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1 ELEMENTOS PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA Autores: Evandro Ghedin; Elizabeth A. L. M. Matines; Whashington Aguiar de Almeida e Maria Roseane Rodrigues Sumário I. Introdução II. Considerações sobre o pensamento epistemológico Da epistemologia histórica de Bachelard e do falseacionismo popperiano à epistemologia históricocrítica III. Ciências físicas x ciências biológicas Ciência aristotélicaescolástica Ciência Moderna Ciência Contemporânea ou PósModerna IV. Esboços de uma história da Biologia e influências no currículo escolar V. Conclusão VI. Referências

Epistemologia

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Texto sobre epistemologia e filosofia do conhecimento

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    ELEMENTOS PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA BIOLOGIA

    Autores: Evandro Ghedin Elizabeth A. L. M. Matines Whashington Aguiar de Almeida e Maria Roseane Rodrigues

    Sumrio

    I. Introduo

    II. Consideraes sobre o pensamento epistemolgico Da epistemologia histrica de Bachelard e do falseacionismo popperiano epistemologia histricocrtica

    III. Cincias fsicas x cincias biolgicas Cincia aristotlicaescolstica Cincia Moderna Cincia Contempornea ou PsModerna

    IV. Esboos de uma histria da Biologia e influncias no currculo escolar

    V. Concluso

    VI. Referncias

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    I. Introduo

    Conforme Penna (2000), a Epistemologia designa a reflexo sobre a natureza do conhecimento, suas formas, caractersticas, origens, limites, obstculos e, sobretudo, o tema da verdade. A questo da verdade percorre toda a histria do conhecimento humano, especialmente porque, no caso do ser humano, teramos srias dificuldades de sobrevivncia sem o conhecimento como uma das estratgias para isso. Entretanto, a verdade uma questo controversa. Discutila no nosso objetivo aqui. O que pretendemos fazer um processo inverso: ao invs de questionar sobre a verdade, vamos fazer um esforo para compreendla a partir da validade de seus processos institudos pelas cincias, especialmente pela Biologia.

    Buscaremos entender a Epistemologia a partir de algumas leituras iniciais neste campo, relacionandoas com a histria da cincia, especialmente, a da Biologia e suas implicaes para o professor da rea. Assumimos uma perspectiva possvel entre outras que poderiam ser desenhadas para este fim. O que interessa aqui saber como os processos de conhecimento articulamse ao ponto de permitir a construo de certeza, sem deixar de lado a pergunta como possibilidade de instituir novos processos que se organizam pela problematizao criativa, que possibilita a autoorganizao de novas perspectivas para outros saberes.

    Procuramos desenvolver uma idia que nos remete a reflexo sobre as possibilidades e os critrios de validao do conhecimento cientfico, especialmente na rea da Biologia. Portanto, o que buscamos discutir e apresentar um debate em torno de questes que so significativas para nos ajudar a pensar o processo de como opera a cincia no seu percurso de elaborao e validao do conhecimento. Finalizamos essa Unidade com uma reflexo em torno de elementos da histria da Biologia como disciplina cientfica e como contedo de ensino nas escolas de educao bsica. Vejamos inicialmente, alguns dos principais movimentos epistemolgicos do sculo XX.

    II. Consideraes sobre o pensamento epistemolgico

    A epistemologia uma rea da Filosofia que nos permite refletir e questionar sobre o conhecimento. Ao longo da histria, perguntas simples e at bvias sempre foram feitas: o que o conhecimento? possvel o conhecimento? Quais so o fundamento e os processos do conhecimento? Como o ser humano adquire conhecimento?

    Atividade complementar 1

    Antes de iniciarmos um estudo mais aprofundado, seria interessante fazer uma pausa para compreender primeiro, o termo epistemologia. Como essa palavra no comum em nossa linguagem cotidiana, temos inicialmente, muita dificuldade de compreendla e de memorizar seu significado. Ento, procure em dois ou mais dicionrios (de lngua portuguesa ou de filosofia) o significado dessa palavra e sua origem etimolgica. Anote em um caderno, compare as duas descries (semelhanas e diferenas) e discuta com seus colegas. Essa atividade ajudar na compreenso e memorizao desse termo pouco comum em nosso linguajar, mas muito importante na formao de professores de cincias e biologia.

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    Como j dissemos na Introduo, a epistemologia nos apresenta a idia de apreciao do conhecimento e isso nos remete a outros dois conceitos: saber e cincia.

    Enquanto estudo reflexivo, a epistemologia consiste numa rea da Filosofia, autnoma da cincia, em constante construo, com um amplo campo de pesquisa, sendo caracterizada pela flexibilidade e dinamicidade. Etimologicamente, definese como o discurso sobre a cincia.

    Vale ressaltar, que a epistemologia sempre esteve relacionada ao progresso cientfico chegando ao seu pice no incio do sculo XX. A histria da epistemologia tem muito em comum com a histria da Biologia, com alguns destacados bilogos contribuindo para a construo de uma epistemologia contempornea, ainda pouco conhecida. nessa perspectiva que surge a psicologia das cincias com uma abrangente rea de pesquisa, visando elucidar as influncias do inconsciente sobre o pensamento lgico da pesquisa cientfica atravs da articulao das etapas do conhecimento que vo desde a infncia at a fase adulta. Outros utilizam a teoria da evoluo biolgica para propor modelos de desenvolvimento das cincias numa perspectiva histrica, crtica e tica.

    Da epistemologia histrica de Bachelard e do falseacionismo popperiano epistemologia histrico crtica

    Quando analisamos as principais contribuies da epistemologia, encontramos uma corrente proposta por Bachelard, chamada de epistemologia histrica. Todo o

    Para muitos autores, o saber mais amplo que a cincia, pois, enquanto a cincia um conjunto de aquisies intelectuais sistematizadas e organizadas passveis de serem ensinadas pedagogicamente, o saber um conjunto de conhecimentos, incorporados de forma sistematizada ou informal, prtica ou terica por uma pessoa numa dada cultura. Nesse sentido, entendemos por epistemologia, um estudo metdico e reflexivo do saber e de seus produtos intelectuais e pode ser dividida em: epistemologia particular (relativa aos saberes especulativos filosfico e religioso ou cientficos), epistemologia especfica (considera uma disciplina intelectualmente constituda), epistemologia interna (consiste na anlise crtica de um conhecimento para fundamentlo) e a epistemologia derivada (anlise apenas da natureza do conhecimento sem intervir nele).

    Gaston Bachelard (1884 1962), filsofo e poeta francs que estudou a filosofia da cincia. Foi influenciado pela Teoria da Relatividade de Albert Einstein, dentro do contexto da revoluo cientfica no incio do sc. XX. Partindo desses pressupostos, ele formulou suas proposies para a filosofia das cincias: a historicidade da epistemologia e a relatividade do objeto.

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    Karl Popper (19021994) foi filsofo da cincia, considerado por muitos como o filsofo mais influente do sc. XX. Popper rejeitou o empirismo clssico e a observao indutiva da cincia e argumentava que uma teoria deveria ser falseada por fatos e observaes at se encontrar uma teoria para explicar o fenmeno em anlise.

    pensamento de Bachelard baseado numa reflexo sobre as filosofias que esto implcitas nas prticas cientficas, construindo uma epistemologia concebida como a prpria histria da cincia. Contrrio a proliferao e consolidao de dogmas cientficos, Bachelard discordava veementemente da corrente positivista de Comte, que reduzia o papel da filosofia a uma mera formadora de snteses vulgares e morais, fazendo surgir uma epistemologia como produto da cincia capaz de se autocriticar. Para ele, o conhecimento no contemplativo, mas sim operativo, pois pela ao que a cincia se torna eficaz. No seu entender o progresso da cincia ocorre atravs de rupturas com o senso comum, realizadas pela comunidade cientfica a fim de no se tornar totalitria.

