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  • 8/14/2019 dostoievski_contos

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    Contos

    Dostoievski

    Os Mais Brilhantes Contos de Dostoiewski

    Traduo de Ruth Guimares. Edies de Ouro, 1970.

    O Subsolo

    I

    EU SOU um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradvel. Creioque tenho uma doena do fgado. Alis, no compreendo absolutamente nada da minha molstia eno sei mesmo exatamente onde est o mal.

    No me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os mdicos e a medicina. Demais, souextremamente supersticioso, o bastante, em todo o caso, para respeitar a medicina (sou bastanteinstrudo: poderia ento no ser supersticioso, mas sou). No! Se no me trato, pura maldade deminha parte. No sabereis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. No podereievidentemente explicar-vos em que errei, agindo to malvadamente: sei muito bem que no so osmdicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. No engano seno a mim mesmo; re-conheo-o melhor que ningum. Entretanto, mesmo por malvadez que no me trato. Sofro dofgado! Tanto melhor! E tanto melhor ainda se o mal piora.

    H muito tempo j que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Fui funcionrio,pedi demisso. Fui um funcionrio muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em s-lo. Podia bem mecompensar desta maneira, pois que eu no aceitava gorjetas (esta brincadeira no tem graa; masno a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria esprito; no a apagarei, entretanto, expressamente;

    porque vejo que queria me dar ares de importncia). Quando os solicitantes em busca deinformaes se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentiauma volpia indizvel, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quasesempre. Eram geralmente pessoas tmidas, acanhadas. Solicitantes, pois qu! Mas havia s vezes

    presumidos entre eles, petulantes, e eu detestava particularmente certo oficial. Ele no entendia desubmisso e arrastava o grande sabre, de um modo detestvel. Durante um ano e meio movi-lheguerra, por causa desse sabre, e finalmente sa vencedor: ele parou de teimar. Isto, alis, se passavano tempo da minha mocidade.

    Ora, sabeis, senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmentevil e estpida? que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha blis seesparramava mais violentamente, que eu no era mau homem, no fundo, no era nem mesmo umhomem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na

    boca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chvena de ch bem doce, e provvel que eume acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. verdade que, mais tarde, morderei os punhos de

    raiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.

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    Menti antes, quando disse que tinha sido um mau funcionrio. Foi por despeito que menti.Tentava muito simplesmente distrair-me com os solicitantes e esse oficial, e nunca pude conseguirtornar-me realmente mau. Com efeito, verificava sempre em mim a presena de um grande nmerode elementos diversos que se opunham violentamente. Sentia-os fervilharem em mim, por assimdizer. Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a manifestar-se do lado de fora, mas eu no

    os deixava; no, no lhes permitia evadirem-se. Atormentavam-me at vergonha, at s con-vulses. Oh! como eu estava fatigado! como estava saturado!

    Mas no vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peo perdo de no sei quecrime? Estou certo, senhores, que ides imaginar isso... Mas alis, digo-vos que, quer vs oimagineis ou no, isso me indiferente...

    Jamais consegui nada, nem mesmo me tomar malvado; no consegui ser belo, nem mau, nemcanalha, nem heri, nem mesmo um inseto. E agora, termino a existncia no meu cantinho, ondetento piedosamente me consolar, alis sem sucesso, dizendo-me que um homem inteligente noconsegue nunca se tornar alguma coisa, e que s o imbecil triunfa. Sim, meus senhores. o homem

    do sculo XIX tem o dever de ser essencialmente destitudo de carter; est moralmente obrigado aisso. O homem que possui carter, o homem. de ao, um ser essencialmente medocre. Tal aconvico de meus quarenta anos de existncia.

    Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, toda a vida, a profunda velhice. inconveniente, imoral, vil viver alm dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos?Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer-vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivemmais de quarenta anos. Eu o proclamarei face de todos os velhos, de todos os respeitveis velhos,de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu, o proclamarei face do universointeiro. Tenho o direito de falar ~ porque eu, eu viverei at os sessenta anos! at os setenta anos! atos oitenta anos! Mas esperai! Deixai-me tomar flego!

    Imaginais, certamente, senhores, que me proponho vos fazer rir? Enganais-vos a esse respeito,como sobre o resto. No sou de modo algum tio divertido como vos parece, ou quanto vos pode

    parecer. De resto, se agastados por tida essa tagarelice (estais irritados, sinto j), vs me perguntaiso que sou, afinal de contas, responderei: sou um assistente de colgio. Entrei na administrao para

    poder comer (mas unicamente para isso), e quando no ano ~o um dos meus parentes afastados melegou por testamento seis mil rublos, pedi depressa minha demisso e me enterrei no meu canto; alimorava j h muito tempo, mas instalei-me agora definitivamente. O quarto que ocupo nos confinsda cidade feio, e desmantelado. Minha criada uma velha camponesa que a burrice tornou

    malvada; alm disso, cheira mal. Dizem-me que o clima de Petersburgo me prejudicial, e que avida custa caro demais para os recursos nfimos de que disponho. Sei disso; sei bem melhor quetodos esses sbios conselheiros. Mas fico em Petersburgo. No deixarei Petersburgo porque.. . . Queeu parta ou no, alis, que importa!. ..

    Mas, do que um homem honesto pode falar com mais prazer?

    Resposta: de si mesmo.

    Pois bem! Vou ento falar de mim mesmo!

    II

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    Quero agora contar-vos, meus senhores, quer o desejeis ou no, por que eu no consegui nemmesmo me tornar um inseto. Declaro-vos solenemente: um grande nmero de vezes j tentei tor-nar-me um inseto; mas no fui julgado digno disso.

    Uma conscincia clarividente demais, asseguro-vos, senhores, uma doena, uma doenamuito real. Uma conscincia ordinria nos basta mais que amplamente em nossa vida cotidiana, isto, lima poro igual metade, a um quarto da conscincia outorgada ao homem culto do nossosculo XIX e que, para sua desgraa, habita Petersburgo, a mais abstrata, a mais "premeditada" dascidades que existem sobre a terra (pois h cidades premeditadas e outras que no o so). Ter-se-ia,

    por exemplo, amplamente ~O suficiente dessa poro de conscincia que possuem os homens ditossinceros, espontneos, assim como os homens de ao.

    Imaginais, aposto, que escrevo tudo isto por atitude, para zombar dos homens de ao, parame dar importncia, como esse arrastador de sabre de que falava h pouco, mas seria uma atitude demuito mau gosto. Quem pensaria ento, dizei-me, senhores, em se glorificar com suas doenas e

    fazer delas motivo de orgulho?

    Mas que digo eu! Todo o mundo age assim. precisamente de suas molstias que cada umtira glria e eu, provavelmente, ainda mais que os outros. No discutamos! Minha objeo estpida.

    Entretanto - estou firmemente convencido - a conscincia, toda conscincia umaenfermidade. Eu o sustento. Mas deixemos isto por agora. Respondei-me alisto: como era possvelque sempre, no instante mesmo - sim, como se fosse de propsito - precisamente no instante em queeu era o mais capaz de apreciar todas as nuanas do belo, do sublime, corno se dizia entre ns h

    pouco tempo, me acontecesse no somente pensar, mas fazer coisas tio incongruentes que... aes,para ser breve, que todos levam a cabo talvez bem, mas que eu praticava justamente quando tinhaperfeita conscincia de que era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas "belas esublimes" se tomavam claras minha conscincia, mais profundamente eu me afundava na minhalama, mais eu me sentia capaz de me enterrar definitivamente. Porm o que era particularmentenotvel, que esse desacordo no parecia uma coisa fortuita, dependendo das circunstncias, mas

    parecia vir por si e se produzir muito naturalmente. Dir-se-ia que era meu estado normal e de modonenhum uma doena ou um vcio; a tal ponto que, finalmente, perdi todo o desejo de lutar. Enfim,

    para concluir, admito quase (talvez o admita completamente) que tal era com efeito o estado normaldo meu esprito. Mas, antes, no comeo, quantos sofrimentos suportei pacientemente nessa luta!

    No acreditava que outros pudessem estar no mesmo caso, e durante toda a minha vida escondi esta

    particularidade como um segredo. Eu tinha vergonha (pode ser que tenha vergonha ainda hoje). Istoia tio longe que me acontecia gozar uma espcie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa,no meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e feias, e repetindo-me que tinha aindacometido uma vilania, nesse dia, e que era impossvel reaparecer l em cima. E inquietava-me entointeriormente. Eu me atormentava, despedaava-me, bebia longamente a minha amargura,fartava-me tanto, que finalmente sentia uma espcie de fraqueza vergonhosa, maldita, onde gozavauma volpia real. Sim, uma volpia! Uma volpia! Insisto nisso. Comecei a falar disto,

    precisamente porque eu quero saber com justeza se os outros conhecem tais volpias.

    Explicar-vos-ei: a volpia, neste caso, provinha de que eu me inteirava demais da minhahumilhao; ela unia-se sensao de ter atingido um ltimo limite: tua situao abominvel, mas

    no pode ser outra; no te resta nenhuma salda; nunca poders mudar, porque, mesmo que tivesseso tempo e a f necessrios, tu mesmo no quererias tomar-te um homem diferente; e, alis, ainda

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    que quisesses mudar, serias incapaz: com efeito, mudar em qu? -No h talvez nada alm disso!

    Mas o essencial - e isto o fim dos fins - que tudo se cumpre conforme as leis fundamentaise normais da conscincia requintada e dela flui diretamente, embora seja completamente impossvelno somente mudar, mas em geral, reagir, de um modo qualquer. A conscincia requintada nos diz,

    por exemplo: "sim, tens razo, tu s um canalha"; mas o fato de eu poder verificar a minha prpriacanalhice, no me consola de jeito nenhum de ser um canalha. Mas isto chega!... Quantas palavras,meu Deus. Mas que explicaste? De onde provm essa volpia? Procuro explicar-me entretanto. Ireiat o fim. Foi para isto que tornei a pena...

