Escritos Do Mundo Janus- Cela de Veludo

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    Clula de veludo: consideraes sobre as relaes D/ s partir de um poema de Adlia Prado (Janus SW)

    Abstract

    Adlia Prado is one of the top poets in Brazil. In her poetry shediscusses the great tie between her and her lover called Jos, a love that

    reaveals some traces that can be found in the relationships anywhere,including those developed between partners in BDSM.As in the BDSM relationships the vanilla couples(and vice versa) will

    show one of the partners in a submissive role and this devotions garanteesboth the legitimacy of the command as the fully expression of thesubmission.

    The D/s submission , in this scenario, becomes a very important andpleasant experience, driving us to strengh the ties and continously increaseour pleasure.

    (Nota: esse texto foi originalmente publicado na comunidade "DesejoSecreto" do Orkut, no tpico "Projeto Ciranda", numa sugesto de reflexo partir do texto de Adlia Prado , reproduzido abaixo. Por sua extenso, foidividido em duas partes).

    Para o Z(Adlia Prado)

    (em Poesia Reunida, Editora Siciliano, S.Paulo, 1991, p.99)

    "Eu te amo, homem, hoje como

    toda vida quis e no sabia,eu que j amava de extremoso amoro peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos

    de bordado, onde temo desenho cmico de um peixe os

    lbios carnudos como os de uma negra.Divago, quando o que quero s dizer

    te amo. Teo as curvas, as mistase as quebradas, industriosa como abelha,

    alegrinha como florinha amarela, desejandoas finuras, violoncelo, violino, menestrele fazendo o que sei, o ouvido no teu peito

    pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amoo teu corao, o que , a carne de que feito,

    amo sua matria, fauna e flora,seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas

    perdidas nas casas que habitamos, os fiosde tua barba. Esmero. Pego tua mo, me afasto, viajo

    pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gostoAprendo. Te aprendo, homem. O que a memria ama

    fica eterno. Te amo com a memria, imperecvel.

    Te alinho junto das coisas que falamuma coisa s: Deus amor. Voc me espicaa como

    o desenho do peixe da guarnio de cozinha, voc me guarnece,tira de mim o ar desnudo, me faz bonita

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    de olhar-me, me d uma tarefa, me emprega,me d um filho, comida, enche minhas mos.

    Eu te amo, homem, exatamente como amo o queacontece quando escuto obo. Meu corao vai desdobrandoos panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo,

    estalando os dedos pra pessoa e bicho.Amo at a barata, quando descubro que assim te amo,

    o que no queria dizer amo tambm, o piolho.

    Assim, te amo do modo mais natural, vero-romntico,homem meu, particular homem universal.

    Tudo que no mulher est em ti, maravilha.Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,

    a luz na cabeceira, o abajur de prata;como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:com gua tpida, toalha seca e sabonete cheiroso,me abaixo e lavo teus ps, o dorso e a planta deles

    eu beijo.

    Calma! Voc no ler um artigo acadmico por dois motivos: aqui no o espao e no tenho cabedal para faz-lo. Vou apenas tentar compilaralgumas coisas que eu escrevei para ningum ler e o tanto que est emminha cabea partir de algumas experincias D/s que vivo.

    Porque chamar essa srie de reflexes de Cela de Veludo?Primeiramente porque o poema lindssimo de Adlia Prado trata muito desubmisso e, como (ou deveria ser) regra, uma submisso voluntriacomo pode-se facilmente notar. Em segundo lugar, porque uma cela

    confortvel, que no tem a inteno de provocar um dano fsico ou mentalde alguma monta.Como acredito ter esboado na minha primeira interveno, o poema

    reconhecidamente submisso, estando a palavra entre aspas por umaassuno de que no dilogo amoroso no deveria importar (ao menosidealmente) um exerccio de poder explcito mas eventualmenteconstrudo na dinmica das relaes.

    Tudo muito bem, tudo muito bom mas JB, o que tem isso a ver com oBDSM? - podem dizer os mais apressados. Apesar do que h de peculiar norelacionamento amoroso comum (baunilha?) e no relacionamento

    Dominador(a)/submisso(a)? Para mim ambos guardam, no fundo,grandes similaridades e igualmente grandes diferenas.A primeira similaridade, ao meu ver, refere-se ao processo de

    seduo. Por mais que possamos (queremos?) negar, o processo denegociao na verdade um processo de seduo baseado emcaractersticas de personalidade pr-existentes e que comeam a serconstrudas/reconstrudas e/ou moldadas durante esse mergulho nomundo do fetiche.