    A epistemologia de Bachelard caracterizada pela polmica, tendo como princpio as contradies e transtornos presentes na histria das cincias com o intuito de reformular o saber cientfico e reformar as noes filosficas. Outro nome de destaque na epistemologia histrica Thomas Kuhn, um polmico historiador da cincia.

    J a Filosofia das Cincias, ou epistemologia de Popper se preocupa com o grau de confiana que devemos depositar numa teoria cientfica a partir de nossas experincias. Para ele o conhecimento deve passar pelo crivo da falseabilidade e no da verificabilidade. Para Popper, uma teoria pode ser falseada e, ento, refutada para dar incio a outra teoria, mas, ao contrrio do que pensa a maioria das pessoas e, entre essas, muitos cientistas, uma teoria no pode ser confirmada como verdadeira. De acordo com Popper, o que uma teoria cientfica hoje, aps passar pelo processo de falseabilidade, tornase uma mera hiptese especulativa, tal como a teoria de Einstein fez com a teoria de Newton. Para Japiassu:

    [...] a epistemologia de Popper pode caracterizarse como uma crtica constante s concepes cientficas j existentes, tentando sempre instaurar novas hipteses ou conjeturas ousadas, a fim de atingir a explicao cientfica, jamais definitiva, mas sempre aproximada. As cincias no procuram jamais resultados definitivos. As teorias cientficas irrefutveis pertencem ao domnio do mito. (1977, p. 106).

    Percebese certa aproximao entre as teorias de Popper e Bachelard principalmente por serem epistemologias crticas e polmicas, pois Popper considera a cincia como um conhecimento provisrio, enquanto Bachelard a concebe de forma aproximada.

    Outro terico importante, para compreendermos melhor o desenvolvimento das cincias, Foucault. Para a reflexo filosfica de Foucault sobre a cincia, a Biologia no se enquadra entre os prottipos de cientificidade (matemtica, psicomatemtica, fsica e qumica), mas constitui um segundo eixo de saberes junto com a economia e as cincias

    Atividade Complementar 2

    Distribua tarefas com seus colegas a respeito dos pensadores relacionados e faam uma pesquisa em livros de Filosofia sobre a biografia de Comte, Bachelard, Popper e Kuhn, dando destaque para suas teorias a fim de compreender melhor suas idias.

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    Jrgen Habermas (18 de junho de 1929), filsofo e socilogo alemo, recorreu aos estudos de Charles Darwin sobre a teoria evolutiva, para explicar a produo do saber humano, pois considera a racionalizao comunicativa uma caracterstica possvel de ser aprendida.

    humanas. Ele instituiu uma viso histrica da cincia. Segundo Japiassu (1977, p.117), o intuito de Foucault estudar os momentos sucessivos da episteme ocidental, entendida como a relao entre conhecimento e cultura quer descobrir as etapas de sua progresso.

    Atualmente presenciamos o aparecimento de uma nova epistemologia: a epistemologia crtica baseada numa reflexo cientfica sobre a prpria cincia dentro de uma perspectiva histrica. Baseandose na epistemologia crtica, alguns cientistas comeam a compreender seu papel na sociedade e desejam construir uma cincia responsvel e consciente de sua funo social. Seguindo essa corrente de pensamento, um dos membros mais ilustres da Escola de Frankfurt, J. Habermas, fez um estudo profundo sobre a temtica Cincia e Sociedade e aborda as relaes entre cincia e tcnica e prtica social e poltica a partir de trs modelos: o decisionista, oriundo de Max Weber, que afirma existir uma subordinao dos especialistas queles que decidem politicamente o tecnocrtico que concebe uma inverso nas relaes entre o especialista e o poltico e o pragmtico, o qual considerado mais adequado, pois possibilita o dilogo entre o especialista e o poltico.

    Dessa forma, a epistemologia crtica demonstra que o poder do conhecimento se transforma no conhecimento do poder, onde a cincia ocupa o lugar da igreja exercendo as mesmas funes da teologia na Idade Mdia. Para a epistemologia crtica, a cincia no existe, mas sim as cincias, tendo ela o objetivo de distinguir dois mitos: o mito da cincia que leva ao progresso e o mito da cincia pura e neutra. Por muitos sculos a filosofia controlava o saber, mas com o surgimento de outras instncias do conhecimento, como: a matemtica, a fsica, a biologia etc., ela comeou a diminuir o seu domnio, comeando a deformar sua prpria histria.

    Piaget, atravs de sua Psicologia Gentica (para maiores detalhes ver PIAGET GARCIA, 1987), evidenciou a impotncia da Filosofia nessa rea do saber, pretendendo, a partir de seus estudos, fincar as bases de uma nova epistemologia a epistemologia cientfica. Sobre esse aspecto Japiassu afirma que a teoria de Piaget mostra que podemos utilizar a psicologia gentica para encontrar a soluo dos problemas psicolgicos gerais e dos problemas do conhecimento (1977, p. 35).

    Levando em considerao todas as influncias sofridas pelo conhecimento durante a sua construo, tericos desenvolveram uma nova concepo de pensamento epistemolgico, baseados em teorias da Biologia, como a teoria evolutiva. Alm de Piaget, outros bilogos se destacaram nessa rea, Maturana e Varela so os mais conhecidos, com a teoria sobre a Biologia do Conhecer. (MATURANA & VARELA, 2001).

    Como voc j sabe, Piaget construiu uma teoria de desenvolvimento conhecida como Psicologia Gentica que prope fases para o desenvolvimento cognitivo, moral e afetivo da criana. Analogamente, junto com Garcia, prope que a cincia tambm se desenvolveu por fases, em que se podia fazer anlises de diferentes nveis de complexidade: primeiro, tanto a criana como a cincia realizam anlise centradas nas caractersticas dos objetos (anlise intraobjetal), depois podem faze anlise interobjetias (relaes entre objetos) e por fim, anlises transobjetais (relaes entre relaes).

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    A seguir, convidamos voc para uma reflexo sobre o desenvolvimento das cincias, especialmente da histria da Biologia, buscando compreender melhor o desenvolvimento do conhecimento cientfico de nossa rea.

    III. Cincias fsicas x cincias biolgicas

    Segundo os PCNs Parmetros Curriculares Nacionais a cincia um fazer humano que se construiu historicamente em contextos especiais, resultando no alto grau de tecnologia e cientificismo presente em nossas sociedades contemporneas. Convidamos voc para um passeio rpido pelas grandes fases da cincia, tal qual a conhecemos. Podemos identificar trs grandes fases histricas na Cincia ocidental (veja mais detalhes em ANDERY et al, 1996), cuja anlise permite compreendermos um pouco as distines entre as chamadas cincias fsicas ou exatas e as cincias biolgicas. Resumidamente, vejamos quais so estas fases.

    Cincia aristotlicaescolstica

    O desenvolvimento da Cincia e a preocupao com a Educao para a Cincia apiamse em idias que remontam Grcia antiga. A idia de saber ou conhecimento foi definida por Plato e desenvolvida por Aristteles, constituindo a base da formulao de um conhecimento, sobre a qual se erigiu a cincia grega e ocidental e permaneceu quase intocada at o fim da Idade Mdia, no sculo XVI. Foram os gregos que desvincularam o saber prtico ou conhecimento emprico (teckn) do saber terico: a episteme (cincia) dos gregos era do tipo theoretike, ou seja, um tipo de saber adquirido pelos olhos do esprito e que ia alm de meros fenmenos empricos (MATALLO JR., 1988, p. 13). At hoje, temos problemas para relacionar teoria com prtica, especialmente na formao de professores.