    Assim, por exemplo, tenho um amor-prprio terrvel; sou to desconfiado e suscetvel comoum corcunda, ou um ano. Mas, verdadeiramente, houve minutos da minha existncia em que, seme tivessem dado uma bofetada, eu teria sido muito feliz, talvez. Falo seriamente: teria podidocertamente encontrar a algum prazer, o prazer do desespero, evidentemente; o desespero queencobre as volpias mais ardentes, sobretudo quando a situao parece realmente sem sada. Ora, a,no caso da bofetada, quanto aniquilamento esta sensao de ter sido esmagado assim!

    Mas o principal que sempre acontece que sou eu o culpado, de qualquer lado que seexaminem as coisas, e, o que mais, culpado sem afinal o ser, ou dito por outra forma: de conformi-dade com as leis da natureza. Sou culpado, em primeiro lugar porque sou mais inteligente do quetodos aqueles que me rodeiam (julguei-me sempre mais inteligente do que aqueles que me cercam,e acontece-me at - imaginai! - sentir-me confuso com a minha superioridade, de tal modo quedurante a minha vida tenho olhado as pessoas de esguelha, por assim dizer, e nunca pude encar-las

    bem de frente). Sou culpado, alm disso, porque mesmo que eu tivesse tido um sentimento qualquerde generosidade, a conscincia de sua inutilidade no teria servido seno para me atormentar aindamais. Eu no teria podido certamente tirar nada da: no teria podido perdoar, pois o ofensor teriame atacado conforme as leis da natureza, as quais no fazem caso do nosso perdo; mas impossvel,

    por outro lado, esquecer, pois o insulto, por mais natural que seja, nem por isso permanece menos.Enfim, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e quisesse, ao contrrio, vingar-me do ofensor,no poderia faz-lo, porque me era impossvel decidir-me a agir, mesmo que tivesse esse direito.

    E afinal, por qu? a esse respeito que eu queria dizer-vos algumas palavras.

    III

    Como as coisas se passam entre aqueles que so capazes de se vingarem e, em geral, de se

    defenderem?Quando o desejo de vingana se apodera de seu esprito, no h lugar neles seno para esse

    desejo. Precipitam-se para a frente sem se desviarem, cornos abaixados, como touros furiosos, e nose detm na carreira seno quando se encontram diante de um muro. A propsito, diante de ummuro, esses senhores, isto , as pessoas simples e espontneas, os homens de ao, se apagam ecedem com toda a sinceridade. Para eles esse muro no de maneira alguma o que para nsoutros, os que pensamos, e, por conseqncia, no agimos: quer dizer, uma escusa; no de modoalgum, a seus olhos, um pretexto cmodo para arrepiar caminho, pretexto no qual ns outros no

    VII

    Mas no so seno sonhos de ouro!

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    Oh! dizei-me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homemno comete vilanias seno porque no se apercebe de seus prprios interesses, e que se fosse escla-recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais,cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois,esclarecido pela cincia e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua

    prpria vantagem? Como est entendido que ningum pode agir conscientemente contra seu prpriointeresse, o homem seria ento por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh!criana! criana pura e ingnua!

    Mas dar-se- que o homem, no curso desses milhares de anos, no agiu seno segundo o seuinteresse? Que faremos ento desses milhes de fatos que atestam que os homens, tendo embora

    perfeita conscincia do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminhototalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? No so, entretanto, forados a isso; mas pareceque querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traar livremente,caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecvel, obscura. que essaliberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus prprios interesses ... O interesse! Que o

    interesse? Vs vos empenhais em me definir com toda a exatido em que consiste o interesse dohomem? Que direis vs se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos

    pode ou mesmo deve consistir em desejar, no uma vantagem, mas um mal? Se assim, se essecaso se pode apresentar, ento tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?

    Vs rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses humanos esto enumerados comexatido? Ser que no existem alguns que no entram em nenhuma das vossas classificaes e no

    podem a encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, organizastes vosso registro dosinteresses humanos de acordo com as cifras mdias das estatsticas e das frmulaseconmico-cientficas. Os interesses humanos so, pois, segundo vs, a riqueza, a tranqilidade, aliberdade, e assim por diante; de maneira que, o homem que repelisse consciente e ostensivamente ovosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinio, e, alis, tambm na minha, como umobscurantista, um louco? No assim? Mas eis o que bem estranho: como possvel que todosesses estatsticos, esses sbios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento,nos seus clculos de interesses humanos? Eles no querem mesmo lev-los em conta nas suasfrmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa no seria difcil, entretanto; por que nocompletar a lista e introduzir-lhe o elemento em questo ?... Mas a dificuldade provm de que esseelemento to particular no pode encontrar lugar em nenhuma classificao e no pode se inscreverem nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo... Mas fico pensando nisso! Vs oconheceis tambm; ele o amigo de todo o mundo.

    Quando se prepara para agir, esse senhor comea por explicar-vos muito claramente, combelas e grandes frases, como lhe preciso agir para se conformar razo e verdade. poucodizer: ele discutir com paixo, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade;escarnecer cegamente dos tolos que no compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem overdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, semrazo nenhuma, sob um impulso interior mais poderoso que todas as consideraes do interesse, elefar uma coisa ridcula, uma tolice qualquer, e agir ento contra todos os preceitos que tinhacitado, contra a razo, contra os seus interesses, contra tudo...

    Previno-vos, de resto, que meu amigo uma personalidade coletiva e que difcil, porconseqncia, conden-lo sozinho. precisamente a isto que quero chegar, senhores! No h uma

    coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Poroutras palavras (para no violar a lgica): no existe para ns um interesse (aquele que se deixa de

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    lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, maisprecioso que todos eles, e pelo qual o homem est pronto, se for preciso, a agir contra todas asregras, isto , contra a razo, sacrificando-lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas

    belas e vantajosas, em uma palavra, nada seno para atingir uma coisa nica que lhe mais cara quetodas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?

    - Sim, - direis, - mas ainda de interesse que se trata... - Permiti! Vamos nos explicar; no com jogos de palavras que se pode esclarecer a questo. O que faz a singularidade dessa coisa,desse interesse, que ele destri todas as nossas classificaes e altera todos os sistemas edificados

    pelos amigos do gnero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, um embarao, umobstculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmoento com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa enobre no seu esforo para atingir os ditos interesses, declaro que tudo isso no passa de logstica.Sim, pura logstica! Crer que a renovao do gnero humano possa -realizar-se fazendo-lheconhecer seus verdadeiros interesses, eqivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que a

    civilizao suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinrio, menos guerreiro. Bucklechegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixo pelos sistemas,

    pelas dedues abstratas, que est pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar osolhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lgica.

    Tomo este exemplo porque convincente. Olhai pois em torno de vs! O sangue corre emborbotes, alegremente mesmo, como champanha. Vde nosso sculo XIX, no qual viveu Buckle!Vede Napoleo, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a Amrica do Norte e sua unio, estabelecida

    para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig-Holstein. Ento em que que a civilizaonos adoa? A civilizao no faz mais que desenvolver em ns a diversidade das sensaes... nadamais. E graas ao desenvolvimento dessa diversidade, muito possvel que o homem acabe pordescobrir uma certa volpia no sangue. Isto alis j aconteceu.

    Notastes j que os sanguinrios mais refinados foram sempre senhores muito civilizados,junto dos quais todos esses tila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Seesses senhores se fazem notar menos, que se encontram mais freqentemente e estamoshabituados com isso. Mas se a civilizao no tornou o homem mais sanguinrio, tornou-o semdvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinrio. Antigamente, o homem consideravaque tinha o direito de derramar sangue, e era com a conscincia bem tranqila que destrua o que

    bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efuso de sangue uma ao condenvel, nem por issodeixamos de matar, e mais freqentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vs mesmos.

    Diz-se que Clepatra (desculpai este exemplo tirado da Histria Romana) divertia-se em espetaragulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contores.Dir-me-eis que isso se passava numa poca relativamente brbara, que nosso sculo brbarotambm, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido umacompreenso mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, no pde ainda se habituar seguir as normas da razo e da cincia. Mas estais certos, no obstante, que ele se habituar quandose desfizer completamente de certas tendncias ruins, e quando o senso comum e a cincia tiveremcompletamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal,Estais certos de qu ento o homem deixar de se enganar deliberadamente e se ver por assimdizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.

    Mas h mais ainda: ento, dizeis, a cincia ensinar ao homem (mas na minha opinio, isto j um luxo suprfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que no passa, em suma, de uma

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    tecla de piano, de um pedal de rgo; o que realiza, por conseguinte, realiza-o, no segundo suavontade, mas conforme s leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem ento no

    poder mais ser considerado responsvel por suas aes, e a vida se lhe tornar extremamente fcil.Todas as aes humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo comessas leis, como se faz para os logaritmos, at q centsimo milsimo, e sero inscritas nas

    efemrides, ou far-se-o livros estimveis no gnero dos nossos dicionrios enciclopdicos, ondetudo ficar to bem calculado e previsto, que no haver mais aventuras, nem mesmo mais aes.

