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1 ENSAIO EM BUSCA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS Rodrigo Régnier Chemim Guimarães Promotor de Justiça em Curitiba, Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Penal da UNIFAE Centro Universitário Franciscano do Paraná e do UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas “Modernas Tendências do Sistema Criminal” da UNIFAE. RESUMO Em revisitação histórica das formas de emprego da palavra “sistema”, desde os gregos antigos até hoje, seu conceito somente ganhou contornos de precisão científica no século XVIII, com Immanuel Kant. Nessa medida os sistemas processuais penais não foram edificados como classicamente difundido pela doutrina (acusatório versus inquisitório). Essa dicotomia, assim, apresenta-se mais como fruto de análises modernas de discursos históricos esparsos e não sistemáticos, os quais são repetidos de forma irrefletida e estão a merecer revisão. I Introdução. O nascimento do processo como ciência. Uma das questões que ainda não foi bem resolvida pelos estudiosos do processo penal de matriz europeu-continental está relacionada aos sistemas processuais penais. A confusão conceitual e mesmo de identificação dos próprios sistemas é encontrada em diversos e renomados autores, tanto nacionais quanto estrangeiros, e vem contribuindo para a formação de gerações de juristas que não conseguem sequer compreender o significado prático desta falta de precisão científica. Não é demais esclarecer que, em grande parte, a culpa pode ser debitada ao pouco tempo de estudo do processo como uma ciência e, mais particularmente ainda, do pouco estudo cientifico do processo penal. Assim, para permitir melhor compreensão da questão relacionada à divergência

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ENSAIO EM BUSCA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães

Promotor de Justiça em Curitiba, Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR.

Professor de Direito Processual Penal da UNIFAE – Centro Universitário Franciscano do Paraná

e do UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas

“Modernas Tendências do Sistema Criminal” da UNIFAE.

RESUMO

Em revisitação histórica das formas de emprego da palavra “sistema”,

desde os gregos antigos até hoje, seu conceito somente ganhou contornos de

precisão científica no século XVIII, com Immanuel Kant. Nessa medida os

sistemas processuais penais não foram edificados como classicamente

difundido pela doutrina (acusatório versus inquisitório). Essa dicotomia, assim,

apresenta-se mais como fruto de análises modernas de discursos históricos

esparsos e não sistemáticos, os quais são repetidos de forma irrefletida e estão

a merecer revisão.

I – Introdução. O nascimento do processo como ciência.

Uma das questões que ainda não foi bem resolvida pelos estudiosos do

processo penal de matriz europeu-continental está relacionada aos sistemas

processuais penais. A confusão conceitual – e mesmo de identificação dos

próprios sistemas – é encontrada em diversos e renomados autores, tanto

nacionais quanto estrangeiros, e vem contribuindo para a formação de

gerações de juristas que não conseguem sequer compreender o significado

prático desta falta de precisão científica.

Não é demais esclarecer que, em grande parte, a culpa pode ser

debitada ao pouco tempo de estudo do processo como uma ciência e, mais

particularmente ainda, do pouco estudo cientifico do processo penal. Assim,

para permitir melhor compreensão da questão relacionada à divergência

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doutrinária a respeito dos sistemas, procede-se a breve retrospectiva de como

se deu a evolução científica do processo, a partir do século XIX.

Abstraindo a contribuição inaugural e ainda primitiva dos glosadores do

século XII e dos pós-glosadores da chamada “Escola de Bolonha”, até meados

do século XIX (e agora, em particular, entre os alemães1), o discurso unívoco

do direito material e processual era a tônica da exegese das regras do direito

romano antigo, patrocinada e defendida, na época (1814), por Savigny, que

raciocinava sob a ótica de que os romanos antigos consideravam a “actio”

como sendo o próprio direito material em movimento (no que se usou

denominar de teoria imanentista ou civilista da ação)2.

Procurando identificar equívocos de interpretação, surgiram as clássicas

releituras do direito romano antigo, particularmente aquela relacionada ao

conceito de “actio” dos romanos antigos, feita por Bernard Windscheid, em

1856, que vai provocar a famosa polêmica3 com outro jovem professor alemão,

Theodor Müther, o qual critica o trabalho do mestre mais antigo, dando a

entender que os romanos chamavam de “actio” o que os alemães

consideravam ser a “pretensão”, ou seja, algo diferente do direito material.

Anos mais tarde, advirá o aperfeiçoamento teórico do conceito de ação, com as

obras simultâneas de Degenkolb e Plòzs.

No mesmo século XIX e, paralelamente, sem desconsiderar outros

trabalhos que procuraram identificar a natureza jurídica do processo como algo

1 A esse respeito IHERING, Rudolf Von. É o Direito uma Ciência? Tradução de Hiltomar Martins Oliveira, São Paulo:

Rideel, 2005, pp. 61 e ss.. Vide, também, dentre outros, CHIOVENDA, Giuseppe. A Ação no Sistema dos Direitos. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 11, o qual esclarece: “E ainda é mister ter presente que na Alemanha, onde estas pesquisas aconteciam (já que na Itália e em França ou se aceitava a olhos fechados como claríssima a definição de Celso e de Justiniano, ou se perpetuavam as questões de Donell, de Hotomano, de Úbero, de Heineccio, sobre a correção sistemática daquela definição, e sobre a oportunidade de completar o “quod sibi debetur” com a menção dos direitos reais), na Alemanha, digo, a doutrina tinha diante de si uma dupla terminologia: a “actio” romana, sobre cujo sentido preciso se discutia há muito tempo, especialmente desde que a descoberta das Institutas de Gaio havia colocado claramente o ordenamento do processo romano clássico; e a “Klage”, entendida como “Klagerecht”, ou direito de queixa, termo que havia sobrevivido ao processo medieval alemão.” 2 SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Metodologia Jurídica, tradução de Heloísa da Graça Buratti, São Paulo: Rideel, 2005,

p. 31 e ss.. 3 WINDSCHEID, Bernard e MÜTHER, Theodor. Polémica sobre la actio. Buenos Aires: EJEA, 1974. Primeiro Bernard

WINDSCHEID publica, em 1856, na cidade de Düsseldorf, a obra: "Die Actio des römischen Civilrechts, vom Standpunkte des heutigen Rechts". No ano seguinte, em 1857, Theodor MÜTHER publica a crítica à Windscheid, na

obra "Zur Lehre von der römischen actio, dem heutigen Klagrecht". WINDSCHEID, por sua vez, rebate os argumentos de Müther, no mesmo ano de 1857, com a obra diretamente voltada para Müther, denominada: "Abwer gegen Dr. Theodor Muther".

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diverso do direito material, inicialmente, como se fosse um “contrato” e, depois,

um “quase-contrato”, e, ainda, as demais construções teóricas abstratas, é a

partir da obra de Oskar Von Bulow4, denominada “A Teoria das Exceções

Processuais e dos Pressupostos Processuais”, publicada no ano de 1868, que

o processo passa a ser considerado como uma ciência efetivamente autônoma.

Foi Bülow quem conseguiu aperfeiçoar a ideia do processo como uma relação

jurídica triangular, autônoma, unitária, complexa, pública e, abstrata.

Mesmo sua teoria podendo ser criticada a partir das posições

posteriores de outros famosos pensadores5, resta-lhe o mérito de ser o

precursor de uma visão mais científica do processo.

Ao lado deste discurso, é preciso considerar a própria concepção das

codificações, que também é desta época. O marco de destaque está nos

famosos Códigos Napoleônicos, dos quais, aqui, importa o Code d‟Instruction

Criminelle, de 1808. A força desta codificação pode ser representada pelo fato

dele ainda estar vigente na França e ter servido de modelo para os demais

Códigos de influência européia continental, em particular o Codice di procedura

penale italiano da década de 1930, o igualmente famoso Codice Rocco. Este

último, como se sabe, também é fruto da ideologia fascista e vai servir de base

ao nosso Código de Processo Penal de 1941, construído também sob a égide

de um discurso ditatorial (Estado Novo, Getúlio Vargas).

Nesta mesma primeira metade do século XX, a evolução da construção

da ciência do processo vai voltar a centralizar-se na Itália, onde, a par das

demais contribuições de Chiovenda e Calamandrei, dentre outros, Francesco

Carnelutti terá importância fundamental. Carnelutti é considerado o criador da

Teoria Geral Unitária do Processo, tendo a jurisdição como centro de todo o

discurso e como razão de ser da existência do próprio processo. Carnelutti 4 BÜLOW, Oskar Von. A Teoria das Exceções Processuais e dos Pressupostos Processuais. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama, Campinas: LZN Editora, 2003. 5 Em particular as obras de KOHLER (1888) e HELLWIG (1903), ambos na Alemanha, o primeiro com a teoria linear da

relação jurídica e o segundo com a teoria angular. E também, as obras de Adolph WACH, em 1889, ainda na Alemanha, com sua teoria da exigência de proteção jurídica, ou Giuseppe CHIOVENDA, em 1894, na Itália, com sua teoria potestativa; James GOLDSCHMIDT, já em 1925, com sua teoria da situação jurídica e, ainda, Jaime GUASP, na Espanha, com a teoria da instituição.

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dizia, já no início do século XX, que a Teoria unitária serviria para todos os

ramos do direito processual: civil e penal. Vieram as críticas6 e o abandono da

Teoria Geral unitária somente se dá ao fim da vida de Carnelutti, que acaba

reconhecendo a diferença entre o processo civil e o penal7. Esse

reconhecimento permitirá, na prática, a “independência” do processo penal da

visão civilista que costuma ser a matriz de suas interpretações.

Ou seja, com o perdão do reducionismo histórico acima pontuado, o

início da construção de uma ciência do processo, não obstante ainda numa

visão unitária (civil e penal), não ultrapassa 150 (cento e cinqüenta) anos na

história da humanidade, o que representa um “quase nada” se comparado ao

fato de que desde pelo menos 1780 anos antes de Cristo, o Código de

Hammurabi já trazia insculpido na grande pedra negra, regras de natureza

processual penal.

Desta forma, mesmo o processo sendo uma realidade que acompanha a

humanidade há mais de três mil anos, sua elevação à categoria de ciência,

pensada, elaborada e construída, com objeto próprio, é significativamente

recente. Daí, justamente, a dificuldade que, ainda hoje, os intérpretes desta

ciência encontram quando se deparam com situações que exigem um rigor

científico como é o caso, em particular, da identificação dos sistemas

processuais penais. Aliás, a dificuldade é dada também pela falta de precisão

histórico-científica aliada a não compreensão a respeito do que se entenda por

“sistema”, como se verá a seguir.

II – O emprego multidisciplinar da palavra “sistema”.

O conceito de “sistema” admite variações, sob óticas diversas, ora sendo

empregado em visão mais formal, apenas para pontuar a existência de um

6 A esse respeito, vide, dentre outros, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo

Penal, Curitiba: Juruá, 1989. 7 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. Tradução de Francisco José Galvão Bruno, Campinas:

Bookseller, 2004, pp. 56 e ss.; CARNELUTTI, Francesco. Princípios do Processo Penal (Direito Processual Civil e Penal), vo.. II, Tradução de Júlia Jimenes Amador, Campinas: Peritas, 2001, pp. 61 e ss..

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conjunto de regras, ora como se fora algo equiparado ao método de interpretar

as regras ou mesmo num simples “agrupamento de famílias” para usar a

expressão de René David8.