    Para os gregos, a cincia era aquela atividade humana que buscava a essncia ou a verdade ltima das coisas que se encontrava muito longe da realidade concreta, emprica, sensitiva (GOERGEN, 1998). Para Aristteles, a finalidade da cincia consistia em fornecer ao homem conhecimento verdadeiro, eterno, imutvel, demonstrvel e que influencia trs esferas: na vida prtica, onde orienta a arte na direo da tcnica, a cincia auxiliar dos homens para dominar o mundo, curar doenas e resolver problemas na vida terica esse considerado o de maior valor, pois a dimenso contemplativa do saber que todo homem aspira, possui o carter dedutivo das demonstraes e finalmente no domnio tico, a cincia representa o esclarecimento da

    Resumindo o que vimos at aqui, podemos dizer que existem, no mnimo, trs grandes correntes epistemolgicas contemporneas que explicam a atividade cientfica atravs das relaes entre teoria e experincia, razo e fatos. So elas: a epistemologia lgica, que visa um estudo apurado das atividades cientficas e uma pesquisa metdica a epistemologia gentica, que parte de uma psicologia da inteligncia baseada no estruturalismo gentico e construtivista e a epistemologia histricocrtica, a qual analisa as teorias de uma forma crtica, numa perspectiva histrica.

    Aristteles (384 a.C. 322 a.C.), filsofo grego discpulo de Plato, foi grande influenciador do pensamento ocidental e contribuiu em diversas reas do conhecimento, entre elas, zoologia e histria natural. Ele foi considerado o fundador da zoologia, por ter feito a primeira diviso do Reino Animal.

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    Assim, Plato e Aristteles desenvolveram, no perodo clssico, a chamada cincia grega (ou episteme) baseada na reflexo, na observao, na lgica e na intuio, a qual durou at os fins da Idade Mdia, com forte influncia da Igreja Catlica e hoje conhecida como cincia clssicaescolstica. Perceba que a experimentao no fazia parte da prtica dos pensadores dessa poca e o que se chamava de cincia era baseado principalmente na reflexo (mtodo prprio da Filosofia).

    ao moral, conduz ao iluminada pelas virtudes tericas, contribui para que o homem decida com prudncia, ou seja, tenha disposio para decidir de acordo com o bem e segundo a justia (valores), baseado na razo. (MOSER, 1992, p. 734).

    A influncia de Aristteles no foi importante apenas no perodo imediatamente posterior a ele. Por muitos sculos sua viso de mundo, suas explicaes e sua proposta metodolgica imperaram como modelo de cincia. Indiscutivelmente, Aristteles foi responsvel por um imenso avano na discusso do processo de conhecimento. Ao abordar problemas que so centrais construo do conhecimento, como a lgica, e ao construir um sistema capaz de abarcar uma explicao do mundo fsico, do homem e um mtodo de obteno do conhecimento, Aristteles construiu um paradigma marcado por uma concepo de conhecimento eminentemente contemplativo, que se refere a verdades imutveis sobre um mundo acabado, fechado e finito. Um paradigma que, capaz de dar conta de todas as reas de conhecimento, caracterizouse por se constituir na forma mais acabada de pensamento racional que o mundo grego foi capaz de elaborar. (ANDERY et al, 1996, p. 96).

    Cincia Moderna

    Fatos como o renascimento/ humanismo, as grandes navegaes, as novas descobertas e invenes, a reforma protestante e o surgimento dos Estados Nacionais a partir do sculo XVI conduziram ao nascimento das cincias experimentais, nas quais a autoridade da Igreja questionada. Invertiase tambm o caminho para se alcanar o conhecimento: no mais nas profundezas da divindade, mas no ntimo da natureza passariam a ser procuradas as foras que unem o mundo e o critrio para o verdadeiro conhecimento, de ora em diante, passaria a ser a capacidade de dominar a natureza e colocla a servio do homem (GOERGEN, 1998, p.8).

    A Revoluo Industrial iniciada no sculo XVIII rompeu com a dicotomia cincia x tcnica, teoria e prtica: a tcnica (at ento artesanal), ao interagir com a cincia experimental, transformouse na Tecnologia estudo cientfico da tcnica e impulsionou o desenvolvimento da Cincia moderna. Desvendar as leis naturais atravs de experimentos e expresslas claramente em smbolos formais (lgicomatemticos) passaram a ser o ideal de cientistas/ filsofos.

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    Na busca do mtodo correto ou do mtodo universal a ser adotado na procura do conhecimento, vrios pensadores como Bacon, Descartes e Kant, contriburam para a imposio do modelo de racionalidade que passa a vigorar a partir do iluminismo: o conhecimento matemticogeomtrico, guiado pelo mtodo da induo emprica (GOERGEN, 1998, p.910).

    Esse movimento culminou com uma ilimitada crena na autonomia da cincia e da tcnica e, aps a Revoluo Francesa, ganhou grande prestgio na Frana. Acreditavase na imutabilidade das leis da natureza ou da natureza do homem apostavase que o conhecimento racional dessas leis poderia conduzir o homem sua maioridade (Kant) e que a utilizao tcnica desses conhecimentos (Bacon/ Descartes) garantiriam o progresso da humanidade (GOERGEN, 1998, p.910).

    E muitos se converteram Cincia como a uma nova religio, no apenas para terem um novo mtodo de conhecimento e investigao. Mas, porque acreditavam que o progresso da Cincia traria consigo a expanso da felicidade. E da bondade, claro. O corpo tinha razes para se alegrar. Finalmente a dor seria conquistada e o prazer reinaria, supremo (ALVES, 1988, p. 2730). As principais caractersticas do que alguns chamam de mito da racionalidade absoluta que predominou na Cincia Moderna so:

    [...] postula que seja l o que for cincia, objetiva considera que esta objetividade exemplificada pelo cientista neutro que registra os fatos sobre a natureza atravs da observao e da experimentao entende o conhecimento cientfico como o resultado de uma amalgamao destes fatos em generalizaes que se assemelham a leis (EYSENCK KEANE, 1994, p. 78).

    Desse modo, o tempo da religio e da filosofia foi substitudo pelo tempo da cincia. (DALEMBERT apud GOERGEN, 1998, p.10). Ou como diz Alves a Cincia comeou como uma nova religio, em que uma classe sacerdotal de roupa preta foi derrotada por uma classe sacerdotal de roupa branca (1988, p. 27). O mtodo lgico matemtico, tornandose o padro para qualquer conhecimento cientfico, identificase, aos poucos, com o prprio conceito de razo.. (GOERGEN, 1998, p. 12). Os pensadores da Escola de Frankfurt (principalmente Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse) tecem profundas reflexes e crticas estsa cincia e s conseqncias cruis que a ilimitada crena no progresso e nessa viso de racionalidade conduziram a humanidade. Para eles,

    Newton e a Lei da Gravidade

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    [...] a razo humana havia sido reduzida, enquanto um todo, a mero instrumento posto a servio de apenas um aspecto da racionalidade humana. Esta racionalidade, assim reduzida e absolutizada, segue suas leis prprias engolindo, no torvelinho de seus procedimentos, as demais dimenses do humano. Aquilo que uma vez fora proclamado a esperana de progresso e de justia, a racionalidade moderna terminara trazendo, em conseqncia de um conceito de progresso tambm unidirecional, muitos sofrimentos, destruio e dor (GOERGEN, 1998, p. 12).

    J que no era possvel estudar cientificamente problemas do tipo Por que existe vida? ou mesmo O que a vida? (problemas filosficos), os primeiros bilogos se apoiavam em trabalhos de campo para observao dos seres vivos e descrio de padres que pudessem representar o grupo de seres estudados (anlise intraobjetal, segundo Piaget). Ao fazermos perguntas do tipo como?, podemos fixar nossa observao no processo, ao invs de tentar estabelecer as causas dos fenmenos. Podemos descrever como os fenmenos biolgicos vo se transformando com o tempo.

