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8/16/2019 Historia Da Teologia Bengt Hagglund http://slidepdf.com/reader/full/historia-da-teologia-bengt-hagglund 1/351 BENGT HÄGGLUND + HISTÓRIA DA TEOLOGIA +

Historia Da Teologia Bengt Hagglund

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BENGT HÄGGLUND

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HISTÓRIADATEOLOGIA

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Histó ria da Teolog ia - Embora ser reconhecido como "um dos li

vros mais completos e recomendáveis nesta área da história da teolo

g ia " ^ Autor não alimenta a pretensão de esgotar a temática, pois re

conhece que "há muito que fazer ainda neste campo". Dividindo sua

obra em três grandes partes - A Era dos Pais Eclesiásticos, a Idade

Média, O Período Moderno - Bengt inicia seu estudo com os Pais

Apostólicos e conclui com a análise das principais tendências teológi

cas no início do século XX, traçando "a história do pensamento teoló

gico através dos séculos", e analisando "as diferentes escolas teológi

cas com suas peculiaridad es” . Em sua pesquisa objetiva, o Autor não

pronuncia julgamento nem pretende "cristianizar" ou "reformar" ou

"luteranizar” os teólogos, cujas idéias apresenta. Mas sabendo que a

"história da teologia desenvolve-se como análise de como a regra de

fé cristã tem sido interpretada na história e no contexto de diferentes

grupos", Hãgglund afirma que sua História da Teologia "tem como

objetivo servir como introdução à literatura dogmática cristã e descre

ver suas etapas de desenvolvimento".

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HISTÓRIA

DA

TEOLOGIA

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BENGT HÀGGLUND

HISTORIADA

TEOLOGIA

Traduzido do inglês

 porMÁRIO L. REHFELDT

e

GLÁDIS KNAK REHFELDT

6o Edição - 1999

CONCÓRDIA EDITORA LTDAAv. São Pedro, 633 - Bairro São G eraldo  CEP 90230-1 20 - PORTO ALEGRE - RS Fone: (051) 342-2699 - Fax: (051) 343-5254  E-mail : edi [email protected] HomePage:editoraconcordia.com.br

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Título Original: Teologins Historia '

Traduzida para o Inglês por Gene J. Lund da 3a Edição sueca

Ia Edição - 1973

2“ Edição - 1981

3a E d iç ã o -19864a E d iç ã o -1989

5a Edição - 1995

6a Edição - 1999

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por

CONCÓRDIA EDITORA LTDA.

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 APRESENTANDO

"Porque é indispensável que o bispo seja . . .apegado à palavra fiel que é segundo a doutrina,de modo que tenha poder,assim para exortar pelo reto ensinocomo para convencer os que contradizem."

(Tifo 1.7,9)

Em cada momento da História sentiram os cristãos a necessidade de de-finir sua fé, explicála em linguagem compreensível aos homens de seu tempoe defendêla contra distorções e ensinos contrários. A igreja cristã presenciou,assim, o surgimento e desenvolvimento de muitas doutrinas e heresias no de-curso dos seus quase dois mil anos de existência. Resulta daí a importância deconhecer os fatos que cercam a origem e o desenvolvimento da formulação de

determinada doutrina a fim de poder compreendêla e avaliála plenamente.

Esse conhecimento histórico oferece, também, a partir disso, melhores condi-ções para se determinar até que ponto uma formulação doutrinária está fun-

damentada na Escritura e até que ponto ela é fruto de circunstâncias transitó-rias.

Muitos, sob a alegação de quererem valorizar a reflexão e ação do mo-mento presente, preferem ignorar o passado e agir como se ele não tivesse

existido. Estes, no dizer de Kurt D. Schmidt, são "um fardo para a Igreja"

quando querem agir nela. Ou, como acreditava Santayana, eles estão conde-nados a repetir os traços menos desejáveis desse mesmo passado. Outros,

embora não desconheçam os benefícios que o conhecimento do passado podeproporcionar, se assustam com o volume de informações e opiniões que ahistória da Teologia acumulou durante os séculos e que já na Idade Média seassemelhavam, para o estudante principalmente, a uma selva obscura cheia deobstáculos.

A História da Teologia  de Bengt Hãgglund oferece orientação segura,clara e confiável para que o leitor não se perca nessa selva. O autor divide suaobra em três grandes partes correspondentes aos períodos antigos, medieval emoderno da história da igreja cristã. Ao longo do seu trabalho, ele faz uma

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análise de "como a regra da fé cristã (ou, a confissão cristã original) tem sidointerpretada na história e no contexto de diferentes grupos".

Hãgglund, um teólogo sueco, professor de Teologia na Universidade deLund, revela um profundo conhecimento do conteúdo que analisa e expõe e,

ao mesmo tempo, demonstra uma capacidade de síntese e clareza raramenteencontradas. A excelente tradução, feita a partir da tradução americana, possi-bilita uma leitura fluente também ao estudioso de fala portuguesa.

Ao apegado à palavra fiel da Escritura Sagrada, essa obra poderá servir

como valioso instrumento auxiliar na tarefa de exortar pelo reto ensino e con-

vencer os contraditores. Recomendase, portanto, a leitura atenta e acompa-

nhada (e, certamente, também geradora) de reflexão dessa obra a pastores,estudantes de teologia, e a todos aqueles que sabem que somente poderemosdescortinar horizontes maiores do que os avistados pelos gigantes do passadose nos pusermos de pé sobre seus ombros.

Paulo W. Buss - STM 

Professor de teologia histórica da Escola Superior  

de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo

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DO PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Esta história da teologia tem como objetivo servir de introdução àliteratura dogmática cristã e descrever suas etapas de desenvolvimento.A história da teologia é, portanto, um ramo da história das idéias ; tratadas fontes da tradição cristã e examina o desenvolvimento das idéias nelasrefletidas.

Na teologia européia distinguese, às vezes, entre «história do dogma»,que trata dos desenvolvimentos doutrinários anteriores à Reforma, e «his-tória da teologia», que estuda os desenvolvimentos posteriores à Reforma.Essa divisão, cuja base concreta é frágil, no entanto, demonstra claramenteser a expressão «história do dogma» título pouco satisfatório para este ramoespecifico de pesquisa. Tendose em mente a divisão atual das disciplinasteológicas, a expressão «história da teologia» também poderia parecer im-própria neste contexto. Mas quando o termo «teologia» é também empre-gado para designar a interpretação da fé cristã, tanto em sua forma pré

científica como na moderna, podese justificar o uso do termo «história dateologia».

Os compêndios mais antigos de história do dogma — por exemplo,ás três obras merecidamente famosas de Adolf von Harnack, ReinholdSeeberg e Friedrich Loofs — definiam como dogma as doutrinas oficialmen-te aceitas pela igreja. Harnack consideravaas a reelaboração científica dasdoutrinas da fé, ou, em suas próprias palavras, «o resultado do espirito gre-go trabalhando no solo do evangelho». Considerava o período em que istoaconteceu certa época da história da igreja, em grande parte ultrapassada

pela Reforma, e procurava criticar os dogmas com base nos critérios quedizia ter encontrado no evangelho original. Seeberg também acreditava quea formação do dogma teve lugar num certo período de tempo, que para osprotestantes se encerrara com a Fórmula de Concórdia e o Sínodo de Dort.Mas também julgava ser dogma a expressão da fé cristã, e descobriu ofundamento da crítica nos próprios dogmas, na medida em que constituíamexpressão das verdades fundamentais da salvação operada por Cristo. De-vese ressaltar, contudo, que estas obras clássicas na realidade não tratamapenas de dogma em sentido restrito, mas de teologia cris tã em geral. Os

desenvolvimentos mais modernos, todavia, não foram considerados partesda história do dogma segundo os critérios aceitos naquela época.

Em discussões contemporâneas não há unanimidade quanto ao signi-ficado do termo «dogma». Em geral, no entanto, possui sentido bem mais

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amplo que o da definição mencionada acima, pois também inclui desenvol-vimentos teológicos modernos. Considerase dogma não apenas algo her-dado do passado, mas também a realidade contemporânea, que se relacio-na intimamente com a proclamação da Palavra . Em alguns casos é conce-bido como princípio transcendente da revelação (como em Karl Barth, por

exemplo), em outros como complementação científica da mensagem prega-da pela igreja. Em tais circunstâncias , é fácil ve r quão difícil é fornecer umadescrição precisa da esfera e da tarefa do historiador do dogma com basenas premissas contemporâneas.

Mas apesar destas dificuldades, é importante, acima de tudo, traçara história do pensamento teológico através dos anos simplesmente comoparte do campo das idéias, sem pronunciar julgamentos e sem empregaruma «crítica de dogma» preconcebida de qualquer espécie. Desejandoseencontrar um elemento básico comum, ou princípio diretivo para se usar

numa pesquisa desta natureza, parece preferível partir da base da confis-são cristã original e não da base de um conceito ambíguo de dogma. Estaconfissão, a «regra de fé» cristã, tornouse realidade definida desde o iní-cio, não com respeito à forma, mas no tocante à substância (cf. Kelly, Early Christian Doctrines, 1958, p. 37: «resumo condensado, fluido em sua termi-nologia, mas definido quanto ao conteúdo, ressaltando os aspectos princi-pais da revelação cristã na forma de uma regra»). Esta regra de fé refle-tiuse nos símbolos então em uso, mas também podia ser expressa em ou-tras formulações doutrinárias. Aparece com destaque nos escritos da igreja

antiga não como dogma que se desenvolve gradualmente, mas como sumá-rio do conteúdo da Escritu ra. A teologia da igreja é apresentada como ex-plicação da regra de fé original ou daquilo que nela se considerava essencial.

Sobre este fundamento, a história da teologia desenvolvese como aná-lise de como a regra de fé cristã tem sido interpretada na história e nocontexto de diferentes grupos. Que tal ponto de vista não é nem arbitrá-rio e nem imposto de fora, depreendese do fato que de uma maneira oude outra, as várias escolas teológicas procuraram, acima de tudo, interpre-

tar a confissão cristã.No que tange à teologia dos Pais Eclesiásticos, o ponto de vista a

que aqui se faz referência, geralmente manifestouse na apresentação dahistória do dogma, consciente ou inconscientemente. Isto acontece porqueos esforços literários dos Pais da Igreja se relacionam intimamente comas questões principais tratadas pela regra da fé. No caso da teologia me-dieval e contemporânea, é bem natural que este material também seja exa-minado sob outros aspectos. A relação com a filosofia e os pressupostosintelectuais contemporâneos receberam atenção acurada nesta tentativa de

se analisar as diferentes escolas teológicas com suas peculiaridades. Aose delinear a história da teologia é de grande valor tomar em conta ade-quadamente estas várias facetas do quadro geral. Há muito que fazer aindaneste campo. Quando se procura descrever de que modo a regra de fé

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foi interpretada no período medieval (e posteriormente), e estudar a intera-ção entre teologia e confissão, que constantemente ocorre na história dateologia, muitas áreas de pesquisa se abrem, e deveriam se r exploradas. . . .

Nesta nova edição de História da Teologia o texto foi revisado emvários pontos, em outros foi ampliado com base em literatura nova ou an-

teriormente desconhecida. A edição de breve resumo da teologia inglesa— principiando com a Reforma — constitui a maior modificação. . . . Emresposta a numerosas solicitações foi adicionado um índice a esta edição. . . .

Bengt HãgglundLund, Suécia,Fevereiro de 1963

PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO

Nesta edição acrescentei um trecho sobre a teologia do reavivamentismo do século XIX. Também conduzi a discussão até o presente em vá-rios assuntos adicionando o Capítulo 34: «A Teologia da Parte Inicial doSéculo XX; Tendências Contemporâneas». O leitor não deverá, contudo,esperar encontrar análise ampla ou pormenorizada dos desenvolvimentos

do século XX neste capítulo. O objetivo deste capítulo de conclusão é sim-plesmente o de esclarecer algumas das idéias mais importantes que foram■trazidas à luz em anos recentes e de elucidar alguns dos problemas essen-ciais em pauta na discussão teológica contemporânea.

Para o preparo desta terceira edição sintome especialmente grato àassistência valiosa prestada por Bo Alhberg, Sven Ingebrand, Gõran Malestrõm, David Lagergren, Torsten Nilsson, Sven Hemrin e Olle Sigstedt,entre outros.

Bengt Hãgglund

Lund, Suécia,Agosto de 1966.

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I PARTE

 A ERA DOS PAIS ECLESIÁSTICOS

CAPITULO 1

OS PAIS APOSTÓLICOS

Quando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos aalguns autores cristãos do fim do primeiro século e do início do segundo,cujos escritos chegaram até nós. Estes escr itos — em sua grande maioriade natureza incidental (cartas, homiliasl — são de valor para nós porque.ao  lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímoscomo testemunho da fé cr istã. Estes escritos, no entanto, não pretendemser apresentações doutrinárias no sentido restrito do termo, e como resul-tado, não podemos esperar deles um quadro completo dos artigos de fé.E, enquanto sua contribuição para o desenvolvimento da teologia foi rela-tivamente pequena, eles contribuíram de forma notável para elucidar o con-ceito de fé e os costumes da igreja que prevaleceram nas primeiras con-gregações.

Os mais importantes destes escritos são os seguintes:— A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95.

— As Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritaspor volta de 115 durante a viagem de Inácio a Roma e para suamorte de mártir já prevista.

— A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110.

— A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por voltade 130.

— A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, porvolta de 140.

— O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por. volta de 150.

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— Fragmentos de Papias, escritos em Hierápolis na Frigia, por voltade 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros).

— A Didaché («Os Ensinamentos  dos Doze Apóstolos»), escrita naprimeira metade do século, provavelmente na Síria.

Apesar de, cronologicamente, os escritos dos Pais Apostólicos esta-rem próximos dos apóstolos e do Novo Testamento, a diferença entre estasfontes é grande e evidente, tanto com respeito à forma como quanto aoconteúdo. Alguns destes escritos foram incluídos, por algum tempo, no câ-none do Novo Testamento, mas não foi por acidente que afinal foram ex-cluídos. A diferença entre os livros do Novo Testamento e os escritos dosPais Apostólicos se manifesta de muitas maneiras. Temse feito tentativasde determinar qual dos apóstolos (Pedro ou Paulo, por exemplo) influenciouos homens que produziram estes escritos. Mas, evidenciouse que esta pes-quisa é desnecessária . A teologia dos Pais Apostólicos não pode ser atri-buída a qualquer membro individual do grupo apostólico ; reflete, ao invésdisso, a fé da congregação típica dos primeiros anos da história cristã. Assemelhanças entre estes escritos e o Novo Testamento não dependem ne-cessariamente do fato que os Pais Apostólicos foram influenciados direta-mente por um autor canônico ou outro; refletem; antes, o fato que ambasas fontes tratam da mesma fé.

Comparados com o Novo Testamento, os Pais Apostólicos se distinguem especialmente devido a sua ênfase no que geralmente se denominamoralismo (Anders Nygren usa a palavra «nomismo»; em português tambémse emprega o termo «leaalismo»'). A proclamação da lei ocupa lugar dedestaque nos escritos dos Pais Apostólicos. Isto acontece em parte por-que se dirigem a novas congregações cujos membros recentemente aban-donaram o paganismo. Faziase necessário substituir seus antigos hábitoscom praxe e costumes cristãos. A fim de realizálo, o costume judaico de

pregar a lei foi usado até certo ponto, juntamente com outras praxes congregacionais judaicas, apesar do fato de haver marcada oposição ao judaís-mo e à lei cerimonial. O evangelho era apresentado como nova lei oueCristo ensinara mostrando o caminho da salvação. Diziase que a antigalei tinha sido abolida e era obsoleta, mas nos ensinamentos de Cristo ha-via nova lei. A vida cristã diziase consistir, acima de tudo, em obediência

O moralismo não se encontrava na proclamação da lei como tal, masna maneira como isto era feito. Entre os Pais Apostólicos havia forte ten-dência de ressaltar a obediência à lei, bem como a imitação de Cristo, comosendo o caminho à salvação e o conteúdo essencial da vida cr istã . A mortee ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamentopara a salvação dos homens. Por causa da obra de Cristo o homem pode

CARACTERÍSTICAS GERAIS

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receber o perdão dos pecados, o dom da vida, imortalidade e libertação dospoderes da corrupção. Mas mesmo no contexto em que tais assuntos eramdiscutidos, os Pais Apostólicos comumente faziam recair forte ênfase nalei e no novo modo de vida. A análise de alguns dos pontos fundamentaismais freqüentemente mencionados elucidará um pouco mais esta tendência.

Justiça, como regra geral, não se descrevia como dádiva de Deusoutorgada aos homens de fé (cf. Rm 3.21 ss.), mas, em vez disso, era aprssentada em termos de conduta cristã apropriada. Era, muitas vezes, apre-sentada como o poder de Cristo que capacita o homem a fazer o que écorreto e bom, mas ao mesmo tempo também se dizia, de maneira um tantounilateral, que a nova obediência é exigência prévia para perdão e salvação.Esta era considerada não como dom da graça pura, dado aqui e agoraàqueles que crêem, mas como alao. outorgado após esta vida, especialmentecomo recompensa aos que obedeceram a Cr isto. Com a exceção de Pri-

meiro Clemente, os escritos dos Pais Apostólicos têm muito pouco em co-mum com a ênfase paulina de justificação pela fé. Não é a graça imerecidaque se situa no centro desta teologia, mas, antes, a nova vida que Cristoensinou e para a qual ele capacita os homens. Devese, no entanto, lem-brar que o caráter destes escritos, bem como o objetivo que os autorestinham em mente, eram, em parte, responsáveis por tal ênfase. Além disso,o fato que eram escritos casuais, que não pretendiam ser completos, é ou-tra faceta da história. Estes escritos pressupunham que seus leitores tam-bém tinham ouvido a proclamação ora! em que outros aspectos da fé cristã

devem ter sido acentuados de maneira apropriada.

Salvação é apresentada, na maioria das vezes, em termos de imor-talidade e indestrutibilidade em vez de em termos de perdão dos pecados.Outro aspecto fortemente acentuado nesta conexão é conhecimento. Cris•to nos trouxe o conhecimento da verdade. Ele é o Revelador enviado porDeus a fim de que possamos conhecer o Deus verdadeiro e assim sermoslibertados da servidão da idolatria e da falsa antiga aliança. Os Pais Apos-tólicos não diziam, no entanto, que Cristo é mero ensinador; ensinavam

que é Deus, aquele por cuja morte e ressurreição o dom da imortalidadeé outorgado.

Pecado é descrito como corrupção, maus desejos e cativeiro sob opoder da morte, além de erro e ignorância; a idéia de culpa não é muitoacentuada. Notamos aqui um paralelo ao que foi dito sobre sa lvação; osPais Apostólicos consideravamna como sendo imortalidade ou a ilumina-ção decorrente da verdade, tal como se encontra em Cristo. A relação en-tre salvação e perdão ou redenção também se encontra neles — especial-mente em Barnabé — mas não ocupa o mesmo lugar que em Paulo ou,

por exemplo, na tradição protestante. Associase a salvação à vida fis ica .em termos de libertação da morte e corrupção. Luz e vida, que formamseu conteúdo, relacionamse com a lei. O caminho da obediência é o ca-minho à vida.

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A tendência moralista dos Pais Apostólicos aparece com maior evi-dência em seu conceito de graça. No Novo Testamento qraca é o amorde Deus revelado em Cristo . Relacionase, por isso, com o próprio Deus,e com a obra redentora de Cristo . O homem é justificado por graça, nãodevido à força de suas próprias obras, fptrs ns PaiSLApostólicos este con-

ceito nBotast^mrntnrin rte grana é snhstituíHn pnr nutro, no qual a graçaé consideraria um riom que Deus outorga ao homem po rjn ta imádioi —ds—Cristo . Este dom, que algumas vezes é situado na mesma categoria do co-nhecimento que chegou até nós mediante Cris to , é imaginado como sendoum poder interno associado com o Espírito Santo, peio qual o homem podebuscar a justiça e andar no caminho da nova obediência. A graça é, porconseguinte, o pressuposto necessário à salvação, mas não no sentido neotestamentário — que a justiça é o dom de Deus outorgado aos que crêemem Cristo. Os Pais Apostólicos, pelo contrário, dizem que a graça confere

o poder pelo qual o homem pode alcançar a justiça e afinal ser salvo»A linha de pensamento aqui apresentada, claramente indica a relação

entre o conceito medieval de graça, com sua ênfase em «boas obras», eo padrão anteriormente estabelecido nesta tradição (cf. Torrance, The Doc-trine of Grace in the Apostolic Fathers, 1948). Há ao mesmo tempo, contu-do, expressões que se relacionam majs intimamente com a doutrina paulinada justificação. Além disso, é também necessário que se observe a estaaltura, que estamos aqui tratando de literatura exortativa, destinada a edu-car as pessoas na nova vida, salientando fortemente o chamado à obediên-cia aos mandamentos de Cristo . Esta ênfase èra feita a fim de se provi-denciar uma influência que contrabalançasse a moralidade pagã que domi-nava o ambiente no qual viviam as pessoas a quem estes escritos eram diri-gidos. Como resultado não é lícito usar os escritos dos Pais Apostólicosnara tirar conclusões extremas com respeito a toda a proclamação cristãdesse período.

CONCEITO DE ESC RITURA .

Assim como acontece nos livros do Novo Testamento, os Pais Apos-tólicos julgavam que os livros do Antigo Testamento possuíam sua própria.autoridade intrínseca,. O fato que citam o Antigo Testamento tão freqüen-temente, é tanto mais surpreendente quanto lembramos que seus escritosforam dirigidos, na maioria dos casos, a cristãos que tinham vindo de am-biente pagão,

A igreja era considerada o Novo Israel e, como tal, a herdeira dosescritos associados com a antiga aliança. O verdadeiro propósito da lei

e dos profetas era de natureza espiritual, fato revelado através das pala-vras e obras de Cristo. A Epístola de Barnabé, que tratou deste problemade modo especial, não faz qualquer distinção óbvia entre o que mais tardese denominou interpretação tipológica e interpretação alegórica livre. Pres

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supunhase desde o início que a lei de Moisés tinha objetivo mais profun-do. Quando, por exemplo, a lei de Moisés proíbe que se comam animaisimpuros, julgavase que a lei, com estes preceitos, condenava os pecadosque tais animais simbolizavam. Referências a Cristo e ao Novo Testamen-to eram encontradas mesmo nos pormenores mais insignificantes (cf. por

exemplo: Barnabé IX, 8). Na base de tudo isto se encontrava a convicçãoque a Escritura era verbalmente inspirada pelo Espirito Santo: imaginandose que mesmo as minúcias externas ocultavam sabedoria espiritual de al-guma espécie, que os judeus com seu método de interpretação literal fo-ram incapazes de descobrir.

Os Pais Apostólicos também testificam em termos insofismáveis queos quatro evangelhos e os escritos dos apóstolos estavam começando a serreconhecidos como Escritura Sagrada com a mesma autoridade do AntigoTestamento, mesmo que o Novo Testamento ainda não tivesse alcançadosua forma firial em sua época. Quase todos os livros que chegaram a serincluídos no Novo Testamento são citados ou referidos nos Pais Apostó-licos.. A tradição oral que se originara com os apóstolos também era con-siderada como tendo autoridade decisiva para a fé e praxe congregacionais. Segundo Inácio, o bispo era o portador desta tradição válida.

A DOUTRINA DE DEUS; CRISTOLOGIA

Os Pais Apostólicos ensinavam um conceito bíblico da natureza deDeus, baseado na idéia de Deus encontrada no Antigo Testamento. Con-cebiam Deus como o todopoderoso que criou o mundo e revelou sua von-tade. sua justiça e sua oraca aos homens. Assim o exp ressa o Pastor deHermas: «Crê acima de tudo que Deus é um, aquele que criou e ordenoutodas as coisas e formou do nada tudo o que existe.» Enfatizase a fé noúnico Deus verdadeiro. A doutrina do Deus Trino ainda não aparece ple-namente desenvolvida, mas a fórmula trinitária era empregada; por exem-plo, no batismo, a fé na Trindade estava, naturalmente, implícita. A expli-cação da maneira como as três pessoas da divindade se relacionam entresi pertence, todavia, a período posterior.

A divindade de Cristo é salientada enfaticamente nos Pais Apostóli-cos. Plínio, o Moço, dá testemunho disto na bemconhecida frase incluídanuma carta ao Imperador Trajano, ao dizer que os cristãos «cantam a Cris-to como cantam a Deus». Consideravase Cristo como o Filho preexistentede Deus, que participou na obra da criação; é o Senhor do céu, que apa-recerá como juiz dos vivos e dos mortos. Cristo é especificamente deno-

minado Deus, notadamente nas epístolas de Inácio. «Nosso Deys, JesusCristo, nascido de Maria segundo o decreto de Deus, verdadeiramente deDavi, mas também do Espírito Santo», escreveu ele em sua Epístola aosEfésios. (XVIII, 2).

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Afirmavam estar Cristo presente na congregação como seu Senhor,e os cristãos se unem a ele como participantes em sua morte e ressurreiçãa.  Esta união com Cristo é destacada de modo especial por Inácio. Es-creveu aos cristãos em Esmirna: «Chegou a meu conhecimento que estaisestabelecidos em fé sincera, firmemente unidos à cruz de Cristo tanto no

corpo como na alma, constantes no amor mediante o sangue de Cristo, econvencidos que nosso Senhor é na verdade descendente de Davi segundoa carne, e Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus.» (Primei-ra Epístola aos Esmirneanos).

Também encontramos em Inácio várias afirmações dirigidas explicita-mente contra (ou provocadas pelos) gnósticos judaicocristãos, nas guaisenfatiza a verdadeira humanidade de Crista. A vida real de Cristo na terraé vindicada em oposição àqueles que mantinham que Jesus tãosomente

parecia existir em forma humana, que apenas parecia ter sofrido na cruze que depois da ressurreição retornou a uma existência espiritual incor-pórea. Tal opinião é conhecida como docetismo (do grego dokein). O con-flito contra o cfocetismo foi uma das facetas mais significativas da teologia

 f  cristã primitiva, visto contradizer o docetismo aouilo oue era hásico naproclamação apostólica, a verdadeira morte e ressurreição de Cristo. A sal-vação resultava do que realmente acontecera dentro do contexto da histó-ria, e do que os apóstolos foram testemunhas oculares. Quando o doce-tismo, por meio de suas interpretações, eliminou a morte e a ressurreição

de Cristo, a salvação era relacionada a um ensinamento abstrato e não aoque Deus realizara em Cristo. O docetismo assumiu vár ias formas: ounegava a verdadeira humanidade de Cristo empregando teorias sobre corpofantasmagórico, ou então escolhia certos aspectos da vida terrena de Cristocomo sendo potencialmente verídicos, enquanto negava o restante dos re-latos evangélicos através de suas explicações. Certo gnóstico. Cerinto. ha-bitante da Ásia Menor, tinha a opinião gue Jesus fora unido a Cristo, o Fi-lho de Deus, por ocasião de seu batismo, e gue Cristo abandonou o Jesusterreno antes da crucificação.. Acreditavase que o sofrimento e a mortede Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria docética, associada a Basílides, sugeria que ocorrera um engano, que Simão,o Cireneu fora crucificado em lugar de Cristo, escapando Jesus, desse mo-do. da morte na cruz.

Conforme Irineu, o Evangelho de João foi escrito com esta finalidade,entre outras, a saber, a de refutar o gnóstico Cerinto mencionado acima.O ponto de vista deste se caracterizava pelo contraste nítido que estabe-lecia entre o homem Jesus e o ser celestial, Cristo, que podia residir emJesus apenas por breve período de tempo. Em oposição a isto, o Evange-lho de João nos diz que «o Verbo se fez carne»; de modo semelhante aPrimeira Epístola de João afirma que «Jesus Cristo veio em carne». (2 .22;4.23).

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Podese notar oposição desta mesma espécie no conflito de Ináciocontra o docetismo. Contra aqueles que diziam que Cristo apenas pareciater sofrido, Inácio expressou a convicção que Cristo realmente nasceu deMaria, foi realmente crucificado e que ressuscitou. Cristo estava *na car-ne» mesmo depois de sua ressurreição, disse Inácio, não era «espírito in-

corpóreo».

CONCEITO DE IGREJA

Podemos determinar, com base nos Pais Apostólicos, quais eram osregulamentos ec lesiásticos que estavam sendo consolidados na época. Ocargo de bispo desenvolveuse a ponto de distinguirse do colégio dos an-ciãos. Segundo Inácio, o bispo era o símbolo da unidade cristã e o porta-

dor ria tradição apostólica. As congregações, em vista disso, eram admoes-tadas a ateremse firmemente a seus bispos e a lhes obedecerem. Di?iase oue a unidade consistia, em primeiro lugar, num coroo de doutrina comum,e se explicava a posição dominante do bispo na congregação com base nofato oue era o representante da doutrina verdadeira. Esta harmonia, quetinha como centro os bispos, era enfatizada como proteção contra here-sia s, que ameaçavam destruir a unidade da igreja. Originalmente os anciãose os bispos estavam no mesmo nível, mas a esta altura dos acontecimentosos bispos ocuparam posição superior a dos presbíteros. Este assim cha-

mado episcopado monárquico apareceu em primeiro lugar na Ásia Menore é claramente salientado nas epístolas de Inácio, enquanto Primeiro Cle-mente e o Pastor de Hermas, que foram escritos de Roma, não mencionamcargo superior ao colégio dos anciãos ou presbíteros. Mas Primeiro C le-mente também ressalta o significado do cargo de bispo e insiste que osque ocupam tal cargo são os sucessores dos apóstolos. A idéia de suces-são apostólica desenvolveuse a partir de protótipo judaico. Duas co isasentravam em jogo: primeiro, os bispos receberam o ensinamento verdadei-ro dos apóstolos, assim como os profetas aprenderam de Moisés (suces-

são doutrinária), e segundo, tinham sido designados pelos apóstolos e seussucessores em linha ininterrupta, assim como ftpenas a família de Arãotinha o direito de constituir sacerdotes em Israel, (sucessão de ordenação).

Como resultado, desenvolveuse na igreja cristã primitiva um tipo deordem congregacional mais definida, com jurisdição eclesiástica . Este de-senvolvimento tem sido avaliado de maneiras diferentes. O conhecido his-toriador jurídico Rudolph Sohm propôs a idéia que cada lei eclesiásticaestá em oposição à essênc ia da igreja. É apenas o Espírito Santo quemgoverna a igreja e, por este motivo, o surgimento de «instituições» ec lesiá s-

ticas significa afastamento do espírito original do cristianismo (Kirchenrecht, I, 1892). Outros, contudo, negaram sua tese, salientando que ordenançassão necessár ias. Este desenvolvimento não é acréscimo posterior; sua ori-gem nos leva ao próprio tempo dos apóstolos. O que aconteceu posterior

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mente foi aplicação estrita de formas existentes e aceitação de novas(Seeberg ). Também se disse neste contexto, e apropriadamente, que o Es-pírito Santo e os cargos eclesiásticos não são mutuamente contraditórios,pelo contrário, pertencem jüntos. O fato que a iareia é criada pelo EspíritoSanto não exclui o desenvolvimento de rearas . cargos e tradicõesj. Os mi-

nistérios e cargos da igreja se relacionam com a obra do Espírito Santo.(Linton, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, 1932)

ESCATOLOGIA

A escatologia dos Pais Apostólicos incluía a idéia que o fim dos tem-pos era iminente, e alguns deles (Papias, Barnabé) também sustentavam adoutrina de um milênio terreno. Barnabé aceitava a idéia judaica aue o

mundo existiria por 6.000 anos, prefigurados nos seis dias da criação . E,por conseguinte, diziase, que seguiria o sétimo milênio, em gue Cristo rei-naria visivelmente na terra com a ajuda de seus fiéis (cf. Ap 20). Este da-ria lugar ao oitavo dia, a eternidade, que tinha seu protótipo no domingo.Papias, também, apoiava a doutrina de um milênio terreno, e descrevia acondição bendita que prevaleceria durante este tempo. Este ponto de vista(«milenismo» ou «quiliasmo») foi amplamente desacreditado em tempos maisrecentes. Realmente, Eusébio o fez em sua avaliação dos escr itos de Pa-pias. (História Ec les iástica , III, 39).

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CAPÍTULO 2

OS APOLOGISTAS

Os autores do segundo século que, acima de tudo, procuraram de-fender o cristianismo de acusações em voga na época, de procedência gre-ga e judaica são, em geral, conhecidos como os apologistas. Para esteshomens o cristianismo era a única verdadeira filosofia, substituto perfeitopara a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que nada mais podiamfazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas cruciais dohomem.

O mais notável dos apologistas foi Justino. cognominado «o mártir»,cujas duas «apologias» datam de meados do segundo século. Seu Diálogo com o Judeu Trifo foi escrito na mesma época. Entre os outros encontramse Aristides, que escreveu a mais antiga «apologia» cujo texto ainda temos,Taciano (Discurso aos Gregos, panfleto dirigido contra a cultura grega, porvolta de 165), e Atenágoras (De ressurrectione mortuorum e Supplicatio pro 

Christianis, ambas escritas por volta de 170). Os seguintes também po-dem ser incluídos neste grupo: Teófilo de Antioquia (Ad Autolycum libri tres, 169182), e á Epístola a Diogneto, cujo autor é desconhecido e a igualmenteanônima Cohortatio ad Graecos, que surgiu pouco antes da metade do ter-ceiro século. Esta última erroneamente foi atribuída a Justino. Os apolo-gistas também escreveram outras obras, que foram perdidas e que conhe-cemos só de nome. (C f. por ex .: Eusébio, História Eclesiástica, IV, 3).

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Os apologistas ocupam lugar de destaque na história do dogma, nãosó devido a sua descrição do cristianismo como a verdadeira filosofia co-mo também por sua tentativa de elucidar ensinamentos teológicos com oauxílio de terminologia filosófica contemporânea (por exemplo: na assimchamada «cristologia do Logos»). O que neles encontramos, por conse-guinte, é a primeira tentativa de definir, de maneira lógica, o conteúdo dafé cristã, bem como a primeira conexão entre teologia e ciência, entre cris-tianismo e filosofia grega.

Os apologistas refutaram as acusações dirigidas contra os cristãos.Atenágoras (em sua Supplicatio) discutiu três críticas principais: impieda-de, hábitos anormais e inimizade ao estado. Em resposta atacavam a cul-tura grega, por vezes de maneira bem severa (Taciano, Discurso aos Gre-

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gos; Teófilo). Mas sua contribuição mais importante, do ponto de vistada história do dogma, foi a maneira positiva em que apresentaram o cris ,tianj8two como averdadelra filosofia,

CRISTIANISMO E FILOSOFIA

O modo como os apologistas conceberam a relação entre cristianis-mo e filosofia refletese na obra autobiográfica de Justino, Diálogo com oJudeu Trifo . Justino apresentase como alguém que tem a filosofia em altaestima e que procurou respostas satisfatórias para as questões filosóficasem um sistema filosófico após outro. O propósito da filosofia , segundo Jus-tino, é proporcionar conhecimento verdadeiro de Deus e da existência, eassim fazendo, promover um sentimento de bemestar nas mentes humanas*A filosofia visa reunir Deus e o homem. Justino investigou os estóicos, os

peripatéticos e os pitagóricos, mas todos o deixaram indiferente. Por úl-timo chegou a um platonista e pensou ter encontrado com ele a verdade.Então encontrouse com um velho, desconhecido, que dirigiu sua atençãoaos profetas do Antigo Testamento, insistindo que tãosomente eles tinhamvisto e proclamado a verdade. «Apenas eles ensinaram o que ouviram eviram com a ajuda do Espírito Santo.» O testemunho desse ancião conven-ceu Justino da veracidade do cristianismo. «Minha alma inflamouse ime-diatamente, e ansiei pelo amor dos profetas e dos amigos de Cristo . Re-fleti sobre seus escritos, e neles encontrei a única filosofia útil e fidedigna.

Desta maneira, e com este fundamento, torneime um filósofo.» (V II; VIII).O fato que o cristianismo é a única filosofia verdadeira significa, por-

tanto, que tãosomente ele possui as respostas corretas para as questõesfilosóficas. Filosofia, neste sentido, também abrange a questão religiosaconcernente ao verdadeiro conhecimento de Deus. Apenas o cristianismopode fornecer este conhecimento; a filosofia o procura, mas é incapaz deencontrálo. Tal linha de pensamento, em si, não afirma que o cristianismodepende da filosofia e a ela está subordinado, como às vezes se sugere.O cristianismo fundamentase na revelação, e os apologistas não acredita-vam que a revelação pudesse ser substituída por deliberações racionais.Neste sentido, o cristianismo se opõe a toda filosofia. Sua verdade não sebaseia na razão; tem origem divina. «Ninguém, a não ser os profetas, podeinstruirnos sobre Deus e a verdadeira religião, pois eles ensinam no po-der da inspiração divina» (palavras finais da Cohortatio ad Graecos).

Ao mesmo tempo, no entanto, a maneira como os apologistas aborda-ram a verdade cristã incluía a tendência de intelectualizar seu conteúdo.A razão (lógos) era o conceito mais marcante de seus escritos, e ressal-

tavam de maneira especial a comunicação da verdade.Avaliavam a filosofia de diversas maneiras. Alguns dos apologistas

se opunham enfaticamente à filosofia grega. Toda sabedoria pagã deviaser substituída pela revelação. Justino, por sua vez, mantinha atitude mais

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positiva face aos gregos. Todavia, é preciso enfatizar que a verdade quepode ser discernida em filósofos como Homero, Sócrates e Platão deriva-vase basicamente da revelação. Havia também a idéia correlata que al-guns dos sábios da Grécia tinham visitado o Egito e lá tinhamse familia-rizado com os escritos dos profetas de Israel. Outra idéia sugeria que os

filósofos pagãos compartilhavam o . lógos spermatikós, que foi implantadoem todos os homens. Mesmo a sabedoria humana depende, deste modo,da revelação — raios dispersos da razão divina que brilhou com toda suaclareza em Cristo. Os filósofos possuem certos fragmentos da verdade.Em Cristo a verdade está presente em sua plenitude, pois ele é a própriarazão de Deus, o Loqos que se tornou homem.

CRISTOLOGIA DO LOGOS

O conceito de Logos, derivado da filosofia contemporânea, especial-mente do estoicismo com sua doutrina da razão universal, foi usado pelosapologistas para exp licar como Cristo se relacionava com Deus Pai. Algodo Logos, diziam, encontrase em todos os homens. A razão, como umembrião, encontrase implantada dentro deles (lógos spermatikós). Mas osapologistas, em contraste com os estóicos, não diziam ser ela uma espé-cie de razão universal concebida panteisticamente. Em vez disso, identifi-cavam o Logos com Cristo . Com base nisto podiam dizer que Platão eSócrates também eram cristãos, na medida em que exprimiam a razão.

Sua sabedoria lhes foi transmitida por Cristo através dos profetas ou me-diante revelação geral.

O termo grego lógos significa tanto «razão» como «palavra». O Lo-gos esteve com Deus, como sua própria razão, desde toda a eternidade(lógos endiáthetos). Posteriormente, esta razão procedeu da essência deDeus," conforme a própria decisão de Deus, como o lógos proforikós, aPalavra que se originou em Deus. Isto aconteceu quando da criação domundo. Deus criou o mundo de acordo com sua razão e mediante a Pa-lavra que procedeu dele. Desta maneira, _Cristo se fizera presente na cria-ção do mundo. É a Palavra, nascida do Pai, mediante a qual tudo chegoua existir. «Na plenitude do tempo» esta mesma razão divina revestiusede forma física e tornouse homem.

Com esta aplicação do conceito de Logos os apologistas encontra-ram uma maneira de descrever a relação entre o Filho e o Pai na Divinflade, empregando termos filosóficos correntes. Assim como a palavra pro-cede da razão, ou — para usar outra analogia — assim como a luz pro-cede da lâmpada, assim o Filho procedeu do Pai como o primogênito, semdiminuir o Pai ou destruir a unidade da Divindade. Esta cristologia do Lo-gos visa responder a questão mais difícil da fé cristã na linguagem da épo-ca. Os apologistas escolheram um conceito da filosofia contemporânea eo usaram para descrever o que para a mentalidade grega era absurdo —que Cristo é Deus mas que, com isso, a unidade da Divindade não é ne-gada.

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Nesta maneira de pensar está implícito o fato que, embora o Logossempre tenha feito parte da essência divina, como a razão que habita nela,ainda assim não procedeu da Divindade até o tempo da criação do mundo.Cristo , portanto, teria sido gerado no tempo, ou no início do tempo. Estadoutrina filosófica do Logos também parecia sugerir que Cristo ocupa po-

sição subordinada relativamente ao Pai. A cristologia dos apologistas, co-mo resultado, freqüentemente é descrita como «subordinacionismo». Podeparecer que é, do ponto de vista de épocas posteriores. A idéia da gera-ção do Filho no tempo, por exemplo, foi combatida (Orígenes, cf. abaixo),bem como o emprego da doutrina filosófica do Logos no campo da cristo-logia (Irineu). Mas é preciso lembrar também que os apologistas postu-lavam a preexistência do Logos em termos inequívocos, embora julgassemque seu aparecimento como «Filho» tivesse ocorrido inicialmente quandoda criação. Além disso, não podemos esquecer que na época dos apolo-

gistas a terminologia empregada para exprimir as diferenças entre as «pes-soas» da Trindade ainda não tinha sido cunhada. Em vista disso, portanto,não é justo deduzir que os apologistas especificamente ensinaram que oFilho é subordinado ao Pai. (C f. Kelly , Early Christian Doctrines, pp. 100 s.).

Se Cristo é apresentado como Logos, a razão divina, é natural con-siderar sua obra principalmente em termos pedagógicos. Ele nos transmiteo verdadeiro conhecimento de Deus e nos instrui na nova lei, que nos guiaao caminho da vida. Interpretase salvação em categorias intelectuais emoralistas. Identificase pecado com ignorância. Acreditase que o homem

é livre para fazer o bem, mas apenas Cristo pode mostrar o verdadeirocaminho da justiça e da vida. Enfatizase a necessidade de viver segundoa lei, e neste sentido o conceito de vida cristã dos apologistas concordacom o dos Pais Apostólicos. Considera do ponto de vista do desenvol-vimento histórico do dogma, a principaLcontribuição dos apologistas foi sua.tentativa de correlacionar o cristianismo com a erudição grega, tentativaçjue encontrou sua expressão mais marcante na doutrina do Loaos e suaaplicação à cristologia.

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CAPÍTULO 3

CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

CRISTIANISMO JUDAICO

Q termo «cristianismo iudaico» significa várias coisas diferentes, e éusado de maneiras diversas pelos pesquisadores. Pode referirse ao cris-tianismo da Palestina no período subseqüente à ascensão, isto é, aos cris-tãos de origem judaica, que viviam nâ Palestina e tinham como centro acongregação em Jerusalém — em contraste com os cristãos que tinham

origem pagã. Em algumas, oçasjões,_ contudo, o termo é empregado paraidentificar certos grupos sectários que derivaram da congregação de Je-rusalém depois de se ter transferido esta para a região a leste do Jordãopor volta do ano 66. É neste sentido que se usará o vocábulo aqui. Umadas características mais proeminentes deste cristianismo judaico herético,também conhecido como «ebionismo» (derivado do termo veterotestamentário evjonim, «os pobres», originalmente nome honroso dos cristãos de Je-rusalém), era sua confusão de elementos judaicos e cristãos. De acordocom as informações que chegaram até nós, os cristãos judaicos podem

terse unido aos monges essênios, que se tornaram conhecidos recente-mente através das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. A históriado ebionismo, em sua maior parte, está envolta em tfevas. Nem os frag-mentos de literatura preservados, nem as referências encontradas nos PaisEclesiásticos nos fornecem um quadro minucioso das idéias e costumesdesse grupo. Todavia, certas linhas mestras de pensamento podem serreconstruídas.

 _Qs  ebionitas s u st e n t a v a m a y a I i d a d e da lei de Moisés; uma fração julgava que isto só se aplicava a eles, mas outra fração, mais militante,

insistia que os cristãos de origem pagã também eram obrigados a cumprira lei de Moisés. Outra idéia básica associada aos ebionitas era que espe-ravam o estabelecimento de um reino messiânico em Jerusalém. Isto refletesua identificação de judaísmo e cristianismo.

É verdade, sem dúvida, que a igreja universal se considera continua-ção da comunidade do Antigo Testamento, o verdadeiro Israel, mas istonão impede o repúdio veemente ao «judaísmo» e à interpretação judaicada lei. Paulo, por exemplo, combateu os que pretendiam reintroduzir a cir-cuncisão (cf. Gl 5), e demonstrou como a liberdade em Cristo excluía a

hipótese de se fazer depender da lei o caminho da justiça . Os ebionitas,que conservavam os preceitos judaicos e os consideravam válidos para avida congregacional, repudiavam a interpretação paulina da lei, e recusa-vam aceitar suas epístolas.

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Nos escritos dos cristãos judaicos (dos quais o mais importante é o assim chamado «PseudoClemente», que contém entre outras coisas, «A Pregação de Pedro», além de vários evangelhos apócrifos) Cristo é colo-cado no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento. Ele é aí descritocomo nova forma de revelação do «verdadeiro profeta», que apareceu an-

teriormente em Adão e Moisés, entre outros. O conceito de Cristo comoo novo Moisés expressava a união de judaísmo e cristianismo, destacadade maneira especial no ebionismo. Diziase ser Cristo «um homem nasci-do de homens» (cf. Justino: Diálogo com o Judeu Trifo, p. 48), ou, comofreqüentemente se diria mais tarde: «unica e simplesmente homem». Q sebjonitas, por conseguinte, negavam a preexistência de Cristo ; alguns de-les também negavam a encarnação e o nascimento virginal. Supunham queJesus recebera o Espírito Santo por ocasião de seu batismo, sendo destamaneira escolhido para se r o Messias e o Filho de Deus. A sa lvação não

era associada com a morte e ressurreição de Cristo: em vez disso julga-vase que se tornaria realidade apenas por ocasião da segunda vinda deCristo, quando, conforme suas expectativas, teria início um milênio terreno.

Com fundamento nestas idéias, o ebionismo forneceu o protótipo pa-ra uma cristologia que concebia Cristo em termos puramente humanos eque supunha que não fora Filho de Deus até ser «adotado como tal porocasião de seu batismo ou ressurreição» (a «cristologia adopcionista»).Os atributos de Cristo eram assim rejeitados.

Visto à luz da história, o cristianismo judaico não exerceu grandeinfluência sobre o desenvolvimento da teologia cristã. Dividiuse em váriosgrupos, e em pouco tempo desapareceu. É bem provável que não tenhaexistido por mais de 350 anos, no máximo. Por outro lado, no entanto,exerceu forte influência sobre o islamismo, no qual algumas de suas idéiasreapareceram em forma diferente. Uma destas foi o conceito do «verda-deiro profeta», outra foi o paralelo traçado entre Moisés e Jesus.

Se o cristianismo judaico representa uma confusão de elementos ju-daicos e cristãos, o gnosticismo era resultado da mistura da religião he'lenística com o cristianismo. Portanto, o ebionismo diferia muito do gnosti-cismo; opunhase particularmente a Marcião e seu repúdio da lei (cf. otópico seguinte). Apesar disto, no entanto, em certas regiões podemosve r uma combinação de idéias gnósticas e judaicocristãs. Isto se dá, porexemplo, com os elcasitas, que provavelmente receberam este nome de-vido a um certo Elcasai, que pode ter sido o autor do documento queostenta seu nome. Outro exemplo encontramos nos adversários mencio-nados em Cl 2, que também parecem ter reunido idéias gnósticas e ju-

daicas (cf. a referência aí feita a «filosofia e vãs sutilezas» (v. 8) e «apa-rência de sabedoria, como culto de si mesmo» (v. 23). Contudo, não écorreto dizer que os principais conceitos do cristianismo judaico tiveramforma e origem gnóstica. (Schoeps, Theologie und Geschichte des Judenchristentums, 1949),

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CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

O GNOSTICISMO

Gnosticismo é o nome comum aplicado a várias escolas diferentes.de pensamento aué surgiram nos primeiros séculos da era cristã . No quetange à «gnose» ^cristã, isto se refere à tentativa de incltrif^ocristianismo

num sistema gerâl filosóficoreligioso. Os elementos mais importantes nes-te sistema eram certas especulações místicas e cosmolóqicas, além domarcado duaRsmo entre o mundo do espírito e o mundo material. Suadoutrina de Salvação salientava o livramento do espírito de sua servidão naesfera, material. Esta religião tinha seus próprios mistérios e cerimôniassacramentais, além de uma ética aue preconizava ou o ascetismo ou alibertinagefn.

Qfigens. A questão dá origem do gnosticismo tem sido amplamentedebgtída, e não parece haver qualquer resposta simples. A maior parte

da literatura gnóstica foi perdida. Todavia, parte dela foi preservada emt/adução copta no Egito, por exemplo: a «Pistis Sofia», o «Evangelho deTomé» e o «Evangelho da Verdade». As duas últimas obras citadas en-contramse entre os manuscritos descobertos nà vila de Nag Hammadi(perto de Luxor) em 1946. Entre os itens ai encontrados, num jarro de ce-râmica preservado na areia, havia 13 códices, inclusive nada menos de 48escritos, todos de origem gnóstica. Esta descoberta ainda não foi comple-tamente avaliada ou tomada acessível aos pesquisadores. A maior partede nosso conhecimento do gnosticismo chegou até nós através dos escri-tos dos Pais Eclesiásticos. Citam autores gnósticos, ou se referem a seusescritos em suas obras polêmicas.

Os País Eclesiásticos concordam que o gnosticismo iniciou com Simão, o Mágico (At 8), mas no mais seus relatos divergem. Segundo umcerto Hegesipo, citado por Eusébio (IV , 22), o gnosticismo principiou entrecertas seitas judaicas. Pais Eclesiásticos posteriores (Irineu, Tertuliano, Hipólito), por sua vez, sustentavam a opinião que a filosofia grega (Platão,Aristóteles, Pitágoras, Zenão) era a principal fonte da heresia gnóstica. Se

aqui nos limitamos ao gnosticismo que se desenvolveu em solo cristão, es-tes relatos não são necessariamente contraditórios. Pois este tipo de gnos-ticismo era um sistema sincrético que combinava correntes de pensamentoopostas entre si.

Quando falamos de gnosticismo, em geral pensamos no sistema quese desenvolveu no período cristão, na «heresia gnóstica» que os Pais Ecle-siásticos combateram com tanto empenho. Mas o gnosticismo já existiaquando o cristianismo surgiu; era então fenômeno religioso um tanto vago,uma doutrina especulativa de salvação com contribuições de várias tradiçõesreligiosas diferentes. Veio do Oriente, onde foi influenciado pelas religiõesda Babilônia e da Pérs ia . Os mitos cosmológicos atestam sua origem babi-lónica, enquanto seu dualismo extremado o relaciona com a religião daPérsia . O mandenismo é um exemplo de formação religiosa gnóstica na

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área persa. Subseqüentemente o gnosticismo apareceu na Síria e em solo judaico, particularmente na Samaria, e lá assumiu coloração judaica. Foiesta a forma de gnosticismo existente por volta do início da era cristã, eque os apóstolos encontraram com Simão, o Mágico, que andava pela Sa-maria. Daí em diante começou a desenvolverse uma escola gnóstica dentro

da esfera cristã, com elementos derivados do cristianismo. Em vista dessasemelhança, o gnosticismo não surgiu como inimigo do cristianismo. Pro-curava, ao invés disso, reunir elementos cristãos a outros elementos espe-culativos já presentes nele numa espécie de sistema religioso universal.Foi nesta forma que o gnosticismo surgiu no segundo século, com seus prin-cipais expoentes na Síria (Saturnino), Egito (Basílides) e Roma (Valentino).Este sistema posterior também foi profundamente influenciado pelo filosofiareligiosa grega. Durante muito tempo o gnosticismo foi o adversário maisperigoso do cristianismo. A polêmica cristã contra o gnosticismo foi acom-

panhada por desenvolvimento do pensamento teológico sem precedente nahistória da igreja até aquela data.

Tendências. Como já vimos, encontravamse dentro do gnosticismonumerosas tendências divergentes. As mitologias e os sistemas que sur-giram em seu meio foram muitos e discrepantes.

Conforme At 8.924. JS imáo. o Máaico . apareceu na Samaria, onde ognosticismo encontrou uma de suas ra ízes. Simão identificavase com o«poder de Deus» e, portanto, pretendia se r figura messiânica. Também pro-clamava libertação da lei. Ensinava que a salvação vinha, não por intermé-dio de boas obras, mas pela fé nele. De acordo com os Pais Eclesiásticosa doutrina de Simão, o Mágico, era o protótipo de tcfdas as heresias.

Saturnino apareceu na Sír ia no início do segundo século. Seu siste-ma gnóstico revela influência oriental.

Basílides trabalhou no Egito por volta do ano 125. Seu gnosticismotinha natureza mais filosófica, e a influência grega era mais forte.

Valentino, que pregou em Roma de 135 a 160, nos legou a apresen-

tação clá ss ica do sistema gnóstico. A contribuição grega também é im-portante em sua obra.

Marcião também foi incluído entre os gnósticos pelos Pais Eclesiás-ticos. Sua doutrina é similar ao gnosticismo em vários pontos. Mas elefoi, também, o fundador de sua escola sui-generis de pensamento, e seusistema era, em muitos aspectos, original. Como veremos com maior cla-reza no que segue, a posição teológica sustentada por Marcião e os gnós-ticos freqüentemente era idêntica. Mas há uma diferença, como Adolf vonHarnack enfatizou em sua História do Dogma. Pois, enquanto o gnosticismo

era um pot-pourri religioso, em que cristianismo e filosofia grega erammisturados, Marcião procurou reorganizar o cristianismo de modo radicalcom base em certas idéias respigadas de Paulo juntamente com a elimina-ção de todos os elementos judaicos.

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CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

Conceitos principais. Excetuando Marcião, o gnosticismo contém cer-tos conceitos básicos ensinados por todas as suas escolas e sistemas, em-bora a mitologia e os costumes litúrgicos variem.

A metafísica fundamental do gnosticismo, definida mais especificamen-te na obra de Valentino, foi descrita pelo Pai Eclesiástico Irineu (Adversus

haereses, I) e por outros. É apresentada em forma mitológica com a perso-nificação de vários conceitos abstratos tais como verdade, sabedoria e ra-zão. O ponto de vista básico é de natureza dualista, o que vale dizer quetem seu ponto de partida no contraste entre o mundo do espírito e o mundomaterial, juntamente com o contraste entre o bem e o mal e entre esferasuperior e inferior.

Em virtude de seu dualismo, o gnosticismo distinguia entre o Deussupremo e uma divindade inferior, e foi esta última, diziam, que criou omundo. O Deus supremo era concebido em termos completamente abstra-tos como sendo a essência espiritual última; não se faziam tentativas dedescrever este Deus mais especificamente, e não era associado a qualquerrevelação. Julgavase estar ele tão longe do mundo como possível. Os gnósticos também insistiam que este Deus não podia ter criado o mundo. Omundo, afinal, é mau, e, por conseguinte, deve encontrar sua origem numaessência espiritual inferior, na qual existia o mal. Este deus criador, oudemiurgo, diziase ser o Deus do Antigo Testamento — o Deus judaico.O gnosticismo era antagônico ao Antigo Testamento; também rejeitava a

lei, insistindo que o homem podia adquirir percepções superiores que o liber-tariam da submissão a ela. Foi, acima de tudo, por este motivo, que osPais Eclesiásticos combateram o gnostic[smo — para defende^ a c rençacristã no Deus único que criou o mundo e se revelou aos profetas.

A doutrina gnóstica de Deus se relacionava com especulações mira-bolantes relativas ao mundo espiritual e à origem do mundo material (aassim chamada doutrina dos «eons»). Valentino, por exemplo, supunha que30 eons tinham emanado da Divindade em processo teogônico. O mundomaterial se derivara do eon mais baixo como resultado de uma queda. O

Deus supremo, ou Progenitor, formava o primeiro eon, também conhecidocomo búthos (abismo). Do «abismo» procederam «o silêncio», ou «a idéia»(sigé ou énnoia), e destes dois, «o espírito» e «a verdade» (nous e aléetheia).Desta vieram, por sua vez, «razão» e «vida» (lógos e zooée), e destas «ho-mem» e «a igreja» e 10 outros eons apareceram. «Homem» e «a igreja»

 juntos produziram 12 eons, o último dos quais «sabedoria» (sofía) . Os eons,agindo unanimemente, formavam o mundo do espírito, o Pléroma, que con-tém os arquétipos do mundo material. O último dos eons caiu do Pléromacomo resultado de ataque de paixão e ansiedade, e foi por causa desta

queda que o mundo material chegou a existir. O demiurgo que criou omundo procedeu deste eon caído.

Cristo e o Espirito Santo se originaram num dos eons mais elevados.A tarefa de Cristo é a de restaurar ao Pléroma o eon caído e, ao mesmo

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tempo, livrar as almas dos homens de seu cativerio ao mundo material etrazêlas de vo lta ao mundo do espírito. Sobre esta base desenvolveuseo conceito gnóstico de salvação.. Diziase consistir a salvação no livramen-to das almas do mundo material a fim de que pudessem ser purificadas etrazidas de volta à esfera divina de onde vieram. Tal como acontece no

neoplatonismo, que tinha muito em comum com o sistema de Valentino, ahistória do mundo era concebida em termos cíc licos. A alma humana eralançada para dentro deste processo cíclico . O homem caiu do mundo daluz e era conservado cativo no mundo material. A salvação consistia nalibertação do mundo material de modo que o homem novamente pudesseascender ao mundo espiritual, ao mundo da luz, de onde viera.

De acordo com o gnosticismo, tal salvação era possível devido à per-cepção superior (gnõosis, «gnose») dos gnósticos; essa percepção era uma.forma de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo aoPléroma e ao caminho que para lá conduzia. Mas nem todos podiam alcan-çar essa salvação; apenas os assim chamados «pneumáticos», que possuíamo poder necessário para receber esse conhecimento, eram capazes de atin-gila. Todos os outros homens, que os gnósticos denominavam de «mate-rialistas», eram incapazes de utilizar esse conhecimento. Ocasionalmente,os gnósticos faziam referência a uma categoria intermediária entre os pneu-máticos e os materialistas, os assim chamados «psíquicos», em cuja cate-goria os cristãos geralmente eram colocados. Acreditavase ser possível aospsíquicos a obtenção do conhecimento necessário à salvação. O gnosticis-mo, portanto, ensinava uma forma de predestinação: apenas os pneumá-ticos podiam ser salvos. Esta separação dos homens em cla sses diferentesera combatida pelos Pais Ecles iásticos. Eles também repudiavam o conceitognóstico de conhecimento superior, que era colocado acima do nível dafé e pretendia elevar o homem à esfera da divindade.

O gnosticismo tomou de empréstimo certos elementos do cristianismoe os introduziu em seu conceito geral de salvação. Cristo , por exemplo,era considerado pelos gnósticos como o salvador, visto que diziam ter sido

ele quem trouxera o conhecimento sa lvifico ao mundo. Mas este não é oCristo da Bíb lia; o C risto do gnosticismo era uma essência espiritual que^manara dos eons. Este Cristo não podia ter assumido a forma de homem.Quando apareceu sobre a terra, diziam os gnósticos. só parecia ter corpofísico . Ao mesmo tempo, os gnósticos também ensinavam que este Cristonão sofreu e morrea O gnosticismo, em outras palavras, proclamava umacristologia docética.

O sofrimento e a morte de C risto não tinham importância alguma para

o gnosticismo: o que ele fez para iluminar os homens, por seu turno, foienfatizado a ponto de excluir tudo o mais. Ele foi o transmissor daqueleconhecimento de que o homem necessita para principiar a jornada de voltaao mundo da luz, «a jornada em direção ao Pléroma».

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CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

O anosticismo ensinava que a salvação vinha ao homem por meio demistérios que eram característicos da religião^qnóstica. Os principais des-tes mistérios eram o batismo e a ceia do Senhor (deturpações dos sacra-mentos cristãos) além de vários ritos sagrados adicionais de natureza simi-lar. Por intermédio deles os gnósticos recebiam os segredos da salvação

contida no conhecimento superior. As fórmulas místicas assim adquiridasos protegeriam contra os poderes que guardavam o caminho através domundo espiritual. Além disso, em virtude de sua participação nos mistérios,os gnósticos recebiam força interior (providenciada de maneira exclusiva-mente física através dos sacramentos), e era esta que os capacitaria a ven-cer o mal e ascender ao Pléroma.

A ética do gnosticismo se relacionava com seu dualismo básico. Sea salvação consiste na libertação do espírito do mundo material, é evidente

que o ideal ético seria concebido em termos ascéticos. Certas se itas pre-gavam uma forma extremamente estrita de abstinência, como, por exemplo,os assim chamados encratitas (cf. Eusébio, História Eclesiástica, IV, 2829).Mas o ponto de vista oposto também era sustentado por alguns. Consi-derando o fato que o espírito nada tinha a ver com o material, pensavaseque as ações externas não tinham importância alguma. Alguns diziam quea independência da matéria só podia ser obtida quando a gente se entre-gava completamente às concupiscências da carne (libertinismo).