    Um parntese: tenho visto muitas intervenes em vriascomunidades, discutindo se a submisso construda ou conquistada do

    submisso(a). Dentro da minha experincia, vejo que a submisso, noBDSM, uma expresso sistematizada de algo que sempre esteve presentena personalidade do submisso, algo que os psiclogos e demaisprofissionais de reas afins podem explicar com mais competncia do que

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    do que eu e acredito piamente que o mesmo valha para osDominadores(as).Isso ao meu ver, tem implicaes fceis de serem previstas mas que notenho visto serem enunciadas: h um processo legtimo deenamoramento do Dominador(a) por seu submisso(a). Isso no novidade? Ufa! Que bom! novidade? Vamos expandir um pouquinho.Deve dar calafrios em determinadas pessoas saberem que de repente seenamoraram de seus parceiros BDSM. Isso rendio ao baunilhismo?De forma alguma.Recorro ao meu Velhssimo Dicionrio da Lngua Brasileira para achar asignificao do verbo enamorar e encontro:

    ENAMORAR, v.t. Encantar; enfeitiar; apaixonar; p. Deixar-se possuirpor amor; apaixonar-se; enlevar-se.

    Uia! Deixar-se possuir por amor??? Caraca! Porque no deixar-sepossuir pelo desejo ou deixar-se possuir-se pelo fetiche ou finalmentedeixar-se possuir-se pela entrega? Ser que invalida o argumento trocaras palavras? Ao meu ver, no, muito pelo contrrio, porque deixar-sepossuir entregar-se (mesmo vocs senhores e senhoras Dominadores eDominadoras!!!!!). No caso do submisso, essa entrega ocorre no universodo servir e no caso dos (das) Dominadores(as) no receber o gesto de servir.

    Sei que muitos vo torcer o bico ao ler essa frase mas ao menos para mim, o que acontece. Mesmo o mais sdico dos dominadores (as) sofrem ou soagentes de um processo de seduo que leva ao enamoramento versoBDSM.O mais importante assumir , e no vejo nenhum problema nisso, quesomos enamorados de nossos(as) submissos(as) em diversos graus deenvolvimento. Assim a vida e no h porque neg-la.

    PASTOREANDO NOS CAMPOS BDSMISTAS

    Se no to ofensivo ao nossos pudores e conceitos que nos apaixonamos enos envolvemos com nossos parceiros BDSMistas , vai ficar mais fcil agente ver o grande contato que h do poema baunilha com os nossoprocessos de negociao e vivncia dentro do BDSM.Com certeza o Jos do poema um homem poderoso em sua sutileza e naexpresso do seu amor personagem do poema. No podemos perceber(ao menos eu no percebo) nenhum sinal de sofrimento ou de dor , aocontrrio, transmite-se uma sensao de plenitude que faz com que apersonagem viva em intensidade o bem-querer ponto de colocar-se dejoelhos ante ao objeto (ops!) de seu amor.Como j disse anteriormente, a personagem coloca o seu amado em umaaltar, h uma sacralizao dele de forma inquestionvel. A frase do poemaTe alinho junto das coisas que falam uma coisa s: Deus amor, vai almdos limites simplistas de uma relao amorosa e coloca no amado apotncia de proporcionar no apenas a felicidade mas a redenoatravs dessa experincia, transcendendo os nveis normais de umarelao, tocando outra poetisa fantstica, Florbela Espanca, no seufabuloso poema Fanatismo onde ela declara mais explicitamente: Porque s como Deus, princpio e fim.

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    Nesses casos, detecta-se no amado a capacidade de prover o manjar dosdeuses, o Man do deserto, donde obtm-se a graa (no sentidoreligioso) e o favor indispensveis plenitude de quem ama, portanto,legitimando o servir.

    Ops! Cheirinho de BDSM no ar? Huuuuuuuuuum... Estou aqui curtindo-o!Cheiro doce da construo da submisso atravs da exposio (muitasvezes nem to exposta assim) de um plano de vo que faz subir aos cus,

    mesmo experimentando uma sessozinha hard de spanking...rs...Se o exposto est minimamente coerente, podemos escrever assim: Arelao D/s constitu-se de um processo de seduo onde o(a) submisso(a)coloca o seu Dominador(a) como o nico agente que pode, no apenasusufruir de sua submisso, mas de justific-la, legitim-la e dar-lhe corpo.Os cariocas como a Helena diriam: Que responsa, mermo!!! Pois ! Pois! No vou nem dizer que ser Dominador mais fcil do que ser submissoporque sei que essa discusso no tem p nem cabea at porque , comodiria Caetano Veloso, cada um sabe a dor e a delcia de ser o que , umafrase lapidar. No entanto, isso pode suscitar uma discusso (em outro lugar

    e momento) se os Dominadores(as) e submissos(as) sabem realmente como que esto lidando, a responsabilidade e gravidade de cada gesto e/ouatitude tomada.Se verdade que a personagem do poema de Adlia indiscutivelmentesubmissa e o Jos um Dominador, convm examinar algumas pistas docarter da relao que constrem.