A palavra “sistema” e sua noção elementar têm origem grega, derivando

da conjugação das palavras “sýn” (que quer dizer: com ou junto) e “histánai”

(isto é, colocar, pôr)9, vindo a significar “conjunto”, “composto”, “construído” ou,

ainda, “totalidade construída” e, para estar presente, o sistema deve obedecer

a uma “unidade de comando”, a fim de evitar visões distorcidas nas

interpretações das regras que o estão a compor10. Mario G. Losano11, com

base no Thesaurus graecae linguae de Henricus Stephanus, esclarece que o

termo é traduzido como “coagmentatio, concretio, compages, compositio,

collectio, congregatio, acervus, cumulus”, dentre outros.

Do grego antigo, ganha tradução para o latim: systema, mas várias

outras palavras em latim a substituem, a exemplo de compago, constructio ou,

ainda, structura.12

Também não se ignora que hoje, como no passado, a noção de sistema

possa construir discursos variados, com empregos diversos da palavra. Assim,

além de servir a classificações e opções científicas e/ou metodológicas, a

palavra “sistema” continua sendo usada inclusive num plano mais genérico e

vulgar.

O que se tem, então, é que o emprego da palavra “sistema” sempre foi

amplamente difundido. Aliás, raras são as atividades que dispensam a

referência à idéia de sistema, não obstante, nem sempre se tenha a noção

precisa do que se está trabalhando. Fala-se, por exemplo, em “sistema

8 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A Carvalho, São Paulo:

Martins Fontes, 2002, p. 21 e ss 9 CAPPELLINI, Paolo. Sistema Jurídico e Codificação. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca e Angela Couto

Machado Fonseca. Curitiba: Juruá, 2007, p. 09. 10

Conforme COLUCCI, Maria da Glória. Fundamentos de Teoria Geral do Direito e do Processo, 3º ed., Curitiba: JM Editora, 2003, p. 29 e ss. e também, a respeito da origem da palavra: FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 37. 11

LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. 1. Das Origens à Escola Histórica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli, São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 09. 12

Conforme LOSANO, Mario G.. Ob. cit., pp. 15 e ss..

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planetário”, “sistema solar”, “sistema filosófico”, “sistema político”, “sistema

eleitoral”, “sistema social”, “sistema cultural”, “sistema populacional”, “sistema

educacional”, “sistema orgânico”, “sistema operacional”, “sistema financeiro”,

“sistema econômico”, “ecossistema”, e por aí vai, praticamente sem limites.

Chega-se mesmo a usar a palavra sem que isso possa ser compreendido por

quem a está empregando, a exemplo da afirmação que costuma provocar a ira

das pessoas em diversas situações do dia-a-dia: “infelizmente o sistema está

fora do ar...” ou, ainda, “é culpa do sistema...”. Enfim: quase todos os campos

do conhecimento humano podem ser tratados sob um “enfoque sistêmico”.

Assim, como visto, o uso da palavra admite visão multidisciplinar,

guardando especial construção teórica e significativa importância na

Sociologia, onde se destaca o trabalho de Luhmann13, ou mesmo na Biologia –

particularmente com Maturana e Varela14 ou, ainda, apenas no plano

gramatical e lingüístico, como o faz, por exemplo, Saussure15 e até mesmo,

mais recentemente, no campo da informática16.

Quando ao Direito, embora de certa forma atrasado em comparação a

outros ramos do conhecimento, o estudo dos sistemas tem provocado reflexos

recentes, particularmente influenciado pela obra de Claus-Wilhelm Canaris17.

No que concerne ao Direito Penal material, servem de exemplo as

teorias funcionalistas de Jakobs18 e Roxin19, que procuram superar a

consagrada metodologia analítica para emprestar visão sistêmica e funcional

13

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoría general.. Tradução para o espanhol de Silvia Pappe e Brunhilde Erker, Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontifícia Universidad Javeriana, 1998. 14

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin, São Paulo: Palas Athena, 2001. 15

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 20 ed., tradução de A. Chelini, José P. Paes e I. Blikstein, São Paulo: Cultrix, USP, 1997, p. 126. 16

com a edificação desta profissão da pós-modernidade: o “analista de sistemas”. 17

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução de A. Menezes Cordeiro, 2 ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. 18

JAKOBS, Günter. Fundamentos do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari; colaboração de Lúcia Kalil. São Paulo: RT, 2003. 19

ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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ao Direito Penal. O mesmo está se verificando no Direito Processual Penal,

como se verá mais adiante.

Diante deste quadro, o estudo dos sistemas, ou melhor, o estudo do que

se entenda por “sistema”, como entidade científica própria, ganha cada vez

mais campo e importância.

Assim, se o emprego da palavra é amplamente difundido, não é possível

continuar a tratá-la como algo apenas abstrato, sem qualquer precisão

terminológica, como se fosse uma “palavra-chave” que pudesse ser usada

sempre que não se soubesse exatamente do que se está falando.

Para evitar esse equívoco de análise, passa-se a investigar o emprego

histórico da palavra “sistema” ao longo dos tempos.

III – Usos primitivos da palavra “sistema” em Aristóteles (322 a.C.), em

Justiniano (533 d.C.) e na Idade Média (até Copérnico – 1473).

Considerando que a palavra “sistema” tem origem grega (como

destacado acima), o ponto de partida desta análise histórica do emprego da

palavra não deve ser outro, senão o de procurar evidenciar como era sua

utilização entre os gregos antigos.

Já de início vale o alerta de Tércio Sampaio Ferraz Junior20 ao apontar

que o significado que hoje se lhe atribui “não tem correspondência exata ao

uso que dela fez o pensamento grego clássico”, esclarecendo que “systema

não aparece aí nem como uma espécie característica de construção mental

(pensamento sistemático) nem como específico para determinadas disciplinas

científicas, nem ainda como titulação de livros ou estudos”.

Mario G. Losano vai mais além e pondera que os gregos adotavam a

palavra com, pelo menos, quatro significados distintos, dois deles técnicos e

20

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. O Conceito de Sistema no Direito, São Paulo: RT, 1976, p. 08.

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relacionados à música e à métrica e dois deles atécnicos, usados no dia a dia

pela população, caracterizando, na essência, “qualquer forma de organização

de qualquer elemento”21.

Seja como for, para a visão atécnica que serve ao presente ensaio, ou

seja, para fugir da métrica e da música, Aristóteles aparece como o principal22

precursor da utilização da palavra e, diversamente do referido alerta feito por

Tércio Sampaio, ao analisar-se os textos de Aristóteles, a palavra “sistema”

parece alcançar o sentido de organização das idéias, como um método de

análise de determinado tema central. De fato, em sua obra intitulada “Retórica”,

Aristóteles dá o tom da estrutura de seu pensamento desde o início23:

Retórica é a contrapartida da Dialética. Ambas referem-se a assuntos gerais mais ou

menos de interesse da compreensão humana e não pertencem a uma ciência definida.

Assim, todos os homens fazem uso delas em maior ou menor medida, pois tentam, de

certo modo, questionar e sustentar argumentos, defendendo-se a si próprios e

acusando outros. Pessoas comuns fazem-no aleatoriamente ou por meio da prática e

de hábitos adquiridos. Caso esses meios sejam possíveis, o assunto pode ser

claramente conduzido de modo sistemático, e por isso é possível inquirir os motivos

pelos quais alguns oradores obtêm êxito por meio da prática e outros

espontaneamente.

E mais adiante complementa:

Deixe-nos agora tentar solucionar os princípios sistemáticos da Retórica em si,

isto é, o método correto e os meios de sucessão no objeto que estabelecemos

anteriormente. Devemos começar do princípio e definir primeiro o que é retórica, antes

de seguirmos em frente.24

O que se vê, portanto, é que Aristóteles elabora uma dissecação de

todos os aspectos que envolvem a ideia de Retórica. Assim, não obstante não

chegue a definir exatamente o que se entende por sistema, deixa transparecer

21

LOSANO, Mario G.. Ob. cit., p. 10. 22

Ocasionalmente a palavra também é referida em Platão. 23

Aristóteles. Retórica, tradução de Marcelo Silvano Madeira, São Paulo: Rideel, 2007, p. 19. 24

Aristóteles. Ob. cit., p. 23.

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que o “sistema retórico” engloba diversos aspectos, diversos princípios, todos

concatenados entre si. Enfim, Aristóteles enxergava o sistema como uma

organização de idéias, não mais do que isso.

Depois de Aristóteles, a abordagem sistemática também se evidencia no

ordenamento jurídico romano antigo25, destacando-se, particularmente, as

Institutas do Imperador Justiniano, que também apresentam uma visão

organizacional das regras positivadas. Aliás, esta preocupação fica clara já no

Proêmio das Institutas:

“E, depois que harmonizamos as sacratíssimas constituições imperiais, até

então confusas, estendemos nossos cuidados para os imensos volumes da ciência

antiga do direito, e chegamos com o favor divino ao fim da obra, julgada tão

desesperada como atravessar o oceano a pé.

(...)

Assim, depois de reunidos os cinquenta livros do Digesto ou Pandectas, nos

quais está compilado todo o antigo direito, o que fizemos por meio do referido e excelso

varão Triboniano e de outros varões ilustres e eloquentes, mandamos organizar estas

Institutas em quatro livros, para que constituíssem os primeiros elementos de toda a

ciência legítima do direito.”26

E, no Título I, denominado “Da Justiça e do Direito”, Justiniano deixa

clara a linha mestra que deverá nortear toda a interpretação das demais regras,

na famosa definição dos preceitos do direito:

“Praecepta júris sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”

(Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não causar dano a outrem, dar

a cada um o que é seu)27

Do texto acima se extrai uma preocupação mínima de pautar-se por uma

organização dos textos legais, orientados por princípios claros e previamente

25

Sobre o tema, mais uma vez LOSANO, Mario G.. Ob. cit., pp. 15 e ss.. 26

Institutas do Imperador Justiniano: manual didático para uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado pela ordem do Imperador Justiniano, no ano de 533 d. C.. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, São Paulo: RT, 2000, p. 16. 27

Institutas do Imperador Justiniano: manual didático para uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado pela ordem do Imperador Justiniano, no ano de 533 d. C.., p. 22.

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definidos, o que pode ser visto como um embrião da estrutura sistemática, mais

tarde melhor pensada e definida.

Depois dos romanos e ao longo de boa parte da Idade Média,

decorrência da necessidade de aperfeiçoar-se a memória como mecanismo de

transmissão do conhecimento, o ainda embrionário pensamento sistemático,

ficará em grande medida estruturado e circunscrito às imagens arbóreas

(arbores), como destaca de forma precisa Mario G. Losano:

O homem medieval possuía em muitas coisas uma percepção diferente da

atual: mesmo estruturas de pensamento que hoje parecem simples, como as relações

de parentesco, muitas vezes lhe pareciam complexas. Além disso, como em toda

sociedade sem imprensa e sem uma alfabetização difusa, o que ajudava a

compreender e a recordar não era tanto a audição, e sim a imagem.

(...)

Para sintetizar situações complexas também externas ao direito recorria-se a

figuras geométricas, denominadas „estemas‟. Ao „emblema‟ ou „estema‟, acrescentava-

se uma representação figurativa, „a imagem total da representação artística e da

estrutura jurídica‟, que assumia o nome de „esquema‟. Além disso, também se utilizava

a imagem do cacho de conceitos, ou seja, da „pirâmide‟, e da „construção‟

arquitetônica, que se tornarão símbolos típicos do sistema a partir do século XIX. (...)