    Ento, e sois vs quem continua a falar, ver-se- estabelecerem-se novas relaes econmicas,que sero, por sua vez, fixadas com preciso matemtica, que todas as dvidas desaparecero logo,

    pela simples razo de que se tero descoberto todas as solues. Ento se edificar um vasto palciode cristal. Ento veremos o Pssaro de Fogo, ento... No se pode certamente garantir (sou eu quefalo agora) que no ser terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo est calculado efixado de antemo?); em compensao, sero todos muito sbios. Evidentemente o tdio pode sermau conselheiro: o tdio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne... Mas isto no nadaainda. O que mais grave (sou eu quem continua a falar) que talvez nos acharemos ento muito

    felizes de ter mo agulhas de ouro: o homem bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, no to bruto quanto ingrato, e difcil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu no ficaria poisadmirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de sbito um cavalheiro despojado deelegncia, com o rosto "retrgrado" e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mos na cintura:"Pois bem, senhores! Se jogssemos por terra, de um s pontap, toda essa felicidade tranqila,nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomear a viver segundo a nossa tolafantasia?" Isso no seria ainda nada; mas o mais terrvel que esse personagem encontrariacertamente discpulos. O homem feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa nfima que se

    poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre eem todas s situaes, a agir segundo sua vontade e no de acordo com as prescries da razo e dointeresse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idia me pertence, como

    propriedade particular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbtrio, meucapricho, por estapafrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada at a demncia, eis precisamente acoisa que se pe de lado, o interesse mais precioso que no pode encontrar lugar em nenhuma devossas classificaes, e que quebra em mil pedaos todos os sistemas, todas as teorias.

    Onde, pois, aprenderam os nossos sbios que o homem tem necessidade de no sei quevontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspiraes aps uma certavontade racional e til? O homem no aspira seno depois de uma vontade independente, qualquerque seja o preo e sejam quais forem os resultados. Mas s o diabo sabe o que essa vontade vale...

    acreditamos geralmente, mas do qual nos aproveitamos com alegria. No, eles, eles cedem detodo o corao. O muro a seus olhos um apaziguamento; oferece-lhes uma soluo moral,definitiva, direi talvez mesmo mstica. Mas tomaremos a falar ainda desse muro.

    Pois bem, precisamente esse homem simples e espontneo que considero como o homemnormal por excelncia, no qual pensava nossa terna me Natureza quando nos fazia amavelmentenascer sobre a terra. Invejo esse homem. No nego: ele estpido. Mas que sabeis a esse respeito? possvel que o homem normal deva ser burro. E possvel mesmo que isto seja muito belo. E estasuposio me parece tanto mais justificada quanto, se tomarmos a anttese do homem normal, isto ,o homem com a conscincia refinada, o homem sado no do seio da natureza, mas de umalambique ( quase misticismo, senhores; mas estou inclinado tambm a essa suspeita), v-se que

    esse homem alambicado se apaga por vezes a tal ponto diante da sua anttese e lhe cede, que,malgrado todo o refinamento da sua conscincia, acontece-lhe no mais se considerar seno to

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    pequeno como um rato. Ser talvez um rato extremamente clarividente, mas nem por isso menosum rato, e no um homem, enquanto que o outro bem um homem; em conseqncia..., etc., etc.Mas o pior que ele se considera a si mesmo como um ratinho, ele mesmo! Ningum, com efeito,exige dele essa confisso. E isto muito importante.

    Vejamos ento um pouco esse ratinho em ao. Ele tambm foi ofendido, por exemplo (Se sesente quase continuamente ofendido), e pretende se vingar. possvel que acumule em si mais raivaainda que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezvel e mesquinho de pagar ao seuofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem danatureza e da verdade, porque este, em sua rudeza natural, considera sua vingana como urna ao

    perfeitamente justa, enquanto que o ratinho no lhe pode admitir a justia, por causa de suaconscincia mais clarividente. Mas eis-nos enfim chegados ao ato mesmo, vingana. Emacrscimo vilania inicial, o desgraado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma dedvidas e hesitaes, tantas outras vilanias, primeira indagao ajuntou tantas outras,completamente insolveis, que, por mais que faa, criou em torno de si um atoleiro fatal, umlodaal fedorento, um charco de lama, formado de suas hesitaes, de suas suspeitas, de sua

    agitao, de todos os escarros que fazem chover sobre ele os homens de ao que o cercam, ojulgam, o aconselham e dele riem a bandeiras despregadas.

    No lhe resta ento mais nada a fazer, evidentemente, que abandonar tudo, simulandodesprezo, e desaparecer vergonhosamente no seu buraco. E l, num sujo e lamacento subterrneo,nosso ratinho, insultado, batido e escarnecido, lentamente mergulha na sua raiva fria, envenenada esobretudo inesgotvel. Durante quarenta anos le se lembrar do insulto sofrido, em todos os seus

    pormenores mais vergonhosos, e acrescentando-lhe de cada vez outros mais vergonhosos ainda,excitando-se malvadamente, atiando-lhe a imaginao. Ele prprio ter vergonha, mas evocartodas as mincias, passar em revista uma a uma todas as circunstncias, inventar mesmo outras,sob o pretexto de que elas teriam podido acontecer, e no perdoar nada.

    Talvez mesmo tente se vingar, mas em segredo, em pequenas doses, incgnito, sem nenhumaconfiana nem em seu direito nem no sucesso da sua vingana, e sabendo muito bem que suas tenta-tivas de vingana o faro sofrer muito mais a ele mesmo do que quele contra o qual so dirigidas, eque nem sequer provavelmente as notar. No seu leito de morte, ele se recordar de novo e areunir os proveitos acumulados, e ento... Mas precisamente essa mistura abominvel e gelada dedesespero e de esperana, precisamente esse sepultamento voluntrio, e esta existncia deemparedado vivo, esta ausncia, claramente percebida, mas sempre duvidosa, de toda soluo, esse vnculo de desejos insatisfeitos e enfurnados, de decises febris tomadas para a eternidade masimediatamente seguidas de remorsos, isso precisamente o que segrega esta volpia estranha de

    que falava antes. Ela to sutil, s vezes, escapa a tal ponto conscincia, que as pessoas um tantomedocres - ou mesmo aqueles que tm simplesmente os nervos slidos - nada percebem."Tampouco compreendero, ajuntareis talvez zombeteiramente, aqueles que nunca foramestapeados." E vs me fareis polidamente entender assim que recebi uma bofetada e que falo comconhecimento de causa. Aposto que o pensastes. Mas tranqilizai-vos, senhores, no fuiesbofeteado, e de resto, o que possais pensar a esse respeito me completamente indiferente. Talvezseja eu quem lamente ter distribudo pouqussimos bofetes em minha existncia. Mas basta! nemmais uma palavra sobre esse assunto, por mais interessante que seja para vs!

    Continuo ento tranqilamente a respeito das pessoas de nervos slidos que no saboreiamcertas volpias sutis. Se bem que esses senhores dem mugidos como touros em certos casos, se

    bem que isso seja muito honroso para eles, entretanto, como eu disse, diante do impossvel elescedem, apagam-se. Impossibilidade! portanto, muralha de pedra. Mas que muralha essa? So as

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    leis naturais evidentemente, os resultados das cincias exatas, as matemticas. Se vos demonstram,por exemplo, que descendeis do macaco, intil fazer cara feia! deveis aceit-lo. Se vos provam queuma s gota de vossa prpria gordura vos deve ser mais cara que cem mil dos vossos semelhantes, eque por isso que desabrocham todas as virtudes, todas as obrigaes e outras fantasias e

    preconceitos, no h nada a fazer, deveis aceit-lo, porque duas vezes dois so quatro; da fora das

    matemticas. Tentai um pouco discutir!

    "Perdo! exclamaro, vs no podeis protestar: duas vezes dois so quatro. A natureza no seimporta com as vossas pretenses; ela no se preocupa com os vossos desejos e se suas leis no vosconvm, pouco se lhe d. Sois obrigado a aceit-la tal como , assim como todas as conseqncias.Um muro um muro...", etc., etc. Mas que me importam, meu Deus! as leis da natureza e aaritmtica, se, por uma razo ou por outra, essas leis e este "duas vezes dois quatro" no meagradam? No poderei evidentemente quebrar esse muro com a cabea, se minhas foras no sosuficientes; mas recuso-me a me humilhar diante desse obstculo, pela nica razo de que ummuro de pedra e que minhas foras so insuficientes!

    Como se esse muro pudesse me trazer um apaziguamento qualquer, como se algum sepudesse reconciliar com o impossvel pela nica razo de ter sido estabelecido "dois e dois seremquatro". Oh! o mais absurdo de todos os absurdos!

    Quanto mais penoso compreender tudo, tomar conscincia de todas as impossibilidades, detodos os muros de pedra; porm no se humilhar diante de nenhuma dessas impossibilidades, diantede nenhuma dessas muralhas se isso te repugna, chegar, seguindo as dedues lgicas maisinelutveis, s concluses mais desesperadoras, no tocante a esse tema eterno de tua parte deresponsabilidade nessa muralha de pedra, se bem que esteja claro at a evidncia que tu no estsaqui para nada, e em conseqncia, mergulhares silenciosamente, mas rangendo deliciosamente osdentes, na tua inrcia, pensando que no podes mesmo te revoltar contra seja o que for, porque noh ningum em suma, porque isto no ~ uma farsa, seno urna falcatrua, porque uma trapalhada,no se sabe o qu nem se sabe quem, porm que, malgrado todas estas velhacadas, malgrado estaignorncia, tu sofres, e tanto mais quanto menos compreendes.

    IV

    "Ah! Ah! Ah! Se assim, voc chegar a descobrir uma certa volpia at na dor de dentes!",exclamais vs, rindo.

    - Mas, sim, responderei; h uma volpia na dor de dentes: tive dor de dentes um ms inteiro;sei o que digo. No se sofre em silncio, neste caso; geme-se. Mas a esses gemidos falta franqueza;

    h neles certa malignidade, e tudo est ali, precisamente. Esses gemidos exprimem a volpiadaquele que sofre; se a doena no lhe trouxesse um certo prazer, ele cessaria de se 'queixar. umexemplo excelente, senhores, e vou desenvolv-lo.

