27
4 A alfabetiza<;ao Psicogenese da lingua esc rita Os anos 80 assistiram, no Brasil e na America Latina, a urn crescente interesse pelo lema da alfabetiza!;ao inicial. A constitui,ao e 0 aprofundamento dos debates sobre este tema especifico podem ser testemunhados polo grande numero de seminarios, , mesas-redondas, artigos e textos publicados durante 0 periodo. A difusao rapida das ideias de Emilia Ferreiro dirigiu grande parte da reflexao tearica e da discussao sobre a alfabetiza,ao, nao sa entre pesquisa- dores, mas tam bern entre urn grande numero de professores atingidos pela divulga,ao dos postulados desta pesquisadora. Emilia Ferreiro e argentina de nascimento e psicopeda- goga de forma,ao. Doutorou-se pela Universidade de Gene- bra, orientada por Jean Piaget, de quem posteriormente tornall-se colaboradora. lniciou suas pesquisas empiricas na Argentina, em trabalho conjunto com Ana Teberosky, e os resultados foram publicados na obra Los sistemas de escritura en el desarrollo del nino, em 1979. Posteriormente, transferiu-se para a Cidade do Mexico, passando a dar aulas 110 Instituto Politecnico Nacional- aD mesma tempo COO[- 35 denava grupos de pesquisa. 0 seu primeiro livro traduzido no Brasil, Psicogenese do Iinguf! es_crita,_representou um~ grande Jevolu~ao-conceituaLnas referencias tearicas com que se tratava a alfabetiza,ao ate entao, iniciando a instau- f3l;30 de....llffi_nOVOparadigma para a interpreta~ao da forma pela-quaLa.crian,a aprende a ler e a escrever. Ao lado da consistencia tea rica que tais investiga.;oes exibiam, a participa(:ilo freqiiente da prapria Emilia Ferreiro em eventos de apresentacao e difusao de suas concep,6es trouxe uma outra dimensao a divulgaciio de suas ideias. 0 carisma pessoal exibido pela investigadora tem como um dos elementos que 0 explicam 0 carater de inser,ao no real testemunhado por ela. Nas pesquisas que coordenou existe uma clara integra,ao de objetivos cientificos a um compro- misso com a realidade social e educacional da America Latina. Analisando essa realidade educacional, a Autora demonstra que 0 fracasso nas series iniciais da vida escolar atinge de modo perverso apenas os setores marginalizados da popula,ao. Dificilmente a reten,ao ou deser,ao escolar faz parte da expeclativa de uma crian,a de classe media que ingressa na escola. Para outros segmentos sociais mac- ginalizados. no cntanto, as indices de fracasso chegam a niveis alarmantes, constituindo-se nurn verdadeiro problema social. Se fosse a unica. essa ja seria justificativa suficiente para dar relevancia a novas investiga~oes que ajudassem a descrever e explicar os processos pelos quais as crian,as che- lam a aprender alec e escrever. No cntanto, naD e a unica. Tambem do ponto de vista tearico, as pesquisas de Ferreiro & Teberosky trazem uma contribui,ao original. romam como objeto de estudo um conteudo ao qual Pia- ct nao se dedicava - resgatam os pressupostos epistemola- icos centrais de sua leo ria, para aplica-Ios a analise do .ll'rcndizado da lingua escrita. Na contramao de outros estudos teoricos, 0 objetivo de ,uas investigacoes naD e a pr.escri~ao de nOVDS metodos pHI iI l' cosino da leitura e da escrita.

emilia ferreiro

  • Upload
    massivoo

  • View
    1.066

  • Download
    14

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: emilia ferreiro

4A alfabetiza<;ao

Psicogenese da lingua esc rita

Os anos 80 assistiram, no Brasil e na America Latina,a urn crescente interesse pelo lema da alfabetiza!;ao inicial.A constitui,ao e 0 aprofundamento dos debates sobre estetema especifico podem ser testemunhados polo grandenumero de seminarios, , mesas-redondas, artigos e textospublicados durante 0 periodo. A difusao rapida das ideiasde Emilia Ferreiro dirigiu grande parte da reflexao tearicae da discussao sobre a alfabetiza,ao, nao sa entre pesquisa-dores, mas tam bern entre urn grande numero de professoresatingidos pela divulga,ao dos postulados desta pesquisadora.

Emilia Ferreiro e argentina de nascimento e psicopeda-goga de forma,ao. Doutorou-se pela Universidade de Gene-bra, orientada por Jean Piaget, de quem posteriormentetornall-se colaboradora. lniciou suas pesquisas empiricasna Argentina, em trabalho conjunto com Ana Teberosky,e os resultados foram publicados na obra Los sistemas deescritura en el desarrollo del nino, em 1979. Posteriormente,transferiu-se para a Cidade do Mexico, passando a dar aulas110 Instituto Politecnico Nacional- aD mesma tempo COO[-

35

denava grupos de pesquisa. 0 seu primeiro livro traduzidono Brasil, Psicogenese do Iinguf! es_crita,_representou um~grande Jevolu~ao-conceituaLnas referencias tearicas comque se tratava a alfabetiza,ao ate entao, iniciando a instau-f3l;30 de....llffi_nOVOparadigma para a interpreta~ao da formapela-quaLa.crian,a aprende a ler e a escrever.

Ao lado da consistencia tea rica que tais investiga.;oesexibiam, a participa(:ilo freqiiente da prapria Emilia Ferreiroem eventos de apresentacao e difusao de suas concep,6estrouxe uma outra dimensao a divulgaciio de suas ideias. 0carisma pessoal exibido pela investigadora tem como umdos elementos que 0 explicam 0 carater de inser,ao no realtestemunhado por ela. Nas pesquisas que coordenou existeuma clara integra,ao de objetivos cientificos a um compro-misso com a realidade social e educacional da America Latina.

Analisando essa realidade educacional, a Autorademonstra que 0 fracasso nas series iniciais da vida escolaratinge de modo perverso apenas os setores marginalizadosda popula,ao. Dificilmente a reten,ao ou deser,ao escolarfaz parte da expeclativa de uma crian,a de classe mediaque ingressa na escola. Para outros segmentos sociais mac-ginalizados. no cntanto, as indices de fracasso chegam aniveis alarmantes, constituindo-se nurn verdadeiro problemasocial. Se fosse a unica. essa ja seria justificativa suficientepara dar relevancia a novas investiga~oes que ajudassem adescrever e explicar os processos pelos quais as crian,as che-lam a aprender alec e escrever. No cntanto, naD e a unica.

Tambem do ponto de vista tearico, as pesquisas deFerreiro & Teberosky trazem uma contribui,ao original.romam como objeto de estudo um conteudo ao qual Pia-ct nao se dedicava - resgatam os pressupostos epistemola-icos centrais de sua leo ria, para aplica-Ios a analise do

.ll'rcndizado da lingua escrita.Na contramao de outros estudos teoricos, 0 objetivo

de ,uas investigacoes naD e a pr.escri~ao de nOVDS metodospHI iI l' cosino da leitura e da escrita.

Page 2: emilia ferreiro

36

Muito menos a proposta de novas formas de classificardificuldades do aprendizado. Ao estudar a genese psico16-gica da compreensao da lingua escrita na crian,a, Ferreirodesvenda a "caixa-preta" desta aprendizagem, demQ.n~t!~n-9ocomo sao as processos existentes nos sujeitos desta aquisir;ao.Isso-porque, ale que uma pro posta ernpfrica-desta-nanirezafosse feita, 0 tema da aprendizagem da escrita era conside-rado apenas uma tecnica dependente dos metodos de ensino.

Coerente com a sua filia,ao epistemol6gica, Ferreirodemonstra que a abordagem da alfabetiza,ao como questaomeramente metodo16gica fora sustentada por teorias psico-16gicas vinculadas ao associacionismo ou empirismo. Ou

",'seja, avaliar que a melhor ou pior aprendizagem da linguaescrita estaria em correspondencia com melhores au' pioresmetodos de ensine implica interprctar essa aprendizagemcomo decorrente da apropria,ao de elementos externos fei-tos por urn sujeito passivo. Ora, isto nada mais e que apli-car a linguagem escrita os pressupostos mais gerais do-asso-ciacionismo, que explicam a constitui~ao da inteligenciacomo resultante da intera,ao enire estimulos e- respostas,como ja.comentamos anteriormente-. -

Ao contra-rio desta tendencia, as investiga.;6es de Fer-reiro articulam-se para demonstrar a existencia de mecanis-mos do sujeito do conhecimento (sujeito epistemico), que,na intera,ao com a linguagem escrita (objeto de conheci--mento), explicam a emergencia de formas idiossincraticasde compreender 0 objeto. Em outras palavras, as crian,asinterpretam 0 ensino que recebem, transformando a escritaconvenci6rial-dos aduItos-:-Senao"assim.:-pro-duzem escritasdiferenteseestranhas. Essas transforma,oes descritas porFerreiro sao brilhantes exemplos dos esquemas de assimila-,ao piagetianos. 0 professor ensina, por exemplo, a pala-vra GATO e alguns de seus alunos escrevem GO ou AOou GT. 0 que Ferreiro desvenda e a razao destas transfor-ma,oes e a 16gica empregada pela crian,a, ou os processospsicol6gicos que produzem tais condutas. A escri~produ-

37

zida e fruto da aplica,ao de esquemas de assimila,ao aoobjeto de. aprendizagem~(a=-~sgiia):J O~rnaLu\\!izadas pelosUJello para .,merpretar e com~ender 0 objeto. -- -- Vale ainda acentuar que a considerar;ao destas escritas

desviantes - como GO, AO, GT para GATO - e umaforma nova de olhar para 0 desempenho escrito infanti\.Assim como fizera Piaget com as respostas erradas, torna-das centrais na interpreta,ao dos testes de Burt, tambemFerreiro & Teberosky interpretam os erros cometidos pelacrianc;a em fases precoces de aquisic;ao. 1550 constitui umaforma nova de olhar para a escrita infantil, muito diferentedaquela que Jonga tradic;ao escolar nos ensinou. Os errossistematicos, regulares e reccrrentes ehamam a atenc;ao daspesquisadoras e levam-nas a perguntar se miD seriam indi-cios de uma certa forma de compreender a Iinguagemescrita. Existiria uma 16gicaque os sustenta e que explica suaregularidade e persistencia?

As investiga,oes empreendidas prop6em respostas aessas questoes, partindo do pressuposto de que as crian,asadquirem 0 conhecimento da Iinguagem escrita porque, eminterac;ao com este objeto, aplicam a ele esquemas sucessiva-mente mais complexos, decorrentes do seu desenvolvimentocognitivo. 0 desdobramento que se segue e 0 estabeledmentode diferentes momentos de aquisi,ao, articulados sistemati-camente, constituindo urn modelo de aquisic;iio em niveis,fases ou periodos. Estes sucedem-se em graus crescentes decomplexidade e aproxima,ao da escrita convenciona\.

A interpreta,ao do acesso ao conhecimento da escritallcentua a existencia de urn processo evolutivo ao longo dodcsenvolvimento infantil, cilja genese e preciso descrever ec.'plicar.