    NO BALANO DAS TRADES

    O poema me suscitou emoes muito dadas por fatos que me aconteceram

    dentro e fora do meio. Todas essas coisas, esses fatos, me fizeram ver queo amor e a submisso, o enamoramento e o domnio, so todas facetasdistintas do mesmo processo.

    Parece-me que algumas pessoas tm resistncia mxima em admitirem-senesse processo de seduo, conquista, realimentao/reviso dasexpectativas, renovao e inclusive a separao e o distanciamento.Pergunto-me porque e encontro uma resposta que para mim , respeitadasas opinies divergentes, bizarra: temem os dominadores (as) que a suaautoridade seja solapada por mostrarem-se interagentes no processo que

    uniu Dominador(a)/submisso(a).O poema de Adlia, nesse sentido, mostra um antdoto essa viso torta: atravs do sentir-se acolhida, aceita, legitimada que procedeu-se submisso, entrega e sacralizao que tornou-se indispensvel paraatingir-se o estado que fez da personagem uma cultuadora, cuidadora edevota de seu amado.

    Talvez falte-nos , ou ao menos para alguns, a viso de uma pessoa empresena, fisica, icnica ou real (segundo o sentimento de cada um) , de umsanto. Jogado de joelhos, no pede, implora pelo seu favor. J presenciei emIgreja de minha cidade, uma mulher que atirou-se ao cho para humilhar-se e pedir uma cura.

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    A quem mais um(a) submisso(a) consciente de que sua felicidade estdiretamente ligada ao ser aceita e legitimada em sua forma de sentir prazer,tributaria fidelidade, desvelo e servio? Com certeza quele(a) em quemreconhecesse tal capacidade e tal poder. Portanto, ao meu ver, oenamoramento e a dedicao so os nicos meios de chegar-se taldevoo, necessitando de um empenho especial por parte do(a)Dominador(a) para que tal estgio seja atingido.

    Ao ver alguns casais BDSMistas no tenho quaisquer dvidas que ocorraalgo assim. No entanto, se nem no baunilhismo isso norma, noesperaria que fosse possvel no BDSM que no tem, em essncia, tantadiferena assim das prticas habituais, s tem um carter um tantodiferente nas prticas.

    Isso contempla uma das trades que H. props to bem, o Ns dos Ns.Lembro-me que ali ela pontua que as emoes transcendiam as dores echegavam unir almas em algo muito maior , unindo almas e coraes.Perfeito!

    Passei boa parte da tarde (estou escrevendo na noite/madrugada)pensando o que o masoquismo supostamente afetaria nessa construoque o poema props. Concluo que o masoquismo no aspira consumir-seem si , apesar de poder aspirar a isso eventualmente. No entanto, se prazercausa, carece e espera realimentar-se para tornar a ser satisfatrio atquando isso no mais ocorra e transmute-se, eventualmente, em algo mais(ou menos).

    Portanto, a concepo do Ns de ns est vinculado ao prazer,

    dimenso criadora da vida. E a unio s se legitima no prazer que aspira ena realizao dele.

    E o Tocar as raias? Ser que poderamos afirmar que Tocar as raias um processo fsico, de chegar aos extremos nas prticas? Todos sabem queno. Na verdade, mesmo a prtica mais extrema no tem sentido nenhumse no vier secundada de uma profunda ligao ertico-afetiva.

    A falta dessa percepo, na minha opinio, empobrece muito o dilogoD/s. Reduzir essa relao em um bate/apanha empobrec-la , sem com

    isso fazer qualquer condenao a quem se proponha a viver algo assim.

    E esse a grande lio que o poema aponta: a submisso talvez nonecessite, necessariamente, das prticas mas do grau de seduo que um(a)Dominador(a) tem sob seu submisso(a) e vice e versa.

    Algum tem alguma dvida que isso tambm acontea no enamoramentomais comum? Quem confrontado com um(a) adversrio(a) noempunha todas as armas para afast-lo? Quem, tendo a coleiradevolvida, o rompimento do pacto original, no se desestruture? Quem,

    em separando-se definitivamente do(a) amado(a) no perca o prpriosignificado de sua vida?

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    Para encerrar: a maior lio que esse poema nos d a da intensidade daentrega, seja no baunilhismo seja no BDSMismo. Isso deve inquietar aonos instigar a pensar em que entrega e que Dominao estamos exercendo.Saber que os mecanismos so sutis e a prtica no pode ser menos sensvel essa sutileza.

    Transformar a realidade falsamente rida que o BDSM prope para umaplenitude que o poema transborda. Algo para a reflexo. Desculpe se essa

    foi muito extensa.

    Saudaes todos.

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