bastante diversa, dada a diferença de dimensão entre

as duas cidades, eram elas: (i)FUNDÃO, (ii)MARACANÃ – SÃO CRISTÓVÃO,

(iii)GLÓRIA, (iv)LAGOA, (v)BARRA DA TIJUCA e (vi)VILA MILITAR. A descentralização

procurava um certo equilíbrio nos quadrantes da cidade. No entanto havia claramente

maior ênfase nas quatro primeiras áreas que se constituíam como um núcleo onde a

maior parte das modalidades seriam disputadas, se confundindo com a área mais

consolidada da cidade, no entanto, também a mais complexa.

A proposta, de certa forma, vislumbrava estabelecer uma nova dinâmica local

com a instalação de equipamentos de uso coletivo, o que poderia mitigar os graves

problemas sociais de uma área deprimida da cidade. Procurava-se a mudança, a

transformação da cidade a partir do enfrentamento da complexidade da mesma,

aproveitando a oportunidade do evento para isso. Mascarenhas corrobora com esta

perspetiva como pode ser observado a seguir:

622 PCRJ/IPLAN RIO – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Seminário sobre as Condições Urbanísticas das Áreas selecionadas para os Jogos Olímpicos. Rio de Janeiro: Imprensa da Cidade, 1996, p. 33.

623 Folha de São Paulo, 13 de Janeiro de 1997. Disponível na WWW: <URL: http://www1.folha. uol.com.br/ fsp/1997/1/13/esporte/20.html> [Consult. 2013-10-29].

262

“Caso os Jogos Olímpicos de 2004 fossem realizados no Rio de Janeiro, a abandonada Ilha do Fundão teria adquirido um aproveitamento intensivo de seus vastos espaços, tornando-se privilegiada concentração de equipamentos [desportivo - recreativo]. Nela, seriam construídos a vila olímpica e um grande número de instalações [desportivas]. Tal infra-estrutura estaria ao alcance de segmentos sociais de baixa renda que habitam o entorno imediato da Ilha, medida salutar face a crônica carência de opções de lazer para os habitantes da Zona Norte da cidade [...]. Também incluímos entre os beneficiados, por esse projeto a população da Baixada Fluminense”624.

Neste contexto, a proposta privilegiava a área da (i) ILHA DO FUNDÃO, que

abriga grande parte do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

além de centros de pesquisas estatais. A Ilha situa-se na Baía de Guanabara e foi

criada em 1950 através do aterro de outras oito ilhas625. Está posicionada

praticamente no coração da cidade metropolitana, a norte do CBD. Tem como

característica principal um desenho modernista de cidade, concebido pelo Arquiteto

Jorge Machado Moreira (1904-1992), que resulta na prática em grandes vazios entre

edifícios dispostos de forma fragmentada. Além disso, uma de suas principais

características é ser vizinha de um dos maiores complexos de comunidades pobres da

cidade, conhecido como o Complexo da Maré com mais de 100 mil moradores.

Figura 98. Complexo da Maré, à esquerda parte da Ilha do Fundão.

624 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 49-50.

625 Foram aterradas as ilhas do Bom Jesus, do Fundão, da Sapucaia, do Catalão, do Baiacu, das Cabras, do Pindaí do Ferreira e do Pindaí do França.

263

A proposta para os Jogos Olímpicos de 2004 previa a disputa das mais

importantes modalidades, além da construção da vila olímpica e do International

Broadcast Center (IBC) e Media Press Center (MPC)626, na Ilha do Fundão, tratando o

local como o “coração dos Jogos”. A proposta pretendia transformar as

possibilidades de uso do campus subutilizado, ao mesmo temo que poderia integrar

áreas carentes da cidade tendo reflexo na valorização ampla da centralidade

carioca frente a outros pontos da metrópole. Outrossim, a escolha do eixo (ii)

MARACANÃ – SÃO CRISTÓVÃO procurava abertamente rever e reforçar a histórica

centralidade metropolitana (em um sentido que pode mesmo confundir-se com

aquele estabelecido pelo eixo norte-sul de desenvolvimento da Zona Central

Classe VIII, proposto por Doxiadis).

Não obstante, outras áreas da cidade foram escolhidas como forma de

responder ao discurso do equilíbrio territorial. Estas áreas bem mais distantes,

significativas se observadas numa perspetiva de escala alargada, estavam programadas

para receber alguns poucos e específicos desportos, principalmente aqueles que não

demandavam a construção de novos equipamentos podendo-se fazer o

aproveitamento de outros existentes com montagens temporárias por exemplo: nas

áreas militares e no Centro de Convenções – “Rio Centro”. As áreas em questão

situam-se na (v) BARRA DA TIJUCA e na (vi) VILA MILITAR em Deodoro.

626 Equipamentos específicos que comportam toda a estrutura para a atuação dos médias.

264

Figura 99. Projeto da Ilha do Fundão. Escritório Técnico da Cidade Universitária da Universidade do Brasil, sob a liderança de Jorge Machado Moreira (1955) e o aterro que resultou na Ilha do Fundão.

Figura 100. Uma das raras imagens disponíveis da candidatura Rio2004 que mostra a distribuição de modalidades e equipamentos no território. A Noroeste a VILA MILITAR; a Sudoeste o núcleo BARRA; a Nordeste o Fundão; a Sudeste o núcleo LAGOA; na zona Central o núcleo MARACANÃ - SÃO CRISTÓVÃO e por fim a Este o núcleo GLÓRIA.

265

Figura 101. Centro de Convenções Rio-Centro, local adaptado para uma

série de modalidades que podem ser realizados em

estruturas menores e provisórias.

Apesar dos elogios rasgados dos técnicos catalães e do otimismo do Prefeito e do

Presidente do Comité Local, a proposta foi eliminada na primeira rodada da fase decisiva, o que

leva a crer que a questão da escolha pode não ter sido meramente técnica, ou que o foco

essencial seja outro, e o ponto fundamental da proposta de transformação respeitando as pré-

existências, de enfrentamento da complexidade em busca de oportunidades de sinergias,

catálises e contaminação positiva não correspondesse plenamente às exigências do Comité

Olímpico Internacional, que não levou a candidatura carioca para a fase final da disputa. No

entanto, a experiência foi enriquecedora e importante como primeiro passo para viabilizar novas

propostas que seriam levadas a cabo sob uma perspetiva definitivamente diversa dessa primeira,

mas que serviriam então para a conquista do direito de sediar as “Olimpíadas das Américas” –

os Jogos Pan-americano em 2007, que seriam realizados durante um novo período de

prosperidade para a nação e de “rutura” para a cidade (a seguir, nos Itens II.A e II.B).

Figura 102. Após a

eliminação da candidatura

olímpica para 2004, os

moradores das

comunidades em volta da

Ilha do Fundão viram ir

“embora a esperança de

uma vida melhor e

saudável” (1997).

266

No dia 1 de Janeiro de 2003, o 35º Presidente da República Federativa do Brasil

assumiu o poder da nação: Luiz Inácio Lula da Silva (1945-), imigrante nordestino, ex-

metalúrgico, ex-sindicalista, após três eleições seguidas e frustradas, finalmente, foi eleito

para assumir o principal posto da política brasileira.

“A alegria e a esperança invadiram o Brasil e as ruas fervilharam como em uma Copa do Mundo. A eleição de Lula foi noticiada com grande destaque pelos jornais do mundo inteiro, um sinal de importância do Brasil no cenário internacional”627.

Se a primeira década do século XXI, que se confunde quase inteiramente com os

anos Lula , foi de grandes transformações mundiais tendo como pano de fundo uma

profunda crise que atingiu o núcleo orgânico do capitalismo global629 e todo o sistema

económico-financeiro-político mundial das potências mais tradicionais do mundo

globalizado; para o Brasil, apoiado no crescimento chinês e de outras nações emergentes,

o período foi de grande prosperidade económica.

Esta nova realidade promoveu o Brasil, em 2011, à 6ª posição no ranking das

maiores economias mundiais com um PIB de 2,48 biliões630 de dólares. A primeira

década do século XXI no Brasil registrou um crescimento de 3,61%, valor bastante

positivo se comparado com os números das duas décadas anteriores . Este crescimento

pode ser considerado ainda baixo se comparado a economias como a China ou Índia, que

estiveram perto dos 10% de crescimento no mesmo período. Ainda assim, o resultado foi

bastante positivo e, segundo o Fundo Monetário Internacional, naquele momento, o

Brasil poderia ultrapassar a França chegando à 5ª posição do ranking das maiores

economias mundiais em 2015 ; no entanto como se pode comprovar, essa previsão não

627 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 232.

628 Lula foi Presidente da República por dois mandatos: 2003/2006 e 2007/2010.

629 ALVES, Giovanni, “Ocupar Wall Street... e depois?” in HARVEY, David et al., 2012, p. 31.

630 “Trilhões” no Brasil.

631 Ver gráfico na página 276.

632 Carta Capital. Ano XVII nº694, (p. 30) 25 de Abril de 2012.

267

se confirmou633. Um pouco menos otimista (ou apenas mais realista), a pesquisa da

PriceWaterHouseCoopers634, afirmava, naquele momento, que o quinto posto do ranking só

seria alcançado mais tarde, em 2025. Considerando o nível de incerteza da economia

global e também local, qualquer uma destas previsões e outras mais seriam possíveis, mas

o que importava assinalar é a posição privilegiada em que se encontrava o quadro

brasileiro, com crescimento mais elevado do que aquele visto nas décadas anteriores,

principalmente nas de 1980 e 1990, onde o processo de combate à inflação e estabilização

da moeda absorveu todos os esforços da nação. Com isso, durante a primeira década do

século XXI, o Brasil se firmou no seleto clube de países ditos emergentes, e foi capaz de

“surfar a marolinha” da crise global .

O Brasil então passou a fazer parte do grupo batizado por Jim O’Neil, da

Goldaman Sachs637, de BRICS, representando as primeiras letras de cada um dos países

emergentes na economia global, nomeadamente: Brasil, Rússia, Índia, China, e mais tarde,

África do Sul (South Africa). Na primeira década do século XXI, este grupo se constituiu

como motor da economia mundial e conquistando cada vez mais a atenção mundial com

633 Já em 2015, o mesmo FMI prevê um crescimento pífio para a economia brasileira de apenas 0,3% e consultoria britânica Economist Intelligence Unit prevê que o Brasil perderá, ainda no mesmo ano, para a Índia a 7ª posição do ranking ficando em 8º lugar. Disponível na WWW: <URL: http:// oglobo.globo.com/economia/fmi-reduz-projecoes-para-brasil-15099739 e em http://www1.folha. uol.com.br/mercado/2015/01/1569589-brasil-deve-perder-para-a-india-o-7-lugar-entre-as-maiores-economias.shtml> [Consult. 2012-08-21].

634 Disponível na WWW: <URL:http://oglobo.globo.com/economia/fmi-reduz-projecoes -para-brasil-15099739 > [Consult. 2012-08-15]. E na WWW: <URL: http://www1.folha.uol.com.br /mercado/2015/01/1569589-brasil-deve-perder-para-a-india-o-7-lugar-entre-as-maiores-economias.shtmlhttp://oglobo.globo.com/economia/brasil-sera-5-maior-economia-do-mundo-em-2025-aponta-pesquisa-3065048 > [Consult. 2012-08-15]. E na WWW: <URL: http://oglobo.globo. com/economia/brasil-sera-5-maior-economia-do-mundo-em-2025-aponta-pesquisa-3065048 em 15.08.2012> [Consult. 2012-08-15].

635 Logo após a eclosão da crise internacional, Lula declarou que a onda da crise chegaria ao Brasil como uma “marolinha”: “Lá, a crise é um tsunami. Aqui, se chegar, vai ser uma marolinha, que não dá nem para esquiar” (04 de Outubro de 2009). Disponível na WWW: <URL: http://oglobo.globo.com/ economia/da-marolinha-retracao-frases-de-lula-sobre-crise-3182005#ixzz24C3nGC00> [Consult. 2012-08-21].

636 O evento-marco inicial deste processo de crise se dá à 11 de Setembro de 2001 com o ataque terrorista que atingiu o coração da maior potência económica e militar mundial. A “bola-de-neve” iniciada neste grave evento passa pela explosão da bolha imobiliária norte americana em 2008 e pela crise da dívida soberana europeia em 2010 em virtude da incontinência fiscal de alguns países europeus e pela crise social ocasionada pela ampliação do desemprego e da precariedade (ALVES in HARVEY et al., 2012, p. 35); chegando, inevitavelmente, à crise política de 2011, onde observa-se uma espécie de catarse coletiva protagonizada especialmente pela nova geração de jovens despertando uma nova euforia política num mundo dominado pelos ideais de individualismo, de perpetua continuidade do quotidiano e de carências de projetos coletivos para o futuro (CARNEIRO in HARVEY et al., 2012, p. 13), que se expressou através das novas tecnologias de comunicação, com destaque para as redes sociais da internet, numa espécie de disseminação viral, um boca a boca eletrónico (Idem, ibidem, p. 09), mas que ao mesmo tempo retomou o papel do espaço urbano como lugar da expressão política em busca da liberdade e dos direitos individuais.

637 apud NERI, Marcelo, A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 22.

268

um crescimento do PIB superior aos dos países desenvolvidos638. O Brasil de Lula,

juntamente com os outros BRICS, posicionou-se na berlinda, tornando-se foco dos

interesses globais. Pode-se demonstrar claramente a ascensão deste grupo quando

observada a definição da agenda dos megaeventos mundiais recentes e futuros, entre

outros: Os Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro (2007), os Jogos Olímpicos e Para-

olímpicos de Verão na China (2008) e no Brasil (2016); os Jogos Olímpicos e Para-

olímpicos de Inverno na Rússia (2014); a Copa das Confederações e o Mundial de

Futebol na África do Sul (2009-10), no Brasil (2013-14) e na Rússia (2017-18); além dos

Jogos Mundiais Militares (2011); a Jornada Mundial da Juventude (2013); a Conferência

de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas - Rio+20 (2012); e mais

recentemente o Congresso da UIA (2020), todos no Brasil. Conclui-se que todos os

principais eventos mundiais durante uma década inteira e perspetivando mais uma

década, foram e estão previstos para os países que formam os BRICS, deixando de fora

apenas a Índia, que tem a sua ausência de certa forma compensada pela grande

concentração de eventos no Brasil.

Figura 103. LISTA DOS MEGA EVENTOS GLOBAIS (2007-2020)

RÚSSIA:

• JOGOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE INVERNO (2014);

• MUNDIAL DE FUTEBOL FIFA

(2018).

CHINA:

• JOGOS OLÍMPICOS E PARA OLÍMPICOS DE VERÃO (2008).

BRASIL:

• JOGOS PAN-AMERICANOS (2007); • JOGOS MUNDIAIS MILITARES (2011);

• CONFERÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO

SUSTÁVEL DA ONU - RIO+20 (2012);

• COPA DAS CONFEDERAÇÕES (2013);

• JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE (2013);

• MUNDIAL DE FUTEBOL FIFA (2014);

• JOGOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE

VERÃO (2016).

• CONGRESSO UIA 2020

ÁFRICA DO SUL:

• MUNDIAL DE FUTEBOL FIFA (2010).

638 apud NERI, Marcelo, A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23.

269

Enquanto grande parte do mundo passava por grave recessão, o

desenvolvimento brasileiro tirava vantagem de um conjunto de fatores positivos

construídos ao longo da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI, mantidos

pelo governo Lula, que florescem num momento de conjuntura internacional

favorável639. Este quadro permitiu estabelecer um ciclo virtuoso de crescimento

económico para o país, um novo desenvolvimentismo que se dava através do binómio:

crescimento com distribuição de renda640, onde medidas sociais de grande impacto foram

adotadas. Entre as principais razões que colaboraram para projetar a economia brasileira

estavam: (i) a retoma do processo económico pelo Estado através do investimento direto

ou por empresas estatais; (ii) a especialização da economia vinculada a produção de

commodities agrícolas e industriais (incluindo a crescente produção petrolífera),

representando naturalmente o setor mais competitivo de um país rico em recursos

naturais e impulsionado pelo grande desenvolvimento de países como a China e a

Índia ; e fundamentalmente, (iii) a ampliação da distribuição de renda e consolidação do

papel do mercado interno no crescimento económico através da ampliação da oferta de

crédito, da política de aumento do salário mínimo e da política social através do Programa

Bolsa Família , o qual, somente ente 2009 e 2011, permitiu um crescimento da população

na chamada “classe C” ou “nova classe média” de 37,56% para 54,39%

respetivamente644, possibilitando a redução em 67% da taxa de pobreza645.

Na década de 2000, a retomada da economia brasileira permitiu que o país,

segundo Marcelo Neri, tivesse um crescimento anual da renda domiciliar per capita dos

20% mais pobres, maior que o dos 20% mais ricos (6,3% e 1,7% respetivamente),

639 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 233.

640 BARBOSA, Nelson; SOUZA, José António Pereira in SADER et al., 2010.

641 Por mais indesejável que possa ser, por conta de sua característica de baixo valor agregado por trabalhador, lento crescimento e baixo nível tecnológico, a falta de estratégia económica que leva a especialização em commodities sustenta em boa parte o crescimento recente da economia brasileira em que pese a pouca sustentabilidade desta opção que pode levar a efeitos negativos conhecidos como a “doença holandesa” (ALMEIDA MAGALHÃES, 2010, p. 22-23)

642 FILGUEIRAS, Luiz; PINHEIRO, Bruno; PHILIGRET, Celeste; BALANÇO, Paulo, “Modelo liberal-periférico e bloco de poder: política e Dinâmica macroeconómica nos governos Lula” in ALMEIDA MAGALHÃES et al., 2010, p. 36.

643 NERI, Marcelo, A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 77.

644 Idem, ibidem, p. 95.

645 Idem, ibidem, p. 27.

270

revertendo a tendência de polarização histórica646. Ainda segundo o autor, “a

desigualdade da renda no Brasil caiu no período entre 2001 e 2009. A renda per capita dos

10% mais ricos aumentou em 12,8% em termos acumulados, enquanto a renda dos mais

pobres cresceu notáveis 69,08% no período. Nos demais BRICS a desigualdade, embora

baixa, seguiu crescendo”647. A redução da desigualdade brasileira pode ser avaliada tendo

em consideração o índice de Gini que revela uma queda entre 1990 para 2010, de 0,6091

para 0,5304 respetivamente e conforme o gráfico abaixo, chegando a níveis dos anos 60.

Figura 104. VISÃO DE LONGO PRAZO DESIGUALDADE (GINI)

Nesse sentido, os anos Lula foram de grande contribuição para o

desenvolvimento da nação e para a retomada da autoestima do brasileiro. Não obstante

ao fato de que o sucesso do período foi ofuscado por grandes escândalos de corrupção a

partir de 2005 , a condição de melhora geral assim como a empatia da figura do

Presidente assegurou a manutenção da popularidade do governo, garantindo a reeleição

em 2006. O segundo mandato, ainda envolto na sombra dos escândalos anteriores, foi

tendencialmente positivo seguindo a linha de redução da desigualdade apresentada até

aqui, somando-se uma série de novos investimentos em infraestrutura e habitação, que

serviriam de impulso para a eleição de sua sucessora, quatro anos depois.

646 NERI, Marcelo, A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23.

647 Idem, ibidem, p. 25.

648 O escândalo de corrupção política que veio à tona no ano de 2005, por conta da compra de votos de parlamentares do Congresso Nacional e que ficou conhecido como “Mensalão” e envolveu importantes integrantes do governo Lula, resultando na ação penal de número 470, movida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal Federal, que pôs na cadeia em 2013 os acusados do esquema de corrupção.

271

Para as cidades, os anos Lula foram, de certa forma, positivos. O período foi

marcado pela criação do Ministério das Cidades, instituído logo à partida em 2003, e pela

promessa de retorno significativo dos investimentos através da retomada do papel dos

bancos e fundos públicos na provisão do crédito e na alavancagem dos investimentos

públicos e privados, por meio de programas como o Programa de Aceleração do Crescimento

(PAC) e o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), permitindo o desenvolvimento de inúmeras

ações no sentido de desenvolver as cidades brasileiras procurando enfrentar,

principalmente, os desafios das infraestruturas e da habitação. A inserção do tema urbano

no debate nacional, embora ainda tímido, é o ponto de destaque, mesmo que algumas vezes

com consequências reduzidas e nem sempre tão positivas quanto poderiam ser, se houvesse

localmente uma perspetiva efetiva de debate e promoção de uma agenda urbana.

Enquanto o Brasil se preparava para “descolar” na primeira década do século XXI, o

contexto do Rio de Janeiro sofria com influência do processo político que teve início ainda no

ano de 1998, quando o então Prefeito César Maia, aliado político até aquele momento de seu

sucessor, Luiz Paulo Conde, perdeu as eleições para o Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Como consequência, rompia-se a aliança estabelecida tendo em vista as eleições para a Prefeitura

da cidade no ano 2000. Neste ano, tanto Maia quanto Conde disputaram de forma acirrada o

cargo de Prefeito do Rio. Circunstâncias inesperadas, atribuídas à polémica de uma lei de

liberação de construção de aparthotéis, somada a declarações desastradas de Conde, fizeram

com que, na reta final do processo eleitoral, houvesse uma reviravolta nos números e, com isso,

César Maia venceu as eleições, em segundo turno, com apenas 51% dos votos válidos649.

A rutura entre os dois políticos direcionou a cidade para um outro caminho diferente

daquele estabelecido por um, e continuado pelo outro. Uma “faxina institucional” foi

realizada, retirando de seus postos uma grande quantidade de técnicos marcados como

649 Disponível na WWW: <URL: http://www.terra.com.br/istoegente/66/reportagem/ rep_cesar_maia.htm > [Consult. 2014-01-26]. E na WWW: <URL: http://observatoriodaimprensa. com.br/news/ showNews/jd051120004.htm > [Consult. 2014-01-26].

272

pertencentes à gestão anterior, embora funcionários de carreira da Prefeitura. Com isso, pode

ser observado um retrocesso nas conquistas que paradoxalmente tinham sido iniciados pelo

então Prefeito César Maia na sua primeira gestão650, e que agora reassumia o cargo. Os

projetos urbanos em concordância com as linhas estratégicas do primeiro PECRJ foram

gradativamente perdendo força, obras iniciadas no governo anterior foram paralisadas651, e foi

lançado um novo Plano Estratégico como será apresentado a seguir no Item II.C deste

capítulo. Aparentemente, por questões políticas, significativa parte das equipes técnicas que

haviam conquistado uma vasta experiência positiva no modelo de urbanismo que se

consolidava no planeamento da cidade foi dispensada (informação verbal)652. O personagem

político assumia preponderância em relação aos temas urbanos que passaram a ser tratados de

forma bastante pessoal. A complexidade da política e a subordinação dos meios de

comunicação às imagens [conduziram] à personificação dos acontecimentos653.

A cidade observou então a fundação de um momento onde projetos ad hoc, escolhidos

de forma discricionária pelo próprio Prefeito654, resultaram em esforços fragmentados

sustentados pelo discurso das sinergias, catálises e contaminações positivas, potenciado por uma

visão mediática. As ações resultantes deste modelo de decisão, aparentemente, teriam relação

estreita com as linhas do PECRJ, condição afirmada por Carlos Vainer655. No entanto, o que se

observa é que as decisões tomadas deixaram de lado a estratégia de cidade passando para a

concentração de esforços em ações de destaque pontuais refletidas em projetos arquitetónicos,

não mais urbanos, que se pretendiam de grande visibilidade mediática, acarretando propostas

distribuídas no território municipal de forma fragmentada, resultando na realização de projetos e

na construção de grandes equipamentos especializados em diferentes áreas da cidade. Tal

perspetiva de atuação reflete-se, de certa forma, no novo modelo também mais fragmentado

utilizado para desenvolvimento de um segundo Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro entre os

anos de 2003 e 2004, como será visto a seguir.

650 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

651 Como nos lembra Nuno Portas que em suas aulas citava com exemplo o projeto da Frente Marítima de sua autoria junto com Oriol Bohigas que foi interrompido no segundo governo Maia. (Informação verbal).

652 Informação obtida em entrevista com quadros da Prefeitura da época da transição entre Governos.

653 INNERARITY, Daniel, O Novo Espaço Público. Lisboa: Teorema, 2006, p. 33.

654 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

655 VAINER, Carlos, “Prefácio” in MASCARENHAS et al., 2011.

273

(A) (B)

(C) (D)

Figura 105. Modelo do Projeto não realizado do (A)Museu Guggenheim de Jean Nouvel; (B)Cidade da Música. Projeto

de Christian de Portzamparc; (C)Cidade do Samba e (D)Cidade das Crianças. Projeto de Paulo Casé.