Em nota preliminar a primeira edi,ao da Psicogenesedel Ifngua escrita, as autoras declaram a perspectiva sob aqual a investiga~ao se realizara:

( ... J Pretendemos demonstrar que a aprendizagem dalaltura, entendida como questionamento a respeito da natu-reza, func;a.o e valor desse objeto cultural que e a esc rita, in i-

Page 3: emilia ferreiro

cia-se muito antes do Que a escola imagina, transcorrendopor insuspeitados caminhos. Que, ah~mdos metodos, dosmanuais, dos recursos didaticos, existe urn sujeito que buscaa aquisi9a.o de conhecimento, que se propOs problemas e

-lr.!ra~de--S.01~lorn~:!o~J_segL.Hldo_SU8_ pr.6prja_.rT1~gla ...Insistiremos sobre 0 que se segue: trata-se de um suleltoque procura adqulrir conhecimento, e na.o slmplesmente deum sujelto disposto ou mal dlsposto a adquirir uma Mcnlcaparticular. Urn sujeito que a psicologia da lecto-escritaesqueeeu [...1 (Ferreiro & Teberosky. 1986. p. 11)

Esses breves comentarios iniciais sao su ficientes parademonstrar a ruptura que os trabalhos agora examinadosrepresent am em rela,ao ao conhecimento cientifico ante-riormente acumulado sobre 0 tema.

Veremos, a seguir, a forma como foram coletados osdados que sustentam a interpreta,ao te6rica.

Coleta de dados: principios e metodologia

Toda investiga,ao cientifica pressupoe alguns pontosde partida. 0 recurso aos fatos, isto e, a busca empreen-dida pelo pesquisador de evidencias da realidade, e prece-dido de algumas alternativas para a resolw;ao de proble-mas. Nao sao os fatos "puros" que falam aD pesquisador.A sele,ao dos eventos na realidade, a forma de olM-los,au as Hrecortes" do real sao decisoes lamadas pelo cientistatendo como ponto de partida 0 compromisso com uma con-cep<;ao tcarica sabre 0 sujeito da aprendizagem, assimcomo sobre 0 objeto a conhecer. Nao existe "neutralida-de" cientifica, no sentido de que 0 olhar do pesquisadoresta informado de concep,oes previas que permitem aobserva,ao de alguns fatos em detrimento de outros. Algos6 se torn a observavel, pois, em fun,ao de informa,oes pre-vias. Sobretudo na pesquisa psicol6gica, as evidencias saofragmentarias. nem sempre continuas, e a observa<;ao est a

39

restrita as condutas que apenas indicam processos mentaisDaD observaveis diretamente. Fazer a conexao entre essesfatos, e dar coerencia e articula<;ao a eles, exige uma cons-tru,ao de carater te6rico por parte do pesquisador.

As public31;oes de Ferreiro refletem em muitos momen-tos essas questoes referentes a natureza do trabalho cienti-fico em psicologia e as questOes metodol6gicas que 0 cer-cam. Dessa forma, a pesquisadora procura deixar claro 0

conjunto de postulados que informa 0 seu olhar sobre osdados. Tendo claro que 0 edificio te6rico piagetiano acumu-lava poucas pesquisas sobre a linguagem, reservando a estaurn papel marginal na constitui,ao das competencias cogni-livas, Ferreiro busca Da Psicolinguistica as ferramentas dis-poniveis para enfrentar seus objetivos.

A partir da decada de 60, a contribui,ao desta cienciapassa a incorporar mudan<;as importantes na forma de com-preender a aquisi,ao da lingua oral. Os estudos anterioresa este periodo focalizavam predominantemente a aquisi,aodo lexico - c1assificado segundo as categorias da linguagemadulta (verbos, substantivos, adjetivos, etc.) -, sem, noentanto, explicar ou descrever a aquisi~aodas regras sintati-cas. 0 modelo. associacionista de interpretac;ao d~_aquisic;aoda linguagem_nao dera_conta ~de explicar(fe~queJQ!'m"--,,crian,achega a~£9mbinaLpalavras em frases aceitaveis.

Enfatizando a contribui,ao de Noam Chomsky, Fer-reiro indica_qU~_;Lenfase~dQ.1rabalho.~deste~pesquisadofriQ-_cstudo da aquisi,ao_das_regras_sintaticas_da linguagemdemOllslro~ a existenciade~uma~distin,aQentre acoml1eten-cia e 0 delempenho_exibidos-pelos..sujeitos. Do ponto devista deFerreiro, esta distin~ao tambe~-se encontra nahllse da teoria piagetiana da inteligencia (cf. Ferreiro &['cberosky, 1986).

Tal distin,ao acentua que a existencia de urn conjuntode ,onhecimentos sobre um dominio particular, inconscienteI'IIC" 0 pr6prio sujeito, nao pode ser confundida com 0 que(",I r mcsmo sujeito e capaz de fazer numa situa~aoparticular.

Page 4: emilia ferreiro

40

a fato, por exemplo, de uma crian~a nao ser capazde repetit oralmente palavras conhecidas da lingua oralnao pode ser interpret ado como uma incapacidade paracompreender e produzir distin~oes no uso da lingua materna.Ora, itens desse tipo estao presentes em grande parte dostestes para verificar a existi.~ncia dos pre-requisitos para aalfabetiza~ao.

Ao ingressar na serie Dude come~aa Deaner 0 ensinosistematico das IetraS, a ~ria~9a ja detem uma granaecom-PetfIiCialiiigiifslicaqueJiao.e.considerada. Essa a~ao equi-vocada da escola tem origem em dois desvios." a primeiradeles e tratar a aquisi~ao da escrita como se esta Fosseiden-tica 11 ap.IQPlia,ao"da"fala. a-segundo e que"o'm6delo deaprendizagem da lingua oral que a maioria dos metod osde alfabetiza~ao reproduz sustenta-se num conhecimentoja ultrap",ssad",- Esses conhecimentos, anteriores-ao traba-Iho de Chomsky, sao assim sintetizados por Emilia Ferreiro:

[ ... J a progressAo classica que consiste em come9arpelas vogais, seguidas da combina9Ao de consoantes labiaiscom vogais. e a partir dal chegar a forma9Ao das primeiraspalavras par dupllcaya.o dessas srlabas, et quando se tratade or890e5, comec;ar pelas orac;Oes declarativas simples, iturna serle que reproduz bastante bem a serle de aQulsi90esda lingua oral, tal como ala se apresenta vista "do lade defora" (isla at vista desde as condutas observaveis, e nAodesde 0 processo que engendra essas condutas observAveis).Impllcitamente, julgava.se ser necessArio passar por essasmesmas etapas quando S6 trata de aprender a Ungua esc rita,como se essa aprendlzagem fosse urna aprendizagem dafala (Ferreiro e leberosky, 1985, p. 24).

Como conseqiiencia, quando 0 modelo de aquisi~aoda lingua oral e utilizado para a escrita, 0 criterio "falarbern" ou ter "boa articulac;ao" e considerado importantepara aprender a escrever. Reaprender a praduzir sons dafala, como condiC;ao necessaria para -=-_----baseia-se,assim, em dois falsospressupostOs-<..ePrimeIro eles e queuma crianl;a aos 6 au 7 anos nao e-cap8 e distinguir

~

fonemas de sua lingua, hip6tese negada pelo gosto que ascrian~as desta idade tem-pelos jogos verbais:-A:seg~nda fala-cia e a concepC;ao da escrita- como lima fo-rma preCls"adetranscri~ao da fala. Nenhuma escrita, examinada nas rela~~oes que tem com 0 c6digo oral, realiza a transcri~ao fone-tica da lingua oral.

J Na verdad..". Ferreira ap6ia-se na concep~ao de que alinguagem atua como uma represenfa1ao~a.6-inyes-'de serapenas a transcri~ao groifica <lossons fai'-d.2~~- "

a mundo verbal, incluindo fala e escrita, e ao mesmotempo 1.Ui1Sistema cOITlJelaC9_e~in1ern~~ntre ambos osc6digos (fala e escrita), onde nao ha estrita corresponden-ciaentreambos. Alem disso, a escrita e iambi~. u~" sis-tema que se relaciona com_-o-real. - -- -

Do ponto de vista interno, isto e, no contexto lingiiis-tico, as relac;6es entre as do is codigos nao sao homogeneas, ~("

(

Porque a escrita nao e 0 espelho da fala e as rela~oes entre "fletras e sons sao muito complexas. Nao ha uma regra unicaque defina esta rela~ao.

Do ponto de vista da rela~ao entre mundo verbal e rea-Hdade, a escrita e um sistema simb61ico de representa~aoda reaHdade. Sendo assim, ela substitui e indica algo, per-mitindo que com 0 seu usa seja possivel operar sabre a rea-Hdade atraves da palavra.

As escritas alfabeticas, como e 0 caso do portugues,podem ser caracterizadas como representacoes que sebaseiam nas diferencas entre significantes (palavras escritasou faladas). Outras escritas, como as ideograficas (basea-das em ideogramas), privilegiam a distin~ao dos significados.

Apesar des sa distincao, nenhum sistema e inteiramenteJ'uro e a escrita alfabetica em portugues tambem se utilizade recursos ideograficos, principal mente na ortografia.

Um dos primeiras prablemas enfrentados pela crian~a,pma desvendar a escrita, e compreender 0 que as marcas so-IHe 0 papel representam e corrio se realiza est a representac;ao.

Page 5: emilia ferreiro

"'

42

Partindo entaD desses principios teoricos, uma concep-9ao de linguagem escrila como urn sislema de represenla9aoe uma concep9ao de sujeito da aprendizagem (sujeilo epis-temieo) baseado na teoria piagetiana, Ferreiro faz uma sin-lese geradora de suas hipoleses.

Para observar e colelar os dados das crian9as, serianecessaria fazer uma distio9ao primordial: entre a tecnicade ensino e os processos de aprendizagem. As condulas eseri-las de urn aprendiz nao sao 0 mero result ado daquilo queo professor ensina. Existe urn processo de constru9ao desteconhecimento que nem sempre coincide com 0 que esla sendoensinado. Como f1agrar esses processos de constru9ao?

Os tesles e formas tradicionais de medir 0 conheci-mento das crianc;as, as ehamados l'testes de prontidao".nao poderiam ser utilizados. Seus objetivos sao muito dife-rentes, ja que pretendem avaliar as capacidades relaciona-das a percep9ao e a mOlricidade. Algumas habilidades espe-cificas ligadas a percep9ao (como a discrimina9ao visualentre (armas, a discriminac;ao de sons, a coordenac;ao entrea visao e os movimentos da mao, etc.) e outras ligadas amotricidade (coordenacao motara, esquema corporal, orien-tac;ao espacial, etc.) medem aspectos nac conceituais daescrita. A aplica9ao destes instrumentos pode indicar a pre-sen9a maior ou menor de capacidades imporlanles para arealiza9ao grafica de tra90s sobre 0 pape!.

° Reproduzir letras sobre uma folha em branco e tam-bern parte da tarefa de eserever, mas nao e esle 0 seu aspectomais importante. Essa realiza9ao relaciona-se com os aspec-tos figurativos, externos da escrita, por fazer parte de seuresullado material e indica a maior ou menor habilidadeda crian9a para desenhar letras.

Tradicionalmente, a presen9a dessa habilidade e consi-derada urn indicio de que a crian9a estaria pronta para ini-ciar a aprendizagem da escrita. E a famosa malura9ao oupronlidao para a alfabeliza9ao. Mas.o..desenho.dasJetgs naoabrange todos os P!oblema~.9gnitivOL'Ls<:rem enfrenlados.-

~

43

Resta a guestao fundamental: cOffijJreender a na!..ureza~escrita e sua organizacao.