    Esses gemidos exprimem, primeiramente; a conscincia to humilhante da perfeita inutilidadede vosso sofrimento, sua legalidade do ponto de vista da natureza, sobre a qual escarrais, evidente-mente, mas que vos faz sofrer, permanecendo perfeitamente impassvel. Significam tambm - quevs compreendeis que o inimigo no existe, mas que a dor est l, mesmo assim, e que, com todosos vossos Wagenheim, sois o escravo de vossos dentes: quando calhar, vossos dentes cessaro dedoer; mas se foi decidido de outra maneira, eles vos faro ainda sofrer durante trs meses. E, se vsrecusais a vos submeter e protestais apesar de tudo, no vos resta outro meio de vos consolardes

    seno o de vos esbofeteardes e de quebrardes os punhos contra a parede. Pois bem! so preci-samente essas ofensas sangrentas, essas chalaas, que se permite no se sabe quem, so elas que

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    suscitam esta sensao de prazer, a qual atinge por vezes a suprema volpia.

    Eu vos suplico, senhores, prestai ateno uma vez aos gemidos de um homem culto do sculoXIX que sofre dos dentes h dois ou trs dias, quando ele se pe a gemer de modo diferente do

    primeiro dia, isto , no unicamente porque tem uma dor, no como um grosseiro campons, mas

    como um ser instrudo que se ps em contato com a civilizao europia, como um homem "des-ligado do solo natal e dos princpios nacionais", como se diz hoje em dia. Seus gemidos se fazemmaus, raivosos e no cessam mais, nem de dia nem de noite. Ele prprio sente muito bem,entretanto, que no lhe so de nenhuma utilidade. Melhor que ningum, sabe que irrita os que orodeiam e os tortura, e se tortura a si mesmo, sem proveito nenhum. Sabe que o pblico e a famlia,diante da qual se debate, no experimentam mais que desgosto com suas queixas, no maisacreditam nelas, e compreendem que poderia gemer de outra maneira, mais simplesmente, semtodos esses trinados, sem todas essas atitudes, e que ele exagera por malcia e por malvadez... Pois

    bem! a est! 9 justamente nessa humilhao claramente vista que jaz a volpia. "Ah! eu vosdesoriento, dilacero-vos o corao, impeo de dormir toda a casa! Pois bem! Tanto melhor! Nodurmais ento! Convencei-vos de que tenho dor de dentes! No sou mais para vs esse heri que

    pretendia ser; no passo de um pobre poltro, de um patife! Tanto melhor! Estou feliz, mesmo queme tenhais adivinhado enfim! Meus miserveis gemidos vos so penosos de ouvir? Tanto pior! Euvos lanarei numa roda-viva mais bela ainda!. . .

    Continuais a no compreender, senhores? - Sim, para poder apanhar todas as nuanas dessavolpia sensual, preciso que vossa conscincia atinja uma grande profundidade. Rides? Sou muitofeliz. Minhas brincadeiras, senhores, so de muito mau gosto, certamente; so embrulhadas e soamfalso. Tudo isto provm de que eu no me respeito: mas aquele que se conhece pode se estimar, por

    pouco que seja?V

    possvel verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou adescobrir uma certa volpia. na conscincia da sua prpria humilhao? Isto que digo no e modoalgum ditado por inspido remorso. E em geral, detesto dizer: -Perdoe-me, papai, no o farei nuncamais!" No porque seja incapaz de pronunciar estas palavras, mas talvez muito ao contrrio, porquesou capaz demais!

    E como um fato expresso, eu me precipitava para a frente precisamente quando no estavaabsolutamente para nada no negcio. Era o que havia de mais repugnante. E com isto eu meenternecia, confessava-me, chorava e, por fim, naturalmente, enganava-me a mim mesmo, nodissimulando, entretanto: era meu corao quem me pregava estas partidas de mau gosto.

    Neste caso nem sequer nos podamos queixar das leis da natureza, embora essas leis metivessem feito sofrer numerosos vexames no curso da minha existncia. penoso recordar tudo isto,e, de resto, naquele momento era muito penoso tambm. Com efeito, um minuto mais, econveno-me raivosamente de que tudo isto no seno mentira, mentira ignbil, infame comdia -esta contrio, este enternecimento, estes juramentos de vida nova! Vs me perguntareis porque metorturava, porque me deslocava assim? Resposta: porque me aborrecia demais permanecer de

    braos cruzados; eis a porque me entreguei a essas contores. Era assim, asseguro. Observai bem,senhores, e verificareis ento que as coisas se passam precisamente assim. Eu imaginava aventurase criava para mim uma existncia fantstica para viver de um modo ou de outro. Quantas vezes, porexemplo, cheguei a me ofender, por motivos absurdos, de propsito: sabes bem, tu mesmo, que no

    h por que se zangar, e que te excitas a frio, mas te aqueces a tal ponto que chegas finalmente a teencolerizar sinceramente.

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    Tive sempre o gosto por estas histrias. Tanto e to bem que finalmente perdi todo podersobre mim mesmo. Uma vez, duas vezes mesmo, quis me forar a me apaixonar. Sofri mesmo, se-nhores, garanto. No se acredita nesse sofrimento, no fundo da alma, ri-se dele, quase, mas sofre-severdadeiramente, de maneira muito real; fica-se com cime, fora de si ... E a causa de tudo isto, o

    tdio, meus senhores; a inrcia nos esmaga. O fruto legtimo, o fruto natural da conscincia comefeito a inrcia: cruzam-se os braos com conhecimento de causa. j falei disso. Digo e repito cominsistncia: todos os homens simples e sinceros, todos os homens ativos, so ativos justamente

    porque so obtusos e medocres.

    Como explicar isto? Eis aqui: por causa de sua estreiteza de esprito, eles tomam as causassecundrias, imediatas, pelas causas primeiras; e bem mais facilmente, bem mais rapidamente queos outros, imaginam ter encontrado razes slidas, fundamentais, para sua atividade. Ento eles setranqilizam; ora, isto o principal. Para poder agir, com efeito, preciso previamente atingir uma

    perfeita tranqilidade e no mais conservar nenhuma dvida. Mas como alcanar essa tranqilidadede esprito? Onde poderia eu encontrar os princpios fundamentais sobre os quais possa construir?

    Onde est minha base? onde iria procur-la?

    Excito-me pensando. Por outras palavras, toda a causa em mim arrasta imediatamente umaoutra aps ela, ainda mais profunda, mais fundamental, e assim em seguida, at o infinito. Tal aessncia de todo o pensamento, de toda a conscincia. Encontramo-nos ento diante das leis danatureza. E o resultado? sempre o mesmo, lembrai-vos! Falei-vos antes em vingana (certamenteno penetrastes muito bem a coisa). Diz-se: o homem se vinga porque considera que isso justo.Encontra ento o princpio fundamental que procurava: a justia. Sente-se ento completamenteapaziguado e vinga-se com toda a tranqilidade e com pleno sucesso, estando persuadido quecumpre uma ao justa e honesta. Ora, quanto a mim, eu no vejo nisso nada de justo nem de bom;e, se, por conseguinte, tento me vingar, pura malvadez da minha parte. A raiva poderiaevidentemente vencer todas as hesitaes e seria ento capaz de desempenhar com sucesso o papeldessa razo fundamental, precisamente porque ela no pode ser considerada como tal. Mas quefazer, se no sou suficientemente malvado? (Indiquei-o desde o comeo.)

    Minha raiva submetida a uma espcie de decomposio qumica, em virtude justamentedessas mesmas malditas leis da conscincia. Mal distingui o objeto do meu dio, ei-lo que se desva-nece, os motivos se dissipam, o responsvel desapareceu, o insulto no mais insulto, mas umgolpe do destino, alguma coisa como uma dor de dentes, de que ningum culpado. E no me restamais ento outro consolo que quebrar meus punhos contra a parede. Na impossibilidade deencontrar as causas primeiras, renuncio ento minha vingana com um desdm afetado. Ah! se a

    gente tentasse abandonar-se a seu sentimento, cegamente, sem reflexo alguma, sem procurarnenhuma razo, afastando para bem longe de si toda a conscincia, nem que fosse por algum tempoSeria ento uma coisa muito diferente! Maldize ou adora, mas no permaneas de braos cruzados.A partir do depois de amanh - ltimo adiamento - tu te desprezars de ter conscientemente teenganado a ti mesmo. Resultado final: bolha de sabo, inrcia.

    Ah! senhores! possvel que eu me considere extremamente inteligente pela nica razo deque, em toda a minha vida, nunca pude comear nem acabar fosse o que fosse. No passo pois deum tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como ns todos. Mas que fazer,senhores, se o destino de todo homem inteligente tagarelar, isto , derramar gua numa peneira!VI

    Oh! se eu no tivesse passado de um preguioso! como eu me teria respeitado a mim mesmo!

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    Ter-me-ia respeitado precisamente porque me teria visto capaz ao menos de preguia, porque teria possudo ento ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: Quem s?Resposta: um preguioso! Teria sido verdadeiramente muito agradvel ouvir chamar-se assim. Tuests ento definido de maneira positiva; h alguma coisa ento a dizer da tua pessoa. .. "Um

    preguioso!" - um ttulo, uma funo, uma carreira, meus senhores! No riais disto; assim.

    Teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meutempo a me respeitar. Conheci um sujeito cujo orgulho era ser entendido em Laffitte. Consideravaessa qualidade como uma virtude muito preciosa e no duvidou jamais dele. Morreu com aconscincia no somente tranqila, mas triunfante mesmo, e teve razo. Eu teria nesse casoescolhido uma carreira: teria sido um preguioso e um gluto; no um guloso vulgar, mas umgozador, interessando-se por "tudo que belo e sublime". Que pensais? H muito tempo sonho isso."O belo e o sublime" pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desdeque tenho quarenta anos! Mas antes? teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma formade atividade adaptada ao meu carter: por exemplo, beber sade de todas as coisas "belas esublimes". Teria agarrado cada ocasio de beber glria "do belo e do sublime", depois de ter,

    previamente, deixado cair uma lgrima na minha taa. Eu teria ento tornado todas as coisas "belas

    e sublimes"; teria descoberto "o belo e o sublime", at nas torpezas mais incontestveis; teriaderramado prantos tio abundantes, como aqueles que deixa escapar uma esponja. Um pintor, porexemplo, comps um quadro digno de Gh, logo eu bebo sade desse pintor, porque amo tudo que "belo e sublime". Um poeta escreveu Como Agradar a Cada Um , e eu bebo depressa sade decada um, - porque amo "o belo e o sublime". Isto me valer o respeito geral; exigirei esse respeito;

    perseguirei com a minha clera aquele que mo recusar. Vivo pacificamente, morro solenemente.No admirvel? No esquisito? Teria deixado crescer um ventre to opulento, teria erguido parao alto um nariz to gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo to vasto, que todos ao meverem teriam exclamado: "Eis a um ser bem real, um ser positivo!" Como quiserdes, mas bemagradvel ouvir dizer tais coisas a seu respeito em nosso sculo, to essencialmente negativo.

    VII

    Mas no so seno sonhos de ouro!

    Oh! dizei-me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homemno comete vilanias seno porque no se apercebe de seus prprios interesses, e que se fosse escla-recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais,cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois,esclarecido pela cincia e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua

    prpria vantagem? Como est entendido que ningum pode agir conscientemente contra seu prprio

    interesse, o homem seria ento por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh!criana! criana pura e ingnua!

    Mas dar-se- que o homem, no curso desses milhares de anos, no agiu seno segundo o seuinteresse? Que faremos ento desses milhes de fatos que atestam que os homens, tendo embora

    perfeita conscincia do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminhototalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? No so, entretanto, forados a isso; mas pareceque querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traar livremente,caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecvel, obscura. que essaliberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus prprios interesses ... O interesse! Que ointeresse? Vs vos empenhais em me definir com toda a exatido em que consiste o interesse do

    homem? Que direis vs se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casospode ou mesmo deve consistir em desejar, no uma vantagem, mas um mal? Se assim, se esse

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    caso se pode apresentar, ento tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?

    Vs rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses humanos esto enumerados comexatido? Ser que no existem alguns que no entram em nenhuma das vossas classificaes e no

    podem a encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, organizastes vosso registro dos

    interesses humanos de acordo com as cifras mdias das estatsticas e das frmulaseconmico-cientficas. Os interesses humanos so, pois, segundo vs, a riqueza, a tranqilidade, aliberdade, e assim por diante; de maneira que, o homem que repelisse consciente e ostensivamente ovosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinio, e, alis, tambm na minha, como umobscurantista, um louco? No assim? Mas eis o que bem estranho: como possvel que todosesses estatsticos, esses sbios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento,nos seus clculos de interesses humanos? Eles no querem mesmo lev-los em conta nas suasfrmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa no seria difcil, entretanto; por que nocompletar a lista e introduzir-lhe o elemento em questo ?... Mas a dificuldade provm de que esseelemento to particular no pode encontrar lugar em nenhuma classificao e no pode se inscreverem nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo... Mas fico pensando nisso! Vs o

    conheceis tambm; ele o amigo de todo o mundo.

    Quando se prepara para agir, esse senhor comea por explicar-vos muito claramente, combelas e grandes frases, como lhe preciso agir para se conformar razo e verdade. poucodizer: ele discutir com paixo, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade;escarnecer cegamente dos tolos que no compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem overdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, semrazo nenhuma, sob um impulso interior mais poderoso que todas as consideraes do interesse, elefar uma coisa ridcula, uma tolice qualquer, e agir ento contra todos os preceitos que tinhacitado, contra a razo, contra os seus interesses, contra tudo...

    Previno-vos, de resto, que meu amigo uma personalidade coletiva e que difcil, porconseqncia, conden-lo sozinho. precisamente a isto que quero chegar, senhores! No h umacoisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Poroutras palavras (para no violar a lgica): no existe para ns um interesse (aquele que se deixa delado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais

    precioso que todos eles, e pelo qual o homem est pronto, se for preciso, a agir contra todas asregras, isto , contra a razo, sacrificando-lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas

    belas e vantajosas, em uma palavra, nada seno para atingir uma coisa nica que lhe mais cara quetodas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?

    - Sim, - direis, - mas ainda de interesse que se trata... - Permiti! Vamos nos explicar; no com jogos de palavras que se pode esclarecer a questo. O que faz a singularidade dessa coisa,desse interesse, que ele destri todas as nossas classificaes e altera todos os sistemas edificados

    pelos amigos do gnero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, um embarao, umobstculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmoento com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa enobre no seu esforo para atingir os ditos interesses, declaro que tudo isso no passa de logstica.Sim, pura logstica! Crer que a renovao do gnero humano possa -realizar-se fazendo-lheconhecer seus verdadeiros interesses, eqivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que acivilizao suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinrio, menos guerreiro. Buckle

    chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixo pelos sistemas,pelas dedues abstratas, que est pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os

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    olhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lgica.

    Tomo este exemplo porque convincente. Olhai pois em torno de vs! O sangue corre emborbotes, alegremente mesmo, como champanha. Vde nosso sculo XIX, no qual viveu Buckle!Vede Napoleo, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a Amrica do Norte e sua unio, estabelecida

    para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig-Holstein. Ento em que que a civilizaonos adoa? A civilizao no faz mais que desenvolver em ns a diversidade das sensaes... nadamais. E graas ao desenvolvimento dessa diversidade, muito possvel que o homem acabe pordescobrir uma certa volpia no sangue. Isto alis j aconteceu.

    Notastes j que os sanguinrios mais refinados foram sempre senhores muito civilizados,junto dos quais todos esses tila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Seesses senhores se fazem notar menos, que se encontram mais freqentemente e estamoshabituados com isso. Mas se a civilizao no tornou o homem mais sanguinrio, tornou-o semdvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinrio. Antigamente, o homem consideravaque tinha o direito de derramar sangue, e era com a conscincia bem tranqila que destrua o que

    bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efuso de sangue uma ao condenvel, nem por issodeixamos de matar, e mais freqentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vs mesmos.Diz-se que Clepatra (desculpai este exemplo tirado da Histria Romana) divertia-se em espetaragulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contores.Dir-me-eis que isso se passava numa poca relativamente brbara, que nosso sculo brbarotambm, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido umacompreenso mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, no pde ainda se habituar seguir as normas da razo e da cincia. Mas estais certos, no obstante, que ele se habituar quandose desfizer completamente de certas tendncias ruins, e quando o senso comum e a cincia tiveremcompletamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal,Estais certos de qu ento o homem deixar de se enganar deliberadamente e se ver por assimdizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.

    Mas h mais ainda: ento, dizeis, a cincia ensinar ao homem (mas na minha opinio, isto j um luxo suprfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que no passa, em suma, de umatecla de piano, de um pedal de rgo; o que realiza, por conseguinte, realiza-o, no segundo suavontade, mas conforme s leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem ento no

    poder mais ser considerado responsvel por suas aes, e a vida se lhe tornar extremamente fcil.Todas as aes humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo comessas leis, como se faz para os logaritmos, at q centsimo milsimo, e sero inscritas nasefemrides, ou far-se-o livros estimveis no gnero dos nossos dicionrios enciclopdicos, onde

    tudo ficar to bem calculado e previsto, que no haver mais aventuras, nem mesmo mais aes.Ento, e sois vs quem continua a falar, ver-se- estabelecerem-se novas relaes econmicas,

    que sero, por sua vez, fixadas com preciso matemtica, que todas as dvidas desaparecero logo,pela simples razo de que se tero descoberto todas as solues. Ento se edificar um vasto palciode cristal. Ento veremos o Pssaro de Fogo, ento... No se pode certamente garantir (sou eu quefalo agora) que no ser terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo est calculado efixado de antemo?); em compensao, sero todos muito sbios. Evidentemente o tdio pode sermau conselheiro: o tdio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne... Mas isto no nadaainda. O que mais grave (sou eu quem continua a falar) que talvez nos acharemos ento muitofelizes de ter mo agulhas de ouro: o homem bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, no

    to bruto quanto ingrato, e difcil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu no ficaria poisadmirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de sbito um cavalheiro despojado de

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    elegncia, com o rosto "retrgrado" e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mos na cintura:"Pois bem, senhores! Se jogssemos por terra, de um s pontap, toda essa felicidade tranqila,nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomear a viver segundo a nossa tolafantasia?" Isso no seria ainda nada; mas o mais terrvel que esse personagem encontrariacertamente discpulos. O homem feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa nfima que se

    poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre eem todas s situaes, a agir segundo sua vontade e no de acordo com as prescries da razo e dointeresse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idia me pertence, como

    propriedade particular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbtrio, meucapricho, por estapafrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada at a demncia, eis precisamente acoisa que se pe de lado, o interesse mais precioso que no pode encontrar lugar em nenhuma devossas classificaes, e que quebra em mil pedaos todos os sistemas, todas as teorias.

    Onde, pois, aprenderam os nossos sbios que o homem tem necessidade de no sei quevontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspiraes aps uma certavontade racional e til? O homem no aspira seno depois de uma vontade independente, qualquer

    que seja o preo e sejam quais forem os resultados. Mas s o diabo sabe o que essa vontade vale...

    VIII

    "Ah! ah! ah! mas a vontade, isso coisa que no existe!" -vs me interrompeis rindo. - "Acincia j conseguiu to bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e oque se chama de livre arbtrio no passam de..."