Figura 106. MAPA DE LOCALIZAÇÃO DOS PROJETOS

Figura 74. Localização dispersa no território dos equipamentos culturais.

274

Estabelecia-se no desenvolvimento urbano da cidade um caminho que indicava

uma grande mixórdia de temáticas, que juntava o desejo de estabelecer um modelo

mediático à semelhança de Bilbau, ao contínuo desejo de sediar os Jogos Olímpicos

como em Barcelona, e a uma linha efetiva que se aproximava da experiência das

intervenções públicas dos Grands Taravaux de Mitterrand, atuando de forma

fragmentada e personalizada na figura pública do representante do poder executivo.

A perspetiva de realização de um projeto do Museu Guggenheim, sob

desenho do arquiteto do star-system Jean Nouvel, foi uma dessas propostas. Com

localização pretendida na área portuária, como edifício âncora para a revitalização da

mesma, assim como aconteceu em Bilbau, teve seu projeto paralisado pela

movimentação contrária da opinião pública e pela inviabilidade de cessão do terreno

pertencente ao Governo Federal. Segundo Andréa Redondo, o ex-prefeito César Maia

na ocasião do movimento contrário à construção do museu praguejava: “Predadores

do Rio de Janeiro. Não deixam a cidade melhorar. Eles não veem o que aconteceu

com Bilbau?” (informação verbal)656. Vale registar que os dois mandatos seguidos de

César Maia (2001/2008) constituíram-se em períodos de alguma dificuldade de

diálogo entre as diferentes esferas dos poderes governamentais.

Tendo em vista a inviabilidade do Museu, por decisão do próprio Prefeito657,

foram estabelecidas a construção de outros equipamentos de forma discricionária no

território municipal, sem perder de vista a perspetiva de obter algum tipo de

contaminação positiva como justificativa legitimadora das decisões. Entre eles

destacam-se a construção da Cidade da Música (2008/2013), projeto de mais um

arquiteto do star-system, Christian de Portzamparc, na Barra da Tijuca; a Cidade do

Samba (2006), na zona portuária e a Cidade das Crianças (2004) na zona oeste da

cidade em Santa Cruz.

Neste contexto de atuação, no ano de 2002, durante o segundo mandato de

César Maia, o Rio de Janeiro conquistou, em disputa com a cidade norte-americana

656 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

657 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

275

de San Antonio, o direito de sediar os Jogos Pan-americanos de 2007, versão latino-

americana dos Jogos Olímpicos, na sua décima quinta edição, O evento desportivo

pode ser visto como o ponto de inflexão da transformação dos processos de

planeamento urbano que se estabeleceram a partir de meados dos anos 1990,

movendo-se, segundo Mascarenhas, para a direção de um “urbanismo [cada vez mais]

mercadófilo”658. As ações, em geral, estabeleciam-se tendo como foco a afirmação

daquele Governo, daquela gestão, e também dos interesses do mercado imobiliário,

sobretudo no incentivo à expansão a oeste através do crescimento da Barra da Tijuca

e além, sendo que este processo não foi acompanhado das respetivas infraestruturas

necessárias para responder ao movimento de expansão permanente da cidade.

Os Jogos Pan-americanos de 2007 foram apresentados como a principal

contribuição para a cidade nesse período político dando destaque às “fantásticas”

possibilidades atribuídas ao legado resultante do evento. No entanto, esse legado

prometido para o desenvolvimento urbano da cidade não foi percebido. O

investimento realizado não foi capaz de promover as benfeitorias esperadas para a

cidade. Tal condição deu-se em grande parte como reflexo de uma experiência que

desvirtuou as linhas traçadas pelo primeiro PECRJ, através de uma proposta que teve

como foco a realização do evento sem no entanto ter como suporte um planeamento

que fosse ao encontro das demandas da cidade. O foco esteve em viabilizar a

realização do evento a todo o custo, para que este pudesse vir a ser mais um passo

rumo à possibilidade de sediar os Jogos Olímpicos. Nesta perspetiva, o projeto de

realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 foi “bastante distinto do que [se

verificou] em Barcelona e, por conseguinte, distante também daquele projeto de

658 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 50.

Segundo Marcelo L. Souza, a condição de mercadófilo corresponde a rutura com o espírito regulatório, deixando de tentar disciplinar o capital e, em oposição, procura o melhor ajustamento aos seus interesses. (SOUZA, 2004, p. 136).

276

candidatura da cidade [do Rio] aos Jogos Olímpicos de 2004”659. Este último, como

já apresentado, procurou enfrentar a complexidade da cidade e contou com a

participação de segmentos da sociedade civil organizada através do PECRJ,

resultando numa ótica de intervenção urbanística pautada na redistribuição espacial

dos equipamentos, no aproveitamento racional dos recursos e da infraestrutura

existente e na revitalização de áreas de obsolescência660.

Na proposta e realização do Pan-americano de 2007, a Prefeitura manteve afastado

do processo de decisão importantes segmentos da sociedade, implantando um processo de

gestão baseado na formação de “instâncias decisórias fugazes e excepcionais”661, que atuavam

por sobre as condicionantes ordinárias da burocracia institucional e das leis que regulavam a

cidade. Esta nova condição levou ao limite a lógica da intervenção urbanística pontual em

estreita parceria com o capital privado. A construção da cidade supostamente ligada às

parcerias do tipo público-privadas, passou a instituir um novo patamar de influência de

importantes agentes económicos no direcionamento das decisões das políticas urbanas,

revelando uma nova relação entre interesses empresariais e políticos, porque, ao fim e ao

cabo, os investimentos tiveram origem no erário público sendo em grande parte apropriados

de forma oportunista pelos parceiros privados.

O modelo que se estabeleceu a partir de então tendeu à consolidação do

desenvolvimento da cidade numa condição de desequilíbrio com o território metropolitano,

tendo como principal gesto urbanístico a concentração espacial de investimentos públicos

na área socialmente privilegiada, lugar de grandes investimentos privados e expansão da

cidade, que é a Barra da Tijuca. A experiência desenvolvida juntamente com o catalães para

a proposta de sediar os Jogos em 2004, foi colocada de lado e seus pressupostos rejeitados

em proveito de interesses privados e políticos, “embora o discurso oficial tenha

incorporado plenamente os princípios consagrados do planejamento estratégico, sob o

paradigma da competitividade urbana, visando promover a melhoria das condições sociais e

econômicas, aí incluindo o enfrentamento da pobreza, a investigação da distribuição dos

659 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 51.

660 Idem, ibidem, p. 49.

661 Idem, ibidem, p. 53-54.

277

recursos destinados aos Jogos Pan-americanos indica que não houve correspondência entre

as ações efetivas realizadas pelo poder público, sobretudo recursos da Prefeitura”662, na

implementação da iniciativa e o tipo de discurso e prática orientadas pelo mercado.

“Ou seja, os investimentos para a promoção do grande evento [desportivo] materializado no Pan-2007 informam que aquele realizados majoritariamente pelo setor público, na realidade, criaram oportunidades de lucro para um pequeno número de empresas privadas. No âmbito da gestão urbana, a iniciativa do Pan-2007 se transformou num instrumento de reprodução do capital privado em suas diferentes modalidades (entretenimento, construção civil, entre outras), em detrimento do atendimento das necessidades básicas do conjunto da população”663.

Figura 107. Mapa dos locais de disputa das modalidades desportivas dos Jogos Pan-americanos de 2007. Destaque para os círculos em degrade partindo da área de maior concentração de eventos: a Barra da Tijuca.

662 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

663 SÁNCHEZ, Fernanda, et al, “Jogos Pan-Americanos Rio 2007: um balanço multidimensional” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 116-117.

278

Quanto à definição do Plano do Pan-americano de 2007 em relação à disposição

dos elementos no território, pode-se observar que o centro nevrálgico dos Jogos se

estabeleceu na região da Barra da Tijuca onde se concentrou 25 modalidades além da Vila

Olímpica, e que juntamente com a região de Deodoro (chamado de Vila Militar na proposta

Rio2004) resulta na aglomeração de 34 modalidades à oeste do território. Estas mesmas

áreas na proposta para os Jogos de 2004 foram definidas de forma bem mais singela, e

receberiam não mais do que 16 modalidades desportivas. Em simetria, para 2007, foram

destinadas às áreas centrais apenas 15 modalidades. É possível observar que no mapa oficial

do evento, os círculos concêntricos que definem as distâncias dos eventos partem da região

da Barra da Tijuca, demonstrando uma clara transferência de importância para esta área. A

concentração de investimento à oeste reforçam a ideia de expansão da cidade que

perduravam no desenvolvimento da cidade desde sua promoção no Planos Doxiadis e, mais

especificamente nesta área, no Plano Lúcio Costa.

Embora seja possível interpretar esta concentração na área de expansão da

cidade como uma iniciativa que responde a interesses do mercado imobiliário, o

Prefeito César Maia, afirmou em entrevista para esta investigação que a decisão se

deu por conta da necessidade de estipular uma estratégia para vencer a disputa para

sediar o evento. Segundo o próprio: “ou você concentra na Barra ou não tem

Jogos!” A Barra da Tijuca seria uma área que ofereceria maior segurança e controle

total. Poucas entradas e saídas e um menor contraste entre diferenças como a da

favela e do asfalto: “O discurso da segurança pública vinha acompanhado da

localização na Barra da Tijuca. Foi o meu discurso na cidade do México quando

ganhamos o Pan-Americano” (informação verbal)664.

Quanto ao legado dos investimentos no Pan-americano de 2007,

amplamente utilizado como forma de legitimar as decisões tomadas, pouco se

concretizou. “As intervenções realizadas mostraram-se pontuais, sem relação mais

consistente com a cidade. O caso do Rio de Janeiro é paradigmático, pois, apesar de

os equipamentos terem sido, mais ou menos, distribuídos pela cidade, não há uma

visão global do espaço urbano nem a pretensão de reestruturá-lo com algum

664 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

279

objetivo”665. O foco principal foi o de realizar o evento sob a perspetiva de uma

“pequena Olimpíada”, ou seja, a construção de equipamentos segundo uma lógica

de resposta também à possibilidade de uma futura Olimpíada. Segundo o ex-

prefeito César Maia, essa foi uma condição do Comité Olímpico Internacional

(COI) à época, após derrota da segunda tentativa de sediar os Jogos Olímpicos, em

2012 com plano semelhante ao que viria a ser vitorioso em 2009: “Perdemos a

segunda tentativa quando nós apresentamos um projeto igual a esse [escolhido em

2009], mas o COI nos disse que não adiantava o projeto. O que adiantava era

transformar o Pan-americano, com equipamentos olímpicos poderíamos ter uma

candidatura forte” (informação verbal)666.

Tendo como foco principal a decisão de investir todos os esforços no upgrade de

equipamentos e na realização do evento como exemplo de competência, o desenvolvimento

da cidade não sofreu efetiva aceleração, ou catálise, e o legado tão esperado não pode ser

observado, ao contrário do que foi apregoado à época. Segundo o ex-prefeito até houve uma

tentativa de se realizar intervenções urbanas, mas na prática “não havia necessidade pela

dimensão dos Jogos”99 (informação verbal). Os investimentos concentrados na construção

dos equipamentos para a realização do evento contribuíram apenas para reforçar uma política

de atuação pontual, sem demonstrar a compreensão das demandas da cidade. Essas ações

ficaram marcadas por estarem pautadas na transferência de realizações públicas para a

iniciativa privada, na valorização de áreas já privilegiadas e consequente expansão da cidade.

Mesmo quanto ao suposto legado desportivo do evento, as autoridades são reticentes e

imprecisas quando consultadas sobre o seu resultado efetivo667. O que foi recorrente nas

entrevistas realizadas no âmbito dessa investigação é que o Pan-americano de 2007 deixou

como principal legado a viabilização da candidatura vitoriosa dos Jogos Olímpicos de 2016668,

cumprindo assim a missão velada que fora estabelecida como condicionante de sua realização.

665 SÁNCHEZ, Fernanda, et al, “Jogos Pan-Americanos Rio 2007: um balanço multidimensional” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 119.

666 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

667 MASCARENHAS, Gilmar, “O ideário urbanístico em torno do olimpisomo: Barcelona (1992) e Rio de Janeiro (2007)” in MASCARENHAS et al., 2011, p. 52.

668 Informação verbal obtida em entrevistas para esta investigação.

280

O 2º Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro (PECRJ-II) foi batizado

com o cognome “As cidades da Cidade”, com a perspetiva de se estabelecer como

uma evolução do primeiro PECRJ. Essa segunda versão permite identificar traços

da ideia de “rutura técnico-política”, conforme apresentado anteriormente.

Embora o PECRJ-II tenha optado pelo desenvolvimento de um processo

começando do zero, o novo Plano não esqueceu de fazer vénia ao seu antecessor

reconhecendo-o como marco no planeamento da cidade669, lembrando que em

1999 o Banco Mundial considerou-o “um sucesso sem precedente enquanto

exercício de construção de consenso e parceria”670. No entanto, o novo processo

estratégico difere do anterior na perspetiva de que, ao contrário do primeiro, não

possui um foco global de cidade. Reflete a forma fragmentada que caracteriza as

linhas de desenvolvimento desse período, justificada pela potencialidade da

diversidade da cidade. O ex-prefeito César Maia, em “mensagem à cidade”

posicionava o PECRJ-II, segundo o discurso que segue:

“Nesta nova fase, o foco deixou de ser a busca de uma nova identidade para fortalecer a cidade e inseri-la de forma competitiva no cenário mundial, mas encontrar meios que pudessem indicar os caminhos em direção ao futuro desejável para cada região e, a partir da articulação harmônica e conciliada desses caminhos, construir uma cidade mais solidária, com igualdade de oportunidades para todos”671.

De forma objetiva, a cidade foi dividida em 12 regiões672, segundo critérios

geográficos, históricos e demográficos, e para cada uma delas foi formulado um

Objetivo Central e elaborado um Plano Estratégico específico. Pretendia-se dessa

forma identificar o papel de cada região na cidade e definir de forma mais objetiva

as estratégias e propostas para cada área. Tal procedimento resultou na realização

669 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro - As cidades da Cidade. Rio de Janeiro: A Prefeitura: Imprensa da Cidade, 2004, p. 08.

670 Idem, ibidem, p. 14.

671 Idem, ibidem, p. 09.

672 As 12 regiões são: Bangu: Barra da Tijuca; Campo grande; Centro; Grande Méier; Ilha do Governador; Irajá; Jacarepaguá; Leopoldina; Tijuca/Vila Isabel; Zona Norte e Zona Sul. Idem, ibidem.

281

de 85 reuniões nas diversas regiões, envolvendo aproximadamente a participação de

4.500 pessoas, tendo sido elaborados 12 Objetivos Centrais, um para cada região,

68 estratégias específicas (ao contrário do seu antecessor com apenas 7 linhas

estratégicas para toda a cidade), e 1.151 propostas de atuação. O novo PECRJ-II,

segundo sua metodologia de desenvolvimento, produziu um interessante

diagnóstico das aspirações locais das diversas regiões. No entanto chegou a um

número de estratégias e propostas de atuação que muitas vezes se mostravam

desadequadas numa perspetiva geral. Por exemplo, há pelo menos seis regiões que

competem entre si quando estabelecem como Objetivo Central o seu

desenvolvimento como um polo de (eco)turismo673. Este facto se repete quando a

intenção de se estabelecer áreas como referências histórico-culturais e polos de

indústria e comércio.

O PECRJ-II foi desenvolvido em 2003 e publicado em 2004. A cidade do

Rio de Janeiro já havia sido escolhida como sede dos Jogos Pan-americanos em

2002. Tendo em vista estas datas, é compreensível que se identifique uma

correlação entre as perspetivas das áreas contidas no Plano do evento e as

estratégias e propostas estabelecidas para as mesmas Regiões. Ao contrário do que

ocorreu no primeiro PECRJ, onde o Plano estabelecia o evento como uma de suas

estratégias de atuação, este novo Plano absorvia as opções tomadas em função da

realização do evento, estabelecendo a partir delas grande parte das estratégias que o

conformam. Por exemplo: reforça-se a ideia de que a Região de Jacarepaguá seria

“o grande centro de eventos nacionais e internacionais”, garantindo uma (suposta)

vocação como sede de grandes eventos culturais, esportivos e tecnológicos674.

Tanto Jacarepaguá como a Barra da Tijuca (esta última, definida como um polo de

negócios focado no lazer, serviços e turismo), são reconhecidas como áreas que

sofreriam profundos impactos com as atividades dos Jogos Pan-americanos de 2007

e a construção de seus respetivos equipamentos, proporcionando um legado que

673 A Região de Bangu, Campo Grande, Jacarépaguá e Tijuca/Vila Isabel se posicionam como referências de ecoturismo e a Barra da Tijuca e a Zona Sul como polos turístico. (PCRJ, 2004, p. 49, 63, 75, 143, 169, 195).

674 PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro - As cidades da Cidade. Rio de Janeiro: A Prefeitura: Imprensa da Cidade, 2004, p. 145.

282

resultaria em desenvolvimento económico e social675, que como já foi apresentado

não aconteceu como esperado. O próprio Plano estabelecia a realização dos Jogos

Pan-americanos de 2007 como uma janela de oportunidade para a cidade que

poderia gerar efeitos multiplicadores em diversos setores e que sobretudo, poderia

aumentar as possibilidades de escolha da cidade para sediar os Jogos Olímpicos.

Apenas este último ponto, viria a ser um legado efetivo.

O modelo utilizado para a conceção do PECRJ-II, de certa forma, se

coaduna com a ideia de “rutura” identificada no item II.A deste capítulo. A

subdivisão da cidade em Regiões e elaboração de diversos Planos Estratégicos

específicos remete ao entendimento de que essa “rutura” resulta de uma

desistência de enfrentamento da complexidade da cidade como um todo, inclusive

na sua perspetiva metropolitana, e a opção por uma atuação mais pontual, mesmo

que na ótica de uma Região, promovendo uma espécie de “fragmentação” do

planeamento global da cidade. Na soma das partes do PECRJ-II não se identifica

propriamente uma visão de cidade, concentram-se visões fragmentadas do

território sem explicitar uma visão global para a cidade. Também o facto de se

encontrar a realização dos Jogos Pan-americanos a servir como pauta para as

definições estratégicas de desenvolvimento da cidade, numa perspetiva inversa

daquela pretendida pelo primeiro PECRJ, permite concluir que se tratava de um

Plano direcionado para a realização do Pan-americano, e ainda, para os desejados

Jogos Olímpicos.

675 Idem, ibidem, p. 208.

283

“Eu ufano, tu ufanas, nós ufanamos, assim toda a nação se ufanaria de si própria e não correria o risco de se tornar no que não queria”676.

Todo o contexto positivo na primeira década do século XXI, com resultados

macro económicos ascendentes afetando positivamente o dia-a-dia de milhões de

pessoas que, por sua vez, estabeleceram-se em uma nova condição de consumo e

desenvolvimento pessoal, induziu o Brasil à um novo quadro de autoestima e

confiança. As características específicas deste momento foram definidas pelo

Professor Almeida Magalhães por uma expressão batizada de “euforismo”677, ou seja,

segundo ele, o que caracteriza este momento é um otimismo excessivo, aliado a uma

amnésia histórica. Explica-se: desacostumada com o rápido crescimento da economia

a opinião pública brasileira passou a valorizar de forma excessiva os resultados

obtidos, um tanto quanto modestos se comparados com os outros membros do

BRICS e mesmo com períodos anteriores do século XX, onde o PIB brasileiro

chegou a registar uma das taxas de crescimento mais elevadas do mundo. Entre 1929

e 1987, por exemplo, o Brasil teve um crescimento anual médio do PIB de 5,4%, o

segundo maior do mundo depois de Taiwan678, sendo que na década de 1970 a média

de crescimento do PIB brasileiro alcançou os 8,63% ao ano679. Porém, a referência

anotada efetivamente é aquela bem mais recente que se situa entre os anos de 1990,

quando chegou a ser registada uma recessão de 4,6%680, acumulando nessa década o

crescimento do PIB de apenas 2,54%681. É importante observar também que o PIB

per capita nos anos 80, a “década perdida” como referido anteriormente, teve

percentuais negativos (-0,56), que foram recuperados de forma gradual nas duas

676 TAVARES, André, Novela bufa do ufanismo em concreto. Porto: Dafne editora, 2009, p. 57.

677 ALMEIDA MAGALHÃES, João Paulo de, MINEIRO, Adhemar S., LESSA, Carlos et al, Os Anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 31

678 ENDERS, Armelle, A nova história do Brasil. Rio de Janeiro: Gryphus, 2012, p. 175.

679 Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível na WWW: <URL: http://www.bcb.gov.br > [Consult. 2012-08-21].

680 ENDERS, Armelle, op. cit., p. 222.

681 Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível na WWW: <URL: http://www.bcb.gov.br > [Consult. 2012-08-21].

284

décadas seguintes, com um crescimento positivo nos anos 90 ainda de forma bastante

tímida, e na primeira década deste século com alguma pujança.

Figura 108. TAXAS MÉDIAS (%) DE CRESCIMENTO (1961-2010)

PERÍODO TAXA DE CRESCIMENTO

ANUAL DO PIB (%)

POPULAÇÃO (%)

PIB PPER CCAPITA (%)

1961-1970 6,17 2,89 3,19

1971-1980 8,63 2,44 6,04

1981-1990 1,57 2,14 -0,56

1991-2000 2,54 1,57 0,95

2001-2010 3,61 1,21 2,37

O constatação deste “euforismo” pode, em grande parte, ser feita através da

pesquisa sobre o “grau de satisfação com a vida” medido pela Gallup World Poll ,

onde é possível observar que em 2009, o Brasil obteve um média 7, numa escala de

zero até dez, superando Rússia (5,2), Índia (4,5), China (4,5) e África do Sul (5,2), e

melhorando no ranking mundial de felicidade que inclui 144 países, onde passou do

22º lugar em 2006 para 17º em 2009. Mesmo com a autoestima em alta e com uma

série de melhorias efetivas na vida dos brasileiros, ainda se observam grandes

problemas coletivos: desigualdade, violência, falta de infraestrutura, entre outros

reconhecidos pela população que, individualmente, considerava-se em melhor

situação do que coletivamente. Em pesquisa sobre a satisfação de vida de cada

pessoa, numa escala de zero a dez, a média brasileira foi a maior alcançando 8,78.

No quesito felicidade futura, o Brasil era então o campeão entre as nações com uma

média de 8,6. A nota média do país em relação aos níveis de felicidade futura superou todas as

682 Disponível na WWW: <URL: http://www.gallup.com > [Consult. 2012-08-21].

285

outras nações cuja média é de 6,5683. Enquanto isso, no grupo dos BRICS, a África do Sul

ficou com 7,7 enquanto os outros integrantes não ultrapassam os 6 valores684.

Figura 109. GRAU DE SATISFAÇÃO COM A VIDA ENTRE OS BRICS (2009)

O Brasil demonstrava-se confiante na construção do futuro, na verdade

reproduzindo uma condição que parece inerente ao facto de ser brasileiro, poder-se-ia dizer

que o Brasil é uma nação que “abraçou a Modernidade” no sentido de que é bastante

significativo a confiança existente na construção de um futuro necessariamente melhor. A

alcunha “um país do futuro” dada por Stefan Zwieg, no livro homónimo, pode ser

melhor compreendida a partir destes dados que demonstram o momento especial para a

autoestima do povo brasileiro. Esta condição que é, por um lado, extremamente positiva e

importante, por outro, esconde a construção de mecanismos políticos de legitimação das

ações do poder público, permitindo consolidar processo top-down de decisão, onde o uso das

“palavras-contentor” torna-se ferramenta fundamental de retórica.

Com isso, o “euforismo” identificado por Almeida Magalhães, tem um papel

importante para o entendimento dos processos de legitimação das ações vinculadas aos

megaeventos mundiais realizados e ainda previstos. Os eventos e o próprio processo de

683 NERI, Marcelo, A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 46.

684 Idem, ibidem, p. 71.

685 ZWEIG, Stefan, Brasil, um país do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 264.

286

“euforismo” se retroalimentam, como “pescadinha de rabo na boca”. Enquanto o

“euforismo” facilita a legitimação dos processos ligados aos eventos garantindo-os, o

próprio evento reforça essa condição através da exposição e afirmação do país e da

cidade, tanto internamente, quanto para o mundo.