Ora, 0 resultado da aplica9ao destes testes nao trazindica90es do grau de compreensao da crian9a quanto aoaspecto interior_g_~_e~gf(a.\istoe, quanta aD seu caratersimb6lico. Se a escrita rep;.esenta parle da linguagem fala-da, ela 0 faz alraves de uma conven9ao que e arbitradasocialmente. Esse e urn obstaculo importante a ser supe-rado e nao e tarefa simples, do ponto de visla intelectua!.Nenhuma caracteristica da escrita tern semelhanl;a com 0

objeto representado. As letras, que para urn iniciante saoapenas tra90s no papel, simbolizam sons da fala e compreen-der .este.conteudo implica ser capaz de estabelecer rela90essiI!!b6licas c9ffi.as-.SQjsas, isto e, relal;oes que sao mediadas.pOLum objeto que as substitui ou representao

Uma vez compreendido este aspecto, h:\ urn outro obs-tacula a superar: compreender de que forma se da a organi-°za9iioda escrita. ----

Sao exatamente estes os aspectos conceituais ou cons-trutivos, dominio que a psicogenese da escrita pretendiadesvendar.

Seria necessario, entao, criar uma situal;aO experimen.lal nova, que nao implicasse apenas tarefas de c6pia. lstoparque a reprodu9ao de urn modelo grMico presente ou <memorizado nao coloca problemas a serem resolvidos e nao -.;;~cria oportunidades para que se observem as conce~6es infan- -""l A"tlis sobre a escrita. Para f1agrar as eventuais hip6teses dacrian9a, elaboradas para c,?mp~eender as fun90es e a organi- -~ ;zal;ab-dOsistema, seria necessario observar a conduta espon~ <) ,

tanea no.registro grafico. } ~Uma outra suposi<;ao previa, que funciona como hip6- "c...: ({.

lese auxiliar da pesquisa de Ferreiro, e a de que a exposi9aoda crianl;a a ~tos d~leitura e escrita, existentes no ambiente (~odal em que vive, cria oportunidades -para que ela retlita,obre esse obJeto. Assim, antes mes~o do ensino sistema-tiro C escolar, seria bast ante provavel que as crianl;as ja

Page 6: emilia ferreiro

44

tivessem algum conhecimento sobre este objeto. E evidenteque este conhecimento previa a escola exige uma condi~aocrucial: a existencia de oportunidades de intera~ao com aescrita em situa<;6esinformais, pr6prias dos ambientes comalto grau de letramento.

Assim, nurn contexto oode a escrita e a leitura fazeroparte d~s_pniticauotidianas, a ciian<;a tema oportunidadede observar adultos utilizando a leitura de jornais, bulas,instru<;6es, guias para consult a e busca de informa<;6es espe-cificas ou gerais; 0 uso da escrita para confec<;ao de \istas,preenchimento de cheques e documentos, pequenas comuni-ca<;6ese atos de leitura dirigidos a ela (ouvir hist6rias lidas).A participa<;ao nessas atividades ou a observa<;ao de como

1 os adultos interagem com a escrita e a leitura gera oportu-(nidades para que a crian<;a reflita sobre 0 seu significado

para os adultos.Uma conseqiiencia do uso deste pressuposto e a de que

se pode preyer a existencia de diferen<;as entre as crian<;as,relacionadas ao grau de exposicao a escrita, presentes nosambientes em que vivem. Sabemos que existem fortes dife-ren<;asentre os grupos sociais de uma determinada popula-CaD, e a menor presen~a e valorizac;ao da escrita e de outrosalfabetizados costuma ser uma das vertentes presente emgrupos sociais marginalizados. Seria necessaria, entao, cam-parar 0 desempenho de crian<;asde niveis sociais diferentes.

Voltando agora a situa<;ao experimental, para superaras restri<;6esja apontadas nos testes tradicionais de matura-Cao para a aprendizagem, as taTefas eram realizadas ementrevistas individuais, [eitas com as crianc;as em variosmomentos ao longo de urn ano. 0 "metodo da indaga<;ao"utilizado fora inspirado no metodo clinico de Piaget.

Uma das tarefas de leitura imp\icava a classifica<;aode cart6es, separando-os em dois grupos: os que se podeme os que nao se podem ler. Alguns continham numeros iso-ladas, mais de urn numera, numeros e letras num mesmoconjunto, letras isoladas ou varias letras juntas. Quanto

45

ao tipo de letras, foram utilizados canoes escritos com letracu[siva, assim como letra script ou de imprensa. a objetivoera pesquisar a existencia de criterios particulares da crian-<;a,utilizados para aceitar ou rejeitar algo como adequadopara lec. Uma outra situac;ao de leitura consistia na apresen-ta<;ao de pranchas com figuras acompanhadas de textos aserem interpretados.

Nas situac;6es de escrita, a tarefa da crian~a era escre-ver palavras ditadas pelo experimentador. 0 conteudo deve-ria fazer parte do repert6rio de palavras conhecidas pelacrian<;a, as quais, portanto, ela fosse capaz de atribuir sig-nificado. Evitou-se 0 emprego de palavras constantes dosmanuais de alfabetiza<;ao para que a crian<;a nao reprodu-zisse conteudos preyiamente memorizados. Escreyer pala-yras ainda nao ensinadas representava urn problema a serresolvido pela crian<;a. Tambem foram introduzidas situa-coes de conflito ou potencial mente conflitiyas, e a interac;aoentre 0 sujeito e 0 experimentador pretendia aclarar 0 racio-cinio usado pela crian<;a para chegar a solu<;ao grafica.

A serie de palavras propostas para a escrita mantinhaentre si uma relacao semantica, fazendo parte de urn mesmoconjunto de significados ou urn mesmo tema, como, porexemplo, nomes de animais, brinquedos, objetos escolares,etc. Ap6s cada palavra a crian<;a deveria ler a pr6pria pro-du<;ao, indicando onde a leitura eslava sendo processada.

Durante a primeira investiga<;aorealizada na Argentina,foram acompanhadas 30 crian<;as de classe social baixa. Aescolha justificava-se por estar concentrado neste setor socio-cconomico 0 maior indice de fracasso nas series iniciais e amaior produ<;ao dos chamados transtornos ou dificuldadesde aprendizagem. Filhos de pais moradores das regi6es peri-fericas da cidade, com ocupa<;6esnao qualificadas ou vivendode trabalho temporario, metade das crian<;as freqiientava aescola pela primeira vez, nao sendo egressas da pre-escola.Como na Argentina a alfabetiza<;ao e iniciada aos 6 anos,,I idade oscilava entre 5 e 6 anos, ao final do ana utilizado

Page 7: emilia ferreiro

46

para as observa~oes. Estas ocorreram durante 0 primeiromes de aulas, no meio e no final do ano escolar.

Os resultados iniciais revelaram que mesma criaol;3sde classe social baixa nao iniciam a escolaridade com nivelzero de conhecimento da escrita. Jei aos 6 anos, a maioriadas criani;3s possui conhecimentos, cuja genese deveria serprocurada em idades mais precoces.

Um estudo do tipo transversal foi utilizado para bus-car essas observacoes com criancas entre 4 e 6 anos, escola-rizadas, de classe social baixa e media (Whos de pais comocupa~ao liberal). Os alunos da classe media eram consti-tuidos de crian~as que frequentavam a escola publica e aparticular.

Os resultados das pesquisas, tornados disponiveis pelapublica,ao da Psicogenese da Ifngua eserita, referem-5O aum total de 108 sujeitos e, tanto no estudo longitudinalcomo no transversal, foram aplicados 0 mesma metoda eas mesmas tarefas.

Analisaremos os principais resultados das pesquisas,reorganizando a apresenta,ao feita por Ferreiro & Tebe-rosky. Iniciando com os criterios infantis para a interpreta-Cao do texto escrito, passaremos, em seguida, aos niveisde aquisi,ao da escrita. Consideramos que esta ordem deapresenta~ao facilita a compreensao do leitor. Tambem,ao contnlrio do que ocorrera no original, os dados referen-tes aos niveis de menor conhecimento antecederao as niveisde maior conhecimento, facilitando a compreensao dosavan,os qualitativos empreendidos pela crian,a ao longodo percurso de aproximacao da escrita convencional.

Criterios de legibilidade

As observac;oes que resumiremos na sequencia sao 0

resultado da aplica,ao da tarefa de classifica,ao de cartoescom informa~oes escritas. 0 conjunto oferecido a cada

47

crian,a continha de 15 a 20 cart Des, dos quais constavaminclusive palavras longas, sHabas e algumas que fazem partedo repert6rio con stante dos manuais utilizados oa escrita.

A interpreta,ao dos resultados levou Ferreiro & Tebe-rosky a conduir que, rnesrno antes de ler, as crianc;as ternideias precisas sobre criterios que distinguem textos que ser-vem para ler dos outros que nao permitem a leitura. Estescriterios sao muito diferentes dos utilizados pelo adullo.

Seria previsivel, num adulto que se submetesse a mesmatarefa, 0 agrupamento dos cartoes em dois subgrupos, dis-tinguindo os que registram numeros dos outros contendoletras.

Hip6tese da quantidade minima de letras

No entanto, 0 criteria rnais freqiientemente apresen-tado na solu,ao das crian,as foi a distin,ao entre cartoescom poucos caracteres (sejam estes caracteres letras DU , ~)

mimeros) sob a justificativa de que "com poucas letras nao vI"\'se pode ler". Na maioria das vezes--:estecriterio quantita- l\tivo utili,ado tinha como limite mfnimo a presenra de tresletras. Cartoes com urn numero men or de caracteres "miDservem para 1er" e algumas crianc;as explicit am com darezasuas ideias, dizendo, por exemplo, a respeito de grafismosmenares: nao servem para Ier porque "sao muito curti-"has", "tern uma palavra au duas", au ainda "onde hciumas pouquinhas nao e para ler; aqui tem mais pouqui-nhas letras, tem duas (cart Des AS e SO)". Para os cartoesIcgiveis, dizem que "tern muitas, como quatro", tern queler "muitas coisas, urn montao", au serve para Ier "por-qlle tem uns quatro mimeros" (cartao escrito PELO) (Fer-,eiro & Teberosky, 1985, p. 41-3).

A regularidade deste minimo em torno de tres letrasII lj posterior mente reiterada em outras pesquisas com crian-I'" de lingua espanhola (no Mexico, na Espanha), francesa,PIIlIlI~uesa (no Brasil) e itaJiana.

:l'

Page 8: emilia ferreiro

48

A maneira como as crianl;as ccotam os caracteres tarn-bern e importante. Em geral, quando a letra e a de imprensamaiuscula, nao ha ambigiiidade na distincao entre uma letrae Dutra e a contagem e precisa. 0 mesma DaD ocorre coma letra manuscrita. Neste caso, fica dificil, para a crianl;aque naD conhece as tral;os distintivos entre uma tetra eoutra, efetuar a contagem precisa das unidades que com-poem urn canjunto.