Mas a imagem mais antiga e significativa é a da „árvore‟ (arbor), que conheceu grande

difusão em todos os campos do saber, a ponto de nos textos italianos medievais

„estema‟ (stemma), „esquema‟ (schema) e „árvore‟ (arbor) acabarem sendo usados

como sinônimos.28

A par desta estrutura “arbórea” do pensamento, também neste período

pós-Justiniano, o discurso filosófico europeu continental ficará pautado pela

visão católico-cristã, despertando pensadores como Santo Agostinho e São

Tomás de Aquino, não obstante não se possa ignorar a “redescoberta” dos

textos de Aristóteles29 por volta do século XI.

28

LOSANO, Mario G.. Ob. cit., pp. 35 e 36. 29

Há quem atribua papel importante à redescoberta dos textos de Aristóteles, quatro séculos antes, como o dado revolucionário da cultura medieval, a exemplo de RUBENSTEIN, Richard. E.. Herdeiros de Aristóteles, como cristãos, muçulmanos e judeus redescobriram o saber da Antiguidade e iluminaram a Idade Média. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 15 e ss..

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Esse domínio do discurso religioso dificultará o crescimento da

humanidade sob o plano científico e somente sofrerá ruptura após lento

processo de questionamento da linguagem oficial, como se verá a seguir.

IV – O pensamento sistemático e o “processo de secularização” (1473 a

171230)

Como destacado acima, é preciso compreender que o discurso filosófico

europeu foi, durante muito tempo, “dominado” pela visão católico-cristã, ou

seja, desenvolvia-se a filosofia preocupado com a questão divina. Essa

estrutura discursiva começa a ser questionada com o Renascimento

quinhentista, em “movimento” que se pode denominar de “processo de

secularização”. De início vale o registro que a palavra “secularização” aqui é

tomada como equivalente a “dessacralização”, como a necessidade de

desapego com o divino e com a preocupação no ser humano e não apenas no

sentido de transmissão forçada dos bens da Igreja à autoridade do Estado,

conforme refere Habermas31.

A mudança paradigmática – para emprestar o termo cunhado por Thomas

Kuhn32 – no plano da ciência, vai se dar com Nicolau Copérnico (1473 a 1543)

que, com seu “sistema” heliocêntrico, “minou” a visão de mundo geocêntrico

aristotélico-cristão até então tida como absoluta33. Johannes Kepler sucede-lhe

na evolução do pensamento, aperfeiçoando o discurso copernicano com sua

“Astronomia Nova” datada de 1609, e sofrendo diretamente com o processo

por heresia de sua mãe34. Em contribuição relevante, Galileu Galilei (1610)

também se revela um marco importante, pois, em crítica mais direta à

30

O “processo de secularização” teve seguimento posterior a esta data, a exemplo das contribuições de Voltaire, Beccaria e tantos outros, culminando na Revolução Francesa. No entanto, aqui, o interesse de análise é limitado no período indicado. 31

HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana. Tradução de Karina Jannini, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 138. 32

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira, São Paulo: Perspectiva, 2007. 33

Sobre a “revolução copernicana” vide, dentre outros, JAPIASSU, Hilton. Galileu: o Mártir da Ciência Moderna, São Paulo: Letras & Letras, 2003, p. 13 e ss.. 34

Sobre a vida de Johannes Kepler vide CONNOR, James A. A Bruxa de Kepler: a descoberta da ordem cósmica, por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento por heresia de sua mãe. Tradução de Talita M. Rodrigues, Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

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Aristóteles – então doutrina oficial da Igreja –, sustentou a unificação das

regras “supralunar” (considerada a região celeste, um mundo perfeito e

imutável) e “sublunar” (considerada a região terrestre, um mundo imperfeito e

inacabado), procurando desmistificar a física e a metafísica aristotélicas.

Acabou, também ele, condenado pela Igreja em 163335. Na mesma linha, Isaac

Newton que, em 1670, questionou, dentre outras, a Santíssima Trindade e a

divinização de Cristo36.

Tem-se, portanto, diversas manifestações de repulsa ao pensamento

oficial da Igreja Católica. Outras tantas também nascem dentro da própria

Igreja Católica, a exemplo das idéias reformistas delineadas nas 95 teses

publicadas por Martinho Lutero, em 1517; do “Manifesto de Praga” de Tomás

Müntzer em 1521 e até mesmo de Calvino em 1535 (em que pese este último

também tenha servido aos interesses dos detentores do dinheiro – e, nessa

medida, de parcela do poder –, ao justificar a riqueza terrena)37. Também

contribuiu para atacar ironicamente os abusos da Igreja, o “quase padre”

Erasmo de Rotterdam em sua obra “Elogio da Loucura”, escrita em 150938.

Outros tantos criticaram a visão católica e alguns chegaram a ser

considerados mártires desse período, como os filósofos e freis dominicanos

Giordano Bruno e Tommaso Campanella, o primeiro morto pela inquisição

romana, em 1600, justamente por sustentar a idéia de universo infinito e a

existência de vários mundos semelhantes à Terra e por desenvolver críticas ao

processo inquisitorial39 e o segundo perseguido e condenado à prisão perpétua

em 1589, por defender Galileu Galilei e rebater o pensamento de Tomás de 35

Sobre Galileu Galilei vide a obra de WHITE, Michael. Galileu Anticristo. Uma biografia. Tradução de Julián Fuks, Rio de Janeiro: Record, 2009 e também JAPIASSU, Hilton.. Ob cit.. 36

Vide WHITE, Michael. Isaac Newton: o Último Feiticeiro. Uma biografia. Tradução de Beatriz Medina, Rio de Janeiro: Record, 2000 e também ARANTES, José Tadeu. Bacon e Newton: em busca da Alma do Mundo, São Paulo: Ed. Terceiro Nome: Mostarda Editora, 2005, p. 55 e ss.. 37

Sobre Martinho Lutero, Tomás Müntzer e Calvino vide, dentre outros, DE BONI, Luis Alberto. Escritos Seletos de Martinho Lutero, Tomás Müntzer e João Calvino. Tradução de Ilson Kayser, Martin N. Dreher, Helberto Michel, Arno F. Steltzer e Sabatini Lalli. Petrópolis: Vozes, 2000 e também DELUMEAU, Jean. O Pecado e o Medo: A culpabilização no Ocidente (Séculos 13-18), vol. II. Tradução de Álvaro Lorencini, Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 371 e ss.. 38

ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa, São Paulo: Sapienza, 2005. 39

BRUNO, Giordano. Tratado da Magia. Tradução, introdução e notas de Rui Tavares, São Paulo: Martins, 2008. Sobre a vida de Giordano Bruno e o processo a que foi submetido, vide WHITE, Michael. O Papa e o Herege. Giordano Bruno, a verdadeira história do homem que desafiou a Inquisição. Tradução de Maria Beatriz Medina, Rio de Janeiro: Record, 2003.

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Aquino, vindo a ser libertado, 27 anos depois, por gozar da proteção do Papa

Urbano VIII40.

É evidente que vários outros importantes pensadores da época poderiam

ser lembrados, a exemplo de René Descartes, que em 1641 publica suas

meditações metafísicas (o homem domina a natureza) e dá início ao

racionalismo; de Baruch Spinoza, seguidor da filosofia de Giordano Bruno e

cuja obra é permeada pela ideia de Deus, não necessariamente nos moldes

“oficiais” da Igreja41, situação que provocou sua morte, queimado na fogueira

em 167742.

No campo jurídico-filosófico a obra que provoca grande contribuição

crítica ao comportamento da Igreja da época é a denominada Cautio Criminalis

publicada anonimamente em 1631, na Alemanha (constava da capa da

segunda edição – 1632 – a referência a um incerto theologo romano), cuja

autoria foi atribuída ao jesuíta Friedrich Spee Von Langenfeld, não obstante,

em vida, tenha ele, por evidente receio da conseqüência, negado formalmente

sua participação na publicação da primeira edição (as demais edições foram

publicadas por iniciativas de terceiras pessoas)43.

A obra de Spee é estruturada em perguntas e respostas e, num discurso

crescente, vai apresentando as inúmeras razões para abandonar as práticas

inquisitoriais de interrogatório, em particular relacionadas com o emprego da

tortura, finalizando por criticar todos os métodos da Igreja na condução do

processo criminal. O interessante é que Spee parte de relatos de sua própria

experiência como inquisidor de “bruxas” ao passo que procura questionar a

40

CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. Tradução de Heloísa da Graça Burati, São Paulo: Rideel, 2005. 41

SPINOZA, Baruch de. Pensamentos Metafísicos. Tradução de Marilena de Souza Chauí Berlinck. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril ed., 1973, p. 22 e ss.. 42

Conforme STRATHERN, Paul. Spinoza em 90 minutos.Tradução de Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 7 e ss.. 43

SPEE VON LANGENFELD, Friedrich. Cautio criminalis, or a Book on Witch Trials. Traduzida para o inglês por Marcus Hellyer. Virginia: University of Virginia, 2003.

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legitimidade da Igreja em persegui-las, colocando-as, inclusive, em

comparação com os primeiros mártires cristãos44.

O que se percebe, portanto, desse longo período da história é que o

pensamento sistêmico/organizacional de Aristóteles ainda estava fortemente

presente. Assim, justamente por servir de suporte ao discurso oficial da Igreja,

legitimando, inclusive, os abusos da Inquisição, é que passou a ser

questionado, notadamente pelas construções científicas a partir de Nicolau

Copérnico.

De qualquer sorte, do mesmo jeito que se evidenciava em Aristóteles, os

pensadores da época ainda não traziam uma preocupação com a precisão

terminológica, ou seja, com o significado do que se compreendia como

“sistema”.

Aliás, segundo registra Niklas Luhmann, é somente a partir do ano 1600,

que começa a surgir a conotação “moderna” do que se entende por “sistema”45.

Esse período coincide com o surgimento das enciclopédias, a exemplo da

enciclopédia de Alsted, de 1610, que era apresentada como sendo um “sistema

mnemonicum”, aliado ao emprego da palavra na teologia46.

Em seguida também guarda destaque o trabalho de Christian Thomasius,

professor de filosofia em Leipzig e Halle47, em teses publicadas em 170148 (De

crimine magioe) e 1712 (De origine et progressu processus inquisitorii contra

44

SPEE VON LANGENFELD, Friedrich. Ob. cit., p. XIII e ss. e também p. 127 e ss. 45

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoría general. Tradução para o espanhol de Silvia Pappe e Brunhilde Erker, Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontifícia Universidad Javeriana, 1998, p. 30. 46

Conforme LOSANO, Mario G., Ob. cit., p. 45 e p. 60. 47

Conforme ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Tradução do alemão para o espanhol de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 563. A importância de Thomasius, também é referida por LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Traduzido por José Higino Duarte Pereira, Campinas: Russell Editores, 2003, p. 110 e 112, o que aponta Thomasius como professor de Halle. 48

A data precisa oscila entre os autores que a referem. Zafaroni informa o ano 1704, já Von Liszt apresenta os anos de 1701 e 1712.

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sagas49), onde critica diretamente a “vacuidade pensante” do Malleus

Maleficarum, para usar a precisa expressão empregada por Zaffaroni50.