A rutura “técnico-política” do Governo de César Maia e a dificuldade de se

construir uma linha de diálogo efetivo entre os diferentes níveis de governo tiveram

suas consequências. A mais objetiva delas foi o facto de que, em 2008, Maia não

conseguiu eleger seu sucessor e com isso em 2009, Eduardo da Costa Paes (1969-)

assumiu a Prefeitura da Cidade após campanha feroz contra Maia. Paradoxalmente,

Paes fora “Subprefeito” da Zona Oeste (Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes

e Jacarepaguá), entre os anos de 1993 e 1996, exatamente no primeiro governo de

Maia, e Secretário Municipal de Meio Ambiente no início do segundo governo do

mesmo (2001/2002).

O Governo de Eduardo Paes iniciou-se com o Rio de Janeiro sob nova

condição resultantes de um raro alinhamento político partidário entre Governo

Federal, Estadual e Municipal. Através da aliança entre o Partido dos Trabalhadores

(PT) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)686, o Rio entrava

numa nova condição de apoio político institucional que permitiria que a atenção do

país voltasse novamente a ter como foco a ex-capital. Com isso, todo um leque de

oportunidades se abriu para a cidade, resultando na possibilidade de investimentos

significativos com recursos federais, potenciados pelo novo quadro económico

686 PT e PMDB tornaram-se aliados de forma pragmática, a partir da primeira eleição vitoriosa de Lula. Desde então entre 2002 e 2018 (quatro eleições) os dois partidos compõe a chapa da presidência da República com Presidente e Vice respetivamente.

287

fluminense movido pelo bom momento da indústria687, e do petróleo que

perspetivava receitas futuras significativas.

No primeiro ano de governo (2009), tal como na “rutura” do ano 2000 com

César Maia, foi instituída uma política de “limpeza institucional”, tratando de “apagar”

referências do governo anterior, trocando até mesmo o logótipo da cidade que se

identificava com a gestão anterior, aproximando-se da estética do Governo do Estado,

sob comando do mesmo partido político. Também ficou marcado por mais uma

semelhança com César Maia688, pelas ações que foram batizadas como “operação

choque de ordem”, que combatia amplamente a desordem urbana na cidade, sob

comando de uma nova secretaria criada especialmente - a Secretaria de Ordem Pública.

A “operação” procurava atuar sobre situações do dia-a-dia que incomodavam a

população como o comércio ambulante de rua, guardadores de carros não autorizados,

transporte coletivo irregular, recolha de moradores de rua e etc. Tais ações geraram

conflitos entre a guarda municipal e instituições públicas que atuavam na operação, e

aqueles que estavam sob fiscalização e ação da mesma. Se por uma parte da população

as ações eram vistas como necessárias e positivas, por outro aconteciam várias críticas

por conta de excessos ocorridos nestas operações.

Neste contexto de conflito que deixava a ação da prefeitura em constante

pêndulo entre o “bem e o mal”, antes do fim do primeiro ano de mandato, uma grande

surpresa praticamente “caiu no colo” do novo Prefeito, uma oportunidade única689: no

dia dois de Outubro de 2009, finalmente, o sonho virava realidade e o Comité Olímpico

Internacional escolhia a cidade do Rio de Janeiro como sede das XXXI edição dos Jogos

Olímpicos a ser realizada em 2016.

687 Em entrevista realizada para esta investigação, os arquitetos Demetre Anastassakis, ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil e Luís Madeira, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) destacaram os investimentos feitos na cidade e no Estado do Rio de Janeiro, especialmente na área da indústria petroquímica.

688 Também no primeiro governo de César Mais, entre 1993 e 1994, promoveu-se uma operação do tipo “choque de ordem”.

689 A Vereadora Andréa Gouveia Viera, em entrevista para esta investigação, afirmou que o Prefeito Eduardo Paes teria pegado a “coisa andando” em alusão ao facto de que todo o processo de candidatura se deu no governo de seu antecessor.

288

Figura 110. Créditos da exposição “Avenida Central: Contrastes do Tempo”, onde encontram-se os nomes do Prefeito e Secretário de Cultura cobertos por tinta preta. Exposição iniciada no Governo César Maia no Arquivo Geral da Cidade onde permanece montada. O dia do registo fotográfico foi 06 de Fevereiro de 2015, já no Governo de Eduardo Pães.

Figura 111. Contradições do “choque de ordem” (2009).

Como já referido, a entrada de Paes na Prefeitura carioca fechou a última

conexão necessária ao alinhamento dos três níveis de governo – Federal, Estadual e

Municipal690 – todos pertencentes ao mesmo grupo político de alianças. Este facto é de

fundamental relevância, e destacado amplamente nas diversas entrevistas realizadas para

esta investigação. Esta condição salvaguardou o apoio político máximo para a promessa

de que os investimentos fossem realizados na cidade, afiançando oportunidades de

investimento e obtendo assim as garantias necessárias à candidatura ao megaevento. Além

disso, também as lições aprendidas com as tentativas frustradas de sediar os Jogos

690 O alinhamento se entre o Governo Federal sob comando de Lula (PT), o Governo Estadual de Sérgio Cabral (PMDB) e o Governo Municipal de Eduardo Paes (PMDB).

289

Olímpicos, somadas ao relativo sucesso na realização do XV Jogos Pan-americanos de

2007, credenciaram definitivamente o Brasil e o Rio a sediar os Jogos Olímpicos, o mais

importante evento desportivo do planeta.

Estabelecia-se então, frente a esta conjuntura, uma sinergia de aspirações de

diferentes focos: o desejo de se mostrar ao mundo como nova potência económica

mundial; interesses políticos internos de um projeto de poder, e a intenção de garantir a

viabilidade para a manutenção e valorização da marca do megaevento.

Figura 112. Da esquerda para a direita: Ex-Ministro dos Desportes, Orlando Silva; Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes; Ex-Presidente, Luiz Inácio Lula da Silva; Ex-Governador

do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral e Presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman; juntos na ocasião da candidatura aos Jogos Olímpicos de 2016.

No dia dois de Outubro de 2009, na 121ª Sessão do COI em Copenhaga

(Dinamarca), quatro cidades disputaram o direito de receber os Jogos de 2016,

nomeadamente: Rio de Janeiro (Brasil), Chicago (EUA), Tóquio (Japão), Madrid

(Espanha). As cidades de Doha (Qatar), Baku (Azerbaijão) e Praga (República Checa)

que também se candidataram foram eliminadas em Julho de 2008. Um mês antes, em

Setembro de 2009, foi divulgado o relatório pela comissão avaliadora do COI. Na

primeira rodada de votação, Madrid liderou a contagem e Chicago foi eliminada

surpreendentemente. Na rodada seguinte, Tóquio ficou pelo caminho e o Rio de

Janeiro assumiu o posto de melhor escolha, que foi confirmado na terceira e última

rodada, batendo Madrid por mais do que o dobro de votos.

290

Figura 113. ELEIÇÃO DA CIDADE-SEDE DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016

Cidades Candidatas 1ª rodada 2ª rodada 3ª rodada RIO DE JANEIRO 26 46 66 MADRID 28 29 32 TÓQUIO 22 20 - CHICAGO 18 - -

O Rio de Janeiro superou candidaturas como as de Madrid, Chicago e Tóquio, numa

disputa onde a conjuntura geral do país foi definitiva para a escolha. Enquanto os outros

países viviam momentos menos prósperos nas suas economias, o Brasil apresentava-se como

um país de democracia madura e estável, economia forte e tinha grande apoio popular à

candidatura691. Este quadro positivo proporcionou um ambiente favorável para a nova

tentativa de sediar o maior evento internacional do desporto e a potencializava o

aproveitamento político de uma vitória, assim como havia feito o Regime Militar na conquista

do Mundial de Futebol de 1970 no México. Nesta perspetiva, e em busca da tentativa de

reversão de um quadro já não tão favorável de fim de governo, o então Presidente Lula

debruçou-se de corpo e alma à candidatura olímpica, postura que pode ser constatada a partir

do discurso proferido ao COI, no evento que definiu a cidade sede de 2016.

Em seu discurso, Lula alinhou-se a todo o projeto de marketing da proposta.

Dando grande destaque ao desejo coletivo de construção de uma nova imagem, de

uma nova autoestima, sem deixar de valorizar as características próprias, do Rio e do

Brasil. Seu discurso focava em um país que se estabelecia num novo quadro

económico e democrático que poderia ser potencializado pela oportunidade dos

Jogos, ampliando seu reposicionamento na escala global. Também ratificava o total

comprometimento dos diversos níveis de governos, garantindo todos os recursos

necessário. Nesta perspetiva de confiança no presente e construção de um futuro

róseo só se poderia imaginar um legado positivo advindo da oportunidade de sediar

os Jogos e o COI “não teria outra saída” se não aceitar os argumentos da retórica

apresentada, como pode ser visto na integra a seguir:692

691 O documento de candidatura do Rio de Janeiro indicava que 82% da população do Estado do Rio de Janeiro apoiavam o evento e que nacionalmente o percentual chegava a 71%. (COB, (Vol.I), 2008, p. 65).

692 Disponível na WWW: <URL: http://blog.planalto.gov.br/chegou-a-hora-de-acender-a-pira-olimpica-em-um-pais-tropical/> [Consult. 2012-10-02].

291

“Senhor Presidente, senhores e senhoras, membros do Comité Olímpico, companheiros da delegação brasileira, amigos e amigas. Com muito orgulho represento aqui as esperanças e sonhos de mais de 180 milhões de brasileiros. Muitos nos acompanham pela TV neste momento – em telões, nas areias de Copacabana, nas vitrines das lojas em São Paulo, ou em pequenos televisores às margens do Rio Amazonas. Estão todos unidos torcendo pelo Rio de Janeiro. Somos um povo apaixonado pelo esporte, apaixonado pela vida. Olhando para os 5 aros do símbolo olímpico vejo neles o meu país – Um Brasil de homens e mulheres de todos os continentes: americanos, europeus, africanos, asiáticos. Todos orgulhosos de suas origens e mais orgulhosos de se sentirem brasileiros. Não só somos um povo misturado, mas um povo que gosta muito de ser misturado. É o que faz a nossa integridade. Digo com toda franqueza: chegou nossa hora. Entre as 10 maiores economias do mundo, o Brasil é o único país que não sediou os Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos. Entre os países que disputam hoje a indicação somos os únicos que nunca tivemos essa honra. Para os outros será apenas mais uma Olimpíada, para nós será uma oportunidade sem igual. Aumentará a autoestima dos brasileiros, consolidará conquistas recentes, estimulará novos avanços. Esta candidatura não é só nossa, é também da América do Sul, um continente com quase 400 milhões de homens e mulheres e cerca de 180 milhões de jovens. Um continente que como vimos nunca sediou os Jogos Olímpicos. Está na hora de corrigir este desequilíbrio. Para o movimento olímpico esta decisão abrirá uma nova e promissora fronteira. O COI já mostrou ser capaz de enfrentar e vencer desafios. Mantendo acesa a chama da tradição, soube modernizar os jogos, introduziu novas modalidades, abriu-se a novas tecnologias, atraiu um número cada vez maior de países. O desafio agora é outro: expandir as Olimpíadas para novos continentes, é hora de acender a pira olímpica em um país tropical, na mais linda e maravilhosa cidade, o Rio de Janeiro. Para a América do Sul será um momento mágico, para o movimento olímpico, uma oportunidade de sentir o calor de nosso povo, a exuberância de nossa cultura, o sol de nossa alegria e de passar uma mensagem clara para o mundo: as Olimpíadas pertencem a todos os povos, a todos os continentes, a humanidade inteira. Aprendemos muito nos últimos tempos. Na realização grandiosa dos jogos Pan-americanos de 2007, nas Olimpíadas ano passado em Pequim, na visita às obras do Parque Olímpico de Londres, nos encontros pelo mundo com os membros da família olímpica. Este é o motivo pelo qual meu governo está tão comprometido com a candidatura do Rio de Janeiro. Demos todas as garantias possíveis à realização dos jogos, aprovamos financiamentos significativos e abrangentes, conscientes do legado que os jogos deixarão para o Rio de Janeiro. Meus amigos e minhas amigas, o Brasil vive um excelente momento, trabalhamos muito nas últimas décadas, temos uma economia organizada e pujante que enfrentou sem sobressaltos a crise que ainda assola tantas nações. Vivemos num clima de liberdade e democracia. Nos últimos anos 30 milhões de brasileiros saíram da pobreza e 21 milhões passaram a integrar a nova classe média. A superação de dificuldades é o que marca a história recente do Brasil e a trajetória de milhões de brasileiros. Acabo de participar da cúpula do G-20, em Petersburgo, na qual se desenhou por consenso um novo mapa económico mundial. Esse mapa reconhece a importância de países emergentes como o Brasil no cenário global e sobretudo na superação da crise mundial. Tenho orgulho como brasileiro de ter participado desse processo e de ver o Brasil como parte da solução. A parceria que a candidatura do Rio propõe à família olímpica leva em conta esse novo cenário no qual o nosso país conquistou o seu lugar. As portas do Brasil estão abertas para a maior festa da humanidade: os Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos numa das mais belas e acolhedora cidade de todo o mundo. Precisamos do apoio e da visão de futuro das senhoras e dos senhores. O Rio está pronto. Os que nos derem esta chance não se arrependerão. Estejam certos, os Jogos Olímpicos do Rio serão inesquecíveis pois estarão cheios da paixão, da alegria e da criatividade do povo brasileiro. Muito obrigado.” [grifos meus]

292

Figura 114. O marketing como trunfo da conquista (2009).

A vitória da cidade do Rio de Janeiro foi um marco de coroação de um processo

que se constrói desde o início dos anos 90 e que se completará em 2016. No entanto, este

processo sofreu transformações neste longo processo conforme foi visto até aqui,

mudando consoante condicionantes variadas, ruturas técnicas, políticas e interesses de

mercado. A Proposta Olímpica, que se transforma em Plano Olímpico, se posiciona na

berlinda das ações de desenvolvimento da cidade. Os processos de modernização

aplicados à construção contínua da cidade são absorvidos pelo tema olímpico que se

impõe como ferramenta de legitimação que move as ações com a celeridade necessária às

respostas a um calendário predefinido e imutável, mas que também provoca tensões

advindas desse mesmo processo.

A proposta para a candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar a XXXI edição

dos Jogos Olímpicos foi oficializada no dia 07 de Setembro de 2007, dois meses depois do início

Jogos Pan-americanos693. O processo já havia começado em Julho de 2006 com o início do

procedimento de escolha da cidade brasileira que seria candidata. Com apoio da consultoria

693 Os Jogos Pan-americanos de 2007 tiveram início no dia 13 de Julho. Exatamente dois meses depois encerrava o prazo de inscrição das cidades para os Jogos Olímpicos de 2016.

293

internacional sediada na Suíça, a Event Knowledge Services694, o Comité Olímpico Brasileiro (COB)

elaborou a proposta para ser entregue para análise do Comité Olímpico Internacional695.

Figura 115. Proposta olímpica.

A proposta vencedora para 2016 constituiu-se como um passo adiante da

experiência dos Jogos Pan-americano de 2007. Com esquemas gerais muito

semelhantes, a proposta olímpica estabeleceu um conjunto de quatro clusters, ou

núcleos, para abrigar um total de 28 modalidades olímpicas e vários equipamentos

vinculados à logística dos Jogos, os principais: o International Broadcast Center (IBC),

o Main Press Center (MPC), o Centro Olímpico de Treinamento (COT) considerado

“projeto de legado mais significativo da candidatura”696, além das Vilas Olímpicas

de atletas, árbitros e dos médias, conectados por um grande “anel olímpico” de

mobilidade garantindo a conexão entre os núcleos. Dividido entre COPACABANA,

MARACANÃ, DEODORO e BARRA697, à semelhança do que aconteceu nos Jogos Pan-

694 Disponível na WWW: <URL: http://eks.com> [Consult. 2015-01-05].

695 Disponível na WWW: <URL: http://esporte.uol.com.br/outros/ultimas/2006/ 09/01/ult807u851.jhtm > [Consult. 2015-01-05].

696 O COT pretende ser um centro de excelência para formação de futuros atletas olímpicos, servindo assim a sociedade mais amplamente (COB, (Vol.II), 2008, p.7,17).

697 Nos Jogos Pan-americanos de 2007 o núcleo COPACABANA chamava-se núcleo PÃO DE AÇÚCAR.

294

americanos de 2007, a proposta fez a opção pela Barra da Tijuca como o “coração

dos Jogos”, justificada pelo facto de a Barra ser “a região que mais cresce no Rio de

Janeiro [que] será um belíssimo palco para as competições [...] [e que logo] irá se

beneficiar de maneira significativa da realização dos Jogos”698.

É verdade que o crescimento da região da Barra é uma tendência, como já

foi observado em toda essa segunda parte desta dissertação e como pode ser

comprovado na Figura 116, indicando o crescimento da população na região na

década de 1990, desenvolvido pelo Instituto Pereira Passos (IPP), órgão de

planeamento da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Figura 116. Crescimento da população por Bairros - 1991/2000. Indicando que o crescimento da Barra da Tijuca supera os 20% e que se mantém até os dias de hoje699.

No entanto esta informação não se dá desconectada de todas as outras

características e dinâmicas da cidade e da metrópole. Relembrando o que se viu até

698 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO. Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p.42.

699 Instituo Municipal de Urbanismo - Pereira Passos/PCRJ.

295

aqui nesta investigação, a cidade do Rio de Janeiro tem sua centralidade mais antiga

(CBD), situado à leste do território junto a entrada da Baía de Guanabara e limitada

pelo Maciço da Floresta da Tijuca. Embora no limite leste do território da cidade, a

centralidade em questão se situa no centro das dinâmicas metropolitanas. A

estrutura que se desenvolveu historicamente a partir desta característica, baseada

sobretudo nas dinâmicas de mobilidade vinculadas aos transportes sobre trilhos

estabelecidos até meados do século XX, reforçou um crescimento no sentido norte

e metropolitano e no sentido sul acompanhando a linha da costa. Estas áreas

definiram, no limite da municipalidade, o que ficou conhecido como a Zona Norte

e a Zona Sul respetivamente, ambas abrangidas pelas “Áreas de Planejamento 1, 2 e

3” definidas assim pelo PUB-RIO, mas também nas áreas da Baixada Fluminense e a

volta da Baía de Guanabara, conforme indicava Doxiadis, concentrando-se neste

entorno imediato deste elemento natural aglutinador da paisagem mas também das

dinâmicas económicas e populacionais.

Figura 117. CBD da Cidade do Rio de Janeiro como foco central da metrópole.

296

Figura 118. Mancha da “cidade-metropolitana”.

Figura 119. Mapa com as indicações das cinco “Áreas de Planejamento” definidas desde a elaboração do PUB-RIO.

Esta estrutura de centralidade construída ao longo da história da cidade, foi

responsável pela formação do que pode ser associado à um “caráter da identidade

carioca” que reforça a ideia da canção: “Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil [...],

coração do meu Brasil” . Este caráter percebido sobretudo através das várias camadas

que compõe a identidade carioca em toda a sua complexidade, e é construído através da

700 Trecho da Marcha de Carnaval de André Filho e Silva Sobreira (1935) que popularizou a alcunha de “Cidade Maravilhosa” criada por Coelho Neto em 1908. Em 2003 tornou-se Hino Oficial da Cidade e após decreto do prefeito Eduardo Paes, em 2014, passou a ser cantado nas escolas da rede municipal uma vez por semana junto com o hasteamento da bandeira da Cidade.

297

interpretação da natureza, da cultura e da memória, através de um vínculo relacional, que

quando compartilhada amplamente constituiu uma identidade comum carioca701.

Figura 120. Destaque no Sumário executivo da proposta olímpica para as “maravilhas” cariocas e a paisagem como

cenário único para as competições dos Jogos.

701 PINTO, André Luiz, “O caráter da paisagem carioca” in European Symposium on Research in Architecture and Urban Design, Porto, 2012.

298

Durante a disputa entre as cidades candidatas a receber os Jogos Olímpicos de

2016, o Rio de Janeiro destacou-se claramente pela venda desta sua imagem através do

caráter da sua identidade. Os morros, as praias, o verde, o mix com a cidade, e o jeito de ser

carioca foram pontos importantes para impulsionar os argumentos que vendiam a cidade

como lugar ideal para a maior festa do desporto mundial. Neste tema encontra-se uma das

tensões envolvidas no processo olímpico, onde se identifica um descompasso entre o

discurso e a prática. Apesar da exposição marcante dos símbolos da paisagem e identidade

carioca na candidatura remetida ao COI, quando da análise da proposta olímpica, é

constatado que os principais equipamentos e investimentos propostos para os Jogos de

2016 estão situados, exatamente, na zona de expansão da cidade que não compartilha estes

símbolos, sobretudo a Barra da Tijuca: “Compra-se gato por lebre”.

O projeto de marketing para a cidade promoveu um jogo de “sedução”, de

“venda”, de um Rio como o lugar ideal para a realização do evento, ávido por uma

transformação, uma mudança, que seria galgada através da potencialização das qualidades

cariocas e brasileiras, destacando as belezas e diversidade da cidade e de sua gente702.

Todo o marketing da proposta se concentra neste Rio que melhor representa o caráter da

imagem da cidade, área que se confunde com as “Áreas de Planejamento 1, 2 e 3”, e

sobre elas vale apresentar alguns dados importantes para esta investigação.

Segundo os dados do Instituo Pereira Passos, as “Áreas de Planejamento 1, 2

e 3” são aquelas onde se encontram a maior densidade populacional da cidade, tendo

uma previsão para 2016 de que a população destas áreas alcançará um total de

4.775.750 pessoas, o que equivale a 63% dos habitantes da cidade. Analisando ainda a

população segundo o censo de 2010, e acrescentando os números relativos à

“Baixada Fluminense”, as três primeiras “Áreas de Planejamento” resultam em 45%

da população deste conjunto, as duas últimas 27% e a “Baixada Fluminense” chega a

28%. Resumindo 73% da população carioca (Cidade adicionada à “Baixada

Fluminense”) estão localizadas no eixo que parte da Zona Sul e CBD à leste do

702 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008, p. 32.

299

território municipal, se alongando por toda a Zona Norte, entrando pelo território

metropolitano através da “Baixada Fluminense”.

Figura 121. A cidade do Rio de Janeiro e os Municípios que compõem a “Baixada Fluminense”.

Figura 122. Densidade demográfica por Bairros - 2000. Indicando a grande concentração de população nas

“Áreas de Planejamento 1, 2 e 3”

300

Figura 123. POPULAÇÃO POR ÁREA DE PLANEJAMENTO + BAIXADA FLUMINENSE (2010)

População em 2010

Área de Planejamento 1 313.102 Área de Planejamento 2 1.015.125 Área de Planejamento 3 2.421.484

4.775.750 45%

Área de Planejamento 4 1.026.039 Área de Planejamento 5 1.780.294

2.806.333 27%

Baixada Fluminense 2.905.111 2.905.111 28%

Também quanto ao número de domicílios, a proporção conhecida em 2010

demonstra este desequilíbrio quando analisada a cidade somada à região da “Baixada

Fluminense”. Enquanto as “Áreas de Planejamento 1, 2 e 3” e a “Baixada Fluminense”

correspondem respetivamente à 42,5% e 30%, resultando em 72,5% dos domicílios, as

“Áreas de Planejamento 4 e 5” equivalem a apenas 27,5% dos domicílios703.

Figura 124. DOMICÍLIOS POR ÁREA DE PLANEJAMENTO + BAIXADA FLUMINENSE (2010)

Domicílios em 2010

Área de Planejamento 1 105.103 Área de Planejamento 2 404.417 Área de Planejamento 3 792.802

1.302.322 42,5%

Área de Planejamento 4 309.412 Área de Planejamento 5 534.606 844.018 27,5%

Baixada Fluminense 914.283 914.283 30%

Figura 125. POPULAÇÃO POR ÁREA DE PLANEJAMENTO EM 2016

População em 2016 Área de Planejamento 1 313.102 Área de Planejamento 2 1.015.125 Área de Planejamento 3 2.421.484

4.775.750 63%

Área de Planejamento 4 1.026.039 Área de Planejamento 5 1.780.294 2.806.333 37%

Como já foi visto no 4º capítulo, a partir da década de 1960, após a perda

da condição de capital, a cidade do Rio intensificou a ideia de que era necessário se

reconstruir como uma nova cidade. Doxiadis, e Lúcio Costa foram os principais

703 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -IBGE - Censo Demográfico 2010.

301

pensadores dessa nova cidade que se constituiria na expansão à oeste, área

abrangida pelo PUB-RIO pelas “Áreas de Planejamento 4 e 5”, correspondendo à

Zona Oeste e à Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá. Como indicado pelos

quadros anteriores, mesmo com a reconhecida dinâmica de crescimento da região, a

previsão feita para 2016, segundo o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira

Passos – IPP, mostra que essa região será responsável por abrigar apenas 37% da

população carioca. Sendo que a Barra da Tijuca propriamente dita responderá no

ano de 2016 por apenas 5,6% da população carioca704.

