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8/19/2019 Família Em Questão http://slidepdf.com/reader/full/familia-em-questao 1/6 7 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 47, n. 131, p. 7-12, Jan./Abr. 2015 EDITORIAL /  EDITORIAL PERSPECTIVA TEOLÓGIA ADERE A UMA LICENÇA NÃO COMERCIAL 3.0 CREATIVE COMMONS FAMÍLIA EM QUESTÃO  A famí lia  é  uma instituição milenar pré -cristã e  cellula mater  da sociedade que  percorre o tempo trazendo evolução em sua conceituação. Formada por seres hu- manos, com suas necessidades, angústias, alegrias e fracassos. També m a Igreja considera a famí lia como a primeira sociedade natural.  As formas de família que se apresentam atualmente sofreram inúmeras modifica- ções ao longo da hist ória. Percebe-se a crescente mutação nas relações familiares que saí ram de um modelo patriarcal, matrimonializado e patrimonialista, para um modelo de famí lia fundado no afeto, de um modelo de famí lia numerosa para outro formado apenas por pai, mãe e um ou dois filhos e por fim, transcendendo, à  famí lia pós-nuclear onde as relações importam mais que a forma. As transformações vigentes, como a dinamização das forças produtivas, a competitividade, as novas tecnologias, a redefinição dos papéis do homem e da mulher, a urbanização e as novas relações de trabalho  –  entre elas a entrada da mulher no mercado  –  imp õem desenhos múltiplos. Muitos dizem não  à  função mais tradicional da famí lia, a  procriação, para manter a liberdade e a autonomia. Casais de fato descartam o matrimônio e pessoas do mesmo sexo oficializam suas uniões e adotam filhos. No Brasil, na metade dos lares não existe mais o modelo cl ássico, com pai, mãe e filhos do mesmo casamento (cf. IBGE, censo 2010). Pessoas moram sozinhas, avós ou tios criam netos, casais decidem não ter filhos, outras têm “produções independentes etc. O número de divórcios triplicou e o de ‘casamentos de papel  passado’ diminuiu. O modelo tradicional de famí lia está  em crise, não a Institui ção Familiar em si. A família representa um refúgio atraente, a ponto de os filhos permanecerem mais tempo na casa dos pais e, em alguns casos, até  retornarem para lá  depois de uma separação ou uma crise financeira. Um quarto dos lares brasileiros reúne três gerações, geralmente sustentadas pelos parentes mais velhos (cf. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada/Ipea). Family in question

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7Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 47, n. 131, p. 7-12, Jan./Abr. 2015

EDITORIAL /  EDITORIAL 

PERSPECTIVA TEOLÓGIA ADERE A UMA LICENÇA

NÃO COMERCIAL 3.0 CREATIVE COMMONS

FAMÍLIA EM QUESTÃO

 A famí lia   é  uma instituição milenar pré -cristã e  cellula mater  da sociedade que percorre o tempo trazendo evolução em sua conceituação. Formada por seres hu-manos, com suas necessidades, angústias, alegrias e fracassos. També m a Igrejaconsidera a famí lia como a primeira sociedade natural.

 As formas de família que se apresentam atualmente sofreram inúmeras modifica-ções ao longo da história. Percebe-se a crescente mutação nas relações familiaresque saí ram de um modelo patriarcal, matrimonializado e patrimonialista, para

um modelo de famí lia fundado no afeto, de um modelo de famí lia numerosa paraoutro formado apenas por pai, mãe e um ou dois filhos e por fim, transcendendo, à

 famí lia pós-nuclear onde as relações importam mais que a forma. As transformaçõesvigentes, como a dinamização das forças produtivas, a competitividade, as novastecnologias, a redefinição dos papéis do homem e da mulher, a urbanização e asnovas relações de trabalho  –  entre elas a entrada da mulher no mercado  –  impõemdesenhos múltiplos. Muitos dizem não   à   função mais tradicional da famí lia, a

 procriação, para manter a liberdade e a autonomia. Casais de fato descartam omatrimônio e pessoas do mesmo sexo oficializam suas uniões e adotam filhos.No Brasil, na metade dos lares não existe mais o modelo clássico, com pai, mãe

e filhos do mesmo casamento (cf. IBGE, censo 2010). Pessoas moram sozinhas,avós ou tios criam netos, casais decidem não ter filhos, outras têm “produçõesindependentes”  etc. O número de divórcios triplicou e o de ‘casamentos de papel

 passado’ diminuiu.