Contemporâneo de Thomasius na mesma Universidade de Halle, e ainda

preocupado com a questão divina, destaca-se a importância, para a visão

sistemática, do professor Christian Wolff, como se verá a seguir.

Tércio Sampaio Ferraz Junior51 indica que é com o pensamento filosófico

de Christian Wolff, já em 1719, que a palavra “sistema” vai ser adotada em sua

visão moderna, ou seja, como “mais que um mero agregado de um esquema

ordenado de verdades”, mas pressupondo “a correção e a perfeição formal da

dedução”. Melhor será analisar o que o próprio Christian Wolff desenvolveu,

como se passa a expor.

V – A noção de sistema em Christian Wolff (1719).

Não obstante o filósofo Christian Wolff, discípulo de Leibniz, seja pouco

estudado nos dias atuais, sua obra teve importância significativa para o

desenvolvimento do pensamento kantiano, como se verá no tópico seguinte, e

é, sem dúvida, um marco no desenvolvimento da ideia de sistema.

Christian Wolff chegou à Universidade de Halle em 1706, para lecionar

Matemática e Ciências Naturais e lá se deparou com a predominância da

filosofia do também Professor Christian Thomasius (acima referido), a quem

não apreciava. Wolff, que começou lecionando matemática, para fazer um

contraponto ao discurso de Christian Thomasius, acabou enveredando para

outras disciplinas, em particular Física e Teologia. Ao lecionar Teologia Wolff

incutiu em seus alunos a necessidade de se buscar melhores definições e

49

THOMASIUS, Christian. De crimina magiae. De origine et progressu processus inquisitorii contra sagas, Ed. Rolf Lieberwirth, Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, Weimar, 1967, in Bibliotheca Augustana, www.hs-augsburg.de, acesso em 31 de março de 2009 50

ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I, Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª ed., p. 515 e ss. 51

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Ob. cit., p. 11.

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demonstrações, provocando receio nos teólogos de então, os quais, inclusive,

passaram a persegui-lo52.

No que diz respeito ao pensamento sistêmico, Christian Wolff quando

muito alcançou a noção de “ordem” e não propriamente de “sistema”, dizendo53:

Quando se considera conjuntamente uma multiplicidade como um todo unitário

e se encontra nela – de modo que se sucede simultânea e sucessivamente – alguma

semelhança, então surge uma ordem, já que a ordem não é outra coisa senão a

semelhança do múltiplo em seu suceder-se simultâneo e sucessivo.

(...)

Quando quero saber se algo está ou não em ordem, primeiro tenho que

distinguir com exatidão todas as coisas que são distinguíveis naquilo que se contempla

como um conjunto e que se considera como parte do todo. Em segundo lugar, tenho

que comparar aquilo que – enquanto ocupe um lugar determinado – se distingue em

cada uma destas partes. Assim se encontrará o que entre elas é idêntico. Se for

encontrado algo idêntico em todas estas partes, terá lugar nelas uma semelhança e se

terá descoberto assim, a ordem e, então, se poderá explicar aos demais, afirmar contra

os que o põem em dúvida e defender contra toda a objeção.

Em outra obra de Christian Wolff também se observa o embrião de uma

estrutura sistemática. Ele chegou a apresentar seu pensamento filosófico como

embasado nas seguintes premissas científicas54:

1) Devem ser utilizados somente termos definidos com precisão e princípios

suficientemente provados.

2) Somente deverão ser aceitas proposições que derivem de princípios

suficientemente demonstrados.

3) Devem definir-se (ou explicar-se) em definições prévias os termos contidos

nas proposições subsequentes.

4) Deve ser determinada com precisão a condição sob a qual se atribui o

predicado ao sujeito em cada proposição.

52

Conforme RUÍZ, Agustín Gonzáles. Presentación, in WOLFF, Christian. Pensamientos racionales acerca de Dios, el mundo y el alma del hombre, así como sobre todas lãs cosas em general, tradução para o espanhol de Agustín Gonzáles Ruiz, Madrid: Ediciones Akal, 2000, pp. 11 e ss.. 53

WOLFF, Christian. Pensamientos racionales acerca de Dios, el mundo y el alma del hombre, así como sobre todas lãs cosas em general, tradução para o espanhol de Agustín Gonzáles Ruiz, Madrid: Ediciones Akal, 2000, pp. 90 e ss. Aqui, em tradução livre do autor. 54

Segundo informa RUÍZ, Agustín Gonzáles. Presentación, in WOLFF, Christian. Ob. cit., p. 14, tradução livre do autor.

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5) As demonstrações devem suscitar na memória os conhecimentos

necessários para completá-las.

6) Devem ser ordenadas as proposições tal como se sucedem na mente de

quem as demonstra.

7) Devem ser aceitas hipóteses somente na medida em que sirvam ao

descobrimento de novas verdades.

Mesmo trabalhando com o conceito de “ordem” ao invés de “sistema”, é

notável a contribuição de Wolff para a discussão “organizada” das idéias

naquela época e até mesmo para a base de um discurso científico que vai ser

aperfeiçoado com Kant.

Percebe-se, portanto, uma firme preocupação metodológica em

Christian Wolff, sempre procurando construir o pensamento filosófico em

termos científicos.

Nessa mesma linha, Wolff ainda vai desenvolver a ideia de razão pura,

semeando o campo para a posterior crítica de Kant. Disse Wolff55:

DE QUANDO É PURA A RAZÃO.

Quando se compreende a interconexão das coisas de tal modo que se podem conectar

umas verdades com outras sem tomar proposição alguma da experiência, então a

razão é pura; quando, ao contrário, se tomam como apoio proposições da experiência,

então se mesclam entre si razão e experiência, e não compreendemos completamente

a interconexão das verdades entre si. Assim, quando a partir da experiência chegamos

a uma proposição, nos detemos e nossa razão não pode prosseguir.

Do que se percebe, então, o pensamento de Christian Wolff é o ponto de

partida para a construção do discurso crítico kantiano, como se verá a seguir. É

a base, portanto, da preocupação com a precisão científica dos conceitos,

evidenciada em Kant. Em particular com a precisão conceitual de “sistema”.

55

WOLFF, Christian. Ob. cit., p. 154. Tradução livre do autor.

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VI – Os Sistemas em Immanuel Kant (1781).

Como destacado acima, Immanuel Kant parte, em grande medida, da

organização do pensamento científico desenvolvida por Christian Wolff. Aliás,

em nenhum momento Kant esconde a origem de seu modo de pensar e a

admiração que nutria por Wolff, como ele mesmo admite:

“Na execução do plano traçado pela Crítica, isto é, no futuro sistema da Metafísica,

devemos pois seguir um dia o método estrito do famoso Wolff, o maior de todos os

filósofos dogmáticos. Este deu pela primeira vez o exemplo (e criou por seu meio o

espírito de profundidade que ainda não se extinguiu na Alemanha) de como se deve,

pelo estabelecimento regular de princípios, pela clara determinação dos conceitos, pelo

procurado rigor nas demonstrações, pela prevenção de saltos temerários nas

conclusões, tomar o caminho seguro de uma ciência”.56

Seguindo, portanto, a estrutura de pensamento de Christian Wolff no que

se refere ao conceito de sistema, Kant trouxe a informação de que todo

sistema deve estar fundado num “princípio da unidade sistemática” ou

“princípio unificador”, à luz do que ele denominou ser a “arquitetônica”57, que

consiste em unificar o conhecimento mediante uma ideia. Ou, em suas

palavras, quando afirmou noutro texto, intitulado “Prolegômenos”:

“Embora seja impossível uma totalidade absoluta da experiência, contudo a

ideia de um todo do conhecimento, segundo princípios em geral, é a única coisa capaz

de criar uma espécie particular de unidade, a saber, a de um sistema, sem a qual

nosso conhecimento nada mais é que um fragmento inútil para o fim supremo (que

sempre é o sistema de todos os fins); não entendo com isto somente o uso prático da

razão, mas também o fim supremo do uso especulativo.

As idéias transcendentais expressam, portanto, a determinação própria da

razão, a saber, como um princípio da unidade sistemática do uso do entendimento.”58

56

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1974, p. 19. 57

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Alex Marins, São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 584 e ss.. 58

KANT, Immanuel. Prolegômenos. Tradução de Tânia Maria Bernkopf. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 169.

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E, ao final de sua Crítica da Razão Pura, publicada em 1781, melhor

esclareceu a questão da “arquitetônica” como a “arte dos sistemas”:

“Por arquitetônica compreendo a arte dos sistemas. Como a unidade

sistemática é o que converte o conhecimento vulgar em ciência, quer dizer, transforma

um simples agregado desses conhecimentos em sistema, a arquitetônica é, então, a

doutrina do que há de científico no nosso conhecimento em geral e pertence, nesse

seguimento, necessariamente, à metodologia.

No domínio da razão não devem os nossos conhecimentos em geral formar

uma rapsódia mas um sistema, e somente deste modo podem apoiar e fomentar os fins

essenciais da razão. Assim, por sistema entendo a unidade de conhecimentos diversos

sob uma ideia. Esta é o conceito racional da forma de uma totalidade, na medida em

que nela se determinam “a priori” tanto o âmbito da diversidade quanto o lugar

respectivo das partes. Dessa forma, o conceito científico da razão contém o fim e a

forma da totalidade que é correspondente a um tal fim. A unidade do fim a que se

reportam todas as partes, ao mesmo tempo em que se reportam umas às outras na

ideia desse fim, faz com que cada parte não possa faltar no conhecimento das

restantes e que não possa ter lugar nenhuma adição acidental ou nenhuma grandeza

indeterminada da perfeição, que não tenha seus limites determinados “a priori”.

Portanto, totalidade é um sistema organizado – articulado – e não um conjunto

desordenado (“coacervatio”). Pode crescer internamente (“per intussusceptionem”),

mas não externamente (“per oppositionem”), assim como o corpo de um animal, cujo

crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna

cada um deles mais forte e mais apropriado aos seus fins.

Já em seguida, Kant reforça a necessidade do sistema ser identificado a

partir de uma ideia fundante, não guardando a mesma estrutura quando o

conjunto de regras é fruto de uma construção apenas empírica. Nesse caso,

Kant considera o conjunto de regras como se fosse apenas “uma unidade

técnica”, mas não um “sistema”:

“A fim de se realizar, a ideia necessita de um esquema, quer dizer de uma

pluralidade e de uma ordenação das partes que sejam essenciais e determinadas “a

priori” segundo o princípio definido pelo seu fim. O esquema, não sendo esboçado

consoante uma ideia, ou seja, a partir de um fim capital da razão, mas empiricamente

segundo fins que se apresentam acidentalmente – cujo número não se pode saber

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antecipadamente –, dá uma unidade técnica. Todavia, aquele que surge apenas em

conseqüência de uma ideia – onde a razão fornece os fins “a priori” e não os aguarda

empiricamente – funda uma unidade arquitetônica.”59

Partindo dessa divisão conceitual clara (entre o que é sistema e o que é

apenas uma “unidade técnica”) Kant avança e conclui que a ciência não pode

surgir de forma acidental, apenas pautada pela experiência (“tecnicamente”),

mas sim “arquitetonicamente”, ou seja, deve ser fruto de uma ideia fundante,

ou, para usar suas palavras:

“devido à afinidade das partes e à sua derivação de um único fim supremo e interno,

que é aquilo que primeiro torna possível a totalidade. Seu esquema deve conter, em

conformidade com a ideia, ou seja, “a priori”, o esboço – monograma – da totalidade e

a divisão deste nos seus membros e distingui-lo de todos os outros com segurança e

de acordo com princípios.