    Permiti, senhores! Eu prprio me preparava para comear assim. Tive mesmo medo,confesso-vos: ia gritar que a vontade depende, sabe o diabo de qu, e que talvez se trate de algomuito bom, mas lembrei-me da cincia e mordi a lngua: foi ento que me interrompestes. Comefeito, se se conseguir descobrir a frmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos,isto , de onde provm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que finstendem em tais ou tais casos, etc., provvel, ento, que o homem deixe logo de querer, nem sequer provvel, certo. Que prazer haver em no querer seno em conformidade com tbuas declculos? Mas isto dizer pouco ainda: o homem cair imediatamente na categoria de uma simples

    pea. Na verdade que um homem despojado de desejo, de vontade, seno uma pea, umatransmisso?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poder se

    produzir ou no?

    - Hum! - dizeis. - Nossos desejos se enganam muito freqentemente, porque nos enganamos

    na avaliao dos nossos interesses. Acontece-nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda danossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consideramos como particularmenteinteressante. Mas quando tudo estiver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado deantemo (o que muito possvel, pois ridculo, pois estpido crer que certas leis da natureza

    permanecero indecifrveis), ento, evidentemente, no haver mais lugar para o que se chama dedesejos. Se nossa vontade entra ento em conflito com a, nossa razo, poderemos raciocinar e noquerer, porque impossvel a um ser racional desejar inpcias, contradizer conscientemente a razoe procurar prejudicar-se... E urna vez que todos os desejos e todos os raciocnios podero sercalculados antecipadamente, porque estaro descobertas as leis do nosso suposto livre arbtrio,tornar-se- possvel, um dia, (eu no gracejo) organizar uma espcie de lista, e ter vontade,reportando-nos a ela. Admitamos que me seja provado um dia que se eu mostrei o punho fechado a

    algum, que no podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; deque liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu prprio instrudo e se possuo um diploma?

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    Posso ento calcular minha existncia com trinta anos de antecedncia. Numa palavra, se isto serealizar, no teremos mais nada a fazer seno compreender. E, em geral, devemos repetir-nos semdescanso que nesse instante e precisamente nessa circunstncia, a natureza no se preocupa conoscode maneira nenhuma, e que preciso aceit-la como , e no como a enfeita a nossa fantasia, e quese aspiramos realmente s frmulas, s efemrides, aos alambiques, no h nada a fazer, preciso

    aceitar o alambique; seno ele passar perfeitamente sem a nossa aprovao,

    Sim, mas aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas, perdoai-me por me ter postoassim a filosofar. No o esqueais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti-me soltar as rdeas minha fantasia. Vede, senhores, a razo uma coisa excelente; isto incontestvel; mas a razo arazo e no satisfaz seno a faculdade de raciocnio do homem, enquanto que o desejo a expressoda totalidade da vida, isto , da vida humana inteira, inclusive a razo e seus escrpulos; e, se bemque nossa vida, tal como se exprime assim, se revista freqentemente de um aspecto muito velhaco,nem por isso menos vida, e no a extrao da raiz quadrada.

    Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha

    faculdade de existncia em sua totalidade e no para satisfazer unicamente a minha faculdade deraciocnio, que no representa, em suma, seno a vigsima parte das foras que esto em mim. Quesabe a razo? A razo no sabe seno o que aprendeu (ela no saber nunca outra coisa,

    provavelmente; e embora isso no seja uma consolao, no o devemos dissimular), enquanto que anatureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contm em si,consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive.

    Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdm: vs me repetis que impossvel a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe impossvel querer deliberadamente o que for contrrio aos seus interesses; claro como asmatemticas. Estou inteiramente de acordo: sim, matematicamente exato. Mas repito-vos pelacentsima vez: existe um caso, um nico, em que o homem pode deliberadamente, expressamente,rebuscar o que lhe desfavorvel, o que lhe parece estpido, inepto, com o nico fim de se subtrair obrigao de escolher o aproveitvel, o digno. Porque essa inpcia, esse capricho, talvez seja,efetivamente, meus senhores, o que h de mais vantajoso para ns sobre a terra, sobretudo emcertos casos. possvel mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quandonos manifestamente prejudicial e contradiz as concluses mais justas do nosso raciocnio.Conserva-nos, com efeito, o principal, o que nos mais caro, isto , nossa personalidade. Algunsafirmam. que isso precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se

    pr de acordo com a razo, sobretudo se no se abusa desse acordo e se dele se aproveita mo-deradamente. Isto pode ser til e digno de aprovao. Mas, muito freqentemente, o mais freqente

    mesmo, a vontade recusar-se obstinadamente a concordar com a razo, e ento... ento... Massabeis que isto tambm extremamente til e digno de aprovao?

    Admitamos, senhores, que o homem no um bruto. No se dizer, com efeito, que ele o seja,porque se o fosse, quem poderia ento reivindicar a inteligncia? Mas se no um bruto, nomnimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingrato. Creio mesmo que a melhordefinio que se possa dar do homem: um ser com dois ps e ingrato. Mas no tudo ainda: esseno ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito o mau carter, que ele conservouinaltervel, desde o dilvio universal at o perodo schleswig-holsteiniano de nossa Histria. Maucarter, e, em conseqncia, conduta insensata, porque se sabe h muito tempo, que esta decorredaquele. Tentai, lanai um olhar pela Histria da Humanidade! Que vedes? grandioso, dizeis? -

    Sim, bem pode ser; s o colosso de Rodes j representa alguma coisa. E no em vo que M.Anajevski nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outros

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    afirmavam que era o produto das foras naturais. Estareis chocados pela variedade? Sim, h nissouma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lanarmos uma olhadela pelos grandesuniformes civis e militares, e se lhes ajuntarmos as pequenas fardas, perder-nos-emoscompletamente; nenhum historiador resistir a isso. Montono, direis? - possvel. No se fazseno guerrear, com efeito. Luta-se hoje, lutou-se ontem, lutar-se- amanh mesmo um pouco

    montono demais, confessai!

    Numa palavra, pode-se dizer tudo da Histria Universal, tudo que se apresentar imaginaomais desregrada. Mas impossvel dizer que ela racional; equivocar-vos-eis desde a primeiraslaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens aparecem, sensatos e de bonscostumes, filantropos, cujo fim levar uma existncia racional e honesta, a fim de agirem peloexemplo sobre seus semelhantes e de provar-lhes que possvel viver sabiamente. Mas queacontece, ento? Sabe-se que grande nmero desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo oumais tarde, por trair suas idias e se comprometem em escandalosas histrias.

    Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode ento esperar do homem, desse ser dotado de

    qualidades to estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai-o na felici-dade, to profundamente, que no se distingam mais na superfcie seno algumas bolhas de ar:satisfazei suas necessidades econmicas to completamente que ele no tenha mais nada a fazerseno dormir, comer pes de mel, e pensar nos meios de fazer durar a Histria Universal - pois

    bem! mesmo nesse caso o homem, por pura ingratido, por necessidade de se emporcalhar,cometer, guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correr at o risco de perder os seus

    pes de mel e procurar as inpcias mais perigosas, os absurdos menos proveitosos, s para misturara essa sabedoria to positiva um elemento fantstico, pernicioso. So precisamente os seus sonhosmais fantsticos, a sua asnice mais vulgar, que ele pretender conservar, unicamente para provar asi mesmo (como se isso fosse verdadeiramente to necessrio) que os homens so homens e noteclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, verdade, as leis da natureza, que tocam de restocom tal brio que muito em breve no ser possvel querer seja o que for sem se referir aoscalendrios. E depois, mesmo que se achasse que o homem no passa realmente de uma tecla de

    piano, se se chegasse a lho demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele no tomaria juzo ecometeria alguma incongruncia, apenas para marcar bem sua ingratido e perseverar no seucapricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruio, no caos;desencadearia no sei que males, mas no faria finalmente seno o que lhe desse na cabea. Lanarsua maldio sobre o mundo, e como s ao homem dado amaldioar (isto bem um privilgioseu, que o distingue muito particularmente dos outros rimais) alcanar assim os seus fins, isto ,convencer-se de que um homem e no uma pea.

    Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldies, que tudo isso pode tambm ser calculadode antemo, se bem que a s possibilidade desse clculo ir paralisar o impulso do homem e que arazo triunfar, assim, uma vez mais, ento eu vos confessarei que o homem s ter um meio defazer o que lhe apraz, que perder a razo e tornar-se completamente louco.

    Isto bvio para mim; eu vo-lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grandepreocupao do homem foi provir sem cessar a si mesmo, que ele era um homem e no umaengrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava-o: vivia como um troglodita, mas provava-o.E como, depois de tudo isto, no pecar, como no nos felicitarmos por no estarmos ainda nessasituao e por a nossa vontade depender ainda no se sabe de qu?

    Vs exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que ningum pensa em me privar deminha vontade, que a gente s se agita para arrumar as coisas de tal maneira, que por si mesma, por

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    sua prpria iniciativa, minha vontade possa pr-se de acordo COM os meus interesses normais, comas leis naturais, com a aritmtica.

    Ora vamos, senhores! Que restar da minha vontade, quando tudo estiver nas tbuas decalcular e quando no houver mais que "duas vezes dois quatro"? Duas vezes dois sero quatro sem

    que minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!IX

    Senhores, gracejo evidentemente e eu prprio sei que meus gracejos no so muito bons; mas,alis, no se trata unicamente de gracejos. rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, h

    problemas que me atormentam: ajudai-me a resolv-los. Assim, quereis libertar o homem de seusantigos hbitos e corrigir-lhe a vontade segundo os dados da cincia e conforme ao senso comum.Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde conclustes que a vontade dohomem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educao lhe realmente til? E para dizer tudo: por que estais to firmemente persuadidos que semprevantajoso para o homem no contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocnio e

    pela aritmtica? Isto no , em suma, seno uma suposio vossa. Admitamos mesmo que tal sejacom efeito a lei lgica; mas ser verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco,senhores? Permiti-me que me explique.