O dualismo extremado do gnosticismo (entre o espiritual e o material)

refletia sua relação com o pensamento grego. Este se caracterizava porseu conceito deísta de Deus, e o gnosticismo também isto assimilou. A luzdestas convicções, podemos entender porque o gnosticismo não podia acei-tar a idéia que Cristo é Deus e homem ao mesmo tempo (cf. os ebionitas).O gnosticismo pretendia transformar o cristianismo numa especulação mito-lógica. Sua doutrina da salvação implicava na negação daquilo que é maisessencial à fé cristã. A simples fé do cristianismo deveria ser substituídapelo conhecimento superior dos gnósticos, que assumiu a forma de con-vicção pessoal concernente às realidades do mundo espiritual. Desta ma-

neira, para todos os efeitos práticos, o gnosticismo tornouse uma forma deespeculaçãoreligiosa filosófica quedou rejeitava ou reinterpretava o conteúdobásico do cristianismo. O gnosticismo combatia a crença cristã na criaçãodivina: o criador, afirmava, não era o Deus supremo, e a própria criaçãoera considerada vil e má fblasphemia creatoris). O Segundo Artigo do Credoera rejeitado ou reinterpretado pelos gnósticos com base em sua cristologia docética, que negava a existência terrena de C risto e sua expiação..Consideravase Cristo o transmissor da gnose. enquanto seu sofrimento emorte eram rejeitados como de somenos importância. A purificação que se

recebia mediante os mistérios baseavase sobre fundamento mitológico. Osgnósticos também repudiavam o conteúdo do Terceiro Artigo do Credo. OEspírito Santo era introduzido em sua mitologia como essência espiritualque emergira de um dos eons. Irineu afirmou que os gnósticos nunca re

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ceberam os dons do Espirito Santo e que desprezavam os profetas (Epideixis, 99 s.) Também negavam a ressurreição do corpo, fundamentadosna idéia que tudo o que é físico ou material é mau e não espiritual. Por-tanto, o gnostícismo era uma interpretação idealista do cristianismo, quese procurou introduzir num sistema sincretista. Isto se evidencia especial-

mente em sua blasphemia creatoris, sua cristologia docética e sua negaçãoda ressurreição do corpo. O gnostícismo não possuía escatologia: ao invésde aceitar o fato que a vida atinge sua plenitude em termos da segundavinda de Cristo, falavase da ascensão da alma ao Pléroma.

Muitas idéias gnósticas  reapareceram posteriormente na forma do neo-platonismo e outras escolas de pensamento idealistas correlatas. Além dis-so, certos conceitos teológicos fortemente influenciados pela filosofia gregarevelam tendências que nos fazem lembrar o gnostícismo.

Os contemporâneos de Marcião o consideraram gnóstico, e, no querespeita a pontos de vista básicos (blasphemia creatoris, docetismo, negaçãoda ressurreição do corpo), Marcião concordava com os gnósticos. Mas emoutros sentidos, era pensador independente, e propunha muitas idéias di-vergentes do gnostícismo. Marcião, por exemplo, não era sincretista, dese-

 java reformar o cristianismo rejeitando tudo o que, em sua opinião, nãopertencia ao evangelho. Além disso, Marcião não aceitou as especulaçõesmitológicas que caracterizavam o gnostícismo. Nem tampouco aludia elea qualquer gnose particular que só era acessível aos assim chamados pneu-

máticos. Tudo o que queria fazer era proclamar uma fé bem simples. Nadaensinava sobre a divisão da humanidade em classes diferentes. Os pontosde vista em que Marcião diferia dos gnósticos recentemente receberam muitaatenção crítica (especialmente de Adolf von Harnack), e agora é visto comocompletamente distinto dos gnósticos. É considerado um reformador, queredescobriu o apóstolo Paulo, que os demais tinham esquecido, e que pro-clamava a salvação pela fé tãosomente, numa época em que o moralismoera a tendência dominante na teologia.

Quando os Pais Eclesiásticos disseram que Marcião era o mais pe-rigoso de todos os heréticos, percebemos que outros aspectos de sua teo-logia, tais como sua doutrina de Deus e de Cristo, além de sua separaçãoradical de lei e evangelho, eram as que mais se destacavam no sistemateológico. Foi por causa destas doutrinas que Marcião foi considerado se -melhante aos gnósticos, pois elas implicavam na negação dos ensinamentosbásicos da igreja. Ambas as facetas da história têm seu lugar numa aná-lise da posição teológica de Marcião, e aqueles aspectos que o distinguemdos gnósticos nos levam a considerálo com base em seus próprios méritos.

No início, Marcião aceitava a fé da igreja, mas então sofreu a influên-cia do gnóstico sírio Kerdo, principiando assim o processo de formação desua própria teologia original. Chegou a Roma por volta de 140; quando foiexpulso pela congregação local, organizou sua própria igreja, que em pouco

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CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

tempo cresceu consideravelmente. Vestígios desta organização ainda pude-ram ser encontrados em vários lugares até mesmo no século VI.

O ponto de partida básico da teologia de Marcião encontrase na dis-tinção que fazia entre lei e evangelho, entre a Antiga Aliança e o Novo

Testamento. Paulo dissera que o cristão está livre da lei, e Marcião inter-pretou tal afirmação como significando que a lei fora superada e que oevangelho devia ser pregado sem qualquer referência à lei. A lei, dizia, forasubstituída por nova ordem de coisas. Para ele, o evangelho era mensa-gem nova, anteriormente desconhecida, que não apenas substituíra a lei mastambém se opunha a ela. Tertuliano caracterizou esta atitude com as se-guintes palavras: «A separação de lei e evangelho é a obra principal emais característica de Marcião.» (Contra Marcionem, 1, 19),

Essa linha de pensamento aproximou Marcião da doutrina gnóstica dos

dois deuses. Em Marcião — e isto era característica sua — o Deus criadordo Antigo Testamento era o Deus da lei, que considerava um deus de seve-ridade e ira, que se vingava de seus inimigos e mantinha seus seguidoresem servidão sob a lei. O Deus supremo, como Marcião o concebia, nãoera tanto uma essência espiritual abstrata, um Deus infinitamente transcen-dental; era,antes , o Deus desconhecido que se revelou ao mundo em Cristo.Marcião o conceituava como o Deus da graça e misericórdia, o Deus doamor puro. Este Deus, dizia Marcião, combateu e conquistou o Deus da leie da justiça e, por graça pura, salvou os que creram nele. Esta faceta da

teologia de Marcião era interpretação deturpada e unilateral do conceitopaulino de justificação . Conforme Marcião, o Deus de amor nada tinha aver com a lei. Fez distinção radical entre justiça e misericórdia, entre irae graça.

Cristo foi quem proclamou o evangelho do Deus do amor. Na reali-dade, ele era este Deus mesmo, que se manifestou aqui na terra duranteo reinado de Tibério César. Apareceu, todavia, como figura fantasmagórica.Por ser ele diferente do Deus criador, não podia ter assumido a roupagem

da carne humana. A cristologia de Marcião era docética, mas, apesar dis-so, ele acreditava no significado redentor do sofrimento e da morte de Cristo.Isto, naturalmente, contradizia sua cristologia docética, mas também o dis-tinguia dos gnósticos. Tal fato foi notado por Irineu: «Como podia ele tersido crucificado, e como podiam sangue e água ter jorrado do seu peitotraspassado se não era verdadeiramente homem, mas apenas tinha aparên-cia de homem?» (Adversus haereses).

O Deus de Marcião era um deus que os fiéis não precisavam temervisto ser concebido como bondade pura. Em vista disso, poderseia esperarque Marcião fosse completamente indiferente à moralidade. Mas, o que a-conteceu foi exatamente o contrário, pois, nesta questão, assim como osgnósticos, Marcião era extremamente ascético. Julgava, por exemplo, queo matrimônio era mau. Marcião ensinava que um código ascético de éticaajudaria a libertar o homem do Demiurgo, o Deus criador, o Deus da lei.

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Marcião também se notabilizou por sua radical alteração do cânone.Rejeitou o Antigo Testamento dizendo que só era a proclamação do Deusda lei, o Deus judaico. O Mess ias dos judeus nada tinha em comum comCristo. Marcião não permitia nem mesmo a interpretação alegórica. Comrespeito ao Novo Testamento, Marcião desejava que fosse rejeitado tudo o

que se referisse à lei ou ao judaismo. Reteve apenas 10 das epístolas de Pdulo(as Epístolas Pastorais. I e II Timóteo e Tito, foram rejeitadas) e uma versãomutilada do Evangelho Segundo Lucas. Assim fazendo, Marcião tentou demodo extremado determinar, com base em seu próprio conceito da essên-cia do cristianismo, quais escritos deviam ser normativos.

A oposição dos Pais Eclesiásticos a Marcião abrangia os mesmos pon-tos de doutrina do conflito com o gnosticismo em geral. Opunhamse a elepor negar que Deus criou o mundo e por ensinar que havia outro Deus alémdo Deus que criou o céu e a terra. Outro ponto em conflito era o fato de

Marcião negar a encarnação, baseado em sua cristologia docética. Ajérndisso, o fato que negava a ressurreição do corpo era fortemente atacadq..Marcião acreditava que só a alma podia ser salva e não o corpo, que pe.rtencia ao mundo material.

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CAPÍTULO 4

OS PAIS ANTIGNÓSTICOS

O conflito com o gnosticismo deixou sua marca impressa de váriasmaneiras na teologia desenvolvida pelos Pais Eclesiásticos nos primeirosséculos. A apresentação da fé cristã, que encontramos nos assim chamadospais antignósticos, deve ser entendida contra o pano de fundo desta situa-ção polêmica. Para estes teólogos da igreja primitiva, a crença na criação

divina ocupou lugar central de modo mais destacado que na tradição oci-dental posterior, onde a doutrina da salvação foi freqüentemente enfatizadaàs custas de outras facetas do cristianismo. Foi o idealismo gnóstico, comseu repúdio da criação, que levou os Pais Eclesiásticos a tratar tão porme-norizadamente da doutrina de Deus e da criação, bem como o problema dohomem, a encarnação e a ressu rreição do corpo. Outra caracterís tica ev i-dente foi o ponto de vista moralizante que pode ser encontrado, por exemplo,em Tertuliano. Isto também se explica, em parte, pela oposição ao gnosti-cismo, com sua doutrina da libertação da lei e sua deturpação antinomista

do conceito paulino da justificação.

IRINEU

Irineu veio da Ásia Menor, onde na juventude fora aluno de Policarpode Esmirna. que, por sua vez, tinha sido discípulo de João. Sua teologia,além disso, exemplifica a tradição joanina associada à Ásia Menor. A maiorparte de sua vida, no entanto, passou no Ocidente. Tornouse bispo deLyonç por volta de 177, e ali permaneceu até sua morte (no início do ter-

ceiro século).Apenas dois escritos de Irineu chegaram até nós. Um deles é sua

ampla refutação dos gnósticos, Adversus haereses, do qual permanecem umfragmento do original grego e uma tradução latina. O segundo, Epideixis,apresenta as doutrinas básicas da «proclamação apostólica». Este, por mui-to tempo, só era conhecido pelo nome, mas foi redescoberto em traduçãoarmênia em 1904.

O principal obietivo jda,obra teológica de Irineu era defender a .fé apos-tólica contra as inovações qnósticas. A gnose de Valentino foi a maior

ameaça ao cristianismo, em sua opinião, pois ameaçava a unidade da igrejabem como procurava destruir a distinção entre o cristianismo e as especu-lações religiosas pagãs.

Irineu é denominado o pai da dogmática católica Há algo de verdadenesta expressão, visto ter sido ele o primeiro a procurar apresentar um

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sumário uniforme de toda a Escritura. Irineu rejeitou o conceito de cr is-tianismo mantido pelos apologistas, a saber, que ele é a verdadeira filosofia.Recusou o auxílio da especulação grega, e não concordou com os que di-ziam que o conteúdo da revelação era simplesmente uma nova e mais per-feita filosofia. Para ele, a Bíblia era a única fonte de fé.

Irineu, portanto, era teólogo bíblico no verdadeiro sentido do termo.Enquanto os gnósticos buscavam a revelação em sabedoria oculta que, aomenos, em parte, era independente da Bíblia, em mitos e sabedoria de mis-térios, Irineu afirmava ser a Escritu ra a única base para a fé. O Antigo eo Novo Testamento eram os meios pelos quais a revelação e a tradiçãooriginal nos atingem. Além do Antigo Testamento, que julgava ser, acimade tudo, o fundamento da doutrina da fé, Irineu faz referência a uma coleçãode escritos do Novo Testamento, que considerava de igual autoridade eque, em traços gerais , é o mesmo cânone hoje aceito. A palavra «testamen-

to», naturalmente, não era empregada neste contexto. O cânone ainda nãotinha sido formalmente determinado. Alguns dos escritos neotestamentárioseram considerados demasiadamente controversos; eram aceitos como canô-nicos em alguns círculos, enquanto em outros sua autoridade apostólicaera posta em dúvida. Em traços gerais, no entanto, os limites do cânonedo Novo Testamento já tinham sido definidos mesmo antes da época deIrineu. O modo como ele emprega os escritos do Novo Testamento, de-monstra, até certo ponto, este fato.

Irineu nada diz sobre a diferença entre Escritura e tradição que apa-receu mais tarde no campo da dogmática. A tradição oral que cita comotendo autoridade decisiva era o que apóstolos e profetas ensinavam, e queconfiaram à igreja, e fora perpetuado nela pelos que tinham recebido oevangelho dos apóstolos. Com relação ao conteúdo, isto nada era alémda proclamação conservada em forma escrita no Antigo e no Novo Testa-mento. Os gnósticos, por sua vez, deturpavam os ensinamentos da Bíbliafundamentandose em tradições que não procediam dos apóstolos. Em pas-sagem bem conhecida (Adversus haereses, III, 3, 3) Irineu se refere à

cadeia ininterrupta de bispos romanos, começando com a época dos após-tolos, para demonstrar que era a igreja — e não os heréticos — que tinhapreservado a tradição correta. Se ria erro, contudo, procurar ve r nessetexto o conceito de sucessão apostólica desenvolvido posteriormente. Irineu,em última análise, estava preocupado, em primeiro lugar, com conteúdodoutrinário e não com teorias sobre ordenação.

Em algumas ocasiões Irineu fala da autoridade doutrinária em termosde regula veritatis, «a regra da verdade». De modo semelhante, os PaisEclesiásticos freqüentemente mencionam a regula fidei, «a regra da fé»,como o fator determinante em questões relativas às doutrinas cristãs. Osignificado destes conceitos tem sido amplamente debatido; alguns afirmamconstatar neles referência à confissão batismal solene que surgiu no con-flito com o gnosticismo, enquanto outros interpretam a regra da fé como

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referindose à Escritura Sagrada. Essa «verdade» que, segundo Irineu, eraa «regra» (o termo grego kanóon era empregado nesta conexão) era o planoda salvação revelado, do qual a Bíblia dá testemunho e que a confissãobatismal resume. «A regra da fé» não estava, pois, fixada numa fórmulaespecífica; nem tampouco designava a Escritura como código doutrinário.

Referiase, em vez disso, à verdade revelada como esta se apresentava, nãoapenas na confissão batismal e nas Escrituras, mas também na pregação,da igreja. Foi esta verdade revelada que Irineu usou para combater osgnósticos, e foi esta que procurou interpretar e descrever de maneira a fa-zer justiça à genuína tradição apostólica.

Irineu, portanto, derivou sua teologia da Escritu ra. O que desejavafazer, acima de tudo, era apresentar o plano de salvação de Deus desdea criação até o cumprimento final íoikonomía salutis). O tempo, em suaopinião, era época limitada; principiou com a criação e terminará com ocumprimento. Em ambas as extremidades circundao a eternidade. É dentrodo contexto do tempo que a salvação ocorre. Dentro deste contexto Deusrealizou as ações testemunhadas pela Escritura, e das quais depende asalvação dos homens. Para os gnósticos a salvação não era algo que serealizava dentro da história; era uma idéia, um sistema especulativo quesupunha poder a alma elevarse acima do temporal e reunirse com suaorigem divina mediante a gnose. Para Irineu tudo isto era história real, cujocumprimento se esperava para o fim dos tempos. A diferença entre a cosmovisão grega e o conceito cristão de tempo evidenciase nestes pontosde vista opostos.

A criação fazia parte do plano divino da salvação. O Filho de Deus,o Salvador, estava presente antes do princípio do tempo em seu estadopreexistente. O homem foi criado para que o Salvador não estivesse só,de modo que houvesse alguém para salvar (cf. Gustav Wingren, Man and the Incarnation According to Irenaeus, 1947, p. 28). Tudo foi criado median-te o Filho e para o Filho. A salvação foi realizada pelo mesmo motivo porqueDeus criou: a fim de que o homem pudesse ser semelhante a Deus. Ohomem foi criado à imagem de Deus, mas, como resultado da queda, essasemelhança foi perdida. O significado da salvação é tornar possível ao ho-mem concretizar seu destino mais uma vez, a saber, que o homem possatornarse a imagem de Deus segundo o protótipo discernível em Cristo. Ohomem se encontra no centro da criação. Tudo o mais foi criado para ohomem usar. Mas o homem foi criado para C risto e para tornarse comoCristo, que é o. centro de toda existência, Aquele que abrange tudo no céue na terra. i'Cf. Adversus hae reses, V, 16, 2),

Consideradas deste ponto de vista, criação e salvação unemse inte-gralmente, porque há apenas um Deus que tanto cria como sa lva . A dou-trina gnóstica de dois deuses é blasfêmia contra o Criador. Também im-plica no fato de se r a salvação impossível. Pois, se Deus não criou, então

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a criação não pode se r sa lva . Se Deus não é o Criador, então não irása lvar a criação. Mas este é o alvo de todo o plano de salvação.

A salvação, para os gnósticos, consistia em libertarse o espírito dohomem da criação, do mundo material e retornar à pura espiritualidade. Pa-ra Irineu, no entanto, salvação significava que a própria criação seria res-

taurada a seu estado orginal, que a criação finalmente atingiria o destinoque Deus lhe reservara . Em outras palavras, salvação, para Irineu, nãosignificava que o espírito do homem se libertaria de suas cadeias materiais,mas em vez disso, que o homem inteiro, corpo e alma, seria libertado dodomínio do diabo, retornando a sua pureza original e tornandose comoDeus.

O homem foi criado, segundo Gn 1.26, à «imagem» e «semelhança»de Deus. É freqüente ouvirse que Irineu foi o primeiro a introduzir a idéia(de grande aceitação, posteriormente) de que estes dois conceitos se re-feriam a duas qualidades distintas no homem. Isto, todavia, não correspondeaos fatos. Pois Irineu, com freqüência, empregou estes dois conceitos paraexpressar a mesma coisa, e estas passagens parecem ser decisivas. (Cf.Wingren).

Çuando se diz que o homem foi criado à imagem de Deus, isto, deacordo com Irineu, indica o verdadeiro destino do homem. Não significaque o homem é a imagem de Deus, mas antes, que foi criado para tornarseisso. Cristo , que é o próprio Deus, é a imagem de Deus segundo a qual

o homem foi criado, o destino do homem, portanto, é tornarse como Cristo.Este é o alvo da salvação e da obra do Espírito Santo.

Quando da criação, o homem era criança; não estava plenamente de-senvolvido, mas foi criado para cre scer . Se o homem tivesse vivido emconformidade com a vontade de Deus, teria crescido, e através do poderde Deus teria atingido seu destino — completa semelhança com Deus. Irineuentendia o crescimento, não como desenvolvimento interno, mas como re-sultado da atividade criadora contínua de Deus.

Mas o homem abandonou o caminho da obediência, tendo sido ten-tado pelo diabo, um dos anjos que, ardendo de inveja contra os homens,rebelaramse contra Deus. Foi desta maneira que o homem chegou a ficarsob o domínio do diabo. O homem está envolvido no conflito entre Deuse Satanás.

O objetivo do plano da salvação, portanto, é o de libertar das garrasdo demônio aqueles que ilegalmente foram aprisionados por ele. Esta é aobra da redenção, que foi realizada através de Cristo. Ele venceu o diaboe, deste modo, obteve a libertação do homem. Mas, apesar disso, o con-

flito continua. Contudo, é preciso dizer, que ingressou em nova fase apósa ressurreição de Cristo. Como resultado, a batalha decisiva já foi travada.O que agora acontece é que homens são atraídos para a vitória de Cristoe assim recebem a vida que perderam na queda de Adão.

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Este plano de salvação pode ser retratado de várias maneiras, como'ivramento da servidão ou como vitória após o combate (cf. acima). Tam-bém pode ser descrito em termos legalistas: naturalia praecepta — lex Mosaica — Cristo , a nova aliança, a restauração da lei original. A lei ori-ginal, tendo sido entregue na criação, expressa a vontade divina para o

homem. O destino do homem é viver de maneira condigna com esta lei, emobediência ao mandamento de Deus. Assim fazendo, o homem recebe vidae justiça da mão de Deus e  prossegue em direção ao  alvo da perfeição esemelhança com Deus. Esta lei foi escrita no coração, e o homem estálivre para obedecerlhe ou transgredila. Mas quando o homem contraria omandamento de Deus, colocase sob o domínio do pecado. Em vista disso,Deus firmou nova aliança com os homens, através dos israelitas, e deuaos homens a lei mosaica. O propósito desta lei era o de disciplinar oshomens, revelar o pecado e conserválo em seu lugar, e o de manter a

ardem exteriormente até a vinda de Cristo. Considerada neste contexto,a tarefa de Cristo era a de abrogar a lei mosaica e restaurar a lei que foraentregue na criação e que tinha sido obscurecida pelos regulamentos farisai-cos. Cristo liberta da escravidão da lei por meio de seu Espírito que regenerao homem e cumpre a lei dentro dele. O Espírito Santo restaura a obedi-ência, e desta maneira, o homem é regenerado segundo a lei que foi ou-torgada na criação. Esta lei original revelava o que constituíra a seme-lhança do homem com Deus. Há portanto, um paralelo entre a afirmativaque o homem foi criado à imagem de Deus e o que se diz sobre a lei

natural.Vida e morte relacionamse com a lei, e Irineu descreve o plano da

salvação igualmente nestas categorias. Vida e obediência à lei andam demãos dadas. Quando o homem obedece aos mandamentos de Deus, recebevida de Deus, mas guando cai na desobediência, colocase sob o poderda morte. Pois desobediência a Deus equivale à morte. Foi por causa dadesobediência que a corrente da vida foi rompida, e quando isto aconteceua morte surgiu no mundo dos homens. A morte, portanto, não se associa

com o corpo e com a vida criados, de modo eo ipso; é antes algo impostoaos homens por causa do pecado. Isto se reflete em Gn 2.17: «No diaem que dela comeres, certamente morrerás.» Sa lvação significa que a vidafoi restaurada pela vitória de Cristo sobre a morte. Crendo em Cristo, ohomem pode recuperar a vida que perdeu pela queda. A salvação outorgao dom da imortalidade. O corpo certamente morrerá por causa do pecado,a fim de que o poder do pecado possa se r vencido. A nova vida no Es-pírito é ativada pela fé, e alcança sua plenitude depois da morte. Entãonão haverá nada mais no homem que se relacione com a morte. O homem

que foi restaurado percebe par« que destino foi criado — para tornarsesemelhante a Deus e viver sem morrer.

A idéia básica da apresentação  de Irineu  do plano da salvação é quea obra da criação foi restaurada e recapitulada na salvação realizada por

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intermédio de Cristo. Em oposição aos gnósticos, que julgavam consistira salvação no livramento do espírito do mundo material, Irineu insistia queDeus e homem, corpo e alma, céu e terra, são capazes de ultrapassar aruptura provocada pela invasão do pecado e serem reunidos novamente.Isto, para Irineu, era o significado da salvação.

Cristo é o segundo Adão, o reverso do primeiro Adão. Este trouxemorte e ruína à criação por causa de sua desobediência. Cr isto, por inter-médio de sua obediência, restaura a criação a seu estado de pureza. Adãocedeu à tentação da serpente caindo assim sob o domínio do diabo. C ris-to resistiu à tentação e, desse modo, destruiu o poder do tentador sobrea humanidade. Em sua vida representa toda a raça humana, tal como oprimeiro Adão o fizera. Pelo poder de sua obediência e obra de expiação,tornouse o cabeça de nova humanidade. Tornou perfeito o que fora arrui-nado pela queda de Adão. Por intermédio dele a humanidade continua a

crescer para o alvo da perfeição. A criação é restaurada, seu destino setorna realidade. A obra redentora de Cristo principia com seu nascimentoda virgem Maria e alcançará sua plenitude na ressurreição geral, quandotodos os inimigos tiverem sido subjugados a Cristo, e Deus será tudo emtudo.

Irineu resumiu toda esta oeconomia salutis num conceito singular: recapitulatio (anakefalaíoosis). Este termo significa «recapitulação»; tambémsugere «restauração». Derivase este conceito de Ef 1.10 , onde se men-

ciona o decreto de Deus relativo ao plano «de fazer convergir nele, nadispensação da plenitude dos tempos, todas as cousas, tanto as do céucomo as da terra».

Para Irineu, portanto, «recapitulação» é termo que descreve toda aatividade redentora de Cristo desde o seu nascimento até o Dia do Juízo.Ao realizar esta obra, Cristo repetiu o que acontecera na criação, emborao fizesse , por assim dizer, em seqüência inversa. «Ele recapitulou a pri-meira criação em si mesmo. Pois assim como o pecado entrou no mundopela desobediência de um homem, e a morte pelo pecado, assim tambéma justiça veio ao mundo pela obediência de um homem, trazendo vida aosque anteriormente estiveram mortos.» (Adversus haereses, III, 21, 910).

Recapitulação também lembra perfeição, ou plenitude. Aquilo que foidado por intermédio de Cristo, e que chega a existir mediante sua obedi-ência, é superior àquilo que foi dado na criação. O homem então era aindaum «filho» daquela época. Em virtude da salvação que foi obtida, o ho-mem pode crescer até à plena semelhança com Deus, como representadana pessoa de Cristo.

Irineu desenvolveu sua cristologia em oposição ao ponto de vista docético defendido pelo gnosticismo. A obra da salvação pressupõe queCristo é tanto verdadeiro homem como verdadeiro Deus. «Se os inimigosdo homem não foram vencidos pelo homem, não podem ter sido verdadei

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ramente vencidos; além disso, se nossa salvação não procede de Deus, nãopodemos estar plenamente seguros que estamos salvos. E se o homemnão se unisse com Deus, não lhe seria possível compartilhar a imortali-dade» (III, 18, 7; Cf. Gustav Aulen, History of Dogma, p. 32). Encontramosaqui forte ênfase na humanidade de Cristo: um homem real tinha de andar

na trilha da obediência a fim de que a ordem que fora destruída pela deso-bediência de Adão pudesse ser restaurada. Ao mesmo tempo, apenas Deuspodia realizar a obra da redenção. Cristo é verdadeiro homem e verdadeiroDeus (vere homo, vere deus).

O Filho existiu com o Pai desde toda a eternidade. Mas como o Filhove io do Pai não é revelado. Em vista disso, o homem nada pode saber arespeito deste assunto. Irineu rejeitou as especulações em torno do Logosfeitas pelos Apologistas, nas quais o nascimento do Filho era comparadoao modo como a Palavra procedeu da razão. «Deverseia perguntar: Como

o Filho procedeu do Pai? esta é nossa resposta: Relativamente a sua ge-ração, ou nascimento, ou manifestação, ou revelação, ou como se quiserexpressar seu inefável nascimento, ninguém sabe; nem Marcião, nem Sa-turnino, nem Basílides. Apenas o Pai, que o trouxe à luz, e o Filho, quenasceu, sabem algo sobre isto» (II, 28, 6). Os Apologistas diziam que ocor-reu um nascimento no tempo (a Palavra procedeu da razão divina quandoda criação). Irineu, por sua vez, parece ter conjeturado um nascimento naeternidade, mas não se expressa de modo específico neste ponto.

Era típico de Irineu recusar explicação mais precisa de como foi queCristo procedeu do Pai; o mesmo ocorre com respeito à relação entre Deuse homem em Cristo. Procurou apresentar o conteúdo da Escritura sem oauxílio da filosofia e aderir à regra da fé sem entregarse a meras especu-lações. Em Adversus haereses, I, 10, 1 Irineu forneceu um sumário breveda fé que fora transmitida desde os apóstolos: «A igreja se estende pelomundo inteiro, às regiões mais remotas da terra. Recebeu sua fé dos após-tolos e seus seguidores. Essa, é fé em um só Deus, Pai todopoderoso,que fez os céus e a terra e os mares e tudo o que há dentro deles; e em

Cristo Jesus, o Filho de Deus, o qual, para nos redimir, assumiu formahumana; e no Espírito Santo, o qual, através dos profetas, proclamou o pla-no de salvação de Deus, o duplo advento do Senhor, seu nascimento devirgem, sua paixão, sua ressurreição dos mortos, sua ascensão física aocéu, e seu retorno do céu na glória do Pai. Cristo retornará a fim de ‘re s-taurar todas as coisas’ e ressuscitar toda carne em toda a raça humana,de modo que todos os joelhos se prostrarão perante Jesus Cristo e todasas línguas o louvarão, a ele, que segundo o invisível beneplácito do Pai,é nosso Salvador e Rei.»

Há na teologia de Irineu um paralelo à doutrina quiliasta, mas evitafa lar de «1.000 anos». Prefere , em vez disso , referirse ao «reino do Filho»,no qual o domínio de Cristo se manifestará de maneira visível na terra.Além disso, o Anticristo será derrotado, a natureza se renovará, e os fiéis

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reinarão com Cristo neste «reino do Filho». Isto precederá a segunda res-surreição e o Dia do Juízo. A eternidade principiará após o final do julga-mento, quando o Filho entregará o Reino ao Pai, e Deus será «tudo emtudo». (Cf. Wingren, pp. 212 ss.),

TERTUL IANO

Em longa série de escritos profundos e incisivos, Tertuliano envolveuse nas controvérsias eclesiásticas de seu tempo a fim de defender a fécristã e de instruir os fiéis. Foi o primeiro dos Pais Eclesiásticos com«estilo tipicamente ocidental», e de várias maneiras foi o fundador da tra-dição teológica ocidental.

Tertuliano nasceu em Cartago em meados do segundo século; ori-ginalmente pagão, converteuse ao cristianismo já adulto. Exerceu a advo-cacia em Roma por algum tempo, mas após sua conversão retornou à vidaprivada em Cartago, onde se devotou ao estudo e a escrever. Sua atividadeliterária restringiuse aproximadamente ao período entre 195 e 220. Porvolta do ano 207 Tertuliano associouse ao movimento montanista, que pos-teriormente manifestou tendências sectárias.

Como autor, Tertuliano era bem original. Em contraste com os esc ri-tores que o precederam, empregou estilo formal. Destacavase no campoda retórica, e sua erudição era ampla e profunda. Não era filósofo, no en-

tanto; estava mais interessado em questões sociais, e possuía bom domínioda lei. Era observador acurado da vida em geral, e seus escritos manifes-tam seu ponto de vista altamente individualista. Seu profundo interesse emquestões práticas e sua firme adesão à realidade são características dateologia ocidental. Assim Karl Holl descreveu Tertuliano: «Nele o espíritodo Ocidente falou claramente pela primeira vez.» (Gesammelte Aufsaetze, III, 2).

Entusiasmo apaixonado e dialética engenhosa caracterizam os es-critos polêmicos de Tertuliano. Devido a seu estilo irregular, paradoxal esucinto, às vezes é difícil entendêlo.

Os escritos teológicos de Tertuliano exerceram influência ampla esignificativa. Isto se deve especialmente ao fato de ter ele produzido for-mulações que se tornaram populares. Também cunhou certa terminologiaque ficou fazendo parte da literatura teológica desde então (na língua latinaque ele usava). Além disso, alguns de seus conceitos forneceram os pro-tótipos para desenvolvimentos posteriores no campo da teologia. Isto acon-tece, por exemplo, com respeito à doutrina da Trindade, cristologia e pe-

cado original. Tertuliano foi o precursor de Cipriano, que se tornou seudiscípulo, bem como de Agostinho.

As contribuições de Tertuliano à época em que viveu se encontramem seus escritos polêmicos, bem como em seus pronunciamentos relativos

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a problemas eclesiais práticos. Tal como os apologistas, defendeu o cris-tianismo da religião pagã (cf . Apologeticum), Para ele, como para Irineu,o gnostícismo era o principal adversário (cf. Adversus Marcionem; De praescriptione haereticorum). Por último, voltouse contra o modalismo (cf.Adversus Praxean). Tertuliano escreveu bom número de livros com o obje-

tivo de desenvolver suas convicções doutrinárias e para dar sua opiniãocom respeito a questões práticas congregacionais.

A teologia de Tertuliano foi, em grande parte, condicionada pelo seuconflito com os gnósticos. Suas conhecidas afirmações contra a filosofiadevem ser vistas neste contexto, pois em sua opinião, a filosofia era afonte de heresia gnóstica. Valentino aprendera de Platão, Marcião dosestóicos, e como resultado transformaram o cristianismo numa filosofia re-ligiosa pagã. Escreve Tertuliano: «Os filósofos e os hereges discutem osmesmos assuntos, e empregam os mesmos argumentos complexos. Pobre

Aristóteles! Foi você quem lhes ensinou dialética, para se tornarem hábeisem construir e derrubar. Eleè são tão sutis em suas teorias, formais emsuas inferências, tão seguros sobre suas provas, tão solenes em seus de-bates, que se tomam fatigantes em virtude do fato que tratam de tudo detal modo que, em última análise , não se tratou de nada. Que tem Atenasa ver com Jerusalém? Que tem a academia a ver com a igreja? Que têmos hereges a ve r com os cristãos? Nossa doutrina flui da sala de pilaresde Salomão, que aprendera que é preciso buscar o Senhor com inocênciade coração. A mim pouco importa, quem quiser que produza um cr ist ia-

nismo estóico, platônico e dialético. Visto como o evangelho de Cristo nosfoi proclamado, não precisamos mais inquirir ou perscrutar esses assuntos.Se temos fé, não desejamos qualquer coisa além da fé. Pois este é o pri-meiro princípio de nossa fé : Nada há além desta fé em que precisamoscrer» (De praescript., 7). Se alguém deseja algo além da fé, revela assimo fato que realmente não tem fé. Tal homem, em vez disso, tem fé naquiloque procura (ibid., 11). Os gnósticos vão além da fé em sua sabedoria.O cristão, pelo contrário, adere à fé simples que é revelada na Escriturae preservada na tradição apostólica. «Nada conhecer em oposição à regra(de fé) é conhecer todas as coisas.» (Ibid., 14).

A rejeição da filosofia por parte de Tertuliano relacionavase, pois,com seu conflito contra os heréticos. «Os filósofos são os pais dos heré-ticos» , escreveu (Adversus Hermogenem, 8). Mas essa rejeição tambémpode se r explicada do seguinte modo: Tertuliano reconheceu uma distinçãofundamental entre fé e razão em epistemologia. O que o homem crê nãopode se r compreendido com sua razão. O conhecimento da fé é diferentedo conhecimento da razão. Aquele possui sua própria sabedoria, que nada

tem a ve r còm prova racional. Relativamente à ressurreição de Cr isto, Te r-tuliano disse: «É verdadeira porque é impossível» (De came Christi, 5; cf.De baptismo, 2). É esta espécie de «irracionalismo» que em geral se ca-racteriza com a expressão credo quia absurdum («Creio porque é absurdo»).

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Esta frase não se encontra em Tertuliano, mas seguramente expressa seumodo de pensar.

O que foi dito acima, contudo, representa apenas uma faceta da con-cepção de fé e razão de Tertuliano. Outras passagens em seus escritosapresentam sua opinião mais positiva no tocante à razão humana. Ele o

faz sem recorrer ao auxílio da filosofia para fortalecer seus argumentos.Nesta questão, Tertuliano não faz es mesmas exigências rigorosas à teo-logia como Irineu.

É comum ouvirse dizer que há um traço racionalista na assim cha-mada teologia natural de Tertuliano. Ocasionalmente, disse que o não cris-tão possui conhecimento natural do Deus único; que a alma humana énaturaliter Christiana. Tertuliano também utilizava a prova cosmológica daexistência de Deus: a beleza e ordem da criação são provas da presença

do Criador no mundo. Estes pensamentos e outros semelhantes, no en-tanto, destinavamse a demonstrar a universalidade do cristianismo, e aapoiar a doutrina cristã da criação divina. Em vista disso, não se pode,com justiça, acusar Tertuliano de racionalismo.

Embora criticasse severamente a filosofia, Tertuliano muitas vezesempregava idéias e formulações filosóficas. Em oposição ao espiritualismocaracterístico do gnosticismo, por exemplo, tomou de empréstimo certas li-nhas de pensamento dos estóicos, que então reorganizou numa teoria «rea-lista». É este realismo que, pelo menos até certo ponto, distingue o pen-

samento ocidental do grego. Mas Tertuliano o levou a um extremo: ateologia, disse, deve relacionarse com alguma realidade manifesta em todosos pontos. O corpo físico fornece o padrão para toda realidade. «Tudoque existe é corpo de algum tipo; nada é incorpóreo exceto o que nãoexiste» (De carne Christi, 11). Como conseqüência desta tese , Tertulianoatribuiu corporeidade até mesmo a Deus, e também conjeturou a possibi-lidade de ter a alma corpo invisível. Sua teoria sobre a origem da almatambém se relacionava com isso; a alma, segundo Tertuliano, se transmitepor nascimento natural de uma geração à seguinte. Este conceito costuma

se denominar traducianismo. A outra teoria relativamente à origem da almaé chamada criacionismo, que sustenta que a alma de cada homem é novacriação, diretamente saída da mão de Deus. (Cf. Karpp, Probleme altchristlicher Anthropologie, 1950).

A doutrina da Trindade ocupa lugar de destaque na teologia de Ter-tuliano. Ao lidar com esta faceta de sua teologia, Tertuliano adotou osconceitos de Logos dos apologistas e os desenvolveu mais ainda. Suasformulações serviram de base para fórmulas trinitárias e a cristologia que

a igreja aceitou posteriormente.Tertuliano aplicou o conceito de Logos do mesmo modo como os Apo-

logistas. Cristo, afirmou ele, é a Palavra divina, que procedeu da razãode Deus quando da criação. Ao dizer Deus: «Haja luz», nasceu a Palavra

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(o Verbo). Cristo é um com Deus, e ainda assim é distinto do Pai. Pro-cedeu da essência de Deus como os raios emergem do sol, as plantas desuas raízes, ou o rio de sua fonte. Portanto, o Filho está subordinado aoPai. É aquele que revelou a Deus, enquanto Deus mesmo é invisível. Assimcomo os apologistas, Tertuliano empregou a expressão «subordinacionis

mo». Ressaltou enfaticamente que o Filho e o Espírito Santo são um como Pai, mas ao mesmo tempo algo diferente do Pai. «O Pai não é o Filho;ele é maior do que o Filho; pois aquele que gera é diferente daquele quenasce; o que envia é diferente do que é enviado» (Adversus Praxean, 9).Com o objetivo de expressar a relação entre o Pai, o Filho e o EspíritoSanto, Tertuliano cunhou o termo persona, que mais tarde tornouse o vocá-bulo geralmente aceito neste contexto. O Filho, como pessoa independente,ve io do Pai. O Logos tem existência independente. E, todavia, as trêspessoas são um, assim como os raios do sol são um com o sol. Para

expressar esta unidade, Tertuliano usou o termo substantia, que é paraleloao vocábulo grego ousía, «essência» ou «substância». Este termo, também,chegou a ser geralmente aceito na formulação da doutrina da Trindade.

As três pessoas preexistiam em Deus. Mas quando procederam deDeus e ingressaram no tempo, isto ocorreu de acordo com o plano da sal-vação. O Filho procedeu do Pai a fim de declarar o plano da sa lvação .As três pessoas denotam etapas diferentes na revelação de Deus, mas são,apesar disso, um só — assim como as raízes produzem a planta, e a planta

carrega frutos, enquanto juntos formam uma e a mesma planta. Esta con-cepção da Trindade é usualmente denominada doutrina «econômica» daTrindade. A diferença entre as pessoas é descrita com base em sua ativi-dade no plano da salvação.

Tertuliano desenvolveu sua cristologia em oposição ao modalismo (doqual se falará ainda, posteriormente). Traçou distinção nítida entre as qua-lidades divinas e humanas em Cristo . Referemse a duas substâncias di-ferentes, diz ele, que se uniram numa pessoa, Cristo, mas não se combi-naram. Quando Cristo disse : «Deus meu, Deus meu, por que me desam-paraste?» não foi Deus Pai quem clamou («Pois caso o fosse , a que Deusclamaria?») — foi o homem, o Filho, que clamou ao Pai. Cr isto sofreu sócomo Filho, afirmou Tertuliano, rejeitando desta maneira o patripassionismo(Praxeas), que confundiu Deus e Cristo a tal ponto que dizia ter sido oPai quem sofreu. É preciso ressaltar, entretanto, que Tertuliano usou ex-pressões como Deus mortuus e Deus crucifixus, que não necessariamentecontradizem o que foi dito acima. Mas nada disse de específico sobre arelação entre as qualidades divinas e humanas. O Logos apareceu em car-

ne, revestido de forma corpórea, mas não se transformou em carne. Adoutrina subseqüente das duas naturezas de Cristo baseouse em Tertu-liano. Sua terminologia pode ser apresentada esquematicamente da seguintemaneira:

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Uma substância (ousia) — três pessoas (upostáseis): Pai, Filho, Espí-rito Santo. A pessoa de Cristo — natureza divina e humana (a substânciado Criador e substância humana).

Irineu apresentou Cristo como o Salvador do poder do pecado, que,através do seu Espírito, redime o homem da corrupção do pecado a fim

de que o homem possa se r restaurado a su? pureza original. A salvaçãoera descrita, em outras palavras, em termos de recuperação de saúde eintegridade. Tertuliano deu ênfase a outro ponto de vista: apresentou C ris-to como o mestre que proclama nova lei (nova lex), fortalecendo, desta ma-neira, a vontade livre do homem a fim de que possa viver de acordo comos mandamentos de Deus. Viver de maneira compatível com a lei de Deusé, segundo Tertuliano, o alvo da salvação. Isto se alcança mediante instru-ção na lei. O conceito de mérito é dominante. Deus recompensa ou pune 

com base em mérito. A relação entre Deus e o homem é concebida em

termos de sistema judicial. Se Deus não vingasse e punisse, não haveriarazão para temêlo e fazer o que é correto. A salvação, diz Tertuliano, édada como recompensa pelo mérito humano. As boas ações, bem comoas más, devem se r recompensadas por Deus. Esta interpretação claramenteopõese à de Marcião, que enfatizara o amor de Deus a ponto de negartodas as considerações de retribuição e ira.

A doutrina da graça de Tertuliano também foi introduzida nesta estru-tura. É a graça que sa lva — com o que Tertuliano quer dizer que a graçaretira a corrupção que aderia à natureza humana como resultado da invasãodo pecado. A idéia que esta corrupção se encontra na própria natureza,e é transmitida pelo nascimento, igualmente aparece em Tertuliano. É aíonde a doutrina do pecado original começa a tomar forma. Através da gra-ça o homem pode receber o poder indispensável para viver a nova vida.A graça é concebida como o poder que é outorgado ao homem, capacitan-doo a vive r vida meritória. Com base nesta doutrina de pecado — graça —mérito, que Tertuliano desenvolveu no decurso de sua controvérsia comMarcião (que ressaltava o amor de Deus), foi lançado o fundamento paraa doutrina da salvação , que dominou a teologia medieval do ocidente e,mais tarde, a do catolicismo romano.

Como foi dito acima, Tertuliano filiouse ao movimento montanista,em parte como resultado da praxe complacente da igreja com respeito àpenitência. A seita montanista originarase na Ásia Menor, em meados dosegundo século , e, de lá, propagouse a Roma e ao Norte da África. Dis-tinguiase por sua forte ênfase na profecia e nos dons livres do Espírito,por sua crença na iminência do fim do mundo, e por seu rígido ascetismoe sua rigorosa praxe de penitência.

Em virtude de sua associação com os montanistas, Tertuliano é lem-brado como tendo sido um cismático, mas ao mesmo tempo foi tambémum dos principais adversários das heresias, bem como um dos mais des-tacados artífices da teologia ortodoxa ocidental.

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HIPÓLITO

Hipólito, que foi bispo em Roma e adversário do papa Calixto (cujaatitude com respeito à penitência desaprovava veementemente), foi banidopara Sardenha durante uma perseguição (ca. 235), e morreu no exílio. Es-

creveu vários livros (em grego), dos quais alguns chegaram até nós, emque continuou a defesa da doutrina cristã contra a filosofia grega e as he-resias eclesiásticas . Sua obra mais conhecida intitulase Philosophoumena(ou A Refutação de todas as Heresias), que realmente é um apanhado en-ciclopédico das idéias filosóficas que derivaram dos filósofos naturalistasgregos, de vários conceitos mágicos e religiosos dominantes em sua época,bem como das heresias eclesiásticas que, segundo Hipólito, tinham suasraízes na filosofia grega. Esta obra é testemunho eloqüente de sua vastaerudição e proporciona conhecimento valioso sobre as várias escolas de

pensamento que Hipólito aí descreve. O material polêmico, por sua vez,dirigese especialmente contra os gnósticos e os modalistas, e não apre-senta a mesma originalidade e vigor das polêmicas de Irineu e Tertuliano.

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CAPITULO 5

TEOLOGIA ALEXANDRINA

A teologia cristã desenvolveuse em oposição à filosofia grega e àstendências heréticas. Os apologistas refutaram as objeções do mundo pa-gão e apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia; os pais an-

. tignósticos desenvolveram, com base na Escritura e na tradição, uma teo-logia destinada a proteger a ortodoxia das especulações do gnosticismo

e da filosofia grega. Mas o que os alexandrinos ofereceram como subs-tituto foi uma cosmovisão sistemática baseada em princípios filosóficos,em que o cristianismo foi inserido e conservado como a mais elevada sa-bedoria.

Esta foi a primeira tentativa de se obter uma síntese real entre o cris-tianismo e a filosofia grega. Ao contrário dos apologistas, os alexandrinosnão se contentaram em apresentar a tradição cristã simplesmente como.complemento superior à filosofia. E em contraste com os gnósticos, não

procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincretística de sal-vação que repudiou alguns dos elementos fundamentais da fé cristã.

Os teólogos alexandrinos queriam preservar a tradição cristã de ma-neira fiel, e para conseguilo apoiavamse firmemente na Escritura . Ao mes-mo tempo também possuíam um ponto de vista filosófico coerente, em cujocontexto procuravam inserir o conteúdo da revelação de modo a criar novosistema teológico. Faziam uso da filosofia contemporânea desta maneiracom o objetivo de apresentar a realidade da fé como cosmovisão uniformee abrangente. O propósito disto não era o de misturar cristianismo e filo-sofia, mas apenas o de apresentar o cristianismo como a mais elevada ver-dade. Orígenes foi um dos mais destacados teólogos bíblicos de todos ostempos, e desejava tãosomente interpretar o significado da Escritura. Mascomo resultado de seus pressupostos filosóficos tinha a tendência de intro-duzir implicações filosóficas e especulativas nas passagens da Escrituracomo seu sentido mais profundo. Faziao com auxílio do método alegórico.Em vista disso, o sistema de Orígenes traz impressa a marca da filosofia

grega desenvolvida em sua época (e anteriormente) em Alexandria, o prin-cipal centro de educação grega naquele período. Foi, portanto, o elementobásico desta filosofia que significativamente condicionou a teologia alexan-drina como foi desenvolvida por Clemente e Orígenes.

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O PLATONISMO DE ALEXANDRIA

É comum ouvirse dizer que os princípios filosóficos reconhecíveisna teologia de Orígenes são os do neoplatonismo. Isto não correspondeplenamente aos fatos. O fundador real da escola neoplatônica foi Plotino,

contemporâneo mais jovem de Orígenes. Esta escola foi fundada em 244,quando a teologia alexandrina já existia. Mais corretamente, pois, será di-zer que o neoplatonismo foi o paralelo filosófico do sistema teológico ale-xandrino. Mas tanto Plotino como Orígenes tiveram o mesmo mestre Amó-nio Sacas. Através dele Orígenes chegou a sentir a influência do neoplato-nismo embrionário. Pesquisa mais recente (E. de Faye; Hal Koch, Pronoiaund Paideusis) demonstrou, no entanto, que esta influência não foi tãogrande como se supunha. Na realidade, Orígenes era eclético. Mas noque tange a escolas filosóficas, mais do que de qualquer outra aproxima-

vase do platonismo tal como era popular em Alexandria durante os pri-meiros séculos da era cristã e que, em geral, denominase platonismo mé-dio. Era continuação da antiga Academia, mas tinha transformado o plato-nismo clássico num sistema cosmológico abrangente em que a religião, aoinvés de conhecimento teórico, era o componente principal. O mundo dasidéias como aí era apresentado não era simplesmente o mundo conceptual,mas sobretudo o mundo espiritual que emanou da divindade. Os aspectosfundamentais deste sistema afloram novamente tanto no neoplatonismo co-mo nos teólogos alexandrinos.

«A estrutura cosmológica alexandrina» (cf. Anders Nygren, Agape andEros, trad. Philip S . Watson, Londres: SPCK , 1953, I, 18689; o termo étomado do Plotinus de Heinemann, 1921) baseavase no antigo platonismo,visto que procede da antítese entre mente e matéria, entre o mundo dasidéias e o mundo empírico. Esta antítese era fundamental.

Dentro dessa «estrutura cosmológica» Deus era conceituado como oÚnico, transcendente acima de tudo o mais. O mundo inteligível emanavade Deus num processo eterno. O pensamento (nous) era a primeira etapa;a subseqüente era a da alma do mundo, que é a mais baixa no mundo es-

piritual. Como resultado de uma queda ocorrida no mundo espiritual, aalma humana foi desligada e unida à matéria. A história do mundo estáprocurando cumprir com este objetivo, a saber, que os seres racionais quecaíram em grau maior ou menor de seu estado original possam, mediantetreinamento e purificação, elevarse à presença da divindade, libertandosedeste modo das cadeias do mundo material. O alvo, em outras palavras,era produzir uma reunião extática com Deus (homoíoosis Theóo) atravésdesse processo contínuo de treinamento e purificação.

Essa estrutura cíclica, que já aparecera em outra forma entre os gnósticos, foi plenamente desenvolvida no platonismo alexandrino, e formou aorigem da teologia deOrígenes e Clemente. Empregaram esse mesmo es-quema com certas modificações e acrésc imos. Dentro dessa moldura foiapresentada a doutrina da salvação.

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CLEMENTE

Muito pouco sabemos sobre a primeira congregação de Alexandria,mas sabemos que nela surgiu uma escola catequética em meados do se-gundo século, a primeira instituição cristã de educação superior. Por volta

do final do segundo século esta escola experimentou crescimento inusitadoe se tornou o berço da teologia alexandrina. O primeiro teólogo de reno-me associado à escola catequética_dfi—Alexandrina foi Pantenn que cedo

TÕÍ ultrapassado por seu discípulo Clemente (ca . 1502151. gim por sua vez,foi mestre de Oríoenes. As principais características do sistema teológicoem si, foram desenvolvidas por Clemente, mas foi Orígenes quem, fazendouso deste sistema, o tornou famoso.

O aspecto fundamental da teologia de Clemente é a idéia da pedago-gia de Deus . A fim de tomar o espírito caído do homem capaz de ascen-der e de reunirse com o divino, há necessidade de educação. Isto acon-tece através de disciplina e castigo, por meio de admoestações e instrução.Esse treinamento é a própria finalidade da existência do mundo material.Clemente o torna claro em seus livros principais, tais como Admoestação aos Gregos, o Instrutor, e As Miscelâneas.

A educação do homem se realiza através do Logos, que se reveloude maneira final e definitiva no cristianismo. Mas também houve etapa pre-paratória, anterior à vinda do cristianismo, e o mesmo Logos, que se ma-

nifestou em Cristo, também exerceu influência pedagógica nesse período.Entre os judeus proclamou a lei, e entre os gregos foi a filosofia oue demaneira semelhante prenarou o caminho para a vinda de Cristo. A filoso-fia grega, em outras palavras, foi uma fase na pedagogia de Deus, seme-lhante à lei dos judeus. Ambas auxiliaram a preparar os homens para aencarnação e procederam da mesma fonte, o Logos, que apareceu aos ho-mens mesmo antes do nascimento de Cristo . Considerada deste ponto devista, a filosofia, assim como a lei, é posição ultrapassada, uma vez queCristo veio com o conhecimento salvador pelo qual os homens são trazi-

dos à fé.O que se disse até agora é explicação parcial do conceito de cris-

tianismo e filosofia de Clemente. Cristianismo e filosofia, segundo Clemen-te , não são opostos entre si. A filosofia, ao contrário, expressa a mesmarevelação que foi completada posteriormente no cristianismo. Portanto, afilosofia, segundo Clemente, é capaz de servir como «uma espécie de es-cola preparatória para os que obtêm a fé através de provas».

Mas a influência da filosofia sobre Clemente expressouse particular-

mente nisto, què o conduziu a concluir que «conhecimento» fica num nívelmais elevado que a fé. Portanto, distinguia entre pistis (fé) e gnõosis (co-nhecimento). Aquela, conforme Clemente, é a simples té autoritária cristã ,de natureza bem literal, e preocupada com o temor de punição e esperan

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ça de recompensa. Este, por outro, é considerado conhecimento de espé-cie superior, que não crê simplesmente com base na autoridade, mas an-tes, avalia e aceita o conteúdo da fé à luz de suas próprias convicções in-ternas. O «conhecimento» conduz ao amor, e o amor impele a ações quenão seriam produzidas pelo temor. Clemente enfatiza energicamente a idéia

que o conhecimento é o nível superior no qual a fé é conduzida à perfei-ção. Apenas o «gnóstico» (conhecedor) poderia se r cristão perfeito. Ape-sar disso, a diferença entre fé e conhecimento não é considerada idênticaá d ivis ão QnÓStÍC3 da humanidad© ©fltr© hílipne o nnaiim áf irn c Plom on to

não considerou os homens predestinados a uma ou outra categoria. Tam-bém não concebeu o conhecimento que se obtém no níveKNriais elevadocomo sendo de espécie diferente daquele que se encontçáQ^a \(ié. A fé, di-zia, contém tudo até certo grau. Mas uma fé exterrçaV^inc^iãz de com-preender o verdadeiro significado da fé, uma vez^y^ açeit^ íos dogmas s in ^ '

plesmente com base na autoridade. «O gnóst icy í^ o^ su a vez, é cajsaz de^apreender o significado da fé, tendoo assimilado internamente. O^esafioque Clemente lançava ao cristão, portanto\Qg^|e dirigirse da tfè^o conhe-cimento. O conhecimento conduz à tááaòAfefe^Deus e a uma Midà"de amorao próximo. Clemente desejava substrew^a falsa gnose do gnosticismo pelaverdadeira gnose escritu rístiça^dtc/jlstian ismo. O oohTlecimento superiorque ensinava não entrava emW&oftíto com a fé eXtôr^^Eíaseada na autori-dade. Mas o desenvolvímènto da gnose cristã '£or parte de Clemente foiinfluenciado pela filo&OTadjatônica, que constituía seu ponto de partida e

que servia, como ele a enCarava, corpofeécola preparatória ao cristianismopara os que prpcediam da «fé nua»'^gsimpreensão mais profunda da fé.As id^iasN^rincipais da gnose ©rístã, como desenvolvidas por Cle-

mente, iTeapftrecem no sistema^eorogico de Orígenes, e por essa razão,não ráà ^ iécu tida s maisf 4^mènorizadamente a esta altura.

wO RI GENES

As diígfiiíSancias da vida de Orígenes são razoavelmente bem conhe-cidas,HÍàtticularmente como resultado da obra de Eusébio (História Ecle-siástica, VI). Nascido em Alexandria em 185, de pais cristãos, revelou en-tusiasmo pelo cristianismo desde a infância. De fato, ainda bem jovem qua-se sofreu morte de mártir, como seu pai. No ano 203 sucedeu a Clemente_____ .   _________ la _____ , . . __ __________ . _____   , serviupor muitos anos. Seu sucesso como professor foi extraordinário mas a opo-sição do bispo de Alexandria o forçou a exilarse. Foi à Palestina, ondefundou uma escola em Cesaréia, semelhante à de Alexandria, e aí continuou

sua atividade. Morreu em Cesaréia em 251 — ou, segundo outra fonte, emTiro em 254.

Como escritor no campo da teologia, a produtividade de Orígenes foiespantosa. Apenas parte de seus escritos foi preservada. Sua obra exe

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gética compõese de comentários, homilias e edições de textos. Orígenestinha acesso a grande número de manuscritos que depois se perderam. Emsua obra mais importante, a Hexapla («a Sêxtupla»), colocou seis diferentestraduções do Antigo Testamento em colunas paralelas numa tentativa dedeterminar o texto correto. Mas apenas pequena parte da Hexapla chegou

até nós, e o mesmo se dá com suas numerosas homilias e comentários. Oponto de vista teológico de Orígenes se encontra expresso com maior cla-reza em seu grande conflito literário com Celso (Contra Celsum), bem comona obra em que procurou fazer uma exposição ampla da fé cristã . Esta foipreservada em tradução latina de Rufino (De principiis). É difícil imaginaro volume original da produção de Orígenes. Jerônimo calculou que produ-zira cerca de 2.000 escritos.

No início de sua carreira Orígenes sofreu oposição dos que o acusa-vam de ensinar doutrina falsa. Havia vários aspectos originais integrados

em sua teologia que, de modo geral, era fortemente influenciada pela filo-sofia grega. Por esse motivo, a teologia de Orígenes tornouse cada vezmais controvertida até ser condenada como herética pelo Çuinto ConcílioEcumênico (553). Apesar disso, Orígenes demonstrou ser teólogo de in-fluência extraordinária. Podese dizer, incidentalmente, que foi o fundadorda tradição teológica oriental, assim como Tertuliano foi o fundador da tra-dição ocidental.

Orígenes foi teólogo bíblico, mas como resultado de sua utilização dométodo alegórico (tomado de empréstimo da tradição platônica) sua inter-pretação da Bíblia também permitia a aceitação da cosmovisão que se de-senvolvera na escola filosófica de Alexandria.

Devese ressaltar, contudo, que Orígenes não só alegorizou. Comoexegeta notável que era, também demonstrou compreensão pelo sentidohistórico dos textos com que trabalhava. Suas interpretações tipológicastambém devem ser distinguidas da tendência alegorizante. Aquelas incluíama exposição do material veterotestamentário dentro da estrutura da histó-ria da salvação, que Orígenes interpretava escatologicamente, cristologica

mente e sacramentalmente. A interpretação mística, que se refere à expe-riência interna do cristão, também pertence a esta categoria. Estas manei-ras de interpretar a Escritura foram empregadas, até certo ponto, por todaa tradição cristã. O que distingue Orígenes foi que também usou o métodoalegórico. Esse método fora empregado anteriormente pelo filósofo religio-so judeu, Filo de Alexandria, que interpretava o Antigo Testamento de acor-do com a filosofia platônica. Em princípio, esse método relacionase como ponto de vista platônico. Contrasta letra e espírito da mesma maneiracomo o platonismo em geral contrasta substância e idéia.

Em Orígenes, a alegoria se fundamenta na idéia que há um sentidoespiritual no fundo de cada passagem da Escritura . Assim como o homemcompõese de corpo, alma e espírito, assim também a Escritura possui sen-tido literal (ou «somático»), moralista (ou «psíquico») e espiritual (ou «pneu-

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mático»). Este está sempre presente, e quando a interpretação literal pare-ce pouco razoável, devese adotar apenas a espiritual.

Além disso, o método alegórico pressupõe que todos os pormenorescitados na Escritura são símbolos de grandes realidades espirituais univer-

sa is, por exemplo, os poderes da alma e eventos cosmológicos. O alegorizador, portanto, abandona o terreno sólido da história e concebe os pro-nunciamentos escriturísticos como fenômenos puramente espirituais ouidealistas. Isto constitui a diferença entre alegoria e tipologia. É evidenteque esse método se presta muito bem para encontrar na Escritura as idéiascosmológicas que aparecem no sistema teológico de Orígenes. O métodoalegórico o capacitava a formar uma síntese de seu sistema cristão comidéias helenísticas.

A regra da fé, segundo Orígenes, identificase com o conteúdo daEscritura. Orígenes forneceu um sumário na primeira parte de seu De principiis, em que apresenta seu sistema teológico com maior clareza. Aíinseriu idéias da tradição cristã na estrutura cosmológica alexandrina. Trêstemas principais aí se encontram:

1) A respeito de Deus e do mundo transcendental;2) A respeito da queda no pecado e o mundo empírico;3) A respeito da salvação e a restauração dos espíritos finitos.

Tema característico da teologia de Orígenes é o da educação, pelaprovidência divina, das criaturas racionais caídas em pecado. Eram pressu-postas as três idéias básicas seguintes: (a) o curso do mundo é guiadopela providência divina; teve sua origem em Deus, e todas as coisas , des-de os movimentos dos corpos celestiais até as relações terrenas dos ho-mens, são governadas por um poder divino; (b) o alvo do cuidado provi-dencial dispensado por Deus ao mundo (do qual o homem é o centro) éo de restaurar à sua origem divina as criaturas racionais, que estão aí apri-sionadas em seus corpos ; (c) essa restauração terá lugar como resultado

de educação (paídeusis) — o que quer dizer que não é fenômeno natural,nem ainda se emprega qualquer coerção, mas deve ser realizada pela in-fluência sobre o üvre arbítrio do homem. Que o homem tem livre arbítrioera, para Orígenes,fato pacífico sancionado pela própria regra da fé. Sobreisto Orígenes edificou seu sistema teológico, e como resultado seu conceitode salvação foi apresentado em termos de educação. Assim como acontececom Clemente, a idéia da pedagogia providencial de Deus é básica no sis-tema de Orígenes.