Sem ter uma ideia por fundamento, ninguém tenta estabelecer uma ciência.”60

Noutros trechos de suas obras, Kant volta a referir à necessidade do

pensamento sistemático, como nesta passagem do “Manual dos Cursos de

Lógica Geral”:

De wissen (saber) provém Wissenschaft (ciência), que deve ser entendida

como conjunto de um conhecimento como sistema (system), em oposição ao

conhecimento comum (gemeinen Erkenntiss), conjunto de um conhecimento como

mero agregado (Aggregate). O sistema que repousa sobre a Idéia de um todo que

precede as partes é o oposto do conhecimento comum, mero agregado de

conhecimentos cujas partes precedem o todo.61

E ainda:

É um projeto estranho e aparentemente absurdo querer redigir uma história

(Geschichte) segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse

adequado a certos fins racionais – tal propósito parece somente resultar num romance.

59

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Alex Marins, pp. 584 e 585. 60

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Alex Marins, p. 585. 61

KANT, Immanuel. Manual dos Cursos de Lógica Geral. Tradução de Fausto Castilho, 2 ed., Campinas, SP: Editora da Unicamp; Uberlândia: Edufu, 2003, p. 147.

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Se, entretanto, se pode aceitar que a natureza, mesmo no jogo da liberdade humana,

não procede sem um plano nem um propósito final, então esta idéia poderia bem

tornar-se útil; e mesmo se somos míopes demais para penetrar o mecanismo secreto

de sua disposição, esta idéia poderá nos servir como um fio condutor para expor, ao

menos em linhas gerais, como um sistema, aquilo que de outro modo seria um

agregado sem plano das ações humanas”62

O que se vê, portanto, é que, para Kant, é a partir da aceitação de se

estar inserido num sistema de regras (significantes) e do exato alcance de seus

significados que se pode vir, então, alargar os horizontes e estabelecer critérios

de exegese fundamentais, sem os quais as regras não devem passar de um

“agregado” ilógico e desorientado (ou de regras veladamente mal orientadas,

verdadeiras “falácias de acidente” a que se refere Irving Copi63).

Ou, ainda, para usar novamente as palavras do próprio Kant, ao tratar

da finalidade da natureza, antecipando a visão de Maturana e Varela, quando

afirma a necessidade de todos os órgãos dos animais atingirem suas

finalidades, pois, “se prescindirmos desse princípio, não teremos uma natureza

regulada por leis, e sim um jogo sem finalidade da natureza e uma

indeterminação desconsoladora toma o lugar do fio condutor da razão.”64

Temos, então, de forma precisa o pensamento kantiano a respeito de

sistema, estabelecendo que ele parte de uma ideia fundante e se orienta por

princípios unificadores, sem o que o conjunto de regras é assistemático. Além

disso, é necessário que o sistema seja construído a priori, a partir da referida

idéia fundante e não a posteriori pela mera constatação empírica, ou pela

reunião selecionada de fatos concretos.

Essa visão conceitual, como se verá adiante, permanece, ainda hoje,

como inatacável.

62

KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Org. Ricardo R. Terra. Tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 19 e 20. 63

COPI, Irving M. Introdução à Lógica. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1974, p. 82 e ss. 64

KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p. 05.

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VI – A Teoria Geral dos Sistemas de Ludwig Von Bertalanffy (1920 a 1970).

Depois de Kant, dos pensadores que se debruçaram sobre a questão

dos sistemas, procurando estudar e classificar essa noção, destaca-se o

austríaco Ludwig Von Bertalanffy e sua “Teoria Geral dos Sistemas”65, pensada

a partir de 1920, fruto de seus questionamentos no campo da biologia,

desenvolvida, em grande parte, nas décadas de 50 e 60 do século XX e

apresentada em forma de livro em 196766. Já de início destaca-se sua

importante observação de que a “ideia de sistema conserva seu valor mesmo

quando não pode ser formulada matematicamente ou permanece uma “ideia

diretriz” mais do que uma construção matemática”67.

Bertalanffy pondera que existem “leis gerais dos sistemas que se

aplicam a qualquer sistema de certo tipo, independentemente das propriedades

particulares do sistema e dos elementos em questão”68 e define “sistema” de

forma significativamente genérica, ou seja, como “conjunto de elementos em

interação”69. Ao que se infere, Bertalanffy está mais preocupado em construir

uma teoria geral – e levar os méritos históricos por isso70 – do que

propriamente em identificar um conceito preciso. Nessa linha ele elenca os

principais propósitos da sua “teoria geral dos sistemas”71:

“1) Há uma tendência geral no sentido da integração nas várias ciências, naturais e

sociais.

2) Esta integração parece centralizar-se em uma teoria geral dos sistemas.

3) Esta teoria pode ser um importante meio para alcançar uma teoria exata nos campos

não físicos da ciência.

4) Desenvolvendo princípios unificadores que atravessam “verticalmente” o universo

das ciências individuais, esta teoria aproxima-nos da meta da unidade da ciência.

5) Isto pode conduzir à integração muito necessária na educação científica.”

65

BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria Geral dos Sistemas. Fundamentos, desenvolvimentoo e aplicações.Tradução de Francisco M. Guimarães, 3 ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 66

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 31. 67

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 47. 68

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 62. 69

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 84. 70

O próprio Bertalanffy alerta o leitor de sua obra para seu exagerado egocentrismo na exposição do tema, revelando ao longo do texto uma preocupação com a paternidade do discurso. 71

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 63.

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Interessa destacar, desde já, o quarto propósito acima enumerado, ou

seja, o desenvolvimento de “princípios unificadores que atravessam

verticalmente o universo das ciências individuais”. Aqui fica evidenciada a

influência kantiana na construção da teoria geral, justamente pela identificação

do “princípio unificador”.

O fato é que Bertalanffy vai além de uma visão estrutural de sistema,

como fez Kant, para trabalhar com uma classificação dos sistemas, servindo de

base para a construção de outras teorias que procuram focar os sistemas em

relação às suas funções e não especificamente quanto à questão conceitual.

Assim, na teoria geral apresentada por Bertalanffy, os sistemas podem

ser abertos ou fechados72. Os sistemas denominados como “fechados” são

aqueles que estão “isolados de seu ambiente”, ou seja, que não se comunicam

com outros campos do conhecimento. Bertalanffy dá como exemplo de sistema

fechado a física convencional. Já os sistemas abertos “mantém-se em um

contínuo fluxo de entrada e saída”, sendo que os organismos vivos são

apresentados como exemplos marcantes de sistemas abertos. Bertalanffy

também esclarece que “em qualquer sistema fechado o estado final é

inequivocamente determinado pelas condições iniciais”, ponderando que “se as

condições iniciais ou o processo forem alterados o estado final também será

modificado”. Já no sistema aberto “o mesmo estado final pode ser alcançado

partindo de diferentes condições iniciais e por diferentes maneiras”.73

Essa dicotomia “sistema aberto-sistema fechado” será explorada por

diversos outros pensadores modernos da ideia de sistema, inclusive no campo

do Direito, como se verá em Claus-Wilhelm Canaris, na mesma década de 60

do século XX.

72

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 64 e ss.. 73

BERTALANFFY, Ludwig Von. Ob. cit., p. 65.

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VII - Os sistemas em Claus-Wilhelm Canaris (1968).

Saindo da esfera da biologia, Claus-Wilhelm Canaris publica em 1968

sua primeira edição, em alemão, do “Pensamento Sistemático e Conceito de

Sistema na Ciência do Direito”74. Trata-se, assim, de importante abordagem da

questão dos sistemas sob a ótica do Direito.

Canaris esclarece que devem se ter claros “dois pontos: em primeiro

lugar, o do conceito geral ou filosófico de sistema e, em segundo, o da tarefa

particular que ele pode desempenhar na Ciência do Direito”75.

Dito isto, Canaris externa, desde o início de sua obra, a preferência pela

definição de sistema dada por Kant, dizendo que “é ainda determinante a

definição clássica de Kant, que caracterizou o sistema como „a unidade, sob

uma ideia, de conhecimentos variados‟ ou, também, como „um conjunto de

conhecimentos ordenado segundo princípios‟”.76

Admitido, pois, o conceito kantiano, Canaris passa a explorar a questão

do papel deste conceito, concluindo que ele é o de “traduzir e realizar a

adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica”77

Em seguida Canaris volta a afastar os demais possíveis conceitos,

ponderando que “ao atribuir-se ao conceito de sistema jurídico as tarefas acima

caracterizadas, afastam-se, de antemão, da multitude dos conceitos

desenvolvidos até hoje, todos aqueles que não estejam aptos a desenvolver a

adequação interna e a unidade de uma ordem jurídica.”78

74

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução de A. Menezes Cordeiro, 2 ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. 75

CANARIS, Claus-Wilhelm, Ob. cit., p. 10. 76

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 11. 77

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 23. 78

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 25.

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Assim, Canaris entende que a questão central da definição dos sistemas

não pode ser resolvida pelo chamado “sistema externo”79 dado por Heck, o qual

não visa “descobrir a unidade de sentido interior do Direito”; pelo “sistema de

puros conceitos fundamentais”80 dado por Stammler, Kelsen e Nawiasky, o qual

aborda apenas “categorias puramente formais, que subjazem a „qualquer‟

ordem jurídica „imaginável‟, ao passo que a unidade valorativa é sempre de tipo

„material‟ e só pode realizar-se numa ordem jurídica „historicamente

determinada‟”; pelo “sistema lógico-formal”81, do qual se destacam os

pensamentos de Max Weber e de Wundt, que trata o sistema apenas como

lógico e não como de tipo valorativo ou axiológico; pelo “sistema como conexão

de problemas”82, de Max Salomon ou mesmo de Fritz Von Hippel, que trata o

Direito como “um somatório de problemas”, quando, em verdade, o Direito é

“um somatório de soluções de problemas”, além de não apresentar uma

unidade indispensável para a conexão interna83; pelo “sistema como relações

da vida”84 que em verdade trata apenas do objeto do Direito; e nem, tampouco,

pelo “sistema de decisões de conflitos”85 de Heck e da “jurisprudência dos

interesses”, os quais também partem da dicotomia de “sistema interno” e

“sistema externo” e são “muito pouco adequados para exprimir a unidade

interior e a adequação da ordem jurídica”86.

Desta preocupação pode-se inferir que a questão central para Canaris é

a identificação do sistema como tal, isto é, como adequadamente estruturado e

orientado por princípios unificadores. Nesse momento de sua obra, a questão

de uma possível abertura do sistema, fica em segundo plano.

Canaris, então, volta a trabalhar com o sistema “como ordem

teleológica” e “como ordem de princípios gerais do Direito”87. Ou seja, para ele

79

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 26. 80

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 27. 81

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 28. 82

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 45. 83

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 46 e ss.. 84

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 53. 85

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 55 e ss.. 86

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 63. 87

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 76.