As vezes, 0 H 11\." cursivo e considerado como for-mada por tres caracteres, 0 "~ " contado como se fossedais au tres caracteres diferentes e uma silaba como 0

".p.l" e cootada quase sempre como senda composta portres au quatro caracteres, apenas para usaf alguns exem-plos. A esse criterio infantil Ferreiro da 0 nome de hip6teseda quantidade minima de caracteres. Eo 6bvio que, paraU1l1acrianca que desconhece 0 valor" simb6lico das letras,nao seria possivel a emergencia de distinCDes qualitativassemelhantes ilquelas feitas pelo adulto. 0 que surpreendee que, para Iidar com urn objeto obscuro e resistente il com-preensao, a crian~acoosteua uma hipotese deste tipo, exem-plar de como se constitui urn esquema de assimilacao. Aaplical;aO deste esquema ao universo escrito permite prevera recusa da crianca em atribuir significado aos artigos, defi-nidos ou indefinidos, preposiCDes e outras palavras comurn numero menor de tetras, costumeiramente presentesem urn texto escrito. Isso e urn conteudo import ante a serconsiderado na pratica pedag6gica, assunto que discutire-mos no capitulo final, principalmente se considerarmos anatureza da organizacao das cartilhas que ap6iam as prati-cas de iniciacao da leitura e da escrita. Grande parte delasoferece liCDesiniciais destinadas il aprendizagem das vogaisisoladas, seguida da combinacao dessas letras em conjuntode duas letras. Pode-se inferir que dificilmente criancasem niveis iniciais de aquisii;ao conseguirao interpretar estematerial como sendo adequado il leitura, considerando oscriterios de legibilidade construidos por elas.

49

A natureza do tracado que se oferece il crianca nosprimeiros materiais de leitura tam bern deve ser conside-rada. A leitura de textos em letra curs iva sera potencial-mente urn obstaculo il interpretacao, pela ambigiiidadepara a distini;3.0 do numero de caracteres constituintes dostextos.

Embora a maioria das criancas da amostra tenha evi-denciado 0 uso deste criterio para distinguir 0 que e "Iegi-vel" nurn texto, aparecem criani;as com condutas que podemser consideradas "0 nivel zero" da tarefa. Algumas, maisfreqiientemente de c1assesocial baixa, usam criterios aleat6"rios de separar;ao de cartoes, e a troca de lugar entre as sub-grupos torna legivel 0 que antes nao 0 era (ou 0 contrario).

Hip6tese da variedade de caracteres

No extrema oposto, isto e, mais freqiientemente emcriancas de c1asse media, ha a evidencia da construcao decriterios qualitativos para definir a Jegibilidade. Isso naosignifica que tais criterios nao aparei;am em crianr;as declasse social baixa, mas que 0 predominio e maior nasoutras. Esse criterio qualitativo tambem nao se refere acompreensao do valor simb61ico das letras. Raras vezes apa-recerarn condutas que aceitavam cartoes para ler porquecontinham letras e nomes cuja forma escrita era conhecida,e, quando isto ocoreeu, aqui simI foi exclusivo de crian.;ade c1asse media.

Isso indica como as praticas letradas do ambientesocial podem -fazer avanr;ar a reflexfto da cflani;a sabre acscrita antes do"{nicio da escoladza.;ao. - -

o ~riterio quaIitativo-" q;;serefere a pesquisa e a.lIlalise feita pelas cdancas das semelhanc~s ~ntre as letras v. {""",,[que constltuem urn conJunto. Se as tetras sao 19ums,mesrnoa/t'/ldendo a urn minimo de (res, etas tambem mio servem II}clra ler. Cabe ainda aqui lima ressalva: este minimo delI~s lctras foi aquele que predominou entre as crian<;aspes-

I

Page 9: emilia ferreiro

Ii

"

so Iquisadas. Houve tambem crian,as que apresentaram comoexigencia minima a presen~a de duas letras e outras, ainda,cuja exigencia superava as tres caracteres.

Os cartoes MMMMMM, AAAAAA e MANTEIGA,par exemplo, au com a mesma serie em letra cursiva, tive-ram recusa dos dais primeiros, com as justificativas de que"nao se pode, digo-lhe que sao as mesmas", "essas saopara ler, com as outras letras" I "porque tern tudo a mesmacoisa", "porque nao e tudo juntinho, tambem tern outrasletras" ou "porque diz 0 tempo todo 'a'''(Ferreiro & Tebe-rosky, 1985, p. 43-4). Ja 0 cartao com a palavra MAN-TEIGA e aceito "porque nao tern tantas letras iguais" ou"nao sei 0 que diz, mas e de ler" (ibidem, p. 44).

As respostas das crianeas indicam claramente a neces-sidade de que as letras constantes de urn texto devam exibirvariedade. A esse criterio,.Ferreiro categorizou como hipo-tese de variedade de caracteres. Tambem e inevitavel pen-sarmos aqui na interacao deste esquema assimilativo comos manuais de iniciaeao a leitura, tomando difici! poster-gar os comentarios a respeito das implicaeoes pedagogicaspara 0 capitulo final. Se bern que possamos adiar as infe-rencias decorrentes para a escolha dos melhores materiaispara inicio da alfabetiza,ao, e dificil deixar de fazer obser-vaeoes sobre 0 conteudo que se segue as primeiras lieoescom as vogais e suas combina<;6es. Nas cartilhas mais utili-zadas pela rede publica, por exemplo~li~oes que seseguem as que ja nos referimos apresentam urn grandenumero de palavras compost as por sHaoas repetidas. Issose-justifica quando a-escrita -e analisada do ponto de vistado adulto. Como deixar de pensar que a aprendizagempode ser facilitada com palavras simples, onde uma silabaja dominada aparece mais de uma vez?

Olhado do ponto de vista da crian,a, em vez de facili-tar, esse recurso gera urn obstaculo. Palavras como papa,bala, baM, coco, bebe, tao frequentes nas cartilhas brasilei-

ras, pod em dificultar a interpreta,aolegfveis, exatamente porque tern umaletras.

Superar ou ampliar este esquema de assimi!a,ao exigi-ria a presen~a de outros conteudos para a leitura, 0 que eimpedido pela pratica, de longa tradi,ao, de que primeiroe necessario dominar certas palavras para depois seguirem frente.

Voltemos agora aos resultados da pesquisa: alem daconstrueao de criterios de legibilidade, outros problemasconceituais simultaneos precisam ser resolvidos. Ao adulto,a escrita parece homogenea porque temos criterios apura-dos para enxergar 0 que e relevante a leitura. Para umacrian~a iniciante, ao contrario, tudo parece igualmenteimportante, ate que haja a constru~ao de diferenciac6esentre os traeos graficos. Uma produeao grafica pode con-ter grafismos de muitos tipos, passiveis de serem interpret a-dos a partir da construcao de diferencia~6es entre as letras,os numeros, as sinais de pontua~ao, os desenhos, ahem donome das letras, para falar de apenas parte dos elementosda conven~ao presentes no texto escrito. A observacaodurante as tarefas permitiu definir alguns estagios especifi-cos da emergencia destas distineDes.

Diferenciac;ao de elementos graficos

o conjunto das observa,Des que se seguem foi resul-Iado da analise dos cartDes anteriormente comentados ede imera,ao do experiment ador com a crianea, folheandotlln livro de hist6rias. Sabre os desenhos e os textos, a per-

IInta "0 que e isto?", aplicada a ambos, dotava 0 experi-IlIcl1tador do nome atribuido pela crianca aD segmento.llllll\tado. Este passava, entao, a ser utilizado para se refe-III 1I0S diferentes context os gnificos (icorlico au "escriw). 0

Page 10: emilia ferreiro

52

reconhecimento do seu proprio nome impressa e a escritadeste conteudo com letras moveis ou com lapis e papel tam-bern"foram situa,oes utilizadas para a coleta de dados.

A rela9iio entre letras e numeros

Ferreiro postula a existencia de tres momentos distin-tos na constru,iio da diferencia,iio entre letras e numeros.No primeiro momento, haveria uma aparente confusaoentre ambos. Aparente, porque letras e numeros siio colo-cados juntos por oposi,iio ao desenho. Compartilham, por-tanto, 0 atributo de niio serem grafismos figurativos, epodem, deste ponto de vista, estar juntos.

A existencia deste estagio indica que as crian,as estiioresolvendo outro problema conceitual previa onde niio epossivel ainda a coordena,iio de diferencia,6es apenas des-tes caracteres gnificos, uma vez que se consolida a distin-Cao entre a iconico e a notacao alfabetica.

Nos dados coletados por Ferreiro, niio existem eviden-cias de que a crianp utilize apenas a imagem para a leitura,ainda que indique a ambos como necessarios para ler. Nestecaso, a crianca sabe que se Ie nas letras, mas nao abre maoda imagem para inferir 0 significado do texto.' utilizandoambos como universos complementares.

Saber que se Ie nas letras, no entanto, nao implica queesteja colocada a distin,iio entre letras e numeros. Sobre-tudo quanto a este aspecto, as crian,as de classe baixa estiioem forte inferioridade em rela,iio as de classe media. Emais frequente nas primeiras que letras sejam tambem cha-madas de numeros, dependendo do contexto onde se encon-tram. Quando isoladas, tendem a ser interpretadas comonumeros, 0 que e indicador de que a crianca tern agucadacompreensiio das diferen,as destes dois sistemas de registro.A escrita de numeros niio se baseia no sistema alfabeticousado para 0 registro de palavras. Ao contrario, a leitura

53

destes e muito mais ideognifica. A conduta cantniria, noentanto, naa ocoere: as crian~as naD ehamam as numerosde letras. Alem de poder indicar a existencia de uma ante-rioridade psicogenetica dos numeros como forma gnifica,existe 0 fato de que 0 universo de possibilidades para aescrita dos numeros e muito mais reduzido do que 0 dasletras. Consequentemente, pode ser mais rapid a a apropria-,iio das distin,oes proprias dos numeros.\ Num segundo momento, a diferencial;3.0 letras/mime-ros seria a constrw;ao da distinl;ao entre as funr;oes deambos: letras servem para lef e numeros para contar.

, 0 terceiro momento pade Dearrer quando a crianl;a,tendoj:i superado ,,'ioorslin,iio inicial, volta a ter conflitosna diferencia,iio, por lidar com adultos que "Ieem pala-vras" e "1eem numeros". assim como "cootam" elemen-tos de urn conjunto e "contam" tambem historias.

Algumas criancas usam estrategias inusitadas parafazer esta distinCao. Empregam a palavra numcro paradesignar 0 conjunto de letras e reservam para algumas emparticular a designa,iio de letra (aquelas que compoem 0

seu proprio nome). Essa distin,iio e peculiar as crian,asde classe media, indicando urn comportamento decorrentede certas praticas culturais onde a crian,a assiste frequente-mente a escrita de seu proprio nome e de outras pessoasconhecidas. A inexistencia desta pratica para as criancasde classe social baixa, au, pelo menos, a sua menor freqiien-da, tr3z fortes contrastes na capacidade de diferenciarm'uneros e tetras, quando sao comparados os dois grupos.

o mesmo se pode dizer do grau de conhecimento das1"I.-aSuma a uma e da capacidade para nomea-Ias. E pre-d"o enfatizar que este e urn conhecimento tipico da trans-"Ii,,~o cultural. Niio e urn conteudo que possa ser elabo-Indo at raves de niveis de conceitualizacao pr6prios da, 111I1I~a,ja que as letras e seus nomes sao fruto de urn conhe-l'llIil'lllo que e arbitrado socialmente.