Se comparados os percentuais do Censo de 2010 e a previsão para 2016,

surge uma nova tensão. Segundo a previsão feita pelo IPP, no ano destinado à

realização dos Jogos Olímpicos, a população das áreas de expansão privilegiadas pelo

investimento olímpico será reduzida, proporcionalmente, conforme quadro que segue

passando de 41% da população carioca para 37%. A Barra da Tijuca especificamente

crescerá menos de 1%, e o número de habitantes, em relação a 2010, quando

representava 4,8% dos cariocas, alcançará 5,6% da população.

Figura 126. POPULAÇÃO POR ÁREA DE PLANEJAMENTO 2010/2016705

2010 2016 Área de Planejamento 1 Área de Planejamento 2 Área de Planejamento 3

59% 63%

Área de Planejamento 4 Área de Planejamento 5 41% 37%

Além dos números que relativizam a importância da Barra da Tijuca no

contexto da Cidade vale ressaltar que na Barra da Tijuca há uma identidade diversa,

daquela utilizada para o marketing da proposta vinculado ao “caráter da imagem

carioca”. Como foi visto, a Barra corresponde a uma paisagem modernista, do

automóvel e do consumo. Não é por obra do acaso que a Barra da Tijuca já foi

704 Estima-se que a Barra da Tijuca tenha uma população de 365.241 para um total de 6.556.044 habitantes na cidade do Rio de Janeiro. Instituo Municipal de Urbanismo Pereira Passos - IPP/PCRJ.

705 Em 2010 as “Áreas de Planejamento 1, 2 e 3” tinham o total de 3.705.718 habitantes e as “Áreas de Planejamento 4 e 5” possuíam 2.614.728 habitantes.

302

conhecida como a “Miami da América do Sul”706, foi para lá que ricos e classe média

emergentes se deslocaram contribuindo com o esvaziamento e com as dificuldades

pelas quais a cidade consolidada passou nas últimas décadas do século XX. Um

movimento claramente relacionado com a degradação da cidade e sua recusa,

vinculadas às dificuldades apresentadas particularmente nos anos 80. Em contraponto,

disponibilizava-se a possibilidade do novo Eldorado urbano, dos condomínios fechados

e das grandes superfícies de consumo. Estas contradições entre o discurso adotado e

prática quanto à escolha da Barra como principal área do evento, “coração dos Jogos”,

são resultado de decisões mais objetivas, apoiadas na simplificação do processo que

levaria à conquista olímpica, como a reprodução da realização, com algum sucesso, dos

Jogos Pan-americanos de 2007 e também a existência de uma série de projetos em

“carteira”, suficientemente consensuais, perspetivando a Barra como o futuro do Rio,

lugar para onde deveriam se dirigir os principais investimentos da cidade.

Segundo o ex-prefeito César Maia, outras justificativas iam além das já

relacionadas. Em depoimento, ratificou a ideia de que a Barra da Tijuca era peça

fundamental para alcançar o objetivo da conquista olímpica. O ex-prefeito, além das

questões de segurança e controlo já abordadas no evento de 2007 (ver item 2.B deste

capítulo), explicitou uma outra justificativa, até certo ponto surpreendente, que reforça

a ideia de que houve um abandono do enfrentamento da complexidade e das demandas

da cidade após a “rutura técnico-política” de 2000, que se refletiu no abandono dos

conceitos de base da proposta para os Jogos de 2004. Maia imputa a um membro do

COI, uma outra lógica definitiva para a escolha da Barra:

“Porque como me dizia um membro do COI: os Jogos Olímpicos são um evento comercial que exalta a raça. Você não pode ter os Jogos Olímpicos sendo realizados para um fotógrafo alemão com uma teleobjetiva desse tamanho, botar o contraste entre uma criança pobre da favela, magrinha, e um atleta alemão de três metros de altura. [E continua:] Se você leva, como se tentou levar, para a área do Fundão, foi esse o primeiro tiro que o espanhol deu. Não dá... Vocês não estão entendendo o que são as Olimpíadas... É a

706 LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da auto-estima. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 407.

303

festa da raça, é uma festa comercial, os patrocinadores não aceitariam que essa condição de festa da raça humana fosse afetada” (informação verbal)707.

É compreensível que a informação dada pelo ex-prefeito não conste no

documento da proposta de candidatura.

Além desta ótica, diga-se mais pragmática para a escolha da Barra da Tijuca,

quanto ao tema urbano, a proposta tomou também como base uma série de projetos

existentes, somados às perspetivas consensuais à volta do alinhamento com o Plano

Lúcio Costa e o Plano Diretor, que juntos com uma série de ações pontuais junto aos

equipamentos olímpicos, se constituíram como o Plano de Legado Urbano e Ambiental -

Rio 2016 (PLUA).

Através do “Comité Especial de Legado Urbano”, vinculado à Prefeitura da Cidade e

criado pelo decreto nº 29.398/08, foi executado o PLUA. Este Plano é fruto da demanda

estabelecida pelo Comité Olímpico Brasileiro a partir de Março de 2008 (concluído em Outubro

do mesmo ano), solicitando apoio à Secretaria Municipal de Urbanismo para a coordenação do

mesmo quando da ocasião da realização da proposta olímpica enviada ao COI.

É importante destacar que o PLUA não é um plano para a cidade e sim para o

evento. Como não poderia ser diferente, atua sob a perspetiva de realização do mesmo,

limitando-se às áreas de conexão direta com a realização dos Jogos, atendendo

prioritariamente às exigências que poderiam constituir em ações favoráveis à conquista

olímpica. Numa visão macro, o PLUA contempla diagnóstico simplificado, princípios e

diretrizes para as políticas e projetos estruturantes para quatro temas: Transporte e

Sistema Viário; Meio Ambiente; Saneamento Ambiental e Habitação. Tendo como

principal objetivo: “Articular as Políticas Públicas Setoriais em ações estruturantes e ações

locais, beneficiando simultaneamente a operação dos Jogos e o funcionamento da

Cidade” [grifo meu]708.

707 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

708 PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008, p. 07.

304

No entanto, levando em consideração que a participação da proposta carioca foi

oficializada em 2007 e que o PLUA foi solicitado em Março de 2008 e só foi concluído no

final do mesmo ano, é possível interpretar que este não se constituiu exatamente como base

para a proposta olímpica apresentando as demandas existentes na cidade. O PLUA parece

atuar mais como um plano viabilizador de uma proposta já estabelecida em acordo com a

experiência do Pan-americano de 2007, com respostas bastante simplificadas como é

possível observar nos exemplos contidos nos anexos desta dissertação.

Embora haja grande destaque na proposta olímpica para um discurso de

alinhamento com o Plano Diretor e o Plano Lúcio Costa709, em correspondência com a

definição da “visão” da proposta olímpica que se diz “inspirada na estratégia global de

planejamento de longo prazo da cidade e do país. [...] [garantindo] o alinhamento

completo do Plano Mestre dos Jogos aos objetivos de longo prazo da cidade, trazendo

assim vantagem para todos”710 [grifos meus], parece que a perspetiva de realização de um

plano exclusivamente para dar base a proposta olímpica como o PLUA reforça a indicação da

inexistência de um plano de cidade, onde a oportunidade dos Jogos pudesse se transformar

num “catalisador” de um processo mais alargado e consolidado. Vale relembrar (conforme

apresentado no item I.B deste capítulo) que a condição genérica do Plano Diretor e seu

complicado processo de revisão, que se dava exatamente nesse período, impede que se dê a

relevância desejada pela retórica da proposta olímpica a esta referência. Recordar Villaça

também contribui para este entendimento, quando se refere a falta de interesse dos Prefeitos

pelos Planos Diretores. No caso do Rio, este já vinha sendo posto de lado e substituído por

ações ad hoc como foi visto até aqui. No entanto, o uso do discurso de alinhamento da

proposta olímpica serve, neste caso, como apoio à retórica, apenas como forma de legitimar

as decisões tomadas. Condição reforçada pelo facto de que, apenas mais tarde (2011), a sua

revisão em acordo com os interesses da proposta olímpica, foi aprovada, e só então essa

relação entre eles se tornaria mais efetiva.

709 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p. 08, 202.

710 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008, p. 25

305

Sintetizando o quadro apresentado, o PLUA resulta da junção de um conjunto

de projetos (ou talvez intenções de projetos) que, na sua grande maioria, a cidade já

possuía na sua “carteira de projetos” e que iam ao encontro das decisões pré estabelecidas

quanto a possibilidade de realização dos Jogos Olímpicos, segundo a lógica da experiência

do Pan-americano de 2007 e as dinâmicas de expansão da cidade. O ex-prefeito César

Maia confirma este facto afirmando em depoimento:

“Quando se entra para as Olimpíadas volta a se pensar que tipo de intervenções caberiam sincronizadas com os Jogos, e ai, todas as intervenções que são feitas já estavam planejadas muito antes de se pensar em Jogos Olímpicos. [...] Reavivar esses projetos que são estruturantes, pensados por um grupo comandado por um grande urbanista [aqui se refere a Doxiadis após falar sobre os grande eixos viários de conexão à Barra da Tijuca] aproveitando como desculpa as olimpíadas é muito bom! Para a cidade é muito bom! Agora não foram as Olimpíadas que produziram a decisão” (informação verbal)711.

Entre estes projetos estão um conjunto de propostas que se constituíram sob

influência das ideias de Doxiadis nos anos 1960. Reclamando a integração da cidade,

proporcionando sobretudo acesso mais franco às áreas de expansão da Barra da Tijuca,

Baixada de Jacarepaguá e toda a Zona Oeste, em acordo com suas ideias expansionistas.

Apresentando alguma semelhança com Doxiadis, através do PLUA, ratificam-se os

vetores de expansão da cidade a oeste, propondo a prioridade ao incremento na

capacidade do sistema de transportes sobre pneus e também o adensamento urbano,

sobretudo junto aos núcleos olímpicos e aos eixos viários destinados à construção do Bus

Rapid Transit (BRT), modal rodoviário, constituído por autocarros articulados que

circulam em faixa segregada do tráfego de automóveis individuais, “permitindo

estabelecer ligações diretas entre as regiões ao norte da Cidade e à Barra da Tijuca”712.

Destaca-se no PLUA e na proposta olímpica, a integração por BRT, entre a

Zona Sul (núcleo COPACABANA e o núcleo BARRA, logo substituído pela extensão da

linha do Metro; a “TransCarioca” (conhecida também como “Corredor T5”), que faz

a ligação entre o Bairro da Penha e o núcleo BARRA, posteriormente conectando

também o Aeroporto Internacional; a chamada “TransOlímpica” (conhecida como

711 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

712 PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008, p. 35.

306

“Ligação C”), que conecta os núcleos DEODORO e BARRA, valorizando extensas

áreas e propriedade das Forças Aramadas; e por fim, utilizando o leito existente da

Avenida Brasil, a conexão entre o Aeroporto Internacional e o Centro (CBD), com a

construção do corredor chamado “TransBrasil”. Este último não consta na proposta

olímpica remetida ao COI, mas estava contemplado no PLUA, sendo posteriormente

absorvido pela proposta olímpica.

(A) (B) Figura 127. Traçados originais da (A) “TransOlímpica” da (B) “TransCarioca” no PLUA713

A estes corredores de mobilidade somou-se ainda, posteriormente, correspondendo

a uma clara influência de Doxiadis, a “TransOeste”, que apesar de não conectar diretamente

dois núcleos olímpicos, liga Campo Grande e Santa Cruz (a centralidade escolhida pelo grego)

à Barra da Tijuca (a centralidade de Lúcio Costa), disponibilizando uma área infinda de vazios

mais a oeste do território à urbanização e expansão da cidade.

713 PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008, p. 36-37.

307

Figura 128. INVESTIMENTOS OLÍMPICOS EM INFRA-ESTRUTURAS DE MOBILIADE

R$ (Reais) % Ampliação de rede de metro (16Km) 8.790.000.000 61 BRT TransOeste (56Km) 900.000.000 6,3 BRT TransOlímpica (23Km) 1.500.000.000 10,4 BRT TransCarioca (39Km) 1.600.000.000 11,1 Duplicação Elevado do Joá (5Km x2) 489.000.000 3,4 BRT TransBrasil (32Km) 1.130.000.000 7,8

TOTAL 14.409.000.000 100%

Figura 129. MAPA INDICATIVO DO NÚCLEOS OLÍMPICOS E NOVAS CONEXÕES DE MOBILIDADE714

Indicação dos principais eixos de mobilidade olímpico privilegiando a conexão com a zona da Barra da Tijuca.

Quando da análise dos investimentos previstos para estas infraestruturas de

mobilidade, conforme figura 128, observa-se que 92,2% dos recursos estarão disponibilizados

para ações, como a ampliação do metro, os BRTs e a duplicação do Elevado do Joá (aquele

mesmo que disponibilizou o território da Barra para a sua ocupação nos anos 60, como já foi

visto no capítulo anterior), que privilegiam de alguma forma o acesso facilitado à Barra da

Tijuca, reforçando-a como centro das atenções e dos investimentos. São aproximadamente

13,28 mil milhões contra apenas 1,13 mil milhões destinados a única conexão entre as áreas mais

populosas de cidade, a Zona Norte e o CBD. Quase doze vezes mais!

714 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008 (trabalhado pelo autor).

308

Apreciada a junção da experiência do Pan-americano de 2007, do Plano Lúcio

Costa e dos projetos agrupados no PLUA que resultam as perspetivas urbanas da

proposta olímpica “Rio2016” observa-se ainda novos desequilíbrios.

Reproduzindo o evento de 2007 a proposta “Rio2016” estabelece os núcleos

DEODORO e BARRA (ver anexos), referentes à zona de expansão da cidade que

correspondem às “Áreas de Planejamento 4 e 5” estabelecidas pelo PUB-RIO. Nelas,

segundo a proposta, estão previstas a concentração de 66,6% das modalidades

desportivas, sendo que o núcleo BARRA ficou responsável por 48,7% destas

modalidades, enquanto a DEODORO cabem apenas 17,9%. Estes percentuais se

traduzem em 19 e 7 modalidades respetivamente, as quais se somam ainda os principais

equipamentos de logística do evento localizados no núcleo BARRA, nomeadamente as

Vilas de atletas, médias e árbitros além do IBC, do MPC e do futuro COT.

Restaram os núcleos MARACANÃ e COPACABANA (ver anexos), onde 44,4%

das modalidades estarão situadas, sendo que no primeiro, elas correspondem a cinco

modalidades (12,9%) e no segundo a oito (20,5%)715. Esta distribuição das modalidades

no território revela um desequilíbrio indicativo de que mantém-se o incentivo à

expansão da cidade indicada desde Doxiadis e promovida de forma intensa através do

Plano Lúcio Costa mantendo a ideia de que a Barra é, o já não tão novo, Eldorado urbano.

A análise dos investimentos previstos na proposta apresentada ao COI, também ratifica

esta compreensão.

Quando observados os investimentos em equipamentos desportivos, os

núcleos BARRA e DEODORO somam 81% de todo o recurso disponível. Nos recursos

destinados para o tratamento de áreas públicas, BARRA e DEODORO alcançam juntos,

77% dos recursos a serem investidos no tema716.

715 De forma pormenorizada, as modalidades encontram-se divididas da seguinte forma: 19 na BARRA da Tijuca, que juntos com IBC, MPC, COT e Vilas formam o núcleo principal do evento; 7 em DEODORO, formando um segundo núcleo à oeste; 1 no Engenho de Dentro que somado a 2 no Maracanã e 2 no Centro, formam o núcleo MARACANÃ; e ainda, 2 na Lagoa Rodrigo de Freitas; 3 em Copacabana; e 3 no Parque do Flamengo constituindo o núcleo COPACABANA.

716 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p.28.

309

Figura 130. INVESTIMENTOS OLÍMPICOS EM EQUIPAMENTOS DESPORTIVOS

Núcleo USD % BARRA 344.709.000 71 DEODORO 50.240.000 19 MARACANÃ 89.679.000 10

TOTAL 484.628.000 100

Figura 131. INVESTIMENTOS OLÍMPICOS EM ÁREA PÚBLICAS

Núcleo USD % BARRA 238.388.000 61 DEODORO 61.406.000 16 MARACANÃ 87.575.000 23

TOTAL 387.369.000 100

Essa grande quantidade de investimentos concentrados na área de expansão da cidade,

consolida cada vez mais o discurso e o sentimento geral de que a Barra da Tijuca é efetivamente

o lugar do futuro da cidade. Acelera-se um discurso que se institucionaliza, desde a década de

1970, e que reverbera amplamente nos meios de comunicação e no imaginário da população.

Publicações como a Revista ADEMI-RIO (vinculada aos interesses do mercado

imobiliário, logo com interesses claros sobre o tema) mostram permanentemente esta realidade.

Segundo o Editorial da edição de Abril de 2012, a Barra da Tijuca seria “A ‘Roma’ carioca” –

“Agora é oficial. Todos os caminhos levam à Barra, o império carioca dos aguardados Jogos de

2016”717. Esta perspetiva se repete em diversas edições, como na de Setembro de 2013 que traz

na capa foto da Barra com o destaque: “O Rio do Futuro”, com repercussão em entrevista do

Engenheiro Carlos Fernando de Carvalho, fundador e presidente da Carvalho Hosken S/A,

empreiteira que de forma “altruísta” cedeu o terreno e se predispôs a utilizar toda sua expertise

para construir a Vila Olímpica dos Jogos de 2016718. Claro que sem abrir mão do suporte dado

717 Revista ADEMI-RIO, Abril de 2012, p. 03.

718 “A Carvalho Hosken, no papel de proprietária do terreno e construtora, irá assumir a responsabilidade pela construção da Vila Olímpica e Para-Olímpica. A empresa já participa de um processo de estreita colaboração com o Comité de Candidatura Rio2016, além de ter garantido a inclusão de representantes do Comité de Candidatura Rio2016 no grupo de controle do projeto de construção da Vila, com o objetivo de consolidar o desenvolvimento geral dos requisitos dos Jogos e legado” (COB, vol II, 2008, p.202).

310

pela garantia de financiamento e subsídios dos Governos719. Carlos Carvalho afirma na

entrevista que os Jogos vão acelerar a expansão prevista por Lúcio Costa:

“Lúcio Costa acreditava que a primeira parte do plano seria concluída em 40 anos e, a partir daí, teria início a segunda etapa. [Como o Plano não indica nenhum tipo de etapa, não é possível validar a afirmação anterior] E foi justamente isso que aconteceu. A Barra está urbanizada e ocupada, mas não lotada. Foi o primeiro bairro a crescer com um plano definido, um planejamento apropriado [Um equívoco histórico da C.Carvalho.]. Ainda há espaço disponível para desenvolver muitos projetos, sempre levando em conta a organização”720.

Efetivamente a proposta olímpica ratifica deliberadamente o Plano Lúcio Costa

conforme a afirmação da proposta: “O desenvolvimento da região da Barra da Tijuca é

baseado no Plano Piloto criado por Lúcio Costa, e o planejamento proposto para os Jogos

revigora a sua visão para a região”721.

Figura 132. Capa da Revista ADEMI-RIO edição de Setembro de 2014, e propaganda na mesma revista (p. 24) da Carvalho Hosken S/A, ambas garantindo a Barra da Tijuca como o lugar do futuro da cidade do Rio.

719 “O financiamento do projeto da Vila Olímpica e Para-Olímpica está totalmente garantido pela Caixa Econômica Federal. [...] [que] garantiu a disponibilização de todos os recursos necessários para o empreendedor, com taxas de juros preferenciais. Esse financiamento garantido [...] [tem o] objetivo de reduzir os riscos do projeto através de um pacote financeiro seguro [...]” (Idem, ibidem, p.204).

720 Revista ADEMI-RIO, Setembro de 2013, p. 30.

721 COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p.202.

311

A entrevista destaca ainda a “longa espera” pela iminente consolidação de “um

dos projetos mais revolucionários”: o “Centro Metropolitano”, que seria “a primeira

experiência de bairro integrado, reunindo moradia, trabalho, comércio, serviços e lazer”.

Posição que reforça a ideia de que se constrói um “novo centro” em oposição ao

existente. Mais um equívoco histórico, como se estas não fossem características da cidade

do Rio de Janeiro durante toda a sua história, como se toda a “outra cidade consolidada”

não existisse. Para Carlos Carvalho e sua “infalível intuição” como se refere a revista:

“Com tantas transformações positivas, acredito que o centro geográfico do Rio tende a

migrar mesmo para a Barra (sic)”722. O centro geográfico da cidade sempre esteve lá e

assim se manterá, no entanto, trata-se é da substituição da centralidade histórica da “velha

cidade”, pela “nem tão nova centralidade” de Lúcio Costa.

O discurso do presidente da empreiteira que constrói a Vila Olímpica, apoiado em

financiamento e subsídios públicos, exaltando o direcionamento rumo a consolidação da

Barra e do Plano Lúcio Costa, vai ao encontro da ideia amplamente destacada no documento

da proposta olímpica que se refere a uma preocupação em garantir a realização da proposta

em acordo com os objetivos de longo prazo da cidade. Mas no entanto, quais são estes

objetivos num contexto onde as decisões em relação a cidade se fragmentam e se

personificam na figura do prefeito desde a “rutura técnico-política” de 2000? Por várias

vezes o documento da proposta olímpica afirma estar em consonância com o Plano Lúcio

Costa e com o Plano Diretor: “As instalações [...] foram selecionadas com base no plano

diretor da cidade do Rio de Janeiro, numa estratégia de legado e obedecendo aos requisitos

técnicos dos jogos”. No entanto, vale lembrar mais uma vez que o Plano Diretor, em

processo de revisão cheio de percalços seria aprovado apenas em 2011, três anos depois da

escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos, aí sim, repleto de emendas em favor da

realização dos jogos, como afirma Andréa Redondo em depoimento: “ – revê os índices

urbanísticos, criando a outorga onerosa do direito de construir723 para o que ele chamou de

área de influência dos corredores de tráfego para os Jogos Olímpicos. Está lá!” (informação

722 Revista ADEMI-RIO, Setembro de 2013, p. 31.

723 A outorga onerosa do direito de construir é um instrumento regulamentado pelo Estatuto da Cidade que se refere à concessão emitida pelo Município para que o proprietário de um imóvel edifique acima do limite estabelecido pelo coeficiente de aproveitamento básico, mediante contrapartida financeira a ser prestada pelo beneficiário.

312

verbal)724. Tal afirmação reforça a contradição na perspetiva de influência da localização de

equipamentos. Ao contrário, os índices construtivos da cidade foram alterados nas áreas

previamente definidas para intervenções olímpicas.

As decisões que levaram a conquista olímpica apresentadas até aqui fazem emergir

estas tensões identificadas à luz dos princípios que regem os processos de modernização atuais e

que deveriam promover, como nos diz Ascher, profundas mutações que alteram os modos de

conceção, de realização e de gestão das cidades constituindo o que seria um “novo

urbanismo”725. Nestas tensões identificam-se sobretudo, essa série de desalinhamento entre o

discurso e a prática do urbanismo carioca, evidenciado após a “rutura técnico-política” e o

estabelecimento de um papel de destaque central à possibilidade de sediar os Jogos Olímpicos.

***

A mudança pretendida para a cidade do Rio de Janeiro com a realização dos

Jogos Olímpicos de 2016, estabelecida através de um discurso bastante alinhado entre

a proposta olímpica, os decisores políticos que a conduzem e os médias que a

promovem, estaria, supostamente, em acordo e condição de respeito às pré-

existências da cidade, valorizando as especificidades da sua forma, de suas dinâmicas,

de sua memória, de seu caráter. No entanto, consolidando o quadro de

desalinhamento constatado, a opção feita pela reprodução do modelo promovido

pelos Jogos Pan-americanos de 2007, concentrou o evento, e consequentemente os

seus investimentos, no território da expansão da cidade, particularmente na Barra da

Tijuca, promovendo o desalinhamento entre o discurso da valorização da cidade e a

prática efetiva que resulta na transformação da mesma através de sua negação.

Na prática, a decisão tomada implica na solidificação de desígnios estabelecidos em

um momento de “certezas”. Nele, Doxiadis considerava inexorável a expansão da cidade

apoiada numa rede de privilégios ao deslocamento sobre pneus, até a construção da

Ecumenopolis; e onde Lúcio Costa desenvolveu seu Plano baseado nos preceitos dos CIAM,

724 Informação verbal obtida em entrevista para esta investigação.

725 ASCHER, François, Novos princípios do urbanismo seguido de novos compromissos urbanos, um léxico. Lisboa: Livros Horizonte, 2010, p.78.