1. Orígenes descreveu Deus como o ser espiritual mais elevado, tã

distanciado do material e físico como possível. Em vista disso, os antropomorfismos da Bíblia devem se r reinterpretados. Não possuem qualquersignificado literal. A corporeidade é incompatível com o conceito de Deus.Nessa questão Orígenes ppõese frontalmente a Tertuliano.

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Deus, de sua bondade e amor, criou um mundo inteligível de tipo pu-ramente espiritual. Esse mundo espiritual procede de Deus por toda a eter-nidade. O Logos, Cristo , faz parte desse mundo. Orígenes rejeitou a idéiaque o Logos apareceu pela primeira vez quando da criação (cf. os apolo-gistas e Tertuliano). Em lugar disso, afirmou que o Logos preexistiu eter-

namente de modo independente («Nunca houve um tempo em que ele nãoexistia»), O Logos não foi criado no tempo; nasceu de Deus na eternida-de. Assim como Orígenes o concebia, esse nascimento do Filho na eter-nidade foi uma emanação análoga à emanação do mundo espiritual da di-vindade (cf. Irineu, que apresenta a mesma idéia sem este fundo filosófico).Isto suscitou a questão: Como se relaciona o Filho com o Pai? Com baseem sua doutrina do nascimento do Filho na eternidade, Orígenes dizia (a)que o Logos é_da._rnesma essência do Pai e está subordioado a ele. O Fi-lho é o «segundo Deus». Apenas o Pai «não nasceu» (é agénnetos). Tanto

o conceito de homoodsios como o subordinacionismo, portanto, encontramse na teologia de Orígenes.

2. Os seres espirituais sofreram uma queda, pela qual alguns delesse afastaram mais de sua origem do que outros. «Esfriaram» (psuxos, frio),por assim dizer, e se tornaram criaturas racionais, psuxaí (plural de psuxée,alma). Foi assim que anjos, homens e demônios chegaram a existir . O mun-do visível foi criado como conseqüência da queda, a fim de punir e puri-ficar o homem. O mundo supre o lugar e as condições nas quais e pelasquais a instrução divina pode ter lugar. Orígenes, portanto, não conside-rou a criação como algo mau (como o faziam os gnósticos). Na realidade,afirmou que Deus criara o mundo visível, mas apenas com a finalidade dedar ao homem a possibilidade de se r educado dentro dele. A criação nSopossui significado independente. A existência no mundo material é, em par-te, punição para os espíritos racionais, mas isso não é tudo. Pois comoOrígenes o imaginava, as coisas terrenas são símbolos das realidades ce-lestiais, e ao contemplálas, esperase que o homem se eleve ao nível ce-leste . Assim acontece que o mundo material também se inclui na instruçãoprovidencial do espírito humano.

3 . Orígenes concebia a salvação da seguinte maneira: O homemé um espírito que caiu do mundo inteligível e foi enxertado num corpo queé animado por uma alma. Para ser salvo, o homem precisa novamente ele-varse ao mundo espiritual, para lá reunirse com Deus. Esta salvação érealizada por intermédio de Cristo , o Logos que se tornou homem. A almade Cristo não caiu de seu estado puro. Sua alma ingressou em seu corpo,e assim a natureza divina e a humana se uniram. Mas, dizia Orígenes, olado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino de modo

que deixou de ser homem (cf. Inácio, que mantinha que Cristo permaneceucarne mesmo depois da ressurreição).

Orígenes ensinou uma doutrina de expiação, mas uma vez que estaredenção tinha valor especialmente para aqueles que se encontram no ní

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vel inferior da fé, como ele o conceituava, a ênfase maior recaía sobre ainstrução que Cristo dá no tocante aos mistérios da fé. A sa lvação não secompleta a não se r após a morte. O processo de purificação continua apósa morte e, como resultado disto, os homens são conduzidos á perfeição ereunidos com Deus — em primeiro lugar os homens bons, mas por último

também os maus. Tudo se reunirá com sua origem (apokatástasis pántoon).Mas qualquer ressu rreição do corpo está fora de questão. A matéria não'existirá mais, nem tampouco existirão homens; todos serão reconduzidosa um estado de pura espiritualidade («Vós sereis deuses; vós sois todosfilhos do Altíssimo»). Outra queda, e a criação de novos mundos, são umapossibilidade com que se deve contar. Aqui notamos a influência do con-ceito grego da natureza cíclica da história.

No sistema de Origenes, idéias tipicamente platônicas eram combina-das com a tradição cristã. Alguns aspectos deste sistema eram de natu-

reza completamente helenística, e assim não têm qualquer relação com aproclamação bíblica. Isto se dá, por exemplo, com a idéia que o mundointeligível emanou da divindade, que todas as coisas serão restauradas eque cessará a existência de tudo que é material e físico. Em outros casos,a tradição bíblica é preservada fielmente. Origenes, no entanto, fez issomuitas vezes, associando estes dois pontos de vista tão intimamente que éimpossível distinguir o elemento cristão do helenístico. O método de Orígenes desdobrouse num padrão uniforme e sistemático de pensamentoque era tanto cristão como helenístico. O conceito de pedagogia, por exem-

plo, é idéia grega, mas Origenes o usou ao mesmo tempo para exprimirsuas convicções cristãs. Deliberadamente decidiu apresentar uma descri-ção uniforme do conteúdo da regra da fé e, ao mesmo tempo, fornecer umaresposta às questões filosóficas sobre a vida, que eram atuais em suaépoca.

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CAPITULO 6

MONARQUIANISMO: O PROBLEMA TRINITÁRIO

Durante os últimos anos do segundo século, surgiram duas correntesteológicas incomuns, recebendo ambas a mesma designação: monarquianismo. Ambas causaram sérios conflitos dentro da igreja, e ambas foramafinal rejeitadas como sendo heréticas. Essa luta, que continuou durantea maior parte do terceiro século, teve influência significativa no desenvol-

vimento da história do dogma. Ainda se fazia notar quando a igreja deuforma à doutrina da Trindade. Os conceitos rejeitados naquela época ser-viram de protótipos para muitas aberrações e heresias semelhantes atravésdos séculos, por exemplo, o ponto de vista unitário, que aflora sempre denovo na história da teologia como interpretação racionalista do cristianismo.

O conceito «monarquiano», do qual estas duas escolas tomam seunome, apareceu nos escritos de Tertuliano, que o usou com referência àunidade de Deus. O monarquianismo negava o conceito trinitário, pois sus-tentava que ele se opunha à fé no Deus único. Seus adeptos repudiavama idéia da «economia», segundo a qual Deus, que certamente é um, reve-louse de tal maneira que apareceu como Filho e como Espírito Santo.

A rejeição monarquiana das três pessoas na Divindade sofreu influên-cia do conceito grego de Deus, que elevava Deus acima de todas as con-siderações materiais, inclusive mudança e diversidade. Por esse motivo,o ponto de vista grego era incapaz de aceitar a reivindicação que Deusapareceu e agiu neste mundo. Sempre que os homens repudiaram o con-ceito da divina «economia», isto é, a distinção entre as pessoas da Divin-

dade condicionada pelo plano de salvação, o pressuposto tem sido o con-ceito deísta de Deus, em que a doutrina bíblica de Deus é substituída poruma idéia abstrata de Deus.

O monarquianismo, portanto, possuía um pressuposto comum e umaidéia básica comum: a dificuldade de combinar a fé no Deus único coma fé cristã no Pai, Filho e Espírito Santo. Visto não se satisfazerem com asolução proposta pela doutrina do Logos, nem com o ensinamento sobreas três Pessoas (hipóstases), nem com o conceito de «economia», procu-raram novos caminhos para resolver o problema — em cuja tentativa eli-

minaram elementos essenciais da fé cristã e chegaram a uma posição ra-cionalista ou docética.

Em certo sentido, o termo «monarquianismo» é designação artificial.Não sugere um ponto de vista uniforme; indica, em vez disso, uma carac

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terística mantida em comum por duas correntes de pensamento que sur-giram mais ou menos ao mesmo tempo. Na maioria de seus aspectos, estasduas correntes de pensamento eram diametralmente opostas.

Uma forma de monarquianismo era denominada dinâmica (ou adopcionista), a outra era chamada modalista.

MONARQUIANISMO DINAMISTA

O primeiro representante desta corrente foi o curtidor Teodoto, quechegou a Roma de Bizâncio no ano 190 como resultado de uma persegui-ção. Opunhase à cristologia do Logos e, em geral, negava a divindade deCristo. Em vez disso, acreditava ser Cristo mero homem (a posição ebionita). Nasceu de virgem, dizia Teodoto, mas apesar disso era simples ho-

mem. Era superior aos demais homens apenas com respeito a sua justiça(Tertuliano, Adversus omnes haereses, 8). Mais especificamente, Teodotoconcebeu a relação entre Cristo e o homem Jesus do seguinte modo: Jesusvivera como os demais homens; por ocasião de seu batismo, contudo, C ris-to veio sobre ele como um poder e estava ativo dentro dele a partir de en-tão. A crença que o elemento divino em Cristo era um poder outorgado aJesus, em seu batismo, dava ao monarquianismo «dinamista» seu nome.Consideravase Jesus um profeta que não se tornou Deus, embora esti-vesse equipado com poderes divinos por algum tempo. Só se uniu a Deus

depois de sua ressurreição. Teodoto foi excomungado pelo bispo Vítorde Roma.

O mais destacado defensor do monarquianismo dinamista foi Paulode Samósata, bispo de Antioquia por volta de 260. Seguiu nas pegadas datradição dos ebionitas e de Teodoto, e ensinou que Cristo era apenas umhomem dotado de poderes divinos. Não rejeitou a idéia do Logos, masem sua concepção, o Logos era identificado com razão ou sabedoria, nosentido que estas qualidades podem ser atribuídas a um homem. Segundoele, o Logos não era uma hipóstase independente. A sabedoria de Deushabitou no homem Jesus, mas apenas como poder divino; não formou pes-soa independente com ele. O elemento pessoal existente era apenas o dohomem Jesus. Com essa teoria, Paulo repudiou a doutrina de Tertulianosobre o Logos como persona e a doutrina de Orígenes sobre o Logos co-mo hipóstase independente.

Paulo de Samósata foi declarado herético por um sínodo em Antio-quia no ano 268. Seu ponto de vista era unitário: «O Filho» foi simpleshomem, dizia, e o Espírito Santo era a graça derramada nos apóstolos.

Essa interpretação racionalista da fé cristã em Deus foi o primeiro exem-plo claramente formulado de um ponto de vista que apareceria de muitasformas diferentes. Em tempos mais recentes apareceu no socinianismo, bemcomo na neologia e em certos ramos da teologia liberal.

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MODALISMO

A segunda forma de monarquianismo apareceu, em primeiro lugar, naÁsia Menor, mas Noeto e seus discípulos a levaram a Roma. Foi aí quePraxeas viveu, o representante modalista contra quem Tertuliano escreveu.

O principal expoente desta escola foi Sabélio, qüe ensinou em Roma, co-meçando por volta do ano 215.

Noeto não aceitava o conceito «econômico» com respeito à doutrinada Trindade; nem aprovava a cristologia do Logos e as tendências subordinacionistas implícitas nela. Para Noeto, apenas o Pai é Deus, e emboraesteja oculto à vista do homem, manifestouse e se fez conhecer segundoo seu beneplácito. Deus não está sujeito a sofrimento e morte, mas podesofrer e morrer se ele assim o quiser. Ao dizer isto, Noeto procurou res-saltar a unidade de Deus. O Pai e o Filho não são apenas da mesma es-

sência ; são também o mesmo Deus sob nome e forma diferentes. Noetonegouse a diferenciar entre as três pessoas da Divindade. Como ele en-tendia o problema, podiase dizer tão bem que o Pai sofreu como dizer queCristo sofreu. Praxeas atenuou um pouco esta opinião; dizia que o Paisofreu com o Filho — mas sua posição também foi rejeitada. Tertulianoa cognominou «patripassianismo».

Mais do que qualquer outro homem, foi Sabélio quem deu forma àconcepção modalista. Afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sãoum; são de uma substância, isto é, podem ser diferenciados um do outroapenas pelo nome. Tentou descrever sua posição de várias maneiras. As-sim como o homem compõese de corpo, alma e espírito (por exemplo),assim também há três facetas na essência divina; ou então, as três pes-soas relacionamse assim como o sol, sua luz e seu calor estão relaciona-dos entre si. O Pai é o sol, enquanto o Filho é o feixe de raios luminosose o Espírito é o poder aquecedor que procede do sol. O Filho e o Espíritosão apenas as formas que a Divindade assumiu quando apareceu no mundo(no período de sua «expansão»). Atribuise a Sabélio a frase : «Deus, com

respeito à hipóstase é um, mas foi personificado na Escritura de várias ma-neiras segundo a necessidade do momento» (Bas ílio , Epístola 214). Presu-miase, pois, que Deus apareceu em formas diferentes em épocas diversas,primeiro de' modo geral na natureza, então como Filho, e finalmente comoEspírito Santo. É desta concepção que o modalismo recebeu seu nome:as três pessoas são três diferentes modos (modi) em que o mesmo Deusse revelou. É característico de Sabélio que não apenas cria ser a subs-tância divina uma só; também acreditava que as três pessoas da Divinda-de são uma e a mesma.

O que Sabélio dizia sobre diferentes formas de revelação mostra se-melhanças com o conceito «econômico» da Trindade, mas diversamente de-le ensinava (Sabélio) que o Filho e o Espírito apareceram um depois do ou-tro em épocas diferentes. Deus não é Pai, Filho e Espírito ao mesmo tempo.Sabélio também se negava a distinguir entre as pessoas; não há Trindade

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real. No conceito «econômico» julgavase que as três formas de revelaçãosão hipóstases independentes. Em oposição ao monarquianismo dinamista,o modalismo ressaltava enfaticamente o fato que o Pai e o Filho são umcom respeito a sua substância. Como resultado, no entanto, o modalismoera incapaz de fazer justiça à humanidade de Cristo. Encontramos aqui

como no monarquianismo dinamista, a tendência racionalizante na qual arevelação é substituída pela especulação metafísica. O modalismo — ousabelianismo, como é freqüentemente denominado — foi rejeitado como he-rético quando as doutrinas de Sabélio foram condenadas em 261.

A ATITUDE DA IGREJA

A doutrina da igreja opôsse ao monarquianismo de modo especiafnos pontos seguintes: a doutrina da consubstancialidade do Filho com o 

Pai (contra o dinamismo), a doutrina das três pessoas da Divindade (contrao modalismo), e a doutrina do nascimento do Filho na eternidade (contraambos).

O dinamismo ou negava a divindade de Cristo ou a interpretava comomero poder que foi outorgado ao homem Jesus. Os teólogos alexandrinos(e Tertuliano também) descreviam a divindade de Cristo em termos de suaconsubstancialidade com o Pai. Segundo Clemente e Orígenes, o Logosemanou da Deidade e é, portanto, da mesma substância (homooúsios) do Pai. Conforme Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são da mesmasubstância.

O modalismo rejeitou a distinção entre as pessoas e identificava oFilho com o Pai, e o Espírito com o Filho e o Pai. Tertuliano, com a ajudada doutrina do Logos, desenvolveu o conceito das três pessoas, que nãosão apenas formas de revelação mas três hipóstases independentes.

Ambas as espécies de monarquianismo deram à doutrina de Cristosentido racionalista: num caso, Cristo é simples homem; no outro, é ape-nas uma forma em que Deus se revelou a si mesmo. A preexistência do

Filho é negada por ambos. O Filho não surgiu como entidade independen-te até o aparecimento de Cristo . E enquanto a teologia subordinacionistasimplesmente ensinava que o Logos preexistia dentro da essência divinauna, como a «razão» de Deus, Orígenes desenvolveu sua doutrina do nas-cimento do Filho na eternidade: o Filho procedeu do Pai na eternidade eexistiu como Filho, como hipóstase independente, antes de todos os tem-pos.

Entre os que se opuseram ao monarquianismo e contribuíram para o

desenvolvimento teológico dentro da igreja no final do terceiro século en-contramse Novaciano e Metódio.

Novaciano, presbítero em Roma por volta de 250, defendeu a posiçãoteológica de Tertuliano. Ressaltou, de um lado, a divindade de Cristo e o

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*3to que é consubstanciai com o Pai (contra o dinamismo), de outro, a ver-dadeira humanidade de Cristo e a distinção entre as pessoas na divindade(contra o modalismo).

Metódio de Olimpo (m. 311) continuou na tradição teológica de Orígenes, mas rejeitou suas teorias sobre a criação eterna, a preexistência da

alma, e a restauração de todas as coisas.

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CAPÍTULO 7

O ARIAN ISMO : O CONCILIO DE NICÉ IA

O desafio do monarquianismo retornou de forma mais aguda nas vioentas controvérsias eclesiásticas do quarto século. Foi então que a amea-

ça do arianismo foi combatida e que a fórmula trinitária da igreja foi esta-belecida nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381).

Há também uma conexão puramente histórica entre Ario, o heréticoue provocou os maiores conflitos do século quarto, e o monarquianismoc:namista. Ario, presbítero em Alexandria por volta de 310, foi discípulode Luciano de Antioquia, que por sua vez, era seguidor de Paulo de Samósata.

Assim como os monarquianos, Ario partia de um conceito filosófico

de Deus. Não era possível a Deus conferir sua essência a qualquer outro,em virtude do fato de ser uno e indivisível. Não se pode conceber que o_ogos ou o Filho pudesse ter chegado a existir a não ser por um ato decriação. Desse modo, na opinião de Ario, Cristo não podia se r Deus nosentido pleno do termo; devia, em vez disso, fazer parte da criação. Co" io   resultado, Ario considerava Cristo como «ser intermediário», menos docue Deus e mais do que homem. Também dizia ser Cristo criatura, tendosido criado ou no tempo ou antes do tempo. Ario, portanto, negava a pre-existência do Filho em toda a eternidade, e lhe conferia atributos divinos

apenas em sentido honorífico, baseado na graça especial que Cristo rece-bera e a justiça que manifestou. «O Filho não existiu sempre, pois quandotodas as coisas emergiram do nada e todas as essências criadas chega-ram a existir, foi então que também o Logos de Deus procedeu do nada.Houve um tempo em que ele não era (een pote hóte ouk een), e não exis-tiu até ser produzido, pois mesmo ele teve um princípio, quando foi criado.Pois Deus estava só, e naquele tempo não havia nem Logos nem Sabedo-ria. Quando Deus decidiu criarnos, produziu, em primeiro lugar, alguémque denominou Logos e Sabedoria e Filho, e nós fomos criados por meio

dele» (Atanásio, Orationes contra Arianos, I, 5).O próprio bispo de Ario, Alexandre, voltouse contra ele e o exco-

mungou por motivo de heresia por volta de 320. O conflito em breve alas-trouse por todo o Oriente, e Ario recebeu o apoio de Eusébio de Nicomé

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dia, entre outros. Em virtude do fato que este conflito punha em risco aunidade da igreja toda e, ao mesmo tempo, a própria coesão do ImpérioRomano, o imperador Constantino resolveu ocuparse com ele numa ten-tativa para decidir a questão. Em primeiro lugar, enviou seu bispo da corte,Hósio, a Alexandria para agir com mediador e, quando esse estratagema

fracassou, convocou um concílio geral para reunirse em Nicéia no ano 325.Bispos de todas as partes do Império foram convidados a participar.

Três diferentes pontos de vista foram apresentados no Concílio deNicéia. Havia, em primeiro lugar, um pequeno grupo de arianos puros (che-fiado por Eusébio de Nicomédia). Em segundo lugar, havia os que se opu-nham ao arianismo, entre os quais os mais destacados eram o bispo Ale-xandre de Alexandria e seu diácono Atanásio. O acima mencionado Hósiode Córdova também pertencia a este partido. Havia ainda um grupo inter-mediário, representado por Eusébio de Cesaréia, entre outros. A fórmula

que o concílio finalmente aceitou foi apresentada por ele. Mas, depois deaprovada, esta fórmula foi alterada de modo a tornarse mais especifica-mente antiariana. Foi assim, por exemplo, que a expressão homooúsios (damesma substância) foi inserida na fórmula mediante intervenção de Hósio.Fezse isto a fim de ressaltar a oposição a Ario. A fórmula nicena foi es-truturada, tendo como base principal um símbolo então em voga. É possívelque este símbolo tenha sido a fórmula batismal então usada em Cesaréia,à qual foram adicionadas novas facetas, condicionadas pela situação polê-mica. A adição final foi um anátema contra todos os ensinamentos de Ario.O assim chamado Credo Niceno não é idêntico à fórmula aceita no Con-cílio de Nicéia, mas recebeu sua forma final antes do fim do quarto século.Foi aprovada pelo Concílio de Constantinopla (381) e pelo Concílio de Calcedônia (451). O Credo Niceno também se baseou em fórmula batismalmais antiga, e inclui várias das expressões antiarianas encontradas na de-cisão de Nicéia.

A oposição a Ario tinha como motivos sua doutrina de Deus e suadoutrina de Cristo. Duas críticas especiais foram dirigidas contra Ario: (1)

introduziu idéias politeístas e a adoração à criatura; (2) destruiu a base dasalvação por negar a divindade de Cristo.

Ario colocou o Logos na categoria dos seres criados. Por também julgar que o Logos devia ser adorado como ser divino, era possível criticarArio por introduzir idolatria. A criação foi colocada lado a lado com o  Cria-dor e adorada como divina. Se Cristo é diferente de Deus, mas apesardisso é Deus, isto implica no culto a dois deuses. Ario também falou deoutros seres semidivinos.

Cristo, de acordo com Ario, era um ser criado cuja existência come-çara no tempo, ou antes do tempo. Rejeitou com isso a doutrina da divin-dade de Cristo e seu nascimento na eternidade. O Cristo proclamado porArio não podia ter criado o mundo; nem podia ele ser o Senhor da criação.A cristologia de Ario, deste modo, repudiava a obra da redenção de Cristo,

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O ARIANISMO O CO NCILIO DE NICÉIA

5  sto tornouse o principal ponto em debate entre Ario e seus adversários.Se Cristo não é da mesma substância de Deus Pai, não possui nem poderansm itir o pleno conhecimento de Deus. E a salvação consiste nisto, en*'e outras coisas, que Cristo nos transmitiu este verdadeiro conhecimentoze  Deus. Se ele não é um com Deus, não podia fazêlo.

Se Cristo não é o Senhor da criação, também não podia realizar acbra da redenção. Se ele não é Deus, não pode tornar o homem divino.O verdadeiro sentido da salvação é que traz vida e imortalidade ao homem.0 Filho de Deus em forma humana podia ter derrotado a morte, ter feitoexpiação pela culpa dos homens, e restaurado o homem à vida e à imor-talidade apenas sendo ele da própria essência de Deus.

Esta cristologia, que foi laboriosamente definida durante a luta con-tra o arianismo, foi resumida na fórmula de Nicéia, acima de tudo nasTases sobre Cristo : «o un igénito ... gerado por seu P a i . . . Deus de Deus,_jz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de

 jma só substância com o Pai.» O anátena final contra Ario continha asoalavras apropriadas: «Aqueles que dizem que houve um tempo quandoe!e não existia, e antes de ser gerado ele não existia, e que foi criadodaquilo que não existia, ou dizem que ele é de outra natureza ou essên-cia, ou dizem que o Filho de Deus é criado ou mutável, todos estes sãocondenados pela igreja universal».

Defensor extremamente zeloso do ponto de vista niceno foi Marcelo

de Ancira (m. 374). Ensinava que o Logos, que tinha a mesma substân-cia de Deus, só podia ser chamado «filho» a partir de sua encarnação.Também acreditava que a filiação de Cristo cessaria em dado momento,e que o Logos seria então reincorporado ao Pai. As palavras «cujo reinonão terá fim» foram inseridas no Credo Niceno a fim de contrabalançar adoütrina de Marcelo sobre este ponto. Defendia um conceito «econômico»da Trindade com sua idéia da «expansão» da divindade ao Filho e ao Es-pírito. Os arianos, que se opuseram a ele, criticaramno por ser sabeliano, mas em contraste com os modalistas, traçava linha demarcatória ní-tida entre o Logos e aquele do qual o Logos procedia.

Um dos discípulos de Marcelo, Fotino de Sírmio (m. 376), tirou con-clusões da telogia de Marcelo que faziam parecer que (Fotino) apoiavaa cristologia adopcionista ou dinamista. Assim aconteceu que a literaturapolêmica mais antiga freqüentemente se referia ao «fotinianismo» comodesignação para este ponto de vista. Fotino considerava o Logos idên-tico ao Pai, enquanto Cristo era considerado filho de Maria — e nadaalém disso.

Longas controvérsias seguiram o Concílio de Nicéia (325). No início,a decisão de Nicéia encontrou forte oposição. O grupo ariano original, quesubseqüentemente adotou posição intermediária, chefiado por Eusébio deNicomédia, cresceu muito em Influência. Mesmo o imperador foi conquis

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tado para este ponto de vista; Atanásio foi forçado a abandonar sua séepiscopal. Em meados do século IV (no Sínodo de Ancira, 358), novo par-tido mediador, que deriva seu nome do termo grego homoioúsios (de subs-tância semelhante), apareceu. Mas vários teólogos, ativos na parte finaldo século, entre os quais se destacam os assim chamados «capadocianos»

(sobre os quais ainda se falará mais tarde), defenderam energicamente adecisão de Nicéia e mesmo a desenvolveram mais ainda (a ortodoxia protonicena). Alguns dos proponentes da fórmula «substância semelhante»adotaram esta posição, da qual não estavam muito afastados mesmo an-tes de tomarem tal passo. E assim aconteceu que o terreno foi prepara-do para a vitória final no Concílio de Constinopla em 381 (posteriormen-te considerado o Segundo Concílio Ecumênico), onde a decisão de Nicéiafoi confirmada novamente.

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CAPÍTULO 8

ATANÁSIO: A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRIN ITÁRIA

O mais zeloso defensor da fé, no conflito da igreja contra o aria-nismo e o poder imperial que apoiava os heréticos, por longo tempo, foiAtanásio, cujo nome foi mencionado em conexão com o Concílio de Nicéia. Depois da morte de Alexandre em 328, Atanásio tornouse patriarca

de Alexandria. Mas como resultado de seu firme apoio à decisão de Nicéia, foi alvo de uma perseguição após outra. Teve de fugir de sua séepiscopal nada menos de cinco vezes, e passou ao todo quase 20  anosno exílio. Quando morreu em 373, a controvérsia ariana ainda estava emandamento, mas como resultado de suas contribuições, o caminho estavaaberto para a vitória final da teologia nicena no Concílio de Constantino-pla de 381.

Entre os escritos de Atanásio, nossa atenção se volta especialmentepara os seguintes: Oratio Contra Gentes e Oratio de incarnatione Verbi

(escrito por volta de 318), e sua obra magna Orationes contra Arianos(escrita por volta de 335 — ou, de acordo com outra teoria, em 356 emais tarde). As Epistolas de Atanásio também documentos teológicos sig-nificativos, especialmente sua carta a Serápion.

Em contraste com os teólogos alexandrinos anteriores (Clemente, Orígenes), Atanásio não inseriu a fé cristã num sistema filosófico fechado.Pelo contrário, rejeitou os recursos da filosofia no desenvolvimento dadoutrina cristã; a Bíblia era sua única fonte. Para ele, como para Cle-

mente, a regra da fé e o conteúdo da Escritura eram idênticos. A tradição,segundo Atanásio, só tem autoridade quando está de acordo com a Es-critura. Como ele faz ver claramente em sua carta pascoal de 367, o câ-none neotestamentário é definitivo.

Do que se disse acima, depreendese claramente que Atanásio operoucom um princípio bíblico coerente. Ao mesmo tempo, insistiu que a Bí-blia não devia ser interpretada legalisticamente; antes deve ser entendidaà luz de seu próprio centro, que é Cristo e a salvação operada por ele.O conceito bíblico de Atanásio nos lembra as palavras de Lutero: «O

que proclama a Cristo é palavra de Deus.»Na luta contra o arianismo, Atanásio desenvolveu a doutrina eclesiás-

tica da Trindade e do Logos. Alguns de seus principais argumentos sãoos seguintes: (1) Se Ario está certo quando diz que Cristo é apenas um

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ser criado, e não da mesma substância do Pai, a salvação não seria pos-sível. Pois apenas Deus pode salvar, ele desceu até nosso nível a fimde nos elevar até ele. (2) A doutrina de Ario implica no culto à criaçãoe na fé em mais de um deus.

Como o primeiro argumento demonstra claramente, Atanásio procu-

rava combinar a doutrina da Trindade com a salvação operada por Cris-to, que, na sua opinião, é o centro de toda a teologia. Em vista disso,continuava a ressaltar que a heresia ariana não apenas atingia pontos iso-lados de doutrina; mas subvertia toda a fé cristã. O estilo atomista oudoutrinário que muitas vezes caracterizava a teologia polêmica da épocade Atanásio não se encontrava em seus escritos.

Contudo, não podemos concluir — em analogia com o pensamentomoderno — que a doutrina do Logos só tinha significado para Atanásiono tocante ao conceito de salvação. Em sua opinião, esta doutrina era

simplesmente um dos fundamentos da fé cristã e, portanto, era a própriainsistência elementar da própria verdade que levava Atanásio a defendera doutrina nicena da Trindade contra o arianismo. O segundo argumentomencionado acima o evidencia.

Tal como Irineu, Atanásio descreveu um plano específico de salva-ção, começando com a criação, indo até ao cumprimento. Esta ordo salutis forneceu o contexto para sua polêmica contra Ario, do mesmo modo co-mo Irineu desenvolveu sua polêmica contra os gnósticos, em linha de pen-samento correspondente.

A salvação e a criação pertencem juntas, segundo a opinião de Ata-násio. Foi o próprio Criador onipotente que realizou a obra da salvação,para que a criação caída pudesse ser restaurada a seu destino original.Isto significa que o objetivo de Deus com a criação está se realizando eque uma nova criação está principiando a existir. Isto se refere, de modoespecial, ao homem. O homem foi criado «à imagem de Deus», mas co-mo resultado da invasão do pecado, afastouse de Deus e foi entregue àmorte e à corrupção. A salvação foi conseguida quando o Filho de Deus,

o Logos, pessoalmente envolveuse na humanidade e com isso reconduziuo homem à sua semelhança com Deus. «Isto não poderia ter acontecido,no entanto, se a morte e a corrupção não tivessem sido destruídas. Por-tanto, naturalmente, ele assumiu um corpo mortal, para que a morte pu-desse ser destruída nele, afim de que o homem criado à imagem de Deus pu-desse ser renovado. Apenas aquele que veio na imagem do Pai estava àaltura desta tarefa.» (Oratio de incarnatione Verbi, 13, 89).

O sentido principal da obra salvadora de Cristo encontrase nisto, quea maldição do pecado e da morte foi retirada. Isto aconteceu quando o

Logos, que é o próprio Filho de Deus, tomou sobre si mesmo as condi-ções da existência humana, levou sobre si os pecados dos homens e su-

 jeitouse à morte. Foi assim que estes poderes foram vencidos, pois, emvirtude do fato que Cristo é da essência de Deus, não foram capazes de

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derrotálo. Ele se libertou das cadeias do pecado e da morte, e assim fazendo, também libertou toda a natureza humana destes poderes. Foi comesta finalidade que o Filho de Deus tornouse homem. Se o Logos não setivesse realmente tornado homem, não poderia ter libertado os homens,não poderia ter vencido o poder do pecado e da morte que mantinha ca-

tiva a natureza humana.Em segundo lugar, a obra salvadora de Cristo implica nisto, que o

homem, que foi libertado do pecado e da morte mediante a expiação, po-de se r renovado e deificado. O mesmo Cristo que derrotou a morte, en-viou seu Espírito, por intermédio de quem recria o homem e o capacita aparticipar na vida divina que foi perdida com a queda. O homem, destamaneira, chega a possuir imortalidade e a viver novamente como o fize-ra no início — à imagem de Deus. Esta deificação do homem é o alvoda salvação. A forte ênfase neste aspecto da salvação, ao invés de no

perdão dos pecados, era típica dos Pais da Igreja Antiga. Podese dizer,todavia, que Atanásio, mais do que outros, também enfatizou a necessidadede perdão; reconheceu que o pecado trouxe a culpa e que a obra expia-tória de Cristo foi sacrifício pelo pecado. Mas, acima de tudo, a salvaçãoé associada à imortalidade. Pecado e morte, afinal, andam juntos. Se opecado não tivesse trazido a morte, diz Atanásio, poderia ter sido facil-mente removido pela penitência. Mas a vista do fato que o pecado re-sultou em mortalidade, a salvação só poderia ser obtida se a morte fossevencida. E assim, visto o poder do pecado ter sido derrotado, a obra do

Espírito Santo é a de dar vida ao homem e tornar o homem semelhantea Deus. Isto só é possível se Cristo realmente é da mesma essência deDeus. Por ser ele mesmo Deus, deificou primeiro sua própria natureza hu-mana, e como resultado disto, pode fazer o mesmo pelos que crêem nelee que participam, pela fé, de sua morte e ressurreição.

Em vista disso, a mensagem da salvação como ensinada por Ario, quedizia ser o Logos criatura e não o próprio Deus, tinha de ser repudiada.«A verdade revela que o Logos não é uma das coisas criadas; ao invés

disso, é seu Criador. Pois ele tomou sobre si o corpo criado de homem,para que ele, tal como um Criador, pudesse renovar este corpo e deificálo em si mesmo, de modo que o homem, em virtude da força de sua iden-tificação com Cristo , pudesse entrar no reino do céu. Mas o homem, queé parte da criação, jamais poderia tornarse como Deus se o Filho nãofosse verdadeiramente D e u s .. . Igualmente, o homem não poderia ter sidolibertado do pecado e da condenação se o Logos não tivesse tomado sobresi nossa carne natural, humana. Nem poderia o homem terse tornado co-mo Deus se o Verbo, que se tornou carne, não tivesse vindo do Pai —

se não fosse seu próprio Verbo verdadeiro.» (Orationes contra Arianos, II, 70).Atanásio também salientou outra faceta da obra da redenção: Cristo,

dizia ele, veio revelar que é o Filho de Deus, que reina sobre toda a cria-ção; assim fazendo, restaurou o verdadeiro culto a Deus, que o homem em

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sua ignorância e cegueira tinha esquecido. Em uma passagem Atanásio re-sume a obra de Cristo da seguinte maneira: «O Salvador encarnado re-velou a nós sua bondade de duas maneiras: pelo fato que removeu o agui-lhão da morte e nos renovou, e pelo fato que ele, que em si mesmo estáoculto e é invisível, revelouse através de sua obra para que o possamos

conhecer como o Logos do Pai, o Governante e Rei de todo o universo.»(Oratio de incarnatione Verbi, 16).

A obra de Cristo foi manifestação de seu poder, demonstração dofato que ele é o Senhor de todas as coisas, enquanto ídolos e demôniossão o mesmo que nada. A idéia que Cristo restaurou o verdadeiro cultoa Deus, revelandose a si mesmo como o verdadeiro Deus, foi (como jáse viu) também um dos principais argumentos empregados no conflito con-tra o arianismo. Ario introduzira um culto de tipo pagão, com fé em váriosdeuses e o culto à criação em lugar de ao Criador. Isto decorria de sua

negação da divindade de Cristo e da afirmação que o Logos é criatura.Em sua doutrina da Trindade, .que se dirigia especialmente contra o

arianismo, Atanásio salientava de modo enfático que o Filho é da mesmasubstância do Pai. Esta convicção não era apenas expressa pela palavrachave da decisão de Nicéia, homooúsios; Atanásio aceitava outros termostambém, inclusive o vocábulo às vezes suspeito, homoios. A doutrina deque o Filho é consubstanciai com o Pai fundamentavase, antes, nos pró-prios fatos. O Logos não é parte da criação; em vez disso, compartilhava

a própria divindade do Pai. Atanásio também ultrapassou a concepção subordinacionista anterior. O Logos não é outro Deus, e não se situa abaixodo Pai, como se r espiritual emanado ao Pai. O Pai e o Filho são umaDeidade. O Pai é o que define a si mesmo e gera; o Filho é aquele queassim é gerado. O Pai é, em si mesmo, a essência divina; o Filho é Deusem atividade externa, aparece nas obras de Deus. «O Filho não é outroD e u s .. . Pois se ele também é um outro, ao ponto de ter sido gerado,àpesar disso é o mesmo que Deus; ele e o Pai são um mediante a natu-reza divina única que compartilham em comum, e através da identidade da

única Divindade.» (Orationes contra Arianos, III, 4).Atanásio não falou de «pessoas» na Divindade; em lugar disso arti-

culava a relação entre o Pai e o Filho de modo diferente. Mantinha oconceito PaiFilho, ou falava da diferença entre ambos como condicionadapela atividade de Deus. O Pai é a fonte, o Filho é Deus em sua atividadeexterna. Há então ainda o Espírito Santo, que conduz a obra de Deus aoindivíduo. Atanásio ensinava que o Espírito Santo é, também, «da mesmasubstância» . É parte da mesma essência divina e não um espírito criado.O homem tornase como Deus através da operação do Espírito. A reno-vação não seria ato genuíno de salvação se o Espírito Santo não fosseda própria essência de Deus. A atividade externa do Deus Trino não estádividida; o que quer dizer que o Pai, o Filho e o Espírito Santo todos tra-balham juntos. Foi em sua carta a Serápion que Atanásio, pela primeira

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vez, desenvolveu o pensamento que o Espírito Santo é da mesma essênciado Pai e do Filho. Esta foi uma de suas maiores e mais originais c o n t r i -

buições à teologia.

OS TRÊS CAPADOCIANOS

Embora a apresentação de Atanásio da ortodoxia nicena fosse fun-damental a seu desenvolvimento subseqüente, suas formulações não foramseguidas estritamente na doutrina da Trindade sancionada pela igreja. Pa"a esta, idéias também foram tomadas de (entre outros) Orígenes e Tertuano — por exemplo, a doutrina das três pessoas na divindade. Mas as

convicções de Atanásio nesta questão não foram esquecidas. Os que le-varam avante sua obra, e fizeram mais que outros quaisquer para dar àdoutrina da Trindade sua forma final, foram os assim chamados «três capa-docianos».

Basílio, o Grande (m. 379, arcebispo de Cesaréia) foi o principal ar-tífice da assim chamada teologia protonicena, que finalmente derrotou oarianismo. Seu irmão mais moço, Gregório de Nissa (m. por volta de 384),desenvolveu o mesmo ponto de vista ortodoxo de modo mais especulativo,e Gregório de Nazianzo (m. por volta de 390) interpretouo de maneira re-tórica em suas Orationes.

Foi em grande parte devido à influência dos três capadocianos quea teologia nicena finalmente triunfou como verdadeira posição média entreo arianismo e o modalismo. Além disso , a base dos desenvolvimentos pos-teriores, na teologia oriental, foi preparada nesta época. Os três capa-docianos foram mais especificamente «orientais» em sua teologia do queAtanásio. Isso se evidencia, por exemplo, no fato que interpretavam Ata-násio no espírito de Orígenes, bem como no fato que associaram a orto-doxia nicena à idéias da antiga escola de pensamento alexandrina.

Enquanto Atanásio salientava vigorosamente a idéia de «uma substân-

cia» e partia deste ponto para sua descrição da Trindade, os capadocianospartiam da idéia de «três pessoas distintas» e desenvolviam uma termino-logia que descreve tanto a unidade como a Trindade. Assim fazendo, ace i-taram a teologia grega anterior que concebia três pessoas em níveis dis-tintos no Ser Divino (Orígenes).

Foi nesta época que se fez uma distinção clara entre os dois con-ceitos expressos pelas palavras gregas ousía e hupóstasis. A primeira des-tas foi usada para indicar a natureza indivisível da essência divina, enquantoa outra foi colocada em justaposição à palavra prósoopon (pessoa). Ba-sílio ilustrou esta distinção da seguinte maneira: o conceito «homem» re-ferese ao que é comum a todos os homens. Mas homens individuais, taiscomo Paulo ou João, possuem características distintivas que os destacamde outros indivíduos. Tanto Paulo como João existem independentemente,

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mas também têm algo em comum: são homens; pertencem à categoria geralde «homem». Assim , enquanto compartilham a essência (ousía) comum, sãotambém pessoas individuais com existência independente (hupóstasis). Ahipóstase, portanto, é a forma especial de existência, as característicassuigeneris, pelas quais aquilo que é tido em comum recebe expressão

concreta. É aquilo que existe no indivíduo e em mais ninguém.Quando o conceito de hipóstase é empregado na doutrina da Trin-

dade, indicase por ele que as três pessoas possuem suas próprias qua-lidades e atributos peculiares, pelos quais se distinguem uma da outra eaparecem cada uma em sua forma especial de existência. Ao mesmo tem-po, todas participam da mesma essência divina. Esta apresentação da dou-trina da Trindade é geralmente resumida nas palavras: «uma essência, trêspessoas».

Quando perguntados sobre o que distingue as três hipóstases, oscapadocianos respondiam referindose à relação que existe entre elas . OPai é agénneetos (não gerado); o Filho é gerado pelo Pai; e o Espírito Santoprocede do Pai através do Filho (Gregório de Nazianzo, Orationes, 25, 16).Aquilo que caracteriza as pessoas, uma em relação à outra, também foidescrito com referência à atividade divina: o Pai é a fonte (aítios), o Filhoé o que realiza a obra (deemiourgós), e o Espírito é aquele que a completa(teleiopoiós). (Gregório de Nazianzo, Orationes, 28, 1).

O ponto em que os capadocianos foram além de Atanásio dizia res-

peito, em particular, à distinção entre ousia e hipóstase. Ao fazer esta dis-tinção, os capadocianos procuraram (com o auxílio de terminologia filosó-fica) descrever o que caracteriza a natureza divina e as três pessoas emsi, independentemente da atividade externa da Trindade. O único resultadodisso foi certo número de distinções formais que, à luz da fé cristã, pa-recem ser conseqüências necessárias . O que estes homens aí tentaramfazer foi elucidar o que vai além dos limites do conhecimento humano, eque,  portanto, não pode  ser exposto mais claramente.

AGOSTINHO E A DOUTRINA DA TRIND ADE

O CREDO ATANASIANO

No que tange à teologia oriental, os capadocianos chegaram a for-mular a doutrina da Trindade de modo mais ou menos definitivo. Desen-volvimento correspondente também ocorreu no Ocidente, em parte comoresultado da influência da teologia oriental. Agostinho, mais que qualquer

outro, deu forma definitiva à posição ocidental neste ponto, especialmenteem seu livro De Trinitate. A teologia de Agostinho forneceu a base paraa posição trinitária encontrada no Credo Atanasiano, o último dos três Cre-dos Ecumênicos.

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Os três capadocianos salientaram as três hipóstases em particular,e  seu principal problema era, pois, referente à unidade da essência divina.>sío caracteriza o ponto de vista oriental, com seu conceito mais estático,abstrato de Deus. O problema, naturalmente era este: Como pode todaa essência divina encontrarse em três existências distintas? Este proble-

ma fizera surgir a antiga teologia subordinacionista, e a contribuição doscapadocianos foi exatamente esta, que chegaram à posição de «uma substân-cia» (como fizeram Atanásio e o Credo Niceno) e, ao mesmo tempo, enfa-ticamente proclamaram a distinção entre as três pessoas.

Agostinho, que representa o ponto de vista ocidental, desenvolveusua posição trinitária com base na única essência divina. O que tentouesclarecer foi que a unidade divina é constituída de tal modo que incluias três pessoas, e que o caráter «trino» de Deus está implícito nesta uni-

dade. Descreveu a triunidade como relação internamente necessár ia entreas três facetas da única essênc ia divina. Isto, para Agostinho, era mistérioinefável, que o homem nesta vida jamais pode compreender inteiramente,muito menos descrever em termos conceptuais.

Mas Agostinho empregou analogias tomadas de realidades humanasnum esforço para demonstrar a relação correspondente de três com um,na mesma entidade. Certos fenômenos humanos, em especial a estruturada alma humana, foram usados para simbolizar (embora muito imperfeita-

mente) a realidade intertrinitária. Assim , Agostinho dizia, por exemplo, queo amor implica na relação daquele que ama com o objeto do amor. Istosugere uma relação entre os três seguintes: aquele que ama (amans), oque é amado (quod amatur), e o próprio amor (amor). Relação correspon-dente encontrase na divindade entre Pai, Filho e Espírito. O que é peculiara esta relação é que tanto sujeito como objeto estão dentro da mesmaessência indivisível. O Pai gera o Filho, o Pai ama o Filho, etc. De acordocom Agostinho, há algo análogo a isto na vida espiritual do homem. Aprópria ação de observar envolve três elementos que estão necessaria-

mente relacionados entre si: há o objeto observado (res), a própria visão(visio) e a intenção da vontade (intentio voluntatis). A mesma relação sediz ex istir entre pensamento, intelecto e vontade no ato de conhecer. Oconteúdo do pensamento está presente, de alguma maneira, na alma; este,por seu turno, é considerado e recebe forma pela habilidade intelectual dapessoa, que se volta para o objeto pelo poder da vontade (memória —interna visio — voluntas). A vida da alma também compreende uma «tríade»:memória, inteligência e vontade. E aqui podemos ver a mesma unidadeentre sujeito e objeto que Agostinho encontrou dentro das relações inter

trinitárias. A alma está ciente de si, possui conhecimento de si, e ama asi; em outras palavras, o objeto de sua atividade se encontra, em parte,dentro de si. É, simultaneamente, sujeito e objeto em ações autoconscientese de amor a si mesma.

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Agostinho não diz que estas analogias são perfeitas — que esclare-cem todos os mistérios relacionados com o conceito trinitário. Em grandeparte, sua apresentação foi desenvolvida na  forma  de especulações sobrea realidade intertrinitária. Foi assim que surgiu nova etapa de desenvolvi-mento que ultrapassou a concepção «econômica» da Trindade que fora a

forma original da doutrina dos «três em um». Agostinho salienta, energi-camente, a unidade do Ser Divino e tentou mostrar como a Trindade estáimplícita na unidade e viceversa . Esta convicção fundamental também seencontra no Credo Atanasiano que, na realidade, se baseia na teologia deAgostinho, embora, gradualmente, fosse revestido com a autoridade de Atanásio. Este credo é uma afirmação em forma de hino e, provavelmente, foicomposto durante o quinto ou sexto século, de certo por algum discípulode Agostinho. É bom sumário da doutrina da Trindade como foi formuladapela igreja antiga. O desenvolvimento do dogma cristão, como esboçado

até esta altura, constitui a origem deste credo, que, em sentenças brevese concisas, resume a posição da igreja alcançada durante as controvérsiastrinitárias e cristológicas.

Este Symbolum quicunque (como é denominado, devido a suas pala-vras iniciais) apresenta, em sua primeira parte, uma interpretação da dou-trina da Trindade: «E a fé católica é esta, que adoremos um único Deusna Trindade e a Trindade na Unidade; sem confundir as pessoas, nem di-vidir a substância.» A distinção entre as pessoas é ressaltada: «Pois uma 

é a pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo.» Igual-

mente o é a unidade da essênc ia divina: «Mas a divindade do Pai, do Fi-lho e do Espírito Santo é uma só: a glória é igual, a majestade coeterna.»Todas as três pessoas participam da essência divina e suas qualidades:♦ incriado» — «incomensurável» — «eterno». E ainda assim não são três se -res incriados, incomensuráveis e eternos; não há três Deuses ; mas há umúnico Deus. Cada pessoa deve ser reconhecida como Deus e Senhor, masisto não significa que há três Deuses ou três Senhores.

A fórmula seguinte descreve as relações existentes entre as pessoas:

«O Pai por ninguém foi feito, nem criado e nem gerado; o Filho provémapenas do Pai e não foi feito, nem criado mas gerado; o Espírito S an to .. .procede do Pai e do Filho.»

.segunda parte do credo trata da cristologia.

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CAPÍTULO 9

O PROBLEMA CRISTOLÓGICO

O problema real da cristologia se espelha nesta questão: Como serelaciona a divindade de Cristo com sua humanidade? Como pode aqueleque é verdadeiro Deus ser também homem ao mesmo tempo? Como po-dia viver sob condições humanas e aparecer em forma humana?

Perguntas deste teor brotaram já no período inicial da história da igreia, especialmente no conflito com os docetislas e na rejeição dos ebionitas*.^ * ^

As tendências heréticas, implícitas nessas escolas de pensamento, reap a"'^ «receram em novas formas durante as assim chamadas controvérsias cris "tológicas, que tiveram lugar de destaque no desenvolvimento do dogmaa partir de meados do guarto. século.

APOLINÁRIO

O fato que a questão cristológica reapar.ece e ssa época deve servisto dentro do contexto da rejeição do a confirmação da fór-mula Como pode o fato que o Logos é de uma só substân-cia com o Pai ser combinado com o fato que o Logos apareceu em formahumana? Esta foi a principal questão em foco nas discussões teológicasda época.

O homem que pela primeira vez propôs o problema nesta forma, emotivou o trabalho teológico posterior em busca de resposta, foi Apolinário de Laodicéia, que apareceu em cena algum tempo depois de meados

do quarto século. E, apesar de ser membro do «partido niceno», tratou doproblema cristológico de modo tal que foi repudiado pela igreja.

Apolinário não se satisfazia em aceitar a idéia que o Logos (isto é,Cristo) era, com respeito a sua natureza divina, da mesma substância doPai. O principal problema, como ele o via , era este : Como pode o homemconceber a existência humana de Cristo? Segundo Apolinário, a naturezahumana de Cristo tinha de possuir qualidade divina. Não fosse este o ca -so, a vida e a morte de Cristo não poderiam ter conquistado a salvação doshomens. Parece , pois, que Apolinário ensinava o seguinte: Deus em Cristo

foi transmutado em carne, e esta carne foi então transmutada_pê!.a naturezadivina. De acordo com esse ponto de vista, Oriatn nãn rp.nehp.n sua natu-reza humana, sua carne, da Virgem Maria: antes, trouxe consigo do céu,uma esoécie de carne c e le s t ia lO ventre de Maria simplesmente serviu de

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local de pagsagem. (C f. Schoeps, Vom himmlischen Fleisch Christi, 1951,p. 9 ss., e Kelly, Eariy Christian Doctrines, p. 294).

Apolinário, portanto, acreditava que Cristo tinha apenas uma naturezae uma hioóstase, Essa natureza é a do Logos, que em Cristo foi transmuítada em carne; Esta, por sua vez , assumiu uma qualidade divina ao mesmo

tempo. Apolinário combatia vigorosamente a idéia que os elementos divinoe humano se combinaram em Cristo, que o Logos simplesmente se reves-tiu da natureza humana e ligouse a ela de modo espiritual.

Uma das tendências características de Apolinário percebese na ma-neira como desenvolveu a idéia de como o Logos tornouse homem. Paraconseguilo, partia da distinção entre carne e espírito, ou entre corpo, almae espírito. O homem é constituído destes elementos, e é o espírito (ou al-ma racional) que torna o homem o que ele é — que fornece sua verdadeiraessência. A razão ou espírito de Cristo, não consiste de razão humana;é o Logos de Deus. Deus e homem, portanto, estão unidos em Cristo co-mo corpo e alma estão no homem, uma vez que a alma humana foi subs-tituída pelo Logos de Deus.

Essa união de Logos e carne tem como resultado que a carne é con-siderada carne divina ou celestial. Pois é o espírito ou razão que moldao físico de modo que, juntos formam uma natureza. Em Cristo, no entanto,segundo a opinião de Apolinário, esta uma natureza é do tipo divino.

É óbvio que Apolinário enfatizava a divindade de Cristo a ponto de

perder de vista sua verdadeira humanidade. Cristo , segundo Apolinário, nãopossui alma humanç. Ele só tem uma natureza, a natureza encarnada doLogos divino. Por causa deste ponto de vista, Apolinário não estava muitoafastado do antigo modalismo. Há traços de docetismo em sua teologia.

A oposição a Apolinário partiu especialmente dos capadocianos e daescola de Antioquia. No conflito contra ele, a oposição salientava que averdadeira humanidade de Cristo tem de significar que ele não só tinhaCorpo humano mas também alma. humana, pois corpo e alma juntos é que

formam a essênc ia da humanidade. Sem a razão humana, o homem não émais homem. Os acusadores de Apolinário também sentiam repulsa porsua afirmação que o próprin Deus é^ggrpgl ou que se submeteu ao sofri-mento,.

ANTIOQUIA E ALEXA N DR IA

A assim chamada escola de Antioquia opunhase tenazmente a Apoli-

nário. Seus mais destacados representantes foram Diodoro de Tarso (m.394), Teodoro de Mopsuéstia (m. 428) e Teodoreto. O famoso pregadorJoão Crisóstomo (m. 407) também pode ser incluído nesta lista, bem comoNestório, cujas doutrinas foram posteriormente rejeitadas como sendo he

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Os antioquianos, portanto, ressaltavam a diferença entre as duas na-turezas e insistiam que cada uma retinha suas próprias qualidades pecu-liares^ Havia uma natureza divina comoleta; a do Logos de Deus, e urrianatiirs7a humana completa. Ao mesmo tempo, entretanto, os primeiros an-tioquianos também afirmavam a unidade da pessoa. Este aspecto do pro-

blema cristológico foi o decisivo para a escola de Antioquia. Foi neste pon-to, por exemplo, que Nestório foi acusado de heresia. Seus predecesso-res tinham salientado o fato que Cristo é uma pessoa, com uma vontade,com uma única existência independente. «Não dizemos que há dois filhos;acreditamos corretamente que há apenas um Filho. Pois a distinção entreas duas naturezas deve ser sustentada incondicionalmente, e a unidade dapessoa mantida perpetuamente» (Teodoro, De incarnatione, 12).

No conflito que envolveu os antioquianos e Apolinário, refletiuse aconstante oposição entre as duas principais escolas teológicas do período,

uma em Antioquia e a outra em Alexandria. Essa oposição se fundamentavaem dois pontos de vista diferente^ no tocante a todo o campo da teologia.A escola de Antioquia jêfeíilítavá o aspecto histórico, rejeitando o uso dealegorias, e dava ênfase especial à existência terrena, humana de Jesus,seu desenvolvimento e sua historicidade; A escola de Alexandria, por suavez, foi profundamente influenciada pela filosofia grega, com sua ênfasenas realidades metafíáícaT, espiritu^s, divinâfe, bem como em sua nitidaantítese entre o divino e o humano. O elemento divino em Cristo foi sa-lientado a tal ponto que o elemento humano nem sempre era devidamentereconhecido.

Paralelos a estes dois pontos de vista podem ser encontrados emduas tendências diversas no Novo Testamento. A encarnação é descrita noEvangelho de João em termos de Cristo «se fazer homem» («o verbo se fezcarne», 1.14), e em Filipenses lemos que Cristo «assumiu a forma de servo,tornandose em semelhança de homens» (2 .7 ).

Na escola de Antioquia se procurou fazer justiça tanto ao elementodivino como ao histórico, humano, em Cristo . A união entre os dòis foidescrita como sendo de natureza moral, união de vontade. O crente, natu-ralmente, adora um Cristo — uma forma subjetiva de unidade. Realmente,há duas essências ou naturezas.

O ponto de vista alexandrino baseavase na distinção fundamental en-tre o divino e o humano, que coincide, naturalmente, com a atitude do idealism|>. A encarnação era apresentada como transmutação da Deidade na'natureza hyrn3r& Mas em virtude do fato que a essência divina é imutável,isto significa que a natureza humana foi elevada ao nível da divina, foi

^ ^ Aransmiitada ,^q   natureza divina. Concebida desta maneira, a união, julga-vase que ela não só abrangia atividade e vontade, mas a própria substân-cia. Era, em outras palavras, união substancial, física, em que as qualida-des da natureza humana desapareciam.

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NESTÓRIO E ÇIRILO •

A oposição entre os alexandrinos e os antioquianos foi a origem doamargo conflito que teve lugar entre Nestório e Cirilo no início do século

V. É preciso que se diga, no entanto, que política ec lesiástica e ambiçõespessoais também influíram consideravelmente. Alexandria competiu comAntioquia, e em especial com Constantinopla pelo domínio eclesiástico doOriente, e nesta luta pelo poder entraram também questões teológicas. OSínodo de Éfeso (431) decidiu em favor da teologia alexandrina, e Nestó-rio, que sustentava a posição contrária, foi declarado herege e condenadoao exílio. Uma vez feito isto, todo o partido nestoriano separouse do res-tante da igreja. Os nestorianos então organizaram sua própria igreja naPérsia, e se propagaram por toda a Ásia, mas estiveram condenados a uma

existência isolada. Pequenas congregações nestorianas, contudo, existemainda hoje (cf. a Igreja de S. Tomé na India).

Nestório, que se tornou patriarca de Constantinopla em 428, era, emgeral, representante da escola teológica de Antioquia. O veredito da histó-ria sobre Nestório e suas obras mudou completamente. Em vista do aná-tema lançado sobre ele, por seus contemporâneos, em geral se concluiuque ele levara o ponto de vista antioquiano um pouco longe demais e que,como resultado, chegara a uma falsa cristologia. Imaginouse que ele en-sinara uma doutrina de «dois Cristos», um divino e outro humano, invali-dando, deste modo, a fé cristã. Foi assim que o epíteto «herege» foi lan-çado sobre Nestório, e foi considerado o protótipo do ponto de vista queapresenta uma falsa antítese entre o divino e o humano.

Durante a época da Reforma, por exemplo, a Igreja Católica Romanaera acusada de ensinar cristologia nestoriana. Em nossa época, poderseiaapontar a atitude que freqüentemente forma a base para a abordagem cien-tífica à teologia; caracterizase por uma concepção ambivalente da teolo-gia, de um lado usa a história como ponto de partida, e de outro faz uso

da experiência religiosa. Distinção semelhante se faz entre o Jesus histó-rico e Cristo, o Filho de Deus. Estas tentativas de resolver a questão dorelacionamento entre teologia e ciência nos lembram, de certo modo, aNestório e os elementos básicos de sua cristologia.

A pesquisa moderna nos apresentou uma avaliação de Nestório quecontrasta flagrantemente com a tradição antiga. Acesso mais adequado afontes primárias tornou possível esta reavaliação. Agora se diz que Nes-tório foi mal compreendido e interpretado erroneamente por seu adversárioCirilo, e que foi isto, juntamente com a política eclesiástica, que provocou

o conflito entre os dois. Dizse que na realidade a teologia de Nestórioera semelhante à da antiga escola de pensamento de Antioquia e que nãopossuía tendências heréticas. Segundo Seeberg : «Nenhum dos grandes‘hereges’ da história do dogma ostentaram este nome tão injustamente co-

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mo Nestório» (Lehrbuch der Dogmengeschichte, II, 2a. ed., 204). Seeberge Loofs foram os que mais se esforçaram para reabilitar Nestório.

Nesta conexão, é preciso dizer, contudo, que estes dois historiadoresdo dogma representam um ponto de vista teológico que mais se aproximade Nestório e da escola de Antioquia doque da de Alexandria. A cristo

logia antioquiana, com sua ênfase no Cristo histórico e na uniãomoral doselementos divino e humano, foi considerada mais defensável, do ponto devista científico, que a cristologia alexandrina com sua ênfase na união físi-ca das duas naturezas ou a deificação da carne. A cristologia antioquianase adapta melhor ao ponto de vista científico, e é isto que explica, pelomenos em parte, a mudança de veredito sobre Nestório. É óbvio, entretanto,que seus ensinamentos foram mal interpretados pelos seus adversários nocalor do conflito, e também que a luta contra ele não foi motivada inteira-mente por considerações teológicas. A diferença entre a teologia de Nes-

tório e a teologia dos antioquianos anteriores não era tão grande como seusadversários reivindicavam ser.

O fundamento da cristologia de Nestório era o mesmo que o dos teó-logos anteriores de Antioquia; todos insistiam que as naturezas divina ehumana em Cristo não devem ser confundidas, devem ser consideradas co-mo completamente distintas. O ponto crucial em questão entre Nestório eseus adversários relacionavase com esta doutrina fundamental, embora emsi parecesse que este ponto era apenas pormenor insignificante. Os teó-

logos alexandrinos também se referiam à Maria como theotókos (a mãe deDeus). Havendo em Cristo a união física de Deus e homem, argumentavase que Cristo , que nasceu de Maria, deve ser chamado Deus, e Maria devese r denominada «a mãe de Deus». Esta conclusão harmonizavase com aadoração à Maria que estava crescendo naquela época. Outros fatores con-tribuíram para o mesmo desenvolvimento. Diziase, por exemplo, que Marianão fora contaminada pela mácula do pecado original; também se afirma-va que permanecera virgem durante toda sua vida.

Mas Nestório opôsse à expressão theotókos; Maria, dizia ele, deuà luz ao filho de Davi, no qual o Logos passou a residir. O elemento div i-no em Cristo não se encontrava em sua natureza humana; estava presenteapenas porque o Logos se unira a este homem. Esta união, segundo Nes-tório, tivera lugar por ocasião do nascimento de Cristo . Ao dizer isso, Nes-tório combatia os monarquianos dinamistas que diziam que isto só aconte-cera por ocasião do batismo. Por ensinar sobre este ponto como o fazia,era impossível a Nestório referirse á Maria como theotókos. No máximo,dizia, podese denominála xristotókos.