Page 11: emilia ferreiro

<>-'"

.iI

,.I

J-

S4

Tambem aqui a disparidade entre criancas de c1assemedia e c1assebaixa e marcante. Quanto ao reconhecimentode letras e 11capacidade de nomea-las, Ferreiro constata aexistencia de niveis gradatiyos de aproximal;ao com 0 con he.cimento socialmente valido.

o conhecimento das letras

o nivel mais elementar desta aproximacao e_c0.'llpostopor condutas que demonstram 0 conhecimento de uma ou

v duas "letras, principalmente as iniciais_d_Q.Je.l!-I!~QP_~i9~ome_,\ sem~~itribuirnomes as tetras. Dessa forma, uma tetra "e

reconhecida pelo seu possuidor, isto e, pela pertinencia aonome de alguem conhecido. As criancas costumam referir-se a elas como indices destes nomes: "0 CA da Carolina".P elide papai", M e "de mamae", A e "de AtHia", etc.(Ferreiro & Teberosky, 1985, p. 50).

o pr6ximo nivel na evolucao deste conhecimentorefere-se as crian~asque reconhecem e nomeiam de maneiraestavel as vogais, identificando as consoantes, as quais atri-buem 0 valor da silaba inicial do nome. Assim, por- exem-plo, Carlos (6 anos) diz que oC'{o"ca" de Carlos; Gus-tavo (6 anos) diz que 0 G e 0 "gu" de Gustavo; Marina(5 anos) diz que 0 M e 0 "rna" de Marina. Em relacao aodesempenho do nivel anterior, ha urn sutil aumento da com-plexidade do conhecimento: alem de reconhecerem as letraspelo seu possuidor, nao as nomeiam, mas atribuem a elaso valor sonoro da silaba inicial da palavra. Convem enfati-zar, ainda, que todas as crian93s com estas condutas pert en-ciam 11c1assemedia.

o pr6ximo passo no desenvolvimento e constituidopelo dominio dos nomes corretos de todas as vogais e dealgumas consoantes. Laura, de 5 anos, demonstra este nivelde aquisi~ao:-"S-e se de Silvia e de Sarita", a "esse" (eLFerreiro & Teberosky, 1985, p. 51).

5S

, 0 ultimo nivel de aquisicao e 0 represent ado pelask' criancas que nomeiam todas as letras do alfabelo e sao

capazes, em algumas delas, de indicar 0 valor sonora alemdon-orne.

Urn dado interessante a ser sublinhado nesta descriciioda aquisicao do conhecimento das letras e que na progres-sao gem'tica os nomes das letras precedem 0 conhecimento ijdo valor sonoro. Dutra observa~ao da pesquisa, reiteradapela pratica pedag6gica de muitas professoras atentas aosprocessos de aprendizagem das crian,as, e a aliva explora-cao infantil feita sobre as letras do alfabeto. Quando estee objeto de trabalho nas salas de aula, as observacoes dascrian~as demonstram que fazem interessantes assimila~oesentre as lelras, indicando, por exemplo, que 0 W e 0 Minvertido, que a A e a V cortado, que 0 I virado fica igual,etc. Estes test em un has das crian~as sao evidencias de umaextensa explora~ao ativa sabre as letras.

Como faz em outros momentos da interpretacao dosdados empiricos, Ferreiro recorre aqui a hist6ria da escritapara indicar que a aparente confusao inicial entre lelras emimeras, demonstrada pelas crian~as em momentos preco-ces da genese, nao deveria ser encarada como tao estranha.Certas diferenciacoes, hoje bern definidas na escrita alfabe-tica que utiIizarnos, sao na verdade aquisi~oes tardias nahist6ria do sistema. 0 uso de letras do alfabeto no lugarde mimeros era uma pratica com~~entre os rornanos, fatoteslemunhado, por exemplo, na datacao de monumentos.Na tradicao grega e hebraica, tambem as letras representa-yam os nurneros, e a diferencial;ao entre os dois usos domesmo sinal era feita pelo acrescimo de urn acento (0 apex)ram indicar que a letra passava a ser urn nurnero.

Certas aquisicoes. das quais esta e apenas urn exemplo,cl11boraparecam 6bvias, cuslaram 11humanidade urn grandec,rorco inlelectual, e 0 aparecimento tardio deste processode cJiferencial;3.0na ontogenese nao deve, pois, ser encaradocomo tao estranho. "

Page 12: emilia ferreiro

'",

56

Letras e sinais de pontuac;:iio

Por ultimo, para conduir a forma como se originamessas primeiras diferencia,6es feitas pela crian,a entre asmuitos elementos graficos que f31em pane da escrita, fare-mas breves comentarios sabre a distin,ao entre as letras eas sinais de pontua,ao e a aprendizagem da orienta,ao paraa leitur3. Esses dais pontcs merecem comentarios entre asmuitos dados aqui nao reproduzidos (do trabalho original),porque, para a adulto, parecem ser conteudos da aprendiza-gem 6bvia e simples. Na verdade, a que temos pouca possi-bilidade de compreender au recuperar, porque vemos aescrita com a olhar do alfabetizado, e a impossibilidade ini-cial da crian~a. estrangeira ao sistema, definir, como 0

adulto a f31, essas distin,6es sutis. Para urn estrangeiro danota,ao alfabetica tudo parece ser igualmente relevante.

Tanto as sinais de pontua,ao como a orienta,ao da lei-lUra sao conteudos especifieos do aspecto arbitrario da con-ven,ao escrita, que, portanto, nao podem ser deduzidos peloradocinio infantil. Sao, pais, conhecimentos socialmentetransmitidos, dependentes da existencia de uma longa pra-tica com text os escritos e com informantes desse sistema.Pode-se inferir a panir destes comentarios que a ensino esco-lar nao sera a mesmo para as crian,as de classe baixa e declasse media, considerando-se as diferen~asnas praticas pre-vias it escolarizacao, no que se refere it esc rita e it leitura.

Em re1a,ao aos sinais de pontua,ao, passa-se de umainicial indiferencia,ao destes (que sao nomeados com asmesmos term as empregados para numerus e letras) para a

~ distin,ao do ponto, dois-pontos, hifen e reticencias. Os, outros sinais continuam a ser assimilados as letras.

o estagio seguinte canso lida esta distin,ao, sem que acrianca nomeie os sinais diferenciados, assimilando algunsas letras, pelas semelhan",as"gr:ificas. 0 (;) e assimilado aoi e a (?) ao 2, 5 au S.

57

o pr6ximo passo leva adistin,ao de todos, com exce,aodo (;) que continua assimilado ao i. Quanta aos demais, em-bora as crian~as mio as nomeiem, sabem que nao sao letrasnem mimeros, indicando que "mio e letTa, e Dutra coisa".

No estagio final, ha diferencia,ao nitida dos sinais depontua~aonaD mais assimilados as letras ou mimeros,nomeados agora pela crianca como "sinais" ou "marcas".

Orientaljliio espacial da leitura

A respeito da orientacao espacial para a leitura, e pre-ciso ressaltar que este e urn dos aspectos rnais estritamentenrbitrarios do sistema. Saber que se Ie da esquerda para adireita e de cima para baixo e um conteudo cuja aprendiza-em s6 pode ser transmitida pela observa,ao de um alfabe-

lizado que leia indicando au que explique isto as crian,as.Os program as preparat6rios para a aprendizagem da

Icitura e da escrita insist em na importancia da aprendizagemtic conceit os de orientacao espacial previos, como: acima,Ilhaixo, esquerda, direita. A inten,ao e que isso se aplique,posleriormente, para ° usa adequado da orientacao duranteII alo da leitura e da escrita. No entanto, 0 ensino destesnlllccitos, fora de situar;oes da escrita e da leitura, nao levaI "cransferencia" desta aprendizagem au it sua aplicacaoIlnue a urn texta escrito. A aprendizagem deste conteudo,!,ecifico exige mais do que a explora,ao de textos escritos:lIC'cessariaque a crianca tenha uma arnpla experiencia e

IIh'lorVar;oesde leitores de textos, Assistir a at as de leitura,oIlll~idos au nao a ela, acompanhados de gestos indicado-II de onde a leitura esC a sendo processada, e ocasiao eIPllit para assirnilar essa inforrnar;ao.

De toda forma, quando a crian,a ainda nao se apro-pI 11111 dn orientar;ao convencional, existem solucoes interes-

lull' que procurarn garantir a continuidade do ato de lei-111111, l'vitnndo os saltos e rnovimentos bruscos dos olhos. Fer-

Page 13: emilia ferreiro

- .-,I'Il\,

"II,

S8

reiro observa, principalmente em criancas menores (4 anos),a leitura em ziguezague, come~ando na primeira linha, daesquerda para a direita, continuando na segunda, da direitapara a esquerda. Ha alternancia entre uma linha e outra,de forma a manter a continuidade do olhar. Tambem emrelacao a paginas isto costuma acontecer. Se a primeira foilida de cima para baixo, a seguinte sera de baixo para cima.

a recurso a hist6ria da escrita torna esse dado, obser-vado nas crian~as, mais curiosa - esta orientac;ao de lei-tura ja fora utilizada na arecia antiga. Recebia 0 nome de"buslrafedon", por lembrar a maneira de sulcar a terracom 0 arado puxado por bois.

Sintetizando as observacoes decorrentes desses dados,Ferreiro acentua que as criancas, muito antes de serem capa-zes de lec, sao capazes de aplicar ao texto escrito criteriosformais especificos, muitos dos quais nao poderiam decor.rer do ensino do adulto. Sao dependentes deste apenas aque.les ligados a parte mais arbitraria da convenCao escrita.

1 Sobretudo a exigencia de urn mlnimo de letras para seefetuar 0 ato de leitura, a variedade de caracteres dentro,deste minime e a conversao da letra isolada em numero sao~onteudos que nao poderiam ter sido ensinados por urn alfa.betizado, constituindo.se em evidencjas de uma elaboraciiopr6pria das criancas, por aplicaciio de seus esquemas inter.pretativos a urn objeto que oferece resistencia a compreensiio.\ Encarar tais fates como "confusao" e deixar de verque existe uma sistematizaciio infantil que ocorre em basesmuito diferentes.daquela feita pelo adulto. No capituloseguinte. veremos a forma como est a sistematizac;ao Deorredurante as atividades produtivas de escrita.

5A evolu~ao da crian~a

Para fazer as explorac;oes sabre a escrita infantil, Fer-reiro & Teberosky criaram diferentes situacoes de produCiio.As tarefas incluiam a escrita do proprio nome da crianl;a,do nome de algum amigo ou membro da familia, a escritade palavras muito frequentes no inicio da alfabetizaciio, 0contraste de situacoes de desenhar e escrever e a escrita deoutras palavras ainda desconhecidas para a crianca, incluindotambem uma frase. Em geral, a inclusiio deste ultimo itemcostuma chamar muito a atenc;ao, causando estranheza,,obretudo aos professores. I'or que pedir as criancas parac'\creverem algo que ainda nao aprenderam?

Ferreiro justifica a proposta pela razao de que a escritac."pontanea, produzida antes do ensino sistematico, traz osIllais claros indicadores das exploracoes infantis para com.pi tender a natureza do processo.

Quando uma crian(fa escreve tal como acredita quepoderia ou deveria esc rever certo conjunto de palavras, astanos oferecendo urn valioslssimo documento qua necessita18r interpretado para poder ser avaliado [... J Aprender a 1~.las- Isto e, a Interpreta-Ias - e urn longo aprendlzado querequar uma atitude te6rica definida (Ferreiro, 1985, p.1S-?).