313

em oposição à cidade existente, construindo uma nova cidade perfeita. O “verdadeiro

coração da Guanabara” em substituição àquela a ser superada. A instalação dos BRTs

ampliando as possibilidades de expansão da cidade à oeste traduz de forma mais objetiva a

influência de Doxiadis nas decisões tomadas para a realização dos Jogos Olímpicos. Já a

consolidação da Barra e, sobretudo, da região do Centro Metropolitano concebido por

Lúcio Costa apontam as linhas de influência permanente do mestre do Modernismo até os

dias de hoje. O discurso promove a mudança para uma nova cidade a partir da

potencialização de suas características; já a prática reforça uma ideia obsoleta de que é

necessária construir na expansão uma nova cidade em contraponto à existente.

Também o discurso atrelado ao desejo da proposta olímpica de reprodução do

modelo Barcelonês, no sentido do sucesso do legado e do reposicionamento da cidade na

escala global, promove uma espécie de garantia de progresso e estabelecimento de um futuro

necessariamente melhor a partir das transformações resultantes da oportunidade de promover

o evento no Rio de Janeiro. O evento é usado como garantia de potencialização da

construção de um futuro róseo. No entanto, faz isso sem reconhecer a inviabilidade de se

igualar à experiência catalã em contexto tão diverso, particularmente no que diz respeito à

estrutura do sistema de planeamento local ou a falta dela. Borja destaca726 que se deve saber

explorar as oportunidades e que para isso, os atores protagonistas devem ter ciência do que

querem e estarem apoiados num quadro jurídico (legislação urbanística e planeamento

vigente) existente que forneça uma variedade de instrumentos que permita ao poder público

efetivar seu protagonismo, assim como aconteceu em Barcelona, e como visto, em

contraponto à realidade do sistema de planeamento carioca.

A dificuldade de perceção da impossibilidade de se igualar à experiência externa

tendo como suporte os instrumentos (in)existentes no quadro do sistema de planeamento

carioca, dá-se principalmente por conta de uma espécie de “cortina de fumo”

protagonizada pela proposta olímpica que promove decisões sob uma aura de confiança e

certeza, legitimada principalmente pela promoção da ideia do legado, pela confiança

726 BORJA, Jordi in MONTANER, Josep Maria, ÁLVAREZ, Fernando, MUXI, Zaida (ed.), Archivo crítico modelo Barcelona (1973-2001). Barcelona: Ajuntament de Barcelona, 2011, p.230-231.

314

estabelecida no momento do país e pelas garantias dadas pelo Estado para a construção

de um futuro que se pretende garantidamente positivo.

O suporte intensivo dos governos, assumindo toda a responsabilidade na entrega do

evento, reforça o quadro de desalinhamento entre o discurso e prática, no sentido do

progresso desejado. Se por um lado se promove o discurso da construção dessa cidade

olímpica de forma compartilhada entre governos e iniciativa privada, chamando estes últimos

a tomar parte no processo de conceção e execução do plano; por outro lado, na prática, a

responsabilidade recai sobre a coletividade através do irrestrito financiamento e subsídio

Estatal. Relega-se a participação privada a uma apropriação oportunista dos investimentos

públicos que resultam num “urbanismo mercadófilo”. O país e o Rio sustentam a certeza nas

possibilidades de progresso, condição ratificada pelo ex-presidente Lula na ocasião da escolha

do Rio como cidade sede: “Nenhum país tem tanta certeza do seu futuro quanto o nosso”727,

assim como achava JK à época de Brasília: “[...] lanço os olhos mais uma vez sobre o

amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem

limites no seu grande destino” 728.

Mas são nas escolhas de projeto que parece se encontrar o cerne das tensões

estabelecidas neste processo olímpico. A perspetiva olímpica desenvolvida desde o início

dos anos 90, através do planeamento estratégico e do uso de Projetos Urbanos, mais ou

menos “à moda de Barcelona”, como ferramenta de desenvolvimento e enfrentamento da

complexidade da cidade, mudou seu rumo a partir da “rutura técnico política” de 2000.

Perdeu-se a perspetiva do desenvolvimento de novos processos atrelados aos novos modos

de conceção, produção e gestão da cidade, que se estabeleceriam segundo um programa

compartilhado e minimamente consensual, desenvolvendo processos adaptativos,

participativos e democráticos rumo ao “novo urbanismo” indicado por Ascher. Como foi

visto, abriu-se espaço para a instituição de outros modos de atuação resultando em

processos, mais fragmentados e focados na personificação das ações em relação aos seus

decisores, mais preocupados com as possibilidades mediáticas e de retorno imediato

(sobretudo político) do que com uma visão geral e compartilhada de cidade.

727 Disponível na WWW: <URL: http://www.oantagonista.com/posts/o-futuro-e-o-passado> [Consult. 2015-04-02].

728 HELIODORO, Affonso, JK, exemplo e desafio. Brasília: Thesaurus, 2ª ed., 2005, p. 45.

315

Segundo a proposta olímpica a escolha da Barra da Tijuca como foco dos Jogos

aconteceu porque é lá que a cidade mais cresce, e com isso a proposta estaria caminhando

ao encontro das linhas gerais de desenvolvimento da cidade. Se considerarmos que a ideia

de expansão permanece influenciando o desenvolvimento da cidade esta correlação é

verdadeira, mas no entanto é apenas uma visão parcial.

A escolha da Barra e os altos investimentos destinados à expansão da cidade é

consequência de um combinado variado de motivos, dos mais objetivos e pragmáticos aos

impronunciáveis, como foi visto até aqui. Todos resultam na consolidação de ideias que

concebem uma visão macro obsoleta, de expansão e de recusa da cidade existente como

objetivo central. Uma opção simplificadora que opta por reduzir a complexidade da

intervenção destinada a uma grande cidade, uma metrópole muito plural nas suas formas e

dinâmicas, em favor da redução da incerteza inerente às decisões tomadas para a realização do

megaevento. Por isso o desalinhamento. Não se trata de seguir o planeamento da cidade, que

no caso específico é claramente frágil, trata-se de garantir a viabilidade da realização dos Jogos,

custe o que custar.

Nesta perspetiva, despreza-se o debate e a participação dos diversos atores envolvidos

no desenvolvimento da cidade, deixando de lado as definições das ações segundo as demandas

reais existentes. Desde que as decisões passaram a situar-se mais no campo da personificação

das ações em relação aos agentes políticos e na resposta oportunista aos interesses políticos e de

mercado, camuflados pelas possibilidades de mediatização e correlação direta com a realização

do evento, tudo o que importa é a redução da incerteza em relação à viabilidade dos Jogos,

seguindo as exigências necessárias para tal. Embora nesse mesmo período tenham existido

processos procurando atender a relação com a realidade, estes não se consolidaram como

instrumentos suficientemente fortes, para se manterem e servirem como base estruturadora das

decisões. Desta forma, reforçam-se as lógicas específicas que respondem às demandas e

urgências do político decisor ou entidade promotora do evento.

Enquanto o discurso estabelece que todo o processo tem como base as linhas

gerais de desenvolvimento da cidade definidas pelo sistema de planeamento local; na

prática, o sistema de planeamento é frágil, as estruturas estão subjugadas aos

316

interesses políticos, económicos e à realização do evento a todo o custo. Com isso,

opta-se pela simplificação no sentido de garantir o aproveitamento da oportunidade

mesmo que não responda às demandas existentes, sobretudo aquelas que ainda

precisam de melhor compreensão e que envolvem a escala metropolitana. Este

quadro resulta no desequilíbrio entre os investimentos e caminhos traçados e as

demandas históricas e atuais de uma cidade-metrópole como o Rio de Janeiro, com

grandes questões infraestruturais e sociais ainda por equacionar. No entanto, como

estes temas não permanecem “congelados no tempo” à espera da realização do

evento, nas questões mais urgentes, na prática, atua-se através de um conjunto de

respostas erráticas e fragmentadas que acabam por orbitar o tema olímpico,

absorvidos pela chancela legitimadora dos Jogos, como são exemplos: as Unidades de

Polícia Pacificadora – “UPP”; a reprodução do que foi o Favela-Bairro, rebatizado

por questões políticas – o “Morar Carioca”; e a efetivação da revitalização da zona

portuária – “Porto Maravilha”.

***

Toda esta movimentação por parte da prefeitura não impediu que a incerteza se

colocasse no caminho da realização dos Jogos Olímpicos. Tal facto pode ser identificado

através de um caso emblemático que se refere à um conjunto de iniciativas que ocorreu

imediatamente após a escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos de 2016. Naquele

momento iniciou-se uma série de movimentações no sentido de tentar viabilizar algumas

adaptações que permitissem um melhor equilíbrio entre as intervenções propostas – reduzir o

foco na Barra e reforçar outras áreas da cidade com demandas reprimidas para sua

requalificação, e que poderiam ter nos Jogos Olímpicos a oportunidade que necessitavam para

fazer acontecer as transformações desejadas. O exemplo principal deste movimento teve a

frente o Instituto de Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro, a partir dele uma série de artigos

e discussões vieram a público tentando promover a alteração da proposta olímpica. Foi

realizado inclusive um grande Seminário chamado “Conexão Rio-Barcelona” onde procurava-

se encontrar os apoios necessários à possibilidade de modificação no plano vitorioso.

317

A ideia mais importante que veio à tona foi o aproveitamento da oportunidade de

criação de sinergia ente os Jogos e a revitalização do Porto do Rio. A Zona Portuária já

possuía naquele momento um projeto para sua revitalização, tendo como referência

experiências internacionais como visto no 3º capítulo. Na verdade, desde a década de 1970,

diferentes administrações tentaram, sem sucesso, promover essa revitalização impedida pela

falta de alinhamento político entre as esferas governamentais. A área, que ocupa uma

posição central na cidade, passou por um longo período de decadência e abandono. O

projeto nomeado de “Porto Maravilha” constituiu-se como a maior Parceira Público-

Privada do país e contemplando uma modelagem financeira inédita no país.

Tendo como objetivo a revitalização e requalificação de cinco milhões de metros

quadrados, a Prefeitura deseja atrair para a área novos negócios e aumentar a população

local passando de 30 mil habitantes para 100 mil em dez anos. Numa primeira fase o

projeto foi financiado com recursos exclusivamente públicos, da Prefeitura, em seguida,

uma série de obras emblemáticas como a derrubada do Elevado da Perimetral (via rápida

elevada inaugurada em 1960 que transformou-se em barreira entre a cidade e a Baía de

Guanabara) e a construção de duas novas vias expressas, ficou a cargo da iniciativa

privada através de um consórcio de empreiteiras chamado “Porto Novo”, responsável

pelas obras e pela prestação de serviços urbanos na região, durante quinze anos.

O diferencial dessa parceria deu-se no modo como se deu o pagamento das despesas

sem utilizar “recursos diretos” da Prefeitura. Foi aprovada uma lei permitindo construções

acima do gabarito fixado em legislação e para finalidades diferentes das que estavam previstas

para a região. Interessadas, as empresas privadas precisariam obter previamente os

Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC) para terem as licenças

necessárias à construção segundo a nova legislação. A venda das CEPACs, com valor

determinado de forma livre pelo mercado, foi utilizada para viabilizar financeiramente os

investimentos públicos na região. Os certificados foram comprados na totalidade

disponível pela Caixa Económica Federal (CEF). O banco público assumiu totalmente o

risco da operação, dando as garantias para o início das obras então financiadas pela CEF

através das CEPACs, revertendo parte do ganho para as obras de infraestrutura e parte

para o lucro do banco.

318

Figura 133. Zona Portuária: Elevado da Perimetral antes e durante a demolição. No centro das imagens a Cidade do Samba, projeto realizado no governo César Maia.

Na perspetiva de desenvolvimento deste projeto, o Instituto de Arquitetos do Brasil –

Rio de Janeiro, com algum apoio da opinião pública e dos médias, propôs a possibilidade de

transferência de parte dos Jogos para a Zona Portuária. A pressão exercida resultou numa

parceria com a Prefeitura e o desenvolvimento no ano de 2010 de um concurso público de

projetos com o intuito de flexibilizar o plano olímpico. O concurso batizado de “Concurso

Porto Olímpico” transferiria da Barra da Tijuca para a Zona Portuária, as Vilas de árbitros e dos

médias, além do IBC e do MPC, estes dois últimos resultariam posteriormente em um Centro

de Convenções para a cidade. A possibilidade foi amplamente celebrada e não obstante ao facto

de que o resultado do concurso foi questionado judicialmente em 2012, parecia definida essa

319

transferência criando uma importante sinergia entre os Jogos e o projeto Porto Maravilha, que

reverteria em boa parte o quadro de priorização da Barra quanto ao megaevento.

Figura 134. Projeto vencedor do Porto Olímpico de autoria do Arquiteto João Pedro Backheuser.

No entanto, a incerteza é implacável. E mesmo aparentemente consensuado e

contratualizado o “Porto Olímpico” recuou. Em 2014, o Prefeito Eduardo Paes, mudou

de ideia, excluindo a Zona Portuária do roteiro de instalações olímpicas. Para ele, a

condição positiva do país parecia dispensar a necessidade de sinergias entre projetos.

Havia recursos e legitimação de sobra para realizá-los. O próprio Prefeito confirma:

“A situação hoje é diferente. Quando o Rio ganhou as Olimpíadas, ainda tentávamos tornar o projeto do Porto Maravilha viável. O empreendimento se transformou em realidade, e o condomínio será construído independentemente das Olimpíadas. Mas temos de pensar em custos. Por questões logísticas sai muito mais barato ter essa vila mais próxima do Parque Olímpico da Barra do que no Porto”729.

As obras do Porto Maravilha seguiram suportadas pelas CEPACs e as Vilas foram

relocadas para um conjunto habitacional construído pelo Governo Federal no bairro do

Anil, Zona Oeste da Cidade. Quatro anos depois da vitória olímpica que trouxe um período

cheio de certezas e confiança quanto o futuro da cidade e do país, a “incerteza” se mostrava

presente. A parceria com o investimento privado é suportada amplamente pela decisão

estatal de compra das CEPACs por um banco público, e a possibilidade de sinergia entre

729 Agência O Globo. Jornal O Globo, 14 de Março de 2014 -Rio- p. 13.

320

oportunidades é desprezada por conta da confiança no quadro económico que garantirá o

futuro, reforçando ainda mais a ocupação na expansão.

Figura 135. O Prefeito Eduardo Pães volta atrás e cancela a decisão de levar alguns dos equipamentos olímpicos para a Zona Portuária (Março de 2014).

Figura 136. Confirmada a transferência da vila dos árbitros para zonas de expansão da Zona Oeste, em construções de habitação social financiada pelo Governo Federal (Novembro de 2014).

321

As tensões fruto do desalinhamento entre o discurso e a prática evidenciam-

se ainda mais quando sob ação do fator tempo, condicionante implacável e por vezes

perverso. Com isso as modificações do statu quo, estabelecido como aquele definido a

partir da aprovação da proposta olímpica, vão-se revelando as tensões de forma mais

objetiva, a partir das transformações do quadro da cidade e do país, da dificuldade de

modificação de uma proposta contratualizada legalmente como o detentor da marca

do evento e efetivamente com todos os atores envolvidos, em suma, em função de

toda a “incerteza” inerente ao processo.

322

323

As tensões que emergiram na cidade do Rio de Janeiro, a partir da conquista do

direito de sediar os Jogos Olímpicos de 2016, suscitaram questionamentos de diversos

tipos, sobretudo aqueles que envolvem a escolha da Barra da Tijuca, zona de expansão

rica da cidade desenhada por Lúcio Costa, como o “coração dos Jogos Olímpicos”,

tornando-se tema central. Esta decisão estabelecia-se num quadro onde as principais

ações previstas se coadunavam com ideias que representavam um momento em que o

processo de modernização brasileira destilava as certezas que iam ao encontro daquelas

que caracterizavam a fase “sólida” da Modernidade: onde o desejo de rutura e mudança

em oposição à cidade existente se somava à confiança irrestrita na possibilidade do

progresso rumo à construção de um futuro inexoravelmente grandioso, segundo um

projeto baseado na razão e no conhecimento técnico, que suportava o desígnio do

especialista com amplo apoio do Estado. O criador iluminado (o arquiteto e urbanista),

e o poder altivo do Estado garantiriam um futuro, talvez, mais que perfeito.

Desta reflexão estabeleceu-se a hipótese que esta investigação pretendeu

colocar à prova frente à análise do Estudo de Caso, a de que são os princípios de uma

Modernidade que traduz tempos de certezas, aqueles que promovem as linhas que guiam o

urbanismo carioca em pleno século XXI.

A hipótese supracitada estabelece uma contradição em relação ao quadro onde,

supostamente, grande parte das certezas já estariam liquefeitas pelo advento de uma outra

Modernidade. Esta, segundo a revisão de seus princípios, conduz a processos mais incertos

onde se estabelecem: uma mudança mais adaptativa e reflexiva (menos balística); um

progresso baseado na construção permanente de um futuro de resultados imediatos e não

garantidos; e um projeto definido de forma compartilhada pelos diversos atores envolvidos,

sem a total garantia estatal, mas que, no entanto, encontra seu suporte decisório

estabelecido mais no campo do debate político. A técnica, dantes legitimada pela razão e

pelo saber científico, assume um papel cada vez mais viabilizador ou legitimador de

decisões tomadas a priori sobretudo no âmbito político, tornando o processo dependente da

324

utilização de ferramentas de suporte à decisão e execução das ações que permitam algum

controle e legitimação, ou seja, condições para a redução da incerteza que o condiciona.

Para pôr à prova a hipótese apresentada, foi preciso primeiro investigar a própria

Modernidade, entendendo seus princípios nos diferentes momentos, permitindo assim

definir conceitualmente as “objetivas” que conformaram o modo de ver o tema proposto

para análise. Esta definição corresponde à Primeira Parte desta investigação, que se

ambiciona como primeira contribuição desta investigação vinculada ao tema. A busca

pela definição das “objetivas” baseadas nos princípios que constituíram a Modernidade

permitiu, através de diferentes âmbitos, compreender que a ideia de Modernidade, um

conjunto de processos de transformação/modernização contínuos, ainda se fazem

presente embora de forma diversa, e que seus princípios, embora revistos, não foram

postos de lado, mas sim transformados. Então, esta compreensão sobre a(s)

Modernidade(s), permitiu estabelecer as duas “objetivas” desejadas, uma da certeza e outra

da incerteza. Levando em conta que esta investigação se desenvolve no âmbito da disciplina

do urbanismo, foram definidos ainda “filtros” vinculados à reflexão sobre a disciplina.

Concluiu-se nesta parte da investigação que quando se fala da(s) Modernidade(s), trata-se de

diferentes lentes de uma mesma “máquina fotográfica”. Cambiaram-se as “lentes” e os

“filtros” mas a “câmara escura” continuava a mesma. Desta forma foi possível “congelar”

momentos vinculados à(s) Modernidade(s), disponibilizando à análise, “fotografias” do

Estudo de Caso, constituindo assim, a ferramenta conceitual e metodológica necessária à

análise da Cidade do Rio de Janeiro nesta investigação. Definiu-se um modo de olhar o

tema do urbanismo carioca e seus processos.

Com o intuito de pôr à prova a hipótese apresentada, tornou-se mister compreender

como se estabeleceram estas “objetivas”, e como se deram as trocas destas “lentes” segundo o

Estudo de Caso, definido assim o contexto e os reflexos nos caminhos do urbanismo carioca

até os dias de hoje. Para tal, estendeu-se a investigação para além dos limites dos planos e

projetos desenvolvidos no período. Reconhecendo que a disciplina do urbanismo é constituída

por diversos âmbitos, ampliou-se a perspetiva à compreensão dos processos de construção e

desenvolvimento do país e da cidade, tanto no âmbito disciplinar do urbanismo, quanto nas

influências advindas dos âmbitos político e socioeconómico. Desta forma foi possível

325

compreender a influência do contexto geral junto aos processos de modernização que

conduziram, e ainda conduzem, o desenvolvimento do Rio de Janeiro.

Ao analisar o período que compreende desde o início do século XX até os dias de

hoje, onde a ideia de Modernidade esteve sempre muito presente na construção do país,

pode-se observar que, segundo uma perspetiva mais alargada, esteve em jogo a constituição

de uma identidade, da própria “brasilidade”, o modo como o país se coloca frente ao resto

do mundo. Neste processo, pôde ser observado que o Brasil esteve permanentemente num

movimento de “altos e baixos” de suas condições políticas e económicas, e também de

democracia e desenvolvimento. Tais características refletiam-se diretamente na autoestima e

na possibilidade de construção do futuro do país com mais, ou menos, confiança. A cidade

do Rio de Janeiro, capital por quase 200 anos (1763-1960), detentora de um brazilian way of

life e porta de comunicação com o mundo que foi, após décadas de desabrigo, novamente

escolhida como elo representativo do país para o mundo.

Na primeira metade do século XX, o Rio, já em busca de uma Modernidade, esteve

em permanentemente fuga do estigma colonial, buscando afirmar-se como uma “Paris dos

trópicos” tendo como modelo a influência francesa, primeiro das transformações da Paris

de Haussmann e mais tarde no traçado de Alfred Agache para a área central.

A partir de 1960, o Brasil no auge da Modernidade e domesticação do território

traduzida no plano de metas de JK, tendo seu clímax na construção de Brasília, e

reforçada mais a frente pelas infraestruturas construídas pelos militares, mostravam um

desenvolvimentismo atrelado ao ufanismo de uma “Novela Bufa”730.

No Rio de Janeiro a perda da condição de capital (1960) traçou um novo

caminho de tentativa de afirmação para a cidade do Rio de Janeiro, que, a partir de

então, procurou na própria mudança de sua condição política o incentivo para

outros níveis de mudança interna. Embora o Rio fosse uma cidade consolidada, a

ideia de mudança e reconstrução a partir de uma nova condição que a levava à

“estaca zero” instigava a construção do novo, que levaria ao futuro róseo

730 TAVARES, André, Novela bufa do ufanismo em concreto. Porto: Dafne editora, 2009.

326

desenhado a partir de um projeto, que permitiria mostrar o quanto a cidade era

capaz de se mostrar renovada apesar das mudanças ocorridas.

Na estruturação desse novo futuro pretendido para a cidade do Rio de

Janeiro, são pontos cruciais a se reter nesta investigação a ideia da expansão como

lugar permanente do futuro róseo da cidade, em detrimento da cidade existente.

Assim como o incentivo à mobilidade sobre pneus, que reforçava a ideia de expansão,

ora prevendo para a cidade uma larga e extensa malha rodoviária (Doxiadis), ora

ocupando vazios segundo o modelo rodoviário atrelado ao urbanismo dos CIAM

(Lúcio Costa). E ainda o facto de que a cidade passou a perspetivar a construção de

uma nova centralidade, ora em algum equilíbrio com a existente como em Doxiadis,

ora em oposição completa, como em Lúcio Costa, assim como nos planos e

processos que o sucederam e o ratificaram.

A contratação de Doxiadis pelo Governador do Estado da Guanabara, Carlos

Lacerda, que escondia a expectativa de rivalizar com o desenho de Brasília, resultou na

instauração de uma perspetiva de expansão inexorável da cidade, apoiada no

deslocamento sobre pneus, que perdura até os dias de hoje e que se vê refletida nas

decisões tomadas para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 especificamente na

definição das linhas de BRT e na disponibilização de mais território para a ocupação.

Quatro anos mais tarde (1969), com os investimentos do governo militar e a abertura de

estradas franqueando o território da Cidade-Estado, como se viu até aqui, foram

disponibilizadas as áreas da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá ao traço de Lúcio

Costa. O mesmo autor de Brasília, corolário da Modernidade brasileira, tinha agora a

responsabilidade de guiar o Rio de Janeiro em direção a um futuro róseo, assim como

aquele prometido à nação. Lúcio Costa, naquele momento, detinha o traço demiúrgico,

garantidor do cobiçado futuro da “Modernidade”, e nos moldes de Brasília, usou seu

traço para equiparar a “Novacap” à nova “Belacap”. A partir de então a cidade do futuro

desenhada por Lúcio Costa, em clara oposição à cidade existente, tornou-se a alternativa

de Eldorado urbano em contraponto às mazelas que proliferavam evidenciando, de certa

forma, os problemas causados pelo descaso do país para com o tema urbano.