Em vista disso, Nestório foi acusado de negar a divindade de Cristo.Se Cristo viveu, sofreu e morreu apenas como homem, então a salvaçãoconquistada por ele não tem valor. A teologia antioquiana anterior susten-tava que o elemento humano se unira ao divino em Cristo de maneira mo-

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ral, espiritual, de modo que era verdadeiramente uma pessoa. Mas quedizia Nestório a respeito disto? Ele também falava de Cristo como sendouma pessoa, mas tinha a tendência de distinguir entre as naturezas a talponto que não havia unidade real na pessoa de Cristo. Dizia, por exemplo:«Distingo entre as naturezas, mas adoro apenas um (Cristo ).» Isto não im-

plica em unidade real no próprio Cristo . Dizer: «Adoro apenas um (C ris-to)», implica antes em unidade subjetiva por parte do crente.

Tenha Nestório merecido ou não a alcunha de herege, a verdade é quesua linha de pensamento tornava difícil qualquer afirmação clara sobre aunidade da pessoa de Cristo . As naturezas divina e humana ficavam in-flexivelmente lado a lado. Podese citar Nestório como tendo dito que cer-tas características e fatos na vida terrena de Jesus eram puramente huma-nos, enquanto em outros os poderes divinos estavam presentes. Mas, combase no que ensinava, era impossível expressar, de maneira adequada, a

união simultânea dos elementos divinos e humanos em Cristo.

Como já mencionamos, o principal adversário de Nestório foi Cirilo,o patriarca de Alexandria, que também era seu competidor na luta pelo do-mínio eclesiástico na Igreja Oriental. Cirilo era representante da escola teo-lógica de Alexandria, mas não era tão unilateral como Apolinário, nesta ques-tão. Procurava, acima de tudo, reunir os conceitos básicos da teologia antioquiana com os tipicamente alexandrinos. Mas foi implacável em sua opo-sição a Nestório, e publicou declaração contra Nestório que incluía uma

dúzia de anátemas. No Concílio de Éfeso sua posição triunfou. Neste, oconceito alexandrino theotókos foi aceito, enquanto que o ponto de vistanestoriano foi rejeitado.

Em contraste com Apolinário, Cirilo enfatizava que Cristo é homemcompleto, com alma humana. Ambas as naturezas encontramse nele, cadauma delas retendo suas próprias qualidades. Como os antioquianos, por-tanto, Cirilo salientava que há duas naturezas completas em Cristo e quenão são transformadas ou confundidas entre si.

Mas em contraste com Nestório, Cirilo insistia que há união verda-deira, substancial entre as duas naturezas em Cristo . Rejeitava a idéia deunião moral ou devocional. Um de seus anátemas contra Nestório é o se-guinte: «Aquele que não confessa que o Logos veio de Deus Pai para seunir hipostaticamente com a carne, para formar, com a carne, um Cristo,Deus e homem, seja amaldiçoado.» Se não foi o próprio Deus que apareceuna vida terrena de Cristo, de modo que o próprio Deus assim sofreu e mor-reu, ele não pode ser nosso Salvador. O ponto de vista de Nestório tornouimpossível a verdadeira divindade de Cristo, e dessa maneira também a

salvação por meio dele.Cirilo descreveu a união entre Deus e homem como união física ou

substancial. O cerne da questão se encontra em suas palavras «união comrespeito à hipóstase». Esta expressão pode parecer corresponder à doutri-

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na da união pessoal, unio personalis. Mas nos escritos de Cirilo a palavra«hipóstase» não significa «pessoa», como na doutrina da Trindade; ér antes(empregada como sinônimo de ousia. Esta expressão, portanto, sugere omesmo que as palavras «união com respeito à essência» . O que Cirilo aíestá tentando dizer é que se trata de união real, implícita na própria natu-

reza da questão, em Cristo mesmo, e não simplesmente em nosso culto aele. Cirilo , em outras palavras, tomou de empréstimo as palavras de Apolinário, que dissera: «O Logos de Deus tem apenas uma natureza, aquelaque se fez carne».

Visto Cirilo afirmar, ao mesmo tempo, que as duas naturezas precisammanter sua identidade separada, surgiu uma contradição em sua cristologia. Colocou o ensinamento antioquiano de duas naturezas distintas (com-pletas, com ênfase na verdadeira humanidade de Cristo) ao lado da idéiaalexandrina de união física. O mesmo paradoxo se encontra na fórmula

cristológica que foi finalmente fixada e aceita como definitiva, mas em Ci-rilo esta concepção não está tão nitidamente delineada. Seu ponto de vistafoi reconhecido como plenamente ortodoxo, mas, ao mesmo tempo, tambémfoi possível a monofisitas posteriores a aceitação de algumas de suas fór-mulas.

Na controvérsia doutrinária que precedeu o Concilio de Calcedônia de451, foram os pontos de vista de Nestório e Cirilo que constantemente lu-taram pela supremacia. O terceiro elemento importante nesse conflito foi

a posição cristológica ocidental, que fora desenvolvida por Hilário, Ambrósio e Agostinho. Suas idéias, e a maneira como foram apresentadas, exer-ceram influência decisiva sobre a eventual formação do ponto de vista ecle-siástico oficial. Mesmo Tertuliano já ensinara ter Cristo duas naturezas emuma pessoa. A teologia ocidental desenvolveu este conceito dizendo queé o Logos que constitui a pessoa de Cristo, que assumiu a natureza humanae se uniu a ela e agiu através dela. Cristo, portanto, é apenas uma pessoa,e esta pessoa leva a marca da natureza divina. Ta is idéias são semelhantesao ponto de vista alexandrino. Ao mesmo tempo, entretanto, os ocidentais

enfatizavam a distinção entre as duas naturezas.

EU TIQUES; O CONCILIO DE CALCEDÔNIA

Eutiques, abade de um mosteiro em Constantinopla, em geral concor-dava com a escola teológica de Alexandria e se opunha energicamente àcristologia antioquiana. Dizia que Cristo, depois de se tornar homem, tinhaapenas uma natureza. Sua humanidade, contudo, não era da mesma essên-

cia que a nossa. Com base nestas doutrinas, Eutiques foi excomungado emConstantinopla. A questão foi finalmente trazida perante o papa Leão I. Foiconvocado um sínodo geral para reunirse em Éfeso em 449, e lá, com acolaboração do partido de Alexandria, Eutiques foi reinstalado em seu car-

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go. A atitude papal nesta questão, 'que foi exposta numa carta ao bispoFlaviano de Constantinopla, nem mesmo foi discutida. Este é o sínodo quena história da igreja é lembrado como o «sínodo dos ladrões». Recebeueste nome por causa de seu transcorrer tumultuado, e nunca foi reconhe-cido como concílio ecumênico.

Após o «sínodo dos ladrões», a já mencionada carta do papa Leãoadquiriu importância cada vez maior. Era objetivo de Leão convocar novareunião que desfizesse as decisões tomadas em Éfeso. Como conseqüên-cia, foi realizado outro sínodo em 451, em Calcedônia. A esta altura, a si-tuação tinha mudado com vantagem para o papa, e sua carta serviu de basepara os trabalhos em Calcedônia. Neste concílio o ponto de vista alexan-drino foi repudiado energicamente, enquanto se louvou a posição ocidentalde Leão. Entretanto, a carta do papa não foi expressamente aprovada pelo

concílio; em vez_ disso, decidiuse e screver nova fórmula de teor claramen-te ocidental. Esta fórmula rejeitava, não apenas Nestório, mas também Eutiaues, o que quer dizer que repudiava tanto o diofisitismo extremado comoo monofisitismo radical. Por um lado, Calcedônia condenava os que pro-clamavam «dois filhos», e por outro, os que presumiam a existência de «duasnaturezas antes da união, mas uma só depois da união».

A decisão de Calcedônia é o resultado final das várias controvérsiassurgidas, e constitui o resumo confessional do desenvolvimento teológico

que floresceu na esfera cristológica. Um relance a várias sentenças deci-sivas da fórmula revelará como Calcedônia se relaciona com pontos de vis-ta anteriores, e como as diferentes controvérsias foram solucionadas; «Con-fessamos um e o mesmo Filho (contra Nestório, que distinguia a tal pontoentre o filho de Davi e o Filho de Deus de modo a se acreditar que ele en-sinava a existência de «dois filhos»), nosso Senhor Jesus Cristo, que é per-feito em sua divindade (contra o dinamismo, Ario e Nestório) e perfeito nahumanidade... com alma racional e corpo (contra Apolinário, que substi-tuía a alma humana de Cristo pelo Logos e ensinava que o Logos assumira

«carne celestial»), de uma essência com o Pai segundo a divindade (cf. oCredo Niceno) e da mesma essência que nós segundo a humanidade (con-tra Eutiques), igual a nós em todas as coisas,exceto que não tinha pecado;que segundo sua divindade foi gerado peio Pai antes de todos os tempos,e que segundo sua humanidade nasceu da Virgem Maria, a mãe de Deus(Cirilo versus Nestório; cf. Éfeso, 431) para nossa salvação; um e o mes-mo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, revelado em duas naturezas (a cristologia ocidental) sem confusão, sem modificação (contra Eutiques — e opi-niões anteripres como a de Apolinário), indivisivelmente e inseparavelmente,

sendo a distinção das naturezas de nenhum modo eliminada pela união, sen-do preservadas as propriedades de cada natureza, convergindo elas numapessoa) uma hipóstase, não separadas ou divididas em duas pessoas, masum e o mesmo Filho e Unigénito de Deus, Logos, o Senhor Jesus Cristo.»

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O significado do Concílio de Calcedônia foi realmente extraordinário.O objetivo da decisão aí alcançada foi o de combinar as posições alexan-drina e antioquiana. Nestório foi condenado, mas nenhum outro antioquiano o foi. As doutrinas de Eutiques foram repudiadas, mas as de Cirilo fo-ram reconhecidas como ortodoxas. Os homens reunidos em Calcedônia ti-

nham em mente um alvo mais elevado ainda. o de reunir pontos de vistaorientais e ocidentais em conexão com estas questões dogmáticas. O pa-pa Leão I, que deu um toque ocidental ao desenvolvimento da cristologia,exerceu grande influência sobre a decisão alcançada em Calcedônia. Foiaí, portanto, que idéias de Roma, Alexandria e Antioquia foram combinadasnuma formulação doutrinária comum e ortodoxa.

SEVERO; MONOFISITISMO

Prolongadas controvérsias doutrinárias surgiram como conseqüênciadó Concílio de Calcedônia. Estas foram condicionadas, em parte, por mo-tivos políticos, mas a posição teológica sancionada em Calcedônia tambémcontribuiu para inflamar os ânimos. Numerosos grupos, especialmente naárea da Igreja Oriental, se opuseram a certas expressões da fórmula calcedoniana. Acreditavase que Calcedônia fizera concessões à doutrina de Nes-tório de duas pessoas em Cristo, negando assim a unidade da pessoa deJesus. Alguns foram a ponto de dizer que o Cristo descrito na fórmula deCalcedônia era um «ídolo de duas faces».

Como resultado desta oposição, surgiu a assim chamada escola monofisita, que pode ser dividida em dois grupos principais. Um destes re-presentava a posição moderada e se desviava pouco da cristologia ortodo-xa,' embora de ixasse de reconhecer a decisão calcedoniana. Seu principalportavoz era Severo de Antioquia, cuja posição teológica era semelhanteà de Cirilo de Alexandrina. A fórmula citada acima (p. 82), que afirma queo «Logos de Deus só tem uma natureza, a saber; a que se fez carne», foi

interpretada por Severo de maneira tal que a palavra «natureza» corres-pondia mais ao conceito de hipóstase, ou «pessoa», que ao uso feito peloCredo de Calcedônia do termo «natureza» (que significa «essência», ou♦substância»). Como resultado, a concepção de Severo não excluía o quea igreja ensinava relativamente às duas naturezas. Também mantinha a dou-trina que Cristo é verdadeiro homem.

No outro ramo monofisita encontramos uma linha de pensamento quenos faz lembrar Apolinário de Laodicéia ou o eutiquianismo que fora rejei-tado pelo Concílio de Calcedônia. Os que sustentavam essa posição mo-nofisita partiam da idéia que Cristo, em sua humanidade, não podia ter amesma natureza que nós; em lugar disso, acreditavam que transmutara suanatureza humana para tornála igual à natureza divina. Eram, aparentemen-te, incapazes de fazer justiça à verdadeira humanidade de Cristo, sem pen

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sa r que a carne se deificara de um modo ou de outro. Assim , conformeuma teoria, o corpo de Cristo foi glorificado e exaltado a um estado deincorruptibilidade desde o início da encarnação. Em outras palavras, o cor-po de Cristo antes de sua ressurreição era o mesmo que seria depois dela.Esse ponto de vista, freqüentemente cognominado «docetismo incorruptível»,

foi sustentado por Julião de Halicarnasso, entre outros.Os monofisitas criticaram a decisão calcedoniana dizendo que era ab-

surdo falar de duas naturezas em Cristo e ainda sustentar que há apenasuma pessoa, ou hipóstase. Natureza ou essência necessariamente tambémsignifica hipóstase independente. Não se poderia falar de natureza huma-na perfeita sem também pensar nela como existência pessoal independen-te. Se é preciso pressupor que há duas naturezas, isto implica (diziam osmonofisitas), naturalmente, que também se está pensando em duas pessoas.

Esta crítica teve seu efeito na interpretação da fórmula calcedoniana.Um dos resultados foi que nos anos seguintes notouse a tendência de en-fatizar mais a unidade da pessoa de Cristo. Desta maneira, a decisão ca l-cedoniana reconquistou seu domínio; a posição monofisita deixou de triun-far. Apesar disso, é verdade que, até certo ponto, ao menos, o problemasuscitado pelos monofisitas não foi completamente solucionado. Ainda per-manecia a pergunta: Como pode a crença nas duas naturezas coadunarsecom a crença em uma pessoa ou hipóstase?

LEÔNCIO DE B IZÂNC IO;

A CONTRO VÉRSIA M ONOTELETA

Uma resposta ao principal problema do conflito monofisita foi dadapor Leôncio de Bizâncio (m. 543). Procurou ajuda na filosofia de Aristóte-les ; realmente, foi um dos primeiros teólogos cristãos a fazêlo. Em suacristologia, no entanto, tomou de empréstimo a terminologia dos três capa

docianos, e contribuiu com a idéia da «enhupostasis» como solução para adivergência entre os pontos de vista monofisita e diofisita.

Principiou com os antigos conceitos empregados na doutrina da Trin-dade, fúsis (=ousía) e hupóstasis (=prósoopon). Fúsis indica o «ser» deuma coisa — isto é, que ela é, que é constituída de certa maneira. Refe-rese ao que faz uma coisa ser o que é. O conceito de hipóstase indicaque algo existe por si mesmo, como sujeito independente. Estes conceitos

 já estavam em uso anteriormente. Na formulação cristológica, portanto,Cristo era apresentado como tendo duas naturezas (essências) em uma hi-

póstase (pessoa). O problema, portanto, é o seguinte: Pode haver uma«natureza» que é perfeita com respeito a sua própria espécie e que, apesardisso , não é hipóstase independente? Leôncio tentou reso lver o problemausando o conceito de enhupostasía. É concebível que haja uma natureza

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que não possua existência independente mas que exista em outra. Há emCristo apenas uma hipóstase, e esta é a hipóstase do Logos, que existedesde a eternidade e que, no tempo, assumiu a natureza humana. Portanto,o Logos tornouse a hipóstase do homem Cristo também, de modo que anatureza humana de Cristo tem sua hipóstase em outra, a saber, a do Lo-

gos (enhupóstatos).Esse tipo de cristologia possibilitava uma aproximação à posição mo

nofisita. É o Logos que constitui a pessoa de Cristo , que providencia a hi-póstase mesmo para a natureza humana. Esta natureza humana tem exis-tência independente, mas está incorporada, por assim dizer, no Logos. Istonão nega, entretanto, o fato que a natureza humana de Cristo seja com-pleta, composta tanto de corpo como de alma.

Essa teologia da «enhupostasis» foi aprovada pelo Quinto Concílio

Ecumênico (de Constantinopla, 553) e considerada interpretação correta dadecisão de Calcedônia. Como resultado disso, os monofisitas obtiveramuma espécie de aprovação parcial para suas concepções. Contudo, não sesatisfizeram com a solução proposta por Leôncio. Sua posição foi apre-sentada de maneira puramente lógica, enquanto os monofisitas desejavamexpressar uma união física. Posteriormente os monofisitas seguiram seupróprio caminho e organizaram sua igreja que se encontrava principalmentena Síria , Palestina e Egito. Várias igrejas nacionais no Oriente chegarama ter caráter monofisita: a Armênia, a Síria (Jacobita), a Egípcia (Copta) e

mais tarde a igreja na Abissínia. Em geral, foi o ramo mais moderado domonofisitismo (o representado por Severo) que influenciou as igrejas nes-tas regiões.

Depois de ter a controvérsia monofisita chegado a seu desfecho,surgiu o assim chamado conflito monoteleta. Seu principal problema foi:Possui Cristo uma vontade ou duas? Devese salientar, nesta conexão, queo problema cristológico (como refletido neste conflito) já se afastara deconsiderações puramente metafísicas; eram introduzidos agora também fa-tores psicológicos concretos. Isto, no entanto, não resultou em maior cla -

reza. Os monoteletas aceitavam a doutrina das duas naturezas, mas insis-tiam que Cristo tinha apenas uma vontade — a do Logos divino. Procura-ram desta maneira fazer justiça à unidade psicológica que caracteriza oquadro bíblico de Cristo . A vontade, sustentavam, pertence à pessoa e for-ma uma faceta de sua essência. Os dioteletas, diziam, por sua vez, que talposição aproximavase muito do docetismo. Quando se crê que Cristo pos-sui natureza humana completa, isto pressupõe que também tem vontadepuramente humana, como sua natureza divina tem vontade divina. Os quesustentavam essa posição também acreditavam, no entanto, que a vontadedivina dirige a vontade humana e opera através dela, de modo que não háabismo entre ambas. Este ponto de vista foi desenvolvido por Máximo, oConfessor (m. 662), e foi aceito pela igreja no Sexto Concílio Ecumênico(também realizado em Constantinopla, 68081). Houve a tentativa, neste con-

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cílio, de se combinar o dioteletismo com a idéia da enhupostasis, salientan-dose assim a independência de ambas as naturezas bem como a existên-cia da natureza humana na divina. Esta decisão, contudo, não ficou defi-nida, e não foi reconhecida pelos reformadores do século XVI.

JOÃO DE DAMASCO

A posição cristológica da igreja antiga foi de certo modo completadapor João de Damasco, que viveu no século VIII (os anos de seu nascimen-to e morte são desconhecidos). Mais do que qualquer outro, sintetizou atradição que posteriormente se tornaria a norma na Igreja Ortodoxa Grega.Também exerceu profunda influência no Ocidente. João de Damasco repe-tiu a teologia dos pais da igreja antiga e a apresentou em forma padroni-

zada com o auxílio do aparato filosófico que empregou. Sua obra clássicaé A Fonte do Conhecimento, e compõese de três partes distintas. A pri-meira parte tem forma dialética e só trata de questões filosóficas; a se-gunda lida com heresias; enquanto a terceira é a parte dogmática: «Ex-posição da Fé Ortodoxa». Esta última parte eventualmente chegou a ser-vir de norma dogmática na Igreja Grega.

João de Damasco estava familiarizado com a filosofia aristotélica éneoplatônica, e tomou de empréstimo formas de pensamento e conceitosde ambas. Estes eram empregados como fundamento de seu sistema teo-lógico. Em outras palavras, empregou metodologia esco lástica; foi o pri-meiro a fazêlo no campo da dogmática. Na maior parte dos casos, reuniuas idéias do passado e lhes deu forma mais específica, sem pretender seroriginal. As adaptações esco lásticas são a maior contribuição deste mestre.Na longa exposição de sua cristologia associase a Leôncio de Bizâncio eMáximo, o Confessor.

João de Damasco ressaltou com vigor a unidade da pessoa de Cris-

to: «A hipóstase do Logos de Deus é perpetuamente uma só.» Essa umahipóstase é, ao mesmo tempo, a hipóstase do Logos e da alma e corpohumanos. Acreditava, em outras palavras, que a natureza humana existena divina e não tem existência pessoal independente.

Ao mesmo tempo, João de Damasco também enfatizava a diferençaentre as duas naturezas e sustentava o ponto de vista dioteleta. Conside-rou cuidadosamente o problema da relação que há entre as duas nature-zas e contribuiu com algumas idéias novas neste setor. Em vista da uni-dade da pessoa, ocorre uma «penetração mútua», pela qual o Logos assu-

me a natureza humana e então lhe comunica suas qualidades. Assim, po-dese dizer, por exemplo, que «o  Senhor da glória» foi crucificado, ou, poroutro lado, que o homem Jesus é incriado e infinito. Desta maneira, ambasas naturezas retêm sua peculiaridade e distinção.

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João também expressou, energicamente, algo que às vezes parece con-tradizer o que disse sobre a idéia da «penetração mútua». Pois acreditavaque apenas a natureza divina tinha penetrado a humana, e não viceversa.Fez isto para salientar o fato que a divindade, como tal, deve permanecerinalterada, intocada por sofrimento e morte. Os raios do sol que brilham so-

bre uma árvore não são afetados quando a árvore é cortada. Assim acon-tece com Deus; está acima do sofrimento que Cristo experimentou. Sealguém pergunta sobre as naturezas em sentido abstrato (como «divinda-de» e «humanidade»), devem ser distinguidas nitidamente; o divino não setorna humano e o humano não se torna divino. Mas quando se olha paraCristo como pessoa real, a unidade das naturezas é evidente. É total ecompletamente Deus e, ao mesmo tempo, total e completamente homem —no que tange à identidade e unidade de sua pessoa. O que realiza estaunião, portanto, é a hipóstase do Verbo, que também se torna a hipóstase

da natureza humana manifestada em Cristo. O retrato de Cristo que en-contramos em João de Damasco também se reflete, de certo modo, na ico-nografia da Igreja Ortodoxa, em que as qualidades transcendentais e ma-

 jestosas aparecem claramente.

O papel desempenhado pelo simbolismo corresponde ao grau em quea transcendência absoluta da divindade é enfatizada. Não foi mera coinci-dência que a teologia de João de Damasco passou a defender o culto agravuras (isto não implica em culto no seu sentido verdadeiro, antes sugereadoração e veneração). Símbolos servem para mediar a divindade; sãoacessíveis aos sentidos e representam aquilo que é invisível, celestial. Gra-vuras representam, num sentido real, o divino e, como tais, podem tornarse objeto de adoração. Depois de longo conflito entre os partidos opostosna Igreja Oriental (Bizantina) (alguns se opunham vigorosamente à adora-ção de gravuras), decidiuse no Concílio de Nicéia, em 787, que esse cos-tume era aceitável (cf. abaixo, p. 128).

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CAPÍTULO 10

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE IGREJA

Como já vimos, a teologia em geral adquiriu forma no conflito compontos de vista heréticos ou divergentes. Assim também aconteceu como conceito de igreja; desenvolveuse, em parte ao menos, como resultadoda oposição do gnosticismo e outras escolas de pensamento estranhas.

O desenvolvimento que teve lugar nesta área, durante o primeiro pe-ríodo da história da igreja, resultou no surgimento de um padrão mais ní-

tido de organização eclesiástica e também na elaboração de idéias desti-nadas a justificar e apoiar essa consolidação externa da vida congregacional. Ao mesmo tempo, diferentes conceitos sobre a essênc ia da igreja, suasantidade e sua relação com a organização externa estavam rivalizando unscom os outros.

Inácio, que foi executado pelos romanos no início do segundo século,salientou a importância do cargo do bispo como vital à defesa da igreja.Os gnósticos, com suas doutrinas falsas, ameaçavam destruir a fé e a uni-

dade da igreja. Portanto, os fiéis eram convocados para ce rra r fileiras emtorno dos bispos, que sucederam os apóstolos como dirigentes das con-gregações. Os bispos assumiram essa posição porque representavam atradição apostólica e, dessa maneira, garantiam a pureza da doutrina emconexão ininterrupta com os apóstolos. É por ordem divina que cada con-gregação se une em torno de um cabeça comum, assim como os apóstolosse uniram em torno dé Cristo. A igreja é uma, santa e universal porquepreserva a verdadeira tradição apostólica. E esta unidade se exp ressa nosbispos. Outra idéia atribuída a Inácio é que a unidade da igreja se explica

pelo fato de se r ela o único administrador dos meios da graça. Os sa cra-mentos constituem a igreja tão bem como a Palavra, a doutrina pura, e es-tes obrigam os fiéis a se manterem unidos em torno do ofício episcopal.Outros teólogos expressaram estas mesmas idéias, que representam a an-tiga tradição oriental (por exemplo: Irineu).

O conceito romano de igreja, por sua vez, foi desenvolvido mais tar-de e especialmente em solo ocidental. A questão da igreja adquiriu impor-tância extraordinária também no Ocidente, mas por outro motivo que noOriente. O desenvolvimento do conceito de igreja no Ocidente foi condi-

cionado por vários problemas relativos tanto à teoria como à praxe ecle-siástica. O conceito romano tomou forma como resultado de prolongadasdiscussões em torno de problemas tais como penitência, a santidade daigreja e a validez do batismo de hereges.

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Os aspectos básicos da teoria e praxe da penitência que caracteri-zaram a igreja antiga reapareceram nos escritos de Tertuliano. Devesesalientar que esse conceito de penitência é diferente do mantido pelos pro-testantes. A tradição protestante mais antiga descrev ia a penitência comoobra de lei e evangelho, pela qual o homem é aterrorizado pela lei e re-nascido pelo evangelho. A penitência era assim definida em termos de con-trição e fé. Como Tertuliano a concebia, a penitência era o caminho peloqual o homem reconquista a paz com Deus. Deus se ira contra o pecador,e pune o pecado segundo sua norma de justiça. Mas em sua graça tornoupossível ao homem receber perdão e viver novamente em relação corretacom Deus. Essa «escapatória» era a ação da penitência, que era conside-rada, até certo grau, como obra de mérito, que aplacava a ira de Deus.Compõese de contrição, confissão e satisfação. A primeira penitência as-sociase ao batismo, que é uma confirmação do perdão do pecado. Depoisde serem batizados os cristãos devem evitar pecados evidentes. Mas, casoacontecer que pequem, podem ser restaurados em virtude de segunda açãode penitência. Acreditavase que podia haver apenas uma ação de penitên-cia após o batismo. Originalmente Tertuliano sustentava que uma segundapenitência poderia ser possível, até mesmo para pecados mortais, mas aoficar montanista insistiu que os que cometeram pecado mortal após o ba-tismo não podiam realizar ação de penitência. Realmente, foi a posiçãoindulgente da igreja, neste problema, que levou Tertuliano a unirse aosmontanistas.

O problema mais delicado relativo à praxe da penitência dizia respei-to à possibilidade da segunda ação de penitência. Alguns comparavam apenitência a uma prancha na água à qual os cristãos se agarravam depoisdo naufrágio de sua fé. Mas outros adotaram o ponto de vista mais rigo-roso de Tertuliano, e sustentavam que para pecados mortais como idolatria,assassinato e adultério, a penitência estava fora de questão.

Foi neste contexto que o bispo Calixto de Roma (21722) promulgouuma ordem permitindo uma segunda penitência, mesmo em casos de peca-dos mortais. Em vista do fato que Cristo tivera misericórdia da adúltera,

 julgou que o clero podia prosseguir dando a absolvição a pecados graves(embora não a assassinato e idolatria). Calixto reivindicou para os bisposo direito de assumir a responsabilidade pela praxe da penitência e de to-mar as decisões necessárias relacionadas com o caso. A penitência che-gou a ser considerada, pois, como algo sobre o que a igreja tinha jurisdi-ção, a qual foi colocada nas mãos dos bispos.

Mas Calixto sofreu a oposição de Tertuliano e Hipólito, os quais exi-giam interpretação mais rígida. Diziam que apenas Deus pode perdoar pe-

cados, e rejeitavam a opinião que os bispos (como sucessores de Pedro)tinham tal poder. A tradição original, mais antiga, se reflete nesta críticadaqueles que se opuseram às tendências hierárquicas, e procuraram ao mes-mo tempo manter um conceito mais rigoroso de penitência.

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O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE IGREJA

Foi Cipriano, bispo de Cartago (m. 258), que continuou a desenvolvera doutrina da penitência e lançar as bases para o conceito romano de igre- ja. A perseguição sob Décio, em meados do terceiro século, suscitou sérioproblema: Poderiam os que apostataram durante as pressões da perse-guição se r .recebidos de novo na igreja? Os que podiam apresentar decla-

ração de coirmão que permaneceu firme na fé a ainda assim escapou damorte (os assim chamados «confessores») eram recebidos de volta na con-gregação naquela época, pois se julgava que o Espírito Santo habitavaneles em medida invulgar. Esse costume ameaçava degenerar, e Ciprianoafirmou que apenas os bispos estavam em posição de pronunciar julga-mento em tais casos. Decisões arbitrárias, alcançadas sem consentimentoepiscopal, poderiam prejudicar a igreja. A autoridade da lei e dos regu-lamentos eclesiásticos sobrepujou a autoridade puramente espiritual dosmártires.

Destacase Novaciano entre os que se opuseram a Cipriano em Roma.Insistia em praxe mais rígida de penitência e não qireria receber de voltana igreja os que tinham apostatado. Segundo a opinião de Novaciano, aigreja devia comporse daqueles que eram, sem sombra de dúvida, santos.A santidade da igreja devia encontrarse não só nos sacramentos mas tam-bém na santidade de seus membros. Finalmente separouse da igreja, masa organização que fundou nunca chegou a se tornar muito significativa.

Um sínodo de bispos em Cartago aceitou o ponto de vista de Cipria-

no como sendo o correto. Decidiuse nele que os bispos têm o direito de julgar se os que apostataram podem ou não ser readmitidos na igreja e serperdoados. Foi em conexão com este problema que Cipriano desenvolveusua doutrina da igreja. O elemento novo em seu pensamento não se en-contra no que disse sobre penitência; é antes isto, que atribuiu autoridademaior aos bispos do que aos confessores, contribuindo assim poderosa-mente para a centralização da igreja em torno do ofício episcopal. Ciprianonão via diferença entre a autoridade deste ofíclO.e a do_. Espírito Santo;para ele, os bispos são os portadores do Espírito. Espírito e ofício perten-

cem juntos, e os que são verdadeiramente espirituais se subordinarão aosque ocupam o ofício episcopal. Cipriano considerou este oficio a base da

Cipriano também apoiava a tendência hierárquica que considerava aceia do Senhor como ação sacrifical, com o bispo oferecendo o sacrifícioa Deus em lugar de Cristo.

O bispo, portanto, dirige a congregação como representante de Cris-to. Cipriano também acreditava, em conseqüência disto, que cada congre-gação só podia ter um bispo, uma vez que este ofício representava a uni-

dade da igreja. «Há um homem ao mesmo tempo sacerdotena iace ja. eiuiz em luaan de Cristo» (Epístola 59 (54), 5). Não queria com isto dizerque o bispo podia dominar os outros; simplesmente queria dizer que cadacongregação devia unirse em torno de um único bispo. Toda a igreja de

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Cristo se encontra em  cada congregação. Com o correr   do tempo, no en-tanto, suas idéias contribuíram para que os bispos de Roma reivindicassemo «primado». Essa reivindicação começou a se r feita na época de Cipriano e, subseqüentemente, resultou na doutrina papal — que o papa é o vi-gário de Cristo na terra.

Cipriano considerava Pedro o símbolo da unidade da igreja (cf. Mt16.18). Mas também julgava que os demais apóstolos possuíam o mesmograu de autoridade. E, em oposição aos que aceitavam o primado romano,referiase (entre outras coisas) a Gl 2, onde nos é dito que Paulo se le-vantou contra Pedro e o repreendeu.

Mas um dos contemporâneos de Cipriano, o bispo Estêvão de Roma(25457), concluiu que o bispo de Roma, sucessor de Pedro, o principal após-tolo, tinha a supremacia sobre todos os demais bispos. Reivindicou essepoder para si mesmo e dramatizou sua reivindicação exigindo a obediênciados outros bispos, e designando pessoalmente bispos na Gália e na Espa-nha. Reivind icava a «cátedra de Pedro» com fundamento na sucessão efalava do «primado» do bispo de Roma.

Cipriano e outros se opuseram a essa reivindicação, mas Estêvão triun-fou. Cipriano acreditava ser o bispo a autoridade na igreja ; não, contudo,apenas em virtude da sucessão externa, mas também por ser o portadordo Espírito. O bispo representava a igreja, e todos os cristãos estavamsubordinados a esse ofício. Os que se encontravam fora dessa comunhão

não podiam ser cristãos, embora fossem mártires ou de outra forma famo-sos por sua fé, «porque não há salvação fora da igreja» (Epístola 73 (72), 21)e porque «quem não tem a igreja por mãe não pode ter Deus por Pai».(De ecclesiae unitate, 6).

A validade do batismo realizado por heréticos foi outra questão sig-nificativa nesta conexão. Os batizados por heréticos, tinham sido correta-mente batizados, ou deveriam ser rebatizados se voltassem à comunhãoda igreja? Opiniões divergentes prevaleciam dentro da cristandade. .Cip ria-

no concluiu, com base em seu conceito de igreja, que o batismo realizadopor heréticos não era válido e que as pessoas assim batizadas deveriam serrebatizadas ao retornarem à igreja. O espírito da regeneração, que o Ba-tismo outorga, só pode ser conferido pelo bispo que  possui os dons  doEspírito. Batismo de hereges não é obra do Espírito, é «imersão sórdidae profana». (Epístola 73 (72), 6).

Estêvão de Roma e outros, sustentavam o ponto de vista contrário.Julgavam que o batismo realizado por herege é válido, uma vez que é fei-

to em nome do Deus Trino. O uso de água e das palavras da instituiçãode Cristo são essenciais ao batismo. Onde água e o nome de Cristo sãousados, a ação batismal é eficaz, independentemente da atitude de quemcelebra o rito.

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Num caso, davase ênfase ao episcopado dotado do Espírito comoelemento unificador da igreja, no outro ressaltavase a instituição e o car-go como tais. Esta última posição coadunavase melhor com conceito degreja que aos poucos tornouse o dominante. A questão do batismo dehereges surgiu mais tarde dentro de contexto diferente — no conflito entre

Agostinho e os donatistas.

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Agostinho era homem do Ocidente, e as facetas mais proeminentesde sua teologia são as que se encontram no centro da teologia ocidental.O problema da igreja bem como as questões antropológicas, por exemplo,foram respondidas por Agostinho de maneira tal que se tornaram básicaspara o pensamento teológico nos séculos seguintes — e isto acontecia

mesmo quando a posição de Agostinho não era inteiramente aceita.Há quatro elementos diferentes na teologia de Agostinho que são de

interesse particular neste contexto. São : sua doutrina da Trindade (anali-sada acima), seu conceito básico de cristianismo (neoplatonismo e cristia-nismo), sua doutrina da igreja (desenvolvida em seu conflito com o donatismo), e sua doutrina de pecado e graça (desenvolvida em seu conflito comPelágio).

DESENVOLVIMENTO PESSOAL DE AGOSTINHO

Para se compreender a teologia de Agostinho, é importante saber al-go a respeito de sua vida eseu desenvolvimento interno, que influencioua formação de sua teologia. A melhorfonte de informações é seu conhe-cido livro Confissões, escrito por volta do ano 400.

Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia, em 354. Seu pai era pa-gão, mas sua mãe era cristã, de modo que chegou a conhecer o cristianis-mo já muito cedo. Foi enviado a Cartago em 371 para estudar. Enquantoali vivia, levava uma existência completamente mundana até ler o Hortênsiode Cícero, que criou nele o amor à filosofia. O desejo de encontrar a ver-dade substituiu o desejo de obter riqueza e fama. Anos mais tarde reco-nheceu esta mudança de pensamento como um passo em direção ao cris-tianismo. «Ó verdade, verdade, quão ardentemente minha alma ansiou porti nessa época!» Desde o início parecia até certo ponto claro a Agostinhoque a verdade não poderia se r alcançada a não se r em Cristo . O que oimpedia de crer era a linguagem não filosófica e (como ele a considerava)bárbara da Bíblia. Também não conseguia submeterse à autoridade da Bí-blia, o que exige fé.

Pouco tempo depois do incidente acima mencionado, Agostinho uniu-se aos maniqueus, seita que tinha bom número de adeptos na África. Essegrupo, fundado por Mani, um persa, no terceiro século, tinha muito em co-mum com o  gnosticismo. Mas seu dualismo era ainda mais radical; nãoera simplesmente dualismo entre Deus e o mundo, mas acima de tudo entreDeus e o mal. Os maniqueus consideravam o mal como principio indepen-dente ao lado de Deus, poder que limitava o domínio de Deus e contra oqual Deus combatia. Seu sistema de salvação lembra o plano gnóstico, e

este, em gera l, fornecia ao maniqueísmo uma explicação ampla e especula-tiva do mundo. O maniqueísmo também se caracterizava por seu códigode ética ascético, que freqüentemente chegava ao oposto — ao libertinismo — entre seus membros. Agostinho foi atraído ao maniqueísmo por sua

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explicação racional do mundo, bem como pelo seu código ascético, quetemporariamente ofereceu uma solução a seus problemas. Mas o caráterfraudulento da posição maniquéia se lhe tornou cada vez mais evidente, edepois de 9 anos abandonou suas fileiras.

No mesmo ano, 383, Agostinho atravessou o mar, indo até a Itália.

Viveu em Milão, onde entrou em contato com o famoso teólogo e preladoAmbrósio, que exerceu influência decisiva sobre ele. Ambrósio represen-tava a posição teológica ocidental, mas também ficara profundamente im-pressionado com a teologia do Oriente, bem como com a filosofia grega.Entre outras coisas, apropriarase do método alegórico de interpretação deFilo e Orígenes. Esse método chegou a ter grande significado para Agos-tinho, uma vez que lhe permitiu pôr de lado algumas passagens da Escri-tura que considerava inaceitáveis. Em suas pregações, Ambrósio salienta-va còm vigor o conceito paulino de justificação através do perdão dos pe-cados, e também isto foi de grande importância para Agostinho.

Primeiramente, no entanto, Agostinho dirigiuse ao neoplatonismo. Foiem grande parte esta escola de pensamento que o afastou do maniqúeísmo.O conceito neoplatônico de Deus era diametralmente oposto ao conceitomaniqueu. Aquele concebia Deus como o bem absoluto, imutável, situadoacima de toda mudança, a fonte de tudo o que existe . Tal concepção eraincompatível com a idéia que o mal é princípio independente, e com a su-posição que Deus combatia o mal e era, portanto mutável, exposto às mo-

dificações existenciais. O mal não pode se r algo independente, princípiocriador e eficiente. No contexto neoplatônico, conceituavase o mal comoqualidade negativa, não ser, ausência de bem. Agostinho aceitou esta defi-nição de mal, a qual constituiu a origem de seu diagnóstico da natureza dcpecado. O impacto do pensamento neoplatônico se percebe claramente naseguinte passagem de suas Con fissões : «Mas, tendo então lido aqueles li-vros dos platonistas, e neles tendo aprendido a procurar a verdade incor-pórea, descobri tuas coisas invisíveis, entendi pelas co isas criadas . . . Entãocertifiqueime que existes , que és infinito . . . e que verdadeiramente és aque-

le que é sempre o mesmo, sem variação em qualquer parte e sem movimento;e que todas as outras coisas procedem de ti, neste terreno seguro apenas,é que existem. . . . E, posteriormente, quando meu espírito foi conquistadopor tua Bíblia . . . aprendi a distinguir entre presunção e confissão — entreos que vêem aonde devem ir, mas não vão, e o caminho que conduz nãoapenas à visão mas também à morada na terra abençoada.» (VII, 20).

Mas, apesar disso, foi uma passagem da Carta de Paulo aos Romanosque destruiu os últimos vestígios de resistência e facilitou a conversão deAgostinho ao cristianismo. Estas foram as palavras decisivas: «Andemosdignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revestivos do Se-nhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne, no tocante às suas concupiscências.» (13.1314).

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Estas palavras levaram Agostinho a abandonar sua vida mundana; edirigiram seus desejos ao transcendental, não para vantagem temporal, masa fim de melhor compreender e contemplar a Deus. Sua vontade fora aba-tida, mas restaurarase novamente de modo definitivo.

A conversão de Agostinho significou mais do que abandonar sua am-

bição de se tornar um retórico famoso. Anteriormente fora escravo de de-sejos mundanos, mas isto agora passara, e seus pensamentos se voltarama coisas espirituais. Ao mesmo tempo, submeteuse aos ensinamentos e àautoridade da igreja. Foi a fé em Cristo que tornou o transcendental rea-lidade viva para Agostinho.

Depois de sua conversão, Agostinho e mais alguns cristãos fiéis seretiraram a um lugar denominado Cassicíaco, fora de Milão, e depois dealgum tempo foi batizado nesta cidade, em 387. No ano seguinte voltou a

Cartago. Durante a viagem, sua mãe faleceu — o que o afetou por longotempo.

Depois de viver em Cartago por alguns anos, Agostinho foi eleitopresbítero na igreja de Hipona. Mais tarde ficou bispo da mesma cidade(395). E aí permaneceu até sua morte ocorrida quando os vândalos inva-diram a região e sitiavam Hipona em 430.

Muitas são as interpretações feitas quanto ao significado da conver-são de Agostinho. Vários pesquisadores protestantes, inclusive Harnack,afirmaram que sua conversão não significou ruptura com sua posição an-terior. Julgam que continuou platonista mesmo depois de sua conversão.Obras escritas depois de sua conversão, como os Solilóquios, são citadascomo prova. Com base neste livro (escrito em Cassic íaco), o significadoda conversão foi diminuído — o que é bem o contrário do que o próprioAgostinho diz dessa experiência. Pesquisadores católicos apoiam a reivin-dicação feita nas Confissões e consideram a conversão como mudança ge-nuína, em conseqüência da qual Agostinho chegou a alcançar a fé cristãe a se submeter aos ensinamentos da igreja. Como resultado das investi-

gações de Nõrregaard e Holl, esta última interpretação é hoje, em geral,aceita. Holl demonstrou que os estudos filosóficos de Agostinho, que elenaturalmente continuou após sua conversão, receberam enfoque diferente.

O CONCEITO BÁSICO DE CRISTIANISMO DE AGOSTINHO

Nas Confissões Agostinho descreve sua peregrinação à fé cristã. Con-ta como perambulou, cegamente, nas trilhas do erro. Durante todo essetempo, no entanto, estava sob influência dos poderes da graça e foi atraí-

do cada vez mais peio amor à verdade, até que, afinal, através de sua con-versão, este amor tornouse permanente e seus desejos se voltaram à rea-lidade espiritual. Antes disso, apenas fora capaz de vislumbrar a verdadede longe, e seu amor a ela era por demais evanescente para capacitálo

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a dominar seu amor pelo mundo. A natureza caleidoscópica dos interessesseculares o mantinha cativo e exercia influência decisiva sobre seus de-sejos. Não conheceu a paz até chegar a ter fé em Cristo , até submeterseà verdade escriturística. Somente então encontrou aquilo que em vão bus-cara tateando. Essa foi a experiência que Agostinho resumiu nas conhe-

cidas palavras: «Tu nos fizeste para ti, e nossos corações estão inquietos,até encontrarem descanso em ti.» (Fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te. Confissões I, 1).

Como já vimos, Agostinho submeteuse à autoridade da igreja e acei-tou os ensinamentos da Escritura depois de sua conversão. Seu batismoe a escolha da nova maneira de viver dão testemunho da natureza decisi-va dessa modificação. Em seus escritos , entretanto, podemos ve r certa con-tinuidade; o que escreveu depois de sua conversão relacionase, até certoponto, com o que escrevera antes dela. Mesmo as co isas que escreveu

imediatamente depois de sua conversão (os Solilóquios, por exemplo) sãoobviamente influenciados pelo neoplatonismo. À medida que o tempo cor-ria, voltouse cada vez mais à tradição cristã, mas nunca rompeu completa-mente com o neoplatonismo (como fez, por exemplo, com o maniqueísmo).Em sua opinião, o cristianismo e o neoplatonismo não se excluíam mutua-mente. Acreditava que, em vez disso, idéias neoplatônicas o capacitarama encontrar o cristianismo e a entender suas implicações mais profundas.Como resultado, os fundamentos de sua posição teológica foram sempre,ao menosem parte, determinados por pressupostos neoplatônicos.

Todavia, a atitude básica de Agostinho face à especulação filosóficamodificouse depois de sua conversão. Antes dela, a filosofia tinha ofere-cido a Agostinho a possibilidade de encontrar a verdade por meios racio-nais, através do uso da especulação. Depois de converterse, Agostinhoentendeu a relação entre teologia e filosofia de acordo com a seguinte fór-mula: «Creio para que possa compreender» (Credo ut intelligam). A sub-missão à autoridade ocupava agora o primeiro lugar em sua vida. Nãomais julgava ser a especulação filosófica o caminho que conduzia ao alvo.

Acreditava agora que só pela fé se podia chegar a conhecer verdadeira-mente a Deus, aceitando a verdade revelada. Não concluía com isso , en-tretanto, que a possibilidade de considerar a fé em termos racionais ficavaexcluída; julgava que a verdade da fé também podia se r alvo de compre-ensão, pelo menos até certo ponto. Mas o pensamento filosófico não maisocupava o lugar de honra na vida de Agostinho; este fora substituído pelafé e pela submissão à autoridade da Escritura.

ParaAgostinho, o pensamento lógico, embora se baseasse na fé (ointelligere) e se relacionasse com a submissão aos ensinamentos da igre-

 ja, tomava a forma de síntese entre cristianismo e neoplatonismo. Em suaopinião, estes dois estavam em harmonia um com o outro; não se excluíammutuamente. Isto não quer dizer que Agostinho considerava o neoplatonis-mo uma religião situada no mesmo nível do cristianismo. Bem pelo con

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trário, julgava ser este a única fonte da verdade. Mas a relação entre am-bos, em sua opinião, era que apenas o cristianismo podia fornecer as res-postas corretas às questões propostas pelo neoplatonismo ou a filosofiaem geral. Os filósofos buscam a verdade, mas não podem encontrála. Re-conhecem o alvo, mas não conhecem o caminho que a ele conduz. Desta

maneira, quando o cristianismo responde às profundas questões levantadaspela filosofia (as únicas respostas válidas que podem ser encontradas), si-tuase numa relação ambivalente com a filosofia . De um lado, a atitude dafé revela a falsidade da filosofia, demonstrando quão vazia ela é, bem comotraz à luz sua incapacidade de satisfazer os anseios mais profundos do ho-mem. Do outro lado, o cristianismo aceita as questões levantadas pela fi-losofia, e desta maneira reconhece a atitude básica face à vida que é ca-racterística da filosofia. Esta ambivalência é típica do conceito de cristia-nismo de Agostinho. De um lado, reconhece a verdade da revelação e da

tradição cristã em contraste com a razão e a filosofia. De outro lado, apre-senta o cristianismo em categorias implícitas nos pressupostos filosóficosque aceitava. Agostinho criou uma síntese que incluía tanto elementos cris-tãos como neoplatônicos em interação mútua. Estas linhas de pensamentopodem ser isoladas e diferenciadas uma da outra, mas na mente de Agos-tinho formaram um ponto de vista unitário, simultaneamente cristão e neoplatônico.

O neoplatonismo ensinava que a tendência mais elementar encontra-da no homem é sua busca da felicidade, e é esta idéia, acima de tudo, queconstituiu o elo de ligação entre Agostinho e este sistema de pensamento.Em sua opinião, o pressuposto básico de todo esforço humano se encontrana concentração do homem sobre um objeto que lhe promete trazer certosbenefícios. «Certamente todos desejamos viver felizes.» (De moribus eccle- siae catholicae, I, 3, 4).

Além disso, Agostinho desejava provar que essa concentração davontade humana não se limita simplesmente a alvos fortuitos e temporais.O que o homem deseja acima de todas as outras coisas é o bem supremo

(summum bonum), e mesmo que possa aplacar seus desejos de obter van-tagens temporais, isto não o satisfará inteiramente. Revelao o fato que ohomem constantemente dirige sua atenção a novos alvos. Não se satisfazcom o que é apenas parcialmente bom, que oferece valores de qualidadeinferior. O que corresponde plenamente ao destino humano, e aquilo aque se dirigem suas aspirações mais profundas deve ser o bem supremo,algo de va lor absoluto, não qualificado por qualquer coisa superior. Agos-tinho também acreditava que se o homem busca certo nível de realizaçãoe o alcança, seu desejo não se aquietará, pois sempre viverá no temor deperder o que obteve. Pois o bem que alcança é mutável e perecível. Ape-nas o que é permanente e imutavelmente bom pode satisfazer o coraçãodo homem. E é apenas Deus que é este summum et incommutabile bonum. Em vista disso, há em todos os homens um desejo natural por Deus, o bem

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supremo. Esse desejo se expressa mesmo em formas pervertidas de amor.«Deus, que é amado por tudo que é capaz de amar, consciente ou incons-cientemente.. .» (Solilóquios, I, 1 , 2).

Há um eudemonismo em Agostinho, mas não é o eudemonismo filo-sófico que afirma que a satisfação do desejo ou a realização do prazer

próprio é o alvo mais elevado. Conforme Agostinho, o alvo mais elevadoé união com o bem supremo, como algo transcendente, não encontrado naesfera humana. «Para mim o bem é estar unido a Deus» (Sermão 156, 7).A visão de Deus é o objetivo supremo. Quando todos os poderes do es-pírito estão dirigidos a Deus e à eternidade, é então que a mente está cor-retamente inclinada, e a alma pode experimentar paz e clareza. Esta espé-cie de amor é o mandamento mais elevado, que abrange todos os outros.«Ama, e faze o que quiseres.» (Dilige, et quod vis , fac. In epistolam ioannis,VII, 8). „

Agostinho distinguia entre o amor ao bem supremo, caritas, e amorao mundo — a saber, o desejo que busca o bem nas coisas temporais. Es-te foi denominado cupiditas. Os dois relacionamse um com o outro comobem e mal. Caritas é a única forma verdadeira de amor; cupiditas é for-ma falsa, pervertida. Podese dizer, pois, que o poder de desejar é em si.o mesmo em ambos os casos. No homem natural dirigese ao mundo, aosensual e variável. Quando ocorre a conversão, esse dese jar é substituí-do; o cristão é dirigido ao celestial e eterno. Sua vida é transformada pelo

fato que seu amor a Deus foi despertado, e este amor gradualmente sub- juga seu amor pelo mundo.

Agostinho considerava o amor (amor) especialmente aquilo que coin-cide com a vontade interna do homem. Este podia dirigirse para cima, emdireção a Deus e ao eterno (ascendit), ou para baixo (descendit) em dire-ção ao que está sujeito à vontade — à criação, ao que é temporal. Aqueleé caritas, este, cupiditas. O homem só pode atingir seu destino e chegara conhecer a paz depois que seu amor foi totalmente dirigido a Deus. Emuma passagem Agostinho compara o amor (amor) a uma corrente de água

que, ao invés de correr em direção à sarjeta,onde não pode fazer qualquerbem, deveria ser regada sobre o jardim para refrescar tudo o que neleexiste. Tal como ele o entendia, o elemento de esforço é essencialmenteo mesmo,tanto em caritas como em cupiditas. O amor que é prodigalizadoem coisas do mundo deveria ser dirigido a Deus, pois ele é o bem supre-mo, o bem perene.

Poderia parecer, em vista disso, que o homem deveria romper suarelação com o mundo e devotarse exclusivamente ao que é eterno. Este,no entanto, não é o caso. Agostinho tinha em alta estima a vida de reclu-

são, e com alegria concebia a relação religiosa como comunhão íntima daalma com Deus — visão de Deus que é antecipação da bemaventurançaeterna. Mas Agostinho não desprezava a vida neste mundo. Apenas quan-do as coisas temporais ocupam o primeiro lugar no coração de um homem

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é que ele se torna objetável. A criação de Deus é boa, e o homem foicolocado nela para cuidar das dádivas que Deus colocou a nossa dispo-sição. Mas, como então, se relaciona a posição do homem no mundo comsua comunhão com Deus? Agostinho respondeu esta pergunta fazendo dis-tinção entre uti e frui, usar e deleitarse em. Mesmo o que foi criado pode

ser objeto de amor por si mesmo, mas o homem não deve aí encontrar seualvo final. Estas coisas só deveriam ser usadas como meios a serv iço daforma mais elevada de amor. Somente Deus deveria se r o objeto daqueleamor que repousa, incondicionalmente, no que é amado. Tal amor é absor-ção perpétua em Deus — fruitio Dei. A diferença entre frui e uti é a dife-rença entre amar por causa da coisa em si (diligere propter se) e amor porcausa de outra coisa (diligere propter aliud).

A vida do homem pode ser comparada a uma jornada à terra natal.O alvo de suas peregrinações é apenas aquela terra que lhe proporciona

verdadeira alegria. Em sua jornada precisa usar navios e carros para atin-gir seu alvo. Se procurasse alegria nos prazeres da viagem, aquilo quedeveria ser meio teria assim se transformado em alvo. Da mesma forma,o mundo em que o cristão vive deve ser usado, mas não deve tornarseo objeto da alegria. Aquele amor que usa as coisas do mundo, mas en-contra sua verdadeira alegria apenas na pátria celestial, é caritas. Aqueleamor que busca a satisfação no mundo, usando Deus como meio para al-cançar prazer temporal, é cupiditas. «Os bons usam o mundo para pode-rem encontrar seu prazer em Deus; os perversos, ao contrário, querem usar

a Deus para que possam gozar o mundo» (A Cidade de Deus, XV, 7).A distinção entre uti e frui constitui a base para um amplo sistema

relativo à conduta do homem face a Deus e ao mundo. Considerase eleordenado segundo uma escala de valores em que tudo tem o lugar que. me-rece, dependendo do próprio valor e de sua proximidade ou distância da-quilo que é de va lor absoluto. O amor devese ajustar a esta escala devalores, e assim tornase ordinata dilectio. O amor bem ordenado é aque-le que ama a Deus como ele merece, e ama o mundo apenas por causa

de sua relação com o bem mais elevado, apenas porque é um meio deatingir o que tem valor supremo.

Agostinho, com isto, não nega, entretanto, que a criação também po-de se r objeto de amor. Mas este amor deve ajustarse segundo o valorda coisa em questão, que é determinado não pelo que faz por nós aquimas pelo fato que aponta para cima para o bem supremo. Mesmo o amorpróprio (amor sui) tem o seu lugar segundo Agostinho. Pois quando nosé dito: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo», isto sugere que o ho-mem também deve amar a si mesmo. Agostinho introduziu esta idéia na

doutrina da dilectio ordinata. Devese amar a própria vida de acordo comsua importância na escala de valores.

Mas o conceito de amor sui também significa outras coisas para Agos-tinho. Pode ser usado como sinônimo para amor em geral, uma vez que

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todo amor é basicamente amor sui — concentração sobre o próprio bemestar ou sobre o destino mais elevado. Foi neste sentido que Agostinhodisse que amor próprio correto é amar a Deus e negarse a si mesmo.

Mas amor sui também pode ser usado para designar uma espéciede falso amor próprio, em que o homem só busca o prazer próprio, e amaa si mesmo em lugar de a Deus. Tal amor é uma das facetas da cupiditashumana, e como tal se opõe à verdadeira forma do amor. Nos escritos deAgostinho, portanto, amor sui pode ser entendido de três maneiras diferen-tes: como amor próprio legítimo, «bem ordenado»; como concentração nodestino mais elevado (neste sentido o termo é sinônimo de amor Dei); oucomo falso amor próprio.

O contraste decisivo se encontra entre caritas e cupiditas. Como sercriado, o homem está obrigado a procurar seu bem fora de si mesmo. Em

sua condição corrupta, buscao no mundo, em coisas e prazeres temporais.Pecado é precisamente isto, que a concentração mais profunda da vontadehumana se afasta de Deus em direção ao mundo, de modo que o homemama a criação ao invés de ao Criador. A mudança que ocorre na conver-são é que cupiditas, o amor impróprio ao mundo, é transformado em ca-ritas. Tal homem está saturado com o amor a Deus.

O homem é incapaz de produzir essa transformação por si mesmo.Seus desejos por bens temporais o mantêm cativo. Se o amor a Deus deveser despertado nele, isto deve vir de fora como dádiva. Deve ser «infun-dido» nele (infusio caritatis), expressão que Agostinho derivou de Rm 5.5:*0 amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo,que nos foi outorgado.» O homem só pode dominar seu amor pelo mundodepois que o amor de Deus lhe foi dado.

Entendia Agostinho essa infusão de amor em sentido físico, como acpncessão de um poder? Ele foi interpretado desta maneira, especialmentepela escola liberal de teologia, que em geral procede com base na antítesefísicoética. Mas esta conclusão não está correta. A graça e o amor são

derramados para dentro da vida do homem, mas isto é feito pelo EspíritoSanto, não acontece de qualquer modo mágico. Realmente, podese dizerque a caritas, que é outorgada ao homem, coincide com o Espírito Santo.É Deus que se dá a si mesmo ao homem, e mediante sua presença o ho-mem fica repleto daquele amor que o capacita a triunfar sobre os mausdesejos.

Na teologia católica romana posterior esta graça infusa é concebidacomo poder interno, conferido por meio dos sacramentos. Como resultado,considerase isto freqüentemente como ocorrência mágica, sobrenatural.Mas não se pode dizer que a maneira pessoal, ética de considerar as  coi-sas está ausente nos escritos de Agostinho. A graça é considerada comoverdadeiro poder transformador, e este poder é o próprio Deus, o Espíritoque é dado mediante a fé em Cristo.

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A encarnação foi necessária para a salvação. A cruz de Cristo nosdiz que Deus humilhouse até à morte por causa do homem. E é tãosomen-te isto que destrói o orgulho humano (superbia). O orgulho nos mantémcativos de nós mesmos, e esta é a causa de nossa miséria e infelicidade.Nada pode romper esses grilhões a não ser a humildade de Cristo, que

nos dá o exemplo e o remédio para nossa superbia.Agostinho reuniu duas linhas de pensamento numa síntese: a sa lva-

ção resulta da ação divina, sua graça preveniente, e sua descida até nós----------   - -  i   ---- -----------   í --- ,----- * ...

tra se caracteriza pela dialética caritascupiditas: a busca do bem supre-mo, que está oculto a todo homem. Esta busca é corromphjte pelo amorimpróprio ao mundo e ao próprio eu, e deve, como resulfaeÊ^ser redirigidaa seu alvo mais elevado e, desta maneira, encontrai\jêátlsfação no amarv  cristão a Deus. Foi assim que Agostinho combinou um cõrteéito basicamen^

te neoplatônico (a doutrina do eros) com a doutrifiã crista de salvaçãanuma'“tentativa de trazer respostas às perguntgs^ma^—grofundas do ^pmêbi'J e,ao mesmo tempo, resumir o con teúdo^^v^ahgelho cristão. \Ç0fi   AndersNygren. Eros and Agape ( Lon d r e s 953), II, 449562)

A DOUTRINA DA IGR EJA SEGUNDO AGOSTINHO

Com respei&tx^a^utrina da igrejasAgostinho continuou a desenvol-ver a tradiçãK^aiagèrital que se origtrfaíá, acima de tudo, com Cipriano.Tem sido pôsàjfwj interpretar ^ p 0 jç ao de Agostinho de várias maneiras.Ilustra que tanto ovcoirceito hierárquico como as tendências antipapàis \ faTtdade Média efrqpntraram apoio na eclesio logia de Agostinho.

que levou Agostfnho a desenvolver seu conceito de igreja mais cui-dadosamente foka><sjgmrovérsia donatista, que provocara divisões na igrejado Norte da /w fm iaesde o final do terceiro século. Podese dizer que o

donatismostón^írimeiro movimento de «igreja livre» de destaque. Algumasde suajpideias lembram Cipriano e Novaciano (cf. acima), bem como astendêrvçias separatistas anteriores.

viÈste cisma, cujo nome vem de Donato, o Grande, bispo de Cartago(m. 332), principiou durante a perseguição de Diocleciano. Certas questões

U . I W U U I W I W W I W I I U U U U W V I I I u u u y u i y u v / I W I I I I U I U l l l U U U U U U U W U I I I U U I U U U V U i

Por exemplo: cópias da Escritura poderiam ser entregues aos pagãos? Opartido rigorista dizia não, que as Escrituras não deviam ser entregues.Outros tinham ponto de vista mais brando e diziam que tal procedimento

não podia ser denominado traição. Mas quando esta última opinião foi in-troduzida numa eleição episcopal em Cartago, o grupo oposto arregimen-tou suas forças e elegeu seu próprio bispo. O cisma continuou a existirdesde então, dividindo toda a igreja <lo Norte da África. A certa altura,

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mais de metade dos bispos dessa região pertencia ao partido donatista.Donato foi um dos bispos de Cartago que mantinha o ponto de vista maisrigoroso.