O modelo tradicional de famí lia está   em crise, não a Instituição Familiar emsi. A família representa um refúgio atraente, a ponto de os filhos permaneceremmais tempo na casa dos pais e, em alguns casos, até   retornarem para lá   depoisde uma separação ou uma crise financeira. Um quarto dos lares brasileiros reúnetrês gerações, geralmente sustentadas pelos parentes mais velhos (cf. Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada/Ipea).

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 Antes a famí lia era indissolúvel. Hoje, sentimentos não satisfeitos rompem o estatutoda famí lia. O cenário atual valoriza a preservação da intimidade. Os preservati-vos e anticoncepcionais garantem a alternativa de uma vida sexual desvinculadada maternidade. As restrições   à   paternidade dos homossexuais começam a serrevistas, trazendo mais um modelo de famí lia, a homoparental, graças   à   adoçãoe   à   fertilização   in vitro. Esta  última tem sido a opção de mulheres que decidemconcretizar o sonho da maternidade em clínicas de reprodução, onde a figura do

 pai se resume a um doador anônimo. Não é só o perfil da família que está mu-dando, mas os papé is representados dentro dela. As tarefas há   muito deixaramde ser exclusivas de um ou do outro sexo. Entre as novas situações listem-se osmatrimônios mistos ou inter-religiosos; a famí lia monoparental; poligamia; matri-mônios combinados, sistema das castas; a instabilidade do ví nculo; os fenômenosmigratórios; a influência dos meios de comunicação de massa; o fenômeno dasmães de substituição (“barriga de aluguel”), a crise da fé na sacramentalidade do

matrimô

nio. Famí 

lias com agregamento de muitos subgrupos onde seus membros fazem parte de várias outras famí lias.

O conceito de família é reconfigurado não só através das mudanças sociais,mas també m do Direito. A forma legal de se constituir uma famí lia atravé s docasamento válido, há   tempos já   não   é   mais a   única forma de famí lia aceita noordenamento jurí dico. Aumentaram as possibilidades de construção de famí liasob as mais diversas formas. O divórcio legitimou a possibilidade de as pessoasreconstruí rem a vida mais de uma vez. O casamento perdeu o caráter sagrado eindissolúvel. Casar novamente se tornou algo comum e abriu espaço para outrascombinações familiares,   a família reconstituída. Quando ocorre o divórcio,

surge a chance de uma nova família, onde os filhos das relações anteriores vivemtodos sobre o mesmo teto. A Constituição Federal Brasileira de 1988 legitimou aunião estável sob suas variadas modalidades. O casamento deixou de ser a  únicabase, superando a ideia da famí lia estritamente matrimonial. O predomí nio da

 formalidade do contrato deu lugar ao afeto recí  proco entre os membros que acompõem. As  famílias extramatrimoniais  são redimensionadas juridicamente a

 partir do crité rio das relações afetivas. Esta mudança alterou o sentido da proteção jurí dica da famí lia, deslocando-o da instituição para o sujeito. O Estado asseguraa assistência à família na pessoa de cada um dos seus integrantes. A primaziada pessoa nas relações de famí lia, na garantia da realização da afetividade   é   a

condição primeira de adequação do direito   à   realidade. Neste modelo de famí liaeudemonista, ainda que a formação seja convencional, nota-se pouco apego a regrassociais que pautam a famí lia tradicional, como a religião e a moral.