327

A retórica de Lúcio vinculada ao seu Plano para a Barra da Tijuca foi reproduzida

amplamente por sucessivos governos e ratificada constantemente a cada investimento feito

naquela direção. A este quadro somou-se a promoção de um processo de doutrinação da

opinião pública, com o apoio de governos e mercado imobiliário, que pode ser identificado

até os dias de hoje no sentido de estabelecer a região como resposta ao futuro da cidade.

Estabelecia-se assim desde a década de 1970, o “único futuro possível” em contraponto à

“velha” cidade do Rio de Janeiro: o futuro estaria na expansão promovida pelo desenho

modernista de Lúcio Costa.

Quase uma década depois, o PUB-RIO (1977), última tentativa “sólida” de

planeamento da cidade, ratificava mais uma vez a ideia de expansão segundo o traço de

Lúcio Costa, se constituindo, no entanto, como um plano operacional e burocrático, que

pretendeu, sem sucesso, estabelecer um sistema de planeamento para a cidade que, mais

uma vez, perdia sua condição de algum privilégio frente ao quadro nacional, deixando de

ser uma Cidade-Estado, e transformando-se em município “ordinário” a partir a fusão

com o Estado do Rio de Janeiro. Vale mais uma vez destacar que o PUB-RIO, nada mais

do que um conjunto de hipóteses que não tiveram efeito na prática, contribuiu para a

ratificação do Plano Lúcio Costa que foi absorvido constituindo-se como única parte

desenhada desse plano operacional e burocrático.

Este período, que se estendeu até o fim dos anos 1980, manteve a permanente

promoção da expansão como solução de futuro para a cidade. Na perspetiva alargada e

totalizante destes planos, o desejo de atuação sobre o território metropolitano esteve apenas

de forma especulativa nos três planos citados, tendo em conta que foram desenvolvidos

para os limites da municipalidade. Havia uma confiança, uma certeza na possibilidade do

progresso e na construção de um futuro radioso, que naquele momento se viabilizaria

através das garantias de execução e fiscalização do Estado. Conforme visto, esta promessa

era inviável. Enquanto se imaginava a sua possibilidade, a realidade do país se impunha

através da concentração dos esforços para equacionar as questões políticas e económicas.

Paralelamente “passou ao lado” um grande crescimento urbano que, no final da década de

328

1980, resultou em 75,47% da população domiciliada nas cidades731. Com a ocupação do

território apoiada no deslocamento sobre pneus, as cidades se espalharam pelo território,

em geral de forma precária, sem a infraestrutura urbana e sem parte dos serviços básicos

necessários. As cidades brasileiras, entre elas 12 metrópoles nacionais com mais de 2

milhões de habitantes, sendo duas, metrópoles globais, nomeadamente: São Paulo e o Rio

de Janeiro732, foram construídas absorvendo todas as dificuldades inerentes a um

processo rápido, fragmentado, sobreposto a inúmeras crises. O Brasil, que se construiu,

não se desenvolveu sem registar ressalvas, contradições e experiências importantes,

sobretudo na cidade do Rio que manteve sua condição de “síntese do Brasil”.

Embora a última década do século XX, como visto no decorrer deste

documento, tenha guardado uma troca de “objetivas”, estabelecendo “novos princípios”

que haviam transformado aqueles princípios “sólidos”, a expectativa atrelada ao Plano

Lúcio Costa manteve-se permanentemente marcada nos caminhos do urbanismo carioca,

como pode ser visto também nas definições estabelecidas tanto para os Jogo Pan-

americanos de 2007 quanto para os Jogos Olímpicos de 2016. Segundo a respetiva

“objetiva”, identificam-se algumas características do urbanismo carioca traçados sob a ótica

dos princípios de uma “Modernidade sólida”, conforme quadros que seguem:

Plano Doxiadis Plano Lúcio Costa PUB-RIO

MUDANÇA Na expansão inexorável.

Na construção de uma nova centralidade em equilíbrio com “velha” centralidade.

No aproveitamento de dinâmicas existentes para a definição e imposição de novas formas.

Na expansão desejável.

Na construção de uma nova centralidade em substituição à “velha” centralidade.

Na indução de novas dinâmicas para a definição e imposição de novas formas.

Na ratificação da expansão desejável.

Na ratificação de uma nova centralidade em substituição à “velha” centralidade.

No reconhecimento das dinâmicas existentes, no entanto induzindo novas dinâmicas para a definição e imposição de novas formas.

731 Disponível na WWW: <URL: http:// www.ibge.org.br > [Consult. 2015-04-30].

732 Em 2014 a Região Metropolitana de São Paulo possuía 20.935.204 de habitantes enquanto o Rio de Janeiro metropolitano possuía 11.973.505. Disponível na WWW: <URL: http:// www.ibge.org.br > [Consult. 2015-04-30].

329

Plano Doxiadis Plano Lúcio Costa PUB-RIO

PROGRESSO Na confiança na razão e no conhecimento cien-tífico através da Ekistics.

No futuro inexorável con-cretizado a partir da cons-tituição da Ecumenopolis.

No plano garantido pelo Estado. Que no entanto, reconhecendo as dificul-dades de recursos, espe-rava-se que fosse faseado.

Na confiança na razão e no conhecimento científico através do modelo CIAM.

No futuro que, se seguido o Plano, definiria o “novo co-ração da Guanabara”.

No plano garantido pelo Estado com a construção de suas bases e fiscalização.

Confiança na razão e no conhecimento científico através de um plano operacional e burocrático.

No futuro que, se seguido o Plano, levaria a hipóteses que incluíam a consolida-ção do Plano Lúcio Costa.

No plano garantido pelo Estado, no sentido de que foi realizado para operacionalizar a própria burocracia estatal.

Plano Doxiadis Plano Lúcio Costa PUB-RIO

PROJETO Na perspectiva metropo-litana, com análise e res-posta desenhada nesse sentido.

Na responsabilidade do especialista.

No foco tecnológico en-volvendo o uso de com-putadores.

Na busca do equilíbrio através de uma descen-tralização.

Na indicação de fasea-mento segundo recursos disponíveis.

No aproveitamento de projetos existentes para potencializar o novo plano.

Na perspetiva metropo-litana na construção da retórica que, no entanto, não respondia com desenho o tema metropolitano.

Na responsabilidade do especialista.

No foco autoral, atento a análise e definição estética do autor.

Na busca da rutura com a cidade existente.

Na perspetiva de uma cidade que “nasce pronta”.

No aproveitamento da disponibilidade da tabula rasa natural do território quase virgem para viabilizar o novo plano.

No discurso refere-se ao tema metropolitano, mas como plano operacional tem atuação restrita ao município,

Na responsabilidade de órgãos estatais.

No foco operacional, insti-tucional e burocrático.

Na busca pela operaciona-lização do planeamento.

No foco dado aos diagnós-ticos e zonamento, tendo como sua única parte desenhada a ratificação do Plano Lúcio Costa.

Passando a análise do período dos anos 90, observou-se então, a aplicação de uma

outra “objetiva” que indicou a transformação dos princípios daquela “Modernidade sólida”.

Enquanto se consolidava a democracia, após mais de 20 anos de regime militar, o país,

segundo uma tendência taxada como neoliberal, pouco a pouco, equacionou as questões

económicas e com isso começou a ambicionar uma nova posição no contexto global. Sob a

influência deste contexto, retomava-se paulatinamente o debate sobre o tema urbano, e a

cidade entrava num período que espelhava essa outra condição, tendo como foco os projetos

urbanos de requalificação como forma de atração de investimentos e do interesse global,

330

seguindo em grande parte o exemplo de importantes experiências internacionais mas também

inovando em temas específicos como o das Favelas. Pouco a pouco, indicava-se algum

desenvolvimento após anos de restrições democráticas, financeiras e sociais. Estabeleceu-se

uma nova relação com a questão da incerteza e da complexidade, conduzindo a uma mudança

mais vinculada à transformação das pré-existências e menos à substituição pelo novo,

condicionando o futuro ao aproveitamento de oportunidades escassas, inclusive em relação

ao apoio do Estado. O projeto abandonava uma escala alargada de desenho e concentrava-se

numa atuação mais pontual através de projetos que se mostravam mais reflexivos,

adaptativos, inovadores, e que se adequavam a uma perspetiva estratégica alargada de cidade

que embora não desenhada, direcionava as ações para uma visão compartilhada de cidade.

Desprovido do desígnio do planeamento “sólido”, a cidade viu-se condicionada

às novas ferramentas de legitimação, já que a razão, a técnica e a retórica dos especialistas

haviam perdido sua condição legitimadora. Entrou em jogo o discurso das “palavras-

contentor”, como visto através de Bourdin – as sinergias, catálises, contaminações

positivas e o legado atrelado a esses projetos e/ou eventos estratégicos.

Embora tenha sido observado que o tema da expansão manteve, em relação à Barra

da Tijuca, uma certa inércia apoiada nos interesses do mercado, as principais intervenções do

poder público neste período deram-se no sentido da (re)qualificação da cidade existente. Os

projetos como o Rio-cidade e o Favela-bairro são os expoentes desse momento, assim como

projetos como a Frente Marítima e o SÁ’s, todos concentrados na cidade consolidada e

deprimida após pelo menos duas décadas de dificuldades. Neste período, deu-se início ao

sonho de sediar os Jogos Olímpicos a partir da proposta desenvolvida para os Jogos de 2004,

que representava a postura pelo enfrentamento da complexidade através das possibilidades

vinculadas a esta oportunidade, e absorveu grande parte dos esforços da cidade movendo as

decisões do urbanismo carioca até os dias de hoje, e que no entanto, viveu uma alteração de

rumo provocada pela “rutura” ocorrida no ano 2000.

Embora o quadro tenha sido de relativo sucesso nos últimos anos do século XX,

foi identificada nesta investigação as condições políticas especiais que levaram à promoção

de um “rutura técnico-política” na década seguinte, indo de encontro à ideia de que o

331

processo estratégico em busca dos Jogos Olímpicos se situa no mesmo diapasão desde os

anos 90. Através deste reconhecimento identifica-se uma mudança que passa do modelo

apoiado na prática do planeamento estratégico e do Projeto Urbano, procurando

alinhamento com o modelo barcelonês, a um outro mais fragmentado, simplificador, sem

coerência alargada, mais atento ao “factoide”733 e suportado, mais do que nunca, por

discursos que apregoam o uso de “palavras-contentor”, estabelecendo a opacidade

necessária à legitimação desses processos pouco estruturados. A identificação desta “rutura”

é uma contribuição importante desta investigação, na medida em que comumente, entre os

autores que estudam o urbanismo carioca, este momento é indicado como de continuidade

de uma linha de atuação baseada no Iº Plano Estratégico da Cidade, o que parece

questionável, observando sua revisão e o contexto mais amplo onde se identifica a “rutura”.

Para além desta perspetiva, foi identificada a adoção de uma postura de desprezo em

relação às experiências anteriores. Atitude baseada não em uma questão ideológica, mas por

conta de um processo de personificação do Governo na figura do chefe do executivo municipal,

que não admitia a associação com ações do governo anterior. Esta postura consolidava também

uma transição do processo de decisão onde o peso da justificação passava definitivamente do

métier da técnica para a esfera da política, reproduzindo casos em que o

“político decide uma coisa e procura depois os certificados científicos que melhor justificam a sua decisão, dando assim a impressão de a decisão ter sido apenas o resultado obrigatório dos conhecimentos científicos” 734.

Sobretudo, a personificação das ações por parte do Prefeito promoveram o

abandono da perspetiva coerente com uma visão estratégica que procurava enfrentar

a complexidade existente, tendo como exemplo a proposta olímpica para 2004. Esta

nova perspetiva fomentou a aposta nas possibilidades dos projetos arquitetónicos

733 Segundo o prefeito César Maia, a expressão “factoides” foi criada pelo escritor Arthur Miller, e depois usada por Alberto Dines num artigo quando trabalhava em Lisboa. E refere-se à ideia de que numa sociedade da imagem, os factos estão carregados de imagem, tanto em relação a quem está no centro deles, como em relação a quem os narra. A busca de uma palavra que traduzisse isso levou de encontro ao uso da expressão “factoide”. Em uma reportagem sobre o prefeito, na revista Veja em 1993, o jornalista Alfredo Ribeiro, destacou a questão, exagerando. O título da matéria foi: “Governar é lançar factoides”. Talvez por preconceito, factoide passou a ter uma tradução equivocada: do que é -um fato carregado de imagem- passou a ser percebido como -um pseudo-facto. Já em 1996 o “Aurélio” o incorporava no dicionário. Mas a versão do factoide como pseudo-facto se tornou mais difundida. Disponível na WWW:<URL: http://cilaschulman.com/2008/06/20/o-que-e-factoide-por-cesar-maia/> [Consult. 2015-01-21].

734 INNERARITY, Daniel, A transformação da política. Lisboa: Teorema, 2002, p. 48.

332

mediáticos, concebidos na sua estrutura territorial de forma discricionária e

fragmentada. Também uma nova visão simplificadora, presente no estabelecimento

de uma espécie de “urbanismo temático” focado na realização de megaeventos,

representados principalmente pela realização dos Jogos Pan-americanos de 2007, e na

perspetiva futura dos Jogos Olímpicos emergiu deste processo. Tal “rutura”

promoveu sobretudo um vazio de debate e de produção disciplinar no âmbito global

da cidade, estabelecendo um quadro de opacidade e confusão no tema urbano e

negando, muitas vezes, a complexidade da realidade apresentada.

A análise do período após a “rutura” dos anos 2000 permitiu dar início à compreensão

de um quadro de desalinho entre o discurso e a prática do urbanismo carioca que leva à

confirmação da hipótese apresentada. Enquanto o discurso das decisões se manteve vinculado

ao tema estratégico e ao Projeto Urbano e seus efeitos de sinergia, catálise ou contaminação

positiva, sobretudo relacionado ao modelo de Barcelona, o Prefeito Eduardo Paes mais de uma

vez destacou o desejo de ser comparado a Pasqual Maragall: “Vou contratar a consultoria do

Maragall porque quero ser o Maragall no futuro, e quero que o futuro do Rio seja Barcelona”735;

na prática, a perspetiva de enfrentar a complexidade da realidade carioca foi substituída por uma

atuação no sentido de simplificação dos processos, buscando respostas mais “sólidas”,

viabilizadoras do “urbanismo temático” cujos conteúdos, procedimentos e prioridades

passavam a ser legitimadas em função de eventos extraordinários. Nesta perspetiva, tanto a

prática vinculada à promoção de equipamentos específicos (à moda de Mitterrand ou Bilbau),

quanto aqueles destinados à viabilidade dos megaeventos seguiram o caminho da simplificação.

O foco na estratégia em acordo com a complexidade inerente à realidade da

cidade foi transferido para uma ação de simplificação viabilizadora, ou seja, o que

interessava era a promoção, a todo custo, dos equipamentos e dos eventos almejados,

não importando as incoerências entre o discurso e a prática, resultando em gestos

erráticos que se estabelecem como as linhas do desenvolvimento da cidade. No caso

dos megaeventos, onde os Jogos Olímpicos ganham importante destaque nesta

investigação, o “doping urbano” ao qual se submete a cidade do Rio, consolida uma

735 Disponível na WWW:<URL: http://br.reuters.com/article/idBRSPE6130O320100204> [Consult. 2013-04-14].

333

série de formas e dinâmicas de atuação que não possuem o apoio necessário de uma

estrutura atualizada de planeamento, enfraquecida pelo vazio de discussão sobre os

caminhos do urbanismo carioca, refletindo-se na ausência de propostas coerentes

com um plano de cidade, uma visão minimamente compartilhada e desenhada para o

futuro do Rio. A existência do Plano Diretor, não foi capaz de cumprir este papel –

desterritorializado estabeleceu-se como um conjunto de diretrizes facilmente

subjugadas pela força das oportunidades e da urgência. Assim também ocorreu como

os planos estratégicos, processos revistos no sentido de reprodução da nova

perspetiva adotada, de atuação fragmentada e de viabilização, a todo custo, das

oportunidades vinculadas à realização dos megaeventos.

Conclui-se que o real interesse é viabilizar o megaevento. Com isso, todo o

planeamento da cidade passa a se confundir com o planeamento dos Jogos

Olímpicos. Nesta perspetiva, o caminho para enfrentar a complexidade é uma

possibilidade que põe em risco o evento e por isso deve ser descartado. No vazio de

reflexão sobre a cidade, e sem o suporte de um sistema de planeamento estruturado

(como aconteceu em Barcelona), buscam-se as opções mais concretas no intuito de

reduzir ao máximo as incertezas, resultando no apoio ao desenvolvimento da cidade

sob a influência e consolidação das ideias de Lúcio Costa e Doxiadis, como se fosse

possível considerar estas ideias como adequadas à realidade tão diversa daquela dos

anos 60. Mas se por um lado estes cumprem o seu papel de simplificação

viabilizadora para a realização dos megaeventos, por outro, constituem-se como

motivo de desalinho entre o discurso e a prática, promovendo uma série de tensões.

Segundo o cruzamento entre as “objetivas” desenvolvidas a partir da

transformação dos princípios da Modernidade nos dois primeiros capítulos, o que se

observa é que se estabelece um discurso alinhado com uma “objetiva” da incerteza

que se mantém desde a década de 1990, mas que, no entanto, a partir da “rutura” de

2000, o reflexo efetivo das decisões tomadas e ações realizadas vão ao encontro à

reprodução de uma prática mais alinhada com os princípios que constituem a

“objetiva” da certeza, como mostra a os quadros a seguir:

334

PECRJ + PUS + Rio2004 RUPTURA + PAN 2007 + Rio2016

MUDANÇA No reconhecimento das pré-existências.

Na recuperação da “velha” centralidade.

Na reafirmação de dinâmicas existentes através de projetos pontuais e estratégicos.

No discurso se dá o reconhecimento e promoção das pré-existências.

Na prática promove a expansão desejável, contrapondo o “novo” ao existente.

Na consolidação de velhas “novas dinâmicas” estabelecidas nos Planos de Lúcio Costa e Doxiadis.

PECRJ + PUS + Rio2004 RUPTURA + PAN 2007 + Rio2016

PROGRESSO Na confiança na construção do futuro a partir do aproveitamento de oportu-nidades e seus efeitos, sinérgicos, cata-líticos e de contaminação positiva.

Na construção do futuro sob respon-sabilidade consensual do conjunto de atores interessados, e também depen-dente dessas parcerias.

No discurso se dá através do aproveita-mento da oportunidade e seus efeitos.

Na prática exprime uma confiança num futuro necessariamente positivo cons-truído através da oportunidade de realiza-ção de megaeventos e a certeza do respetivo legado.

Nas decisões garantidas por uma visão personalista de atuação governamental e pela urgência imposta pelo calendário de realização dos megaeventos.

PECRJ + PUS + Rio2004 RUPTURA + PAN 2007 + Rio2016

PROJETO Na perspetiva de realização de proje-tos urbanos pontuais no sentido de re-qualificação da cidade através de seus efeitos, sinérgicos, catalíticos e de con-taminação positiva.

Na perspetiva de enfrentar a complexi-dade e aproveitar as oportunidades, bus-cando a inovação e a legitimação através da participação de diversos atores.

Na responsabilização dos diversos ato-res da sociedade envolvidos no proces-so de pensar a cidade.

No discurso apregoa-se a busca pelas si-nergias entre as demandas da cidade e a realização dos megaeventos.

Na prática assume a perspetiva de proje-tos pontuais, sobretudo arquitetónicos, no sentido de viabilização do megaevento ou promoção de governo, legitimados pela ideia de legado garantido.

No projeto que corresponde à necessidade de simplificação legitimadora e viabilizado-ra do megaevento, encontrada em proje-tos já estabelecidos desde a década de 1960 claramente desatualizados em relação as demandas atuais.

Na responsabilização dos governos como garantidores plenos das ações e reduzido envolvimento de atores fora do contexto do megaevento.

A partir da análise desse desalinhamento, conclui-se que aqueles que

constroem as decisões, necessitando de uma dose extra de legitimação, ou seja de

335

construção de certezas para justificar os seus atos, encontram na simplificação

viabilizadora a possibilidade de aproveitamento das oportunidades. Por isso, o

projeto assume a condição de estabelecer “procedimentos destinados a incrementar o

rendimento e a eficácia e não em antevisões do futuro ou perspectivas. [...] os prazos

subvertem os valores e o urgente substitui o importante”736.

A ausência de inovação, ou busca por respostas atualizadas, e a utilização de ideias que,

embora devessem ser consideradas obsoletas, são suficientemente legitimadas frente à opinião

pública, a não confrontação das decisões por conta da inexistência de um sistema de

planeamento estruturado e atualizado, a utilização ampla de ferramentas de narração e de

legitimação, que se apresentam como ideias verbalizadas por “palavras-contentor”, como essas

que anunciam um futuro positivo, garantidor do progresso, contribuem para o estabelecimento

de graus sucessivos de opacidade que, paradoxalmente, reforçam os argumentos e o processo de

legitimação necessários à sua execução. Promove-se uma “nuvem de fumo” que, potenciada

pelo “euforismo” geral da nação, encobre o desalinho entre o discurso e a prática e promove a

captura de qualquer projeto ou ação debaixo de um “guarda-chuva” genérico dos slogans. Com

isso, a ideia de progresso dotado de “uma dimensão mítica, sobrevive à sua morte especulativa

numa retórica que se explica pelo desejo humano de ilusões colectivas” 737.

O uso dessas “palavras-contentor”, sobretudo da ideia do legado, colabora com

“a arte de administrar a desculpa [...] cativar, distrair, desviar, aparentar, dissimular”738 as

escolhas realizadas dentro do processo decisório. Os médias que também possuem seu

papel no uso dessa ferramenta de legitimação, fomentam essa “venda”, com a

complacência dos Governos, tornando tudo mais opaco, fornecendo a matéria para a

realidade, induzindo a construção de certezas na perspetiva necessariamente positiva do

legado, quando, como vimos, se sabe que esta não é uma possibilidade garantida.

Constitui-se desta forma a opacidade necessária, a promoção da opacidade que

resulta na legitimação, quase que automática, das decisões tomadas. Se antes a confiança na

razão promovia a fé no progresso e no futuro positivo inexorável, hoje, o legado amplamente

736 INNERARITY, Daniel, O Novo Espaço Público. Lisboa: Teorema, 2006, p. 41.

737 Idem, ibidem, p. 143.

738 Idem, ibidem, p. 60.

336

utilizado no discurso de políticos e dos médias faz o mesmo papel através da formação desta

“nuvem de fumo”. A ideia de legado transforma-se numa ferramenta de certezas, de

legitimação quase que instantânea para as ações que levam à realização do megaevento, mas

também para aquelas que, de forma oportunista, decisores políticos e atores interessados

pretendem levar a cabo, absorvendo-as no processo olímpico, como reação de curto alcance

ou como falsa urgência que generalizadas revelam uma ineficácia ou falta de confiança nos

procedimentos institucionais ordinários739, assim como foi mostrado nas declarações do

próprio prefeito da cidade do Rio de Janeiro (ver página 149).

O desalinho entre o discurso e a prática e todo este quadro observado até aqui,

conduz à confirmação da hipótese apresentada. A cidade do Rio de Janeiro, sob a perspectiva

de realização dos Jogos Olímpicos de 2016, apoia seu desenvolvimento nas demandas

necessárias à realização do megaevento, que, por sua vez, utiliza da simplificação viabilizadora

encontrada nos projetos obsoletos, desenvolvidos na década de 1960 e apoiados em uma

“objetiva” de certezas, como forma de reduzir a incerteza atrelada à complexidade inerente as

reais necessidades de uma cidade metropolitana de quase 12 milhões de habitantes.

Confirma-se a hipótese, no entanto, interessa destacar o contexto que legitima este

descompasso que se dá a partir da soma do “euforismo” vivido no país e do uso do legado

como “palavra-contentor” e ferramenta de legitimação quase que automática do discurso e da

prática vinculados aos Jogos Olímpicos de 2016, mesmo que esses se estabeleçam de forma

descompassada e, por vezes, contraditória. Assim como na descrição de Marco Polo sobre

Olívia, cidade invisível de Italo Calvino, “jamais se deve confundir uma cidade com o discurso

que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles [...] [e não se] poderia fazer outro discurso

[...] [mas, no entanto], a mentira não está no discurso, mas nas coisas” 740. São nos factos em si

que encontramos a “mentira” fruto do desalinhamento que emerge da realização dos Jogos

Olímpicos. No entanto, mesmo identificando e reconhecendo esta condição vale questionar, se

pudéssemos prever isso tudo, afinal quem seria contra a oportunidade de realização dos Jogos?

739 INNERARITY, Daniel, O Novo Espaço Público. Lisboa: Teorema, 2006, p. 43.

740 CALVINO, Ítalo, As cidades invisíveis. São Paulo Companhia das Letras, 1990, p. 59-60.

337

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“[...] É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.