Originalmente essa controvérsia também incluía uma questão pessoal:certo bispo de Cartayo fora consagrado por alguém que entregara Escritu-

ras às autoridades romanas para serem destruídas durante um período deperseguição. O partido rigorista era de opinião que tal ato não era válido.Posteriormente a controvérsia ampliouse, incluindo a questão do batismoválido, da santidade da igreja, etc. Os donatistas formaram seu própriocorpo eclesiástico , que diziam se r a única igreja verdadeira. Este grupocresceu notavelmente no Norte da África , mas tãosomente lá. Até mesmoAgostinho viuse envolvido nesta controvérsia. Em vários escritos refutouas idéias donatistas, chegando ao ponto de dizer que o poder secular deviaauxiliar na tarefa de forçar os donatistas a voltarem à igreja. Houve deba-

tes com os donatistas em Cartago em 411, e desse momento em diante omovimento começou a diminuir em número e influência. Finalmente desa-pareceu por completo. Mas, atitude fundamentalmente idêntica à dos do-natistas reaparece de tempos em tempos na história da igreja. Opiniõessectárias ou de igreja livre são geralmente baseadas em eclesiologia do-natista. Por este motivo o conflito entre Agostinho e os donatistas se re-veste de grande significado também do ponto de vista dos princípios en-volvidos.

Os donatistas perpetuaram a antiga tradição pneumática. os únicosocupantes legítimos de cargos são os que possuem os dons do Espírito.Assim como Cipriano, associam o cargo ao Espírito, e concluem que o car-go de bispo possui os dons do Espírito. Reconhecem como bispos verda-deiros apenas aqueles que demonstram, por suas vidas inatacáveis e seusdons, que são os portadores do Espírito. Esta posição, em si, não resulta,necessariamente, em cisma. Mas, posteriormente também se concluiu quea atividade pastoral de um bispo indigno não é válida. Como resultado,os que foram ordenados por tal homem, não podiam ser verdadeiros bispos.

Os que foram batizados por ocupante indigno de cargo eclesiástico, umherege, por exemplo, não foram batizados realmente, uma vez que tais pas-tores não possuem os dons do Espírito. O donatismo, portanto, representauma posição que se convencionou chamar theologia regenitorum: a influên-cia espiritual (por exemplo) dos sacramentos julgavase depender da san-tidade do clero oficiante, (o oposto: theologia irregenitorum).

A posição dos donatistas como manifesta nas questões práticas acimamencionadas relacionavase com seu conceito de igreja. Concebiam a igre-

 ja como comunhão dos santos. E, uma vez que a igreja existente toleravahipócritas e os' que uma vez tinham apostatado, ou adotavam posição maisbranda quanto à penitência, era necessário romper as ligações com estaigreja. Os donatistas insistiam que os que deixavam a igreja existente parafiliarse a sua própria organização tinham de ser rebatizados. Apenas a

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ordenação dada por bispos aprovados era considerada válida. Assim co-mo Cipriano, os donatistas ressaltavam a importância do episcopado dotadodo Espírito, mas visto também concordarem com Novácio, ao pensarem quea igreja é a comunhão dos santos puros, tornaramse separatistas.

Um dos predecessores de Agostinho na luta contra o donatismo foi

Optato de Mileve, a quem dedicou um de seus escritos polêmicos. Em vá-rios escritos produzidos por volta do ano 400 (por exemplo: De baptismo),Agostinho apresentou suas idéias principais sobre a questão da igreja edos sacramentos em oposição às doutrinas donatistas.

O problema principal dessa controvérsia relacionavase com a validezdo batismo e da ordenação. Como se viu acima, os donatistas insistiamem rebatizar os que se filiavam a sua igreja. Argumentavam, nesta conexão,que apenas aquele que era santo podia oficiar um batismo válido e eficaz;somente assim podiam os batizados ser santificados. Em oposição a isto,Agostinho sustentava que a igreja tinha de reconhecer como válido mesmoo batismo oficiado por um cismático. Pois o batismo é, em si mesmo, umaação sagrada, e não depende da santidade daquele que o ministra. «Hágrande diferença entre um apóstolo e um beberrão; mas não há diferençanenhuma entre um batismo cristão realizado por um apóstolo e um batismocristão realizado por um beberrão ... Não há diferença entre um batismocristão realizado por um apóstolo e o que é realizado por um herege» (Epís-tola 93, 48). «A água empregada num batismo herético não é adulterada;

pois a criação de Deus não é em si mesma má, e a Palavra do evangelhonão deve ser considerada falha por qualquer mestre.» (De baptismo, IV, 24).

Através do batismo o homem é marcado como pertencente a Cristo;recebe um character dominicus, assim como escravos e gado são marcadospara demonstrar que são propriedade de certo indivíduo. No mesmo sentido,o batismo implica no fato que um homem pertence a Cristo . Esta marcaé — no termo medieval — indelével (character indelebilis). O mesmo se dácom a ordenação de pastores e a consagração de bispos. Portanto, segundoeste ponto de vista, nunca é necessário o rebatismo, e nem a reordenação.

Agostinho, portanto, era representante da theologia irregenitorum (cf. acima).

Nesta questão, Agostinho estava em desacordo com Cipriano. Estemantinha que apenas um batismo realizado dentro da igreja, onde se en-contra o Espírito, podia se r eficaz para a salvação. Portanto, um batismoherético não seria válido, e os que chegassem à igreja vindos de qualquerseita herética deveriam ser rebatizados.

Será então verdade, que Agostinho não fazia distinção entre batismocismático e batismo realizado dentro da igreja? Absolutamente! Acreditavaque ambos os batismos eram igualmente válidos, mas, como Cipriano, tam-bém julgava que apenas o batismo da igreja tinha influência redentora. Obatismo confere o perdão dos pecados e a regeneração apenas quando oshomens aderem à única igreja. Pois é somente dentro da igreja que o Es

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pírito Santo é derramado, e com ele o dom do amor (caritas). Agostinhoresolveu o problema de unir estes dois pensamentos distinguindo entre osacramento em si e a eficácia do sacramento (o que Cipriano não fazia).«O sacramento é uma co isa; a eficácia do sacramento é outra.» O efeitodo sacramento, que só se pode encontrar onde a unidade da igreja é pre-

servada, é o amor. «Ninguém que não ama a unidade da igreja tem amora Deus, e por causa disto é correto dizer que só se recebe o Espírito Santodentro da Igreja Católica» (De baptismo, III, 21). Mas o sacramento em siex iste mesmo estando ausente a eficácia : «A pessoa batizada não perdeo sacramento do batismo quando se separa da unidade da igreja. Da mes-ma forma, um homem ordenado não perde o sacramento de administrar obatismo ao se separar da unidade da igreja» (De baptismo, I, 2). Heréticosbatizados recebem o batismo da mesma maneira que os justos, mas nãotêm amor.

Agostinho usava o termo «sacramento» de modo mais amplo do quenós o fazemos. Concordava, todavia, que o batismo e a ceia do Senhorsão os principais sacramentos. Foram transmitidos a nós por Cristo, e coma Palavra constituem a base da igreja (cf. Jo 19.34). Agostinho traçavalinha demarcatória nítida entre os sinais externos ou elementos, usados nossacramentos, e seu significado espiritual. Da mesma maneira, também dis-tinguia entre a Palavra externa e o Espírito que transmite a Palavra. Ossinais externos são símbolos que apontam às realidades espirituais. Agos-tinho concebia a eficácia espiritual como paralela à realidade externa. Per-tencem juntas como resultado da ordem de Deus, mas ao mesmo temposão distintas. Esta concepção «simbólica» no pensamento de Agostinhoderivavase de sua origem neoplatônica. Coisas externas estavam nitida-mente separadas das espirituais, mas, apesar disso, podiam servir de sím-bolos que apontam ao divino, sendo os meios pelos quais o divino seaproxima de nós. Os sacramentos são sinais externos que possuem con-teúdo espiritual. Mas não estão necessariamente ligados a estes sinais.

A oposição ao donatismo também incluía o conceito de igreja em geral.

Como já foi mencionado, os donatistas julgavam comporse a igreja desantos perfeitos, descrição que apenas abrangia seu grupo. Agostinhoobjetava dizendo que desta maneira restringiam a igreja à África. Em suaopinião, a igreja de Cristo se encontra no mundo inteiro. Esta é a igrejaque se baseia na palavra de Cristo, e na qual seus sacramentos são admi-nistrados. Os ímpios e os hipócritas não podem se r lançados fora destegrupo por outros homens. Os que pertencem a esta igreja em sentido ex-terno devem ser considerados parte dela, ainda que o Espírito ou o amorestejam ausentes em alguns. Estes não pertencem à comunhão dos santos,

à igreja no sentido verdadeiro do termo. Conforme Agostinho, a igreja ve r-dadeira compõese dos piedosos, daqueles em quem o Espírito de Deus opera e em quem ele acendeu a chama do amor, caritas. Estão unidos porcomunhão interna, invisível, «a unidade do Espírito no vínculo da paz».

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Em virtude de seus interesses comuns, manifestam o amor derramado atra-vés do Espírito de Cristo, e como resultado, formam uma unidade espiritualem Cristo. São o corpo de Cristo . Esta igreja interna conservada unidapelos liames invisíveis do amor, não é equivalente à organização eclesiás-tica externa — a cristandade na terra. Esta, também, forma uma comuni-

dade, a comunidade de todos os que confessam o nome de Cristo e par-ticipam dos sacramentos. Esta comunidade eclesial externa é constituídapelos sacramentos e é santificada mediante Palavra e sacramento. Suasantidade não consiste na santidade de seus membros ou nos dons ca ris -máticos do clero. Nesta igreja, cristãos verdadeiros e hipócritas encontramse lado a lado, e vivem juntos, tal como o trigo e o joio crescem juntosaté a época da colheita.

A igreja, portanto, significava duas coisas para Agostinho: a orga-nização externa e a comunhão dos santos (ou comunidade dos verdadeiros

crentes). Estas não são idênticas, pois muitos dos que pertencem à igrejano sentido externo não estão numerados entre os verdadeiros crentes. Mas,apesar disso, estão relacionados, uma vez que a comunhão dos santosestá sempre presente dentro da organização externa. A verdadeira fé sópode se r encontrada onde as pessoas vivem em união ec les ial. Fora destacomunhão não há salvação, pois o Espírito de Cristo não se encontra foradela, e nem tampouco o amor.

Em certas ocasiões, Agostinho também se refere a uma terceira de-finição de igreja, quando fala dela como o numerus praedestinatorum. Este

grupo de crentes não coincide nem com a organização externa nem coma comunhão dos santos. Também não é idêntica à cristandade, pois é ima-ginável o fato que Deus pode eleger mesmo os que estão fora da igreja(Jó, que não era israelita, é mencionado aqui, como exemplo) ou pessoasque não receberam os sacramentos (como o ladrão arrependido). Nem tam-pouco são os eleitos precisamente aqueles que agora pertencem à comuni-dade dos crentes. Pois é possível que alguns destes apostatem no futuro,caso não possuam o dom da perseverança. Os eleitos são os que parti-ciparam da graça e permaneceram fiéis até ao fim. Que nenhum homem écapaz de ver ou julgar quem realmente pertence ao grupo dos predesti-nados se explica pela própria natureza da questão. Podese ilustrar o con-ceito triplo de igreja de Agostinho da seguinte maneira:

A . A instituição externa da salvação,a cristandade.

B . A comunhão dos santos, a noivade Cristo, a comunhão invisívelde amor.

C . Os predestinados.

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A doutrina da igreja de Agostinho foi importante, não apenas paraa controvérsia donatista, mas também para sua descrição do reino de Deuse do reino do mundo apresentada em seu escrito A Cidade de Deus. Os22 livros desta obra, completados durante os anos 413 a 426, foram es-critos especialmente como apologia dirigida contra os pagãos que culpavam

os cristãos pelos infortúnios sofridos pela sociedade. É também descriçãoda história do mundo concebida por Agostinho como conflito entre os doisestados ou comunidades representados pelos pagãos e pela cristandade. «Acidade de Deus» e «a cidade do mundo» não são aí apresentadas'comoduas unidades administrativas, cujo poder deve ser regulamentado uma vis-àvis à outra, mas antes como duas sociedades, que estão em conflito umacom a outra desde o início dos tempos. Esse conflito determinou o cursoda história e formou sua continuidade interna. Ambas as sociedades sãomantidas juntas pelos liames do amor: num caso há pessoas que amam a

Deus até ao ponto de se desprezarem a si mesmas, e no outro, pessoasque se amam a si mesmas a ponto de desprezarem a Deus. Esta diferençafoi encontrada até mesmo no mundo dos anjos (havia anjos bons e anjosmaus), e esta mesma diferença tomou forma no mundo dos homens princi-piando com Caim e Abel. Ouvimos aí que Caim construiu uma cidade, en-quanto Abel viveu como estrangeiro sobre a terra. Através de Cristo asociedade piedosa tomou forma concreta na igreja, a comunhão dos cren-tes, tal como a sociedade terrena apareceu na forma do Império Romanoe em outros estados pagãos.

Não seria, pois, apropriado, comparar a «cidade de Deus» e a «cida-de terrena» de Agostinho com o contraste moderno entre igreja e estado.A concepção de Agostinho é mais ampla. Falou de duas linhas de desen-volvimento, de duas sociedades, que estão ativas nos eventos da história.Não se referia simplesmente a poderes ou comunidades externas.

«A cidade de Deus» não é a organização eclesial ou hierárquica ex-terna, mas, acima de tudor a comunhão dos santos, a igreja interna, queestá oculta e, contudo, concretamente presente na organização externa.

«Pois a pátria dos santos está no alto, embora forneça cidadãos aqui embaixo, que aqui habitarão como estrangeiros até o domínio da pátria celes-tial se manifestar.» (A Cidade de Deus, XV , 1).

Da mesma forma, «a cidade terrena» não se identifica com o estado;designa, ao invés disso, a sociedade de pessoas más e ímpias, que cons-tituíra a força motriz que impulsionara a formação do estado pagão.

Agostinho escreveu este livro principalmente para defender a comu-nhão dos santos do estado romano pagão. Esta antítese é de significado

fundamental. A sociedade devota é a comunhão dos crentes piedosos. Asociedade terrena é a comunhão dos homens maus, todos os inimigos deDeus. Isto não quer dizer, contudo, que Agostinho se opunha frontalmenteao sstado secular. Reconhecia, por exemplo, que mesmo um estado pa-

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gão e mau, que encerra em si a cidade terrena, tem seu valor, uma vezque apoia a ordem externa e assim proporciona certos benefícios. Tambémse refere ao estado cristão como ideal, pois não apenas fornece a estru-tura externa, mas também serve, ao mesmo tempo, como meio pelo qual oreino de Deus pode crescer e avançar. O alvo de tal estado é o reino de

Deus; em si mesmo,é apenas um meio de promoção do Reino. Está, pois,em princípio, subordinado ao reino de Deus e deve obedecer a suas leis.

Podese ver do que precedeu que a relação entre «a cidade de Deus»e «a cidade terrena» é a mesma que há entre caritas e cupiditas. Cupiditasé algo mau, pois ama apenas o mundo e se esquece de Deus. Isto nãosignifica, todavia, que todo amor às co isas temporais é repreensível. Maseste amor deve ser subordinado ao amor superior, deve usar as. coisastemporais como meio para alcançar o nível mais elevado. No mesmo sen-tido, o estado terreno não é mau em si mesmo, mas pode tornarse. Pois,

quando o estado se torna um fim em si mesmo, ou se torna a única socie-dade em que os homens estão envolvidos, ou se se dirige apenas a vanta-gens temporais — então tornase mau. Se, por outro lado, um estado écontrolado por leis cristãs e se subordina à comunhão dos crentes comoseu alvo mais elevado, servindo de meio para alcançálo — então preenchea função que lhe foi dada por Deus. Então o estado assume a posiçãoque lhe foi destinada, e é bom e útil tanto aos propósitos seculares comopara o crescimento e progresso do reino de Deus.

«A cidade de Deus», portanto, não é o equivalente da igreja externa,nem ainda Agostinho concebeu estas duas entidades como antitéticas. Osque crêem em Cristo, que estão cheios de seu Espírito e que vivem noamor de Deus, participam de uma comunhão espiritual. É através desse gru-po de fiéis que Cristo conduz seu reino à vitória. Como tal, esse grupo re-presenta o domínio de Cristo na terra. E, embora essa comunidade internaseja invisível, é ao mesmo tempo uma associação concreta, a «vida dossantos em conjunto». «A cidade de Deus» também pode identificarse como reino de Deus, na medida em que este se torna realidade aqui na terra.

Mas esta «cidade» em algum tempo do futuro se integrará no reino etèrno,que se encontra além das fronteiras do tempo e, no qual a comunhão dossantos será perfeita,

No que tange à relação entre o estado piedoso e o estado terreno,Agostinho sustentava que este devia submeterse àquele. Isto se coadunacom os pressupostos gerais. O estado terreno só se destina a se rvir ob-

 jetivos terrenos. Existe por causa da ordem externa. Além disso, o estadoterreno deve também apoiar a comunidade que inclui os eleitos de Deus,os santos. O reino de Deus é o objetivo de toda a raça humana. E o es-tado terreno deve servir a esta finalidade também, nas profundezas de seuser, se de fato quiser ser um estado cristão. Esta linha de pensamento,em si, não quer dizer que o estado deva submeterse à igreja, (isto é, àestrutura eclesial externa), pois Agostinho está aqui falando das próprias co

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munidades e de seus objetivos internos. Durante a Idade Média, entretan-to, o pensamento de Agostinho foi interpretado como significando que o es-tado está subordinado à igreja, e A Cidade de Deus realmente constituiuo fundamento da doutrina da supremacia papal sobre a autoridade secular.Imperadores e reis, diziase, tinham de receber seu poder do papa, e era

privilégio do papa, em vista disso, de estabelecêlos em seus cargos. Agos-tinho não apoiava este conceito de governo eclesiástico, mas nada existiaque pudesse impedir tal desenvolvimento. Agostinho, na realidade, achavaque a comunhão dos crentes se manifesta no clero e na organização ecle-siástica externa, e não traçou uma linha específica de demarcação entre «acidade de Deus», a comunhão espiritual interna, e a estrutura externa daigreja. Aquela pressupõe a existência desta. O conceito hierárquico, por-tanto, representava uma reinterpretação do ponto de vista de Agostinho,mas ê, ao mesmo tempo, uma extensão lógica de certas facetas de sua

teologia.

A DO UTRINA DE PECADO E GRA ÇA DE AGOSTINHO

Há certa analogia interna entre as controvérsias trinitárias e cristológicas, que grassaram no Oriente durante os séculos IV e V, de um lado,e de outro lado, a controvérsia pelagiana no Ocidente no século V . Ambasgiravam em torno da mesma questão: Que constitui a base para a sa lva-

ção? Após o repúdio do arianismo e das heresias monarquianas, os argu-mentos seguintes se evidenciaram: Se Cristo não é verdadeiro Deus, nãopode sa lvar os homens; se não é verdadeiro Deus e verdadeiro homemem uma pessoa, não pode libertar os homens do domínio do pecado e damorte. De maneira semelhante, Agnstinhn afirmnn.em oposição a  Pelágin.que a salvação é obra do próprio Deus; não é de origem humana. Numacontrovérsia, o ponto principal se referia à relação entre as naturezas divinae humana em Cristo ; na outra, à relação entre a graça de Deus e o livrearbítrio do homem (cf. Ragnar Bring, Kristendomstolkningar, 1950, p. 230 s.).

Tal como Atanásio ensinara que Cristo é verdadeiro Deus, de modo que aobra que realizou é a própria obra de Deus, assim também Agostinho en-sinou que é tãosomente a graça de Deus que opera a salvação dos homens.Mas para Agostinho isto não era questão puramente teológica; tinha tam-bém reflexos antropológicos. Na teologia ocidental a doutrina de pecado egraça, bem como a doutrina da igreja, chegaram a ocupar o lugar centralde interesse.

.Peláaio. natural da Irlanda, apareceu em Roma pouco antes do ano400 como pregador extremamente rigoroso de penitência. Mais tarde tam-bém trabalhou no Norte da África. Celéstio foi um de seus discípulos , ealgum tempo depois Julião de Eclano tornouse o expoente principal dopelagianismo. O pelagianismo foi aceito por muitos, mas também suscitouforte oposição, especialmente da parte de Agostinho, que contra ele escre

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veu várias obras. Os teólogos orientais também foram persuadidos a re- jeitar Pelágio, e no Concílio de Éfeso em 431 (onde o nestorianismo foicondenado) a doutrina pelagiana foi repudiada como sendo herética.

Em suas pregações, Pelágio apelava ao livre arbítrio do homem. Su-punha que o homem tem em si mesmo a capacidade de escolher entre o

bem e o mal. Acreditava que se o homem não se julgava capaz de cumprircom os mandamentos de Deus, jamais seria capaz de fazêlo, e como re-sultado, nunca mudaria para melhor. Seria inútil esperar que o homemfizesse o que lhe parecesse impossível.

Na teologia da igreja primitiva a idéia do livre arbítrio era pressupos-to básico, tanto no Ocidente como também entre os gregos. A pregaçãoda lei era feita tendo isto em mente; o mesmo acontecendo também como processo de educação. Sem essa liberdade não se podia considerar o

homem responsável por seus atos; igualmente, suas transgressões não po-deriam tornálo culpado.

Mas na controvérsia entre Agostinho e Pelágio toda a questão do li-vre arbítrio ingressou em nova etapa e se tornou uma das questões cruciaisda própria salvação — o problema de pecado e graça. Na teologia de Pe-lágio, o livre arbítrio recebeu significado bem maior que na tradição ante-rior. Para ele, não era simplesmente a capacidade do homem de esco lhere agir em liberdade (não simplesmente uma liberdade formal ou  psicológica,para usar terminologia mais moderna). Também significava, no que se re-

feria a Pelágio, que o homem é livre para escolher entre o bem e o mal;defrontandose com várias alternativas, poderia escolher a maneira corretade agir, bem como a errada.

Em outras palavras, o homem tem a possibilidade e a liberdade dedecidir em favor do bem. Pecado, s egundo Pelág io, consiste apenas deatos isolados da vontade. Se o homem deseja o que é mau, ele peca. Masnada há para impedilo de escolher o que é bom, evitando desta maneirao pecad a Pelágio rejeitou a idéia que se deve conceber o pecado em ter-

mos da natureza ou do caráter do homem. O pecado não é defeito da na-tureza mas da vontade. Como resultado, também negouse a aceitar a dou-trina do pecado original. Pecado é apenas o que o homem faz, e por causadisto não pode ser transmitido por herança, não pode estar implícito nanatureza. Pelágio também julgava poder afirmar a responsabilidade humanaapenas nestes termos; podia imaginar o progresso humano apenas dentrodesta perspectiva. Crianças pequenas, que são incapazes de esco lher cons-cientemente o que é mau, estão, portanto, livres de pecado, de acordo comPelágio. Como resultado, o batismo não implica necessariamente em liber-

tação do pecado.Pelágio também afirmava, falando em geral, que o homem pode avan-

çar até a perfeição, que pode evitar cada vez mais o mal e escolher o bem.Como então explicava ele a universalidade do pecado? Por que o homem

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livre escolhe tantas vezes o que é mau? Confrontado por tais perguntas,Pelágio fazia referência ao costume há muito enraizado de pecar (longa consuetudo vitiorum). Por causa de repetidas ações da vontade, a propen-são do homem para pecar cresceu.

Mas, apesar disso, o homem é capaz de escolher o bem por ação da

vontade. Não precisa ele então da graça de Deus? Não, nem mesmo Pe-lágio diria isso; ele, também, falou de graça, embora não da mesma ma-neira que Agostinho. Para este, a graça é algo que altera a vontade dohomem, que o enche com o amor a Deus e desta maneira modifica toda adireção dè suá vontade. _Para Pelágio, a graça de Deus significa que ohomem tem deade o início uma vontade livre para escolher o bem, A obrada graça é benefício da natureza (bonum naturae). Além disso, a graça deDeus facilita o processo de escolha e capacita o homem a alcançar aquiloque é bom. Esta ass istência é fornecida mediante a pregação da lei e me-diante o exemplo de Cristo, bem como pelo perdão dos pecados, que ca-pacita o homem a continuar sua jornada sem ficar enredado em seu pas-sado. É, pois, necessário, que a vontade do homem seja apoiada pela gra-ça de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o homem é capaz de escolher o bempor si mesmo e para si.

Agostinho opunhase categoricamente a tais idéias. Seus conceitosde liberdade, de pecado e graça foram apresentados em vários escritos di-rigidos contra o pelagianismo (cf. De spiritu et littera, 412; De natura et 

gratia, 415; e Contra iulianum, 421). A controvérsia dizia respeito, em suamaior parte, aos seguintes pontos; o livre arbítrio, o pecado original, aconquista da salvação, graça e predestinação.

Considerada de um ponto de vista, toda esta faceta da teologia deAgostinho constitui uma descrição do homem e de sua posição face a Deus.Ao mesmo tempo, no entanto, a antropologia teológica de Agostinho tam-bém foi inserida em sua doutrina do plano da salvação. Dá atenção espe-cial à maneira como Deus trata com o homem e as várias condições do

homem, nesta seqüência de eventos, que é descrita como o plano de sal-vação que Deus tem para o mundo. Afirmações relativas ao livre arbítrioe à obra da graça são condicionadas pelas várias etapas em que o homemse encontra em seu desenvolvimento, desde a criação até a perfeição. Agos-tinho distingue quatro dessas etapas, uma vez que fala do homem ante legem, sub lege, sub gratia e in pace (ou, em terminologia mais recente,«an-tes da queda», «depois da queda», «depois da conversão» e «na perfeição»).

No assim chamado estado original, isto é, quando o primeiro homemfoi criado, ele possuía medida completa de liberdade. Tinha então livre ar-

bítrio não somente no campo da ação; também era capaz de escolher entreo bem e o mal. Em outras palavras, o homem então possuía liberdade nosentido formal, bem como a capacidade de escolher o bem. Esta espéciede liberdade implicava, portanto, na capacidade de evitar o pecado (posse

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non peccare). Esta capacidade não pertencia ao homem por causa de seusdons naturais; pertencialhe somente por causa da ajuda da graça divina.Era apenas a prima gratia que dava ao homem a liberdade de escolher obem.

Mas a liberdade também encerra a possibilidade de uma queda, e o

primeiro pecado foi ocasionado pelo livre arbítrio. A queda significa queo homem, em espírito de arrogância, afastouse de Deus e se colocou nadireção do mal. A caritas foi substituída pela cupiditas na vida do homem.O homem perdeu assim a dádiva da graça, e com ela a liberdade que cons-tituía a capacidade de escolher o bem. Pois quando a graça foi perdida,alterouse a natureza humana. A razão e a vontade não mais controlam ospoderes inferiores da alma; por outro lado, estes poderes assumiram po-sição dominante, e o homem, como resultado, viuse enredado nas malhasdo desejo e guiado pela concupiscência. Esta condição ele é incapaz de

mudar. Em ocasiões isoladas a vontade pode dominar a concupiscência,mas a direção da vontade, apesar disso, permanece a mesma. O homemé incapaz de livrarse da servidão à concupiscência, porque nesta situaçãoo mundo é o objetivo primordial de sua vontade, e não Deus.

A queda, portanto, significa que o homem perdeu a liberdade de es-colher o bem. Como conseqüência, o homem agora sentese impelido apecar (necessitas peccandi). Seu posse non peccare transformouse emnon posse non peccare. Aqui Agostinho opõese a Pelágio. Agostinho ne-

gava que o homem, depois da queda, continuava a possuir livre arbítriono verdadeiro sentido, a saber, a liberdade de escolher o bem. Em vezdisso, está sob o impulso de pecar, o que quer dizer que age de tal ma-neira que a corrupção é inevitável. Boas obras isoladas podem ser reali-zadas, mas estas não modificam a intenção má de sua vontade. Ao mes-mo tempo, entretanto, Agostinho não negava a liberdade em sentido formal.Seu conceito não é determinista. O homem age livremente. Mas devidoà sua condição, o homem só está livre para pecar. Em outras palavras,sua liberdade é muito limitada, ou corrompida. A tendência do homem de

escolher o mal determina o curso de sua conduta e o impede de fazer obem. Realmente, o homem está livre no que concerne a ações individuais.Ao mesmo tempo, entretanto, sua atitude básica, moldada por sua vontade,é algo que não pode mudar — e, até esse ponto, não é livre.

As más tendências volitivas do homem se expressam como concupis-cência, ou desejo. Mas,ao mesmo tempo, o primeiro pecado foi ofensa (culpa) com a qual o homem incorreu em culpa perante Deus. Por esta razão,o pecado original implica numa condição perpétua de culpa (reatus). É es-ta culpa que é a essência do pecado, ou que torna o pecado pecado (seu 

formale). A culpa herdada é removida pelo batismo, de modo que o peca-do original não é mais contado como pecado. Apesar disso, a condiçãopecaminosa permanece, mesmo depois do batismo, a concupiscência atri-buível à influência do pecado original, ainda está presente. A própria na

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tureza humana é prejudicada pela corrupção implícita no pecado original;ela é, como resultado, uma «natureza viciada pelo pecado». O pecado nãoé simplesmente uma série de ações voluntárias isoladas ; é corrupção realda natureza, resultante do fato que a própria direção da vontade está de-turpada. Lutero enfatizou isto dizendo que o pecado não só se restringe

às ações externas ; descrença e inimizade contra Deus constituem sua es-sência. De modo semelhante, Agostinho descreveu o pecado como perver-são da vontade. Nisto vemos o principal ponto de conflito entre ele e Pe-lágio.

O pensamento que o pecado está implícito na natureza humana é su-gerido pela própria idéia de se r a corrupção herdada. O primeiro passo emfalso resultou do livre arbítrio do homem. Mas toda a raça humana esteveenvolvida na queda de Adão. O Adão bíblico é o «homem» em geral; to-dos estão representados nele, de modo que todos os seus descendentes

formam uma unidade nele. Como resultado, todos participam na culpa deAdão, mesmo que a presença do pecado original no indivíduo não dependade um ato da vontade; está presente antes que a vontade comece a semanifestar. A condição de culpa é herdada, e é removida do indivíduo atra-vés do batismo.

Assim também acontece com a corrupção humana; ela igualmente éherdada,como resultado da desobediência de Adão. Isto quer dizer que épropagada de modo real de uma geração à seguinte. Agostinho acreditava

que, com a propagação natural, também os maus desejos passavam de umageração à seguinte. Deste modo, a humanidade tornouse uma massa perditionis. Toda a raça humana é escrava dos desejos e afligida com a cor-rupção que deles resulta.

Além disso, na opinião de Agostinho, nossa condição pecaminosa her-dada também nos torna culpados perante Deus; com base no pecado ori-ginal, o homem é digno da condenação divina. A luz disso, Agostinho con-cluiu que crianças não batizadas estão sujeitas à condenação. A teologiacatólica romana posterior abrandou esta afirmação de várias maneiras, e

mesmo Agostinho sugeriu que as orações da família podiam, em alguns ca-sos, substituir o batismo. O conceito de pecaminosidade herdada foi muitasvezes mal compreendido. Naturalmente não significa que se nega que ascrianças sejam inocentes do ponto de vista meramente humano. Não équestão de pecado atual; antes, indica uma condição na qual o homem seencontra como resultado da perversão de sua vontade. A doutrina do pe-cado original também supõe a unidade da raça humana em Adão. Pois, ca-so contrário, como podia ser atribuída culpa ou responsabilidade a um in-divíduo por algo que não fez? A posição agostiniana nesta questão não

distingue entre crianças e adultos; a mesma ofensa se aplica a todos. Ima-ginar que o pecado original impõe culpa é iguèlmente difícil em ambos oscasos. Devese pressupor, nesta conexão, que o pecado original em siestá situado além dos limites do conhecimento empírico e, portanto, não

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pode ser apreciado do ponto de vista da experiência que a razão tem aseu dispor.

Em sua doutrina do pecado original, Agostinho descreve o pecado co-mo condição que abrange todo o homem; não se trata apenas de ações

isoladas. O pecado é um afastarse de Deus por parte da vontade do ho-mem (perversitas voluntatis a summa substantia). Isto implica em afirmarque o mal é algo negativo, sem substância, e desligado da comunhão comDeus, mas ao mesmo tempo, algo que implica em culpa e produz deprava-ção em termos bem concretos.

Em conexão com este conceito de pecado, é lógico concluir que, de-pois da queda, a vontade do homem tornouse incapaz de fazer o bem. Narealidade, o homem pode ocasionalmente fazer aquilo que é bom e útilaqui na terra. Mas enquanto a perversão da vontade domina, isto não po-de ser verdadeiramente bom, pois o próprio homem permanece mau, e suasáções se dirigem àquilo que conduz à corrupção. Esta doutrina do servoarbítrio (que não deve ser confundida com o determinismo) significa queo homem é incapaz de cooperar no interesse de sua salvação.

Aquilo que é a única fonte da salvação humana, a graça de Deus, foirevelado na obra de Cristo . Ele fez expiação pelos nossos pecados, e porintermédio da fé nele o homem pode participar da graça. Este é o únicocaminho à vida reta: «O que a lei ordena, a fé realiza» (Quod lex imperat,

fides impetrat. De spiritu et littera, 13, 22). A função da graça consiste, emparte, no perdão dos pecados e, em parte, na regeneração.

Através da obra de mediação realizada por Cristo, a comunhão comDeus, que fora perdida, foi restaurada. A culpa é removida pelo perdão dospecados, e o homem recupera a vida espiritual que foi perdida na queda.Na opinião de Agostinho, a salvação se encontra no perdão dos pecados,e a graça é a vontade misericordiosa de Deus que opera este perdão.

Mas a graça não apenas remove o pecado; também efetua a regene-

ração do homem. A natureza humana realmente encontrase depravada porcausa do pecado. Este mal só pode ser curado pela graça (gratia sanans).A vida retorna quando é restaurada a relação do homem com Deus. Agraça cria nova vontade no homem. Isto implica numa «infusão de amor»(ínfusio caritatis) . A má vontade, orientada em direção ao mundo, é subs-tituída pela boa vontade, pela car itas. Como resultado, o homem pode obe-decer aos mandamentos de Deus; anteriormente, era incapaz de fazêlo.Sua liberdade, isto é, sua capacidade de fazer o bem é restaurada (libertasrestituta). Enquanto durar a vida terrena, esta liberdade é mero início. Pois,

nesta vida o homem deve lutar contra o desejo e só é restaurado gradual-mente. O que pode produzir o bem no homem? Apenas o amor, a novavontade. Sem o auxílio da graça, o homem nunca pode fazer o bem. Comoresultado, o cumprimento da lei, que Deus exige, só é possível quando Deus

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mesmo fornece o poder. «Dá o que ordenas, e ordena o que quiseres»(Da quod jubes, et jube quod vis. Confissões, X, 29). Tal amor vai de mãosdadas com a fé. Cre r em Deus é amálo e esperar vêlo um dia. Fé, es-perança e amor pertencem juntos; são as virtudes essenciais do cris tia-nismo.

A salvação resulta do perdão dos pecados, mediante a fé, indepen-dentemente de mérito humano. Nada há que o homem possa fazer de simesmo para realizar esta salvação. Este foi o principal argumento de Agos-tinho contra Pelágio; Agostinho tomou esta idéia básica de Paulo, cujadoutrina da justificação pela fé teve influência decisiva sobre Agostinho.A vontade do homem é incapaz de fazer o bem e, portanto, a salvação de-ve ser obra do próprio Deus. Mas, para Agostinho, graça inclui a rege-neração do homem. A vontade do homem se altera, o amor é derramadonele; como resultado disto, o homem pode fazer verdadeiramente o que

é bom e pode tornarse cooperador de Deus na fé. Encarado de certo mo-do, Agostinho parece dizer que esta regeneração é o alvo. O amor a Deus(caritas) é o pressuposto da salvação do homem. Esta interpretação dePaulo é um tanto diferente da dos Reformadores. Segundo Lutero e a tra-dição luterana, é apenas a fé em Cristo e seus méritos que justifica o ho-mem; as obras humanas aí não têm lugar. Agostinho igualmente dizia queo homem é salvo pela fé, mas esta fé também pratica o bem; relacionasecom a caritas e se expressa através dela. Ações que se originam no amorsão consideradas meritórias e eventualmente serão recompensadas. MasAgostinho também enfatizava, ao mesmo tempo, que tal mérito só podese r conquistado pela graça. Disse ele; «Quando Deus recompensa nossosméritos, está realmente recompensando suas próprias dádivas.» (Epístola194, 19).

Agostinho, entretanto, não diz que a graça que perdoa é a única cau-sa e pressuposto da salvação; também reconhece a importância do amorque Deus derrama no coração do homem. A base real da salvação é tãosomente a graça (e não o livre arbítrio do homem), mas o que se destaca

na obra da graça não é tanto a justiça «alheia» de Cristo que é imputadaa nós, mas antes a transformação que ocorre na vida do indivíduo renasci-do por causa do amor de Deus que foi derramado nele.

A oposição de Agostinho a Pelágio expressouse mais fortemente emsua doutrina da predestinação. A graça, que é a única fonte da salvaçãodo homem, é a vontade misericordiosa de Deus ; ela é, ao mesmo tempo,onipotente. A onipotência desta graça significa que a salvação do homemdepende apenas da vontade e do decreto de Deus. Deus, na eternidade,

escolheu certos homens para serem arrancados da massa corrupta e para par-ticiparem de sua salvação. A obra da graça no plano da salvação, portan-to, é a execução, no tempo, do decreto eterno, oculto, de Deus. Agostinhobaseou esta conclusão em Rm 8.30 : «E aos que predestinou, a esses tam-

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bém chamou; e aos que chamou,a esses também justificou; e aos que jus-tificou, a esses também glorificou.»

O fundamento decisivo da salvação humana, portanto, , não se encon-tra em nossos méritos ou no livre arbítrio, mas, ao invés disso, na vontade

de Deus. Para Agostinho, isto significava que os que foram escolhidos umdia serão sa lvos. Não se pode imaginar que venham a cair novamente aque-les que uma vez chegaram a crer. A graça os supre não apenas com a fémas também com o dom da perseverança (donum perseverantiae). Esta li-nha de pensamento fez surgir a teoria denominada «graça irresistível» (gra-tia irresistibilis); o termo, em si, só foi usado mais tarde. Agostinho acre-ditava até que os predestinados podem existir fora da igreja. Essas pes-soas, sustentava, seriam salvas pelo poder da graça que operaria sem osmeios ao nosso dispor. (Cf. acima, p. 108).

Agostinho também concluiu nesta conexão que se alguém não é salvo,isto igualmente tem sua origem na vontade de Deus; Deus não desejou asalvação de tal pessoa. Pois nada pode ser feito sem a vontade e o poderde Deus. Como pode relacionarse esta idéia com a passagem: «Deus éamor»? Tais questões não podem se r respondidas. As palavras de 1 Tm2 .4 : Deus «deseja que todos os homens sejam salvos» (que têm sido di-fíceis para todos os que ensinam a dupla predestinação), foram interpreta-das por Agostinho como referindose apenas a todas as «classes» ou «es-

pécies» de homens.A doutrina da predestinação de Agostinho representa a conseqüência

final de sua doutrina que a graça é a única fonte da salvação dos homens.A teologia posterior, em geral, não o seguiu em tais conclusões. As dou-trinas da graça irresistível e da dupla predestinação, na maioria das vezes,foram rejeitadas. Todavia estas idéias continuaram a fornecer uma antítesevigorosa às tendências pelagianas, e foram aceitas por teólogos que dese- javam ficar fiéis a Agostinho neste ponto.

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I I PARTE

 A IDADE MÉDIA  DE AGOSTINHO A LUTERO

CAP ÍTULO 12

A CONTROVÉRSIA SOBRE O AGOSTINIANISMO ATÉ O SÍNODO DE ORANGE, 529

As doutrinas da graça e da predestinação de Agostinho suscitaramampla controvérsia mesmo antes de sua morte, e continuaram a ocupar ocentro da discussão teológica durante toda a Idade Média e mesmo, emparte, até no período após a Reforma. Os seguintes problemas assumiramimportância especial: a extensão do livre arbítrio, o papel da graça naconversão e regeneração do homem e o significado da predestinação.

Um grupo de monges na cidade de Hadrumentum (ao sul de Cartago)iniciou discussão sobre a doutrina da graça de Agostinho ainda durantesua vida. Alguns a interpretavam como querendo dizer que os homensnão possuem livre arbítrio e que suas obras, em vista disso, não teriamsignificado para o Juízo Final. Mas outros discordavam dizendo que a gra-ça apóia o livre arbítrio, capacitando assim o homem a fazer o bem; e ca-da homem será julgado pelas suas obras. O próprio Agostinho envolveu

se neste debate, e este o levou a explicar sua posição com grande cuidadoem De gratia et libero arbitrio e De corruptione et gratia.

A assim chamada escola de pensamento «semipelagiana» também sur-giu em oposição a Agostinho; esta propagouse especialmente na Gália.A doutrina da predestinação de Agostinho foi interpretada como fatalismopelos semipelagianos, e esta era a principal causa de sua oposição. A idéiaque a vontade é incapaz de fé e boas obras em geral, também foi conside-rada objetável. Agostinho, informado por seus discípulos Próspero e Hilá-rio deste ataque, replicou escrevendo De praedestinatione sanctorum e De dono perseverantiae.

O principal expoente da posição semipelagiana foi João Cassiano (m.430/435), o fundador do mosteiro de S. Vítor em Marselha. Devese ter em

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mente que o semipelagianismo não é ramo da teologia pelagiana; em vezdisso, tem sua origem na tradição préagostiniana do Oriente. Os semipelagianos acreditavam que se poderia evitar a heresia pelagiana sem fazeruso das idéias extremadas inerentes à doutrina da graça de Agostinho. JoãoCassiano , que via as coisas do ponto de vista monástico; afirmava que o

homem pode viver vida moral. O pecado é herdado de Adão no sentidoque toda a raça humana participa de sua transgressão. Por causa disto,o homem não pode ser salvo ou viver vida virtuosa sem a ajuda da graça.Mas as sementes do bem, que só precisam ser reavivadas pela graça, es-tão presentes na vida humana. Pelo exercício do livre arbítrio, o homempode ou reje itar a graça ou dedicarse a ela. Quando o homem é conver-tido, às vezes, é Deus quem toma a iniciativa, mas em outras ocasiões eleespera que nós nos decidamos, de modo que nossa vontade antecipa avontade de Deus. Deus não deseja a condenação de qualquer homem.

Quando isto acontece, é feito contra sua vontade.Do que foi dito se depreende obviamente que Cassiano, enquanto

aceitava o conceito de pecado original de Agostinho, rejeitava a idéia daonipotência da graça. Por outro lado, acreditava que a conversão e a re-generação resultam da cooperação da graça e do livre arbítrio. A rejeiçãonão encontra sua origem na vontade de Deus.

Nos anos seguintes, esta corrente teológica foi amplamente aceitana Gália. Formas adicionais de oposição chegaram a existir . Próspero de

Aquitânia procurou promover o ponto de vista puramente agostiniano, en-quanto Fausto de Rieza (na Provença; m. por volta de 490/500) opôsse aele, inclinandose mais até do que Cassiano em direção ao pelagianismo.Vicente de Lerins, que cunhou o conhecido princípio que só considera vá-lida a tradição que é ensinada «em toda parte, sempre e por todos», jul-gava que a doutrina da graça de Agostinho era novidade infundada que nãosatisfazia as questões em jogo.

Fausto concordava com Cassiano em dizer que a vontade divina e

a humana cooperam. Mas não acreditava que a graça era poder internovivificador; em sua opinião, a graça era apenas a iluminação e o despertarque ocorrem na pregação, ou pela revelação da Escritu ra. O poder de atra-ção da graça e o consentimento da vontade se reúnem para produzir a con-versão. A predestinação baseiase tãosomente na presciência do méritohumano.

Por algum tempo; o semipelagianismo alcançou grande sucesso; foiconfirmado por um sínodo em Aries em 473, por exemplo. Mas nunca triun-

fou definitivamente. Os papas em Roma jamais estiveram muito interessa-dos nos conflitos teológicos na Gália, e deram a maior parte de seu apoioà posição de Agostinho. O temor ao pelagianismo também foi fator signi-ficativo.

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O principal dos discípulos de Agostinho (depois de Próspero) foi Fulgêncio de Ruspe (m. 533), talvez o mais destacado teólogo desse período.Foi bispo no Norte da África, mas ficou longo tempo na Sardenha, tendosido para lá impelido pelos vândalos. Sua obra mais importante, Contra Faustum, perdeuse, mas dos seus escritos que chegaram até nós eviden-

ciase que sustentava vigorosamente a doutrina da predestinação de Agos-tinho. Ele, também, ensinava que ninguém que fora escolhido na eternidadese perderia, e também, que ninguém que não tinha sido predestinado paraa salvação poderia se r salvo. Fulgêncio, portanto, aceitava a duplex prae- destinatio, bem como a vontade particular de Deus de salvar. Interpretavaa posição agostiniana com clareza notável. Devido à similaridade de es-tilos que há quem pense que Fulgêncio é o autor do Credo Atanasiano,mas isto não chegou a ser provado definitivamente. (Cf. acima, p. 74).

Nessa época, Cesário de Aries (m. 542) defendia as idéias agostinianas na Gália. Houve oposição, e a teologia de Cesário foi rejeitada porum sínodo provincial em Valência. Mais tarde, no entanto, Cesário atraiua atenção do papa, e no Sínodo de Orange (529) conseguiu que fosse acei-ta uma confissão que tratava de pecado original, graça e predestinação.A posição semipelagiana foi repudiada nesta confissão, enquanto que adoutrina agostiniana da graça foi imposta. Esta decisão foi confirmada noano seguinte pelo papa Bonifácio II e subseqüentemente recebeu prestígioquase canônico. Isto marcou o fim da controvérsia semipelagiana e, além

disso, significou que um agostinianismo modificado seria reconhecido co-mo a norma em questões relativas à doutrina da predestinação.

O Sínodo de Orange, cujos 25 cânones foram tomados em sua maio-ria de coleção de citações preparada por Próspero, sancionou a doutrinaagostiniana do pecado original. O sínodo concordou que, como resultadodo pecado original, todo o homem tornouse pior, tanto no corpo como naalma, e que o livre arbítrio não ficou incólume. Tanto o pecado como amorte atingiram toda a raça humana através de um homem. Além disso, aatividade antecipatória da graça foi fortemente enfatizada: as próprias ora-ções em que pedimos graça são estimuladas pela graça. Por nós mesmossomos incapazes de dar o primeiro passo para recebermos a graça. Deusnão espera até que o homem deseje ser purificado do pecado; em lugardisso, opera mediante o Espírito para implantar este desejo dentro de nós.Também o desejo de ser curado, ou o início da fé, ou o sentir a fé nãoé algo que faz parte do homem por natureza. Quando o homem dá seuconsentimento à pregação do evangelho, devese atribuir isto à iluminaçãoe inspiração do Espírito Santo. O homem não é bom em si mesmo:Deus deve operar todo o bem dentro dele. Mesmo os regenerados devemorar a Deus pedindo ajuda a fim de perseverarem no fazer o bem.

Os cânones do Sínodo de Orange também trataram da relação entregraça e mérito. Concordouse que o mérito não precede a graça. As boas

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obras merecem recompensa, mas boas obras só são possíveis em virtudeda graça imerecida. O amor a Deus é dom de Deus; é derramado em nos-sos corações pelo Espírito Santo. A conclusão final portanto foi (como dizo apêndice escrito por Cesário) que nem a fé, nem o amor e nem as boasobras resultam da atividade do livre arbítrio; devem ser precedidas pela

graça divina do Deus misericord ioso. Esta graça é recebida por intermé-dio do batismo. Sendo sinceros , todos os batizados podem — com a aju-da de Cristo — cumprir com aquilo que se relaciona com a salvação daalma. Nesta conexão a idéia da dupla predestinação foi rejeitada; os queensinavam que alguns são predestinados ao inferno foram condenados pe-lo Sínodo de Orange.

Visto como a vontade do homem de buscar o bem tem sua origemna graça, esta é a fonte de todo o bem no homem. E a graça é poder in-terno, não meramente a influência da revelação externa. Considerado de

certo ângulo, o Cânone 22  do Sínodo de Orange sintetiza todo o conteúdoda confissão : «Por si mesmo, nenhum homem é qualquer outra coisa alémde mentiras e pecados. Se alguém possui algo de verdade e justiça istolhe vem daquela fonte por cuja água devemos estar sedentos neste deserto,de modo que, aspergidos, por algumas de suas  gotas, possamos não  su-cumbir. no caminho.»

É correto dizer que o Sínodo de Orange marca o fim da controvérsiaem torno do agostinianismo. Mas os problemas suscitados no tumulto pro-

vocado por esta controvérsia continuaram a produzir prolongados debates;igualmente deram origem a complexas especulações nas mentes dos teó-logos medievais. Algumas destas mesmas questões surgiram novamentenos debates após a Reforma, e mesmo então, as idéias que brotaram du-rante as controvérsias pelagiana e semipelagiana  foram  outra vez debatidas.

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CAPÍTULO 13

A TRANSIÇÃO DO PERÍODO ANTIGO AO MEDIEVAL; GREGÓR IO, O GRANDE

Durante o período agitado da época da queda do Império RomanoOcidental, quando os povos germânicos assumiram o domínio político, asquestões teológicas mais importantes passaram a receber cada vez menosatenção da parte dos líderes da igreja. Apesar disso, no entanto, os fun-damentos da teologia escolástica posterior, bem como da cultura medievalem geral, foram lançados nessa época. Importante contribuição foi feita

pelos que labutaram para preservar a herança da antigüidade para o pe-ríodo medieval que surgia.

Entre estes encontrase Boécio, filósofo cristão e funcionário do Im-perador Teodorico. Acusado de manter relações com o Império RomanoOrientai, Boécio foi aprisionado e afinal executado em Pávia , em 525. Élembrado como o «último romano» e ainda como o «primeiro escolástico».Através de seus escritos, bem como de suas traduções dos livros de ló-gica de Aristóteles, transmitiu o conhecimento da lógica aristotélica à Ida-

de Média. Seu sistema científico também serviu de protótipo para a edu-cação universitária medieval.

Os escritos atribuídos a Dionísio, o Areopagita, também pertencema este período. Em quatro tratados intitulados O Nome Divino, A Hierarquia Divina, A Hierarquia Eclesiástica e A Teologia Mística apresentou umsistema em padrões neoplatônicos. Tratou nele, entre outras coisas, deanjos, que dividiu em nove coros, que por sua vez dividiu em três tríades. Nosúltimos dois tratados,, Dionísio apresentou suas próprias idéias sobre ossacramentos e ofícios da igreja, bem como o caminho da alma à salvação,segundo os postulados do misticismo. Estes escritos e ainda 10 cartas domesmo autor reivindicavam falsamente serem obra de Dionísio, o discípulodo apóstolo Paulo. A prolongada discussão em torno da origem destesescritos foi finalmente encerrada no final do século passado, quando sedemonstrou que partes destes escritos basearamse na obra de Proclo(m. 485), filósofo neoplatônico. Uma vez que foram citados por teólogosna segunda década do século VI, podem se r datados entre 485 e 515. Fo-ram provavelmente escritos na Síria . E embora o assunto em questão sesitue na periferia da teologia, estes escritos desempenharam papel de gran-de importância durante toda a Idade Média. Através destes escritos a Eu-ropa medival tomou conhecimento da cosmovisão e do sistema religiosodo neoplatonismo. Estes escritos «pseudo dionísicos»  foram traduzidos ao 

latim pelo filósofo João Scotus Erigena.

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Cassiodoro (m. por volta de 583), como Boécio, estadista no reinodos ostrogodos, fez sua reputação como colecionador e enciclopedista. Umcontemporâneo seu, cujo nome não está tão associado à história do dogmacomo à história eclesiástica em geral, é Benedito de Núrsia (m. 547), o fa-moso monge cuja regra monástica dominou os mosteiros ocidentais até

ao século 12. Em virtude de suas recomendações sobre estudo e escritanos mosteiros, Benedito contribuiu notavelmente para o enriquecimento davida espiritual durante a Idade Média.

Isidoro de Sevilha apareceu algum tempo mais tarde (m. 636). Maisdo que qualquer outro, reuniu o conhecimento científico e teológico daque-la época e o tornou acessível às gerações seguintes.

Numa época de decadência religiosa e de penúria material, um exprefeito municipal e monge (em Roma) foi eleito papa em 590. Seu nome

era Gregório. Esta é sua própria descrição da igreja, para cuja direção foraeleito: «É um navio velho, atacado duramente pelas ondas, pressionadopor todos os lados pelo mar enfurecido; o ranger das pranchas apodreci-das nos adverte sobre um naufrágio iminente» (Epísto la I, 4). Na históriado dogma, o pontificado de Gregório geralmente é considerado a linha di-visória entre a igreja antiga e a Idade Média. O fundamento do papado me-dieval foi em parte lançado durante os anos de seu poderoso reinado. Masas contribuições de Gregório também foram de significado fundamental nocampo da teologia.

Gregório aceitou a doutrina da graça de Agostinho, em forma sim-plificada, e a transmitiu à idade Média. Ensinou que o amor e a graça deDeus precedem a ação do homem. O mérito não precede a graça, umavez que a vontade humana é incapaz de fazer o bem. A graça preparató-ria transforma a vontade. Na realização daquilo que é bom, a graça coope-ra com o livre arbítrio. O bem, portanto, pode se r atribuído tanto a Deuscomo ao homem, a «Deus por causa de sua graça preveniente, e ao ho-mem por causa de seu livre arbítrio». O objetivo da graça é o de produzirboas obras, que podem ser recompensadas (na forma da regeneração'e sa l-vação do homem). A idéia de mérito e recompensa é pressuposto funda-mental aí, bem como na teologia medieval em geral.

A rejeição de todo mérito anterior à graça dá origem à idéia da pre-destinação. Deus chamou alguns, mas deixou os outros em sua corrupção.O conceito de presciência é, em certo  sentido, negado: pois no que  res-peita a Deus, não há distinção entre presente e futuro; aquilo que estápara vir é, para Deus, o presente. Daí resulta que a questão se refere aconhecimento ao invés de tratarse de presciência.

A exposição de Gregório da doutrina da expiação também serviu demodelo para vários teólogos medievais, entre eles Anselmo e Abelardo.Gregório apresentou Cristo como exemplo para os homens, bem como sen-do aquele que ofereceu o sacrifício substitutivo e expiatório a Deus, pelos

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pecados dos homens. Ele é o mediador entre Deus e os homens, que le-vou sobre si a punição pela culpa dos homens. A morte de Cr isto é tam-bém descrita da seguinte maneira: o diabo excedeuse a si mesmo. Anatureza divina é comparada a um anzol oculto no corpo de Cristo, que odiabo engoliu sem notar quem era aquele que ele atacara.

O aspecto sacrifical da expiação assoc iavase à idéia que a ceia doSenhor é um sacrifício, em que a morte de Cristo é repetida misteriosa-mente a favor de nós. «Se ele ressurgiu, não morre mais, de modo quea morte não tem mais qualquer domínio sobre ele; apesar disso, ele nosé trazido novamente em sua vida imortal e incorruptível através do misté-rio do santo sacrifício, seu corpo é aí dado e recebido para a salvaçãodos homens, e seu sangue é derramado, não agora por mãos de descren-tes, mas nas bocas dos fiéis» (Diálogo IV, 58). A natureza sacrifica l daceia do Senhor também é descrita em termos do sacrifício dos coraçõescontritos por parte dos fiéis.

Entre os escritos mais importantes de Gregório encontrase sua in-terpretação do livro de Jó, intitulada Moralia, que em muitos aspectos lan-çou o fundamento para o conceito de vida medieval, inclusive no seu as-pecto ético. Em seus Diálogos, coleção de feitos miraculosos realizadospor homens santos, Gregório muito fez para despertar e encorajar a cren-ça em milagres que caracteriza a cristandade medieval. Enfatizava, entreoutras co isas, a capacidade da ceia do Senhor de influenciar mesmo o

bemestar temporal das pessoas. Dizia, por exemplo, que pessoas foramsalvas de naufrágio ou prisão porque outros receberam a ceia do Senhorem seu favor (Diálogo IV, 57). O grande número de cartas de Gregórioque foram preservadas trata especialmente de questões eclesiásticas decunho prático.

Em sua doutrina da penitência, Gregório desenvolveu o conceito desatisfação como meio pelo qual a punição eterna podia ser mitigada ouremovida; também apresentou suas idéias sobre o purgatório nesta co-nexão. Era característico de Gregório, falando em geral, combinar a me-

lhor tradição teológica (que tentou preservar) com elementos tomados dapiedade popular. Alguns destes eram de natureza um tanto crassa ou vul-gar, mas mesmo estes foram sancionados por Gregório. Apesar disso, noentanto, Gregório, o Grande, deve ser incluído, sem sombra de dúvida, en-tre os mais importantes daqueles que lançaram os fundamentos para ateologia medieval e para a cultura medieval em geral.

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CAPITULO 14

TEOLOG IA CAROLING IA

O período de tempo entre Gregório, o Grande, e o início da épocada escolástica (de 600 a 1050, em outras palavras) não se notabilizou pordesenvolvimentos no campo da teologia. Apesar disso, uma coisa neste pe-ríodo é digna de nota: o entusiasmo com que os povos recentemente cris-tianizados se devotaram aos recursos culturais tomados acessíveis pelocristianismo e pela antigüidade. A era do Império Carolíngio foi a época

áurea neste sentido. Nesta era também surgiu um bom número de teólo-gos importantes, tais como Alcuíno (m. 804), Rabano Mauro (m. 856), Radberto (m. 865), Ratramno (m. depois de 868) e Hincmaro de Reims (m. 882).Mas sua atividade não tomou a forma de nova orientação no pensamentoteológico; em lugar disso, eles colecionaram e reproduziram a tradiçãomais antiga. Entre os Pais Eclesiásticos referiramse especialmente a Agos-tinho e Gregório. Mesmo o estudo da Escritura foi conduzido em linhastradicionais. Nas assim chamadas catenae (comentários em cadeia) esteshomens compararam as interpretações patrísticas de várias passagens da

Bíblia. De excepcional importância para o futuro foi o comentário geral-mente atribuído a Walafrido Estrabão — a assim chamada Glossa ordinaria. Nesta obra, citações dos Pais Eclesiásticos são aplicadas a várias facetasda doutrina da fé. Estas citações demonstraram se r va liosa fonte para aatividade teológica nos anos subseqüentes. Dois teólogos anglosaxões dedestaque, ativos neste período, foram Teodoro de Cantuária (m. 690) e oVenerável Beda (m. 735). Este é conhecido especialmente por sua História Eclesiástica do Povo Inglês.

A teologia deste período formou a base para os desenvolvimentosposteriores através da preservação da herança da era patrística e da an-tigüidade. Discussões dogmáticas surgiram em certos pontos, algumas dasquais merecem exame mais acurado.

A controvérsia adopcionista recapitulou os debates cristológicos daigreja ântiga; tratou, em especia l, da interpretação da Fórmula de Calcedônia. Um teólogo espanhol, Elipando de Toledo, apresentou a idéia queo homem Jesus uniuse com o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trin-dade, de maneira tal que podia ser chamado Filius adoptivus. Em virtude

de decisão e vontade anteriores de Deus, fora escolhido para ser chamadoFilho de Deus. Dizendo isto, Elipando desejava fazer justiça à idéia queCristo é um de nós. A palavra adoptivus, como tal, foi tomada da liturgia«moçárabe». O principal adversário desta cristologia foi Alcuíno. Compa-

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rou o conceito de adoção com a idéia nestoriana de duas pessoas em Cris-to. A maneira de Elipando se expressar obrigava a se pensar em «doisfilhos» (segundo Alcuíno): o Logos divino, que era Filho de Deus segundosua essênc ia, e o homem Jesus, que foi adotado como Filho.

O adopcionismo foi condenado por vários sínodos francos (Ratisbona,792; Frankfurt, 794; Aachen, 799). Como resultado, preparouse o cami-nho para a aceitação da cristologia bizantina também no Ocidente. Talcomo acontecera com Leôncio ou com João de Damasco, os teólogos oci-dentais chegaram a considerar o Logos divino o portador da unidade pes-soal, que assumiu a natureza humana em sua pessoa. Alcuíno assim o ex-pressou: «Quando Deus assumiu forma carnal, a pessoa humana desapa-receu,. mas não a natureza humana.» (Migne, PL 101, 156).

A controvérsia sobre o «Filioque» e a controvérsia iconoclasta. Uma

das primeiras adições ao Credo NicenoConstantinopolitano feitas no Oci-dente foi a palavra Filioque: «O Espírito Santo . . . procede do Pai e do Filho.» Os teólogos francos deliberadamente apoiaram esta alteração, eprocuraram justificála teologicamente. Ratramno, acima mencionado, esta-va entre os que defenderam este costume em face da oposição do pa-triarca Fócio. Ratramno encontrou apoio para sua posição nas idéias de-rivadas de Atanásio e Agostinho. O ponto de vista oriental foi consideradoariano com respeito ao Espírito Santo. Julgavase na Igreja Grega que adivindade do Pai era superior à do Filho e do Espírito e constituía a fonteda essênc ia divina. Como resultado, o Espírito Santo podia proceder ape-nas do Pai. A questão da autoridade também entrou em jogo; os gregosargumentavam que modificar o credo desta maneira era ilícito. Roma ado-tou por longo tempo a política de esperar para ver o que aconteceria, masquando o Credo Niceno foi introduzido na missa no século XI, o uso doFilioque foi aprovado.