 A sociedade brasileira abrigou a família matrimonializada tutelada pelo CódigoCivil de 1916. Já o Código Civil de 2003 incorporou uma série de novidades. Adefinição de Família abrange as unidades formadas por casamento, união estávelou comunidade de qualquer genitor e descendente. O casamento passou aser a ‘comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres doscônjuges’, sendo apenas uma das formas para constituir famí lia.  É  possí vel ter

dois pais ou duas mães oficialmente. O modelo de família como união estável su-

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 perou o estigma do concubinato sendo classificado como entidade familiar, ou seja, formada por um homem e uma mulher livre de formalidades legais do casamento,com o animus de constituir famí lia.

Na ampliação do conceito de famí lia no intuito de proteger seus integrantes, o

sistema jurí dico brasileiro abriu a possibilidade de reconhecimento das   uniõeshomoafetivas como  uniões estáveis , ou seja,  entidades familiares constituí-das entre pessoas do mesmo sexo. O Supremo Tribunal Federal equiparou aunião civil entre pessoas do mesmo sexo ao matrimônio civil. Se a união estávelé  entidade familiar, como també m o casamento, as mesmas regras são aplicadas.Por fim, surgiu também a família anaparental, que consiste na coabitação de

 pessoas sem ví nculos parentais, com uma rotina e dinâmica que os aproximaram, podendo ser estas afinidades sociais, econômicas ou outra qualquer. No Congressobrasileiro uma comissão especial analisa o projeto de lei do  Estatuto da Famíliae que será  debatido pela Comissão de Direitos Humanos.

 A sociedade está sendo obrigada a reorganizar regras básicas para amparar a novaordem familiar. Refletir sobre a família neste contexto é urgente e necessário. Aolongo dos sé culos, a Igreja não fez faltar seu ensinamento sobre a famí lia. Seria

 grave equí voco transferir para todos os modelos os mesmos princí  pios e regramentos pró prios da famí lia tradicional. As estruturas eclesiais continuam praticamenteas mesmas de sé culos passados. Mesmo com boa parte da atual geração já  viven-ciando novos modelos familiares, a catequese, os sacramentos e a pastoral ainda

 funcionam como se nada tivesse mudado. As famí lias não são todas iguais. Emâmbito eclesial, pensar em famí lia ainda traz  à mente o modelo convencional, um

homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos.

 A primeira etapa do Sí nodo dos Bispos sobre a Famí lia (III Assembleia GeralExtraordinária), ocorrida em 2014, especificou o   “status quaestionis”   sobre a

 famí lia. A próxima etapa  —   Assembleia Geral Ordinária   de 2015 discutirálinhas de ação pastoral. O questionário preparatório perguntava sobre casais

 gays, aborto, divórcio, relações pré -matrimoniais, eutanásia. A   Relatio synoditornou-se o documento preparatório   (Lineamenta)   da segunda parte do Sí nodo(outubro/2015). Papa Francisco, no discurso de conclusão da primeira etapa, ad-vertia para que a Igreja não caia na tentação do  endurecimento hostil,  ou seja,

de se fechar dentro daquilo que está   escrito   (a letra)   sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas; dentro da lei, dentro da certeza daquilo que já conhecemos, e não do que ainda devemos aprender e alcançar. Alguns aspectossão de particular interesse:

 Adequado uso das fontes. A importância da famí lia, em vista da pessoa e dasociedade,   é   sublinhada na Sagrada Escritura logo nos primeiros versí culos:Não é bom que o homem esteja só (Gn 2,18). No desígnio do Criador, é o lugar

 primário da humanização. A Bí blia está  constituí da de uma evolução moral e deuma diversidade de culturas. O cristianismo, marcado por mais de dois mil anos

de história, recebeu influência de diversas tradições religiosas, antropológicas, filo-

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das Igrejas particulares e locais, quer diante do Estado civil promotor de uniõescivis entre pessoas do mesmo sexo, quer perante as pessoas envolvidas neste tipode união?”. Seguido de outra pergunta: “No caso de uniões de pessoas do mesmosexo que adotaram crianças, como   é   necessário comportar-se pastoralmente, emvista da transmissão da f é ?”.