    A tentativa de unificao da Biologia tem levado a uma maior aceitao da teoria da evoluo que se tornou explicativa de muitos fenmenos descritos de forma processual, permitindo propor relaes de causa e efeito tambm para fenmenos biolgicos.

    Cincia Contempornea ou PsModerna

    Em meados do sculo XX, os mais severos argumentos contra o conceito reduzido de razo e o teor ideolgico de cincia e tecnologia comeam a ser levantados pelos tericos da chamada teoria crtica e pelos pensadores psmodernos. Mais especificamente, a partir da Segunda Guerra Mundial, parece cada vez maior uma conscincia social ante o impacto das tecnologias, os efeitos sobre o meio ambiente, o agravamento entre pases centrais e perifricos, o crescimento das desigualdades sociais, o grave problema da excluso social pela supresso do emprego, etc. (GOERGEN, 1998, p. 12).

    Neste paradigma de cincia, h uma grande preocupao com a delimitao precisa das reas de atuao de cada tipo de saber produzido pela humanidade: o que saber popular, filosofia, cincia natural ou social e de cada ramo das cincias, cada vez mais numerosos devido ao reducionismo dos mtodos que levaram a uma grande diviso do conhecimento em disciplinas e s especializaes. Esse o modelo de cincia no qual se desenvolveram as cincias fsicas, que buscam estabelecer relaes de causa e efeito nos eventos naturais, a partir de perguntas do tipo: por que?. Esse tipo de questionamento no era possvel para muitos eventos biolgicos, de modo que a Biologia se iniciou com questionamentos do tipo: como?

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    Tambm o desenvolvimento das cincias sociais como a sociologia, a antropologia e a economia fez surgir mtodos prprios, diferentes daqueles desenvolvidos pelas cincias naturais. A crtica ao positivismo, ao empirismo lgico e ao mecanicismo fez surgir mtodos e paradigmas mais adequados ao estudo do homem e de sua cultura, levando paulatinamente a vises mais relativizadas, menos dogmticas e menos etnocntricas sobre o conhecimento. A compreenso de que a cincia uma criao histricosocial levou ao aprofundamento de estudos da histria da cincia, tentando compreender seu desenvolvimento e aes dos cientistas dentro de seus contextos econmicosociais.

    O desenvolvimento da lingstica, em suas interfaces com a antropologia, sociologia e psicologia, tem contribudo para questionar a linguagem cientfica: com a afirmao da razo moderna o novo cdigo passara a ser a linguagem matemtica, considerada a nica adequada ao rigor do conhecimento cientfico (GOERGEN, 1998, p. 20). A linguagem cientfica tornouse, assim, estrutural e hermtica, acessvel a poucos os iniciados e os cientistas (FAZENDA, 1999). Ou, no dizer de Santos, as outras linguagens a literria, a poticahumanstica, etc. foram todas consideradas indignas por seu carter analgico, imagtico e metafrico, conseqentemente, nocompatveis com o rigor tcnico do discurso cientfico (SANTOS, 1989, apud GOERGEN, 1998, p. 20).

    A cincia contempornea postula uma linguagem polifacetada ou admite uma pliade de linguagens: virtual, imagtica, tecnolgica admite a fala dos sujeitos (tanto dos sujeitospesquisadores quanto daqueles anteriormente considerados objetos) (FAZENDA, 1999) redescobre a hermenutica como mtodo adequado ao estudo da prpria cincia ou dos discursos dos diferentes sujeitos, envolvidos nas pesquisas (GOERGEN, 1998 SANTOS, 1989 NVOA, 1992).

    O conceito de verdade tambm profundamente abalado nesta nova concepo de cincia. O conhecimento cientfico no mais deve ser visto como na Grcia clssica: a verdade ltima das coisas (GOERGEN, 1998, p. 7), portanto, um tipo de conhecimento mais verdadeiro, mas como uma das diferentes formas de conhecimento humano (senso comum, cientfico, teolgico, filosfico, esttico, tecnolgico) que exprime condies materiais de um dado momento histrico (ANDERY et al, 1996, p. 12).

    Contriburam tambm para essa mudana: a teoria da Relatividade de Einstein (1905 e 1916) o desenvolvimento da fsica quntica a partir de 1900 e da Astrofsica a teoria da Indeterminao de Heisenberg, bem como uma nova viso de mundo trazida por essas e outras teorias cientficas. Essas teorias e a nova viso de mundo so diferentes da serenidade e estabilidade descrita por Newton: a de que o mundo tende ao caos, deteriorao, entropia (Leis da Termodinmica), um universo de incertezas e de situaes probabilsticas onde as categorias de tempo e espao no so absolutas, mas dependem da posio do observador e da velocidade com que ele se move, as diferenas entre matria e energia ficam cada vez mais tnues o rigor das experincias cientficas cada vez mais questionado, pois se constata que o prprio ato de observar interfere no que est sendo observado (SUPER INTERESSANTE, 1999).

    Hermenutica a tcnica ou cincia que tem como objetivo a interpretao de textos, sejam eles cientficos, filosficos ou religiosos.

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    Surge um novo conceito de verdade que tem como elemento central no a fixidez, mas o movimento discursivo em direo verdade.. Esta no mais vista como ponto fixo a ser atingido, mas como um processo, um confronto de argumentos (Habermas) enquanto tenso e luta entre verdades (Santos) (GOERGEN, 1998, p. 19). A retrica volta a ser valorizada, onde a fora dos argumentos adquire o sentido de processo de constituio da verdade. (GOERGEN, 1998, p. 20).

    Segundo Habermas, a argumentao no se esgota no processo lgico do discurso, mas inclui a horizontalidade dialgica do comunicativo, de modo que a dimenso lgica e dialgica definem, e devem definir, dia a dia mais, o proceder cientfico. E por isso, [...] estas duas caractersticas devem tornarse, tambm, dimenses bsicas da formao do cientista (GOERGEN, 1998, p. 21).

    Para concluir, esse pensador introduz por meio desse paradigma o critrio polticocomunicativo da discutibilidade como critrio essencial da cientificidade, de modo que do plano lgico a cincia passa tambm para o plano histrico que inclui conquistas, recuos e revises (GOERGEN, 1998, p. 25).

    IV. Esboos de uma histria da Biologia e influncias no currculo escolar

    As histrias das disciplinas escolares Cincias e Biologia e das Cincias Biolgicas precisam ser vistas de forma entrelaada, de modo a compreendermos muitos dos contedos e mtodos que ensinamos em nossas escolas. Entendemos que preciso conhecer quais elementos mais recentes do desenvolvimento do pensamento biolgico deixaram marcas na disciplina escolar Biologia. Nosso objetivo nesse momento no apenas apresentar elementos da trajetria das Cincias Biolgicas, mas comentar sobre a emergncia dessa cincia moderna e a relao que guarda com a Teoria da Evoluo e entender que essas questes so significativas para a constituio da disciplina escolar Biologia na Educao Bsica (MAYR, 1998).

    No incio do sculo XX, os conhecimentos das Cincias Biolgicas organizavamse em ramos que, embora se referissem a formas de vida ou aos processos vitais, possuam tradies epistemolgicas bem variadas. De forma geral, podemos dizer que esses conhecimentos caracterizavamse, por um lado, pelos ramos mais descritivos da Histria Natural, a Zoologia e a Botnica e, por outro lado, pelos estudos em Citologia, Embriologia e, especialmente, em Fisiologia Humana, que tinham tradies experimentais. Esse contexto fragmentado reforava o menor status dos conhecimentos

    Como uma das formas de conhecimento produzido pelo homem no decorrer de sua histria, a cincia determinada pelas necessidades materiais do homem em cada momento histrico, ao mesmo tempo em que nelas interfere. A produo do conhecimento cientfico no , pois, prerrogativa do homem contemporneo. A cincia caracterizase por ser a tentativa do homem entender e explicar racionalmente a natureza, buscando formular leis que, em ltima instncia, permitam a atuao humana.[...] Essas tentativas de propor explicaes racionais para o mundo transformamse numa questo sobre a qual o homem reflete: novamente aqui o carter histrico da cincia se revela: muda o que considerado cincia e muda o que considerado explicao racional em decorrncia de alteraes nas condies materiais da vida humana (ANDERY et al, 1996, p. 13).