Os teólogos francos também se envolveram em outra controvérsiacom a Igreja Oriental. O Sétimo Concilio Ecumênico, realizado em Nicéia

em 787, consentira com a adoração reverente (proskúneesis) de gravurasde Cristo e dos santos. A explicação dada era que tal adoração não sedirigia às gravuras em s i, mas aos que estavam representados nelas. Oculto real (latréia) prestado a gravuras foi repudiado. Apesar disso , no sí-nodo realizado em Frankfurt em 794, a Igreja Franca rejeitou essa decisão.Carlos Magno e seus teólogos afirmaram que as gravuras não deviam serobjeto de qualquer espécie de adoração. Deviam, em lugar disso, serconsideradas apenas objetos decorativos ou expedientes pedagógicos.Nesta questão, o ponto de vista da Igreja Franca não foi universalmente

aceito no Ocidente. Roma nunca rejeitou o decreto niceno, e posteriormen-te (por exemplo, no Concílio de Constantinopla, realizado em 870), a Igre- ja de Roma reconheceu a adoração de gravuras no mesmo sentido doConcílio de Nicéia. (Cf. acima p. 8788).

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A controvérsia predestinária. Um monge saxão chamado Gottschalk,que depois de entrar relutantemente na vida monástica, residiu no mosteirode Orbais na França, concluiu que era sua responsabilidade proclamar adupla predestinação na sua forma mais extremada. Dizia (com alguma jus-tiça) que encontrara apoio para seus ensinamentos ros escritos de Agos-

tinho, e acentuou seu ponto de vista evitando toda menção à liberdadehumana. A predestinação se baseava na natureza imutável de Deus. Gott-schalk não dizia, no entanto, que certas pessoas são predestinadas parao mal. O que, em vez disso, foi decidido de antemão é que os ímpios re-ceberão o castigo que merecem, assim como os justos receberão a vidaeterna. Em ambos os casos, portanto, se faz justiça. Mas a rejeição temsua causa no decreto eterno de Deus. A expiação realizada por Cristosó se aplica aos eleitos è vida eterna. A citação seguinte da confissão deGottschalk sintetiza sua mensagem: «Pois assim como o Deus imutável,

antes da criação do mundo, por sua graça livre e definitiva predestinoutodos os seus eleitos à vida eterna, assim também este mesmo Deus imu-tável predestinou inapelavelmente todos os rejeitados, que serão conde-nados à morte eterna por causa de suas más obras no dia do juízo se-gundo sua justiça, tal como eles merecem.» (Migne, PL 121, 368 A).

Gottschalk apresentou sua doutrina numa conferência religiosa emMogúncia, onde encontrou como adversário Rabano Mauro, um dos maisinfluentes teólogos daquele período. No sínodo realizado em Chiersy em

849, o bispo Hincmaro de Re/ms, em cuja diocese se localizava o mosteirode Orbais, condenou Gottschalk a confinamento em seu mosteiro. Certosteólogos contemporâneos procuraram defender Gottschalk,embora não con-cordassem com ele em todos os pontos, mas seus ensinamentos foram ofi-cialmente condenados. Gottschalk viveu como prisioneiro no mosteiro por20 anos, sempre insistindo que sua posição era correta. Alguns dos poe-mas que escreveu durante este tempo foram preservados. Numa épocaquando a interpretação gregoriana de Agostinho, com sua ênfase no livrearbítrio e na cooperação com a graça,  influenciou decisivamente o clima

teológico, Gottschalk viuse praticamente só.

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CAPÍTULO 15

A CE IA DO SENHOR NA PRIMEIRA PARTE  DA IDADE MÉDIA

Como já se viu acima, a idéia que a ceia do Senhor é repetição dosacrifício expiatório de Cristo (o sacrifício da missa) começou a tomar for-ma na época de Gregório, o Grande. O pão e o vinho são o corpo e osangue de Cristo. Como se deve entender isso exatamente ? Especulaçõessobre esta questão ocuparam vários teólogos trancos durante a primeira

metade do século IX. Como resultado de seus esforços, foi preparado oterreno para a doutrina medieval posterior sobre a santa ceia . Deveseressaltar que, nessa, época, a ceia do Senhor não era absolutamente in-terpretada apenas em termos do sacrifício da missa. Esta idéia era apenasum dos elementos do conceito da ce ia do Senhor na primeira parte daIdade Média. A idéia da participação era enfatizada com igual entusiasmo.Mas, num caso como no outro, a questão da presença real assumiu po-sição central.

A doutrina da presença real foi posta acima de qualquer dúvida. Masa questão que surgiu foi a seguinte: A presença real de Cristo deveriaser entendida simbolicamente ou literalmente? A interpretação agostinianada ceia do Senhor muito contribuiu para a maneira como a questão foirespondida. O conceito de Agostinho era, para todos os efeitos, «simbó-lico»: o sacramento é, dizia, um sinal (signum), o que quer dizer que oselementos externos, visíveis, são os portadores de uma realidade que é'invisível e só existe no campo espiritual. Agostinho procurou resolver oproblema distinguindo entre res e signum, ou entre sacramentum e virtus 

sacramenti. A dificuldade que os teólogos nas gerações seguintes enfren-taram foi especialmente esta: Como podemos combinar o ponto de vistaagostiniano com a suposição comum da fé que mantém serem o pão e ovinho mais que meros sinais, que são na realidade idênticos com o corpoe o sangue de Cristo? (Cf. p. 107, acima).

Pascásio Radberto investigou a questão exaustivamente em seu livroDe corpore et sanguine Domini. Apresentou a doutrina da presença realem termos inequívocos: depois da consagração, existe apenas o corpo eo sangue de Cristo, embora sob a forma de pão e vinho. O corpo que

é dado é o mesmo que nasceu da Virgem Maria, que sofreu na cruz eressuscitou dos mortos. A modificação que ocorre nos elementos resultado poder criador da Palavra onipotente. Assim como o Deus Onipotentefoi capaz de criar ex nihilo, e de fazer o corpo de Cristo nascer do ventre

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da Virgem, assim também pode, por meio de sua palavra, tornar presenteo corpo e o sangue de Cristo sob a forma de pão e vinho. É óbvio, en-tretanto, que isto se realiza de maneira misteriosa, e até certo ponto, figu-rativa, uma vez que os elementos retêm sua forma externa. Em vista disso,para Pascásio , o problema era o seguinte: Como pode o evento sacra-

mental ser tanto figurativo (simbólico) como real no sentido verdadeiro, aomesmo tempo?

Pascásio chegou a crer que o aspecto simbólico se restringe ao queé perceptível e puramente externo: os elementos visíveis e seu recebimentopor parte dos comungantes. Mas o que é percebido internamente, a en-trega do corpo e sangue de Cristo, é realidade (veritas). Pela influênciada Palavra e do Espírito, o pão tornase o corpo de Cristo e o vinho torna-se o sangue de Cristo. «O que é percebido externamente é figura ou mar-ca, mas o que é percebido internamente é realidade perfeita e não figura;

e, portanto, nada aqui é revelado que não seja realidade e o sacramentodo próprio corpo — o verdadeiro corpo de Cristo, que foi crucificado esepultado, seguramente o sacramento de seu corpo, que é divinamente con-sagrado pelo sacerdote sobre o altar com a palavra de Cristo medianteo Espírito: uma vez que o próprio Senhor exclama: «Isto é o meu corpo»(Lc 22.19). (Migne, PL 120, 1279 B ).

Pascásio não rejeitou completamente a posição agostiniana com suainterpretação simbólica; antes a reteve como pressuposição óbvia. Mas,ao mesmo tempo, ressaltou a transformação ocorrida nos elementos comoo aspecto essenc ial. As idéias de Pascásio Radberto foram importante elona corrente teológica que conduziu ao dogma da transubstanciação.

Mas, enquanto vivia , a posição de Pascásio a respeito da ceia doSenhor provocou numerosas réplicas de teólogos que desejavam enfatizarmais fortemente a interpretação simbólica de Agostinho. O teólogo francoRatramno, por exemplo, escreveu um livro com o mesmo título que o escritopor Radberto (cf. aciiyia), no qual respondia as questões propostas porRadberto. Ratramno interpretava a ceia do Senhor simbolicamente. O

corpo e o sangue de Cristo são realmente recebidos. Mas isto acontecede maneira figurativa: os elementos externos são símbolos da realidadeinterna que só pode se r percebida pela fé. «São figuras no que tange asua aparência visível, mas realmente, conforme a substância invisível, istoé, o poder da Palavra divina, são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo.(De corp. et sang., 49; Seeberg, III, 75).

O que foi citado imediatamente acima também podia ser dito pórPascásio. Mas a diferença entre os dois homens era que, enquanto Pas-cásio restringia o aspecto figurativo aos elementos externos, Ratramno o

estendia até mesmo à designação «o corpo e o sangue de Cristo». Estedizia que o pão podia referirse ao corpo de Cristo apenas em sentidofigurativo — assim como Cristo dissera ser o pão da vida ou a videiraverdadeira. As palavras da instituição não devem ser interpretadas literal-

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mente. Quando a Bíblia fala do nascimento de virgem de Cristo, e de seusofrimento, morte e sepultamento, estas passagens devem ser tomadas li-teralmente. Em tais casos estamos lidando com forma de expressão direta,não figurativa. Mas na ceia do Senhor, o verdadeiro significado do sa-cramento — a participação nos dons espirituais ou celestes — ocultase

por detrás do véu dos símbolos externos.O que outros teólogos condenaram especialmente na posição de Rad

oerto foi que identificava o corpo histórico de Cristo com a hóstia apre-sentada no sacramento do altar (cf. acima). Segundo Ratramno, o corpo'ecebido na ceia do Senhor não é corpo terreno, humano, mas um corpoceleste, espiritual que só pode ser recebido pela fé, de maneira espiritual.*A aparência externa, portanto, não é a coisa em si, mas sua imagem —aquilo que é percebido e entendido pela mente como a verdade de umacoisa» (De corp. et sang., 77, 88; Seeberg, III, 75). «O corpo de Cristonão deve ser entendido de modo físico, mas espiritual» (ibid., 74; Seeberg,ibid.)- Esta posição aproximase muito da de Agostinho: a ceia do Senhoré o símbolo externo do recebimento interno dos dons celestiais, algo quesó pode ser percebido pela fé.

Foram as idéias de Radberto que, em sua maior parte, foram desen /olvidas posteriormente para formar a base da teoria da ceia do Senhorque predominou na Idade Média. A posição agostiniana foi gradualmenteposta de lado e substituída pela doutrina da transubstanciação.

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CAPÍTULO 16

A DOUTRINA DA PENITÊNCIA NA PRIMEIRA PARTE  DA IDADE MÉDIA

Na igreja antiga, penitência significava a readmissão na comunhão daigreja dos que tinham caído em pecado manifesto após o batismo. Eraato público, que só podia ser realizado uma vez. Havia várias opniões so-bre a amplitude de sua aplicação. De início, acreditavase que pecadosgraves como adultério, assassinato ou apostasia estavam excluídos, mas

eventualmente sua validez foi estendida para também cobrir esses peca-dos. Esta forma de penitência foi mantida até o fim do século VI. NaEspanha, por exemplo, a idéia de atos de penitência repetidos com absol-vição sacerdotal, foi por muito tempo rejeitada. Mas, com o correr do tem-po, o ato público de penitência gradualmente perdeu seu significado. Emseu lugar, outras formas começaram a estruturarse, e deste modo, foramlançados os fundamentos de praxe medieval de penitência que trouxe con-sigo conseqüências tão importantes. As raízes deste desenvolvimento po-dem ser encontradas nas igrejas célticas e anglosaxônica.

Na Igreja Celta, que em  muitos sentidos preservou seu caráter pe-culiar, a forma pública de penitência era desconhecida. Por outro lado, aforma privada, composta de confissão ao sacerdote, satisfação e readmis-são à comunhão da igreja, chegou a existir . Manuais ecles iásticos datadosdo século VI, que cuidadosamente descrevem a maneira de se fazer a pe-nitência para várias espécies de pecado, e também estabelecem o fatortempo para cada caso , foram preservados. Um destes manuais intitulasePoenitentiale. Fazer penitência podia incluir jejum e orações, dar esmolas,viver em abstinência, e assim por diante. A forma mais severa era o exílio

permanente (peregrinatio perennis). Algumas das formas mais prolongadasde penitência podiam ser reduzidas se o penitente guardasse uma vigília,recitasse continuamente os Salmos, ou fizesse outra coisa difícil. A possi-bilidade de «redenção» também era reconhecida: uma forma de puniçãopodia ser substituída por outra, ou uma pessoa podia até mesmo compraros serviços de outra que faria a penitência por ela.

Neste contexto, a penitência não se ocupava apenas com pecadosmortais; também ofensas menos graves estavam incluídas. A confissãoprivada combinava a penitência pública na igreja com a penitência pastoralpraticada nos mosteiros entre leigos piedosos. Chegou a ter a mesma fun-ção que tivera a penitência pública na igreja antiga, a saber, restaurar in-divíduos na comunhão da comunidade. Na primeira parte da Idade Média,foi ampliada para também incluir pecados secretos.

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Missionários celtas e anglosaxões levaram esta forma de penitênciaao continente, onde foi gradualmente aceita sem qualquer oposição. Ma-nuais de confissão franceses datando da segunda metade do século VIIIadotaram os regulamentos celtas.

No início do século IX, a assim chamada reforma carolíngia da peni-

tência procurou restabelecer a antiga forma pública da penitência e aboliros manuais de confissão. Mas este esforço não alcançou sucesso; as for-mas mais novas continuaram a ser usadas.

Por volta do ano 800 a forma pública de penitência tinha virtualmentedesaparecido. Permaneciam vestígios seus na tradição seguinte (a poeni- tentia solemnis): no caso de pecados grosseiros, públicos, era prescritoum ato de reconciliação na igreja. Tomás de Aquino escreveu: «Algumasvezes, os que se contaminaram e se tornaram culpados por pecados gros-

seiros e públicos devem fazer penitência solene e pública que lhes é im-posta, para seu próprio bem e como exemplo para os demais.» (Summa theologica, supl. q. 28, art. 1)

A forma céltica de penitência continuou a crescer em popularidade,e chegou a formar a base da nova praxe da penitência na Igreja CatólicaRomana. Esta nova forma era diferente da mais antiga e reconhecia quea penitência podia e devia ser repetida, e também porque se ocupava compecados particulares e menos graves. Esta nova forma não era pública,

mas também não era puramente privada, uma vez que a confissão erafeita a um sacerdote e havia formas prescritas para se fazer a satisfação.

A penitência nesta forma implicava em contrito cordis, confessio oris e satisfactio operis. A contrição era sempre ressaltada, mas a confissão perante um sacerdote também se tornou necessária — em parte para quea forma apropriada de sat isfação pudesse ser imposta ao indivíduo. O atopúblico de reconciliação foi substituído no confessionário pela absolvição sacerdotal, que era dada mesmo antes de se completarem as satisfações.A confissão regular, mesmo para pecados menos graves (veniais), gradual-

mente tornouse obrigação universal na igreja. O Quarto Concílio Lateranode 1215 prescreveu que a confissão deve ser feita no mínimo uma vez aoano.

Desde o início, o emprego do confessionário relacionouse com o ofíciodo sacerdote e seu poder de ligar e desligar. O sacerdote podia «ligar»uma pessoa ou a excomungando ou lhe prescrevendo outra espécie de pe-nitência; o sacerdote «desligava» uma pessoa concedendolhe a absoivição.Como resultado disso, o confessionário tornouse o mais importante meio

de exercer disciplina na igreja, o vínculo mais forte entre sacerdote e povo.A absolvição geral, dada à congregação inteira sem confissão auricularprévia, era usada em certas ocasiões, mas nunca substituiu a praxe regu-lar da confissão.

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CAPÍTULO 17

FASE INICIAL DA ESCOLÁSTICA

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Dentro do contexto da história do dogma, o termo escolástica referese à teologia que tomou forma nas universidades ocidentais, principiando

em meados do século XI, alcançando seu apogeu no século XIII, e dete-riorando na Baixa Idade Média, sendo finalmente destruída pelo humanismoe pela Reforma.

O caráter distintivo da escolástica foi seu emprego do método filo-sófico. Os escolásticos empregaram o sistema dialético herdado da an-tiguidade e introduzido na filosofia ensinada nas escolas e nas universidadesque floresceram na Idade Média sob a proteção da igreja e dos mosteiros.A abordagem escolástica aos problemas desenvolveuse quando os teólogoscomeçaram a sujeitar o material tradicional a tratamento dialético indepen-dente. Além da Escritura e da tradição, as posições adotadas pelos vários'nestres («doutores») também chegaram a desempenhar papel de destaque.Outras pessoas comentaram seus escritos, em torno dos quais se formaram•escolas» separadas, e um sistema sucedia o anterior.  O método dialéticogradualmente conduziu à divisão infinita dos problemas teológicos; a espe-culação foi levada sempre avante, até às minúcias periféricas.

Expressões como «escolástica» e «escolasticismo» são freqüentemen-te usadas para designar uma espécie de teologia formalista e estéril, cuja

exposição é confundida e embaraçada pela inclusão de distinções desne-cessárias e racionalização vazia. Todavia, como avaliação geral da escoástica da Idade Média, este conceito é falso. A escolástica medieval por^ezes degenerou, é verdade, mas em seus melhores momentos representouatividade séria, em que problemas teológicos foram habil e energicamenteestudados. Não se pode negar que essa tradição possuía uma superabun-dância de idéias e observações, apresentadas com discernimento lógico.

Mas por que é tão difícil compreender a teologia esco lástica? A razãoprincipal para isto, talvez seja que a tradição filosófica, sobre a qual aeducação universitária medieval se fundamentava, foi substituída, em épo-cas mais recentes, por outros pressupostos. Como resultado, nosso co-nhecimento de formas mais antigas de pensamento, que dependiam da anti-güidade, em grande parte desapareceu.

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A avaliação habitual da escolástica freqüentemente é influenciada pelacrítica do humanismo e da Reforma. Em vista disso, facilmente poderseia

 julgar que a escolástica é uma escola uniforme de pensamento. Mas estenão é o caso . Muitas escolas diferentes foram representadas nesta cate-goria. Ao mesmo tempo, a esco lástica experimentou longo e variado de-senvolvimento, desde a forma original às complicadas e, em muitos sentidosdegeneradas, especulações da Baixa Idade Média.

Dois fatores, especialmente, contribuíram para o desenvolvimento daescolástica: a renovação da igreja, de um lado, que se exprimiu na reformamonástica (cf. a reforma de Cluny, por exemplo), e por outro lado, a cres-cente associação com a educação filosófica da época. As escolas dosmosteiros e das catedrais desta época, assim como as universidades, queposteriormente derivaram delas, desenvolveram uma forma de instruçãoque se baseava na herança educacional da antiguidade. Como resultado

disto, o material teológico, também, foi estudado de acordo com métodose formas de pensamento filosóficos. Desde o início, a lógica foi conside-rada ciência básica. Os escritos de Aristóteles no campo da lógica foramtornados acessíve is através de Boécio (cf. acima). A metafísica aristotélicanão foi usada na instrução teológica a não ser mais tarde, mas quando foiintroduzida serviu como um dos mais importantes pressupostos para a  edi-ficação dos sistemas da «alta escolástica».

A CE IA DO SENHOR

A controvérsia doutrinária que até certo ponto representou a conti-nuação do debate referente à ceia do Senhor no período carolíngio surgiuem meados do século XI. Berengário de Tours (m. 1088) protestou contraa crescente aceitação da idéia que os elementos são transformados pelaspalavras da consagração. Esta posição teológica, que fora desenvolvidapor Radberto, foi às vezes combinada com a idéia superficial e ingênuaque o corpo de Cristo é dividido em tantos pedaços quantos compõema hóstia, e tc .. Berengário defendeu a posição agostiniana, tal como Ratramno o fizera, e rejeitou a idéia de transformação como sendo absurda.A consagração só significa que os elementos recebem conteúdo novo, espi-ritual. Para os fiéis, os elementos são sinais (signa) ou penhores (pignora) do recebimento do Cr isto ce lestia l. A substância dos elementos não muda,dizia Berengário, mas eles se tornam um «sacramento», os portadores deuma dádiva invisível.

A posição de Berengário, que foi oficialmente condenada em vários

sínodos, e que ele mesmo foi forçado a negar diversas vezes, recebeu opo-sição de Lanfranc (m. 1089, arcebispo de Cantuária). Lanfranc e outros teó-logos desenvolveram a idéia que os elementos realmente se transformam,embora suas características externas permaneçam as mesmas. Diziam que

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Cristo todo está presente em cada parte da hóstia, e é recebido tantopelos crentes como pelos ímpios. Estes homens também rejeitaram a po-sição intermediária cognominada impanação ou consubstanciação. Esta idéiasustentava que os elementos retêm não apenas suas características exter-nas mas também sua própria substância natural, enquanto servem, ao mes-

mo tempo, de portadores da presença de Cristo, como substância nova,celestial. Esta teoria foi posteriormente adotada pelos nominalistas na Ba ixaIdade Média.

A doutrina da transubstanciação (expressão cunhada pelos primeirosescolásticos) foi subseqüentemente estabelecida pelo papa Inocêncio III noQuarto Concílio Laterano de 1215. Decretouse nele que «o pão na ceiado Senhor é transformado pelo poder de Deus no corpo de Cristo, e ovinho no sangue de Cristo». (Cf. abaixo, pp. 16566).

A CO NTROVÉRSIA EN TRE O NOMINALISMO E O REALISMO

Anselmo de Cantuária (m. 1109, abade do mosteiro de Bec, na Normandia, e a partir de 1093 arcebispo de Cantuária) é lembrado como re-novador da tradição agostiniana e como fundador do escolastic ismo. Emseu livro De fide Trinitatis Anselmo opôsse ao ponto de vista cognominadonominalismo e que era defendido por vários dialéticos contemporâneos,

entre eles Roscelino. O nominalismo sustentava que os conceitos univer-sais do homem nada são além de figuras de palavras ou nomes, que usamospara identificar o que é comum a vários objetos da mesma categoria. An-selmo mantinha que os conceitos que não são percebidos pelos sentidos,mas que são formados por nossos poderes racionais, representam algo real,uma espécie mais elevada de realidade, que só a razão entende (universalia sunt res). Este ponto de vista, em oposição ao anterior, era denominadorealismo. O debate filosófico em que Anselmo assim se envolveu tevegrande influência sobre a doutrina tal como ele a conceituava. Em suaestimativa, a posição nominalista contradizia a doutrina da igreja sobre aTrindade, bem como sua cristologia, uma vez que subvertia o próprio fun-damento sobre o qual estas doutrinas repousavam. A idéia era a seguinte:Se não é possível distinguir entre um objeto e suas qualidades, então tam-bém não se pode distinguir entre Deus e suas relações. A doutrina daTrindade pressupõe uma distinção entre a substância de Deus e as trêspessoas na Divindade, e assim concluise que se atribui realidade à própriasubstância. Os nominalistas supunham que a realidade só podia se r atri-buída àquilo que é particular. Como resultado, as três pessoas só pode-riam ser concebidas como três substâncias. Isto significava que o nomina-lismo ou apresentava um ponto de vista triteísta ou um monoteísmo queeliminava qualquer distinção entre as pessoas. Com respeito à questãocristo lógica, Anselmo argumentava de modo semelhante: Se uma pessoa

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não distingue entre o homem individual e o conooit0 universal de «homem»,,como é possível crer que o Filho de Deus assumiu a natureza humana?Pois Cristo não assumiu uma pessoa humana, mas apenas a natureza hu-mana.

Ao mesmo tempo, ao lado do realismo mais moderado de Anselmo,

desenvolveuse um ponto de vista extremado. Os extremistas enfatizavama realidade dos universais a tai ponto que os objetos individuais tornavamse apenas as modificações da substância comum, perdendo assim sua rea-lidade independente (cf. Guilherme de Champeaux). Mas esta escola depensamento, bem como o nominalismo extremado, recebeu a oposição deum dos mais famosos teólogos da época, Pedro Abelardo (m. 1142, ativoem Paris e alhures).

Abelardo foi personalidade altamente controvertida na arena teológi-ca , que mais de uma vez foi acusado de heresia. Mas no debate sobrea realidade dos universais, desenvolveu uma posição intermediária, que foigeralmente aceita, mesmo pelos teólogos da alta escolástica . Abelardo dis-tinguia entre conceitos como meros complexos de sons de um lado (voces)e como designações da realidade do outro (signa). Entidades às quais osconceitos servem de sinais não existem fora das coisas como substânciasindependentes. Mas, ao mesmo tempo, podese atribuir realidade definidaaos conceitos universais: existem antes das co isas , como padrão do pro-

 jeto na mente de Deus. Além disso , existem nos objetos individuais como

sua forma ou substância. E como designações daquilo que é comum a vá-rios indivíduos existem em nossa mente. Esse realismo modificado foi pos-teriormente adaptado por Tomás de Aquino, que expressou sua posição nafórmula «universais antes das coisas, nas coisas, e depois das coisas»(universaJia ante res, in rebus et post res).

O DESEN VOLVIMENTO DO MÉTODO TEOLÓ GICO

Considerada de certo ponto de vista, a escolástica foi uma maneiraindependente de lidar com a tradição teológica herdada do passado. Como já foi visto , esta nova exposição teológiea foi feita com o auxílio da filo-sofia, usada de uma ou de outra maneira. Não houve desenvolvimento naIgreja Oriental que, em sua maior parte, contentouse em preservar as de-cisões dogmáticas dos pais eclesiásticos.

Anselmo de Cantuária, mais que qualquer outro, foi responsável pelodesenvolvimento esco lástico da tradição herdada. Não produziu um estudoamplo de dogmática mas, em grande número de livros modestos e medi-

tações, demonstrou sua sagacidade com respeito a pontos individuais dedoutrina. Seu ponto de partida para o pensamento teológico era uma féviva. «Quem não crê não pode compreender. Pois quem não crê não ga-nha experiência; e quem não ganha experiência não compreende.» A me

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ditação e a especulação teológica andam de mãos dadas. Anselmo pro-curou avançar da fé ao conhecimento dos mistérios da fé (fides quaerens intellectum). Desejava empregar os poderes da razão, tanto quanto possí-vel, em seu exame das bases racionais (rationes necessariae) da verdaderevelada. Este método não sugeria qualquer desprezo pela autoridade (E s-

critura e tradição); pelo contrário, era a tentativa de utilizar todos os meiosà disposição para investigar e estabelecer a verdade da fé. Tanto quantopodemos concluir de seu ponto de vista, Anselmo era seguidor fiel deAgostinho.

Pedro Abelardo também exerceu influência poderosa na formação dométodo teológico. Foi ele quem introduziu o método dialético, que era aousada tentativa de combinar autoridade e razão, fé e erudição indepen-dente. Em seu livro Sic et non citou proposições da tradição cristã, àsquais adicionou outras afirmações, também tomadas de fontes cristãs, quepareciam contradizêlas. Passava então a reconciliar estes pontos de v is-ta opostos. Em sua opinião isto podia se r feito de três maneiras: (1) exa-minando de modo minucioso estas afirmações criticamente à luz da histó-ria, a fim de determinar sua relação; (2) avaliandoas com base na auto-ridade: apenas a Bíblia é infalível, enquanto os pais eclesiásticos podemerrar ; (3) esclarecendo a verdade tradicional empregando a razão e prin-cípios racionais de valor universal.

Abelardo partia do fundamento que fé e razão não podem contradi-

zerse , uma vez que se originam na mesma fonte — a verdade divina. V is -to ser isto assim, acreditava que se podia submeter a verdade da fé aoteste da razão sem perigo. Mas por que fazêlo? Para não se repetir ape-nas, como também elucidar o que as autoridades já disseram.

Hugo e Ricardo de S. Vítor, que tinham a seu cargo a famosa escolaem Paris que ostentava este nome, foram além de Anselmo nesta direção.Em sua adaptação da tradição, combinaram especulação racional com en-volvimento contemplativo. Em seu livro De  sacramentis christianae fidei, 

Hugo de S. Vítor legounos a primeira obra de dogmática completa da es-colástica. (Usou o termo «sacramento» para referirse a coisas sagradasem geral, a todos os aspectos da fé cris tã.) A obra magna de Ricardo foiuma discussão da doutrina da Trindade (em seis volumes).

Hugo distinguia entre meditação e contemplação. E enquanto taisdistinções são estranhas a nossa maneira de pensar hoje, isto era carac-terístico do método teológico da época. Meditação, que se relacionava in-timamente com oração, implicava em busca da verdade; seu objetivo eradespertar o amor a Deus nos corações humanos. Contemplação pressu-punha o domínio dos desejos, e a iluminação da alma pela luz da verdade.Havia duas espécies de contemplação: especulação, a consideração desa-paixonada e escrupulosa da verdade, e a contemplação propriamente dita, a forma mais elevada de dedicação ao conhecimento, a visão ampla, que

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fé cristã antes que ousemos discutilas com a razão, assim pareceme sernegligência se, depois de estarmos estabelecidos na fé, não buscamos en-tender o que cremos.» (I, Cap . 2).

O conceito credo ut intelligam pressupõe que teologia e filosofia po-

dem ser harmonizadas. Aquilo que forma o conteúdo da fé, e que o ho-mem entende pela fé, também pode ser entendido pela razão — ao menosaté certo ponto. A fé e os princípios da razão não são antitéticos. É a ta-refa da teologia apresentar o conteúdo da fé de tal maneira que possa serentendido e compreendido. Por esta razão, segundo Anselmo, a teologiadeve seguir princípios filosóficos e utilizar o auxílio da lógica. É a fé, noentanto, que tem a primazia, pois o homem não chega à fé através da ra-zão; mas, pelo contrário, a compreensão vem pela fé. O papel da razãoé simplesmente o de esclarecer, que as verdades da fé são necessárias

mesmo quando consideradas do ponto de vista da lógica e da razão. Pois,apenas depois de se apreender a verdade revelada pela fé é que se pode,através de debate e meditação, perceber que o que se crê também concor-da com a razão.

Um bom exemplo da argumentação de Anselmo se encontra na assimchamada prova ontológica da existência de Deus, apresentada em seuProslogion. A fé concebe Deus como o ser mais elevado e mais perfeito.Este conceito pode ser apreendido intelectualmente mesmo pelos que ne-gam a existência de Deus (cf. S I 14 .1). Mas o que é o mais elevado quese pode conceber, não pode existir apenas no intelecto. Pois então aquiloque existe na realidade — que é categoria superior de existência a existirapenas como idéia — seria elevado acima do mais elevado que se podeconceber, o que seria absurdo. Portanto, é preciso admitir que há um sersupremo que existe tanto no intelecto como na realidade.

A prova ontológica foi submetida a vários tipos de crítica mesmo naIdade Média. Tomás de Aquino não a aceitou; atevese, em vez disso, àprova cosmológica. Criticou o pensamento de Anselmo do seguinte modo:

Supondo ser Deus o mais elevado que se pode conceber — isto não provaa existência de Deus. A única conclusão que se pode tirar é que se Deusé o mais elevado que se pode conceber, devese pensar que ele existe narealidade. Mas a realidade não pode se r verificada desta maneira, pois nãoé uma qualidade que se pode atribuir a um objeto da mesma maneira comoas outras qualidades. A realidade não pode se r verificada como necessida-de lógica, uma vez que não pertence à esfera da lógica.

Para Anselmo, fé implicava em adesão à verdade revelada. Mas isto

não era simplesmente adesão intelectual; e também não era mero assen-timento, como alguns pensavam que fosse. Na opinião de Anselmo, a fése relaciona com o amor. Fé, portanto, inclui um aspecto volitivo — a con-centração da vontade sobre o objeto em que se tem fé.

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De acordo com Hugo de S. Vítor, a fé é parte cognição, parte afeto.Basicamente, em sua opinião, a fé é ato da vontade, a apreensão volitivado conteúdo da fé que inclui três etapas distintas. Hugo baseava estas dis-tinções na maneira como a pessoa se devotava à fé, se apenas com basena reverência (sola pietate), se com o consentimento da razão (cum appro- 

batione rationis), ou se com atração interna e a certeza que vem da ex-periência pessoal.

Abelardo ressaltou com maior energia que fé é uma forma de conhe-cimento. A vontade é motivada pela ação de conhecer, havendo assim umaspecto volitivo na fé. Mas é de natureza secundária na opinião de Abe-lardo, e nisto divergia de Anselmo e Hugo, que acreditavam ser a fé, emprimeiro lugar, uma ação da vontade. Anselmo e Hugo também acredita-vam ser o conteúdo da fé supraracional, enquanto que Abelardo costumavaconsiderar a fé uma forma de conhecimento necessário, análogo ao conhe-

cimento filosófico.

A TEO R IA DA EXPIAÇÃ O SEGUNDO ANSELMO

No seu conhecido livro Cur Deus homo, Anselmo nos oferece uma ex-posição lúcida do problema da expiação ou, mais precisamente, da encar-nação. Também esta cai sob a rubrica credo ut intelligam. Anselmo nãopretendeu simplesmente fornecer uma interpretação teológica da obra de

Cristo, mas demonstrar que a doutrina da encarnação e a da expiação rea-lizada pela morte de Cristo são apoiadas pela lógica. Anselmo dizia quese pode provar que isto e nenhuma outra coisa tinha de acontecer, mesmosem o testemunho da revelação. Como resultado, desejava acima de tudoservir àqueles que já crêem, mas também envergonhar os que zombamda fé.

A questão empregada como ponto de partida por Anselmo foi a se-guinte: «Com que fundamento ou por quais razões urgentes Deus tornou

se homem, de modo que, por sua morte, como cremos e confessamos, eledeu vida ao mundo? Por que fez ele isto, uma vez que podia ter sido feitoou através de outra pessoa, anjo ou homem, ou simplesmente por sua von-tade?» (I, Cap. 1).

O livro de Anselmo tem forma de diálogo entre ele mesmo e Boso,um de seus discípulos. Boso faz as perguntas e Anselmo as responde.

A doutrina da satisfação na teoria de Anselmo tem seu fundamentona cosmologia e na história da salvação. Anselmo cria que Deus, em suasabedoria e amor, decidira desde a eternidade estabelecer um reino de se-

res racionais, obedientes a sua vontade real, habitando sob seu governo.Quando ocorreu uma queda no mundo angélico, diminuindo assim o núme-ro de seres espirituais que iriam viver neste reino, Deus criou os homenspara substituir os anjos caídos. O destino humano, portanto, é o de viver

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sob o domínio de Deus e obedecer a sua vontade. Quando o homem seafastou de Deus por um ato de desobediência, todo o plano para o universofoi perturbado, e Deus foi diminuído em sua honra. Isto não foi apenasinsulto pessoal; também foi violação da majestade de Deus e do planoque ordenara para o mundo. Era inconcebível que o plano de Deus não

se cumprisse, ou que Deus tivesse de suportar este insulto a sua honra,ocasionado pela queda em pecado do homem. «Anselmo: Na ordem dascoisas, há de se suportar nada menos do que isto, a saber que a criaturatinha retirado a honra devida ao Criador, e que não restaurou o que elaretirou. . . . Portanto a honra retirada deve ser prestada novamente, ou apunição forçosamente segue; caso contrário, ou Deus não será justo con-sigo mesmo, ou será fraco para ambas as partes; e é ímpio mesmo sópensar isto. Boso: Penso que nada mais sensato possa se r dito.» (I, Cap.13).

Era, portanto, necessário, do ponto de vista do plano que Deus dese- jara para o mundo, que este mal fosse ou remediado ou punido. Deus nãopodia abandonar o plano que estabelecera, e nem homens ou anjos pode-riam escapar da vontade imperiosa ou punitiva de Deus. Seria insensatoe, portanto, impossível e contrário à natureza de Deus que a confusão ea perversidade produzidas pelo pecado permanecessem. Daí a famosa con-clusão : «É necessário que ou satisfação, ou castigo, seja a conseqüênciade cada pecado» (necesse est, ut omne peccatum satisfactio aut poena se- quatur. I, Cap. 15). Em vista do  fato que punição (poena) neste caso  im-plicava na destruição do homem e, com isso, a frustração do plano de Deuspara um reino de seres racionais que o sirvam, a única alternativa restanteera a de providenciar um remédio (satisfactio). .

O homem é incapaz de realizar tal satisfação. Pois, visto como ohomem tem a obrigação de prestar perfeita obediência à vontade de Deus,nada do que fizer poderá ser considerado recompensa adequada  para o 

mal feito. Qualquer coisa que o homem possa fazer é apenas cumprimentode seu dever. O pecado é mal maior do que podemos compreender, pois

é insulto à honra de Deus e vio lação do plano divino para o mundo. Emvista disso, exigiase uma compensação infinita, maior do que tudo o queexiste além de Deus. Daí deçorré que ninguém pode pagar a Deus tudoo que o homem lhe deve erfí   virtude do pecado, exceto aquele que é maiorque tudo o que existe além de Deus, a saber, o próprio Deus. «Anselmo: Portanto, ninguém a não ser Deus, pode fazer esta satisfação. Boso: Assimparece. Anselmo: Mas ninguém a não ser um homem deveria fazêla, casocontrário o homem não realizaria a satisfação. Boso: Nada parece mais

 justo. Anselmo: Portanto, se é necessário, como é evidente, que o reino

celestial seja composto de homens, e que isto não pode ocorrer a não serque seja feita a satisfação mencionada acima, que ninguém a não ser Deuspode fazer e ninguém a não ser o homem deve fazer, é necessário que oDeushomem a faça.» (II, Cap. 6).

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Cristo, que é tanto Deus como homem, é portanto o único que podiaremir a culpa dos homens. Esta satisfação foi feita, segundo Anselmo, nãomediante a vida de Cristo, pois sua obediência era apenas aquilo que de-via a Deus, mas antes por intermédio de sua morte. Cristo não estava

sujeito à morte, mas sujeitouse voluntariamente a ela, adquirindo desta ma-neira o mérito que para todo o sempre remirá os pecados de todos os ho-mens. Tornando este mérito acess ível ao homem como satisfação pelo pe-cado, Cristo restaurou o plano que fora frustrado, e o homem foi reconci-liado com Deus. «Agora podes ve r como a razão da necessidade mostraque o estado celestial deve ser constituído de homens, e que isto só podeacontecer pelo perdão dos pecados, que os homens só podem obter atra-vés de um homem, que deve ao mesmo tempo ser divino, e reconciliar ospecadores com Deus por meio de sua própria morte.» (II, Cap . 15 ).

A teoria da expiação de Anselmo desenvolveu o ponto de vista jurí-dico (ou forense): A expiação é satisfactio viçar ia, que de modo supera-bundante remiu a culpa de todos os homens e assim restaurou a honraofendida de Deus. Que este mérito adquirido por Cr isto por meio de suamorte pode ser transferido à espécie humana depende de um decreto di-vino. Como isto se enquadra na história da salvação não fica claro, masse coaduna com a base racional que, como se viu acima, inclui a demons-tração lógica da necessidade da encarnação, independentemente da Bíblia.

Em parte, Anselmo encontrou o modelo para sua teoria da expia-ção na praxe medieval da penitência, com sua cuidadosa avaliação deofensa e satisfação. O caráter deliberadamente unilateral de Cur Deus ho-mo nos obriga a concluir que este escrito não representava a doutrina es-colástica da expiação tomada como um todo. Tomás de Aquino, por exem-plo, relacionou a satisfação com a idéia que Cristo foi o segundo Adão,o cabeça de nova humanidade. Esta descrição se enquadra melhor nas ca-tegorias bíblicas. Cristo é apresentado não apenas como o Deushomem,tíuja satisfação foi transferida aos homens, mas também como o cabeça

da congregação que participa em sua morte e ressurreição por meio dafé e do batismo. Este conceito vai além da avaliação meramente jurídicados méritos alcançados por outrem.

A teoria da expiação de Abelardo era bem diversa da de Anselmo.Em sua opinião, a morte de Cristo só tem poder salvador porque desper-ta amor recíproco em nossas vidas e assim destrói nossos pecados. Avida e a mensagem de Cristo foram interpretadas de maneira semelhante.O livro de Anselmo Cur Deus homo não nos diz como o indivíduo rece-be a expiação de Cristo, mas Abelardo deu uma resposta a esta ques-

tão. Diz ele, que o perdão é dado com base no amor despertado em nóspelo exemplo de Cristo. Não foram muitos os que concordaram com Abe-lardo neste ponto. A era medieval foi dominada pela idéia que a expia-ção vem até nós como graça infusa recebida mediante os sacramentos.

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O PROBLEMA DE GRAÇA E NATUREZA

O escolasticismo da fase inicial baseava sua exposição da graça eda justificação (bem como muitas outras coisas) na herança agostiniana.

A distinção fundamental entre graça e natureza não era reconhecida nes-sa época, como o seria pelos escolásticos posteriores, que começaram ausar o conceito do sobrenatural (supernaturalis) para descrever a maneiracomo a graça se relaciona com a natureza. Esses primeiros escolásticos,tais como Anselmo e Pedro Lombardo, descreviam a obra da graça es-pecialmente como restauração da natureza. Por conseguinte, não pensa-vam nela como algo que eleva o homem acima da natureza. As numero-sas questões que eram tratadas neste contexto foram, em geral, respondi-das no nível antropológico. Podese ilustrar isto com a seguinte linha de

pensamento de Anselmo:Originalmente, em virtude da graça que lhe foi outorgada quando da

criação, o homem possuía justiça (iustitia); essa se compunha de retidão(rectitudo) da vontade, e sua capacidade de praticar as virtudes. Comoresultado da queda, o homem perdeu a rectitudo de sua vontade, e por-tanto lhe falta a possibilidade de ser justo em virtude de seu próprio po-der. Não pode agir com justiça, pois fazêlo pressupõe qualidades volitivas apropriadas. Uma vez que a justiça depende da rectitudo da vonta-de, não pode ser alcançada por ação da vontade do homem. Nem aindapode a perversão da vontade ser alterada por influência externa, isto é,por qualquer coisa criada. Assim ocorre que o homem só pode ser jus-tificado pela graça (gratia praevéiens ou operans). Além disso, requerseo auxílio da graça para se manter a atitude da vontade quando uma vezfoi resturada. Pois, o homem pode reter a justiça apenas quando a de-seja. E esta atitude correta da vontade é obra da graça. Disto decorreque a  justiça só pode ser preservada pela graça (gratia subsequens oucooperans).

Os que seguiram a corrente agostiniana em geral justapuseram a gra-ça operante e cooperadora à fé viva (fides viva). O mérito não precedeà graça. Visto estar a vontade voltada sobre si mesma (incurvitas, o con-trário de rectitudo), a ausência de justiça torna impossível à vontade co-operar para conduzir o homem à salvação. A fé e a justiça cooperam mu-tuamente uma com a outra: pois desejar o que é correto exige fé (o co-nhecimento da vontade), e ter fé exige «vontade reta». Ambas são pro-dutos da graça, que recupera a natureza arruinada e a restaura à sua jus-tiça original (gratia sanans). A ordem em que isto acontece é descrita, por

exemplo, da seguinte maneira: através da infusão da graça, que deve virem primeiro lugar, a vontade é dirigida a um novo objeto, e novos impul-sos são despertados no homem. Ele deplora o pecado e assim recebe operdão dos pecados.

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Foi apenas no início do século XIII (um teológo denominado Filipe,o Chanceler, forma a transição) que os teólogos começaram a falar dagraça como sendo dom sobrenatural que eleva o homem acima da natu-reza, de modo que possa participar do divino (gratia elevans). Como já sesalientou, esta idéia foi característica da «alta escolástica».

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CAPITULO 18

A ALT A ESCOLÁSTICA

O desenvolvimento da escolástica atingiu seu apogeu durante o sé-culo XIII. A síntese entre a Weltanschauung (cosmovisão) da antiguidade ea fé cristã, por muito tempo antecipada no Ocidente, foi agora completa-da e estabelecida em padrões definidos. O avanço geral da ciência e daerudição formou a base para as realizações teológicas desta época. A Uni-versidade de Paris, que se tornou baluarte internacional para a educação

teológica, substituiu as escolas catedrais de Paris do século XII. As duasordens mendicantes, a dominicana e a franciscana, fundadas no início doséculo XIII, também muito fizeram para promover o estudo teológico eru-dito. Os principais teólogos da época associaramse a estas ordens. Oconhecimento crescente da filosofia neoplatônica e, acima de tudo, a aristotélica, que então tornouse acessível (em parte com o auxílio de comen-tadores árabes como Averróis e Avicena, em parte através de traduçõesdiretas ao latim) contribuíram significativamente para o desenvolvimentodoutrinário da alta escolástica.

Antes disso, o conhecimento ocidental de Aristóteles limitavase a seustrabalhos no campo da lógica, mas no século XIII seus outros escritostambém se tornaram conhecidos. Na esfera da ciência em geral, o estudode sua filosofia natural conduziu a um interesse renovado nas ciências na-turais. E no campo da teologia as premissas aristotélicas gradualmente pas-saram a ser usadas — apesar da oposição de algumas autoridades ecle-siásticas. Os teólogos descobriram, sobretudo na metafísica e ética deAristóteles, vários pontos de vista e definições que podiam ser úteis asua abordagem científica a questões doutrinárias (por exemplo, a distin-ção que Aristóteles fazia entre forma e substância, e entre ato e potência,sua doutrina da causalidade, e sua descrição da virtude). Este novo ele-mento filosófico criou nova atitude científica no campo da teologia, e istopor sua vez muito contribuiu para preparar o caminho à majestosa sín-tese de teologia e filosofia, de fé e razão que se manifestou nos siste-mas teológicos dos séculos XIII.

A instrução teológica da época compunhase de preleções, especial-mente sobre textos bíblicos, e debates em torno de problemas dogmáti-

cos específicos. A esta altura, no entanto foi acrescentado outro elemen-to na forma dos assim chamados sumários teológicos e comentários desentenças (nos quais, acima de tudo, a herança escolástica foi preserva-da para a posteridade). O tratamento «dialético» anterior do material foi

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substituído por métodos mais radicais, que muitas vezes refletiam as nor-mas empregadas nos debates. A tradição bíblícoagostiniana foi inseridanuma cosmovisão cuja base era constituída pela metafísica neoplatônicae aristotélica. As proposições doutrinárias, ou sentenças anteriormente reu-nidas de maneira mais ou menos livre, podiam agora se r transformadas

num sistema coeso e uniforme.Na alta escolática a filosofia, em relação ao conhecimento obtido pe-

la fé, recebeu posição diferente da que os primeiros escoláticos lhe ti-nham atribuído — dependendo, naturalmente, de até que ponto eram se-guidos os novos métodos científicos. Os primeiros escolásticos emprega-ram o método dialético na discussão das verdades da fé, a fim de, porassim dizer, demonstrar sua necessidade lógica a posteriori. Na alta es-co lástica , a adaptação racional tornouse mais independente em relação àfé. A cosmovisão metafísica chegou a constituir a base de toda a expo-sição teológica. O credo ut intelligam agostiniano evoluiu para tornarse umsistema em que a fé e a razão eram consideradas dois princípios equi-valentes de conhecimento, que colaboravam harmoniosamente, embora sereconhecesse, ao mesmo tempo, que representavam dois mundos diferen-tes. O caminho agora partia do intelligere para chegar ao credere. A fé for-mava a superestrutura do conhecimento natural tomado do sistema meta-físico de Aristóteles.

AGOSTINIANISMO E AR ISTOTELISM O

Ainda que a teologia da alta escolástica, em geral, não cultivasse umponto de vista específico, preferindo em vez disso sintetizar os elementosencontrados nas diversas fontes, podese, contudo, discernir várias cor-rentes principais de pensamento, dominadas pelas de origem agostinianae aristotélica. (O neoplatonismo, que também desempenhou papel de des-taque, faziase notar até certo ponto nas idéias agostinianas, mas também

exerceu influência direta, especialmente sobre o misticismo.)A corrente agostinianoneoplatônica estava representada acima de tudó

pelos franciscanos mais antigos (cf. abaixo), enquanto que os teólogos daordem dominicana aproximavamse mais do ponto de vista aristotélico. Masnão há linha demarcatória nítida: os que perpetuaram a tradição agostini-ana também se devotaram em certa medida aos novos conceitos aristotélicos; ao mesmo tempo, havia dominicanos que utilizaram muito da herançaagostiniana. Tomás de Aquino, o mais destacado dos teólogos, na realidade

reuniu pontos de vista agostinianos e aristotélicos — a tradição doutrináriacristã herdada e a estrutura filosófica da sua época. Como filósofo, entre-tanto, Tomás aproximavase mais de Aristóteles do que de conceitos pura-mente agostinianos.

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A incorporação do aristotelismo na teologia cristã pressupunha a re- jeição de certos conceitos emitidos pelo filósofo pagão e seus comenta-dores, uma vez que eram contrários ao cristianismo. Entre estes encontra-vamse, por exemplo, a idéia aristotélica referente à natureza eterna domundo, sua crença que há uma alma universal ao invés de almas indivi-

duais, etc. Ao mesmo tempo, no entanto, havia um grupo de teólogos queaceitava Aristóteles sem estas limitações, tal como chegou a ser conhecidono Ocidente por intermédio dos filósofos árabes. Para poderem fazêlo esimultaneamente sustentarem os pontos fundamentais da fé cristã, estes ho-mens se refugiavam na teoria da verdade dupla: o que é verdadeiro nafilosofia pode ser falso na teologia e viceversa. Esta escola de pensamento,conhecida como averroísmo latino, foi representada, por exemplo, por Sigério de Brabante e Boécio da Dácia. Suas idéias foram condenadas pelasautoridades eclesiásticas (Paris, 1277), justamente quando a filosofia natural

de Aristóteles foi declarada proscrita para evitar que fosse introduzida na teo-logia. Todavia, em sua forma «cristianizada», a filosofia de Aristóteles for-neceu (em anos posteriores) a base científica para a teologia escolástica.

Talvez seja bom mencionar, a esta altura, algumas das característicasbásicas das formas de pensamento agostinianoneoplatônicas e das aristotélicas. Esses pontos de vista filosóficos distintos imprimiram sua marca nasescolas teológicas rivais dentro da alta escolástica.

A posição agostiniano com respeito à epistemologia baseavase na

idéia que o conhecimento intelectual pode ser essencialmente derivado de«iluminação» imediata. O homem participa do pensamento divino, e seuintelecto, portanto, possui dentro de si mesmo a capacidade de criar per-cepção. Coisas externas não são a causa direta de nosso conhecimento;apenas fornecem os impulsos que levam o indivíduo a formar conhecimento.Denominase esta teoria da iluminação, que também é significativa para acompreensão da fé. A fé verdadeira é certeza imediata, dada internamente,a fé infusa ou inspirada (fides inspirata). Esta é superior a toda autoridade,e implica em certeza imediata sobre coisas divinas.

A epistemologia aristotélica, por sua vez, baseavase na idéia que ohomem recebe o conhecimento de fora. Em sua relação com o mundo ex-terior, o intelecto é passivo, e possui a capacidade de receber a forma dascoisas como species intelligibiles, que são transformadas passando de coi-sas ao intelecto através de impressões sensoria is. «Nada há no  intelectoque antes não tenha estado nos sentidos.» Essa posição inclui maior in-teresse empírico e acentuado sentido de realidade tangível. Isto tambémtem sua importância na teologia. O conceito cristão de criação tem, emcerto sentido, significado decisivo nesta tradição. Julgase que Deus serelaciona diretamente com a realidade exterior e também está ativo na or-dem temporal. A alta apreciação da ordem natural como expressão dacriação de Deus que caracteriza a teologia ocidental posterior, tanto o luteranismo como o catolicismo romano, foi promovida pela influência da filo-

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sofia aristotélica. Sua epistemologia sustentava, portanto, que o conheci-mento é formado por impressões externas. A alma é uma tabula rasa, ca-paz de receber estas impressões e, desta maneira, de formar conhecimentológico. Na ação de conhecer, a alma se une com a forma do objeto quepercebe. O conhecimento compõese da união do intelecto com o objeto

do conhecimento. As formas que constituem a natureza das co isas, e asformas que o intelecto recebe e absorve para dentro de si mesmo sãoidênticas. De acordo com Tomás de Aquino, a alma é «de certa maneira,todas as coisas» (quodammodo omnia). A fé deve ser concebida de ma-neira análoga. A fé não é tanto a iluminação interna como uma forma deconhecimento semelhante a outras, embora possua objeto diferente. A ve r-dade da fé não é empírica mas revelada. A verdade revelada vem ao homempor intermédio das autoridades (por exemplo, a Escritura), mas tem suaorigem na própria verdade de Deus. O que aí temos é uma questão de

conhecimento sobrenatural em contraste com o conhecimento natural.As escolas agostiniana e aristotélica também diferiam quanto à an-

tropologia: num caso a alma do homem era considerada uma entidade in-dependente, enquanto que no outro a alma e o corpo eram consideradosuma unidade. Mas o dualismo aparece até certo ponto mesmo naquelasformas de escolasticismo que de outro modo empregam a estrutura aristo-télica. Além disso, a escola franciscana era voluntarista enquanto que oaristotelismo tendia ao intelectualismo: naquela a vontade era considerada ofator decisivo, governando de maneira soberana as ações das pessoas; se-gundo este último ponto de vista, o intelecto era considerado de importânciaprimordial. O intelecto, diziase, influencia a vontade, de modo que a von-tade deseja o que o intelecto considera bom. Esta diferença de opiniãoteve seu significado no conflito entre o tomismo e o escotismo (cf. abaixo),tal como posteriormente aconteceria na controvérsia entre os tomistas eos nominalistas.

OS PRIMEIROS FRANCISCANOS

Alexandre de Hales (m. 1245, o primeiro franciscano a ensinar na Uni-versidade de Paris) foi o fundador da alta escolástica autêntica. Seu livro,Summa universae theologiae, destinavase a ser comentário sobre as Sen-tenças de Pedro Lombardo, mas era, ao mesmo tempo, o primeiro e maisamplo dos sumários teológicos. Como tal, foi de grande importância paraa teologia esco lástica franciscana. A enorme massa de material reunidaneste sumário ainda não foi pesquisada exaustivamente. Podese dizer, de

modo geral, entretanto, que Alexandre representava a corrente agostinianamais antiga de Anselmo e Hugo de S. Vítor, mas ao mesmo tempo introduziucertas categorias derivadas da metafísica aristotélica e continuou a desen-volver o método dialético.

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conhecida Itinerarium mentis ad Deum — tentativa de descrever os cami-nhos pelos quais a alma pode elevarse ao conhecimento de Deus e àvisão que forma a etapa mais avançada desse conhecimento.

A ESCOLA DOMINICANA

Alberto Magno (m. 1280, nascido em Würtemberg, ativo em Colôniae alhures) legou à posteridade enorme quantidade de obras que dão teste-munho de sua erudição universal. Ocupouse com todas ciências conheci-das na época. No campo das ciências naturais, onde suas contribuiçõessão reconhecidas ainda hoje, demonstrou sua capacidade de fazer obser-vações independentes e também seu ponto de vista empírico, que era dife-rente do método tradicional de percepção. Foi Alberto que, mais do quequalquer outro, tornou conhecida a filosofia aristotélica para seus contem-porâneos. No campo da teologia foi ele quem preparou o caminho paraa aceitação dos novos princípios; isso foi realizado em parte pela trans-formação do aristotelismo de modo a harmonizálo com a doutrina da fé.Como resultado dessa atividade, Alberto lançou os fundamentos para aobra que foi completada por seu famoso discípulo Tomás de Aquino. Comoteólogo, Alberto seguiu o ponto de vista agostiniano tradicional na maioriados casos.

Tomás de Aquino (m. 1274, com apenas 50 anos de idade; professorem Paris e por algum tempo na cúria papal e em Nápoles; filho de desta-cada família italiana) levou o escolasticismo ao seu apogeu. SobrepujouAlberto como sistemático, e também obteve sucesso na integração dos no-vos conceitos aristotélicos e da tradição cristã numa união orgânica.

A lista seguinte enumera algumas de suas obras mais conhecidas emteologia e filosofia: um comentário sobre sentenças, escrito no início de sua

carreira; vários comentários bíblicos; Summa contra gentiles, obra apolo-gética que abrange todo o campo da teologia; Summa theologica, iniciadaem 1269 e ainda não concluída por ocasião de sua morte (as partes faltantes foram supridas mais tarde por um dos seus discípulos que usoumaterial correspondente do comentário de Tomás sobre as Sentenças); vá-rias obras menores; e comentários sobre a maioria das obras de Aristóteles.

A Summa theologica, a obra prima de Tomás de Aquino e a obraclássica de todo o escolasticismo, e que ainda é o texto básico para oestudo teológico da Igreja Católica Romana, compõese de três partes: a

primeira parte trata do Ser Divino e da obra criadora de Deus; a segundaparte trata de Deus como o alvo da atividade humana; e a terceira partetrata de Cristo como o caminho para alcançar o alvo, dos sacramentose da vida eterna.

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A DOUTRINA DO CONHECIMENTO DE DEUS SEGUNDOTOMÁS DE AQUINO

Básica para todo o sistema tomista é a convicção que o intelecto

humano está em concordância com a essência das coisas e que, no pro-cesso de conhecer, a mente do homem se identifica com as coisas e par-ticipa de sua essênc ia. Podese comparar isto à expressão citada acima,que a alma do homem é quodammodo omnia. A capacidade do homem depenetrar na própria natureza das coisas, de conhecer sua causa e sua fina-lidade, é o fundamento da especulação metafís ica. Ao mesmo tempo, en-tretanto, há algum conhecimento de Deus que é, por assim dizer, dado,tal como o conhecimento que Deus existe, que é o ser mais elevado, per-feito, etc.

Assim acontece que a possibilidade de conhecer o homem a Deuscomo o Ser mais elevado e como o fundamento de toda a realidade seencontra na capacidade do intelecto de entender a natureza das co isas . Ohomem não pode, naturalmente, entender a natureza absoluta de Deus, queé infinitamente superior às co isas cr iadas. Mas, apesar disso , há uma co-nexão entre o Ser absoluto e o mundo criado — ambos existem. Quandoo intelecto apreende a natureza das coisas, pode também tirar a conclusãoque Deus existe de maneira correspondente. Podese atribuir existênciade maneira análoga tanto a Deus como às coisas criadas (o termo usado

posteriormente é: analogia entis).Em virtude de nosso conhecimento do mundo criado, portanto, pode-

mos chegar a algum conhecimento de Deus. Tomás descreveu cinco ma-neiras diferentes como isto pode acontecer. Desenvolveu estas idéias combase nos cinco aspectos importantes do mundo criado, a saber, movimento,causa eficiente, necessidade, perfeição e a ordem das coisas. Partindodeles, Tomás prossegue falando de Deus como o primeiro motor imóvel(atus purus), a primeira Causa (ens a se), a necessidade absoluta, a Per-d ição absoluta, e, finalmente, a suprema Inteligência. Por outro lado, To-más rejeitou a idéia do conhecimento imediato, congênito de Deus.

Nosso conhecimento de Deus é muito imperfeito: inclui a idéia geralque Deus existe , mas não podemos dizer o que ele realmente é. Há, noentanto, outra maneira de se conhecer a Deus, mais elevada que a razãoque não pode se r alcançada pela especulação metafísica. Este é o conhe-cimento de Deus que vem ao homem através da revelação. Derivase d ire-tamente de nosso conhecimento de Deus, e é acessível ao homem mediantea luz da graça (per lumen gratiae).

É este conhecimento sobrenatural de Deus que é o verdadeiro assun-to da teologia. Este conhecimento é recebido pela fé e se distingue cla ra-mente do conhecimento puramente racional, que pode se r comprovado. Poiso conteúdo cia fé não possui qualquer espécie de prova resultante da obser-

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vação direta do objeto do conhecimento. A fé se baseia na autoridade,ou em algo dito por outra pessoa. A certeza da revelação reside nisto,que Deus falou. Todavia tal conhecimento é em si basicamente da mesmaespécie que o derivado de fontes naturais. Nisto Tomás divergia dos pri-meiros franciscanos, que consideravam a fé iluminação imediata, completa,

com certeza axiomática inspirada por Deus (cf. acima). De acordo comTomás, a fé é conhecimento (scientia), embora seu conteúdo seja diferentedaquele que é derivado de fontes naturais.

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por sua teoria do conhecimento. Há uma conexão indissolúvel entre conhe-cimento conceptual comum e a suprema visão do Ser Divj o. Que o in-telecto participa da natureza das coisas é análogo ao.xfaj& àOe a fé par-ticipa do divino. <? 

Para a fé ser perfeita, deve estar unida.^^^wntor^O homem ásk Q ,  capaz de crer em Deus e realmente participa^pe stjiáwda com a f^CÇpa girelhe é dada pelos dons infusos da g r a ç a . a i s elevado >Mepartici-pação é a visão beatífica, que substitujíâoâ^^ha eternidade e iíjúe’ significaque o homem, pela luz da glória^B^vJumeft gloriae), verá^a ©eus direta-mente e assim participará de seufSeVp^

TEOLÇGÍA E CIÊNCIA SE G U f i^ TO M Â S

Como já..foM(fetò, o sistema ramisÈe^aplicava os princípios aristotélicos à esjlerí^Nfèptégica. Isso foi feit%jdíe maneira tal que esse s conceitosfilosóficos riaovèpenas servirar^vl@po fórmulas incidentais ou como princí-pios jnetpdoÍÊKjicos, mas molófàram a própria estrutura do sistema. A suposiçãoi^<| Que teologia e $§f>cia estão em harmonia, bem como fé e razão.

opinião de^femas, teologia é uma ciência . Ao mesmo tempo, édiferente do conKéeiffciénto racional, uma vez que o conteúdo da fé é ina-cessível à razSsK«' só pode chegar ao homem por meio da revelação e da

luz da grâ&íN^A razão é incapaz de perceber o fundamento da verdadere ve ladorn as a fé o aceita com base na autoridade divina. Isto pode sercorft^radó ao camponês que ouve alguém discutir verdades filosóficas.Ele^oho reconhece os princípios que se encontram por detrás da verdade,mas, apesar disso, pode pressupor que o que se afirma é verdadeiro por-

 __________________    __________    __________________________    ________________ ______________________ , _________________________________ ,  ________________ , ____________ 

e as razões por que agem da maneira como o fazem. Relação semelhantehá entre ciências diferentes: uma ciência, às vezes, apoia suas reivindi-cações nas proposições tomadas de empréstimo de outra, sem tentar pro-

válas independentemente. O optometrista, por exemplo, empresta da geo-metria, e a geometria, por seu turno empresta da matemática. Da mesmamaneira, a teologia edifica sobre proposições emprestadas cuja correçãonão precisa demonstrar. A «ciência» mais elevada da qual a teologia obtém

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seus princípios é o conhecimento sobrenatural do próprio mundo, o conhe-cimento que Deus e os anjos possuem acerca de questões divinas. Destamaneira, a teologia recebe caráter científico, embora não possa provar a simesma ou mesmo compreender plenamente os princípios sobre os quaisbaseia suas afirmações. Percepção e compreensão completas pertencemao outro mundo. A teologia é o conhecimento de Deus que têm pessoasque vivem neste mundo. Baseiase na fé, que encontra seu apoio em auto-ridade alheia e que considera a revelação verdadeira,embora lhe falte provaracional.