    Admito: o homem um animal essencialmente construtor, obrigado a se dirigirconscientemente para um fim qualquer; um engenheiro. Deve, pois, constantemente traarcaminhos novos, no importa em que direes. Mas talvez por causa disso, precisamente que tem

    por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque est condenado a traar umcaminho e tambm porque, por estpido que seja o homem de ao, ele adivinha por vezes que todaestrada leva sempre a alguma parte, e que no a sua direo que importa, mas o prprio fato deque ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido no se lembre de desprezarseu ofcio de engenheiro e no se abandone preguia, a qual , como se sabe, a me de todos osvcios. indiscutvel que o homem gosta muito de construir e traar caminhos; mas como aconteceento que ele ame to apaixonadamente a destruio e o caos? Dizei-me. Mas eu mesmo gostaria devos dizer algumas palavras a esse respeito.

    No ser que ama tanto a destruio e o caos (Se os ama s vezes, indiscutvel) porque teminstintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifcio que constri? O que sabeis disso? Eleno ama talvez esse edifcio, seno de longe, e no de perto. Apraz-lhe, talvez, construi-lo, mas nomorar nele, e est pronto talvez a abandon-lo aos animais domsticos. s formigas, aos carneiros,etc. As formigas, sim, tm outros gostos; possuem nesse gnero um edifcio verdadeiramente

    extraordinrio, construdo para os sculos, o formigueiro.Foi por um formigueiro que comearam as honradas formigas e provvel que tal seja

    tambm o termo da sua carreira, o que faz honra sua constncia e ao seu senso prtico. Mas ohomem um ser verstil, e possvel que, semelhana do jogador de xadrez, no ame seno aao mesma e no o fim a atingir. E quem sabe? (no se pode garantir) possvel que o nico fim

    para o qual tende a Humanidade no consista seno nesse esforo, nessa ao; ou por outra: a vidano teria fim exterior, o qual no pode evidentemente ser seno aquele "duas vezes dois quatro",isto , uma frmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro um princpio de morte e no um

    princpio de vida. Em todo o caso, o homem sempre teve medo desse "duas vezes dois quatro" e eutambm tenho.

    verdade que o homem no se ocupa seno da procura desses "duas vezes dois quatro";

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    atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguio; mas quanto a encontr-los, quanto aapanh-los realmente - juro-vos que tem medo, pois ele se d conta que, uma vez encontrados, nadamais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operrios vo ao

    botequim, para acabarem a noite na cadeia; tm ento a sua conta ao menos por uma semana.Enquanto que o homem, que se tomar ele? Em todo o caso, observa-se constantemente nele certo

    constrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar-se do fim, mas to logo o atinge, noest mais satisfeito; e isto verdadeiramente bem cmico. Em uma palavra: o homem construdode uma maneira muito cmica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas seja como for, "duasvezes dois quatro" uma coisa bem insuportvel. "Duas vezes dois quatro", na minha opinio,respira impudncia. "Duas vezes dois quatro" nos desfigura insolentemente. De mos nos quadris,ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que "duas vezes dois quatro" seja umacoisa excelente, mas se preciso louvar tudo, eu vos direi que "duas vezes dois cinco" tambm svezes uma coisinha muito encantadora.

    E por que pois estais to inabalavelmente, to solenemente convictos de que s necessrio onormal, o positivo, o bem-estar, em uma palavra? A razo no se engana em seus juzos? E possvel

    que o homem no ame seno o bem-estar. No possvel que ele ame na mesma medida osofrimento? No possvel que o sofrimento lhe seja to vantajoso quanto o bem-estar? O homemse pe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso um fato. No h necessidade deconsultar a esse propsito a Histria Universal. Indagai vs mesmos se unicamente sois homens, ese tendes vivido, por pouco que seja. No que toca minha opinio pessoal, dir-vos-ei que mesmoinconveniente s amar o bem-estar. Est bem? Est mal? Isso eu no sei, mas s vezes agradvelquebrar alguma coisa. No precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem-estar: meucapricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comdias, por exemplo, no seadmitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti-los num palcio de cristal: h dvida, hnegao no sofrimento, mas o que seria ento de um palcio de cristal do qual se pudesse duvidar?Ora, estou certo de que o homem no renunciar jamais ao verdadeiro sofrimento, isto , destruio e ao caos.

    O sofrimento! Mas a causa nica da conscincia! Eu vos declarei, verdade, no incio, que aconscincia, na minha opinio, um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama eno a trocar por nenhuma -satisfao, seja qual for. A conscincia, por exemplo, infinitamentesuperior a "duas vezes dois quatro". Depois de "duas vezes dois", no resta evidentemente maisnada, no somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A nica coisa que nos resta, ento, tapar nossoscinco sentidos e mergulharmos na contemplao. Com a conscincia chega-se, verdade, a umresultado idntico, isto , inao, mas poder-se-, ento, pelo menos dar-lhe uma chicotada, de vezem quando, o que vivifica um pouco o esprito, apesar de tudo. muito reacionrio, mas sempre

    vale mais do que nada.X

    Credes no palcio de cristal, indestrutvel, para a eternidade, ao qual no se poder mostrar alngua, nem mostrar os punhos s escondidas. Pois bem! eu, se desconfio do palcio de cristal, talvez justamente porque de cristal e indestrutvel e porque no se poder lhe mostrar a lngua,mesmo s escondidas.

    Vede: se em lugar de um palcio de cristal eu s disponho de um galinheiro, quando chove, eume insinuarei talvez no galinheiro, para fugir chuva, mas ficando-lhe embora muito agradecido

    por ter me preservado, no tomarei meu galinheiro por um palcio. Rides, dizeis-me que em

    semelhante caso palcio e galinheiro se eqivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para noestar molhado.

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    Mas que fazer, se se me meteu na cabea que no se vive somente para isso e que, se se vive, num palcio que preciso se instalar? Isto minha vontade, isto meu desejo, Vs noconseguireis me arrancar esta vontade, seno quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem!modificai-os, apresentai-me um outro fim, oferecei-me um outro ideal! Mas, enquanto espero,

    recuso-me a tomar um galinheiro por um palcio de cristal. possvel que o palcio de cristal noseja seno um mito, que as leis da natureza no o admitam e que eu o tenha inventado por tolice,impelido por certos hbitos irracionais da nossa gerao. Mas que me importa que ele sejainadmissvel! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois queexiste tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade!Aceitarei todas as zombarias, mas recusar-me-ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome;no me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela nicarazo de que est conforme as leis da natureza e existe realmente. No admitirei que o coroamentodos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preo mdico, arrendados pormil anos e ostentando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destru meus desejos, derrubai meu ideal,apresentai-me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir-me-eis, talvez, que no vale a pena

    ocupardes-vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Ns discutimosseriamente, e se no vos dignardes me conceder vossa ateno, pois bem! no vou chorar por isso.Eu tenho meu subsolo.

    Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mos se. quem se levo um tijolinho queseja a essa casa! No me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palcio de cristal, pelo nico mo-tivo de no lhe poder mostrar a lngua. Se falei assim, no que eu goste tanto de mostrar a lngua.Acontece porm que, e isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifcios no h um aoqual no se possa mostrar a lngua. Ao contrrio, eu faria cortar minha lngua, por gratido, se searranjassem as coisas de tal maneira que eu no tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importaque as coisas no possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo-nos com alojamentos a

    preos mdicos! Por que tenho eu tais desejos? No sou feito assim, seno para poder verificar queessa constituio no seno uma brincadeira de mau gosto? esse verdadeiramente o nico fim? -

    No o admito.

    De resto, sabeis o que vou dizer-vos? estou persuadido de que ns outros, homens do subsolo,devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo capaz de permanecer silencioso no seusubsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele desabafa, e ento fala, fala, fala...

    XI

    O fim dos fins, senhores, no fazer nada, absolutamente nada. A inrcia contemplativa

    prefervel seja ao que for. Assim pois, viva o subsolo! Se bem, que eu tenha dito antes que invejavao homem normal at a derradeira gota da minha blis, quando o vejo tal qual , renuncio ao sernormal (no cessando todavia de ter inveja dele). No! no! apesar de tudo o subsolo vale mais. Lao menos se pode... Ah! c que minto de novo! Minto, porque sei, to claramente quanto duas vezesdois so quatro, que no o subsolo que vale mais, mas algo muito diferente a que aspiro, mas queno posso descobrir. Para o diabo o subsolo!

    Se eu pudesse crer ao menos numa s palavra do que escrevo aqui! juro-vos, senhores, queno creio em uma s palavra, em uma nica e miservel palavrinha! Ou melhor dizendo: creio,talvez, mas sinto no mesmo momento, suspeito, no sei por qu, que minto descaradamente.

    - Mas, nesse caso, por que escreveu tudo isto? - perguntareis certamente.

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    Que tereis dito se eu vos tivesse encerrado durante quarenta anos, sem fazer nada, e se,decorrido esse tempo, eu fosse visitar-vos no vosso subsolo para verificar no que vos tnheistornado?

    Bem que eu gostaria de vos ver l! Pode-se deixar durante quarenta anos um homem s e sem

    ocupao?

    "Mas no vergonhoso, no humilhante!" - me direis talvez, meneando a cabea, comdesprezo, - "Voc tem sede de vida, mas quer resolver as questes vitais por meio de mal--entendidos lgicos. E que obstinao! Que impudncia com isso!