    Enquanto a Zoologia e a Botnica se vinculavam a tradio epistemolgica da cincia clssica (empirismo observao, descrio, classificao) outros ramos se vinculavam mais a tradio racionalista da cincia moderna (hipteses submetidas experimentao).

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    biolgicos face s cincias mais consolidadas, especialmente a Fsica (MARANDINO SELLES e FERREIRA, 2008).

    A palavra Biologia foi cunhada por Lamarck e Treviranus no incio do sculo XIX, mas segundo a historiadora da Cincia, Vassiliki Betty Smocovitis (1996), a idia de unificao das Cincias Biolgicas s ganhou fora muito tempo depois. As mudanas que contriburam para o fortalecimento dessa idia unificadora resultaram da combinao de uma srie de fatores que se deram no interior da produo dos conhecimentos biolgicos pela comunidade dos cientistas, assim como da influncia dos movimentos sociais, filosficos e polticos das primeiras dcadas do sculo XX. Entre eles, foram significativos o surgimento da Gentica e o desenvolvimento de modelos matemticos ambientados em um movimento filosfico de grande significado para todas as cincias, o chamado Positivismo Lgico (MAYR, 1998).

    De forma bastante resumida, podemos dizer que essa corrente de pensamento filosfico, nas primeiras dcadas do sculo XX, defendia que o conhecimento vlido era aquele que se relacionava experincia. Incorporando os avanos da lgica e da matemtica, esse movimento desdobrouse como uma possibilidade de unificar todas as cincias em torno de um mtodo comum. O Positivismo Lgico ou Empirismo Lgico (lembrase de Comte?) associava as regras da lgica e os procedimentos matemticos experincia, tomados como critrios sobre os quais o conhecimento poderia ser considerado Cincia, a chamada Cincia Positiva. Os procedimentos experimentais, capazes de produzir dados representados e interpretados matematicamente e que garantiriam a objetividade e o carter cientfico, sustentaram filosoficamente a idia das Cincias Biolgicas unificadas.

    Atividade Complementar 3

    Faa uma pesquisa em livros de Filosofia e em nossos mdulos anteriores e relacione as principais caractersticas do Positivismo Lgico. Discuta com seus colegas em um frum, este tema, relacionando com a histria da Biologia aqui discutida.

    Essas idias de unificao provocaram a comunidade de bilogos a examinar o que poderia dar unidade a uma cincia Biologia dentro dos diversos e fragmentados ramos dos conhecimentos biolgicos. O processo se originou em torno de uma ressignificao, em bases genticas, da Teoria da Evoluo proposta por Charles Darwin em 1859, quando publicou sua obra A origem das espcies. Naquela ocasio, embora Darwin tenha criado a teoria da seleo natural para explicar a evoluo das espcies, suas explicaes continham lacunas, uma vez que as teorias existentes sobre herana no haviam incorporado o modelo mendeliano. De acordo com Evelyn Fox Keller (2002), a ligao das bases genticas com a teoria da Evoluo somente ocorreu nos primeiros anos do sculo XX, com as redescobertas dos trabalhos de Gregor Mendel.

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    preciso destacar que Darwin, embora tenha escrito sobre a variao e quisesse explicla, no desenvolveu uma teoria de herana, tendo se utilizado dos modelos explicativos compatveis com o desenvolvimento do seu tempo. A explicao proposta por Darwin, segundo Michael Rose (2000, p. 47), combinava herana miscvel, ou das misturas, com a herana dos caracteres adquiridos, uma vez que a primeira no explicava a variao e se tornava um obstculo para a evoluo. Como Darwin no conseguiu provar sua teoria da herana, ele mesmo veio a rejeitla (ROSE, 2000).

    A impossibilidade de associar a Evoluo a uma teoria de herana que a sustentasse teve desdobramentos que marcaram as Cincias Biolgicas. Provine (1998) afirma que, ao morrer em 1882, Darwin j havia convencido todos os bilogos sobre a ocorrncia da evoluo orgnica, embora isso no pudesse ser afirmado acerca do mecanismo evolutivo. O autor estima que, ao final do sculo XIX, a maioria dos bilogos ainda acreditava em algum mecanismo intencional de evoluo, e as razes para se rejeitar a seleo natural como o mecanismo principal da evoluo eram a falta de comprovaes empricas aliada franca averso que advinha em aceitar um mecanismo evolutivo ao acaso.

    Sem o apoio de conhecimentos genticos, a teoria evolutiva apresentava muita fragilidade. Os conhecimentos produzidos sobre a evoluo chegaram ao sculo XX ainda considerados como uma especulao ou metafsica, porque estavam, como afirma Keller (2002, p. 13), contaminados por idias contraditrias do prprio Darwin, como gmulas e suas unidades de pangnesis. Para Smocovitis (1996), todos os ramos das Cincias Biolgicas que no possuam tradies experimentalistas, principalmente aqueles herdeiros da Histria Natural, recebiam um julgamento semelhante. Assim, colocavamse, de um lado, os ramos da Biologia notadamente experimentais como a Gentica e a Fisiologia e, de outro lado, as no experimentais, no quantificveis, com poucas evidncias empricas, como a Histria Natural e a Evoluo.

    Por essas razes, os esforos para a unificao concentraramse em tornar a Evoluo uma Cincia positiva, em consonncia com as idias do Positivismo Lgico. Como j dissemos anteriormente, passaram a ser valorizados e empregados mtodos experimentais rigorosos, baseados em evidncias empricas e com resultados generalizveis em termos matemticos, capazes de eliminar os aspectos metafsicos desses estudos. Essa nova perspectiva ganhou fora com a redescoberta dos estudos de Gregor Mendel e, nesse contexto, a criao do termo Gentica passou a designar um novo ramo que j no incio do sculo XX alcanou bastante prestgio, oferecendo uma contribuio fundamental para os estudos evolutivos. Embora tenham se passado 34 anos at que a herana descontnua mendeliana fosse aceita, Michael Rose (2000) destaca que esse novo ramo das Cincias Biolgicas, a princpio sob liderana inglesa, desenvolveuse com uma rapidez sem precedentes ainda que marcado por controvrsias.

    Michael Rose (2000, p. 47) afirma que Darwin props uma teoria complexa, na qual o material da herana se constituiria de diversas "gmulas" ou "partculas de hereditariedade". Essas gmulas no estariam fixas em uma parte do corpo, mas seriam mveis e recolheriam informaes sobre diferentes situaes que ocorreriam no corpo. No momento da concepo, essas gmulas migrariam para as gnadas e entrariam nos gametas, levando tais informaes para a prxima gerao.

    O surgimento da Gentica se d em meio a grandes embates entre os defensores do mendelismo, os mendelistas e os darwinistas, tambm chamados de biometristas, que, segundo Michael Rose (2000, p. 5253), no admitiam o modelo mendeliano de variao consistente, particulada e descontnua, importante para a evoluo: Os biometristas no tinham chance de derrotar os mendelistas no que dizia respeito hereditariedade. Alis, estavam errados a respeito do mecanismo da herana. Ela era particulada e consistente, como Mendel havia proposto. O problema que lhes restava era desenvolver sua prpria teoria da evoluo, j que no podiam aceitar nada do raciocnio dos biometristas, pautado na seleo, em virtude da associao espria entre as teorias darwinianas da adaptao e herana miscvel, um modelo da hereditariedade que, na verdade, era antagnico evoluo por seleo natural.