Com base nesta idéia peculiar — emprestar princípios teológicos deciência mais elevada — Tomás de Aquino conseguiu unir conceitos cien-tíficos contraditórios: o aristotélico e o agostiniano. Aquele dizia que aciência, no sentido estrito do têrmo, abrange apenas objetos que podemser demonstrados racionalmente. De acordo com este, mesmo o conheci-

mento que procede da fé pode posteriormente ser percebido e contempladopor nossos poderes racionais. Duns Scotus e os nominalistas da BaixaIdade Média criticaram esta síntese tomista e — aplicando o conceito aris-totélico mais coerentemente — rejeitaram a idéia que a teologia é umascientia.

DUNS SCOTUS E SEU CONCEITO DE F É E CONHECIMENTO

Duns Scotus (m. 1308, professor em Oxford e Paris) era franciscano,e prosseguiu na antiga oposição franciscana à solução sugerida por To-más ao problema de teologia e ciência. Duns Scotus era considerado omais astuto dos escolásticos (doctor subtil is), e foi ele quem levou a aná'ise filosófica de questões teológicas ao extremo. Ao mesmo tempo, Duns*ez surgir novas correntes de pensamento que prenunciaram a dissoluçãoda escolástica e a relação harmoniosa entre teologia e filosofia.

Duns, tal como Tomás, era aristotélico, mas era mais empírico que

Tomás. Para Tomás, a realidade se encontrava na natureza das coisas,isto é, no universal. Para Sco tus, também o individual implicava em reali-dade lógica. Argumentava que as qualidades individuais dão a forma a umacoisa, enquanto Tomás mantinha que apenas a matéria é a base da divisãoem coisas individuais (a matéria é o principium individuationis). Scotus erarealista, mas como resultado de sua ênfase no subjetivo, antecipou a ascen-são do nominalismo, que associava toda realidade a coisas individuais.

Enquanto Tomás salientava a relação entre teologia e ciência comrespeito ao conhecimento, Scotus demonstrou que há um hiato entre conhe-

cimento teológico e científico. Este trata do universal, daquilo que as coi-sas têm em comum, de leis e princípios universais. A teologia, porsua vez, trata da revelação de Deus, que inclui, entre outras coisas, asobras específicas de salvação, às quais a Escritura dá testemunho. Isto

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significa que seus objetos são algo «contingentes» (o oposto de «necessá-rio»). Em vista disso, não se pode construir um sistema teológico simples-mente sobre base metafísica, como o fizera Tomás, pois, quando a teologiatrata de verdades sobrenaturais, deve referirse à Escritura e à tradição ec le-siástica. Scotus não conseguia encontrar o caminho que conduzia do conhe-cimento natural à fé; esta , em sua opinião, só se apoia na autoridade.

A teologia não é tanto uma questão de conhecimento teórico. A féé conhecimento prático (cognitio practica); pressupõe a entrega da vontadedo homem à de Deus, à autoridade. E seu objeto não é conhecimentoteórico; é , antes, a transformação da vontade humana de modo que cheguea concordar com a vontade de Deus. A fé encontra seu alvo no amor(caritas). Segundo Tomás, também havia um aspecto volitivo no conheci-mento, que era supremo em sua estimativa. O alvo da fé, na opinião deTomás, era a visão beatífica, que pode ser entendida em analogia ao co-

nhecimento terreno.Como o que precedeu deve ter tornado claro, o ponto de vista de

Scotus, como o dos franciscanos anteriores, era voluntarista. Fundamen-tal para sua posição teológica era o conceito da vontade soberana de Deus,contra a qual a vontade livre do homem é colocada. O alvo é que estase sujeite àquela e se adapte a ela.

Quando Scotus voltouse contra o intelectualismo tomista, e até certoponto minou a harmonia entre teologia e ciência à qual Tomás dera ex-

pressão, isto não significa que Scotus se recusou a usar a filosofia á ser-viço da teologia. Pelo contrário, levou o método escolástico mesmo maislonge do que seus predecessores. Mas, em princípio, Scotus consideroua filosofia meramente como auxílio (através da lógica, por exemplo) paraexplicar melhor as doutrinas da igreja e refutar as doutrinas falsas.

DUNS SCOTUS E TOMÁS DE AQUINO

Como resultado da obra de Duns Scotus, acentouse o contraste entreos franciscanos e os dominicanos.

Com respeito à doutrina de Deus, a diferença entre as duas escolaspode se r explicada da seguinte maneira: Tomás de Aquino concebia Deuscomo o Ser supremo, o que vale dizer que concebia Deus em categoriasintelectuais. Scotus, por sua vez, enfatizava a vontade soberana de Deuscomo a base para o curso do mundo e para a revelação. Scotus distinguiaentre potentia absoluta e potentia ordinata. Segundo aquela, Deus é com-

pletamente livre e pode agir independentemente de todas as regras. Bomé bom porque Deus o quer assim (perdeitas boni). Segundo esta, Deusage de maneira coerente com a ordem da criação e com o plano da sal-vação, o que quer dizer, que permite que os homens se salvem através

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da obra de Cristo e dos sacramentos da igreja. Mas é inconcebível queDeus (segundo a potentia absoluta) possa agir independentemente destaordem. Na opinião de Tomás, por outro lado, a vontade de Deus semprecoincide com a ordem que ele estabeleceu. Deus quer o bem porque ébom (perseitas boni).

Scotus também se afasta da posição escolástica dominante com res-peito à cristologia. Isto acontecia porque salientava energicamente a hu-manidade de Cristo. O escolasticismo em geral ensinava que a naturezahumana tinha sido absorvida na divina. Esta era a «formadora da pessoa»,o que muitas vezes resultava num retrato unilateral de Cristo . A ênfase deScotus na humanidade de Cristo pode ser explicada por seu ponto de vistaempírico, bem como por sua concepção da realidade individual.

Tal como acontecia com a escolástica em geral, Tomás de Aquino as-

sociava a doutrina da expiação aos sacramentos. Através de seu sofri-mento, que incluía toda sua vida terrena e não apenas sua morte, Cristoobteve mérito suficiente para contrabalançar os pecados de todos os ho-mens de todos os tempos. Esse mérito é transferido aos fiéis através dossacramentos, que trazem até nós os dons da graça. Scotus também rela-cionava a salvação com o sofrimento de Cristo, mas essa relação, comoele a via, existe apenas porque Deus aceitou o sacrifício de Cristo comosubstituto para a compensação humana. Tudo depende, em última análise,da livre aceitação de Deus. Tal posição afastase muito da idéia da ne-

cessidade racional da expiação como apresentada por Anselmo.A diferença mais importante entre os franciscanos e os dominicanos

encontrase na doutrina da graça e da justificação.

A DOUTRINA DA GRAÇA NA A LTA ESCOLÁSTICA

Como pode o homem ser justificado e participar das bênçãos da sal-vação? Os teólogos da alta escolástica tinham muito a dizer em resposta

a esta questão (particularmente os primeiros franciscanos, que elaboraramuma ordo saiutis pormenorizada). Em sua maioria edificaram sobre a tra-dição herdada. Via de regra, no entanto, as idéias de mérito e recompensaeram enfatizadas mais fortemente do que na posição agostiniana anterior,e se nota claramente uma tendência semipelagiana na teologia franciscana.Maior significado se atribuía aos sacramentos como agentes da graça. Alémdisso, os teólogos da alta escolástica distinguiam mais entre operações na-turais e sobrenaturais da graça do que os anteriores. Isto levou a um con-ceito de graça em que se afirmava que o homem pode ser elevado acima

do nível da natureza. Além disso, a idéia de ações preparatórias foi intro-duzida na própria doutrina da justif icação. Os principais aspectos da ordo saiutis desenvolvida pelos primeiros teólogos franciscanos se evidenciarádo que segue.

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Como resultado da obra expiatória de Cristo, o plano de Deus paraa salvação da humanidade entrou em ação. Através da predestinação, Deusescolheu aqueles que crêem em Cristo para serem libertados do pecadoe para alcançarem a bemaventurança e a vida eterna. Isto acontece na

 justificação e no decurso da obra permanente da graça na vida do homem.A vida na igreja, sob a influência da Palavra e da graça sacramental é, por-tanto, uma continuação da obra expiatória de Cristo, e a execução no tem-po do decreto eterno da predestinação.

Que é graça? Acreditavase que fosse, em parte, a vontade eternaamorosa de Deus, ou graça incriada (gratia increata), e também aquela gra-ça que vem ao homem como dádiva e, por conseguinte, prepara o caminhopara a salvação humana, ou graça criada (gratia creata). Esta consiste es-pecialmente na assim chamada graça infusa (cf. abaixo), que realiza a jus-tificação e produz boas obras. Mas a gratia creata também inclui tudo aqui-

lo que Deus dá ao homem gratuitamente. Esses dons, e particularmente osque preparam o homem para a salvação, foram resumidos pelos franciscanos no termo gratia gratis data, a graça dada livremente ao homem, semenvolver a questão do mérito (ou, em outras palavras, gratuitamente).

Alguns dos elementos preparatórios para a salvação podem ser en-contrados mesmo no homem natural. Entre os pagãos, por exemplo, hácerto desejo de conhecimento sobre Deus; na razão e na vontade do ho-mem há certa propensão para decidir fazer o bem e realizálo. Mas acimade tudo, a gratia gratis data referese ao que especificamente prepara ocaminho para o recebimento da graça mais elevada: a fé embrionária (fides informis), arrependimento preliminar, que resulta do temor à punição (attri- tio), forma inferior de temor (timor servilis) e esperança indefinida (spes informis). O chamado que vem através da Palavra (vocatio) tem tambémaí seu lugar.

A proclamação da Palavra, ou evangelho, ocupa lugar relativamenteobscuro no plano da salvação. Apenas providencia o conhecimento neces-sário para se receber a graça sacramental, e com ela a justificação. A ên-

fase principal recai sobre os sacramentos. A Palavra tem certo caráter le-galista, que nos diz o que crer e fazer. O evangelho é apresentado comonova lei (nova lex), que não apenas ordena mas também confere o podernecessário para se poder cumprir com seus mandamentos. Mas esse po-der não é fornecido pela própria Palavra ; vem através dos sacramentosinstituídos por Cristo.

Os dons são resumidos no conceito gratia gratis data e se relacionamexclusivamente com a esfera natural. A questão é: O que o homem deve

fazer por sua própria força (facere quod in se est) para estar preparadopara receber a graça? As formas inferiores de fé e arrependimento quesão possíveis nesta etapa não são em si suficientes para justificar o ho-mem. Mas de acordo com os franciscanos, constituem um meritum de con-

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gruo, ou mérito proporcional. É provável que Deus recompense essas boasações, embora não sejam realmente meritórias em si. A recompensa quetrazem é a graça verdadeira (gratia gratum faciens) dada por Deus. É istoque justifica o homem — que o toma agradável a Deus — e elimina suaculpa, ao mesmo tempo que torna acessível à natureza humana aquelas

qualidades superiores necessárias para se fazer boas obras e alcançarmeritum de condigno, mérito genuíno.

A graça justificante é um habitus infuso, um donum habituale, trans-mitido pelos sacramentos, primeiramente pelo batismo, mas também pelapenitência e pela ceia do Senhor. A graça uma vez perdida pode ser re-conquistada pela penitência. Esse habitus eleva a natureza do homem a umnível mais alto e substitui o donum superadditum que o homem perdeu co-mo resultado da queda em pecado. A graça infusa altera a direção da von-tade do homem para Deus e torna possível tanto a fé genuína (fides infusa) 

como o espírito de arrependimento, que é motivado, não pelo temor à pu-nição, mas pelo amor a Deus (contritio; timor filialis). É assim que se podeencontrar o mérito genuíno, que será recompensado com vida eterna, a gra-ça da glória (gratia glorificationis).

Tomás de Aquino alterou certas facetas dessa estrutura. Enfatizou aprioridade da graça em relação ao livre arbítrio do homem, e rejeitou a for-te psicologização que caracterizava a posição franciscana. De acordo comTomás, o homem é incapaz, por sua própria força, de prepararse para re-

ceber a graça. Não podemos tomar a iniciativa para criar a fé; o início dafé coincide com a vinda da graça. Como resultado, tudo o que se diz dofacere quod in se est deve cessa r. Certo preparo é possível, mas apenascom o auxílio da graça, e este não é (segundo Tomás) meritório. Por simesmo não conduz à salvação. A justificação é pura e simplesmente obrasobrenatural, que só pode ser alcançada em virtude da graça infusa. Quan-do o homem chega a participar do habitus da graça — e isto ocorre nummomento — é justificado.

Entre os escolásticos mais antigos, tal como acontecia com Agostinho,

a graça era concebida como sendo a restauração de toda a natureza hu-mana (gratia sanans; cf. acima pp. 14950), que fora prejudicada pela que-da. Mas o mesmo não acontece com os teólogos da alta escolástica, queconcebiam a graça como dom sobrenatural que eleva a natureza humanaa um nível superior (gratia elevans). Esses dons da graça eram considera-dos necessários, não apenas porque o homem é pecador, mas também porse julgar que o homem podia obter conhecimento salvífico de Deus, e avisão beatífica de Deus, apenas depois que estes dons fossem adicionadosao que nos pertence por natureza.

A graça justificante coincide com o amor infuso, que aperfeiçoa o homem e o  capacita a rea lizar obras meritórias. Como resultado de sua in-fluência, a justiça original do homem é restaurada (porque supre o homemcom o habitus do amor), e sua vontade já convertida é apoiada em seu de

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sejo de fazer o bem (gratia operans e gratia cooperans). A graça é poderinterno que acentua as qualidades naturais do homem e lhe confere virtu-des sobrenaturais. A esperança se torna firme, e a fé não só se tornafides informis mas convicção interna moldada pelo amor.. O temor se torna«temor filial» (timor filia lis) . Quando a graça coopera com os poderes na-turais do homem, o resultado é mérito. As boas obras são meritórias comooperação da vontade livre, mas só se tornam plenamente meritórias coma ajuda da graça. Não se exige mérito para a justificação do homem; sóé necessário para que o homem possa reter os dons da graça e alcançara bemaventurança (beatitudo), que assim é atingida em parte como re-compensa por seus méritos.

A AL TA ESCO LÁSTICA E OS SACRAMENTOS

A escolástica aos poucos formulou o ponto de vista geralmente acei-to na Igreja Católica Romana. Principiando com Pedro Lombardo, julgousehaver sete sacramentos: batismo, confirmação, ceia do Senhor, penitên-cia, extrema unção, ordenação e matrimônio. Tomás de Aquino concebiaos sacramentos como sinais «físicos», destinados a proteger e realçar avida do espírito. A vida corporal inicia com o nascimento e requer cresc i-mento e nutrição. Assim também acontece com a vida espiritual; iniciacom o novo nascimento no batismo, recebe força para crescimento na con-firmação e nutrição na ceia do Senhor. A vida espiritual avança ainda maispor meio da penitência, que remove a enfermidade do pecado, e a extremaunção, que toma conta do resto dos pecados. Os últimos dois sacramentosse ocupam com o homem em relação à sociedade: a ordenação, que ou-torga o direito de governar os outros pelo ofício clerical (correspondendoao cargo político na esfera civil), e o matrimônio, que visa aumentar nume-ricamente a igreja (e que se relaciona tanto com a vida espiritual como coma civil). Desta maneira eram justificados os sete sacramentos. Mais difícil,no entanto, era demonstrar que cada um deles tinha sido instituído por Cris-

to. E também não era fácil demonstrar a reivindicação que cada sacramen-to compõese em parte de um elemento externo (matéria) e em parte dapalavra, que lhe dava propósito e efeito (forma). Isso era especialmentedifícil no caso da penitência, da ordenação e do matrimônio.

Todos os sacramentos eram considerados portadores da graça queresultara do sofrimento substitutivo de Cristo. Os sacramentos manifestamesse sofrimento de várias maneiras, e transmitem seu poder de curar esua influência criadora aos membros da igreja. Esse conceito recebeu for-ma lógica de várias maneiras. Os franciscanos, e especialmente Duns Sco

tus, se associaram ao ponto de vista simbólico, agostiniano, e considerarama comunicação da graça como efeito produzido diretamente por Deus, aolado do uso externo dos sacramentos. Tomás de Aquino, por seu turno,formulou uma teoria em que se referia aos sacramentos como instrumentos

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para a comunicação da graça. Tomás acreditava que a graça não só serelaciona «moralmente» ao uso externo dos sacramentos, mas também está«fisicamente» incluída neles. Segundo essa teoria, os sacramentos não sãosimplesmente sinais da graça que Deus outorga de maneira invisível, massão em sentido real a causa da comunicação da graça. Acreditava, portan-

to, que a ação sacramental é por si mesma eficiente, independente da fénas palavras da promessa. Essa convicção era expressa dizendose queos sacramentos agem ex opere operato.

Além dos elementos (matéria) e das palavras acompanhantes (forma), também se afirmava que a intenção do ministro em oficiar os sacramentoscomo a igreja os entendia era necessária para a validez sacramental. Poroutro lado, não se julgava que o efeito dos sacramentos era condicionadopela fé ou ausência de fé do oficiante.

Por último, salientaremos brevemente algumas das questões discuti-das com relação aos vários sacramentos.

A água era prescrita como o material a ser usado no batismo, e suaforma eram as palavras ditas pelo oficiante. Ego te baptizo in nomine Pa- tris, et Filii, et Spiritus Sancti. Acreditavase que o batismo, como a con-firmação e a ordenação, conferia um character indelebilis, e por causa dis-so estes três sacramentos nunca eram repetidos, e falta de fé não podiainvalidálos. Quando se perguntava o que era esse character indelebilis, o resultado eram longas discussões.

Mantinhase que a confirmação supria o poder exigido para a lutaespiritual do cristão. Sua matéria era o óleo de bálsamo, com que se un-gia a testa do confirmando enquanto eram ditas as palavras: Consigno te signo crucis et confirmo te chrismate salutis in nomie Patris, etc.

A ceia do Senhor era considerada o mais importante dos sacramen-tos, uma vez que se relacionava mais intimamente com o sofrimento deCristo. A doutrina da transubstanciação — que, como já se mencionou, foiratificada no Quarto Concílio Laterano em 1215 — foi interpretada por To-

más como significando que a substância do pão e do vinho é transforma-da, pela consagração, no corpo e sangue de Cristo . Por outro lado, os ele-mentos retêm seus acidentes, sua forma, cheiro, gosto, e assim por diante.Também não se devia dizer que as substâncias dos elementos são destruí-das (annihilatio), mas antes que são transformadas na substância do corpoe sangue de Cristo.

Outra teoria era defendida especialmente por Duns Scotus. Ele acre-ditava que o pão retém sua substância e que o corpo glorificado de Cristodesce ao pão pela consagração e se encontra nele juntamente com a subs-

tância natural do pão, sem quantidade, mas inteiro e completo em cadapartícula do pão sacramental. Essa é a assim chamada teoria da consubstanciação (ou impanação). Scotus tentou reconciliar esta teoria com a dou-trina dominante na igreja, mas as duas eram incompatíveis. Scotus também

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considerava a possibilidade de a substância do pâo ser substituída pela docorpo de Cristo e, portanto, se r destruída. A teoria da impanação foi sub-seqüentemente adotada pelos nominalistas, mas foi incapaz de substituira já sancionada doutrina da transubstanciação.

Consideravase a penitência simplesmente em termos de confissão

auricular a um sacerdote, incluindo as três ações que forneciam a propostamatéria deste sacramento: a contrição do coração, a confissão feita coma boca e a satisfação prescrita pelo sacerdote. Esta consistia de orações,

 jejuns e esmolas. A forma do sacramento encontravase nas palavras daabsolvição: Ego te absolvo, etc. Nesta forma, a penitência pressupunhaque o poder das chaves (o direito de ligar ou desligar uma pessoa comrespeito ao pecado) foi dado ao sacerdote. As assim chamadas indulgên-cias constituíam problema especial. Acred itavase que o poder das chavestambém incluía o direito de trocar uma forma de satisfação (corresponden-

te ao pecado em questão) por outra, mais fácil, ou até de eliminar total-mente a necessidade de fazer satisfação. O sistema de indulgências era

 justificado pela reivindicação que a igreja possuía um tesouro de méritossupérfluos, adquirido por Cristo e pelos santos. A intenção original eraque uma indulgência só deveria ser dada em conexão com confissão eque arrependimento sincero era exigência prévia necessária. Mas a práticafoi separada da penitência genuína, e foi então que surgiram abusos gros-seiros, que suscitaram forte oposição mesmo durante a Baixa Idade Média.

A extrema unção era dada só quando se supunha estar próxima amorte; então os vários membros da pessoa enferma eram ungidos comóleo consagrado enquanto se diziam orações. Este sacramento era consi-derado complemento da penitência, e se acreditava resultar na remoção dospecados remanescentes e — quando útil — na cura do corpo. Apoio bíblicose encontrava em Tg 5.1415.

A ordenação, ou consagração nos vários ofícios eclesiásticos, tambémera considerada sacramento, uma vez que proporcionava graça santificante por intermédio de sinal visível. A ação em si, que no caso do sacerdote

incluía a apresentação de cálice e patena com pão e vinho, não se julgavaconferir graça da mesma forma como os demais sacramentos; era o bispooficiante que, por sua pessoa, providenciava o poder do ofício. O ato daordenação era, pois, considerado simbólico, e não eficaz em si (Tomás deAquino, Summa, suppl., q. 34, art. 5). A maioria das pessoas acreditavaque os bispos e os sacerdotes juntos constituíam o «sacerdócio» (enquan-to que outros julgavam ser o episcopado ofício especial superior aos de-mais, por exemplo, Duns Scotus).

O matrimônio, que trazia implicações tanto civis como religiosas, jul-gavase receber seu caráter sacramental do fato que simbolizava o amorde Cristo pela igreja (Ef 5). O acordo mútao (mutuus consensus) era con-siderado a causa eficiente do matrimônio. A forma deste sacramento nãoera tomada da bênção sacerdotal mas do consensus expresso verbalmente.

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A indissolubilidade do matrimônio era considerada resultado natural de suanatureza sacramental. Em vista do fato que o matrimônio  ilustra o amor  revelado por Cristo em seu sofrimento, pode ser colocado (apesar de suasimplicações seculares) na mesma categoria dos outros sacramentos — co-mo mediador da graça que é fruto do sofrimento e da morte de Cristo.

No Concílio de Constança (14141418), as severas criticas de JoãoHus e João Wiclif (cf. abaixo), dirigidas contra o sistema sacramental, fo-ram repudiadas. No Concílio de Florença a tradição dos sete sacramentos,que tinha sido estabelecida pela escolástica, foi formalmente aceita (a bulaExultante Deo do papa Eugênio IV).

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CAPÍTULO 19

A FASE FINAL DA ESCOLÁSTICA

O OCAMISMO

O nominalismo da Baixa Idade Média, que deve ser distinguido daescola anterior de nome igual, foi fenômeno sem oaralelo na história dateologia. Apesar de seus representantes combaterem violentamente toda a

linha de pensamento da escolástica anterior e contestarem muitos de seusprincípios fundamentais, eles perpetuaram a tradição escolástica e comple-taram (algumas vezes de forma extremada) a reorganização dialética do ma-terial teológico. Seu profundo interesse na filosofia é testemunhado pelotratamento exaustivo dado a questões periféricas da teologia, e particular-mente ao problema da relação entre teologia e filosofia. (Quando comen-tavam as Sentenças de Lombardo, tratavam especialmente do prólogo edo primeiro livro.)

O fundador e principal representante desta escola foi Guilherme deOccam (professor em Oxford; acusado de heresia e citado a Avignon, on-de foi mantido em custódia por quatro anos; mais tarde ensinou em Muni-que, onde foi protegido pelo imperador Luís da Bavá ria ; faleceu em 1349).Entre seus muitos seguidores destacamse Pedro dAilly (m. 1420, cardeal,ativo nos concílios de reforma) e Gabriel Biel (m. 1495, professor em Tübin-gen), cujo Collectorium sintetizou a tradição ocamista de maneira exemplar.A teologia de Biel foi básica para a instrução em várias universidades ale-mãs, inclusive a de Erfurt,.onde Lutero foi educado.

Occam reexaminou o problema dos universais que tinha sido tema.mportante de debate para os primeiros escolásticos. Occam rejeitou o reaiismo de Tomás de Aquino e fez reviver a posição nominalista, que afirmavaque apenas o individual possui realidade. Não acreditava que houvessequalquer base para a reivindicação que os conceitos universais realmenteexistem, seja nas coisas ou fora delas. Occam partiu do princípio que nãose deve supor a existência de mais essências do que se faz necessário.Não é preciso supor que conceitos universais existam fora de nossos pen-samentos (extra animam). A posição realista, portanto, deve ser repudiada.

Os universais são apenas conceitos formados na mente do homem paradesignar certo número de indivíduos da mesma espécie. A tarefa da ciên-cia é a de investigar conceitos em seu contexto e suas relações. Comoresultado, a lógica era a ciência básica na opinião dos ocamistas, enquanto

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que a metafísica devia ser abolida. Apesar de certas tendências na direçãodo método de observação mais moderno, mais empírico, o ocamismo narealidade conduziu a uma forma muito mais abstrata de especulação que ados realistas . Isto acontecia em parte porque seus adeptos não mais acre-ditavam que a ciência era capaz de tratar das coisas em sua realidade ex-

terna, mas meramente com termos e conceitos assim como chegavam àmente do homem.

Occam desenvolveu sua epistemologia principalmente para tratar doproblema do conhecimento teológico. Sua crítica se dirigia contra a assimchamada prova da existência de Deus. Negando a realidade dos univer-sa is, a prova cosmológica de Tomás de Aquino caía por terra. Pois esta,como se viu acima, pressupunha que podemos perceber a existência deDeus devido a nosso conhecimento do elemento universal das coisas quevemos. Para Occam, Deus, no seu sentido mais próprio, é algo individual

(res singularissima). Também não se pode provar racionalmente que Deusé a primeira causa de todas as coisas. A metafísica, pode, naturalmente,demonstrar de outras maneiras a existência de um ou de muitos deuses,mas a reivindicação que Deus é um só e o fato que é infinito, devem serconsiderados confissões de fé e nada mais.

A doutrina da Trindade menos ainda pode ser ponderada de maneiraracional. Occam concedia que ela pressupõe uma posição realista, poisfala de relações que existem independentemente de nossa maneira de pen-

sar . Enquanto em outros casos Occam negava a realidade de tais relações,contentavase em referir a questão da Trindade à autoridade da Escritura,que não pode ser invalidada pelos princípios do conhecimento empírico —pois tal conhecimento só trata da criação e não de Deus.

O que se disse até agora ilustra a concepção ocamista da relaçãoentre teologia e filosofia. Diversamente de Tomás de Aquino, Occam nãoconsiderava a teologia uma ciência. Suas proposições não podem ser elu-cidadas por meios lógicos; como artigos de fé, têm seu único apoio nas

Escrituras. Occam julgava que há uma diferença radical entre teologia efilosofia . Mas isto é apenas um lado da questão. O outro é que acreditavasimplesmente que proposições e conceitos teológicos podiam ser tratadospor meios dialéticos e lógicos. Realmente, ele e seus adeptos praticavamesta arte com grande virtuosismo. O fato de Occam acreditar que teologiae filosofia eram totalmente diversas, portanto, não impediu a teologia oca-mista de ser mais influenciada por argumentação filosófica do que qual-quer outra escola de pensamento.

De acordo com Occam, a teologia deve basearse na fides infusa.

O que queria ele dizer com fé? Acima de tudo, a inclinação de crer naverdade bíblica. Não aceitava a idéia franciscana mais antiga que fé éexperiência imediata do divino. A fé é concordância com a verdade bíblica.Bie l definiu fé como segue: «Aquele que lê a Bíblia (se é crente) imedia

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emente concorda com cada uma das coisas registradas nela, porque crênje todas estas coisas são reveladas por Deus.» (Collectorium, III, dist.24, 2, q. única, G).

Os nominalistas julgavam, em princípio, que a Escritura é a única au-toridade. Alguns até mesmo tentaram citar suas doutrinas em oposição

ao papa e outras autoridades ec les iásticas. Mas em geral, a Bíblia e asdoutrinas da igreja foram fundidas; as tradições eclesiásticas eram firme■nente defendidas mesmo quando lhes faltava fundamento escriturístico.'sto acontece, por exemplo, com a transubstanciação, que Occam aceitavaembora achasse que outras teorias eram mais bíblicas. Os nominalistasdesenvolveram a teoria da inspiração imediata da Escritura. A autoridadecanônica baseavase na convicção que as palavras da Bíblia tinham sidoinspiradas nos autores pelo próprio Deus.

Não é todo homem que pode alcançar uma fé firme em todas as ver-

dades bíblicas. Em vista disso se fazia distinção entre fides implícita, queaceita verdade bíblica ou doutrinária apenas de maneira geral, e fides explicita, que pressupõe conhecimento dos artigos individuais de fé. Esta sóera exigida de clérigos, enquanto aquela era considerada suficiente para osieigos em geral.

No tocante ao conteúdo teológico, Occam, na maioria dos casos, acei-tava a tradição mais antiga. Também a alterou em vários pontos e formu-lou críticas que enfraqueceram seus fundamentos.

Podese encontrar exemplo disto em seu conceito de pecado e graça.Occam não acreditava que o pecado original realmente existe na naturezahumana. É apenas o julgamento que Deus pronuncia sobre o homem, atri-buindo ao homem a culpa de Adão; não é corrupção real da natureza hu-mana. Em conexão com a idéia  tradicional de pecado, Occam também fa-iava de pecado como fomes, inclinação para o mal que há no homem.

Uma conseqüência de tal conceito de  pecado é que se considera agraça meramente como perdão dos pecados, exoneração da culpa. Se opecado não é concebido como depravação constante, certamente há pouca

razão para se conceber a graça como habitus infuso. Occam, contudo, nes-te caso, fez concessões à tradição, pois falava da graça como gratia infusa mesmo que nos outros casos criticasse o conceito de habitus.

A concepção do plano da graça de Occam foi influenciada por idéiaspelagianas. Quando o homem fez tudo o que é capaz de fazer (facit quod in se est), é recompensado com dons da graça. O homem é capaz, comsuas  próprias forças, de produzir méritos de tipo inferior (meritum de con- gruo). Seus poderes naturais podem até capacitálo a amar a Deus acimade todas as coisas . Estas idéias se relacionavam com a crença que o pe-cado não é corrupção da natureza mas consiste apenas de ações volitivasseparadas. Foi a doutrina ocamista da graça que depois foi mais acerba-mente criticada pelos reformadores. (C f. a Apologia da Confissão de Augsburgo).

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Com respeito à predestinação, Occam perpetuou a idéia do voluntarismo que tem sua origem em Duns Scotus. Deus é a Vontade Absoluta.Em sua potentia absoluta é independente de qualquer lei. Portanto, se ohomem deve ser salvo ou não, isto depende exclusivamente do decreto deDeus. Semelhantemente, a decisão quanto a se uma ação do homem é me-

ritória ou não, também depende da vontade de Deus. A antiga relação en-tre mérito e graça foi, portanto, rompida. Caritas, graça infusa, não eramais considerada pressuposto necessário para a realização de ações me-ritórias.

Toda a ética ocamista era marcada pelo mesmo ponto de vista. Oque é bom é bom porque Deus assim o considera. Não há mandamentoseternos, e aqueles que existem são válidos por causa do poder da vontadede Deus. Nada pode impedir Deus de tornar válidos outros mandamentos.

OPOSIÇÃO NA BA IXA IDADE MÉDIA

Como se pode depreender do que já foi dito, a teologia nominalistacriticava em muitos pontos a doutrina dominante na igreja, estruturada pelaescolástica . Isto não significa, no entanto, que havia qualquer oposiçãooculta ou ceticismo profundo envolvidos (como alguns procuraram encon-trar no ocamismo). Os teólogos nominalistas, via de regra, aderiam muitoestritamente à posição dogmática da igreja. As eventuais contradições he-

réticas foram evitadas por sua referência à autoridade como fundamentoda fé e à ruptura entre conhecimento teológico e conhecimento racional.Mas de outras fontes, como por exemplo os waldenses e teólogos indivi-duais como Wiclif e Hus, partiram críticas mais fortes à igreja medieval esua teologia.

João Wiclif (m. 1384) criticou severamente a autoridade papal. Ape-nas Cristo é o cabeça da igreja, dizia. A igreja e o estado formam umaunidade sob o domínio de Cristo, servindo as Escrituras de lei. Wiclif, des-ta maneira, desenvolveu a idéia de uma igreja nacional independente.

Teologicamente falando, Wiclif iniciou sua carreira como nominalista,porém mais tarde adotou a posição realista; chegou a pensar que esta po-sição concordava melhor com o conteúdo da revelação. Wiclif encontrouapoio para sua oposição à igreja medieval nos escritos de Agostinho. Foia partir deste ponto de vista que criticou a doutrina da transubstanciação,considerada antibíblica por ele. Em oposição a ela, sugeria a interpretaçãosimbólica da ceia do Senhor, citando a distinção agostiniana entre sinalsacramental e significado espiritual. A crítica ousada da igreja e do dogmapor parte de Wiclif também incluía a censura à teoria da penitência e ao

sistema das indulgências.As idéias de Wiclif foram posteriormente defendidas por João Hus

(m. 1415), cuja atividade resultou em movimentos de oposição de granderepercussão na Boêmia.

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Jean Gerson (m. 1429) estava incluído entre os autores medievais comque Lutero concordava em muitos pontos. Era nominalista, mas criticavaa abordagem científica da escolástica e salientava, em vez disso, a expe-riência subjetiva da fé. Em outras palavras, Gerson combinava a posiçãoteológica nominalista com a concepção mística da vida.

A Reforma Protestante não foi simplesmente uma continuação da opo-sição da Baixa Idade Média à Igreja Católica Romana. Foi, antes^ uma re-novação de natureza muito mais profunda e de conseqüências bem maio-res. Mas isto não quer dizer de maneira alguma que surgiu como revoltacompletamente inesperada; tinha suas raízes profundas nos desenvolvimen-tos da Idade Média.

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CAPÍTULO 20

OS MÍSTICOS MEDIEVAIS

O misticismo medievai tinha suas origens na teologia agostiniana er,a piedade monacai. Bernardo de Claraval (m. 1153) foi a primeira perso-nalidade medieval a desenvolver o misticismo como posição teológica ori-ginal. Bernardo baseava sua teologia na crença que o homem Jesus é Se-nhor e Rei. Meditações sobre a vida terrena de Jesus , e particularmentesobre seus sofrimentos constituíam o centro do misticismo de Bernardo.

Acima de tudo foi motivado pelo conceito de Jesus como noivo da alma,que derivou dos Cantares de Salomão. Entre os primeiros escolásticos queperpetuaram o ponto de vista místico encontravamse Hugo e Ricardo deS. Vítor. Introduziram idéias místicas no sistema teológico escolástico.

É freqüente ouvirse dizer que o misticismo e o escolasticismo foramadversários um do outro, mas a verdadeira relação entre ambos desafiaesta conclusão. O misticismo não era estranho è teologia escolástica , nemtampouco esta era estranha ao misticismo. Houve alguns escolásticos queeram dialéticos extremados (como, por exemplo, Abelardo e Duns Scotus),

enquanto outros fundiam teologia escolástica e misticismo em seus escri-tos como os teólogos de S. Vítor, já mencionados. Tomás de Aquino é ou-tro exemplo disto. Seus livros no campo da teologia expressam experiên-cias e sentimentos místicos. Há elementos no pensamento escolást ico re-lacionados com o misticismo. Tomás de Aquino considerava a visão bea-tífica a perfeição da teoiogia e julgava ser o conhecimento preliminar a es-sa visão. A contemplação mística freqüentemente formava a base da ati-vidade escolástica. Tomás de Aquino uma vez disse que aprendera maisde suas meditações diante da cruz de Cristo do que do estudo de livroseruditos. Um teólogo franciscano que combinou misticismo e escolásticaem alto grau foi, como já se mencionou antes, Boaventura.

Durante a Baixa Idade Média formas místicas de piedade foram enco-rajadas por certos elementos básicos da cultura da época. Havia, por exem-plo, maior interesse no homem. Crescia a necessidade de cristianismo pes-soal, empírico. A experiência religiosa individual era ressaltada de maneirapouco comum na cultura medieval clá ss ica. O desenvolvimento da educaçãoaumentou a influência e a atividade religiosa dos leigos.

O misticismo da Baixa Idade Média foi dominado pela escola que emgeral é denominada misticismo alemão, por causa de sua origem geográ-fica. No Norte e Ocidente da Alemanha surgiu o grupo denominado die Gottesfreunde («os amigos de Deus»), Os mais destacados autores místi-

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cos alemães pertenciam a este grupo. A maioria deles era da escola do-minicana e se relacionava, em certos aspectos, com a teologia de Tomásde Aquíno.

Uma das características do misticismo era que restringia muito maisa matéria da teologia que a escolástica . Os místicos estavam acima de tu-

do interessados nos seguintes temas: a doutrina de Deus, os anjos, a almado homem, e o significado dos sacramentos e dos atos litúrgicos.

O principal místico da Baixa Idade Média foi Meister Eckhart deHochheim (m. 1327; ensinou em Paris, Estrasburgo e Colônia). O mais no-tável de seus seguidores foi João Tauler (m. 1361; ativo como pregador emEstrasburgo, Colônia e Basiléia), que grangeou grande respeito, até mes-mo entre os protestantes. Henrique Suso (ou Seuse, m. 1366) e Jan vanRuysbroeck (m. 1381; de origem flamenga) também pertencem a este gru-po. A anônima Theologia deutsch também se originou entre «os amigos

de Deus».Teologicamente, Meister Eckhart não se distanciava muito de Tomás

de Aquino, mas combinou material cristão tradicional com misticismo neoplatônico. Ao mesmo tempo que desenvolveu idéias místicas teologica-mente, foi também pregador e conferencista. Empregava tanto o latim co-mo o alemão. Pouco antes de sua morte, 28 das proposições doutrináriasque defendia foram declaradas heréticas. Em vista disso, seu nome viade regra era desconhecido entre os teólogos até o século XIX quando oMovimento Romântico colocou Eckhart em lugar de destaque entre os mís-ticos. Também o idealismo alemão adotou alguns de seus conceitos bási-cos, embora em forma alterada. A filosofia do ocaso da Idade Média bemcomo a da Renascença também foram influenciadas até certo ponto pelaposição de Eckhart. Idéias afins encontramse especialmente nas obrasdo conhecido filósofo Nicolau de Cusa (m. 1464).

De acordo com Meister Eckhart, Deus é a Unidade Absoluta, alémda complexidade da criação e mesmo além da Trindade. Descreveu a ori-gem do mundo em parte como criação, e em parte como emanação. A

alma do homem ocupa terreno intermediário. A alma possui um núcleo di-vino nas profundezas de seu ser, que é o fundamento ou a fagulha da alma(scintilla animae). Este fundamento da alma é idêntico à Unidade absoluta,e é o lugar onde Deus nasce na alma. Eckhart identificou Deus com o ser,o que soa como panteísmo, mas esta suposição é neutralizada pela rigorosadistinção que estabelecia entre Deus e a criação.

Cristo, segundo Eckhart, é o protótipo da união de Deus com o ho-mem. Como tal é o exemplo para todos os fié is. Eckhart não colocou acruz e a ressurreição no centro, mas antes a encarnação, em que esta

união se manifestou.O homem é salvo morrendo para o mundo e recolhendose dentro

de si mesmo a ponto de poder unirse com o divino. Isto acontece em trêsetapas: através de purificação, iluminação e união.

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A primeira etapa, purificação, consiste de arrependimento, um morrerpara a busca do pecado e o conflito contra a sensualidade.

A segunda etapa, iluminação, consiste na imitação dos sofrimentose da obediência de Cristo. O melhor meio de se conseguir isto é a con-templação dos sofrimentos de Cristo, a entrega da própria vontade, e oabsorverse na vontade de Deus. Seria errado concluir que o ideal místicoé pura passividade. A fusão da vontade de Deus com a do homem podetambém ocorrer numa vida ativa. O objetivo é querer e fazer o que é bom,segundo os desejos de Deus, e apartarse do mal que se origina dentrode nós. O amor ao próximo é a forma mais elevada de amor a Deus.Eckhart escreveu: «Se alguém se encontrar em êxtase como o apóstoloPaulo uma vez se encontrou, e então chegar a ouvir sobre um homem do-ente que lhe pede um prato de sopa, creio que seria muito melhor esque-cer o amor extático a fim de serv ir a Deus em amor maior.» Mas acimade tudo, dizia Eckhart, é o sofrimento que promove o morrer para si mes-mo. «A maneira mais rápida de se alcançar a perfeição é através dosofrimento.» As meditações místicas muitas vezes se relacionavam commortificações dolorosas, como se pode ver, por exemplo, nos escritos deHenrique Suso.

A terceira etapa, a mais elevada, a união da alma com Deus, temlugar quando o homem se torna inteiramente livre das coisas criadas esuas seduções, bem como de si mesmo. Cristo então nasce na alma, e

o homem deseja o que Deus quer e se torna um com ele. Em algunscasos , essa experiência tinha natureza extática, ou então produzia visões,que constituem o auge da vida do piedoso. Segundo Tomás de Aquino, avisão de Deus só pode acontecer na eternidade, mas os místicos busca-vam essa experiência perfeita do divino já neste mundo.

De acordo com o misticismo alemão, Deus é o Um, a única realidade.O Se r é Deus, dizia Eckhart. Onde, então, se enquadra a criação nesteponto de vista monista? Se Deus é a única realidade, isso significaria queas coisas criadas são nada. Mas elas também procederam de Deus. Masnão será necessário atribuirlhes certa realidade ao lado de Deus? Osmísticos respondiam tais questões dizendo que as coisas do mundo nãopossuem realidade fora de Deus. São como os raios de luz que não po-dem existir sem a lâmpada. Relacionamse com Deus como a luz com ofogo. Portanto, podese dizer que a criação originouse com Deus e que,apesar disso, é nada.

A missão do homem nesta vida é abandonar o mundo e mesmo asi próprio a fim de encontrar a perfeição, o que significa, absorverse no

Um, unirse com o próprio Deus e assim entrar em contato com a únicarealidade verdadeira . O homem em si pertence à criação , que é nada, do-

minada pelo mal. A primeira causa da alienação do homem de Deus ésua própria vontade, que se separou da vontade de Deus. A salvação

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consiste na reunião do homem com o divino, e isto se realiza através dastrês etapas referidas acima: purificação, iluminação e união.

O misticismo de Meister Eckhart era diferente do de Bernardo deClaraval; relacionavase menos com a doutrina cristã e fora mais influen-ciado por idéias neoplatônicas. A «uniãó mística» era enfatizada mais por

Eckhart que também usou idéias filosóficas de modo mais geral, enquantoque o misticismo de Bernardo se concentrava mais nas meditações basea-das na vida de Cristo.

Os outros autores enumerados entre os «místicos alemães» certamen-te foram influenciados por Eekhart, mas via de regra eram mais fiéis àtradição doutrinária da igreja. Isto acontece especialmente com João Taulere a Theologia deutsch.

Os sermões de João Tauler chegaram até nós em forma escrita, e

foram muito lidos também por protestantes. Tauler era mais prático e tam-bém mais popular do que Eckhart. Há muitas idéias genuinamente evangé-licas em seus escritos , e Lutero o tinha em alta estima. Apesar disso, eraum místico típico. Aceitava a doutrina do fundamento divino da alma dentrodo homem, e freqüentemente colocava a palavra interna acima da procla-mação externa e das palavras da Escritura.

Outra fonte que exerceu grande influência sobre Lutero foi o mo-desto livrinho Theologia deutsch. Foi publicado pela primeira vez em 1516

— pelo próprio Lutero (na realidade, este foi o primeiro livro que Luteromandou imprimir). No Prefácio da edição subseqüente Lutero diz que «alémda Bíblia e Sto. Agostinho, este livro me ensinou mais do que qualqueroutro.» O papel sobre o qual Lutero escreveu estas palavras perdeuse,mas no século passado outra versão desta declaração foi encontrada, le-vando o título Der Frankforter. Lutero acreditava ser Tauler o autor deTheologia deutsch, mas descobertas recentes demonstraram que isto nãocorresponde aos fatos. O autor desse livro, que provavelmente apareceupor volta do fim do século XIV era membro dos «amigos de Deus», mas

permanece anônimo. O principal tópico tratado nele é a «perfeita união» —união com Deus — e o caminho para se alcançar tal alvo.

Outro livro muito conhecido, escrito por um místico do final da IdadeMédia, é De imitatione Christi, de Tomás a Kempis. Apareceu no início doséculo XV . O autor inicialmente foi professor na famosa escola monásticaem Deventer, na Holanda, mas passou a maior parte de seu tempo escre-vendo num mosteiro agostiniano na Alemanha. Nenhum outro livro escritopor um místico foi lido por tantos como este. Realmente, A Imitação de Cristo é um dos livros mais vezes editado em todo o campo da literatura.

Foi publicado em mais de 3.000 edições. O livro foi publicado anonima-mente, e a questão de sua autoria foi por muito tempo debatida.

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III PARTE

O PERÍODO m o d e r n o  DESDE A REFORMA ATÉ O PRESENTE

CAPITULO 21

LUTERO

A contribuição de Lutero à Reforma Protestante constitui a base paratodo o desenvolvimento da teologia evangélica luterana. Além disso, seusescritos, em grau maior ou menor, serviram diretamente de fonte de ins-piração para o pensamento teológico e para a pregação da Palavra emtodas as épocas subseqüentes à era da Reforma. Como conseqüência, os*escritos de Lutero passaram a ocupar lugar central na história da teologia.

Neste capítulo pretendemos apenas apresentar breve resumo dos prin-cipais aspectos da teologia de Lutero, tomando em consideração as tradi-ções prévias bem como as de sua época.

O DESENVOLVIMEN TO DE LUTER O ATÉ A DIE TA DE WORMS, 1521

Na moderna pesquisa sobre Lutero, muitos demonstram preferência

pela «teologia do Lutero jovem». Tal interesse fundamentase na idéia quea Reforma pode ser explicada geneticamente, recuandose até ao Lutero jovem a fim de se descobrir como seu pensamento evoluiu. Acreditasetambém que podem ser traçados paralelos significativos entre certas for-mas de teologia moderna e o Lutero jovem e seu sistema teológico anterior,relativamente desconhecido. Todavia, é preciso lembrar, que os que partemdeste princípio encaram a teologia do Reformador de pontos de vista dife-rentes dos mantidos por ele próprio em idade mais madura. Ele mesmocriticou severamente seu desenvolvimento anterior e concluiu que naquela

época errara em muitas questões, e que então não reconhecera com clarezaaté que ponto divergia da tradição escolástica em que fora educado.

Mas, independente disso, para entendermos a pessoa e a mensagem deLutero é, sem dúvida, importante conhecermos algo sobre seu desenvolvi

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cumprido com todos os preliminares?  A   tenlnqia ocamista também supunhaque o homem podia, por saus^oró p ri o s poderes _n aturais, amar a DaussobietnHgs g.q poisas. Isso levou Lutero a perguntarse se era ou não um doseleitos (obsessão quanto à^_pmd.estinacão1

Encontrandose neste estado de alma, Lutero recebeu algum auxílio de

Staupitz, seu confessor. Staupitz era tomista e místico, e, portanto, agia combase em tradição diferente da de Lutero. Recomendou, entre outras co isas,nus I útero contemplasse o Cristo crucificado, ao invés de preocuparsecom sua eleição, e considerar assim provas e tribulações como sinais dagraça de Deus. Lutero, fortalecido pelas novas percepções que esforçouse por obter durante esse período, adquiriu maior certeza e ultrapassou suaansiedade. Também mais tarde Lutero falou de «tentações» — elas ocupamlugar de destaque em sua teologia. Mas, quanto a sua origem concreta,há uma diferença entre as tentações sofridas durante seu tempo de monge

e aquelas sobre as quais falou mais tarde. As posteriores relacionavamsemais com as dificuldades encontradas em seu trabalho: a resistência e indi-ferença de sua gente, a perseguição e oposição da parte do papa e dosentusiastas, o reconhecimento do fato que tãosomente ele era responsávelpelos distúrbios da Reforma, etc. Durante seu período no mosteiro, poroutro lado, o problema da predestinação ocupava lugar de destaque. Astentações de Lutero também tinham causas físicas, mas a suposição queseus conflitos internos no mosteiro constituíam depressão patológica nãotem fundamento válido. Comprovao, entre outras coisas, sua grande capa-

cidade de trabalho nessa época.De 1513 a 1517 Lutero continuou a trabalhar no anonimato — .ensi-

nando, prR[)and.n p  rtehatenHn, Durante esses anos fez preleções sobre osSalmos (151315), Romanos (151516), Gálatas (151617), e Hebreus (151718).Algumas destas preleções foram preservadas, parcialmente, em apontamen-tos tomados pelos alunos e em parte, nas próprias notas de Lutero.

Estes primeiros escritos prepararam o caminho para o aparecimentoposterior de Lutero num palco muito maior e contribuíram para o ponto de

vista amadurecido da Reforma. Com respeito à interpretação da Escritura,Lutero neles expressou a opinião que só se pode entender a Bíblia a partirda experiência religiosa, ou, mais propriamente, quando o que se aprendeu,

JÜê! a é posto em prática me diante a fé.

Lutero apoiouse muito em Agostinho. Em seus primeiros anos, comoregra geral, identificava sua posição com a de Agostinho. Foi o ensina-mento agostiniano de pecado e graça que Lutero desejava manter em opo

sição. à doutrinada escolástica..Sobre__a_LuStificacão. Isso também foi decisivo

no que tange à relação entre Lutero e o ocamismo.Muitos dos conceitos derivados da tradição nominalista imprimiram

sua marca de modo permanente no pensamento de Lutero. Podese, porexemplo, apontar à distinção entre teologia e ciência, à crítica da doutrina

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do habitus, ou à idéia do poder absoluto e bemoraanizado de Deus (po- tentia Dei absoluta et ordinata). Nos pontos essenciais, no entanto, podese perceber quão inteiramente Lutero rompeu com a teologia ocamista.Seus escritos polêmicos cedo e com freqüência foram dirigidos contra estaposição. O pelagianismo do ocamismo na doutrina da graça, a fusão deteologia e filosofia foram atacados severamente num debate contra a esco-lástica em 1517. Lutero sustentou que era despropositado afirmar que ohomem pode com suas forças naturais amar a Deus sobre todas as coisas,preparandose desta maneira para receber a graça. Ao invés disso, é ca:racterística do homem natural .q^amarse a .ai m esm ogan j m d o..p... o p o r s ea Deus. A graça precede a boa vontade, e para que alguém possa fazero.bem é preciso que se torne bom primeiro. Os ocamistas falavam da «ló-gica da fé», aplicável mesmo em questões que incluem os mistérios da fé,mas assim fazendo precisavam trazer proposições teológicas ao tribunal da

razão e misturar teologia com filosofia. Disserase durante a Idade Médiaque ninguém podia ser teólogo sem a ajuda de Aristóteles. Mas Luterodisse que ninguém podia ser teólogo a não ser que rejeitasse a ajuda deAristóteles.

As primeiras manifestações de Lutero alcançaram repercussão dimi-nuta. Mas quando afixou suas Noventa e Cinco Teses a 31 de outuhro de1517, iniciando assim o conflito contra o florescente abuso do sistema dasindulgências, provocou a tempestade que em pouco tempo o conduziu aum completo rompimento com a Igreja de Roma e sua teologia. Seguiuse

uma guerra de panfletos, envolvendo, entre outros, Silvestre Priérias e Lu-tero; e, em 1518,a cúria romana, agindo por intermédio do Cardeal Cajetano,tentou de maneira improfícua obrigar Lutero a retratarse (em Augsburgo). Odebate sumamente polêmico entre o teólogo romano João Eck e Lutero, rea-lizado em Leipzig em 1519, não resultou em grande vitória para nenhumdos dois lados.

Considerado do ponto de vista teológico, o debate realizado por oca-sião da visita de Lutero a Heidelberg em 1518, foi mais significativo. Essedebate não tratou apenas da momentosa questão das indulgências mas tam-bém dos problemas de pecado e graça, da incapacidade do homem parafazer o bem, do livre arbítrio e da fé. Do mesmo modo como as teses de1517 tinham sido dirigidas contra a teolooia escolástica, as proposições des-te debate dirigiamse contra a teologia e a filosofia do ocamismo. Luterotambém afastouse dos dirigentes ocamistas de Erfurt. Mas, ao fazêlo, con-quistou gradualmente o respeito da geração mais jovem. A Universidadede Witenberga floresceu a tal ponto durante esses anos que em poucotempo podia compararse com os maiores centros educacionais de toda a

Alemanha.O momento decisivo na vida de Lutero foi a descoberta que a «justiça

de Deus» como descrita na Carta aos Romanos não era uma justiça que julga e faz exigências , mas a justiça dada por Deus em graça. Lutero men

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cionou esta descoberta no Prefácio de suas obras reunidas (1545), e aassociou ao preparo de seu segundo comentário sobre os Salmos, escritoem 151819. Ao interpretar a passagem do SI. 30 que diz (na tradução daVulgata) in tua justitia libera me, Lutero dirigiuse às palavras de Rm. 1.17:«Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, etc.»,alcançando assim esta concepção após longos estudos. Esta descobertalhe forneceu a chave para entender passagens semelhantes na Bíblia, atin-gindo nova clareza com respeito ao ponto que se tornou central na teologiada Reforma. O significado desta descoberta (denominada das Turmerlebnis,a experiência da torre) tem sido objeto de viva discussão na pesquisa sobreLutero. Caso tenha ocorrido simultaneamente com o inicio das modifica-ções de sua teologia, deve ser situada em época anterior à indicada porLutero, a saber, no período 15111514. Outros estudiosos procuraram darexplicação diferente, mantendo a data fornecida pelo próprio Lutero.

Alguns dos escritos mais significativos de Lutero foram publicadosnos anos 1519 e 1520. Como exemplo de sua extraordinária produtividadedurante esses anos podese destacar o fato que na segunda metade de1519 Lutero publicou nada menos do que 16 livros. A réplica de 80 páginas(40, na Edição de Weimar), dirigida contra Silvestre Priérias foi escrita emdois dias. Entre outros escritos publicados nestes anos encontramse: Preleções sobre Gálatas (1519); Tratado sobre as Boas Obras; e Sobre a Li-berdade do Cristão (1520). No mesmo ano surgiram: Apelo à NobrezaCristã da Nação Alemã, como sugestões para reformas na educação e na

igreja; e também o contravertido panfleto: Sobre o Cativeiro Babilónico daIgreja, no qual Lutero deixa ver claramente que rompeu com o conceito ro-mano dos sacramentos, bem como com o sistema monacal. Assim fazendoatacou também alguns dos fundamentos mais importantes da cultura me-dieval.

A bula da excomunhão foi elaborada aos poucos em Roma. NelaLutero era acusado de heresia em 41 pontos. No entanto, esses pontosnão atingiam os aspectos principais de sua teologia, pois eram, em sua

maioria, de natureza insignificante. O acima mencionado Dr. Eck e o núnciopapal Jerônimo Aleandro levaram a bula à Alemanha e a publicaram. Entreoutras coisas, a bula prescrevia que os escritos de Lutero fossem queima-dos. Queimas de livros foram organizadas em vários lugares, mas não obti-veram grande repercussão. Lutero retrucou permitindo a realização de umautodefé fora de Witenberga a 10 de dezembro de 1520, no qual a lei ca-nônica e outros livros romanistas foram queimados. Também atirou a bulapapal no fogo nessa ocasião, ação que parece ter passado desapercebidapela maioria naquela época. Maior importância tinha o fato de Lutero re-

pudiar a lei canônica, simbolizado pela incineração da mesma.Depois de demoradas negociações, o Eleitor Frederico da Saxônia

finalmente conseguiu trazer a questão de Lutero perante o Reichstag (Dieta),que se reuniu em Worms em abril de 1521, com a presença do Imperador

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Carlos V. De pé, diante da Dieta reunida, Lutero foi intimado a retratarse.Sua famosa resposta, apresentada após um dia de deliberação, fez ver cla-ramente que não poderia retratarse a não ser que fosse convencido pelaEscritura ou por raciocínio claro. As discussões subseqüentes entre Luteroe os principais teólogos católicos presentes em Worms só serviram para

demonstrar mais claramente ainda, que para Lutero era impossível aceitara. Igreja Romana e sua teologja.

A TEO LOG IA DE LU TERO EM RELAÇ ÃO AO OCAMISMO E AOMISTICISMO DA BA IXA IDADE MÉDIA

Já vimos como se deu o rompimento decisivo entre Lutero e o ocamismo, que era aquele ramo da escolástica do qual Lutero mais se apro-

ximava. A crít ica que levou Lutero a rejeitar a doutrina ocamista da graça já foi mencionada. De acordo com Occam. a araca era a nova condição jTT) hnmprn, n. hahitns infiisns, niitnraado Como recompAnsa anfi-q.uS ta7Tãmtudo o nue podiam nara se. prepararem para n rp-rphimpnta-.ria graça Lu-tero, por seu turno, caaatfterava a amr.a  comosendo o oerdão dos oecados que só pode ser recebidopelos que são nar.Rl .mesmos pecadorese nada valem perante Deus. Atribuir ao homem a capacidade natural deamar a Deus ou de se preparar para a graça é tornar o evangelho nulo evão, dizia Lutero.

Há, contudo, aqueles, especialmente em círculos católicos romanos,, que tentaram demonstrar que Lutero dependia essencialmente da tradição

ocamista em certos pontos de doutrina. Afirmouse, por exemplo, que istoocorre com o conceito de imputação, bem como com respeito à relaçãoentre teologia e filosofia. Mesmo nestes pontos, entretanto, é possível no-tar uma diferença nítida entre o ocamismo e o luteranismo, apesar de exis-tirem certas semelhanças na formulação.

O ocamismo acrescentava o seguinte à doutrina da justificação geral-

mente aceita: Deus, em sua poteintia absoluta, pode tornar justo o pecadorsem referência a qualquer graça habitual ou independentemente do planode salvação existente. A justificação só acontece pela imputação ou pelaaceitãçãcTdivina. Quando Lutero dizia que Deus «declara» justo o pecador,ou que a justificação se fundamenta apenas na misericórdia de Deus, partiade base inteiramente diversa. Tais ações não pressupõem menosprezo gra-tuito do pecado ou do plano de salvação, em lugar disso pressupõem oplano de salvação, pelo qual os pecadores são justificados por causa deCristo , sem qualquer mérito de sua parte. A fonte da salvação encontrase

não no poder exercido arbitrariamente por Deus, mas no sofrimento subs-titutivo de Cristo e no perfeito mérito que ele conquistou. Deste modo,apesar de certas semelhanças externas, a concepção de imputação luteranaera basicamente bem diversa da dos nominalistas.

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Com respeito ao problema da relação entre teologia e filosofia, o no-minalismo destruía a união harmoniosa que caracterizava a alta escolástica.A verdade da teologia não pode ser objeto de «conhecimento» no sentidopróprio do termo, afirmavam, uma vez que não se baseia em observaçãodireta ou axiomas racionais, e, portanto, não pode ser provada além de

qualquer dúvida. O conhecimento teológico pressupõe revelação, e sua cer-teza repousa sobre autoridade externa. Apesar disso, no entanto, o ocamismo presumia haver relação íntima entre o conhecimento da fé e a razão;e a especulação racional foi aceita incondicionalmente como auxílio na in-terpretação dos artigos de fé. Como resultado, o conhecimento teológicofoi colocado, para todos os efeitos práticos, no mesmo nível da especu-lação filosófica.

Em geral, Lutero concordou com a distinção ocamista entre fé e razão,mas ao mesmo tempo abandonou a especulação racional e insistia que nãose pode julgar ou perscrutar a verdade revelada com o emprego da razão.O hiato entre fé e razão, na opinião de Lutero, simplesmente não existiaporque o conhecimento da fé se baseia na autoridade, mas acima de tudoporque a razão ficara cega por causa da corrupção da natureza e, em vistadisso, é incapaz de entender «o que pertence ao Espírito de Deus». Lutero,portanto, concluiu que a especulação nominalista relativa a questões de férepresentava fusão imprópria de teologia com filosofia. A distinção traçadapor Lutero entre fé e razão não se restringia apenas ao campo da teoriaepistemológica; era, para ele, problema que dizia respeito às questões teo-lógicas fundamentais. Essa distinção relacionavase na teologia de Luterocom o contraste puramente teológico entre carne e espírito, entre lei eevangelho. Como resultado, não havia concordância profunda entre Lu-tero e o ocamismo também nesta questão. Ao invés disso, analisandosedo ponto de vista da teologia, havia a antítese mais flagrante.