    Mas tem medo, apesar de tudo. Voc diz inpcias, mas sente-se feliz com elas. Dizinsolncias, mas tem medo e se desculpa. Declara que no receia ningum, mas busca as nossas

    boas graas. Voc nos assegura que range os dentes, mas graceja ao mesmo tempo, para nos fazerrir. Sabe que as suas sentenas no valem nada, mas parece muito satisfeito com a sua literatura.

    possvel que voc tenha sofrido, mas no tem nenhum respeito pelo. seu sofrimento. H certa

    verdade em suas palavras, mas falta-lhes pudor. Sob a ao da vaidade mais mesquinha, voc traz asua verdade t para a praa pblica, expe-na no mercado, para alvo de chacota. Voc tem algumacoisa a dizer, mas o temor faz-lhe escamotear a ltima palavra, pois insolente, mas no audaz.Gaba a sua conscincia, mas no capaz seno de hesitao, porque embora sua intelignciatrabalhe, seu corao est emporcalhado pela libertinagem; ora, se o corao no puro, aconscincia no pode ser clarividente, nem completa. E como voc importuno, como molesto!Que palhaada, a sua! Mentira tudo isso! Mentira! Mentira!"

    Todas estas palavras, fui eu quem mas ", evidentemente. Elas tambm provm do subsolo.Durante quarenta anos, prestei ateno por uma pequena fenda a esses discursos. Eu prprio oscompus, pois no tinha outra coisa a fazer. Por isso foi-me fcil decor-los e imprimir-lhes; umaforma literria.

    Mas, pudestes crer, verdadeiramente, que eu ia imprimir tudo isto e vo-lo dar para ler? E eisainda o que no compreendo: por que me dirijo a vs, chamando-vos de "senhores", como se fsseisleitores meus? No se publicam, no se do a ler a ningum as confidncias que eu me preparo parafazer aqui. EU, em todo o caso, no sou suficientemente forte para agir assim, e, de resto, no vejo anecessidade disso. Mas, vede, veio-me alma fantasia, e quero realiz-la custe o que custar. Eis doque se trata:

    Entre as lembranas que cada um de ns possui, h algumas que no contamos seno aos

    nonos amigos. H outras ainda que no confessaremos nem mesmo aos nossos amigos, que norepetiremos seno a ns mesmos, e alis, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que ohomem no consente nem em confessar a si mesmo. No curso de sua existncia, todo homemhonesto acumulou dessas lembranas suficientemente. Direi mesmo que seu nmero tanto maisimportante, quanto o homem mais honesto. Eu, em toda o caso, no faz muito tempo que medecidi a me lembrar de certas antigas aventuras minhas; at aqui, evitei-as, e no sem um tanto deinquietao. Ora, agora, quando as evoco e quero mesmo anot-las, agora tenho a prova: possvelser franco e sincero, ao menos cara a cara consigo mesmo, e poder-se- dizer toda a verdade?Observarei a este propsito que Heine assegura que no podem existir autobiografias exatas, e que ohomem mente sempre, quando fala de si mesmo.. Rousseau, com seu ponto de vista, certamente nosenganou nas sua Confisses e mesmo deliberadamente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem

    razo: compreendo muito bem que nos possamos sobrecarregar de crimes abominveis, apenas porvaidade, e compreendo tambm o que pode ser esse sentimento. Mas Heine tinha em vista as

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    confisses pblicas; ora, eu no escrevo seno para mim sozinho e declaro de lima Vez por todasque, se pareo dirigir-me ao leitor, simplesmente iam processo de que me sirvo para maiorfacilidade. No seno uma forma, uma forma vazia; e quanto aos leitores, no. os terei jamais. j odeclarei.

    No quero ser incomodado em nada na redao das minhas notas. No observarei nenhumaordem, nenhum sistema. Escreverei simplesmente o que me lembrar.

    Mas vs podereis me pegar na palavra desde o comeo e me perguntar: se verdade que nopensa em seus leitores, por que ento combina consigo mesmo - e no papel - ainda! - que noobservar nenhuma ordem, nenhum sistema, que registrar o que lhe passar pela cabea, etc.? Porque se explica? Por que essas desculpas ?

    Pois bem! eis a! assim!

    H, de resto, a, um caso psicolgico interessante. possvel que eu seja muito simplesmente

    um covarde. Mas possvel tambm que imagine diante de mim um pblico, a fim de no perder osentido das -convenincias. possvel ter milhares desses motivos...

    Mas h ainda outra coisa: por que, em suma, pus-me a escrever?' Se no para o pblico, noposso evocar minhas lembranas sem as lanar ao papel?

    Com efeito, mas quando estiverem fixadas no papel, adquiriro um aspecto mais solene. Istome constranger, julgar-me-ei melhor e meu estilo ganhar. Demais, possvel que isto me tragacerto consolo. Assim, hoje, estou particularmente oprimido por uma lembrana longnqua; surgiuem mim muito nitidamente h alguns dias, e, desde ento, me persegue sem trguas, como umdesses motivos musicais que no pretendem vos largar. Ora, preciso absolutamente que eu medesembarace dela. Tenho centenas de recordaes desse gnero; mas uma delas s vezes desperta desbito e me agarra pela garganta. Eu imagino, no sei mesmo por qu, que se a registrar, ficareilivre. Por que no tentaria?

    E depois, enfim, eu me aborreo e nunca fao nada. Escrever as lembranas um trabalho.Diz-se que o trabalho torna o homem bom e honesto. ento uma oportunidade que se me ofe-rece...

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    Uma rvore de Natal e um casamento

    Um dia destes, vi um casamento... mas no, prefiro falar-vos de uma rvore deNatal. Achei o casamento bem bonito, mas a rvore de Natal me agradou mais. Nem sei como,olhando para o casamento, me lembrei da rvore. Eis como o caso se passou.H cerca de cinco anos fui convidado, na vspera de Natal, para um baileinfantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de negcios, cheio de relaes emaquinaes, e, assim, no se h de estranhar que o baile infantilservisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no meio da multido, seocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido.Como houvesse chegado ali por acaso e no tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei anoite de maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, no tinha, decerto,conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes detodos. Era um homem alto, magro, muito srio, vestido muito decentemente. Notava-se que afelicidade da famlia no lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de

    sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.Afora o dono da casa, no conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele seentediava horrivelmente, mas que resolvera manter at o fim o papel do homem que se diverte e feliz. Soube depois que era um provinciano vindo capital aalgum negcio importante e complicado. Trouxera carta de recomendao para onosso hospedeiro, que o protegia, porm, no con amore, e o convidara, porcortesia, para o baile infantil. No jogavam cartas com o provinciano, ningumlhe oferecia um charuto nem com ele entabulava conversao, talvez porquereconhecessem de longe o pssaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-seobrigado, para ter que fazer das mos, a alisar a noite inteira as suas suas. Eram, alis, umas suasrealmente belas - porm ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fit-lo, sentia-se inclinada a

    pensar que primeirovieram ao inundo as suas e s depois o homem, para cofi-las, inserido entreelas.Alm desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai decinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva cara nomeu agrado. Mas este era de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outroschamavam Julio Mastakovitch. Percebia-se primeira vista que era ele o convidado de honra.Estava para o dono da casa como este para ocavalheiro que afagava as suas. o dono e a dona da casa falavam-lhe comamabilidade extraordinria, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, elhe apresentavam, recomendando-os, vrios convidados, ao passo que a ele no o

    apresentavam a ningum. Notei at uma lgrima nos olhos do hospedeiro quandoJulio Mastakovitch observou que raras vezes passara o tempo de maneira toagradvel como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadssimo em presena de semelhantefigura, e, depois de haver admirado as crianas, retirei-me a um pequeno salo, totalmente vazio, efui sentar-me sob o florido caramancho da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de toda a

    pea.Eram as crianas incrivelmente gentis, e no queriam, apesar de todas asexortaes das mames e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olhodesmontaram toda a rvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmode saber a quem eram destinados. Achei

    particularmente engraado um menino de olhos pretos e cabelos frisados que viva fora me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais quetodos, atraa-me a ateno sua irm, menina de onze anos, um amor de criana,

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    meiga, cismativa, plida, com grandes olhos sonhadores flor do rosto. Pareciaque os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salo onde eu estava sentadoe, a um cantinho. ps-se a brincar com as suas bonecas. Os convidados apontavam, com respeito,um rico negociante, pai da menina, e algum observou, cochichando, que ela j tinha trezentos milrublos reservados como dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu

    olhar caiu sobre Julio Mastakovitch o qual, de mos cruzadas atrs das costas e inclinando acabea para um lado, parecia acompanhar com particular ateno o mexerico de alguns senhores.Pouco depois, no pude furtar-me a admirar a sabedoria dos anfitries na distribuio dos brindes scrianas. A menina que j tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma bonecasuntuosssima.Desde ento os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuio da importnciados pais daquelas crianas felizes. Afinal, a ltima' um menino de dez anos, magrinho, baixinho,sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, Daslgrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e at sem vinhetas. Filho da governanta dos meninosda casa, uma pobre viva, era um pequeno muitssimo encolhido e tmido, metido num pobre

    paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo volta dos brinquedos dos

    outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianas, mas no se atrevia; claro, jsabia e compreendia a sua situao.Gosto muito de observar crianas. So sobremodo curiosas as suas primeirasmanifestaes independentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixavaseduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em que ele seempenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se. Pegou asorrir para os outros, a cortej-los, deu a sua ma a um pequeno gordo que jtinha o leno cheio de presentes. e at se ofereceu para carregar outro, s paraque no o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos aps um rapazinhoarrogante deu-lhe uma boa surra. o ruivinho nem teve coragem de chorar. Logoapareceu sua me, a governanta, e ordenou-lhe no se intrometesse nos brinquedos alheios. Omenino retirou-se para