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    Ao final da dcada de 1910, os trabalhos pioneiros de Ronald Fisher, John Burdon Sanderson Haldane e Sewall Wright em Gentica de Populaes deram bases para que a evoluo fosse modelada quantitativamente. Os modelos matemticos empregados por esses pesquisadores desempenharam um papel fundamental e ganharam prestgio nas Cincias Biolgicas. O Equilbrio de Hardy e Weinberg, proposto no incio do sculo XX, um bom exemplo para ilustrar como a matematizao de variveis evolutivas dirigidas geneticamente deu incio ao processo de modernizao da Evoluo. Os estudos posteriores de Thomas Hunt Morgan, Hermann Joseph Mller e Theodosius Dobzhansky, realizados nos Estados Unidos, permitiram que a evoluo fosse definida como a mudana da freqncia allica em populaes ao longo do tempo.

    No intervalo das duas Guerras e, particularmente, aps a Segunda Grande Guerra, o movimento de unificao se tornou mais evidente nos Estados Unidos, reunindo cientistas que defendiam abertamente a idia de uma Biologia unificada em torno da teoria evolutiva. Mayr e Provine (1980) afirmaram que existia uma descontinuidade entre a gentica experimental e os ramos herdeiros de tradies naturalistas, o que tambm teria provocado a idia de sntese. Essas duas comunidades pareciam falar linguagens diferentes e buscavam respostas para suas pesquisas a partir de marcos conceituais distintos. O ajuste entre essas perspectivas pode ser entendido como uma tentativa de sntese, que, ambientada na atmosfera do Positivismo Lgico, teria resultado em uma redefinio da teoria evolutiva em torno de alguns conceitos centrais, entre os quais o de gradualismo, a natureza da seleo natural e o de populao.

    Segundo Smocovitis (1996), Theodosius Dobzhansky, com a publicao do seu livro Genetics and the Origin of Species em 1937, considerado precursor e o primeiro cientista de maior impacto no fortalecimento da sntese evolutiva. Julian Huxley tambm contribuiu ao utilizarse de termos que expressavam essa idia de novidade e de sntese

    Ernst Mayr (1998, p. 949) afirma que o Equilbrio de Hardy e Weinberg um dos muitos exemplos que mostram que uma lei, um princpio ou uma generalizao foram ignorados quando apresentados pela primeira vez por virem expressos em palavras, em vez de na forma de equaes matemticas. Segundo esse autor, William Castle, professor de Sewall Wright, havia demonstrado em 1903 que a composio genotpica de uma populao permanecia constante quando cessava a seleo, mas esse fato foi ignorado at que Hardy e Weinberg lhes forneceram uma frmula matemtica (p. 949).

    Assim, de acordo com Marandino, Selles e Ferreira (2008), a Gentica de Populaes pde oferecer ao darwinismo o preenchimento tanto de lacunas tericas para as questes bsicas da variedade e da manuteno das novas caractersticas quanto de lacunas metodolgicas, ao incorporar a experimentao e os modelos matemticos. As pesquisas genticas prosseguiram no somente refinando a compreenso dos constituintes gnicos, como tambm modelando teoricamente as questes fundamentais da Teoria Evolutiva. medida que as pesquisas genticas foram se desenvolvendo, essa nova maneira de interpretar os mecanismos evolutivos foi se fortalecendo e, de certa forma, influenciando os diversos ramos das Cincias Biolgicas, reforando a idia de Cincia unificada.

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    nos ttulos de seus livros: A nova sistemtica (1940) e Evoluo: a Sntese Moderna (1942). Todo esse movimento, que teve nos Estados Unidos o cenrio dos maiores eventos e que reuniu o maior nmero de cientistas e publicaes, conhecido como Neodarwinismo, Teoria Sinttica da Evoluo ou Moderna Sntese.

    A despeito dos esforos empreendidos para a unificao, esses processos no se deram de forma consensual, e muitos historiadores como Smocovitis (1996) e Provine (1998) forneceram elementos para pensarmos o quanto eles no resultaram na constituio de uma cincia perfeitamente unificada. Embora nas dcadas de 1930/ 40 seja possvel identificar o movimento de sntese evolutiva e, a partir dele, se falar em uma nova ou moderna cincia Biologia, a falta de consenso evidenciava conflitos de idias e de interesses entre os diferentes representantes dos muitos ramos das Cincias Biolgicas.

    Por um lado, existiam dificuldades para atingir uma concordncia absoluta entre diversos aspectos da Teoria Evolutiva, tais como o conhecimento da estrutura gentica, os mecanismos explicativos da seleo natural, o ajuste dos modelos macro e microevolutivo, o papel da mutao, o lugar do homem na evoluo, o debate evoluo e progresso, a contribuio das descobertas biomoleculares, etc.

    Por outro lado, os conflitos tambm se deram no domnio das relaes entre os grupos de bilogos dos vrios ramos biolgicos, alguns deles que no participaram diretamente do processo como, por exemplo, os embriologistas e os microbiologistas, os quais criticavam duramente os estudos evolutivos (SMOCOVITIS, 1996). Alm disso, Provine (1998) considera que, no caso de alguns arquitetos do movimento, havia certo artificialismo ou uma estratgia de retrica no ttulo de algumas obras, como o caso da A nova Sistemtica de Julian Huxley (1940), j que no havia praticamente nada de novo na sistemtica.

    No final da Segunda Guerra, e a dcada que se seguiu a ela, houve um rearranjo mundial de diversas ordens. As conseqncias dos bombardeios nucleares e a polarizao das potncias americanas e russas dominaram o cenrio dos acontecimentos e influenciaram as sociedades em termos polticos, econmicos, educacionais e cientficos. As Cincias Biolgicas chegaram aos anos de 1960 ainda lutando contra a hegemonia da Fsica e da Qumica, as quais tiveram um papel destacado nos ltimos acontecimentos blicos e, segundo John Rudolph (2002), continuaram a desfrutar de um alto conceito nos eventos da Guerra Fria. Entre os bilogos, prosseguiam tambm muitos conflitos de idias e disputas acerca da hegemonia de determinadas reas sobre outras. Entretanto, o avano das pesquisas biomoleculares, que ganharam visibilidade a partir da determinao do modelo de DNA no ano de 1953 por James Watson e Francis Crick, contribuiu para impactar e consolidar o lugar de uma Biologia moderna, ampliando assim o seu prestgio.

    O artigo de Theodosius Dobzhansky foi publicado no peridico da American Biology Teacher Association (Associao Americana de Ensino de Biologia) The American Biology Teacher, em maro de 1973 (n. 35, p. 125129).

    Modelo de DNA

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    Segundo Marandino, Selles e Ferreira (2008), o prmio Nobel que esses dois cientistas receberam em 1962, junto com Maurice Wilkins, deu mais evidncia Biologia Molecular e, com o rpido desenvolvimento desta rea, muitos caminhos foram abertos para consolidar a nova Biologia, ainda sem terem sido completamente resolvidos muitos dos conflitos relativos sua unificao. Nesse contexto, a Teoria Evolutiva, com as revolucionrias contribuies das pesquisas biomoleculares, pde provocar releituras em todos os ramos das Cincias Biolgicas. Assim, a idia de sntese foi, na verdade, se fortalecendo no como uma ruptura e desaparecimento de alguns ramos, mas sim como uma possibilidade de reinterpretar os processos a partir do referencial evolutivo moderno. Nos anos 1970, as palavras de Dobzhansky, nada em Biologia faz sentido se no for luz da evoluo, tornaramse emblemticas para entender o quanto a evoluo passou a ser a teoria reorganizadora das explicaes do mundo vivo, ainda que persistissem divergncias quanto aos mecanismos evolutivos e quanto s diferentes vises de mundo de muitos evolucionistas, conhecidas inclusive pelo prprio Dobzhansky em seu clebre artigo.