Da mesma forma que as “uniões estáveis” foram repudiadas em seu tempo, omesmo está   ocorrendo com as uniões estáveis homoafetivas. Estas relações, con-

 figuradas como familiares, geram direitos e obrigações mútuas, necessitando deamparo legal semelhante  às demais uniões estáveis. O reconhecimento jurí dico paraa coabitação entre duas pessoas do mesmo sexo   é  uma questão de   justiça social,

 pois visa suprimir toda sorte de privilé  gios, no sentido de uma desigualdade dedireitos: a todos os mesmos direitos. Por outro, todos têm os mesmos deveres,como membros da comunidade em relação ao   bem comum.   “Não é ruim, emvez de relações homossexuais ocasionais, que duas pessoas tenham certa estabili-

dade, e, portanto, nesse sentido, o Estado também poderia favorecê-las” (Cardeal Martini). Insistir na importância da acolhida, por parte da Igreja, das “novassituações familiares” , como as crianças adotadas por pessoas solteiras ou por pes-soas do mesmo sexo que vivem em união estável. “Em nível educativo, as uniões

 gays colocam desafios novos que, para nós, às vezes são difíceis de compreender.O desafio está em como acolher os seus filhos” (Papa Francisco). O interessedeve concentrar-se na pastoral com relação   às crianças que crescem com casaisde segunda união e adotadas por casais gays. Menores que têm o direito a umcaminho de f é  exatamente como todos os outros.

 A consciência: antes de condenar os membros de uma família estranha ou diferentedos nossos conceitos morais, é preciso respeitar a consciência como o primeiro detodos os vigários de Cristo  (Catecismo da Igreja Católica,  n. 1778). As orien-tações das instâncias religiosas servem para ajudar no juízo da consciência, nuncasubstituí -lo. Antes de apressar-se em oferecer uma orientação moral   às famí lias,é  preciso ter clareza da enorme complexidade que as envolve.

 A famí lia não está   em perigo. O modelo de famí lia proposta pela Igreja sim. A famí lia não  é  algo que diz respeito somente  à religião e os sacramentos.  É  també mum elemento da construção da sociedade e da cultura. A famí lia   é   o primeiro

espaço de humanização e de educação de valores humanos: reconhecimento e en-riquecimento do outro, fidelidade, responsabilidade com a comunidade (sociedade,

 paí s, mundo); serviço   à   vida. Neste sentido, os cônjuges cristãos compartilhamtodos dos mesmos princípios morais: amor, generosidade, fidelidade conjugal,

 fecundidade (adoção). Apostar no amor como crité rio supremo no momento dedefinir a família (cf. 1 Cor 13, 13). O amor é a plenitude da lei e a família é seu

 projeto de humanização. A concentração excessiva nos costumes e normas impedecontemplar o amor divino que se expressa nas relações familiares.

É  momento de investir em uma Pastoral Familiar acolhedora de todos os novos

modelos de famí lia. Uma pastoral não mais derivada da compreensão patriarcal,

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heteronormativa e procriativa, mas na valorização da pessoa na sua integralidade. A Igreja deve estar à altura de anunciar Cristo a uma geração que muda. Jesusnasceu e viveu em uma famí lia concreta, acolheu todas as suas caracterí sticase ensinou atitudes muito claras nas relações com o próximo. Modelo de famí liacristã será todo aquele onde as relações possibilitem alcançar a plena humanização.“A minha mãe e os meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a põemem prática” (Lc 8, 21). A família é o espaço mais íntimo de relações humanas e,

 portanto, marco privilegiado de humanização.  É  boa notí cia do Evangelho.