IJma .crianc;a, mesmo antes de entrar para a escola,ll,llIlIla rabiscar utilizando lapis e papel, se tiver oportuni-

Page 14: emilia ferreiro

"

il

i;

60

dade para isso. Essas primeiras escritas nunca foram adequa-damente consideradas. seoda vistas apenas como rabiscosau garatujas sem importancia. Mas, se partirmos da teoriapiagetiana, sabemos que as crianeas fazem exploraeoes ati-vas sobre os objctos de conhecimento. Ao escreverem umapalavra ainda nao aprendida, colocarao em jogo as concep-eoes que fazem sobre a escrita, em busca de uma respostapara a solueao do problema de registrar uma palavra de sig-nificado conhecido, mas de forma gnlfica ainda obscura.

Nem sempre a colaboraeao da crianea e imediata,sobretudo quando existe experiencia escolar previa Com 0

ensino da escrita. Isso porque uma das areas mais ritualiza-das da aprendizagem e exatamente a produ~ao esciita. 0mesmo nao Ocorre Com a leitura. Os adultos aceitam Comnaturalidade a curiosidade infantil a respeito da interpreta-eao da escrita no ambiente urbano, na publicidade, em rotu-los, embalagens, etc. Ha uma aceitaeao tranquila das explo-raeoes de urn pre-escolar ao tentar decifrar escritas que Ihechamem a ateneao. No entanto, 0 adulto costuma agir deforma diferente quando a crianea tenta escrever. Ha fre-quentes tentativas de cOntrole sobre a produeao infantil.Ao contnirio do que Dcarre na 1citura, a escrita da criancae avaliada como errada quando nao corresponde a formasocialmente valida. 0 controle para evitar 0 erro e delibe-rado e se apoia na crenea de que este se consolida se naoe evitado. Mesmo durante a aprendizagem sistematica, acrianea so escreve a partir da copia de urn modelo e qual-quer desvio do convencional e imediatamente apontado ecorrigido. A ideia de que a aprendizagem da escrita so seinicia a partir da autorizaeao do adulto, e 0 controle expli-cito do que deve seT escrito, e suficientemente forte paraque a crianea tenha a percepeao de que para escrever devefaze-Io corretamente, a partir do easino escolar. Dai a crianease recusar a escrever antes de teT sido ensinada. rcaCao tanto

., ," C •........__

61

mats mtensa quanta maior for seu grau de conhecimentoou interacao com as pniticas escalares,)

Quando esta recusa ocorreu durante a coleta de dados,a crianc;a era encorajada a faze-Io. seoda convidada a escre-ver "como Ihe parec;a melhor" ou lido jeito que voce pen-sa". 0 indice das criancas que se negaram a escrever foimuito baixo. mas, mesmo assirn, tam bern interpret ado erntermos da evolueao global. Os resultados que apresentamosreferem-se a crianeas de 4 a 6 anos, de c1assemedia e baixa.

Antes de analisarmos os dados, e fundamental chamara aten~ao do leitor mais uma vez para os conteudos quesao essenciais na interpretacao de Ferreiro. Tradicional.mente, a escrita infantil fora olhada apenas nos seus aspec-tos figurativos, isto e, no seu aspecto gnifico, que tern aver com a qualidade do traeo grMico, com a distribuieaodas formas, com a orientacao da esc rita ou a orientacaodo traeado das letras (inversoes ou rotaeoes).

o contelido que Ferreirp & Teberosky procuramdemonstrar e aquele referente ao que a crianea quis repre-,entar e as estrategias utilizadas para fazer diferenciaeoese represemacoes. Estas constituem os aspectos construtivosda escrita, que sofrem uma evolueao regular, ja constata-dos como semelhantes em crianeas de diferentes Iinguas,illnbientes culturais e situacoes de producao.

Do ponto de vista dos aspectos construtivos desta evo-IlIl,'llo,Ferreiro constat a a existencia de cinco niveis sucessi.VII.Ii, que serao apresentados na sequencia.

H "J6tese pre-silcibica

Os do is primeiros niveis guardam entre si uma seme-IIlllll,'iI fundamental. As criancas nestes dois estagios iniciaisII' ('\'olucao nao registram tracos no papel com a intencao

Page 15: emilia ferreiro

",,\,: 'I

62

de realizar 0 registro sonoro do que foi proposto para aescrita. Na verdade, estas tentativas infantis de represent a-cao atraves da grafia demonstram que a crianca nao che-gou ainda a compreender a rela,ao entre 0 registro graficoe 0 aspecto sonora da fala. Nao sao as diferem;as au seme-Ihancas sonoras dos significantes 0 objeto do registro.

Na verdade, estes dois niveis sao mais facilmente defi-nidos peios seus aspectos de oposi,ao Ii fase crucial daaprendizagem da escrita, representada pelas conquistas donivel 3, onde ha a primeira tentativa rudimentar de estabele-eeT rela~ao entre marcas gnificas e sons.

Neste nivel, as criancas usarao 0 registro grafico comonota,ao do conteudo Iingiiistico, pela tentativa de realizara representa,ao dos aspectos sonoros da Iinguagem. Estemomento e categorizado por Ferreiro como dominado pelaconcePCao silabica da lingua escrita.

Os dais momentos que 0 antecedem sao, entao, catego-rizados como pre-silabicos para marcar a existencia de esta-gios previos onde a crianca nao demonstra a inten,ao deli-berada de registrar a pauta sonora da linguagem. A nomea-,ao destes estagios previos Ii hip6tese silabica como pre-sila-bicos tern dado origem a muitos equivocos. 0 nome ternsido assimilado pelos professores como se indicasse incapa-cidade da crian,a em dominar as silabas escritas das pala-vras. De fata, nestes niveis precoces da aquisir;ao, a frag.mentar;ao da palavra escrita em unidades menores e urn con.teudo inassimilavel. Mas nao sera a emergencia da hip6tesesilabica que representara a condi,ao para que esta assimila-,ao seja possibilitada.

Portanto, 0 usa da hip6tese pre-silabica indica apenasa existencia de uma concePCao da crianca quanta ao cara-ter da representa,ao realizado pela escrita, ainda distanteda indicaCao do evento sonoro da lingua falada.

E possive! inferir, a partir da analise dos dados apre-sentados por Ferreiro, que a escrita assume oeste momento

63

urn carater referendal onde a crianr;a procura registraralguns atributos dos objetos de que se fala. Nao e exata-mente 0 nome aquila que a escrita registrara, mas certaspropriedades do referente da palavra. Entre estes atributos,o tamanho e freqiientemente privilegiado.

Os exemplos que apresentaremos para iluslrar as coo-cep,6es de cada nivel de escrita sao produ,ao de criancasbrasileiras e, partama, naD reproduzem as ilustrar;6espublicadas na Psicogenese da Ifngua escrila. No entanto,o criterio de escolha dos exemplos procurou respeitar rigo-rosamente as caracteristicas semelhantes as produzidaspor crian~as argentinas, de forma a ilustrar os mesmoseventos.

Nivel 1 - Escrita indiferenciada

Uma das principais caracteristicas da escrita pert en-eente a este nlvel e a baixa diferencia~ao existente entre agrafia de uma palavra e outra. Os tra,os sao bast ante seme-Ihantes entre si e, dependendo do tipo de eserita com aqual a erianca teve maior intera,ao, os grafismos podemser constituidos de tracos deseontinuos (cujo modelo e 0

tra,ado da lelra de imprensa) ou com maior continuidade(inspirados pelo tracado em letra eursiva).

Dada a semelhanca que as escritas tern quando compa-radas entre si, 0 que as diferencia e apenas a inten,ao dop.odutor. A interpreta,ao, portanto, s6 pode ser feita pelop.6prio autor. Ainda assim, a leitura que a crianca faz,pos a escrita de eada palavra e muito instavel e, algum

'<"IIIPO depois, se 0 pr6prio produtor voltar a fazer novaIlllcrrretacao, podera atribuir aos grafismos nOVDSsignifi-

"I",. A figura I e exemplo de escritas deste nivel e per-Inld' n crianca de classe social baixa, freqiientando umaI'll (''icola publica.

Page 16: emilia ferreiro

646S

A esc rita e uma esc rita de names, mas os portadoresdesses nomes tAm, alem disso, outras propriedades que aesc rita poderia refletir, jil que a escrita do nOlTle nao e aindaa escrita de uma determinada forma-s~nOra-(1985, P.-184).

Algumas crian,as usam de uma estratogia que parecedemonstrar essa dificuldade de interpretar a propria produ-i;rio esc rita, que objetivamente nao distingue urn conteudode outro. A necessidade de encontrar apoio que garanta 0

,iwnificado no momento da leitura as faz parear desenho e,....nita. 0 desenho e_uma clara_.estrategia de remissao ao~.tllllcudoregistrado.

as dados constantes da Psicogenese da lingua escritalillllhcm cxemplificam esta conduta, indicando a existenciadt' ahmma indecisao momentanea das criancas para definir

De uma forma DaD sistematica, uma estratt~giautilizadapelas crian,as para proceder a alguma diferencia,iio entreos grafismos e reproduzir 0 tamanho do_objeto referido,fazendo corresponder a ele urn traco maior au menor, nadependencia do referente da palavra a ser escrita. Suzy. crian,ade 4 anos, demonstra essa conduta na escrita da serie de pala-vras propostas a ela. Ao ser proposta a escrita da palavraelefante, olha para 0 entrevistador e comenta: "Tern que serbern grande". Produz urn grafismo sensivelmente maior queos outros da serie. A escrita de passarinho e tambem visivel-mente menor que as outras. A conduta escrita de Suzy evi-dencia a t~tativa de refletir ,-.!\a_escrita.~m atributo doohjcto e naD 0 seu nome. NaG e 0 contexte lingiiistico, iSlae, as caracterIstic-asda palavra, 0 alva do registro. A palavrapassarinho. por exemplo, da serie a seT escrita, e a maisextensa se considerarmos a emissao sonora. No eotanto, 0

grafismo correspondente a ela e 0 menor, indicando que acrian,a esta alenta ao referente da linguagem. ao objeto quea palavra nomeia. E 0 que Ferreiro acentua, ao comentardados semelhantes:

'"Vi<1>

~., "

•• '" 0

'"~ en t: '""

ill ••

c

.!!' ~~l"

~

')IL '" ,.,

0

... 0E

" ,I~

0 -C_ C <1>o ~8 We I(..comra c~~Cticn~.9~~uo>~Eco~Q)

\

'. Q.wO..--C\IC'1 ..~L[)(()""': --G c:s::.\

:I LC- o.

••..~<"\)<r

<-'" I

----. ~C::::'

~L£"'

•...

C'l

<D

'""

Page 17: emilia ferreiro

, .

\ I

"j II

I

66

ou classificar os grafismos produzidos (desenho ou escrita).Ferreiro interpreta essa indecisao como decorrente das difi-culdades de compreender a fun~iio da escrita, fato que levaalgumas crian~as a responder Ii pro posta de escrita Comurn desenho, cIassificado por elas como escrita. Parecemestar indecisas quanta ao que a escrita representa: registrodo significado ou registro de palavras?

Niio e 0 que acontece com a produ~iio de determina_das crian~as, que distinguem perfeitamente desenho deescrita, colocando-os urn 30 lade do Dutro, como uma claratentativa de garantir significa~iio Ii escrita.

A partir da amBise dessa produ~iio e possivel indicaralguns pontos. Urn dos aspectos da conven~iio escrita ja seevidencia: a ordem linear. Neste exemplo, fica clara tambema necessidade de urn grande mimero de caracteres, ainda quea exigencia da variedade entre eIes naD seja muito acentuada.