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“a característica principal da ideia da unidade” é a “recondução da

multiplicidade do singular a alguns poucos princípios constitutivos”. E mais

adiante pondera: “Não se pode determinar, de antemão, quando deva um

princípio valer como „geral‟; também aqui se trata de um critério inteiramente

relativo. Para o conjunto da nossa ordem jurídica, não se poderiam considerar

todos os princípios como „portadores de unidade‟ e, com isso como

sistematizadores...”88 E finaliza, dizendo: “Assim, modifica-se a „generalidade‟

dum princípio com a perspectiva do ponto de vista; finalmente, é sempre

decisiva a questão de quais os princípios que se devem considerar

constitutivos para a unidade interior do âmbito parcial em causa, de tal modo

que a ordem dele seria modificada, no seu conteúdo essencial, através de uma

alteração num desses princípios.”89

O que se percebe, então, é que para Canaris é possível a presença de

mais de um princípio, ou seja, a presença de “princípios constitutivos

portadores de unidade”. Nesta medida, para que não se confundam os

institutos, Canaris sugere o retorno aos princípios gerais do direito90. Na

essência, portanto, Canaris não se afasta de Kant (assim como Kant, Canaris

insiste sempre na ideia fundante como característica essencial do sistema),

apenas aperfeiçoa seu discurso, já que também trabalha teleologicamente e na

presença de princípios constitutivos portadores de unidade, no plural, porém

básicos (os chamados princípios gerais do direito).

Em seguida, Canaris volta a dar destaque para a questão dos sistemas

abertos, analisando-os sob a ótica de um “sistema científico” e de um “sistema

objetivo” (“isto é, na própria unidade da ordem jurídica”)91. Em relação ao

“sistema científico”, esclarece que sua abertura representaria uma

“incompleitude e a provisoriedade do conhecimento científico”; já em relação ao

“sistema objetivo” a abertura é vista como a “modificabilidade dos valores

88

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 79. 89

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 79 e 80. 90

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., p. 85. 91

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 106 e ss.

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fundamentais da ordem jurídica”, ou seja, é aberto porque pode ser alterada a

legislação e, sendo dinâmico, assume a “estrutura da historicidade92”.

Do que interessa para a questão sistemática, Canaris conclui com a

abordagem prática da noção de sistema, merecendo destaque a opção pela

“interpretação sistemática” como forma de eliminar possíveis “quebras do

sistema” ou lacunas no sistema93.

A interpretação sistemática no campo do Direito ainda vai sofrer novas

influências, tanto da sociologia, quanto da biologia, como se verá a seguir.

VIII – Os sistemas em Talcott Parsons (1971).

No campo da Sociologia o norte-americano Talcott Parsons apresenta

sua concepção sistemática na obra intitulada “O Sistema das Sociedades

Modernas”94, publicada em 1971, onde trabalhou com o discurso funcionalista

dos sistemas.

Parsons considerou que os “sistemas de ação” teriam quatro funções

primárias, quais sejam: a manutenção de padrão, a integração, a realização de

um objetivo e a adaptação95. Mais adiante, trabalhando com uma visão de

sistema aberto, ponderou quanto à possibilidade de ocorrerem “zonas de

interpenetração” provocando “processos de intercâmbio entre os sistemas”96.

Desta forma, Talcott Parsons estabeleceu que os sistemas sociais são

sistemas que buscam um objetivo, acabam mantendo padrões pré-

estabelecidos, adaptam-se ao local onde se verificam e impedem que sejam

destruídos, mantendo sua integração. Na essência, como visto, não se afastou

da visão kantiana de sistema, pois continuou admitindo uma ideia fundante

92

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 107 e 108. 93

CANARIS, Claus-Wilhelm. Ob. cit., pp. 208 e ss.. 94

PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. Tradução de Dante Moreira Leite, São Paulo: Pioneira, 1974. 95

PARSONS, Talcott. Ob. cit, p. 15. 96

PARSONS, Talcott. Ob. cit, p. 17.

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(“busca de um objetivo”) e orientação por princípios unificadores (aqui

chamados de “manutenção de padrões pré-estabelecidos”). De qualquer forma,

como destacado acima, Parsons considerou os sistemas sociais como

“sistemas abertos”, emprestando, aqui, a terminologia cunhada por Bertalanffy

e passou a trabalhar na construção teórica das sociedades modernas.

Ou seja, o que se percebe é que Parsons também trabalha a partir da

visão kantiana, com especial preocupação com as funções dos sistemas,

mantendo a opção conclusiva pela ideia de sistemas abertos, que já era

admitida em Bertalanffy.

Nessa medida, Parsons dá início ao discurso funcionalista que será

igualmente explorado no campo da Biologia por Maturana e Varela e, também,

no campo da Sociologia, por Niklas Luhmann97, como se verá adiante.

IX – Os sistemas em Maturana e Varella (1985)

Como dito, mais uma vez a Biologia é quem apresenta discursos de

construção sistemática. Assim, depois de Bertalanffy é a vez dos chilenos

Maturana e Varela (professor e discípulo), darem vazão, já na década de 1980

(a primeira edição – não comercial – é de 198598), a uma apresentação

conceitual de sistema.

Os autores desenvolvem seu raciocínio na busca do que definiria os

seres vivos e, assim, trabalham com o conceito de “organização autopoiética”99,

ou seja, a capacidade dos seres vivos de “produzirem de modo contínuo a si

próprios”. Assim, para usar as palavras de Maturana e Varela, “o mecanismo

que faz dos seres vivos sistemas autônomos, é a autopoiese, que os

97

LUHMANN, Niklas. Teoria de la sociedad. Tradução para o espanhol de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos, Guadalajara, México, 1992, p. 30. 98

MARIOTTI, Humberto. Prefácio, in MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin, São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 13. 99

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin, São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 52.

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caracteriza como tal”100. Desta forma, Maturana e Varela, admitindo que não

podem “fornecer uma lista que caracterize o ser vivo”, optam por “propor um

sistema que, ao funcionar, gere toda a sua fenomenologia”.101 Assim, a função

autopoiética é que caracterizaria o sistema.

A partir desta concepção é que Maturana e Varela, então, ampliam sua

conclusão ponderando que “o fato de que os seres vivos têm uma organização

não é exclusivo deles, mas sim comum a todas as coisas que podem ser

investigadas como sistemas”102.

O interessante é deixar destacado, como fazem Maturana e Varela, que

“o aparecimento de unidades autopoiéticas sobre a superfície da Terra delimita

um marco na história do nosso sistema solar. É preciso que isso seja bem

compreendido. A formação de uma unidade determina sempre uma série de

fenômenos associados às características que a definem”103.

A sugestão de novo paradigma para a questão dos sistemas biológicos,

pautado pela visão de autopoiese, servirá de base para uma revisitação da

questão funcional dos sistemas, operada no campo da Sociologia por Niklas

Luhmann.

X – Os sistemas em Niklas Luhmann (1984)

Conforme destacado, valendo-se da visão autopoiética de Maturana e

Varela104, Niklas Luhmann vai desenvolver um conceito de “sistema social” para

analisar as “organizações” como sistemas complexos, compostos

essencialmente de decisões que geram seus próprios elementos,

representados por novas decisões.

100

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J., Ob. cit., p. 56. 101

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J., Ob. cit., p. 56. 102

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J., Ob. cit., pp. 56 e 57. 103

MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J., Ob. cit., p. 59. 104

LUHMANN, Niklas. Teoria de la sociedad. Tradução para o espanhol de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos, Guadalajara, México, 1992, p. 39.

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Luhmann não ignora a dificuldade conceitual a respeito do que se

entenda por “sistema” e, já no início de sua exposição do tema, pondera que

“em geral, pode-se falar de sistema quando se tem diante dos olhos

características tais que, se forem suprimidas, poriam em xeque o caráter de

objeto de tal sistema”105.

Mesmo assim, Luhmann procede à análise a respeito do conceito de

“organização”, baseado também na Teoria Geral dos Sistemas de

Bertalanffy106. Enfim, ele culmina por diferenciar “sistema” e “entorno”

(ambiente), dizendo “Tanto as condições de utilização, como também a eleição

dentro do âmbito das decisões utilizáveis, são influenciadas por decisões

organizacionais e resultam diferentes de acordo com a forma e história

organizacionais. A organização compensa, assim, um déficit lógico de

racionalidade nas decisões que são, em último termo, reduzidas à diferença

entre sistema e entorno.”107

Assim, Luhmann esclarece que “sistema e entorno, enquanto constituem

as duas partes de uma forma, podem sem dúvida existir separadamente,

porém não podem existir, respectivamente, um sem o outro.”108

Mais adiante Luhmann pondera a respeito do sistema complexo,

esclarecendo que “se pode caracterizar um sistema como complexo, quando

ele é tão grande, quer dizer, quando inclui tantos elementos, que já não se

pode combinar cada elemento com cada um dos outros, e assim as relações

devem produzir-se seletivamente.”109

Nessa linha de pensamento é que Luhmann busca outra visão de

sistema que possa ser aplicada para a definição de “Sistema Social”, dada a 105

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoría general. Tradução para o espanhol de Silvia Pappe e Brunhilde Erker, Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontifícia Universidad Javeriana, 1998, pp. 27 e 28. Tradução livre do autor. 106

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoría general. p. 31. 107

LUHMANN, Niklas. Organización y decision. Autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo. Tradução para o espanhol de Dario Rodriguez Mansilla, Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana, pp. 06 e 07, tradução livre do autor. 108

LUHMANN, Niklas. Teoria de la sociedad. p. 37. 109

LUHMANN, Niklas. Organización y decision. Autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo., p. 14.

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natural complexidade que as sociedades representam. Percebe-se, portanto,

uma necessidade de fugir do convencional conceito de “sistema” para

identificar um conceito capaz de lidar com a “complexidade organizada”.110

Assim, justamente por conta dessa complexidade é que a sociedade vai

precisar, cada vez mais, de subsistemas, a exemplo do Direito.

Desta forma, Luhmann também considera o chamado “sistema jurídico”

como integrante (como parte da engrenagem) do “sistema social”. O direito

atua como uma estrutura social, ou nas palavras de Leonel Severo Rocha: “O

direito, para Luhmann, embora visto como uma estrutura, é dinâmico devido à

permanente evolução provocada pela sua necessidade de constantemente agir

como uma das estruturas sociais redutoras da complexidade das possibilidades

do ser no mundo.”111

Essa interessante visão de sistema servirá, inclusive e como destacado

no início, de base para novos discursos funcionais no Direito Penal,

particularmente com Jakobs112 (que adota uma visão de sistema fechado,

autopoiético) e Roxin113 (que prefere um sistema aberto, comunicante com a

política criminal).

XI – A visão sistemática preferencial para o estudo e desenvolvimento

científico do processo penal.

De todas essas variadas utilizações da ideia de sistema, no entanto,

volta-se aqui, mais uma vez, para o seu plano conceitual, para dar preferência

ao conceito filosófico kantiano de sistema, o qual, como visto, continua sendo o

paradigma de todo e qualquer discurso que se desenvolva na matéria e que se

entende como mais preciso e o que melhor se aproxima de sua essência,

110

LUHMANN, Niklas. Teoria de la sociedad. p. 31. 111

ROCHA, Leonel Severo. SCHWARTZ, Germano e CLAM, Jean. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 32. 112

JAKOBS, Günter. Fundamentos do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari; colaboração de Lúcia Kalil. São Paulo: RT, 2003. 113

ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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32

servindo de base para a análise histórico-jurídica dos regramentos processuais

penais do passado e do presente.