– Eu não tenho desejos nem medos – declarou Khan –, e meus sonhos são compostos pela mente ou pelo acaso.

– As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.

– Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge”741.

Chegamos à reflexão final sobre a Jornada proposta por esta investigação,

percorridas mais de 300 páginas, constato, através das perspetivas de análise conceituais

propostas, que esta tese resulta de um fado de perguntas daquelas que nos colocamos para nos

obrigar a responder. De frente para a Esfinge, restava apenas tentar decifrar os discursos e as

práticas que conduziram o urbanismo carioca na construção da própria cidade e de seus

sonhos de futuro, procurando montar o quebra-cabeças revelador de seus desejos e medos.

Embora se tenha tratado de diversos processos numa janela correspondente

a 50 anos de história do Brasil, do Rio de Janeiro e de seu urbanismo, o que moveu

741 CALVINO, Ítalo, As cidades invisíveis. São Paulo Companhia das Letras, 1990, p. 44.

338

de forma efetiva esta investigação foi o período final examinado, a partir dos anos

90, onde se destacam as possibilidades de realização de um megaevento como os

Jogos Olímpicos. Oportunidade esperada desde então, sob a promessa de

construção de um futuro positivo para a cidade, através do legado que fundou uma

espécie de crença religiosa, uma promessa de parusia, onde o legado olímpico se

tornaria a panaceia de todos os males da cidade.

Este momento confunde-se com aquele em que a promoção das maravilhas

do Projeto Urbano e as suas possibilidades de efeitos sinérgicos, catalíticos e de

contaminações positivas, aguçaram os desejos e sonhos de construção da cidade à

moda de Barcelona. Inclusive os de uma série de estudantes de Arquitetura e

Urbanismo que como eu, iniciavam sua vida académica em meados dos anos 90. A

vivência de Projetos Urbanos como o Rio-Cidade, o Favela-bairro, a Frente Marítima e

a primeira proposta olímpica para os Jogos de 2004, reforçavam a perspetiva de que

caminho para a cidade seguiria este fio condutor. O papel do arquiteto-urbanista

seria o de fazer as escolhas, obviamente corretas, que levaria a cidade a integrar o

rol das grandes cidade mundiais tendo como corolário deste caminho escolhido a

realização dos Jogos Olímpicos.

No entanto, passaram-se os anos, e a virada para o século XXI indicava que

algo havia mudado. A “rutura política” era clara, já a “técnica” nem tanto. Por isso,

coube também a esta investigação clarificar este momento, compreendendo que então,

as decisões técnicas vinculadas ao urbanismo moveram-se de forma definitiva para o

âmbito da política, trazendo ainda mais incerteza ao palco das decisões urbanas.

Assim como salientou Marco Polo à Kublai Khan, ao sonho e ao desejo de

construção da cidade juntou-se o medo, o risco atrelado à incerteza das decisões

tomadas. Os Projetos Urbanos e as suas promessas de sinergias, catálises e

contaminações positivas, poderiam ter efeitos contrários aos desejados se a escolhas

fossem mal feitas. Recordo-me sempre da primeira vez em que li o texto de Nuno

Portas que indicava a possibilidade também de metástases. A partir de então, a

incerteza manteve-se presente, e foi reforçada pela oportunidade de trabalhar junto

339

com investigação promovida por Sérgio Magalhães sobre a “Cidade na Incerteza”.

Nesse momento, como destacado na epígrafe desta dissertação, surgiam novas

dúvidas e novos questionamentos, e só havia incerteza. Parece-me importante

destacar aqui, mesmo que de forma singela, o papel destes dois mestres que

orientam esta investigação.

Desta inquietação pessoal, fazia-se perceber também outras questões que

emergiam das tensões observadas nos caminhos escolhidos pelo urbanismo carioca.

Sobretudo, aquelas vinculadas à possibilidade de realização de megaeventos como

os Jogos Pan-americanos e os Jogos Olímpicos. A concretização destas

oportunidades em 2007 e, ainda por vir, em 2016, fez emergir de forma ainda mais

evidente as tensões que, como visto nesta dissertação, se deram a partir de um

desalinho ente o discurso e a prática no urbanismo carioca.

Na ocasião da escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de

2016, o que parecia ser o ponto mais alto daquele sonho de faculdade, mas não só,

nos anos 90, mostrava-se cercado por tensões traduzidas em questionamentos

particularmente voltados à opção pela localização do “coração dos Jogos” na Barra

da Tijuca, reflexo do desenho moderno de Lúcio Costa. Mais do que identificar esta

condição de tensão que era clara frente à movimentação da opinião pública e órgãos

de classe vinculados à arquitetura e ao urbanismo, foi importante procurar

compreender as bases conceituais que avalizavam os discursos e as práticas

estabelecidas durante o período estudado.

Parece-me importante destacar também que, sobretudo por conta da fase

mais recente deste período, esta condição foi alcançada graças à possibilidade de

estabilizar a investigação através das “objetivas” conceituais propostas para a

análise. Estas, sob o meu ponto de vista, constituem-se como uma contribuição

importante para a reflexão não só sobre a Modernidade como processo contínuo

que envolve certezas e incertezas, como também sobre as bases dos diferentes

processos, planos e projetos que constituem os caminhos do urbanismo carioca

após Brasília. Tratando-se de um processo em pleno andamento que abarca as

340

contínuas transformações da Modernidade em si, e de seus reflexos nos caminhos

do urbanismo da cidade do Rio de Janeiro, as “objetivas” desenvolvidas foram

essenciais como método de análise, permitindo estabelecer as “fotografias”

necessárias à observação. A perspetiva de desenvolvimento de um modo de olhar

aplicados aos processos, planos e projetos em seus contextos mais amplos, tendo

em conta os princípios da Modernidade destacados por Ascher – da mudança, do

progresso e do projeto – segundo seus diferentes momentos mostrou-se

esclarecedora. Munido dessas “objetivas”, a análise do Estudo de Caso, possibilitou

a identificação de algo de novo, sendo capaz de assinalar “com tintas de diferentes

cores” como em Esmeraldina, cidade invisível de Calvino, o essencial dos “trajetos,

sólidos ou líquidos, patentes ou escondidos”742, contidos nos caminhos do

urbanismo carioca no período estudado.

O especial destaque dado à identificação da permanente influência “sólida” do

urbanismo dos anos 60, consolidando a própria hipótese estabelecida, é outra

contribuição desta investigação. Assim como a constatação de que as evidências desta

influência emergiram da própria escolha olímpica, a partir do reconhecimento de um

desalinho entre o discurso e da prática do urbanismo carioca que, embora se pretenda

atualizado em sua “objetiva”, põe em prática ações vinculadas a uma “Modernidade

sólida”, escondidas sob a “nuvem de fumo” formada pela perspetiva legitimadora na

qual se baseiam os prognósticos do legado olímpico.

Conforme dito, a necessidade de garantir o aproveitamento das

oportunidades e a necessidade de redução da incerteza apoiada nos planos dos anos

60, demonstra a opção pela construção simplificadora e atabalhoada do futuro. O

aproveitamento das oportunidades a todo custo, mais no sentido da improvisação

submetida a uma “tirania do presente” 743, sugere que exista um condicionamento

do futuro assim como nos diz Daniel Innerarity em “O Futuro e seus inimigos”

(2011). Este se constitui vinculado a um conjunto de decisões necessariamente

742 CALVINO, Ítalo, As cidades invisíveis. São Paulo Companhia das Letras, 1990, p.84.

743 INNERARITY, Daniel, O futuro e seus inimigos: uma defesa da esperança política. Lisboa: Teorema, 2011, p. 86.

341

míopes, por conta da brevidade dos processos de reflexão, ignorando os efeitos das

decisões tomadas em relação as gerações futuras.

Aqui se estabelece o que penso ser o principal desdobramento de interesse para

esta investigação. Todo este processo estudado, que ratifica a hipótese apresentada,

constitui-se como um movimento implacável que conduz os caminhos do urbanismo

carioca. No entanto, as suas consequências só poderão ser observadas algum tempo após

a conclusão das intervenções que estão sendo executadas, e após a realização dos Jogos

Olímpicos de 2016. Talvez devêssemos considerar ainda que alguma observação mais

consistente só possa ser realizada após o fim dessa década, o que instiga a manutenção

dessa linha de investigação para futuras possibilidades de análise.

Esta perspetiva de uma contínua reflexão sobre o tema para além da realização

do megaevento põe em discussão sobretudo a ideia de que é preciso estudar

profundamente os processos de construção do futuro da cidade do Rio de Janeiro, mas

não só. Para tal faz-se necessário o acompanhamento do tema não só no âmbito da

disciplina do urbanismo, como na sua relação com a política e a economia, sempre

observando o contexto alargado.

Às vésperas da realização dos Jogos de 2016, a incerteza já se fez presente e,

apesar do pouco distanciamento dos factos, e da cada vez mais espessa nuvem de fumo

que nos envolve, é possível observar alguns factos que mostram a implacável

ambivalência das ações baseadas na confiança no “euforismo” e na certeza quanto às

possibilidades de um futuro positivo da cidade a partir do “legado”. A condição de

“euforismo” deu lugar à dúvida e ao desânimo; a economia promove dados pífios; a

estabilidade política se enfraquece a partir de numerosos escândalos de corrupção no

poder; quanto ao legado, o evidente atraso das obras e dificuldades financeiras dos

Governos, antes garantidores, põe em xeque toda a confiança posta naquela “palavra-

contentor”. O futuro se mostra novamente incerto.

A observação desses factos faz-nos reafirmar a importância da compreensão desses

processos e da necessária perspetiva de desenvolvimento de uma “ética” vinculada às decisões

do urbanismo, que vincule uma responsabilidade para com as gerações futuras como nos diz

342

Innerarity744, e que ajude a dissipar a “nuvem de fumo” que nos envolve, permitindo uma

mediação efetiva e coerente da herança do passado, das prioridades do presente e dos desafios

que o futuro apresenta, “compensando a nossa ineficácia com a agitação superficial e

substituindo a esperança pela inútil evocação do completamente outro”745.

A perspetiva de um urbanismo em “que todas as coisas [escondem] uma outra

coisa”, aproxima-nos de outra cidade de Calvino: Tecla, onde Marco Polo questiona

seus habitantes ao ver uma cidade escondida atrás de tapumes, andaimes e

guindastes permanentemente em construção temendo sua própria destruição, como

medo que “após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a

despedaçar-se, [e] acrescentam rapidamente sussurrando: – Não só a cidade” 746.

Assim como em Tecla, no Rio os tapumes e guindastes escondem a

construção da cidade, o que no caso carioca traduz-se num “urbanismo temático”,

baseado numa ausência de projetos que nos submete à tirania do presente747. A

aceleração dos processos que leva a um atabalhoado esforço para garantir as

oportunidades, promove um “apanhado” de decisões viabilizadoras que não levam em

conta as externalidades negativas e as implicações no longo prazo, e que não conduzem

necessariamente ao futuro esperado. O que parece uma aceleração resulta apenas numa

falsa mobilidade, uma “paradoxal estagnação da história na qual nada de realmente novo

aparece”748. A comprovação da hipótese desta tese demonstra esta questão. Com os Jogos e a

aceleração das ações estabelecidas para os caminhos do urbanismo carioca, o que se vê é a

adoção de linhas que estabelecem mudanças nada inovadoras, mais vinculadas as sete e as setenta

maravilhas, ao extraordinário e ao factoide, respondendo à necessidade de promoção de

Governos e de realização do megaevento, do que correspondendo às respostas necessárias à

construção da cidade na direção de um futuro coerente e minimamente consensual, onde a

equidade e o equacionamento dos enormes déficits locais possam ser alcançados.

744 INNERARITY, Daniel, O futuro e seus inimigos: uma defesa da esperança política. Lisboa: Teorema, 2011, p. 26.

745 INNERARITY, Daniel, O futuro e seus inimigos: uma defesa da esperança política. Lisboa: Teorema, 2011, p.11.

746 CALVINO, Ítalo, As cidades invisíveis. São Paulo Companhia das Letras, 1990, p.117.

747 INNERARITY, Daniel, op. cit., p.12, 31.

748 Idem, ibidem, p.36-39.

343

Por fim, ainda de frente para a Esfinge, as escolhas são: ou deixar-se devorar, ou

procurar decifrá-la, mesmo que a partir das respostas, diante da implacável complexidade da

cidade contemporânea, nos reste a loucura dos pessimistas ou a cegueira dos otimistas.

Figura 136. Reprodução de "Édipo e a Esfinge", 480-470 a.C. Musei Vaticani.

344

345

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Figura 126. IBGE - Censo Demográfico 2010 e Instituo Municipal de Urbanismo Pereira Passos - IPP/PCRJ.

Figura 127. PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008, p. 36-37.

Figura 128. Dados sobre BRTs e duplicação do Elevado do Joá atualizados em Julho de 2013: Cidade Olímpica, Prefeitura do Rio de Janeiro – “O Rio em transformação: a cidade a três anos dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016”. Disponível na WWW: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/ 4279306/4106010/ Apresentacao3anosparaosjogos.pdf> [Consult. 2015-01-28]. Dados sobre o metro atualizados em 14 de Dezembro de 2014: Disponível na WWW: <URL: http://oglobo.globo.com/rio/a-um-custo-de-365-bilhoes-28-grandes-projetos-de-infraestrutura-mudam-cara-do-rio-14829583> [Consult. 2015-01-28].

Figura 129. COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008 (trabalhado pelo autor).

Figura 130. COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p.28.

Figura 131. COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes II. Rio de Janeiro: COB, 2008, p.28.

Figura 132. Revista ADEMI-RIO, Setembro de 2013. Capa, p. 24.

Figura 133. Acervo O Globo. Foto de Custódio Coimbra. & Acervo da PCRJ.

Figura 134. Acervo do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento Rio de Janeiro.

Figura 135. Agência O Globo, 14 de Março de 2014.

Figura 136. Agência O Globo, 24 de Novembro de 2014. Rio, p. 07.

Figura 137. Disponível na WWW: <URL: http:// http://www.freepik.es/index.php?goto=2&k= esfinge&order=2&searchform=1&vars=2 jpg > [Consult. 2015-05-03].

360

APÊNDICE

362

363

Apêndice 1. Linha do Tempo elaborada pelo autor.

364

Apêndice 2. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor.

365

Apêndice 3. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

366

Apêndice 4. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

367

Apêndice 5. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

368

Apêndice 6. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

369

Apêndice 7. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

370

Apêndice 8. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

371

Apêndice 9. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

372

Apêndice 10. Montagem sob base do Google Earth (2014) elaborada pelo autor

ANEXOS

374

375

Anexo 1. Os melhoramentos realizados por Pereira Passos entre 1902 e 1906. FONTE: Disponível na WWW: <URL: http://portalarquitetonico.com.br/wp-content/uploads/figura2.jpg> [Consult. 2013-02-27].

376

Anexo 2. O Plano Agache (1930). FONTE: AGACHE, Alfred, Cidade do Rio de Janeiro: Remodelação, Extensão e Embellezamento, 1926-1930. Paris: Foyer Brésilien, 1930

377

Anexo 3. Perspectiva do Plano Agache (1930). FONTE: AGACHE, Alfred, Cidade do Rio de Janeiro: Remodelação, Extensão e Embellezamento, 1926-1930. Paris: Foyer Brésilien, 1930.

378

Anexo4. Mapa resumo do Plano Doxiadis com uma indicação de um zonamento geral em cores (1965). FONTE: DOXIADIS, Constantinos A., Guanabara. A plan for urban development. Rio de Janeiro: CEDUG - Governo do Estado da

Guanabara, 1965, p. 260 ou SOSA, 2008, p. 207.

379

Anexo 5. O Plano Lúcio Costa em cores (1969). FONTE: COSTA, Lúcio, Lúcio Costa: o registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, .p. 344-345.

380

Anexo 6. Mapa resumo do Plano Urbanístico Básico do Rio de Janeiro - PUB-RIO (1977). FONTE: Reprodução fotográfica do Mapa 51 do PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro - PUB-

RIO. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 1977, p. 241. Acervo pessoal do Autor.

381

Anexo 7. Modelo físico do Projeto Frente Marítima da Praça XV de Novembro (1998-2000). FONTE: Acervo pessoal do Arquiteto Sérgio Ferraz Magalhães

382

Anexo 8. Modelo físico do Projeto SÁs (1997-1999). FONTE: Acervo do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento Rio de Janeiro.

383

Anexo 9. Favela-Bairro Complexo do Sapê. Projeto Arqui 5 Arquitetos Associados (1998). FONTE: CONDE, Luiz Paulo, MAGALHÃES, Sérgio, Favela-bairro: Uma outra história da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vivercidades, 1ª ed., 2004, p. 140.

384

Anexo 10. Mapa dos locais de disputa das modalidades desportivas dos Jogos Pan-americanos de 2007 em cores. FONTE: Disponível na WWW: <URL: http://www.diariodorio. com/mapa-do-pan/> [Consult. 2013-09-02].

385

Anexo 11. Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio2016 - Plano Macro. (2008). FONTE: PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008.

386

Anexo 12. Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio2016 - Plano Local Maracanã. (2008). FONTE: PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008.

387

Anexo 13. Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio2016 - Plano Local Deodoro. (2008). FONTE: PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008.

388

Anexo 14. Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio2016 - Plano Local Barra da Tijuca. (2008). FONTE: PCRJ/CELU – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Comitê Especial de Legado Urbano, Plano de Legado Urbano e Ambiental - Rio 2016. Rio de Janeiro: A Prefeitura, 2008.

389

Anexo 15. Legenda do Mapa Geral da Proposta para os Jogos Olímpicos Rio2016 (2008). FONTE: COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008.

390

391

Anexo 16. Mapa Geral da Proposta para os Jogos Olímpicos Rio2016 (2008). FONTE: COB - COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO, Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, Volumes I. Rio de Janeiro: COB, 2008

392

393

TRANSCRIÇÃODAAPRESENTAÇÃODASPROVASPÚBLICASEM27/04/2016

Boa tarde. Gostaria de começar cumprimentando o Presidente do Júri e Diretor desta casa,

Professor Carlos Guimarães. Cumprimento também meus orientadores, o Professor Nuno Portas que

me dá a honra de sua presença, e o Professor Sérgio Magalhães, que atravessou um oceano para estar

aqui, além claro, dos Professores Ana Vaz Milheiros, André Tavares e Álvaro Domingues que

compõem este júri. Cumprimento ainda os professores e funcionários da FAUP que estiveram

presentes nesta jornada, e todos os que prestigiam este momento: família, amigos e colegas que

partilham o interesse pelo tema. Reservo por fim, um momento para um necessário agradecimento à

Fundação para a Ciência e Tecnologia que apoiou esta investigação.

Esta tese que apresento hoje é resultado de um fado de perguntas daquelas que nos

obrigamos a responder de frente para a Esfinge e que nos leva à tentativa de compreender os

discursos e as práticas, que no caso do Rio de Janeiro, conduzem seu urbanismo e seus sonhos de

futuro – passados e presentes – buscando assim revelar desejos e medos, mais ou menos, velados.

O sonho do Rio em se tornar cidade olímpica teve seu início a partir dos anos 90, e sua

conquista em 2009. É este o período que moveu esta investigação. No entanto, para sua

compreensão, mostrou-se necessário estabelecer uma janela de análise correspondente a 50 anos de

história do Brasil, do Rio de Janeiro e de seu urbanismo. Dois momentos muito importantes para o

país: numa ponta os 50 anos em 5 de Juscelino Kubitschek e a inauguração de Brasília; e na outra, os

prósperos anos Lula marcados pela conquista olímpica.

394

O estudo deste período possibilitou construir as necessárias interrelações para a compreensão

do momento em que se viabilizou a oportunidade de sediar os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, e

da consequente consolidação da ideia de construção de um futuro positivo através do "legado",

"palavra-contentor" como nos diria Bourdin, que se fortaleceu gradativamente como a panacéia de

todos os males da cidade que se realiza através dos seus ambicionados efeitos multiplicadores, frutos

em geral, de ações privadas que se converteriam em benefícios públicos: como na expressão que

remete a Bernard Mandeville: “vícios privados, virtudes públicas”; onde Barcelona é um dos modelos

a ser seguido.

Mas foi na análise da "virada" para o século VInte e Um que se identificou o facto-chave do

estudo de caso desta investigação. Nesse momento, foi reconhecida uma “rutura técnico-política” no

contexto do Rio de Janeiro, onde se observa que as decisões para o desenvolvimento da cidade se

moveram de forma definitiva para o âmbito da política, na simplificação, e na personalização,

trazendo ainda mais incerteza ao palco das decisões urbanas. A questão não é nova. Desde sempre

que urbanismo também é política; a ilusão tecnocrática é que evitava a palavra, tentando provar que

os tecnocratas eram uma elite que pensava e decidia por critérios estritamente técnicos. No entanto,

era o próprio poder político que lhe criava essas condições.

Ao sonho e ao desejo de construção da cidade somou-se o medo, a noção do risco atrelado à

incerteza das decisões tomadas. Tal condição se deu reforçada pela identificação da ausência da

"magia do legado" e da existência de "metástases", recorrendo ao professor Nuno Portas, vinculadas

a escolhas menos felizes que decorreram sobretudo, da realização dos Jogos Pan-Americano de 2007.

Da possibilidade de sediar os Jogos de 2016 emergiam também estas, e outras novas tensões

observadas nos caminhos escolhidos pelo urbanismo carioca, nomeadamente àquelas vinculadas à

escolha da região da Barra da Tijuca como "coração dos Jogos". Resultado do que foi identificado na

investigação como um desalinho ente o discurso e a prática.

Os primeiros movimentos em busca do "sonho olímpico" nos anos 90, caminhavam no

sentido de um desenvolvimento atrelado à estratégias de enfrentamento da complexidade da cidade

através da ferramenta dos Projetos Urbanos, entretanto legitimados pelo discurso acerca das suas

possibilidades de desencadear efeitos sinérgicos, catalíticos e de contaminações positivas, seguindo o

desejo de construção da cidade à moda de Barcelona.

395

No entanto, a partir da "rutura técnico-política" da virada do século, o desejo de garantir as

oportunidades e a necessidade de redução da incerteza no caminho de construção deste sonho, sugere

uma simplificação e mesmo por vezes, uma improvisação que submete as decisões do urbanismo

carioca a uma "tirania do presente", como nos diria Innerarity. O foco é no aproveitamento a todo

custo das oportunidades, justificando qualquer escolha ou prioridade determinada pela "tirania das

olimpíadas".

Dentro de um quadro de fragilidade do sistema de planeamento local, os planos

desenvolvidos nos anos 60, mais ou menos consolidados no senso comum, passam a servir de apoio

legitimador para as decisões necessárias à realização do caminho rumo aos Jogos Olímpicos. Este

facto demonstra a fragilidade da reflexão sobre a cidade, e a opção pela construção simplificadora e

atabalhoada do futuro, ignorando os efeitos em relação às gerações vindouras e condicionando até

mesmo esse porvir.

Vale destacar que mais do que identificar esta condição, fez-se importante a compreensão das

bases conceituais que avalizavam os discursos e as práticas estabelecidas durante o período estudado.

O que foi possível através da estabilização da investigação pelas “objetivas de análise” conceptuais

propostas na 1ª parte deste trabalho.

Através delas, fez-se uma reflexão não só sobre a Modernidade e seus mitos DE

racionalidade e previsão em diferentes fases, como também sobre as bases conceptuais dos diferentes

processos, planos e projetos que constituem os caminhos do urbanismo carioca após Brasília.

Com isso, foram estabelecidas as “fotografias” necessárias à observação na perspetiva de

desenvolvimento de um modo de olhar mais amplo, tendo em conta os princípios da Modernidade

destacados por François Ascher: a mudança, o progresso e o projeto.

Esses princípios, aplicados segundo seus diferentes momentos, possibilitaram a identificação

de uma outra visão sobre o urbanismo carioca, assinalando “com tintas de diferentes cores” o

essencial dos “trajetos, sólidos ou líquidos, patentes ou escondidos” como em Esmeraldina, cidade

invisível de Calvino.

396

Foram estas "objetivas" que permitiram a evidenciação do desalinho entre o discurso e a

prática do urbanismo carioca, que acontece sob a “nuvem de fumo” formada pela perspetiva

legitimadora na qual se baseiam os prognósticos do legado olímpico.