Neste nivel, a caracteristica rnais importante e a maneiracomo as crian~as procedem Ii interpreta~iio: a leitura e glo-bal, naD se fazendo analise entre as partes componentes eo todo, inexistindo, portanto, tentativas de fragmenta~iiodo texto escrito durante 0 ato de leitura.

Nivel 2 - Diferenciac;:ao da escrita

A caracteristica principal das escritas categorizadascomo pertencentes a este nivel e Ii tentativa sistematica decriar diferencia~<iesentre os grafismos produzidos. A neces-sidade de diferenciar a inten~iio do produtor e objetivadapela cria~iio de totalidades graficas distintas.

A hip6tese da quantidade minima de caracteres quedeve compor uma escrita e a necessidade de varia-los conti-nuam como exigencias presentes. No entanto, estas exigen-cias siio agora acrescidas da inten~iio de objetivar as dife-ren~as do significado das palavras. Quando a disponibili-dade de letras conhecidas e pequena, a contluencia dessas

67

exigencias a serem cumpridas acaba pOT criar a necessidadede gerar totalidades novas pela altera~iio da ordem lineardas letras. Em outras palavras, utilizando-se de urn mesmorepert6rio, a ordem das tetras deve variar de uma escritapara outra, de forma a garantir a cria~iio de urn conjuntoque se diferencie do outro.

Figura 2

Barbara (5 anos)

8A~~A~A! escrita do pr6prio nome

i r- A E I ~.~~~~~~a\ C L..- 3. classe~ i~\ :~~"M<"."••,,"

E:t\ C. ~ytlullr •••• o geoUlmentl c.dld. pol'R~ln.Fe1loo.

A escrita de Barbara, constante da figura 2, demons-1111l'omo a criacao de totalidades diversas com 0 usa de'1wltas seis letras, conhecidas, pade leva-Ia a explarar aoIlllh,illlO as combinac;oes possiveis, 0 que significa umallllll\Vl'l aquisicao cognitiva.

Page 18: emilia ferreiro

68

69

Urn exemplo dessa antecipa,ao de uma combinatoriapode seT mais facilmente examinado peJa sequencia escritapar Larissa (figura 3), crian,a de 5 anos. de c1asse media.

Figura 3

E tambem frequente que neste nivel a erian,a, parinnuencia cultural, tenha se apropriado de algumas formasl'ixas e estaveis, particularmente a escrita de seu proprionome, Este conteudo, como ja apontamos em outrosllIomentos. e mais freqiiente em criancas de classe mediaprlas maio res oportunidades de interagir com atos de leitural' de escrita criados pelo contato mais intenso com leitores.

o efeito desta aquisi,ao pode ter resultados inversos.I I primeiro pode ser urn bloqueio momentaneo au profunda

111 I"calizar a escrita de outras palavras, sustentado pelahlt'in de que se aprende a esc rever copiando. 0 segundo. 0

1l'1l0 positivo. e a capacidade de prever outras escritas, ser-IlItlOestas primeiras palavras como rnodelos para produ-dl"" fUlUras.

A combinat6ria so nao e completa porque Larissa naotern recursos para comparar escritas que DaD estejam pr6xi-mas do ponto de vista espacial. Entre a segundo e a quartoregistro. lisa exaustivamente 0 recurso de alternancia deletras e. ainda que nao esgote todas as possibilidades. rea-liza uma impressionante explora.;ao com usa de urn numerode formas gnificas eXlremamente limitado (apenas Ires: O.He B).

Analisando as caracteristicas mais exuberantes destaeSlrategia. canst antes nos dados par ela coletados, Ferreirocomenta:

Parece-nos que cas os como estes sa-o particularmenteinstrutivos para apreciar a eventual contribuic;a.o do desenvol.vimento da escrita aD processo cognitivo. Tratando de resol-ver os problemas que a esc rita Ihes apresenta, as crian~asenfrentam, necessariamente, problemas gerais de classifica.~aoe ordena9ao. Descobrir que duas ordens diferentes dosmesmos elementos possam dar lugar a duas "totalidades dife.rentes e uma descoberta que tera enormes conseqOenciaspara 0 desenvolvimento cognitivo nos mais variados dominiosem que se exen;:a a atividade de pensar (1985, p. 190)"

~zj~~~8-~~.Ji

1fantoche

C' 09/09/92flanya de 5

Janos

A10fl-H- __ '" escr;ta do propr~ ] 10 nomeboneca

OQ H ]cabe,a

"'"0 8]fantoche

08 16 ] jogu;nho

\-'\\\0 ]peixe

OOH]dedo

1\0 t> ~ ]g;Z

\,

, ,

"I

Page 19: emilia ferreiro

7071

Figura 4Figura 5

1~ entrevista 03/09/9231/08/92

Criam;a de 6 anos, 8 meses e 25 dias Crian9a de 5 anos

T \-\t,- ,,"0 Cp\ R \...0 S ]escrifa do proprio nomeI \I

esc rita do proprio nome

SAGU P] mecanico~ \\Q\L ,

picareta ouLS ] oficlnal.- y (, \\I ,

R j Uf> L ~ ] telhado

"enxada

,II':

R \H) f>I U R pSI J parede

rastelo

f\A~~\ B i piS] motorL I

arado

T6Bf\\.. P R) i E F J carro

~~>1 <

II

8serra0

~~ Of; SEF ] Iuz

j~~\ f' ~ z!.!. .,

f lpa .E A N\r:-6 f 1 f to i R f] o~,ro","ro

iI &~l ~ ,

A enxada e do papai.I ,

~~

Page 20: emilia ferreiro

72

As figuras 4 e 5 silo outros exemplos de escritas destenive! e, ainda que todas as producees agrupadas neste COn-junto evidenciem progressos gnificos e construtivos em rela-cilo ao nivel precedente, compartiJham com ele a qualidadeda interpretacilo feita pelo proprio produtor. Assim sendo,a escrita continua mio analisavel em partes, seoda conside-rada como uma totalidade unica, nilo fragmentavel, 0 queleva a crianca a interpreta_la globalmente.

13

Nrvel 3 - Hip6tese silcibica

.,3~zi.."~

t&o

fo barco era at:: jV" , ...•

udf"::;':;'

U-z. LI I I

Illi i xe

I feT,mar

(RLT-Z°V. '",rn,,! '

Este nivel de aquisicilo e caracterizado pela emergenciade urn elemento crucial, ausente nos niveis anteriores: a crian-ca inicia a tentativa de estabelecer relacees entre 0 Contextosonoro da linguagem e 0 COntextognlfico do registra. A consi-dera,ilo dos aspectos sonoras da linguagem representa urn divi-Sor de aguas no processo evolutivo. A estrategia utilizada pelacrian~ae atribuir a cada letra ou marca escrila 0 registro deuma silaba falada. E este fato que constitui a hipotese siIabica.

o saldo qualitativo representado por esta estrategia levaa crianca il supera,ilo global entre a forma escrita e a expres-silo oral, fazendo com que, pela primeira vez, se trabalhe COma hipotese de que a escrita representa partes sonoras da fala.

Urn outro equivoco de interpretacilo deste construto tcO-rico, que com freqiiencia tern ocorrido entre os professores, e aassimiJacilo de que so se possa identificar a emergencia da hi-potese silabica quando a crianca demonstre conhecer e empre-gar 0 valor sonoro convencional das letras. 0 emprego de letrassem a consideracao de seu valor sonoro convencionaI ou aqualidade da grafia nao e condJCiiOJ,ara identificacao doemprego da hip6tese silabica. 0 fato crucial que evidencia aSua utilizacao pela crianca e atribuicilo de urn valor silabicoa cada marca produzida como parte de uma totalidade regis-trada. Seja esta marca fetra, pseudOletni, numera, letra comvalor sonora convencionaJ ou mia, a fragmenta-;ao do textoescrito.para]azer corresponder urn segmento oral a urn seg-mento escrito e 0 indicador da concepcaOSiI~bica de escrita.

II,

Page 21: emilia ferreiro

.1,1

,",u:,

74

No exemplo da figura 6, Henrique, de 6 anos e 8 meses,escreve marinheiro, gigante, navia e peixe fazendo corres-ponder a cada silaba oral uma das letras escritas. Noentanta, nao utiliza as letras com 0 valor sonora convencio-nal. Sua escrita tern a deliberada inten~ao de registrar 0

aspecto sonoro da fala, e a cada segmento emitido, oral-mente, 0 texto e fragmentado para regist,,!-Io.

VADE - ma-ri-nhei-roOFT - gi-gan-teASHZ - na-vi-o (sem interpreta~ao'da ultima letra)UZL - pe-i-xe

E interessante observar que, apesar da emergenciadeste novo esquema assimilativo, a exigencia ja esta prc-sente nos niveis anteriores de aquisi~ao _ a variedade decaracteres e a exigencia de urn minima de letras continuarntam bern presentes. Isso cria situa~oes extremamente confli-tivas para a crian~a, ja que, pelo uso da hip6tese silabica,as palavras peixe, barco e mar deveriam corresponder aduas marcas para peixe e barco e apenas urna para mar.Consequentemente, a escrita silabica destas palavras levariaa cria~ao de urn registro grMico Com urn numero de grafiasabaixo do minimo de tres letras exigido por Henrique paraque algo possa ser lido.

Eis aqui, c1aramente exemplificado, 0 conflito cogni-tivo gerado por esquemas de assimila~ao contradit6rios. Aescrita de palavras dissilabas ou monossilabas costuma serparticularmente perturbadora para a crian~a que ingressano emprego da concep~ao silabica da escrita. Em razaodeste desequilibrio, e porque a contradi~ao nao pode aindaseT superada, localmente. apenas na escrita das palavrasdissilabas e do monossilabo Henrique abre mao da hip6tesesilabica para atender a exigencia da quantidade minima deletras. Este e urn exemplo de como contradi~oes entre dois

75

esquemas de assimilar;ao pod em engendrar mecanismos deamplia~ao da estrutura cognitiva por perturba~oes decorren-tes de fatores end6genos ou de solu~oes de compromissomomenHineo que evitem acomodac;6es bruscas.

o conflito cognitivo gerado, e a consciencia desta con-tradi~ao que a crian~a enfrenta quando realiza a leiturade sua produ~ao, costumeiramente produz urn visivel des-conforto. A sobra de letras na escrita e a necessidade fre-qiiente de ter que se utilizar de urn numero menor de tetrasdo que aqueles definidos pela exigencia de urn numerominimo de caracteres podem suscitar tentativas de COffi-promisso entre os esquemas contradit6rios. E frequente acrian~a utilizar-se de letras nao interpretadas (no interiorda palavra), cuja fun~ao e apenas a de preencher a quanti-dade considerada como minima para a escrita. Uma outraforma momentanea de negociar 0 conflito e deixar letrassobrantes.

No entanto, essas contradic;6es endogenas, isto e.decorrentes das contradic;oes entre esquemas interpretati-vos. acabam por levar a crianc;a a abrir mao da quantidademinima de letras, fazendo predominar apenas a 16gica dahip6tese silabica. E 0 que ocorre com Henrique na entre-vi,ta seguinte, ocorrida apenas quatro dias depois. A ana-lise da figura 7 evidenda uma escrita onde ha uma quaseexelusiva monitoria da hip6tese silabica sobre 0 registrol'''CritO. Henrique escreve burro e gato utilizando.se delilia, letras para cada palavra. No entanto, a escrita de rat nrna.se ainda mais conflitiva. Usar uma unica letra e pro-tllIlir uma escrita muito aversiva aos olhos de Henrique."11'111 de prolongar a emissao sonora para registra-Ia emdUllS Ictras, a crianca ainda acrescenta duas (provavelmente11111 II compensar a ansiedade gerada pela escrita com uma1I11H'l1 Ictra, como exigi ria a hipotese silabica).