É claro que toda visão reducionista pode implicar em alguma dificuldade

de enxergar além de sua própria redução, mas, para o ponto de partida de

orientação do conjunto de regras entende-se que não há como escapar dela.

Aliás, aqui, a redução conceitual é fundamental e, ainda que se possa

identificar características outras que complementam os sistemas e mesmo que

se auto-reproduzem para emprestar a preocupação de Luhmann, impende-se

orientar o pensamento por uma linha mestra sólida e irrenunciável.

Portanto, a noção de “sistema” deve ser compreendida a partir da

existência de uma ideia fundante e dos referidos “princípios unificadores” que

venham a interligar determinado conjunto de regras comuns; uma forma de

enxergar as regras como pertencentes a um todo e de interpretá-las de

maneira não excludente, mas principiologicamente orientadas de forma

unitária.

De outra sorte, ao mesmo tempo em que o sistema deve ser estruturado

de forma unitária e concatenada, não é possível esquecer o grau de

complexidade atingido pela sociedade, dentro do qual o sistema poderá vir a

ser modificado. Assim, aproveitando a precisa observação de Leonel Severo

Rocha, é possível admitir-se que “um sistema diferenciado deve ser,

simultaneamente, „operativamente fechado‟ para manter a sua unidade e

„cognitivamente aberto‟ para poder observar a sua diferença constitutitiva.”

Tem-se, portanto, os sistemas processuais penais como sistemas

“operativamente fechados”, mas “cognitivamente abertos”, implicando em

constantes revisões estruturais. Ou, como prefere Luhmann, tem-se mesmo um

sistema autopoiéitico, que se retro-alimenta, mas é aberto e fechado ao mesmo

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tempo. Mais uma vez é oportuna a análise apontada por Leonel Severo

Rocha114:

“Assim, a ideia de autopoiese surge como uma necessidade de se pensar aquilo que

não poderia ser pensado. É um sistema que não é fechado nem aberto. Por que?

Porque um sistema fechado é impossível, não pode haver um sistema que se auto-

reproduza somente nele mesmo. E um sistema aberto seria só para manter a ideia de

sistema. Se falamos em sistema aberto, já nem falamos mais em sistema, podemos

falar de outra coisa. Então o sistema fechado não é possível, o sistema aberto é inútil.

Há, aqui, então, a proposta de que, existindo um critério de repetição e diferença

simultânea, temos uma ideia de autopoiese.”

Do que já se disse até aqui é possível concluir que é a partir do conceito

kantiano que passarão a ser analisados os “sistemas” processuais penais, sem

se descurar de sua visão autopoiética e, por paradoxal que seja, permitindo,

simultaneamente, aberturas que provocarão modificações no futuro.

XII – Conclusão: a falta de cientificidade no estudo dos sistemas

processuais penais.

Como se pôde observar, a noção de sistema somente ganha a

dimensão que se tem hoje, a partir do pensamento kantiano, elaborado a partir

do ano 1781. Antes disso, desde a Grécia antiga, passando pelo período

imperial romano e durante toda a Idade Média, quando se falava em “sistema”

o melhor que se conseguia era aproximar-se da visão de “organização”.

Ou seja, antes de Kant não é possível afirmar que a humanidade possa

ter tido uma compreensão sistemática e, por conseguinte, possa ter construído

um sistema processual penal a priori, partindo de uma ideia fundante e

orientado por princípios unificadores.

114

ROCHA, Leonel Severo. SCHWARTZ, Germano e CLAM, Jean. Ob. cit., p. 38.

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As diversas teorias a respeito dos sistemas, desenvolvidas a partir de

Kant, como visto, não abandonaram sua visão conceitual, admitida até hoje,

pelo menos, como o ponto de partida.

Ignorando esse histórico desapego científico, a maior parte da doutrina

de processo penal – tanto a nacional quanto a estrangeira – traça alguma

análise quanto a questão dos sistemas de processo penal.

Dos doutrinadores de processo civil, destaca-se a abordagem de Hugo

Alsina115, renomado processualista argentino, que se preocupou com uma

definição de sistemas para o processo (genericamente, civil ou penal),

estabelecendo diversos critérios para os “sistemas processuais”, a exemplo da

iniciativa da acusação, da prova ser tarifada ou não, do julgamento ser popular

ou não, enfim, trabalhando com as clássicas características dos diversos

modelos de processo ao longo da história.

Porém, normalmente esse tema é tratado pela doutrina em geral de

forma superficial e não pode ser considerado como verdadeiro estudo dos

sistemas. Em alguns casos, particularmente na doutrina nacional, as

abordagens parecem meras cópias do que algum doutrinador ousou definir no

passado.

Um exercício interessante é observar que muitos doutrinadores –

mesmo estrangeiros – sequer citam suas fontes de pesquisa em notas de

rodapé, desenvolvendo o assunto como se fossem autodidatas e tivessem sido

os criadores do pensamento ali desenvolvido.

De outro lado, aqueles que são mais fiéis cientificamente, vão

remetendo a consultas feitas por outros doutrinadores, que por sua vez

remetem a outros tantos, em linha que deve ser considerada encerrada em

115

ALSINA, Hugo. Tratado Teórico Practico de Derecho Procesal Civil y Comercial, Parte Geral, 2ª ed., Buenos Aires: Ediar, 1963, p. 99.

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35

determinado pensador originário da visão dicotômica dos sistemas em

“acusatório versus inquisitório”.

Assim, fazendo uma pesquisa retroativa na doutrina, buscando-se as

fontes mais antigas usadas para legitimação dos discursos doutrinários

construtivos da dúplice ideia de sistemas processuais penais (acusatório e

inquisitório), chega-se a Alberto Gandino em seu Tractatus de maleficiis, escrito

ainda no século XIII (1299) e modernamente citado por Vincenzo Manzini116 e

por Franco Cordero117. Segundo informa Cordero, Gandino propõe a seguinte

indagação: “O que é a acusação e quando o acusador é necessário?” e, em

seguida, “expõe a forma como se julgam os delitos por inquisição”118. Ou seja,

identifica duas formas de início do processo, mas não chega a trabalhar com

uma visão sistemática diferenciada entre os dois modelos processuais.

Manzini também cita, dentre inúmeros outros autores medievais de

processo penal, a Bonicontro (também conhecido como Boniconti, ou

Bonincontro de Boattieri ou Bonicontius119), autor do Tratactus aureus de

accusationibus et inquisitionibus.

Outra referência histórica é o artigo de Angelo Gambiglioni, publicado no

Angelus Aretinus de Maleficiis, em 1555, de onde se extrai a famosa síntese:

inquisitio est magis favorabilis ad reprimendum delicta quam accusatio (“a

inquirição é mais favorável para reprimir delitos do que a acusação”)120.

Já Mirjan Damaska121 indica como fonte primária de contraponto entre

os dois processos, o artigo de Aemilius Ludovicus Hombergk zu Vach,

116

MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Tradução para o espanhol de Santiago Sentis Melendo e Marino Ayerra Redín, Buenos Aires: Libreria “El Foro”, 1996, p. 17. 117

CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo I, Tradução para o espanhol de Jorge Guerrero, Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000, p. 21. 118

Segundo CORDERO, Franco. Ob. cit., p. 21. 119

A grafia oscila dependendo da fonte pesquisada. O ano da publicação também não é preciso. Em pesquisa na internet, no site da Catolic University of America, aponta-se a morte do autor em 1380 (www.faculty.cua.edu/pennington/1298A-B.html, acesso em 24 de abril de 2009. 120

Referido por LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, tradução para o espanhol de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1989, p. 24. 121

DAMASKA, Mirjan R. The Faces of Justice and State Authority. A Comparative Approach to the Legal Process, New Haven and London: Yale University Press, 1986, p. 03.

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36

intitulado De diversa indole processus inquisitorii et accusatorii122, escrito em

1754 e publicado nos Analecta Iuris Criminalis, aos cuidados de Joannis

Friederich Plitt, em 1786123.

Nesse artigo Hombergk zu Vach traça as diferenças entre os dois

modelos de processo, mas também não chega a referir à ideia de serem

“sistemas” antagônicos entre si.

As notas de rodapé do artigo de Hombergk zu Vach, que indicam as

fontes de sua pesquisa, remetem o leitor à obra de Christian Thomasius,

intitulada De crimina magiae. De origine et progressu processus inquisitorii

contra sagas124, publicada em 1711.

Como se sabe, Christian Thomasius já havia publicado outros artigos

preliminares em 1697, intitulados “A heresia é um crime punível?” e “Sobre o

crime de bruxaria”, posteriormente compilados no “Ensaio sobre a Igreja, o

Estado e a Política”125.

Sucede que, de todos os textos referidos, não se identifica a presença

de uma visão sistemática a respeito dos dois modelos de processo (acusatório

e inquisitório).

Seja como for, pode-se dizer que ao longo dos séculos – em particular a

partir do século XIII, a doutrina em geral limitou-se a repetir a dicotomia entre

um modelo processual de iniciativa externa ao julgador e outro modelo de

iniciativa ex officio do magistrado.

122

VACH, Ludovicus Hombergk zu, De diversa indole processus inquisitorii et accusatorii, in PLITT, Joannis Friederich. Analecta Iuris Criminalis, Hanoviae, 1786, pp. 365-404. 123

PLITT, Joannis Friederich. Analecta Iuris Criminalis, Hanoviae, 1786. 124

THOMASIUS, Christian. De crimina magiae. De origine et progressu processus inquisitorii contra sagas, Ed. Rolf Lieberwirth, Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, Weimar, 1967, in Bibliotheca Augustana, www.hs-augsburg.de, acesso em 31 de março de 2009. 125

THOMASIUS, Christian. Essays on Church, State, and Politics, tradução para o inglês de Ian Hunter, Thomas Ahnert e Frank Grunert, Indianapolis, EUA: Liberty Fund, 2007. Tradução livre do autor.

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Acontece que, como visto acima, a noção precisa e científica de sistema

sequer existia ao longo destes séculos e, somente com Kant, em 1781, ou seja,

dezessete anos depois de Hombergk zu Vach ter escrito seu artigo, é que a

precisão terminológica se constrói.

Uma marcante obra de processo penal que se identifica após a

construção do pensamento kantiano e que servirá de referência a diversos

outros autores de renome (como, por exemplo, Mittermayer e seu famoso

“Tratado da Prova em Matéria Criminal”126, escrito em 1848 e também Giovanni

Leone, já no ano de 1961127) é a de Giovanni Carmignani, intitulada “Teoria

delle leggi della sicuritezza sociale”, escrita em 1832128.

Carmignani também manteve o discurso preexistente de dúplice visão

de processos (acusatório e inquisitório), traçando aspectos distintivos

históricos, mas não chegou a valer-se da ideia de sistema para essa

construção teórica. Dos diversos trechos onde Carmignani aborda a distinção,

destaca-se, pela síntese, o seguinte:

É, então, na índole do espírito humano, e é coerente à diversidade dos

métodos de pesquisar ou de demonstrar uma verdade, a distinção do processo

“accusatorio”, assim chamado porque o acusador é quem o move e adere, e o

processo “quesitorio” ou “investigatorio”, assim chamado porque o juiz, com base em

fundamentos prováveis, institui de ofício a pesquisa da verdade, ou do falso nas

notícias que conhece...”129

Depois de Carmignani a fonte de pesquisa da doutrina do século XX

passa a ser Enrico Pessina (1868), seguidamente citado como referência. É

precisamente no texto de Pessina, que se percebe a adoção da palavra

“sistema” como a designar os “modelos” antigos de iniciativa procedimental

126

MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da Prova em Matéria Criminal, tradução para o francês de C.A. Alexandre e para o português de Herbert Wüntzel Heinrich, Campinas: Bookseller, 1997, p. 33. 127

LEONE, Giovanni. Ob. cit., p. 22 e ss.. 128

CARMIGNANI, Giovanni. Teoria delle leggi della sicuritezza sociale, Tomo IV, Pisa: Fratelli Nistri, 1832, tradução livre do autor. 129

CARMIGNANI, Giovanni. Ob. cit,,, p. 32, tradução livre do autor.