Nas vésperas dos Jogos de 2016, a incerteza faz-se ainda mais presente. Não obstante o

pouco distanciamento dos factos, e a espessa "nuvem de fumo" que nos envolve, promovida pelo

discurso do "legado olímpico", é possível observar a implacável força de transformação das

condições sociopolíticas que acabam por não legitimar aquelas certezas das escolhas, exatamente

porque são erradas, mistificadoras ou mesmo enganadoras, desconstruindo assim a base legitimadora

da irrestrita confiança nas possibilidades de um futuro positivo a partir do “legado olímpico”.

O “euforismo” revelado pelo Professor Almeida Magalhães, resultante da condição positiva

do país, dá lugar à dúvida e ao desânimo; à economia retraída; à instabilidade política resultante de

numerosos escândalos de corrupção no poder, e define um novo quadro que deixa de dar suporte

àquela confiança estabelecida. Enquanto isso, a ideia de "legado" se desfaz quando confrontada com

o evidente atraso das obras e as dificuldades financeiras dos Governos, antes garantidores do futuro

olímpico. Põe-se em xeque toda a confiança de um período áureo e o futuro se mostra incerto.

Observar esta transformação faz-nos reafirmar a importância da compreensão desses

processos, dissipando a "nuvem de fumo" que nos envolve, permitindo viabilizarmos uma mediação

efetiva e coerente da herança do passado, das prioridades do presente e dos desafios que o futuro

apresenta. Deixar para trás a agitação superficial e a esperança pela inútil evocação do completamente

outro, da mudança pela rutura drástica com o que precede, construindo assim a possibilidade de

desenvolvimento de uma “ética” ligada à compromissos, que vincule uma efetiva responsabilidade

para com as gerações futuras. É através da compreensão dessa paradoxal estagnação na qual

realmente nada de novo sucede, que se ratifica a hipótese apresentada.

O "doping urbano" proporcionado pelos Jogos, ou seja, a enorme aceleração das ações

estabelecidas na prática dos caminhos do urbanismo carioca, nos revela a adoção de linhas que

estabelecem mudanças nada inovadoras. Apoiadas nos planos de tempos de grandes certezas no

urbanismo brasileiro, efetuam-se mais vinculadas à simplificação, à expansão, à ruptura com o

existente, mas também contaminada com a ideia da personificação, do extraordinário, do factoide,

enfim, com o foco nas sete e nas setenta e sete maravilhas, como nos lembra Marco Pólo de Calvino.

397

Nesta perspectiva, responde mais à necessidade de promoção de interesses específicos de

atores variados, de notoriedade dos Governos e da própria realização dos Jogos, do que às

necessárias ações para a construção da cidade na direção de um futuro onde a equidade e o

equacionamento dos enormes deficits locais possam ser alcançados com vista a uma maior equidade

social e sustentabilidade.

A partir da compreensão de todo esse quadro dos caminhos do urbanismo carioca, assim

como nas considerações finais da tese, fecho a primeira parte desta explanação recorrendo mais uma

vez a Calvino, lembrando que de frente para a Esfinge, só existem duas escolhas: ou deixar-se

devorar, ou procurar decifrá-la. Ainda que o conhecimento adquirido a partir das respostas

encontradas, diante da implacável complexidade da cidade contemporânea, reste apenas a loucura, a

indignação e o medo dos pessimistas, ou a cegueira de uma realidade dissimulada que atinge também

o entendimento dos otimistas, como em Saramago, onde "o olho que está cego transmite a cegueira

ao olho que vê..."1.

E é com a epígrafe de "Ensaio sobre a cegueira", que encerro esta primeira parte da

apresentação:

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."2

***

1 Saramago, 2008, p. 111.

2 Epígrafe do "Ensaio sobre a cegueira", citando o "Livro dos Conselhos" de El-Rei D. Duarte.

398

Inicio agora a segunda e derradeira parte, mostrando algumas imagens e vídeos fazendo uma

expedita exposição dos highlights desta jornada, apresentando ainda alguns factos que corroboram com

as percepções desta tese de forma mais objetiva.

Começo com as revistas Time e The Economist de Fevereiro de 1956 e de Novembro de 2009. As

duas publicações representam bem os dois pontos limite da janela temporal proposta. Dois momentos

especiais para o Brasil, de grande confiança na construção do futuro, e de grande "ufanismo", compondo o

clima de otimismo para a construção de uma nova identidade global para o país.

Representado por uma figura que se ergue entre os raios do sol, o verde da floresta e a cidade

que desponta (poderia ser Brasília), o Brasil de JK como emblema de um importante momento de

modernização. E o Brasil do "euforismo" dos anos Lula, representado pela descolagem do Cristo

Redentor como um grande foguetão, que pretende ter nos Jogos Olímpicos o mais recente emblema

de um novo momento de modernização em tempos de globalização e sociedade mediatizada.

399

Bem mais recente, em Outubro de 2013 e ainda nas primeiras edições da The Economist de

2016, o ano olímpico, o quadro registado é bastante outro, de grande incerteza o que talvez resulte

em grande frustração em relação as expectativas arquitetadas para o "momento olímpico." Os factos

mais recentes que conhecemos confirmam esta perspectiva.

Passando rapidamente para o Rio de Janeiro como Estudo de caso. Vemos aqui o Rio

Metropolitano com aproximadamente 12 milhões de habitantes. A linha branca indica o limite

municipal legal que abarca algo em torno de 6,5 milhões de pessoas. Aponto aqui referências como o

CBD de onde a cidade parte e se espalha como mancha contínua sobre o território, prioritariamente

400

no sentido Sul-Norte em direção a Região Metropolitana e a Baixada Fluminense. Destaco ainda

outras referências do que veremos a diante: a esquerda, Santa Cruz, centralidade definida por

Doxiadis em equilíbrio com uma série de outras centralidades incluindo o CBD. E a Barra da Tijuca

centralidade de Lúcio Costa em oposição à cidade existente. Por fim, o Complexo da Maré, referência

do enfrentamento da complexidade da cidade na primeira proposta olímpica nos anos 90.

Como nos indica o mapa de 1959, até a década de 60, a cidade se desenvolveu principalmente

nesta região, tendo como referencia metropolitana as principais infraestruturas de mobilidade

construídas, os Maciços, a Baía de Guanabara e mesmo a Praia, consolidando sobretudo na relação

com essa paisagem em suas diversas camadas, a sua imagem e seu caráter de Cidade Maravilhosa,

coração do Brasil e referência da identidade do país mundialmente reconhecida. Destaca-se ainda a

indicação de que neste período, a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá tinham seu território

praticamente livre de ocupação e o Complexo da Maré também não se apresentava ocupado como

em tempos recentes.

401

Em 1960 é inaugurada Brasília, e a partir de então, perdendo a condição de capital da

república e transformada em cidade Estado, o Rio inicia um busca a procura de novas possibilidades

para (re)afirmação de sua identidade.

Como Estado da Guanabara, a cidade começava a procurar novos caminhos para o seu

desenvolvimento sob o comando de Carlos Lacerda e traço de Constantinos Doxiadis, que munido

de sua teoria da Ekistics, indicava a construção de novas centralidades em busca de um equilíbrio

racional como resposta a uma ocupação considerada inexorável rumo à construção da Ecumenópolis, a

cidade mundial.

402

Desta forma, os caminhos do urbanismo carioca passam a seguir uma nova vertente: a da

expansão e consequente enfraquecimento de sua centralidade histórica, baseada sobretudo numa

malha viária que "atapetava" o território, como ironizou Lúcio Costa, deixando assim marcas

profundas e ainda presentes nas decisões do planeamento da cidade.

No fim da década de 60, já sob Governo Militar, a abertura de novas estradas, disponibilizou

a Barra da Tijuca e a Baixada de Jacarepaguá para ocupação.

403

Para traçar o futuro da nova área foi chamado o mesmo autor de Brasília, seria ele o

responsável por aproximar a BelaCap da NovaCap, sob o traço de um urbanismo modernista

influenciado pelos CIAM.

Através do traço de Lúcio Costa, perspectivava-se então uma desejada mudança em profunda

ruptura com as pré-existências: a transferência da centralidade da cidade para uma área de expansão: a

Barra da Tijuca. Mais do que uma nova área da cidade, criava-se um novo centro metropolitano, um

novo futuro para o Rio de Janeiro.

404

Para referência, a área equivale a algo em torno de 20 km de litoral, o que seria equivalente à

linha de praia partindo da Foz e chegando até Vila do Conde, que no seu trecho principal avança até

mais do que 10 Km para dentro do território, o que seria equivalente a chegarmos mais ou menos à

região da Maia.

As décadas que se seguiram, de 70 e 80, consolidaram essa ideia de que o futuro róseo da

cidade do Rio de Janeiro estaria na expansão, mais especificamente na nova cidade de Lúcio Costa.

Tendo em conta as graves questões económicas e sociais que assolavam o país, e a cidade, a Barra da

Tijuca apresentava as respostas para o deficit de cidade e de segurança, nos seus condomínios

fechados e centros comerciais.

405

Resposta que de certa forma reproduzia o conceito de Lúcio Costa, desenhado por Oscar Niemeyer

para a Barra da Tijuca. Grandes torres em diversos núcleos que orbitavam centros comerciais e de serviço

que respondiam às necessidades citadinas dos cariocas que procuravam abrigo naquela nova cidade.

Rapidamente, nas palavras de Lúcio Costa, o esquema criado por ele para a ocupação da Barra da

Tijuca em trecho do curta metragem "A cidade cresce para a Barra" de 1970, dirigido por Paulo Roberto

Martins, com texto de Lúcio Costa e premiado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil à época3.

3 A integra do curta metragem "A cidade cresce para a Barra" pode ser encontrada no site do YouTube no link: https://youtu.be/ O0ZkvBWEZNw?list=PLIPzY18-6TZWVSY4SytfeOTUZdMD-Q4_l

406

Os problemas económicos e sociais tinham seu reflexo mais evidente na questão da violência

e do crescimento da cidade sem planeamento, indicando no fim da década de 80, inicio dos anos 90 a

chegada ao "fundo do poço".

Neste quadro agudo, surge o que Jordi Borja chama de "patriotismo de cidade". Nasce assim

um movimento de retomada e recuperação da cidade existente.

407

Este Movimento foi capitaneado pela dupla César Maia, Prefeito, e Luiz Paulo Conde,

primeiro como secretario de Urbanismo e depois como Prefeito, em oito anos virtuosos para o

urbanismo carioca. Neste período, os caminhos do urbanismo carioca se apoiam nos conceitos do

Planeamento Estratégico, tendo os Projetos Urbanos como ferramenta de enfrentamento da

complexidade da cidade existente e sua recuperação.

Como é possível ver nesta imagem, os principais projetos se concentravam nessa área de

forte influencia na construção da imagem da cidade entre os maciços e a Baía de Guanabara.

408

Os Pontos Pretos são as Favelas atendidas pelo Programa Favela-Bairro que urbanizou mais

de 150 comunidades numa primeira fase, os círculos maiores são os Projetos Rio-Cidade de

requalificação de centralidades incluindo os projetos da Frente Marítima e do Sás que tiveram

participação autoral do Professor Nuno Portas, e ainda a indicação do coração da proposta para os

Jogos Olímpicos de 2004 na Ilha do Fundão junto ao Complexo da Maré.

Sob meu ponto de vista, os caminhos do enfrentamento da complexidade e recuperação da

cidade existente, é bastante bem representados pela falhada proposta remetida ao COI para os Jogos

de 2004. A proposta sobrepunha o "coração dos Jogos" ao "coração da própria Metrópole", atuando

sobre um vazio junto a uma área de grande complexidade, um das maiores comunidades faveladas da

cidade: o Complexo da Maré. Apostava-se no potencial de sinergias, catálises e contaminações

positivas, para o enfrentamento de questões sociais importantes. Os Jogos deveriam servir a cidade.

409

No entanto, a "virada do século" trouxe uma transformação, uma "rutura técnico-política"

como já foi mencionado, que colocou em lados opostos a dupla que trabalhava pela retomada da

cidade. A busca pelo sonho olímpico ganhou nova roupagem, trocava-se o enfrentamento da

complexidade pela viabilização dos Jogos a qualquer custo. Começa aqui a ser possível visualizar o

descolamento entre o discurso e a prática no urbanismo carioca.

A partir de então, tanto os Jogos Pan-Americanos de 2007, prenunciador dos Jogos

Olímpicos, quanto a candidatura Rio 2016, refletem estes novos rumos tendo ainda como principal

característica a forte influência dos planos dos anos 60 e dos princípios que os caracterizam, como

410

forma de simplificar os caminhos para a realização do evento. Encontra-se a legitimação útil, porém

desatualizada e desconectada das reais demandas da cidade metropolitana do século XXI.

***

Agora gostaria de mostrar algumas evidências desse descompasso entre o discurso e a prática

no caso do Rio de Janeiro.

Este é o filme produzido para a candidatura olímpica e apresentado ao mundo em 02 de

Outubro de 2009, durante a disputa entre as cidades candidatas a receber os Jogos Olímpicos de 2016

em Copenhaga4. Nele é possível observar a força do caráter da paisagem carioca que serviu de

principal referência para a construção da cidade até a década de 1960. Destaca-se claramente a venda

dessas referências da Cidade Maravilhosa, como forma de impulsionar os argumentos de que a cidade

era o lugar ideal para a maior festa do desporto mundial.

Deu certo! No entanto, comprou-se gato por lebre. Nos vídeos não há uma só imagem da

Barra da Tijuca onde realmente estão concentrados os Jogos, essa característica é transversal a todo o

material da candidatura enviada ao COI. Nele há raríssimas aparições da Barra, vinculadas aos

desenhos isolados dos equipamentos que lá estão situados. Também nos vídeos promocionais atuais,

pós-candidatura, a condição se repete.

O discurso é o de um evento que reforça as características daquela cidade que mais

fortemente resume o caráter do Rio, mas na prática a parcela mais significativa das atividades ligadas

aos Jogos se dá na Barra da Tijuca, expansão rica que na verdade, se contrapõe em sua origem àquela

cidade que o evento vende.

Nesse mesmo sentido de evidenciar o descompasso vamos ver dois pequenos trechos de

entrevistas do Prefeito Eduardo Paes para a BBC Brasil e para a Revista Veja5.

4 A integra do filme da “Candidatura Rio2016” pode ser encontrada no site do YouTube no link: https://youtu.be/Z00jjc-WtZI

5 Os trechos das entrevistas do Prefeito Eduardo Paes podem ser encontradas no site do YouTube nos links: (1) https://youtu.be/q1DYNVlxKnI (2) https://youtu.be/Hh-7UC7GmLw

411

Observadas as entrevistas do Prefeito, juntamente com a entrevista publicada pelo Jornal "O

Público" de Outubro de 2015, com o Presidente da Instituto Público "Rio Património da

Humanidade"6, tendo como contraponto a nota da Agência CAIXA de Notícias7, e o Jornal

Desportivo Lance!8, observa-se o descompasso quanto ao tema do reforço da centralidade da cidade

versus os investimentos na expansão.

As entrevistas indicam claramente um discurso voltado para a valorização da centralidade

histórica, o centro da cidade do Rio e da metrópole. Os argumentos são no sentido de construção de

uma narrativa que coloca na berlinda os investimentos públicos e privados na centralidade que seria

prioritária para o desenvolvimento da cidade.

No entanto, como é possível observar a partir de uma simples análise crítica, o que realmente

sucede é que nesta área tratamos de investimentos da Prefeitura na ordem de 28 milhões de Euros

(em valores aproximados do câmbio em Abril de 2016) de , que se imagina somada aos investimentos

privados através da PPP anunciada pelo Prefeito. PPP que se financiou através da venda de CEPACS

(Certificados de Potencial Adicional de Construção). No entanto, estas CEPACS foram compradas na

sua totalidade por um banco público: a CAIXA. Investimento de 900 milhões de Euros constituindo

6 A integra da entrevista do “Jornal O Público” pode ser encontrada no link: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/washington-fajardo-no-brasil-e-ainda-muito-forte-o-modo-modernista-de-pensar-a-cidade-1712158 7 A integra da notícia da “Agência Caixa” pode ser encontrada no link: http://www20.caixa.gov.br/Paginas/NaMidia/ Noticia.aspx?inmeID=330 8 A integra da notícia do Diário Desportivo “Lance!” pode ser encontrada no link: http://esportes.terra.com.br/lance/matriz-de-responsabilidades-e-atualizada-e-orcamento-da-rio-2016-bate-os-r-39-bilhoes,3185db5583844b9976582e501a97c20a0u3bn5aw.html

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um fundo de investimento imobiliário. Encontramos aqui um importante descompasso: o "Estado

Garantidor" VERSUS o discurso das PPPs e da não existência de investimentos públicos. Na prática

o que vemos é o Estado como garantidor e financiador das ações.

Além disso, quando nos deparamos com os valores globais dos investimentos para os Jogos

Olímpicos, tratamos de uma ordem de grandeza que já alcança mais ou menos 10 mil milhões de

Euros. E se seguirmos as proporções indicadas ainda na candidatura, teremos possivelmente, entre 70

e 80% desses investimentos aplicados na Barra da Tijuca. Mais que oito vezes os investimentos

indicados para a área central. É enorme a evidência do descolamento entre o discurso e a prática.

***

Parece-me oportuno mostrar um trecho de um vídeo promocional de um condomínio

fechado padrão Barra da Tijuca chamado Ilha Pura, onde supostamente ouvimos a Pedra da Gávea,

referência geográfica da outra cidade que não a Barra falando sobre as maravilhas de um novo

território que viu crescer.

A permanente venda dos condomínios fechados e da Barra como o futuro róseo da cidade do

Rio de Janeiro se dá até os dias de hoje e nos indica o descompasso. O vídeo quase perfeito, do

empreendimento que para o mercado imobiliário é chamado de Ilha Pura, o que já nos diz muita

coisa, deixa velado, quase que de forma envergonhada, o facto de que trata-se, na verdade, da Vila

Olímpica dos Jogos. Um empreendimento voltado para uma classe abastada sem nenhum tipo de

relação com a variada gama de deficit sociais da cidade.

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Aliás, o Engenheiro Carvalho Hosken, dono da empreiteira responsável, que cedeu seu

terreno e toda expertise de construção para a realização da Vila Olímpica afirma isso sem rodeios.

Chegando a declarar recentemente à BBC: "Como vai colocar pobre ali?"9

Obviamente foi grande a repercussão negativa dessa declaração. Curioso é a repercussão se dar num

dos poucos momentos em que o discurso se aproxima da prática. O Prefeito Eduardo Paes reagiu

rapidamente e repudiou a declaração10. Faço aqui uma breve inconfidência: Uma fonte próxima ao Prefeito

me contou que ele mandou um recado ao Engenheiro: "Diga a ele que ele constrói e deixa que eu falo..." O

que mais pode evidenciar tão fortemente o descolamento entre o discurso e a prática do que esta frase?

Apresento agora um outro trecho da entrevista do prefeito Edurado Paes que é também

reveladora em relação ao uso deliberado dos Jogos11, e das possibilidades do legado, como ferramenta

legitimadora que permite descolar o discurso da prática sem nenhum tipo de revisão crítica. A

entrevista escancara essa utilização dos Jogos como "nuvem de fumo" que legitima todas as ações e

sustenta o descompasso.

9 A integra da entrevista com o Engenheiro Carvalho Hosken pode ser encontrada no link: http://www.bbc.com/portuguese/ noticias/2015/08/150809_construtora_olimpiada_jp

10 A integra da entrevista com o Prefeito Eduardo Paes pode ser encontrada no link: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/ 2015/08/150815_entrevista_eduardo_paes_hb_jp

11 Os trecho das entrevista do Prefeito Eduardo Paes pode ser encontrada no site do YouTube no link: https://youtu.be/Hh-7UC7GmLw

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Um dos factos observáveis deste processo é o caso da construção da Arena do Futuro,

equipamento importante dos Jogos, que é uma espécie de símbolo recente da perspectiva de legado

para a cidade. O discurso é o de que o equipamento será desmontado e remontado como quatro

escolas municipais de 500 alunos. O que num primeiro momento parece um legado positivo, não se

sustenta perante a mais simples análise12.

O custo indicado para a desmontagem e remontagem indica que cada escola custará

aproximadamente 3 milhões de Euros o que equivale a 6,5 mil Euros por aluno.

Neste mesmo momento, a Prefeitura possui um programa de construção de escolas. Cada

unidade comporta quase mil alunos, o dobro daquelas do legado. Estas custam apenas 300 mil Euros

a mais, tendo um valor aproximado de 3,5 mil Euros por aluno13. Quase metade!

Essa reflexão, não está nos jornais, não se faz entre decisores, e timidamente acontece entre

técnicos. A "nuvem de fumo" do "legado olímpico" esconde estas contradições que podem

demonstrar que o que parece positivo pode tratar-se de um legado nefasto, insustentável, mas que no

entanto é comemorado por todos.

***

12 A integra da notícia do “G1” sobre o tema pode ser encontrada no link: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/arena-dos-jogos-olimpicos-vai-deixar-para-o-rio-como-legado-4-escolas.html

13 Dados da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Jornais O Dia e Estadão.

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Finalizando e procurando descolar um pouco do estudo de caso, concluo que trata-se da

questão de equilíbrio.

A fase do planeamento de grandes certezas que deixou como herança dos tempos de ouro do

planeamento, uma aura baseada na certeza de controlar a mudança, a antecipação do futuro e a

capacidade da técnica de regular o território e a sociedade, tudo isso segurado por um Estado social-

democrata garantidor, que intencionava reequilibrar o sistema e cumprir desígnios constitucionais,

como os direitos à habitação, à educação, saúde e etc.

E o fim dessa fase áurea do planeamento que se dá com uma transformação nos princípios

que os constitui, nomeadamente com a redução da influência e da ação do Estado e a instalação de

uma base de fundo liberal onde a possibilidade da parceria entre o público e o privado coloca-se

como solução para equilibrar os tais vícios privados e as virtudes públicas (lucro e equidade social).

Nesta conjuntura vem à tona a Estratégia e o Projeto Urbanos como meio e ferramenta de

adequação a esta nova condição. Estes passam a buscar novos meios de legitimação completamente

diferentes da racionalidade “fria” e neutra do pensamento técnico precedente. Dentro da variedade

(pouco variada) de modelos de referência como as Docklands, ou Barcelona, ou Bilbau, a ideia do

legado, das sinergias, catálises e contaminações positivas, passa a fazer o papel legitimador quase

mágico e que outrora pertenceu à razão e a técnica puras (como diria Kant).

No caso do Rio de Janeiro, mas não só, estas duas fórmulas contraditórias se misturam sob a

nuvem de fumo promovida pela possibilidade do mega evento, fomentada pela busca por seguir um

modelo barcelonês de sucesso. Mas a experiência de Barcelona se dá num contexto muito específico

quanto às condições do planeamento local e da organização do Estado. Ao contrário, na sociedade

muito polarizada do Rio e nas lacunas democráticas do sistema político e planeamento, a pura

transposição do modelo Barcelona seria, como se vê, muito problemática e discutível.

No entanto, o discurso das decisões mantém-se atrelado aquele modelo que se quer seguir a

todo custo, apoiado pela nuvem de fumo que permite evitar o confronto social e o enfrentamento da

complexidade da cidade.

O planeamento e o processo decisório passa a ter suas virtudes vinculadas a processos menos

claros, verdadeiramente opacos, refletindo uma sensação de que tudo se trata apenas de um retórica

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que esconde uma prática que, no fundo, privilegia grupos interessados em retorno financeiro ou

político e que despreza as reais demandas da cidade.

Este quadro de descompasso, conforme identificado na tese, suscita uma revisão urgente do

modo como organizar ao mesmo tempo o lado político e o lado técnico no processo de planeamento.

Um modo de adoção de compromissos transparentes quanto às prioridades políticas e sua aplicação

no território da cidade segundo as reais demandas estabelecidas.

Contando com as diferenças dos sistemas políticos e sócio-culturais, o desafio é o de

equilibrar novamente técnica e política, ou seja, pensar quais são as soluções técnicas para aquilo que

politicamente uma sociedade pensa que são os seus desígnios de futuro. Evitar-se-ia assim este

excesso de marketing que impõe decisões políticas e interesses instalados sob a capa da nuvem de

fumo dos slogans, da cidade sustentável, do futuro perfeito, etc., como se isso fosse o substituto da

importância e da legitimidade das soluções técnicas.

Urge desfazer o descompasso, o permanente estado de dissonância cognitiva (intencional ou

não) quanto ao modo de ver as coisas, de as entender, de desenhar estratégias, soluções e modos de

fazer. Urge passar a um estágio de "politização" no sentido de que o pensamento político se torna

constitutivo do mesmo pensamento do projeto e vice-versa.

Obrigado pela atenção de todos!

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ATADASPROVASPÚBLICASEM27/04/2016

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