    Embora a Biologia Molecular tenha, sem dvida, fortalecido o novo campo da Gentica Molecular e, com isso, ampliado o entendimento tanto dos mecanismos micro quanto macroevolutivos, no possvel creditar a essa rea um papel absoluto. A Citologia e outras reas das Cincias Biolgicas tambm se fortaleceram com a ressignificao evolutiva e, por sua vez, contriburam para a modernizao dessa cincia. A Ecologia um desses ramos que ganhou destaque. Embora tenha herdado as tradies dos trabalhos de campo da Histria Natural, ampliouse cada vez mais ao passar a incorporar metodologias experimentais mais modernas e destacouse no estudo dos impactos ambientais. E o mesmo pode ser dito dos demais ramos (desde a Paleontologia aos diversos campos da Fisiologia), os quais ampliaram suas possibilidades metodolgicas utilizando recursos tecnolgicos mais sofisticados. A modernizao e a consolidao das Cincias Biolgicas frente ao conjunto das chamadas Cincias Naturais, alimentadas grandemente pelo prestgio das pesquisas biomoleculares, ganharam enorme impulso com a Engenharia Gentica, que se acelerou a partir dos anos 1980. (MARANDINO, SELLES e FERREIRA, 2008).

    Na ltima dcada do sculo XX e nos primeiros anos deste novo sculo, o quadro mundial diferia muito daquele que havia servido de cenrio para o sonho de unificao das Cincias Biolgicas. Mais de cinqenta anos se passaram sem que nenhuma guerra de propores mundiais tivesse ocorrido, embora antigos e novos problemas globais continuassem colocando muitos desafios. As questes ambientais agravaramse e o surgimento de uma conscincia mundial em relao ao futuro da Terra, envolvendo questes de ordem social e tica, vem desafiando a comunidade cientfica a alargar as fronteiras dos conhecimentos biolgicos de forma a se transformarem em uma produo coesa, no alienada de seu tempo.

    Se possvel dizer que as Cincias Biolgicas modernizadas consolidaram seu estatuto cientfico, sem dvida no se pode negar que suas reas permaneceram disputando prestgio, recursos e status. Assim, mesmo que as discordncias internas no tenham sido resolvidas (em parte por distintas perspectivas conceituais e pelas disputas por tratamentos diferenciados na conduo das pesquisas), podemos afirmar com certeza que, hoje, todas as reas do conhecimento das Cincias Biolgicas aceitam a Evoluo.

    Essa disputa por prestgio, recursos financeiros e materiais tambm aparece na histria das disciplinas escolares. Com a criao dos sistemas de escolarizao estatal em

    Uma leitura enriquecedora sobre o tema o livro de Richard Lewontin, Biologia como ideologia. Ribeiro Preto: FUNPEC, 2001.

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    massa que acompanhou a consolidao dos Estados nacionais e o triunfo do sistema industrial ao longo dos sculos XIX e XX, acabou prevalecendo na educao o racionalismo tcnicocientfico, empregado na organizao das pesquisas cientficas e dos trabalhos das indstrias, com suas linhas de produo em srie.

    Esse sistema acabou criando um equilbrio desconfortvel, com exigncias de especialistas e matrias em amplo processo de ajustes e compensaes. Assim, a evoluo de cada matria reflete, em microcosmo, uma luta em torno de sucessivas alternativas para organizar listas de contedos, distribuio de aulas em espaos e horrios especficos, organizao de turmas reunidas em salas de aula, carga horria de cada matria etc. Surgiu o currculo centrado num ensino acadmico que foi gradativamente acentuando a ligao entre exames acadmicos e disciplinas cientficas e, de modo ainda mais crucial, prendiamse a padres de alocao de recursos: um corpo docente mais numeroso e melhor remunerado, mais equipamentos e livros eram vinculados ao ensino dos alunos aptos, para os quais as matrias acadmicas fortemente vinculadas com as disciplinas universitrias eram destinadas. (GOODSON, 1995, p. 367).

    Os historiadores da cincia e do currculo defendem que, medida que o conhecimento cientfico foi se fragmentando cada vez mais em funo da especializao crescente, ele foi tambm se tornando cada vez mais descontextualizado e desencarnado, distanciandose dos problemas existenciais, pois os problemas cientficos passaram a ser definidos pelos paradigmas disciplinares. Tambm foram sofrendo influncias outras, como por exemplo, das profisses que foram surgindo com o desenvolvimento cientfico tecnolgico da sociedade industrial.

    Isso pode ser constatado examinandose a histria das disciplinas do currculo, como no caso do ensino de cincias. Na dcada de 1840, um projeto intitulado a Cincia de coisas comuns implantou em algumas escolas elementares inglesas uma forma de educao cientfica, na qual os assuntos eram extrados de coisas que interessavam aos alunos no momento presente, bem como coisas que poderiam interesslos no futuro, tais como descrio do vesturio, modo como ele era confeccionado, artigos que eles consumiam, procedncia desses artigos, natureza dos produtos cultivados pela comunidade.

    Esse projeto permitiu a construo de um conhecimento pedaggico muito bem sucedido e, na dcada seguinte, essa experincia parecia apta a tornarse a verso mais importante de educao cientfica no currculo da escola elementar na Inglaterra. Entretanto, esse sucesso foi revertido durante a dcada de 1850, quando a escolarizao pblica na GrBretanha da Era Vitoriana foi gradativamente reconstruda e reorganizada de forma a solapar todos os esforos que visassem a educao das classes inferiores. No relatrio da comisso parlamentar da Associao Britnica para o Avano das Cincias, estabelecida em 1860, para examinar a forma de educao cientfica exigida pelas classes superiores, encontrase registrado o caso de um inspetor que ao se defrontar com a resposta [...] lcida e inteligente de uma criana que havia aprendido The Science of Common Things, o diretor expressou sua admirao pelos talentos do menino [...], mas, fez uma advertncia que repercutiu na poltica curricular para a rea: de que

    [...] seria uma situao nociva e perversa, esta de uma sociedade em que pessoas relativamente desprovidas das benesses da natureza fossem, quanto capacidade intelectual geralmente superiores aos que socialmente esto acima delas (GOODSON, 1995, p. 123).

    Cincia de coisas comuns: No original: The Science of Common Things. Criao, em grande parte, do victoriano Richard Dawes. (GOODSON, 1995, p. 123).

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    O estudo de caso sobre The Science of Common Things mostra que uns vinte anos mais tarde a matria de cincias voltou ao currculo escolar da GrBretanha, mas agora num formato bem diferente:

    [...] uma verso de cincia pura de laboratrio fora aceita como a forma correta de cincia, forma que suprimia os objetivos utilitrios, destacava o saber, a pesquisa pela pesquisa e as diferenas entre conceitos cientficos abstratos e o mundo da experincia cotidiana(GOODSON, 1995, p. 124).

    Outro caso da incluso de matrias escolares analisado como caso exemplar na histria curricular da Inglaterra o de Biologia. A histria das disciplinas mostra que, quando se passou a buscar a unificao de matrias na disciplina Biologia como disciplina cientfica, o ensino de Zoologia e Botnica j estava bem estabelecido, inclusive, nos nveis mais bsicos da educao estatal. Entretanto, as descobertas nas reas da bacteriologia, biologia marinha, pesquisa fisiolgica e cincias agrcolas, nos ltimos anos do sculo XIX levaram agncias como a Associao Britnica para o Avano da Cincia, o Conselho Britnico de Higiene Social e a Associao dos Mestres da Cincia a defenderam a causa da biologia como matria escolar (GOODSON, 1995, p. 121).