Page 22: emilia ferreiro

Figura 8

4~ entrevista 01/10/92

Crianr;a de 6 anos, 9 meses e 12 dias

f8f\I I I

gas 10 sa

"

I'

I,II,'

2!

Figura 7

3~entrevista 21/09/92

Crianr;a de 6 anos, 9 meses e 2 dias

\--\~ IV R. i ~ y f.,! ,

esc rita do proprio nome

(Vi G J A sI I I I I

hi po p6 la mo

XlI;zI I I

ja ca re/lM'JI I I

ca cho rroT2I I

bu rro

URI I

ga 10

zV«XI I

ra a ALl ~vlSCEfFEDTZ \'111111\\111111o hi po pO la mo es la de bo ca a ber la

.~o

J&~~.jI

I

t\ Erv~I6l{/~, ,

esc rita do proprio nome

M~ I G-Jt-t-F-I I I I

mai 0 ne S8

s9S l?~co ca co la

M~(I I I

wi6s£+M

I Ines cau

ODDI I

lad dy

~E NQ 0I I I I I I

A. co ca cola e

""lE\\I I I I

lei te rna <;:a

77

,~

•z&."~.i&

f

Page 23: emilia ferreiro

7879

escrita do proprio nome

•"j&~~~~i

i

Figura 9

1~ entrevistaCrianya de 6 anos

ra

ur

•<-U..A!»

I()

AHoAo.O'--.-/ '--.-/ "--.-./papa ga io

lOAOI I I I

di no ssau fO

tfA()I I IuoLQI I

NAMNIArnOA

I II ra

OVOlO 0I I I I I

so e fa fa

A figura 8 mostra a produ,ao de Henrique aproxima-damente dez dias depois, oode, durante a interpreta.;ao, 0excesso de letras e riscado. Permanece ainda 0 conflituosominimo de duas letras, demonstrado pela escrita de Nescaue Toddy. No entanto, a escrita silabica da crian,a e, destavez, realizada, em muitos pontos, pelo uso de letras empre-gadas com valor sonoro preciso. Isso s6 foi possivel porquea proposta a ser escrita incluia 0 nome de produtos cujoconsumo frequente, assim como a intera,ao com a publici-dade veiculada por anuncios impressos e pela midia eletro-nica, permitiu a apropria,ao da forma aproximada da escritaconvencional. Outros exemplos constantes nas figuras de 9a II demons tram 0 usa das letras em seus valores sonorosconvencionais. A crian,a emprega-as adequadamente,sobretudo as vogais, para registrar parte do valor foneticoda silaba oral. E curioso observar, em algumas produ,aes,como a letra H e utilizada para expressar 0 som "ea" au"ga". Este e urn dado recorrente nas crian~as em fase deaquisi,ao e po de ser interpretado como a assimiIa,ao donome da letra, AGA, aD registro fooetieo do "ga".

Ao acirramento do conflito entre hip6tese silabica ehip6tese da quantidade minima de caracteres, de caraterend6geno, M ainda 0 acrescimo de outra fonte potencialdo conflito. A escrita convencional com a qual a crian,aIida em seu meio senl interpretada por ela em termos dahip6tese silabica. Sobretudo quando Ie 0 pr6prio nome,quase sempre parte do repert6rio de formas fixas destascrian,as, ha muita dificuldade de ajustar a leitura. Sob ramletras que a crian,a nao risca porque sabe que sao compo-nentes da escrita convencional da qual ja se apropriou.Desta vez, portanto, 0 conflito e gerado pela aplica,ao deuma exigencia interna do sujeito (suas concep,oes sobre 0

objeto) a uma realidade exterior a ele (a escrita convencio-nal da qual se apropriou). Tambem a existencia de discor-dancia da leitura feita pela crian,a e pelo adulto, onde Msempre letras a mais au a menos, empurra a criam;a a reali-zar uma nova acomoda,ao. Ela descobre a necessidade defazer uma analise que va "mais alem" da hip6tese silabica.

~:

"

'\,.1,, •• 1

Page 24: emilia ferreiro

Figura 11UUIlr.<;io genlilmenlll cedldl

CIA R I55A <><>, Eo' d' "'" .'0,"'"\..- maio de 1992

L-' --;:--:-----=~=_ /\ ] Criam;;a de 5 anost'~n:..".I,G kT -",.J K R] jacare B IA ]melancla

( 0 ] t A ]moran go P \) \tapa;

b galo fv1 £\ ]mamao \ ~

GO] galo A R ]maya \~ HI] mamae

K 0 P]cachorro gAL] banana 0P ]vov6

R::J J cao M it:]mamao 00 ]vov6

- --~--- ~

Page 25: emilia ferreiro

82~

Nivel 4 - Hip6tese silcibico-alfabetica Figura 12

1~ entrevista 25/02192C,ian(:a de 6 anos

{ E A a~ ao

ALE XIV A D, I

escrila do proprio nome

ELF TI I I Ie Ie Ian Ie

!Ii"1:~

Ii.

iji

f

Q E"---./

re

LrTEI-\DI I I I I I18 Ian Ie e gor do

A

[

I ,

ES AI '-.../

on c;:a

N\A~OI I '------"

ma ca co

GAI I18 ca

As alteracoes a que nos referimos vao sendo feitas pon-tualmente, em alguns segmentos de escrita e naD em outr05,dentro da mesma palavra. Esta seria a utilizacao das hip6te-ses sihlbiea e alfabetica da escrita, que, por serem utili2a-das ao mesmo tempo, caracterizam a escrita sihibico-alfabe-tica. E urn momenta de transic;ao, em que a crianc;a, scmabandonar a hip6tese anterior, ensaia em alguns segmentosa analise da escrita em termos dos fonemas (escrita alfabeti-cal. As figuras 12 e 13 sao exemplos destes procedimentos,com maior predominio de segment os da escrita alfabetieana producao de Juliana.

Essa observacao e preciosa para 0 alfabetizador, poispermite a interpretacao deste lipo de escrita sob uma nova6tiea.

Comparadas com a escrita que respeita todas as normasda convenc;ao, estas produc;oes podem sec caracterizadascomo falhas pela existencia de muitas omissoes no registrode Jetras. E muito freqiiente que esses fatos sejam classifiea.dos como patoiogicos, indicadores de que a crianca estariacom falhas de percepcao - visual, auditiva ou artieulat6ria.

No en tanto, se compararmos tais escritas com aquelasdecorrentes da concepcao sHabica, poderemos enxergar aexistencia de acrescimo de letras ao inves de omissao. Acrianca agora agrega mais letras a escrita, tentando aproxi-mar-se do principio alfabetieo, onde os sons da fala saoregistrados pelo uso de mais de uma letra.

A interpretacao da escrita infantil numa perspectivaevoIutiva dota 0 alfabetizador de urn aparato teorico que Ihepermite olhar de forma natural a existencia destas producoes.Ao inves de enxergar uma crianc;a que "come letras", 0

conhecimento dos processos de aprendizagem conduz aobservacao IiteraImente oposta. Ha progresso na compreen-sao do sistema da escrita e nao patologia.

Page 26: emilia ferreiro

84 85

Figura 13

MA\~NZ.'-../ '-.../ I I

rna io ne se

4! entrevista 01/10/92Crianr;a de 7 anos, 1 mes e 9 dias

j"uLiANAI 1

esc rita do proprio nome

C OC.A'-.../ '-.../

co ca

C.OA\.J Ico la

Fiearn claras, aqui, que apenas as condicoes ligadas acontradi<;ao interna sao insuficientes para este avanCQ nadescoberta da organizacao da escrita convencional. Scm asinformaQoes fornecidas pelo meio - (na forma da disponi-bilidade de) formas fixas que permit am 0 refinamento daaprendizagem do valor sonora convencional das letras edas oportunidades de comparar as diversos modos de inter-preta<;ao da mesma escrita - 0 avanco DaD pode ocorrer.E muito mais frequente que as crianQas de classe mediatcnham maiores oportunidades de coordenar esses daisevent os e, em razao disso, possam avancar para este oivele 0 seguinte antes mesmo do ingresso na escola.

Veremos, agora, 0 est agio final de aproximaQao daescrita convencional, represent ado pela escrita alfabetica.

NE: Ie. LC.Ao\..J \J \Jnes ca u

f'I1A'Z,EA"-../ I I '-.J

rna i ze na

,NIo eA\..J V

rno ca

NL~SA'""-../ \..J

lei Ie

IODT.'---./ \..J

tod dy

A coc"I '-.J \J

A co ca

eOA\JI

co la

Eo 01£5 AI \J\JIi gos tosa

•~t~•~ji~~

Nivel 5 - Hip6tese alfabetica

Neste est agio a crianQa ja venceu todos os obstaculos~onceituais para a compreensao da escrita - cada urn doscaracteres da escrita correspondente a val ores sonorosmenores que a silaba - e realiza sistematicamente uma ami-Ihe sonora dos fonemas das palavras que vai escrever.

o que a crianQa tera aleanQado aqui nao significa auperaQao de todos os problemas. Ha 0 aleance da'legibili-

dade da escrita produzida, ja que est a podera ser maisI"dlmente compreendida pelos adultos. No entanto, urnuuplo conteudo ainda esta para ser dominado: as regrasIlormativas da ortografia.

A esc rita que se encontra na produQao da figura 14Illo,tra que a crianc;a dominou 0 codigo escrito de formaI 11,,1\ .10 como instrumento para varias func;oes.

() que e curio so nessa produQao e que a crianQa naotll'I"ll lie cscrever por medo de cometer erros, como ocorre

Pili u maioria das crianc;as que iniciam a escolaridade. AIII t \\'11,":1 dos erros ortognificos desta prod_!!c;~o e urn indi-

Page 27: emilia ferreiro

86

Figura 14

Crianr;a de 6 anos

AL\~•

~~PA~A(ODiIJO.5AURO

~

TAr U.s;lN \i0~ACA~~URso(A"\J

OUR~o~ rofO

jj~;~ji~~

87

cador da forma pela qual as crianeas chegaram a descobriras fun~6esda escrita, a representac;ao que esta realiza e asua organizac;ao. E 0 testemunho do percurso particularque fizeram, onde houve lugar para suas exploraeoes espon-taneas. Essas inconsistencias com a ortografia naD sao, noentanto, falOs permanentes e a superaeao das falhas dependedo ensino sistematico. 0 conte lido ortografico, assim comoos que se referem aos aspectos figurativos da escrita, anali-sados no capitulo anterior (distineao entre letras e nlimeros,letras e sinais de pontuac;ao. nomeac;ao e valor convencio-nal das letras e orienta,ao espacial da leitura), e tributarioda informa,ao do meio. Nao sao, pois, dedutiveis comoaqueles relacionados aos aspectos construtivos deste conhe-cimento.

Faremos, no capitulo final, comenta-rios sabre as inter-pretaeoes que estes dados tern suscitado em relaeao a ques-tao educacional e algumas dedueoes piausiveis para a pra-tica alfabetizadora, levando em conta as informa,oes decor-rentes da interpreta,ao do processo de aprendizagem da lin-ua escrita pela crianea.