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(inquisitório e acusatório). Das obras de Pessina, para exemplificar o emprego

da palavra “sistema” se extrai a seguinte passagem130:

“O Pontífice Gregório XVI, não obstante o “Regulamento de Processo” de 1831

conservasse tenazmente o sistema dos processos inquisitórios e secretos, sem se dar

conta dos progressos científicos e práticos do procedimento penal, mesmo com o

“Regulamento dos delitos e das penas” de 1832 trazendo vantagem do código penal

francês e dos códigos penais dos Estados da Itália.”

E, mais adiante, utiliza novamente a palavra “sistema”, fazendo-o no

sentido não preciso e técnico, mas como facilitação de compreensão da análise

que faz do Código da Ilha de Malta, de 1847, dizendo131:

“Mas aquilo que dá uma grande importância a este código e faz dele um dos melhores

monumentos legislativos é o procedimento judiciário, fundado sob o sistema inglês,

com modificações que o aproximam do sistema escocês de juízo definitivo, e às regras

dos códigos italianos sobre a instrução das provas. O procedimento não é puramente

acusatório, mas misto, estabelecendo o instituto do Ministério Público e a instrução nos

crimes graves. Mas o processo acusatório é de todo separado do instrutório, porque

nos atos de instrução o advogado da Coroa não tem qualquer espécie de ingerência. O

exercício do seu poder começa quando os atos lhe são transmitidos pelo poder

instrutório.”

Ao que se extrai da pesquisa, parece mesmo ser Enrico Pessina aquele

que adota, não tecnicamente, a referência a sistemas de processo penal.

Em seguida a Pessina, já no ano de 1875, encontra-se outro autor

seguidamente referido como fonte da doutrina moderna de processo penal.

Trata-se de Francesco Carrara, com seu famoso Programa de Direito Criminal,

também escrito na Itália. No volume II, da Parte Geral do Programa, Carrara

estabelece os critérios definidores do “sistema” acusatório, dizendo132:

130

PESSINA, Enrico. Dei Progressi Del Diritto Penale in Italia nel Secolo XIX. Firenze: Stabilimento Civelli, 1868, pp. 06 e 07. Tradução livre do autor. 131

PESSINA, Enrico. Ob. cit., pp. 84 e 85. Tradução livre do autor. 132

CARRARA, Francesco. Programma del Corso di Diritto Criminale, Parte Generale,, Vol. II, 9ª ed., Firenze: Casa Editrice Libraria “Fratelli Cammelli”, 1902, pp. 299 e ss..

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“As características especiais desta forma são:

1ª) A plena publicidade de todo o procedimento.

2ª) A liberdade pessoal do acusado, até a condenação definitiva.

3ª) A igualdade absoluta de direitos e de poderes entre o acusador e o

acusado.

4ª) A passividade do juiz ao recolher provas, sejam para incriminar ou para

absolver (“carico” ou “discarico”).

5ª) A continuidade dos atos.

6ª) A síntese em todo o procedimento.

Este sistema apresenta, em grau máximo, as garantias da liberdade civil aos

acusados, porém deixa em grave perigo a tutela do direito dos cidadãos, e não é

possível a não ser num povo eminentemente educado às virtudes cidadãs.”

O mesmo Carrara, ao tratar do sistema inquisitório, assim se

manifestou133:

“Porém, as primeiras bases do processo inquisitivo, como forma “ordinária”, foram

postas por Diocleciano; tendo predominado depois junto aos imperadores do Oriente,

recebeu no século XII, o seu definitivo ordenamento sistematizado por Bonifácio VIII..”

E, como havia feito antes com o modelo acusatório, estabelece também

os critérios definidores do sistema inquisitório134:

“As características do processo inquisitivo são:

1ª) Concurso de denunciantes secretos, que informem o magistrado investigador a

respeito dos delitos e dos delinqüentes por eles descobertos.

2ª) Direção das provas ao pleno arbítrio do juiz.

3ª) Instrução escrita, desde o princípio até o fim, e também defesa escrita.

4ª) Procedimento constantemente secreto, não somente com respeito aos cidadãos,

senão também com respeito ao processado, em cuja presença nada se faz, fora,

excepcionalmente, da “confrontatio”, e a quem não se comunica o processo enquanto

não esteja terminado e em estado de ser transmitido.

5ª) Encarceramento preventivo do processado, e sua absoluta segregação de todo

contato com outras pessoas, até o momento da defesa.

133

CARRARA, Francesco. Ob. cit., p. 301 e ss., tradução livre do autor. 134

CARRARA, Francesco. Ob. cit., p. 305 e ss., tradução livre do autor.

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6ª) Interrupção de atos, como também formulação da sentença à exclusiva vontade do

juiz.

7ª) ordem analítica até que ocorra a transmissão da inquisição especial.”

Não é demais registrar que Carrara também se vale, dentre outros, das

obras de Christian Thomasius (de 1711) e de Mittermaier (1848) como fonte de

pesquisa para a construção do sistema inquisitório135.

Assim, ao que consta, a doutrina de processo penal, sempre fundada

em visões históricas do passado e com forte base de pesquisa particularmente

nas obras de Carmignani, Pessina e Carrara, passa, de forma mais incisiva, a

partir do século XIX, a referir-se aos “modelos de iniciativa processual” (do juiz

ou do acusador) como se sistemas fossem.

Ou seja, não obstante a ideia de sistema tenha evoluído e atingido seu

ápice científico e conceitual a partir da filosofia kantiana (1781), fica evidente

uma despreocupação técnico-científica no campo do processo penal, com o

emprego da palavra “sistema” pela grande maioria da doutrina desde então.

Essa visão doutrinária do século XIX em diante é consagrada pela

repetição de que teriam sido construídos dois “sistemas” de processo penal,

em particular a partir do século XIII (e não dois, ou até mais, “modelos de

iniciativa processual”). É desta forma que a doutrina chega aos dias de hoje

acreditando que os “sistemas” sejam modelos ideais, pensados e

preconcebidos como tais, basicamente limitando-os à dupla: acusatório versus

inquisitório.

Para legitimar o discurso, particularmente a partir da obra de Carrara,

acima referida, escrita em 1875, alguns autores chegam a copiar os modelos

de Carrara, “juntando as peças” de diversas épocas apresentando-as

135

CARRARA, Francesco. Ob. cit., p. 302.

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unificadas, em quadros comparativos estanques dos dois “sistemas” ideais de

processo penal136, como se tivessem sido pensadas a priori naqueles termos.

O problema, então, é que na maioria dos casos, essa “doutrina de

repetição” tende a basear sua fala na pesquisa alheia, nem sempre precisa,

nem sempre calcada em critérios científicos claros ou mesmo em pesquisa

científica baseada em fontes primárias e, sobretudo, seguramente dissociada

da precisão científica kantiana a respeito do que seja um “sistema”.

Essas análises doutrinárias invariavelmente se servem de uma

retrospectiva histórica das regras processuais ao longo da história da

humanidade, para, com os olhos do século XIX em diante, buscar sistemas

ideais, acreditando que eles tenham sido deliberadamente construídos com

esse propósito no passado.

No entanto, o que não se pode perder de mente é que a análise histórica

das regras de uma sociedade, em determinada época, acaba confundindo o

intérprete na identificação dos pretendidos sistemas processuais penais,

notadamente por ignorar o básico, isto é, a ausência de uma visão realmente

sistêmica na Idade Média. É como diz Gregorio Robles, “as flutuações

doutrinárias possibilitam zonas do sistema mais ou menos claras ou mais ou

menos difusas, e até mesmo algumas sobre as quais não se pode obter um

mínimo de consenso”137.

Aliás, a própria investigação histórica de regras passadas,

necessariamente faz com que o intérprete acabe imprimindo nuances próprias

ou mesmo do presente em sua releitura. Ou, ainda, como alerta Pietro Costa:

“o texto não encerra um e somente um significado. O texto é muito mais um

cruzamento de possibilidades semânticas, tão mais amplo quanto mais sua

tessitura é rica e complexa. O texto não exibe „sozinho‟ seu significado: o

136

A exemplo de BARREIROS, José Antonio. Processo Penal, Coimbra: Almedina, 1981. 137

ROBLES, Gregorio. O Direito Como Texto. Quatro Estudos de Teoria Comunicacional do Direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves, Barueri, São Paulo: Manole, 2005, p. 07.

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significado é produzido, mais do que descoberto, pelo leitor. (...) O intérprete, e

portanto o historiador, não é um quadro negro sobre o qual imprimem-se

textos. Os textos dizem alguma coisa na medida em que são decifrados e

estimulados por um intérprete que intervém no processo interpretativo com

todo o peso de sua personalidade”138.

Assim, com o cuidado necessário para minimizar influências outras na

análise de textos históricos – particularmente doutrinas que revelam repetição

irrefletida de ideias alheias – e sempre preocupado em não perder o foco

metodológico (conceito filosófico kantiano de sistema) é que se deve refletir

sobre a identificação dos sistemas processuais penais classicamente admitidos

como válidos pela doutrina majoritária.

Desta forma, muito embora se possa visualizar no curso da história, aqui

ou ali, características mais ou menos uniformes de regras processuais penais,

nem por isso (ou melhor, não apenas por isso) se estará diante deste ou

daquele sistema. O problema, por outro lado, reside na dificuldade de

identificação de uma visão realmente sistemática, bem como das ideias

fundantes, ou, ainda, destes reais princípios unificadores, evitando “armadilhas”

prontas.

Ou seja, muitos autores de processo penal confundem características de

época, que até poderiam ser levadas em conta no plano secundário,

justamente, e com o perdão da redundância, apenas como “característica de

época de determinado modelo de processo”, mas que, no fundo, não

constituem, elas próprias, um sistema processual penal.

O desapego pelas fontes primárias, ou mesmo a equivocada seleção de

uma inexistente ideia fundante e/ou dos princípios unificadores dos sistemas –

o que, repita-se, é feito a posteriori pela doutrina, também conduz a equívocos

138

COSTA, Pietro. O Conhecimento do Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Curitiba: Juruá, 2007, pp. 11 e 12.

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conclusivos que guardam acolhida noutros autores e, pela repetição, tendem a

ganhar ares de veracidade.

Disso resulta a necessidade de uma revisitação histórica da noção de

sistema para permitir uma mudança paradigmática neste importante tema de

processo penal, quem sabe abandonando a dúplice visão empiricamente

elaborada, de todo inexistente como modelos ideais, para, com os olhos no

presente, permitir uma construção de um verdadeiro sistema processual penal,

agora sim a priori, a partir de uma ideia fundante e orientado por princípios

unificadores.