    No perodo entre as duas guerras mundiais, a Biologia cresceu de importncia sob o aspecto utilitrio e seus defensores passaram a sustentar sua aplicao e explorao econmica em indstrias como as de pesca, agricultura, silvicultura e tambm na medicina. Essa estratgia foi considerada vitoriosa pelos historiadores, pois:

    durante a dcada de 1930, a biologia conquistou o seu lugar no currculo da escola secundria. Em 1931, todas as oito juntas examinadoras haviam adotado a biologia no exame para obteno do certificado escolar (GOODSON, 1995, p. 121).

    Entretanto, os professores das cadeiras de botnica e zoologia resistiram unio das trs disciplinas e a biologia ficou relegada aos nveis elementares da escolarizao secundria e ao treinamento vocacional. Ento, na dcada de 1950 surgiram crticas no sentido de que a biologia era matria para treinamento vocacional mais do que [...] um instrumento de educao Na dcada de 1960, novos esforos foram empreendidos para divulgar uma verso da biologia como cincia slida, que enfatizasse experincias de laboratrio e tcnicas matemticas (GOODSON, 1995, p. 122).

    Enquanto nas universidades a biologia se tornou uma cincia de laboratrio mais do que uma cincia naturalstica, de campo, essas estruturas e seus equipamentos se constituram em smbolos de status e sua construo e implantao passaram a atrair mais dinheiro, mais professores e outros recursos. Isso levou a diplomao de professores da disciplina para a escola secundria, [...] ficando ento assegurada a incorporao da matria como disciplina escolar de status elevado nos nveis O e A. Ao mesmo tempo, na dcada de 1970, vieram tona preocupaes em relao ao alcance do sucesso da biologia (GOODSON, 1995, p. 122).

    Embora haja atualmente um consenso de que a biologia deve ultrapassar as suas origens pedaggica e utilitria e buscar status e recursos como cincia slida, experimental e rigorosa, existe tambm a conscincia de que o status dessa disciplina cientfica ainda vulnervel a reivindicaes de dentro e de fora da comunidade de matrias no sentido de uma abordagem didtica mais social e humana (GOODSON, 1995, p. 122).

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    Essa tenso entre as duas posies aparece atualmente na reforma educacional em curso no Brasil, na qual se desenvolve uma crtica ao modelo de currculo de Biologia para o Ensino Mdio que vigora em nosso sistema educacional, completamente desvinculada de suas aplicaes e das relaes que tm com o diaadia do estudante, amplamente determinado e dependente da tecnologia. Ao mesmo tempo, se defende a realizao de aulas prticas em laboratrios, apesar de todas as dificuldades que os professores encontram para realizlas. (KRASILCHIK, 2004, p. 184).

    Diversas foras se confrontam no sentido de manter o status quo: O estudo dos fatores que agem negativamente sobre o ensino de biologia [...]

    precisa ser feito sem se perder de vista o fato de que eles esto estreitamente ligados, formando um complexo emaranhado. (KRASILCHIK, 2004, p. 183).

    Entre esses fatores, essa autora aponta que as mudanas no sistema educacional nas ltimas dcadas vm promovendo uma expanso na rede pblica, mas, tambm, da rede privada e, paradoxalmente, o aumento de vagas das escolas pblicas promoveu uma elitizao do ensino mdio, uma vez que a qualidade do ensino ministrado nessas escolas confere menores possibilidades aos seus alunos de entrarem na universidade, dado que os alunos com melhor situao financeira passaram a freqentar escolas da rede privada, muitas das quais organizam seus currculos de modo a atenderem s exigncias do exame vestibular. Assim, a universidade continua at hoje tendo funes normativa, avaliativa e diferenciadora sobre os currculos da educao bsica.

    V. Concluso

    Essa no uma pergunta fcil de responder e, posto dessa forma, um problema que no pode ser respondido no mbito da cincia, mas se caracteriza mais como problema filosfico ou religioso. Podemos dar respostas baseadas em nossas crenas religiosas ou espiritualistas, como, por exemplo: Vida dom de Deus. Ou respostas filosficas existencialistas: vida existncia. A cincia Biologia mais adequadamente definida como cincia que estuda os seres vivos e as relaes que eles estabelecem entre si e com o seu meio. Vimos nessa Unidade que essa cincia, como qualquer outra, no se desenvolveu progressivamente, mas que houve muitas rupturas, confrontos de teorias contraditrias, embates com outras reas de conhecimento humano.

    Atividade Complementar 4

    Pesquise nos PCNs de Cincias Naturais de 5. a 8. Sries do Ensino Fundamental e no PCN da rea Matemtica, ]Cincias da Natureza e suas Tecnologias do Ensino Mdio, o conceito de cincias, em que eles se apiam e relacione com pressupostos epistemolgicos aqui discutidos, verificando a que corrente eles se vinculam, quais os pensadores que mais influenciaram essas idias, etc.

    Para concluir essa Unidade sobre a Epistemologia e a Histria da Biologia, poderamos nos perguntar: O que Biologia? Alguns livros didticos trazem uma resposta inadequada, que muitas vezes repetimos apressadamente. Se voc pensou em responder que a Biologia a cincia da vida, como esses livros propem, convidamos voc a pensar em outra pergunta: O que vida?

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    A tentativa de unificar a cincia Biologia recente e ainda no foi solucionada, existindo reas com mtodos de estudo muito diferentes, tradies diversas tentando compreender diferentes objetos de estudo e dando explicaes sobre a diversidade de seres vivos de modos distintos. Cada rea da Biologia acrescenta dados, teorias ou modelos explicativos em diferentes nveis de organizao, com complexidade crescente: o nvel de organismos, como no caso da Anatomia o nvel de populaes e comunidades, como no caso da Gentica e/ ou Ecologia de Populaes ou ainda, no nvel de maior complexidade, que o ecossistema, como no caso da Ecologia Geral.

    A cincia proposta pelos gregos tinha a pretenso de descobrir a essncia das coisas, que seria o conhecimento verdadeiro. A cincia moderna se constituiu indo contra o poder da Igreja e, arrogantemente, tambm passou a considerar seus produtos mais vlidos que outros saberes produzidos historicamente pela humanidade, como a filosofia, o conhecimento mticoreligioso, ou as artes e o senso comum.

    Especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, esse conhecimento cientfico tecnolgico passou a ser criticado e, atualmente, existe uma tendncia de reconhecer a cincia como um tipo de conhecimento humano entre outros igualmente importantes. Alguns pensadores propem que na construo da universidade do sculo XXI devemos pensar o ensino, a extenso e a pesquisa associados com a ecologia dos saberes. Essa associao consiste na promoo do dilogo entre o saber cientfico e os saberes tradicionais, leigos, prticos, de culturas no ocidentais etc., na qual a aproximao com a escola pblica e a indstria possa reinventar um projeto nacional, uma vez que, para os pases perifricos e semiperifricos, como o nosso, o novo contexto global exige essa reinveno. Temos a necessidade de inventar um cosmopolitismo crtico num contexto de globalizao neoliberal agressiva e excludente (SANTOS, 2004, p. 49). Assim, estamos na transio de uma concepo, em que a universidade se sentia detentora do conhecimento e devia estendlo aos outros segmentos da sociedade, para uma nova

    Nveis de organizao relacionados com sua rea dentro da Biologia.

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    concepo em que o discurso cientfico deve ser produzido na interao com os demais saberes, buscando a produo de um conhecimento prudente para uma vida decente.

    VI. Referncias

    ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

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