A relação de Lutero com o misticismo da Baixa Idade Média tambémfoi examinada exaustivamente pelos estudiosos no campo da pesquisa deLutero. Há aí alguns pontos claros de contato — mais importantes, talvez,

do que os que ligavam Lutero aos nominalistas — mas, apesar disso, haviatambém diferenças profundas em questões básicas.

O misticismo representava uma espécie de religião pessoal baseadana experiência, que se opunha não apenas ao cristianismo da igreja insti-tucional, mas também à educação esco lástica. Os místicos insistiam quesabedoria filosófica era inútil e enganosa. Lutero, em sua oposição ao escolasticismo, podia concordar com tais tendências até certo ponto, mas aomesmo tempo tornava essa crítica muito mais profunda.

A antropologia era outro ponto de contato. Os místicos falavam do«velho homem» como a vontade egocêntrica oposta a Deus, e do «novohomem» como a vontade que se une a Deus. Esse contraste nos faz lem-brar a distinção de Lutero entre o velho e o novo homem. Além disso, os

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místicos salientavam com vigor o significado do sofrimento e da tribulaçãopara o crescimento do cristão. Também falavam de matar a vontade ego-cêntrica e do contraste entre o homem interior» e «exterior». Encontramse paralelos destes conceitos em Lutero. Ele adota a posição do misticismoem muitos pontos e descreve experiências semelhantes relativas à comunhão

entre Deus e o homem.Ao mesmo tempo, contudo, a diferença decisiva entre Lutero e os

místicos se encontra no conceito teológico de homem. Não concordavamquanto ao conceito de pecado, por exemplo. Lutero ensinava a doutrina dopecado original, enquanto os místicos sustentavam a idéia que há um núcleodivino indestrutível nas profundezas da alma humana. O caminho místicoconsiste em abandonar tudo o que é externo, tudo que pertence ao mundo.Mesmo o pecado às vezes era considerado algo externo, algo que não afetao homem interior. Isto significa que o mundo é considerado algo irreal, ima-

terial, que o místico deve aprender a menosprezar. Mas, na opinião deLutero, o pecado não podia ser ignorado desta maneira, uma vez que ohomem é completamente pecador. O autoconhecimento do pecador começaprecisamente quando ele principia a se reconhecer como sendo pecador.Para o místico, o objetivo é penetrar em seu eu mais profundo e, desta ma-neira, experimentar a libertação; para Lutero, conversão é experimentar o

 juízo de Deus sobre si mesmo.

Como se pode depreender do que foi dito, Lutero e os místicos tam-

bém concebiam a união do homem com Deus de maneiras diferentes. Deacordo com os místicos, essa união tem lugar dentro da alma do homem,na parte dela não afetada por pecado e corrupção. Lutero também falavada fé como sendo as trevas na alma do homem, como algo além de todaexperiência (ou observação). Porém não é a experiência do divino comoalgo que reside em nosso ser, mas a adesão à Palavra externa. Luterotambém acreditava que a comunhão entre Deus e o homem é algo real,mas que é comunhão entre Deus e o homem pecador. Visto do lado hu-mano, não é absorção no divino, mas reconhecimento do pecado e apelo

à graça.Entretanto, o misticismo tomou tantas formas diferentes que, ao se

comparar Lutero com o misticismo, não se pode, com justiça, considerar estecomo uma corrente única sem divergências internas. Lutero admitiu quetinha em alta conta o misticismo alemão que encontrava em Tauler e naTheologia deutsch. Também apreciava os pensamentos de Bernardo de Cla-raval, embora criticasse alguns deles, enquanto categoricamente rejeitavao misticismo platônico que aparecia nos escritos de Dionísio, o Areopagita(cf. acima, p. 123). Nos sermões de Tauler, Lutero encontrou um concei

ceito de salvação livre de qualquer ênfase predominante em mérito e queconcebia a justiça de Cristo não apenas como «virtude» mas também comoparticipação sobrenatural no próprio ser de Deus, como a presença de Deusna alma. Em sua crítica ao conceito escolástico de graça e mérito, Lutero,

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portanto, sentiu certa afinidade com esta espécie de misticismo, apesar dadistância que o separava das idéias típicas do misticismo em geral.

ASPECTOS MAIS IMPORTANTES DA TEOLOGIA DE LUTERO

a. Interpretação da Escritura. A teoloaia de Lutero é teologia da_lawca_ «E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra deCristo» (Rm 10.17). Estas palavras paulinas tiveram significado fundamentalpara a Reforma Protestante. A Palavra divina, que cria a fé, destacase aomesmo tempo como sendo o fundamento da teologia. A autoridade da Es-critura certamente fora enfatizada antes disso — e notadamente na tradiçãoocamista — mas quando Lutero se referia à Escritura como a Palavra di-vina, trazida ao homem através dos apóstolos e profetas, falava com novaconvicção referente à posição fundamental e inalienável da Palavra. O que

havia de novo na atitude de Lutero face à Escritura era especialmente suapercepção mais profunda com respeito ao seu conteúdo. Além disso, Lu-tero reconhecia que a autoridade da Palavra era válida mesmo quando atradição divergia dela; que sua autoridade mantinha cativa a consciência.Por último, os princípios de interpretação também foram completamente trans-formados na exposição bíblica de Lutero.

Cristo é o centro da Bíblia. «A Escritura deve ser entendida a favorde Cristo, não contra ele; sim, se não se refere a ele não é verdadeiraEscritura.» «Tirese Cristo da Bíblia e que mais se encontrará nela?» Para

se compreender a Palavra o essencial é aceitar as promessas do evan-gelho pela fé. Faltando esta fé, a Palavra divina não pode se r entendidacorretamente. Com isso, Lutero afastouse da interpretação legalista daBíblia, que encontra na Escritura uma coleção de diferentes doutrinas e or-denanças, e do conceito «entusiasta», intimamente relacionado com a outra,e cujos adeptos reivindicam possuir a «Palavra interna» cômo norma dainterpretação da Bíblia. Por entender claramente o fato que a mensagem doevangelho é a faceta central do conteúdo da Escritura, Lutero possuía certaliberdade com respeito à análise dos pormenores da Bíblia, liberdade quenão significa nada além do fato que o conteúdo central (o contexto total)da Bíblia é o fator determinante na interpretação dos  pormenores. Isto  demaneira alguma significa desafio à autoridade canônica da Escritu ra. A po-sição de Lutero foi algumas vezes interpretada para significar exatamenteisto, mas tais conclusões são incorretas. Entender o sentido mais profundopressupõe especificamente o que mencionamos — a obediência da fé àPalavra externa. A fé em si, portanto, baseiase na validez incondicionalda Palavra. Sua autoridade também se justifica por isto, que nós homens,por causa de nossa fraqueza, devemos estar ligados à Escritura como nor-ma externa, obrigatória. «Para que a igreja não seja destruída, é necessá-rio que mantenhamos firmemente os diferentes escritos e ordens dos após-tolos.» De acordo com outras afirmações de Lutero, os apóstolos são nos-sos mestres infalíveis em virtude de incumbência divina especial.

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Em nossa relação com a Bíblia, portanto, tanto liberdade como su- jeição permanecem de pé. Do ponto de vista da fé como tal, estamos livrescom respeito a pormenores literais. A fé tem importância primordial na in-terpretação da Bíblia; isto significa que a Escritura deve ser entendida noespírito de Cristo e não legalisticamente. Mas do ponto de vista das con-

dições sob as quais a fé chega a existir, estamos subordinados à Escri-tura como autoridade externa.

Muitas vezes se tem assinalado a assim chamada crítica de Luteroao cânone (certas afirmações sobre a Epístola de Tiago, entre outras) co-mo exemplo de sua liberdade face à autoridade da Escritu ra. Mas istoconduz a equívocos. Realmente, Lutero não considerava o cânone do NovoTestamento como fixado de modo absoluto. Eni_sua_ opinião, quatro dosúltimos livros do Novo Testamento (Hebreus^ Tiago, Judas e Apocalipse)eTãrn^apócrifos, ou escritos cuja autoridade apostólica era duvidosa. Se-

gundo Lutero, o caráter .evangélico e a autenticidade, aoastólica eram, aci-ma de tudo, decisivos na dgterminaçãa.da^xiaaQnuiidade. Assim, por exem-plo, o que a Epístola de Tiago diz sobre fé e obras é interpretado comoindicação que a epístola não é nem apostólica e nem canônica. (Na tradi-ção protestante, foi só na época de Gerhard que também os assim chama-dos antilegômena entre os escritos neotestamentários começaram a ser re-conhecidos como verdadeiramente canônicos.)

Apesar de certas semelhanças, há grande contraste entre a interpre-

tação da Bíblia feita por Lutero e a moderna interpretação histórica, maseste contraste tem sido freqüentemente ignorado. É verdade, sem dúvida,que Lutero atribuiu a maior importância ao que ele denominou o sentidoliteral ou histórico da Escritura. Mas com isso ele não entendia a inter-pretação histórica no moderno sentido do termo; foi antes uma percepçãoderivada do contexto da fé. Lutero acreditava, por exemplo, que o AntigoTestamento é testemunha direta de Cristo, e não simplesmente que contémalgumas profecias a respeito dele. A concepção da «história das religiões»sobre a interpretação da Bíblia era desconhecida naquela época. .

A idéia que Lutero fazia do Antigo Testamento correspondia aos pen-samentos que desenvolveu com respeito à relação entre lei e evangelho.A lei mosaica, no sentido jurídico, foi abolida por Cristo. Fora para os ju-deus o que as leis saxônicas eram para os alemães e, portanto, válida ape-nas para certo povo num tempo determinado. A lei, contudo, recebeu cum-primento mais elevado que a obediência externa aos mandamentos. Apontaao evangelho e atinge seu cumprimento apenas através da proclamação da

 justiça pela fé em Cristo . A lei, portanto, é preservada, e como manda-mentos de Deus, aos quais todos os homens estão sujeitos, é válida mes-

mo na era do Novo Testamento. Ao mesmo tempo, porém, podemos tam-bém ve r o evangelho no Antigo Testamento. Cristo também está nele, nãoapenas como o futuro Messias, predito na lei e nos profetas, mas tambémcomo aquele que fala diretamente nos Salmos e através dos profetas.

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A interpretação bíblica tradicional da Idade Média mantinha que a Es-critura tem sentido quádruplo. Podia se r exposta literalmente, tropologicamente (isto êr  com respeito ao cristão individual), anagogicamente (isto é,com respeito à eternidade) e também alegoricamente, o que significava quese podia, por exemplo, fazer a Palavra se pronunciar sobre realidades ge-rais no mundo da fé ou da igreja.

Lutero rejeitou tal estrutura. Em sua opinião, a Escritura tem apenasum sentido próprio, o gramatical ou histórico. Naturalmente, também reco-nhecia a interpretação figurativa que se encontra na própria Bíblia, comopor exemplo nos paralelos estabelecidos entre Cristo e certos personagensdo Antigo Testamento (tipologia). Lutero também falou (especialmente emseus primeiros sermões) de um sensus spiritualis ou mysticus, que apontadiretamente à alegoria. Mas este ponto de vista recebeu posição subordi-nada. Não era fidedigno, e aparecia nos sermões de Lutero apenas como

adorno tradicional da exposição da Escritura . Em anos posteriores, Luteroabandonou mais e mais essa espécie de interpretação da Bíblia.

No conceito de Escritura de Lutero há a idéia que a Bíblia pode serentendida por si mesma, agindo cada pessoa como seu próprio intérprete.As interpretações da tradição ou do clero não são necessárias para a cor-reta compreensão da Bíblia (como os teólogos católicos romanos diziam).A Palavra possui em si a «clareza externa» que ela transmite e administraatravés do ministério (in ministério verbi). É por esta razão também que aEscritura — sem o acréscimo de mandamentos humanos e opiniões doutri-nárias — é o único fundamento da fé.

A «clareza externa» da Palavra deve ser distinguida da assim cha-mada «clareza interna», que é o cerne da compreensão do conteúdo daEscritura . Esta chega a existir apenas por meio do Espírito Santo, que ilu-mina e instrui o homem internamente. Lutero também ressa ltava o signifi-cado da experiência para a correta compreensão da palavra de Deus. Aeducação na fé, juntamente com a experiência que é dada quando se aplicaa fé quando se passa por tribulações de vários tipos, é necessária para uma

genuína percepção da Palavra (a escola do Espírito Santo).É característica da teologia da Reforma que a Palavra seja colocadano centro das coisas, não apenas como fonte de percepção da realidadesobrenatural, mas também como Palavra eficaz, criadora e vivificante, pelaqual Deus julga e soergue. A fé se relaciona com a própria Palavra, nãosimplesmente como uma realidade metafísica existente por detrás da Pa-lavra , e nela encontra a salvação. Nisto podemos ver um contraste funda-mental entre a teologia da Reforma e a teologia escolástica.

b. Lei e evangelho; penitência evangélica. De acordo com uma da

mais conhecidas expressões de Lutero, a divisão adequada de lei e evan-gelho é a arte mais elevada do cristão. Podese, com bom fundamento,fazer referência à dialética que Lutero tinha aí em mente como sendo fun-damental para toda a sua teologia.

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panhada pela morte do velho homem e pela participação na satisfaçãosubstitutiva de Cristo. Esta descoberta fundamental, já encontrada nas Noventa e Cinco Teses (cf., por exemplo, a Tese 1), gradualmente trouxe con-sigo uma transformação radical de toda a doutrina da penitência.

A espécie correta de contrição não é a que se ocupa apenas com

ofensas isoladas, mas se encontra, em lugar disso, no coração quebrantadopela lei, quando revela que todos os homens se encontram sob a maldiçãodo pecado. Como resultado, a contrição não é atividade meritória, mas aaceitação passiva da acusação da lei, que pressupõe fé no juízo que a pa-lavra de Deus pronuncia sobre os homens pecadores.

Como conseqüência disso, a confissão dos pecados é algo completa-mente distinto da recitação, no confessionário, de todas as faltas que secometeu, o que é exigência impossível de se r cumprida. Mas, além disso,o pecado não consiste de ofensas isoladas; é a corrupção de toda a natu-reza humana, que só se reconhece quando a palavra de Deus é proclamada.Ao mesmo tempo, no entanto, Lutero continuou a ressaltar a grande utili-dade da confissão privada. Mas recusouse a crer que dar a absolviçãofosse privilégio sacerdotal. Consideravao serviço fraternal que cada cris-tão tem o direito de prestar no esforço de fortalecer e confortar a consci-ência do penitente.

O perdão dos pecados não depende do mérito da contrição, e tam-bém não se deve fazêlo depender da satisfação; é concedido ao fiel ex-

clusivamente por causa da misericórdia de Cr isto. A verdadeira «satisfação»encontrase no sofrimento e na morte de Cristo, enquanto a exigência defazer satisfação é contrária ao evangelho, como também o é o sistema deindulgências.

Nesta nova interpretação, o arrependimento não pode mais ser de-signado ação meritória. É, antes, o fruto da pregação de lei e evangelho.O juízo da ira realiza sua tarefa através da lei, acusando a consciência emostrando ao homem que tudo nele é pecaminoso. A Palavra do perdão

é proclamada pelo evangelho, que desperta a fé na misericórdia e graçade Deus e transforma o homem de tal maneira que recebe nova menta-lidade e o faz voltar seus olhos de si mesmo ao que Cristo é e faz. En-tendido desta maneira, o arrependimento abrange a vida toda do cristãoe descreve o que acontece quando a lei e o evangelho exercem sua influ-ência e é produzida a justificação pela fé.

c. A doutrina da justificação. De acordo com Lutero, há duas espécies de justiça, a externa e a interna. Aquela consiste de ações externas

e é adquirida por meio de conduta justa . Ela também pode ser chamada justiça civil, pois trata do homem como membro da sociedade, ou de suaconduta em relação aos outros homens. Sua vida externa é declarada justaou injusta.

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A justiça interna, por sua vez, consiste de pureza e perfeição docoração. Como tal, não pode se r adquirida por meio de ações externas— da mesma forma que o homem não pode fazerse a si mesmo Deus.Pois essa justiça vem de Deus apenas como dádiva, pela fé em Jesus Cris-to. Esta justiça não é julgada diante dos homens mas perante Deus. Visto

se r o homem pecadoi) não pode conseguir esta justiça por si mesmo. Elacontradiz a razão e ultrapassa tudo que  pode ser compreendido ou reali-zado por esforço humano. Esta justiça é adquirida pelo sofrimento e mortede Cristo, e é atribuída ao homem pela fé, independentemente de qualquermérito ou dignidade humanas. Deus declara o pecador justo por causade Cristo.Essa justificação ocorre quando o homem se humilha peranteDeus, reconhece que é pecador e clama por misericórdia e graça de Deus.Tal homem confessa que está cheio de pecado, mentiras, vaidade, incom-petência e perdição, enquanto que Deus é tudo o que é bom. Nesta fé,

e com tais orações, o coração do homem tornase um com a justiça e virtudede Deus. Cristo tornase sua justiça, sua santificação, seu livramento. Estaé a justiça interna (justitia ab intra, ex fide, ex gratia) apresentada de acordocom as palavras de Paulo: «Concluímos, pois, que o homem é justificadopela fé, independentemente das obras da lei.» (Rm 3.28).

Também notamos que, na doutrina da justificação pela fé daReformao conceito de fé em si foi transformado. É grande a diferença entre elee o conceito paralelo ensinado pela teologia da escolástica.

Na tradição do escolasticismo, falavase de fé como algo concebívelao nível da razão, que podia ser adquirido mediante instrução e pregação(fides acquisita). Distinguiase esta da fé infusa (fides infusa), que é domda graça e implica em completa adesão a toda verdade revelada. Luterorejeitou esta distinção: A fé que «vem pela pregação» coincide com a que

 justifica (de acordo com Rm 3 .2 8); é inteira e totalmente dom de Deus,«fé verdadeiramente infusa» (fides vere infusa). A mente do homem nãopode concebêla, ela significa não apenas adesão intelectual às verdadesda fé mas verdadeira comunhão com Deus, em que o homem coloca toda

sua confiança em Deus e o encara como a fonte de todo o bem (cf. a exposição do Primeiro Mandamento no Catecismo Maior).

A fé justificante, em outras palavras, não é apenas conhecimento his-tórico do conteúdo do evangelho; é a aceitação dos méritos de Cristo. Afé, portanto, é confiança na misericórdia de Deus por causa de Cristo. Nes-ta conexão, Lutero cunhou a expressão fides aprehensiva Chrisíi. O fjtordecisivo é que o evangelho da vitória de Cristo sobre o pecado e a morteé recebido como verdade salvadora e vivificante . «A fé adquirida bem co-mo a fé infusa dos sofistas diz de Cristo: ‘Cre io no Filho de Deus, quesofreu e ressuscitou', e aí termina. Mas a verdadeira fé diz: ‘Certamentecreio no Filho de Deus que  sofreu e ressuscitou; estou certo de que elefez tudo isto por mim, por meus pe cado s .. .' Este ‘por mim’ ou ‘por nós’— quando é abraçado com fé — é a marca da fé verdadeira; esta é diferente

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de todos os outros tipos de fé, que apenas ouvem falar de coisas queaconteceram (WA 39 I, 44 ss.) Tal como Lutero a entendia, a fé não éapenas um conjunto de conhecimentos; é um poder vivo: «Que torna Cris-to ativo em nós, opondose à morte, ao pecado e à lei.» (Ibid.).

O conceito sola fide luterano igualmente deve ser entendido à luz do

que foi dito. Também aqui a oposição de Lutero à esco lástica se faz pre-sente. Em anos anteriores os teólogos tinham falado, com base em Gl 5.6,de fides caritate formata (a tradução da Vulgata) e tinham dado a impressãoque a fé não éra por si só suficiente para a just ificação. A fé só poderiaagradar a Deus caso estivesse associada a ações de amor.

Lutero demonstrou que a passagem paulina citada acima não se re-fere à justificação mas à vida cristã como um todo, que claramente se ca-racteriza pela fé ativa em amor. A justificação em si, por outro lado, é tão

somente obra da fé. Ocorre não com base no mérito humano, mas apenaspor causa da justiça de Cristo, que nos foi atribuída. E a fé, como já d isse-mos, é a aceitação das obras substitutivas de Cristo como tendo sido rea-lizadas por nossa causa. A fé une o homem a Cristo, de modo que «Cristovive em seu coração pela fé». A fé, portanto., não é função «inerte» daalma, que deve ser aperfeiçoada pelo amor. É em si ativa, um poder vivificador, que incessantemente só pode fazer o bem.

Em sua descrição da fé, Lutero citava o exemplo de Abraão apresen-

tado em Rm 4: «Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para jus-tiça.» Em conexão com isso, é costume falarse em justiça imputativa comocaracterística da teologia da Reforma. A justiça à qual aqui se faz refe-rência não é qualidade inerente ao homem. O homem é declarado justopelo próprio decreto de Deus. E isso acontece não com base em qualquerqualidade ou mérito do próprio homem, mas por causa de Cristo (propter Christum). Lutero também o expôs assim: ninguém a não ser um pecadorpode se r justificado. E com isso voltamos ao ponto de partida, a justiçaem questão só pode chegar ao homem como dádiva, como aliena justitia, 

isto é, não é nossa própria justiça mas a de Cristo, que nos é imputadapela fé.

Mas, este assim chamado conceito de imputação não deve ser inter-pretado como se referindo apenas a uma forma externa de julgamento.Pois foi precisamente neste contexto (como vimos) que Lutero falou de«justiça interna». O veredito que exonera, que torna o homem justo, é aprópria Palavra viva e criadora de Deus, que providencia o novo nascimen-to e transforma o homem por completo. Portanto, não há contradição (como

alguns querem sustentar) entre o conceito de imputação como base da justificação e a idéia da fé como poder vivo, que age. Pois o Espírito Santoé dado com a fé, e opera aquilo que é bom, e mediante o amor cumprea lei.

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A doutrina de Lutero referente a fé e obras tem suscitado muitosmalentendidos. Por exemplo, ouvese dizer que o conceito sola fide lute-rano significa que as boas obras perderam seu significado correto. Umrelance ao pensamento de Lutero sobre o assunto revelaria, no entanto,que tais conclusões não estão de acordo com seus princípios.

A fé e o amor relacionamse um com o outro como lei e evangelho, oucomo as naturezas divina e humana em Cristo . Podem certamente ser dis-tinguidas uma da outra, mas não podem ser separadas. A justiça da fédiz respeito ao homem em sua relação com Deus (coram Deo). A justiçadas boas obras ou amor, diz respeito, por sua vez, ao homem em sua re-lação com seu próximo (coram hominibus). Estas duas não devem ser con-fundidas a ponto de procurar o homem justificarse à vista de Deus devidoa suas obras, nem de tal maneira que tentará ocultar o pecado com agraça. Ambos seriam sinais de fé falsa. Disto decorre que fé e obraspodem ser separadas enfaticamente, mesmo até podem ser designadas co-mo opostos incompatíveis; mas ao mesmo tempo também é verdade queestão intimamente relacionadas.

Com respeito à justificação em si, as boas obras devem ser tãoclaramente distinguidas da fé como possível. Pois esta só diz respeito àfé. Como Lutero o expressou, não se deve permitir que a lei force seuingresso na consc iência. O homem que foi esmagado pela lei, e reconhecese r pecador, pode se r soerguido tãosomente pela fé. Deve contemplar a

cruz de Cristo, e não a lei ou suas próprias obras, como se elas pudes-sem fazer satisfação por seus erros. Neste ponto, portanto, a fé e as obrasse excluem mutuamente.

Mas quando se observa a vida concreta do cristão na sua totalidade,podese ver que fé e obras andam sempre de mãos dadas. A fé não podese r separada das obras, pois constantemente faz o bem. Como resultado,podemos falar das obras de maneira tal que a fé seja pressuposta por elase incluída nelas. Quando a Bíblia por exemplo, se refere às obras , da lei,

a exigência básica é a fé. Pois sem fé ninguém pode cumprir a lei ou fazero bem. Em vista disso é que a exigência de boas obras pressupõe fé.

Semelhantemente, podese falar da fé de tal maneira que as boasobras sejam incluídas no próprio conceito de fé. A fé é assim consideradaem seu sentido concreto, como fé encarnada nas obras de amor. Mas istonão significa que o amor enforma a fé, como os escolásticos diziam; pelocontrário, é a fé que enforma o amor. Isto quer dizer que apenas a fétorna boas as nossas ações. Usando outra expressão, a fé é a natureza

divina das boas obras. Mas quando se faz referência à vida do cristãocomo um todo, fé e amor pertencem juntos e não podem ser concebidosseparadamente; pois a fé toma forma em amor, e o amor tornase o queé através da fé.

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d. Antropologia de Lutero. O conceito teológico de homem de Lutero corresponde a sua doutrina da justificação, mas contrasta flagrantementecom o conceito medieval do homem. Freqüentemente se diz que a con-cepção de «todo o homem» (totus homo) caracteriza Lutero. Ao invés dodualismo escolástico entre corpo e alma, poderes superiores e inferiores,Lutero introduziu o conceito de totalidade no contexto teológico. Os resul-tados disto podem ser observados em várias facetas de sua teologia.

O pecado original, na opinião de Lutero, não é apenas a ausênciade semelhança original com Deus; é forma concreta de corrupção que im-prime sua marca no homem inteiro. Em termos específicos/ o pecado nãoé só concupiscentia — concebida como disposição negativa dos poderesinferiores da alma — mas um ma! que afeta o homem inteiro, inclusive (eacima de tudo) os poderes superiores da alma.

Segundo Lutero, o pecado básico é a descrença, o afastarse de Deus.O primeiro pecado, que incluiu em si todos os outros, foi duvidar da pa-lavra de Deus e desviarse do mandamento divino (cf . Gn 3.1 ss. ). Nessaalienação de Deus está presente ao mesmo tempo o mau desejo, a falsaintenção, determinada pelo amor próprio e pelo orgulho, que deixaram im-pressa uma marca indelével na vontade do homem. Mesmo os piedosospecam — mesmo em seus melhores momentos. O juízo, que diz ser ohomem pecador, abrange a pessoa inteira tal como é perante Deus. Seo homem só é julgado por sua relação com outros homens, e com baseem sua conduta externa, o significado do pecado original não pode apa-recer. A corrupção do pecado é congênita, transmitida de geração a gera-ção, por propagação natural, e, portanto, está presente antes de qualquerexperiência ou expressão consciente da vontade. Como resultado, esteconceito de pecado não deve ser confundido com o uso do termo no sen-tido moral ou legal. Lutero falou do pecado original como sendo mal oculto(malum absconditum), mistério inescrutável, que de maneira secreta deter-mina a forma da existência humana. Podese apreender o fato que se épecador no sentido bíblico apenas à luz da Palavra, e esta realidade pode

ser mantida em mente só com o conhecimento da fé, em confissão e preces.Em alguns casos o conceito de pecado original de Lutero tem sidointerpretado como algo que só se refere à relação entre o homem e Deus,a saber, sua relação deturpada com Deus. Mas dizer isto não é fazer jus-tiça a Lutero, para quem o pecado original significava corrupção real danatureza humana, abrangendo tanto o corpo como a alma, ou o homeminteiro. As profundezas deste mal não podem ser entendidas pelo homem,uma vez que não sabemos o que seria a vida humana sem o pecado. Queé forma concreta de corrupção evidenciase também disto, que se afirma

se r o pecado herdado com o nascimento físico. «Todo aquele que nascede pai e mãe é pecado.» Pecado original não é simplesmente condição deculpa, que é removida pelo batismo; é também corruptio naturae, que nãocessa de exercer sua influência até que o corpo esteja no túmulo.

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a bondade natural do homem a um nível sobrenatural e facilitava a práticadas virtudes. O homem nada mais é que pecado, e inimizade contra Deus.Por causa disto, a salvação é inteiramente obra da graça. Não é realizadasimplesmente porque alguns poderes da graça ficam à disposição do ho-mem; é porque o próprio Deus que o faz, opera diretamente através de

seu Espírito. Na teologia de Lutero, a graça não é delineada em primeirolugar no contexto da ausência de bondade natural, mas no da ira de Deus,que condena o homem por causa do pecado. A única base da salvaçãoé o segredo da expiação revelada no evangelho de Cristo. A vontade divinada graça é combinada com a onipotência de Deus e é portanto a única fonteda fé que aceita as promessas de Deus — como acontece com todo o bemque se encontra no homem.

A relação entre a graça e a onipotência de Deus forneceu a basepara o conceito de predestinação de Lutero, que foi amplamente proposto

em seu livro De servo arbitrio. O homem não está livre e é totalmente in-capaz de contribuir para sua própria salvação; Deus, por seu turno, é aque-le que faz tudo em tudo, e com inalterável força impele tudo o que acon-tece, tanto o bem como o mal. Lutero chega a dizer que Deus é a fontedo mal? Sim, encarandose o problema de certo ponto de vista, pois nadaocorre sem sua vontade e sem sua cooperação ativa. Ele é a força ativae propulsora em todas as coisas. Mas o fato que o mal acontece nãodepende de Deus e sim da cooperação de instrumentos pecaminosos. Pa-ra ilustrar este ponto, Lutero citava o caso do carpinteiro que tinha de tra-balhar com um machado de má qualidade; os resultados eram insatisfató-rios, embora ele fosse um bom carpinteiro. O problema mais difícil surgequando essa idéia da onipotência de Deus é associada à doutrina da graça.

Se a resposta à questão da salvação ou condenação do homem re-side no poder e decreto de Deus, por que Deus não faz com que todosos homens sejam salvos? A culpa pelas almas perdidas não recairá, por-ventura, sobre o próprio Deus, que em sua onipotência permitiu que oshomens se tornem vítimas da condenação? Lutero respondeu estas ques-

tões difíceis da seguinte maneira:Devese distinguir entre o que é verdadeiro para o Deus oculto e oque Deus revelou em sua Palavra. Que o onipotente Deus impele e efetuamesmo o mal é característica do Deus oculto (Deus absconditus). Mas oevangelho faz ver com clareza, por outro lado, que Deus oferece sua graçaa todos e que Deus quer que todos os homens sejam salvos . Somos inti-mados a nos atermos a esta revelação e não a tentarmos perscrutar arro-gantemente a oculta e inescrutável majestade divina.

A condenação atinge o homem como castigo justo por seu pecado

e, portanto, é conseqüência da justiça de Deus. Mas se a salvação e acondenação estão completamente nas mãos de Deus, então a questão é:Por que Deus não altera a vontade dos que se perdem? Esta questão nãopode se r respondida; a resposta não foi revelada. Lutero, neste contexto,

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tros homens, que executam as tarefas implícitas em suas vocações. Deusopera através de nós para o benefício de nosso próximo quando somosfiéis em nossa vocação . O cristão não prec isa, pois, escolher tarefas es-peciais para si mesmo a fim de aumentar o beneplácito divino. Precisaapenas realizar aquelas tarefas que lhe são apresentadas pelas exigências

de sua vocação.O conceito de vocação de Lutero implica em duas coisas: (1) que a

posição e o trabalho que cada homem tem devem ser considerados manda-mento divino, em que lhe compete procurar a ajuda de Deus e obedecerà sua vontade e (2) que a sociedade humana se estrutura de forma a quesejam prestados serviços mútuos, em que os homens servem uns aos ou-tros e trazem as dádivas de Deus a seus próximos, cumprindo com suasvárias tarefas.

Outra conseqüência do conceito de criação de Lutero se encontra emsua doutrina dos dois reinos, o espiritual e o secular. Deus exerce seudomínio sobre a espécie humana de diversas maneiras: em parte atravésda Palavra e dos sacramentos, em parte através das autoridades e da es-fera secular. As dádivas necessárias à salvação do homem são outorgadasna esfera espiritual, enquanto a ordem que é necessária para a sociedadehumana (e também para a existência da igreja) é mantida através da esferasecular.

Esta distinção não deve ser confundida com idéias modernas relativasa igreja e estado, em que se considera o estado como estando fora daesfera religiosa. De acordo com Lutero, Deus governa em ambas, tantona esfera espiritual como na secular. Esta é manifestação da criação contínwa, o cuidado providencial de Deus. Em alguns aspectos, ambas as e s-feras estão incluídas na palavra de Deus, uma vez que a autoridade seculartambém é constituída pela palavra e pelo mandamento de Deus. Ao mesmotempo, Lutero traçou nítida linha demarcatória entre as duas esferas. Aesfera espiritual não tem poder externo. Seu poder é exercido pelo pró-

prio Deus através da Palavra e do ministério da pregação. A esfera se-cular está sujeita à razão humana, e sua autoridade é exercida por homensque têm o poder de executar le is, etc. É o próprio, Deus que age em am-bas as esfe ras, que assim estão unidas. Na esfera espiritual, Deus operaatravés do evangelho para salvar homens, e na secular opera através dalei, e impele os homens a viver de certa maneira, para contribuírem parao bemestar geral e a fim de que evitem o mal, de modo que seus pró-ximos possam ser servidos e o caos geral seja impedido.

Daí podemos ver que o reino espiritual não representa uma esferaespecial de poder ao lado da secular. Nem tampouco é esta uma áreapuramente profana, completamente autônoma de Deus. As autoridades se -culares representam o poder do próprio Deus, tal como se apresenta aohomem em forma visível em nossas relações terrenas. Mesmo uma auto

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ridade completamente pagã pode ser usada para fazer o bem, para mantera ordem pública para o benefício da sociedade humana.

Nesta conexão devese notar que Lutero distinguia entre Person eAmt. Deus faz o bem através dos ofícios que estabeleceu. Impele os ocu-pantes de cargos a ficarem ansiosos pelo bemestar de outros, a servirem

para seu benefício. Deus o faz, mesmo que o ocupante do cargo não sejaele mesmo uma boa pessoa. É verdade que pessoas perversas podemabusar da ordem estabelecida e corromper a esfera secular, mas Deus ope-ra através destas ordens apesar disso; ele é independente da maldade hu-mana. Pois mesmo os maus podem se r forçados pelas autoridades secu-lares ou pela preocupação com seu próprio bem, a executar as tarefasde seus cargos e assim servir ao bemestar de seu próximo.

Com base em sua doutrina dos dois reinos, Lutero opôsse tanto ao

conceito medieval da igreja como sendo superior ao estado, como tambémao conceito político dos entusiastas, que consideravam o estado como algoalheio à fé, concebendo a relação com Deus em termos puramente espi-rituais (uma experiência «interna» sem reflexos «externos»). Os anabatistase outros representantes da posição espiritualista eram comumente denomi-nados Schwarmgeister, «entusiastas». Um dos seus princípios era que ocristão não se devia envolver em atividade política.

Lutero em geral dividia a interdependência humana em três categoriasamplas: ecclesia, política e oeconomia, que correspondem em geral à igreja,

ao estado e ao lar, respectivamente. Os últimos dois representam a esferasecular, enquanto que a igreja representa a espiritual. Estas categorias cor-respondem às vocações. Cada pessoa encontra seu lugar dentro de umadestas três categorias. Elas se sobrepõem, naturalmente, de modo que amesma pessoa pode encontrarse envolvida em mais de uma categoria(Stand), de acordo com as várias re lações em que se enquadra. O mesmohomem pode ser simultaneamente pai, pastor e cidadão.

O conceito de autoridade de Lutero baseavase em Rm 13.1: «Todohomem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade

que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por eleinstituídas.» Em vista disso, o cristão é obrigado a obedecer mesmo àquelesgovernantes que não compartilham sua fé. A única exceção se encontranas palavras: «Antes importa obedecer a Deus do que aos homens.» (At5.29). Se as autoridades ordenam o que é contrário aos mandamentos deDeus ou exigem repúdio da fé cristã, o cristão deve recusar obediência, eso frer a punição que lhes é imposta por causa de sua fé. Mas Lutero nãoaprovava levantes armados contra o estado. A insurreição é contrária àordem de Deus. Mesmo sendo justa a causa, a rebelião ainda assim é

repreensível, e se deve antes ficar com os que são prejudicados pela re-belião. Nenhum súdito ouse oporse às autoridades de maneira violenta.Há apenas uma exceção: os Wunderleute, que Deus expressamente escolhepara derrubar um regime que é evidentemente tirânico ou incompetente.

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Como ficou claro do que foi dito, o conceito de vocação de Luterodirigiuse contra o sistema monástico medieval e a distinção entre as es-feras espiritual e secular expressa por esse sistema. Em seu livro De votis monasticis (1522) Lutero examinou e criticou cuidadosamente os votos mo-násticos. Chegou à conclusão que são tanto contrários à palavra de Deus

como contrários à razão. A idéia que a vida monástica é superior e maisperfeita que as vocações comuns é oposta aos mandamentos de Deus, que 

se  referem a todos os cristãos da mesma maneira.

O conceito de sociedade de Lutero também pode ser percebido àluz da posição que tomou face aos «entusiastas». De acordo com estes,a atividade política é má, e os cristãos não devem envolverse nela. Pelocontrário, são convocados a manifestar sua oposição à sociedade terrena.Esta posição resultou até mesmo em oposição armada. Na assim chamadaGuerra dos Camponeses de 1525 vários destes entusiastas (inclusive Tomás

Münzer) assumiram a liderança. Lutero, por seu turno, que já anteriormentese tinha desligado deste grupo e combatido seu iconoclasmo, atacou comviolência os camponeses e afinal admoestou os príncipes a usarem forçaarmada para debelar a rebelião.

Com respeito ao exercício do poder secular, Lutero desenvolveu aconvicção (especialmente no livro Se Soldados Também Podem ser Salvos, publicado em 1526) que o cristão pode de sã consciência servir ao estadoempunhando a espada, pois representa a própria ordem de Deus e não

algo estabelecido ou inventado pelo próprio homem.g. O conceito de culto e dos sacramentos de Lutero. Ao reformarvida litúrgica da Igreja, Lutero (como em tantas outras questões) tinha delutar em duas frentes de combate. Não tinha de combater apenas os abu-sos romanos mas também o zelo reformador dos entusiastas.

Lutero sustentava que a vida litúrgica da Igreja Romana se deterio-rara por causa da negligência na pregação da Palavra, que fora substituídapela missa. Este abuso foi ampliado pelo fato de ser a iriissa consideradacomo tendo o efeito de agradar a Deus, ao invés de ser ocasião para co-munhão em torno de Palavra e sacramento.

Lutero pretendia manter a leitura contínua da Escritura nos cultosdiários, mas também acreditava que a Palavra devia ser pregada, isto é,interpretada. «Se a Palavra de Deus não é pregada seria melhor que oshomens não cantassem ou lessem ou se reunissem», disse Lutero em Sobre a Organização do Culto numa Congregação (1523). A ceia do Senhor de-veria ser recebida cada domingo, ou mesmo em outras ocasiões, havendoos que desejassem recebêla. Mas a missa privada diária do clero foi

abolida.O debate contemporâneo sobre o conceito de culto de Lutero é, em

geral, dominado por seus escritos polêmicos sobre o assunto, suas afir-mações contra a missa romana. Mas também devemos ressaltar o fato que

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a Reforma trouxe consigo o reavivamento dos conceitos de culto do NovoTestamento e da igreja antiga. Isto se evidencia especialmente nas primei-ras publicações de Lutero sobre o assunto. No Sermão Sobre o Santíssi-mo Sacramento (1519), apresentou a idéia da comunidade como motivo bá-sico para o culto. O culto litúrgico é a ocasião em que a comunidade se

reúne, quando ocorre intercâmbio mútuo entre Cristo e a congregação, e dos cristãos entre si. Nossos pecados são transferidos a Cristo, e sua jus-tiça nos é outorgada. De modo semelhante compartilhamos as cargas epreocupações de nossos coirmãos e nos comprometemos a carregar nos-sa cruz, ao mesmo tempo que recebemos ajuda e apoio através de nossacomunhão na comunidade.

Também se deve notar que, apesar de sua crítica violenta ao concei-to sacrifical da missa, Lutero de maneira nenhuma rejeitou completamentea idéia que no culto litúrgico uma parte essencial se ja o sacrifício. O erro

do conceito sacrifical da missa é que  o sacrifício perfeito que Cristo ofe-receu uma vez por todas foi transformado em sacrifício continuamente ofe-recido pelo homem. A doutrina é que na m issa o sacerdote oferece o sa-crifício em lugar de Cristo . Como resultado, a ceia do Senhor chegou aser considerada realização humana e foi inserida no contexto da justiça dasobras. Isto contradiz inteiramente o sentido da ceia do Senhor. Pois aceia do Senhor não é dádiva que apresentamos a Deus; é dádiva que Deusnos oferece, a saber, o corpo e o sangue de Cristo . Portanto não é sacri-fício no sentido sacramental romano do termo.

Mas ao mesmo tempo a ceia do Senhor — e todo outro culto litúrgicopode ser denominado sacrifício, significando que nos entregamos a nós mes-mos a Cristo, apresentando nossos corpos como sacrifícios vivos (cf. Rm12.1). Além disso , o culto litúrgico é sacrifício de oração e ações de gra-ças dadas como nossa resposta à misericórdia de Deus e seus dons dagraça. Também pode se r denominado sacrif ício no sentido que Cristo , co-mo nosso intercessor no céu, se oferece a Deus em nosso favor. (Tratado sobre o Novo Testamento, 1520).

Durante a estadia de Lutero no Wartburgo em 152122 seus seguido-res em Witenberga, sob a liderança de Carlstadt, tentaram purificar radical-mente as cerimônias eclesiásticas e todas as ornamentações litúrgicas. Afundamentação para essa atividade foi fornecida pelos assim chamados es-piritualistas ou entusiastas, já mencionados anteriormente. Além de Carl-stadt, Tomás Münzer era o mais conhecido dos dirigentes desse grupo. Di-ziam que a fé e o culto deviam ser puramente espirituais, a ponto de nãoexigirem qualquer ornamentação exterior. Foi este ponto de vista que seencontrava por detrás de seu inconoclasmo e da rejeição de todas as ce-

rimônias. Tudo o que fosse «carnal» deveria ser negado, e isto incluíacoisas externas e materiais em geral.

Na opinião de Lutero, no entanto, o carnal não é externo em si, masantes o que foi maculado pela carne. De modo semelhante, julgava ser

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espiritual não o oposto do externo, mas o que está impregnado pelo Es-pírito de Deus. Quando se permite a ação da palavra de Deus, então ce-rimônias e imagens também podem ser consagradas à edificação da co-munidade. O erro dos entusiastas foi que procuraram alcançar seus obje-tivos destruindo imagens, enquanto punham de lado e ignoravam a Palavra.

Os sacramentos: em seu livro Sobre o Cativeiro Babilónico da Igreja(1520), Lutero rompeu com o sistema sacramental da Igreja Romana. Dossete sacramentos tradicionais, Lutero reteve apenas dois como sendosacramentos genuínos, o batismo e a ceia do Senhor. (De início Luterotambém considerava a penitência como sacramento.) Em sua estimativa,apenas estes são sinais instituídos por Deus que acompanham a promessada graça. O que há de fundamental num sacramento é a palavra da pro-messa unida ao sina l. Lutero rejeitou a idéia que o sacramento é eficazpor si mesmo (o conceito ex opere operato). O que é eficaz nos sacra-

mentos é a Palavra divina, e não a ação humana como tal. Com isto, todaa base do culto sacramental romano, inclusive sua reserva da hóstia, asmissas pelos mortos e outras missas privadas foram postas de lado.

O batismo expressa a participação do crente na morte e ressurreiçãode Cristo. O cristão deve morrer diariamente para o pecado, a fim de queo novo homem possa ressurgir. Os fatores essenciais do batismo são águae a Palavra, usadas em conjunto. Ao mesmo tempo que rejeitou o concei-to escolástico (tomista) da existência de um poder inerente na água, Lutero

também criticou energicamente os entusiastas, que desprezavam o sinal ex-terno. Não é a água em si que possui tão grande efeito, mas a água unidaà Palavra. Mas visto ser o próprio Deus quem instituiu o sinal do sacra-mento, a ação externa é obra de Deus e não de homem. O batismo cele-brado por um pastor indigno também é válido. Nem tampouco depende oefeito do sacramento da presença da fé naquele que é batizado. Os querecebem o batismo sem ter fé não precisam ser batizados novamente quan-do chegarem a crer. Como resultado disso , Lutero não considerou questãoimportante se é possível dizer que a criança batizada tem fé. Aceitou a

resposta tradicional, que a fé dos padrinhos toma o lugar da fé dà criança,mas em outras ocasiões expressou a opinião que também temos de pres-supor a existência da fé na criança como efeito da Palavra divina. Em opo-sição aos entusiastas (e anabatistas) que insistiam no batismo de adultos,Lutero aceitou, manteve e justificou o batismo infantil afirmando que a  sal-vação obtida por Cristo também diz respeito às crianças.

Lutero e a ceia do Senhor. Em seu livro Sobre o Cativeiro Babiló-nico da Igreja, Lutero atacou a doutrina católica romana da ceia do Senhornos três pontos seguintes: (1) a recusa do cálice aos leigos. Isto é con-trário à instituição de Cristo e se baseia em certas especulações insusten-táveis sobre o que se encontra em cada um dos elementos, a saber, quetanto o corpo como o sangue se encontram tanto no pão como no vinho.(2) a doutrina da transubstanciação, a idéia que o pão e o vinho são alte-

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rados, que perdem sua substância natural. Essa teoria não tem apoio naEscritu ra. Não há motivo para supor que o pão deixe de ser o que é pornatureza, a saber, pão. (3) O sacrifício da missa, pelo qual a missa é trans-formada em obra humana e em parte profanada, tornandose mero negócio(Geschäft). A ceia do Senhor não é feito realizado por homens para con-

seguirem expiação junto a Deus.Lutero explicou o significado da ceia do Senhor com base no relato

bíblico de sua instituição. É o testemunho de Cr isto a seus d iscípulos, emque seu dom da graça, o perdão dos pecados, é concedido. No batismoos fatores essenc iais são a água e a Palavra unida a ela. Na ceia do Se-nhor, igualmente, os fatores essenciais são o recebimento físico dos ele-mentos e as palavras de promessa associadas: «dado e derramado por vóspara a remissão dos pecados». A ceia do Senhor é sacramento apenaspor causa da presença da Palavra. Aqui se aplica a afirmação de Santo

Agostinho: Acrescentese a Palavra ao elemento e se obterá um sacra-mento» (Accedit verbum ad elementum et fit sacramentum). As implicaçõesmágicas da doutrina da transubstanciação são desta maneira evitadas.

Embora Lutero rejeitasse s   transubstanciação, manteve a doutrina dapresença real no sacramento do altar . O pão e o vinho, pelo poder daPalavra e da instituição divina, são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo,dados sob a forma de pão e vinho. Em anos anteriores alguns dos nomi-nalistas, entre eles Pedro d’Ailly, expressaram idéias que Lutero poderia

aceitar (a assim chamada doutrina da consubstanciação). Diziam, por exem-plo, que na ceia do Senhor são distribuídos pão e vinho reais, mas queo corpo e o sangue de Cristo também são dados em, com e sob os ele-mentos externos — como se evidencia na interpretação mais simples daspalavras da instituição. Como isto acontece é completamente incompreen-sível à razão. O conceito de Lutero da presença real desenvolveuse, aci-ma de tudo na controvérsia sacramental da década de 1520. Os adversá-rios de Lutero foram em parte os entusiastas, liderados por Carlstadt, eem parte Zwínglio e seus discípulos Oecolampádio e Bucer.

Em seu escrito Contra os Profetas Celestiais (1525), Lutero atacouCarlstadt e seu conceito da ce ia do Senhor. Posteriormente, Zwínglio en-trou na controvérsia e publicou sua Amica exegesis, que foi dirigida espe-cificamente contra Lutero (1527). Vários tratados menores foram escritosde ambos os lados, e então Lutero, em sua minuciosa exposição: Confissão no Tocante à Ceia do Senhor (1528), deu sua resposta final ao ataquedos adversár ios. No ano seguinte Lutero, Zwínglio e alguns outros teólo-gos se reuniram em Marburgo e discutiram esta questão, bem como outras.Havia esperança de que se pudesse chegar a um acordo com respeito à

ceia do Senhor e que os reformadores alemães e suíços assim pudessemunirse. Houve concordância em muitos pontos em Marburgo, mas a ques-tão da presença física na ceia do Senhor foi posta de lado intencionalmen-te, visto os participantes não conseguirem concordar quanto a ela. O so-

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nho de uma «união de todos os protestantes», deste modo, reduziuse a na-da. A assim chamada Concórdia de Witenberga de 1536 serviu de basepara uma união externa por breve período de tempo. Nessa declaração do-minava o ponto de vista de Lutero que triunfou na Alemanha.

Carlstadt e Zwínglio representavam o conceito espiritualista ou sim-

bólico da ceia do Senhor. Diziam que os elementos externos são apenassímbolos das realidades celestes, puramente espirituais, às quais a fé édirigida. Não podemos, portanto, falar de presença material ou física, masapenas de ação simbólica, em cuja celebração a comunhão com o Cristocelestial é o fator decisivo. Zwínglio interpretou o est da fórmula da insti-tuição como significat: «Isto significa meu corpo e sangue». Lutero exa-minou o apoio exegético para esta interpretação, e asseverou que a pala-vra est deve manter seu sentido direto e simples, mesmo que a razão seofenda com isto. Assim como a afirmação se encontra na Escritura, indica

que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes no sacramento não emsentido figurado mas como realidade, em sua essência . Lutero tinha umpouco mais de respeito pela interpretação de Oecolampádio, que dizia quea palavra «corpo» devia ser interpretada figurativamente, e não o est. Aspalavras da instituição eram, pois, assim interpretadas: «Isto é um símbolodo meu corpo» (figura corporis mei). Mas também esta interpretação foirejeitada por Lutero.

Esta controvérsia não foi mera questiúncula em torno de palavras. Os

pontos de vista subjacentes eram diametralmente opostos, de princípio afim. Zwínglio partia do dualismo básico entre o espiritual e o físico. A fé,dizia, só pode ser dirigida à natureza divina de Cristo. Portanto, não podeter nada a ver com os elementos terrenos ou com o corpo e o sangue deCristo . Citava, nesta conexão, as palavras de João 6 .63 : «A carne paranada aproveita.» O fator *mais importante na ceia do Senhor, portanto, éa participação da fé nos dons celestiais , não o comer físico . Zwínglio pro-curou expressar isto em sua interpretação simbólica, como indicado acima.Além disso, dizia serem as palavras «corpo e sangue de Cristo» (neste con-

texto) uma alloeosis, isto é, uma figura retórica cujo significado é referirsena realidade à natureza divina o que se diz sobre a natureza humana.

Lutero, por seu turno, combinava de maneira mais íntima possível aPalavra (à qual a fé é dirigida) com os elementos externos que são rece-bidos na ce ia do Senhor. Pertencem juntos em virtude do poder das pa-lavras da instituição. Como resultado, a Palavra e o comer físico são, to-mados juntos, os fatores essenciais da ceia do Senhor. A presença deCristo não está condicionada pela fé. Mesmo os descrentes que participamda ceia do Senhor recebem os dons sacramentais — não como bênçãos,naturalmente, mas como juízo. É certamente verdade que o perdão dos pe-cados só vem pela fé, mas o «comer» o corpo, e o «beber» o sangue deCristo não acontecem «espiritualmente», mas de modo físico (oralis, coma boca). Ao mesmo tempo, o corpo e o sangue de Cristo no sacramento

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não são algo físico mas algo espiritua l. Lutero, desta maneira, rompeu como dualismo filosófico entre espírito e matéria que se achava por detrás daconcepção espiritualista.

Em oposição à alloeosis de Zwínglio, Lutero defendeu a genuínacommunicatio idiomatum. Isto significa que as qualidades das naturezasdivina e humana são comunicadas de uma natureza à outra e que permeiamuma à outra em virtude da união pessoal de Cristo. A expressão «corpoe sangue de Cristo» referese à humanidade de Cristo. Mas devido à uniãoque existe entre suas naturezas divina e humana, a natureza humana parti-cipa das qualidades da natureza divina e deve relacionarse intimamentecom elas. A fé, portanto, dirigese ao homem Cristo , e recebe seu corpoe sangue na ceia do Senhor, que são ao mesmo tempo, o corpo e o sanguedo Filho de Deus. Este receber tem lugar através do comer físico, e nãoé simplesmente resultado da comunhão da fé na esfera espiritual.

A idéia da comunicação dos atributos também contribui para elucidarmelhor a questão da presença real. Lutero procurou explicar esta idéia(o tanto quanto pode ser explicada) referindose à assim chamada doutrinada ubiqüidade: Cristo está presente em toda parte como Deus. E sua na-tureza humana também participa dessa qualidade. Por causa disto, Cristotambém pode estar presente como homem no pão e no vinho dados nosacramento do altar. As origens desta doutrina da ubiqüidade remontamao nominalismo, e subseqüentemente a teologia luterana retomou a idéia

da ubiqüidade da natureza humana, especialmente para distinguir seu pró-prio conceito da ceia do Senhor do conceito da tradição reformada.

h. A doutrina da igreja de Lutero. Para se entender o conceito digreja de Lutero é preferível usarmos o termo «congregação cristã», vistoa palavra «igreja», como usada em nossos dias, possuir conotação dife-rente do conceito de Lutero.

Para Lutero, a igreja (ecclesia) era em primeiro lugar e principalmentea comunhão dos crentes, que é definida no Terceiro Artigo do Credo Apos-

tólico como a «comunhão dos santos» . É o conjunto de todos na terra quetêm fé em Cristo. Isto não se refere a uma associação externa com insti-tuições e ofícios, mas a uma comunhão interna compartilhada por todos osque possuem fé comum e a mesma esperança. Como tal, a igreja é ques-tão de fé. A forte ênfase de Lutero nesta comunhão espiritual, invisível,como formadora da igreja era algo novo. A igreja para ele não era a ins-tituição externa governada pelo papa, mas a união dos fiéis produzida peloEspírito Santo. Essa comunhão é invisível e independe de tempo e espaço.Pois ninguém pode ver quem tem fé verdadeira, ou saber onde esta fé pode

ser encontrada.Mas também se pode falar da igreja em outro sentido. Ela é também

a comunhão externa, uma assembléia visível de pessoas que se reúnemnum edifício especial, que pertencem a certa paróquia ou diocese, etc. Nes-

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te sentido a igreja possui regulamentos específicos, cargos, ministérios ecostumes. Todos os que foram batizados, todos os que foram atingidos pe-la pregação da Palavra e confessam a fé cristã pertencem a esta cristan-dade exterior. Nela não se pode traçar uma linha demarcatória entre osque realmente crêem e os hipócritas.

A comunhão mencionada em primeiro lugar se denomina cristandadeou igreja interna, espiritual, enquanto a outra é denominada cristandade ex-terna, física . Não devem ser separadas. Pois a comunhão interna, espiri-tual, é o elemento essencial da congregação externa. É por causa destacomunhão espiritual que a congregação é mantida junta. Mas, assim comoé errado da parte dos papistas identificar a igreja com a instituição visível,também é errado abandonar a comunhão externa e querer fundar uma con-gregação só para os santos (como os entusiastas faziam). A fé deve ape-garse aos sinais externos (os sacramentos) e à Palavra externa, da mes-

ma maneira deve também procurar a verdadeira comunhão cristã na con-gregação externa — na medida em que Palavra e sacramentos se encon-tram nela. No interesse da clareza , devese distinguir entre congregaçãoou igreja interna e externa, mas na prática não devem ser separadas umada outra, devem ser relacionadas tão intimamente como possível.

O conceito de igreja de Lutero expressouse claramente em sua crí-tica do papado e suas reivindicações. Acreditava que as palavras ditas aPedro: «Sobre esta pedra edificarei a minha igreja» (Mt 16), não se refe-

riam ao papa de Roma mas à fé que Pedro confessou. No Debate de Leipzig(1519) Lutero pela primeira vez atacou a reivindicação do papa de ser ocabeça da cristandade. Afirmou que os sustentáculos sobre os quais estareivindicação se fundamentava eram falsos, não apenas a interpretação aci-ma mencionada de Mt 16.18, mas também a lei canônica, que constituía abase do poder papal. Lutero descobriu por si mesmo que o papado nãoera tão antigo como em geral se acreditava.

Era costume fazerse referência à descrição veterotestamentária dosacerdócio aarônico como antecipação do papado romano. Lutero repu-

diou esta interpretação. O sacerdócio veterotestamentário foi abolido emCristo e com Cristo . O sacerdócio veterotestamentário prefigurava a vindade Cristo, e nele encontrou seu cumprimento.

Quais são as características da verdadeira igreja? Lutero falava detrês: batismo, ceia do Senhor e (acima de tudo) a proclamação da Pala-vra. Onde o evangelho é pregado, ali está a verdadeira igreja; e onde oevangelho está ausente, também não há a verdadeira igreja. A igreja temsua vida e seu se r na Palavra. A igreja consiste da comunhão dos santos,

mas é formada pela Palavra e pelos sacramentos. É através destes meiosque o Espírito Santo opera e reúne os cristãos no mundo todo. Quanto aopapado, Lutero certamente não acreditava que ele podia ser justaposto àigreja. Mas reconhecia que o evangelho também se fazia presente na Igre-

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 ja de Roma, apesar do abuso e da negligência do ofício da pregação, demodo que também nela podiam ser encontrados verdadeiros cristãos.

Se a igreja é constituída pela Palavra, qual é então o significado doofício do ministério? Lutero rejeitou a separação entre estado espiritual esecu lar que encontrou na Igreja de Roma. Sob a nova aliança cada cristão

é sacerdote, significando que ele mesmo pode chegar à presença de Deus.Este privilégio é outorgado mediante o batismo. Mas a ordem externa ex i-ge que certas pessoas sejam escolhidas para administrar a Palavra e ossacramentos. Em outras palavras, realizam as tarefas sacerdotais em be-nefício da congregação. Esta, no entanto não é a única posição concebívelque se pode tomar. Se fosse aplicada de modo coerente, implicaria quea ordenação é apenas um chamado para se prestar certa forma de serviço.Mas há evidências que mostram ter Lutero também considerado a ordena-ção como verdadeira consagração para uma missão divina para a vida inteira.

Neste contexto Lutero distinguia entre estado (Stand) e ofício (Amt).O estado de cristão, que pode ser chamado, em sentido figurativo, de es-tado sacerdotal, é comum a todos os cristãos. Em vista disso, deve cessara distinção entre estado secu lar e espiritual. Mas o ofício deve se r pre-enchido por certas pessoas escolhidas para tal fim, que assumem a res-ponsabilidade pela pregação da Palavra, e a administração dos sacramen-tos. Para Lutero havia apenas um ofício, o ofício da pregação. Bispos eprofessores pertencem a este mesmo ofício, embora sejam chamados para

realizarem outras tarefas. Para que o ofício possa se r desempenhado demaneira correta, fazse necessário um chamado público. Este vem das au-toridades, que são homens, mas ainda assim é chamado de Deus.

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CAPÍTULO 22

MELANCHTHON

Filipe Melanchthon (14971560) não foi apenas o mais notável dis-cípulo e colaborador de Lutero, mas também criou um tipo xindepende"níede teologia da Reforma. Além disso, lançou as bases pgras^a educaçãosuperior na Igreja Protestante, não apenas no campo da; teolggia mas tam-bém nas discip linas filosóficas. Não é sem motivo quév fôi denominadcjC«o educador da Alemanha» (Praeceptor Germaniae).

í(   í8\Melanchthon tinha apenas 21 anos ^e^wade^quando se tqrnóu pro-fessor de grego na Universidade de Wií^nfeVQa. Influenciado^R^r; Lutero,deu seu total apoio à Reforma e dedic6ü^sè\íada vez mais à ttp^tògia, massem desistir de seus estudos hurfíáriiátícps. Tornouse o colaborador maisíntimo de Lutero e, após a marfç_píeste, foi o maís.(0$stacado líder daReforma na Alemanha, embora g ' J jalmente se tornàQè personalidade con-trovertida em círculos tutsí^nos.

Entre os escrttpsxíleíÍMelanchthon, spu'iüyro Loci communes é teo-logicamente o jpa)s'in te ressante . É o pciméíro livro da Reforma no cam-po da dogmáttó&r^oi publicado pela'.ptimeira vez em 1521, e Lutero oelogiou multoA^osteriormente Mçfâjtchthon reelaborou o conteúdo do li-vro, eÀ^õ^subseqüentes/^a^eceram èm 1535 e 1543. A terceira edi-ção èía\(nuito mais porm^W^ada que as outras. Esta última edição tambem^íieVelou o qUfentaN&vautor modificara sua opinião em vários pontosdesde 1521.

Melanchthon foi o homem que efetivamente escreveu a Confissão de

Augsburgo. fàrtroém escreveu a «Apologia» desta confissão, bem como oTratada (sabre o Poder e o Primado do Papa, que foi adicionado aos Arti-gos dS Eémalcalde. Vários comentários bíblicos também estão incluídosemíistiá bibliografia teológica, bem como uma exposição do Credo Niceno. Seu Examen ordinandorum foi de grande ajuda às jovens igrejas es-____   ___________

Como escritor, Melanchthon não se restringiu ao campo da teologia.Escreveu compêndios para serem usados em várias disciplinas filosóficas,e também um comentário sobre Aristóteles. Entre outras co isas, publicouPhilosophia moralis (ética filosófica), De anima (psicologia), além de umaexposição sobre dialética. Em virtude destes escritos, a contribuição deMelanchthon foi de significado decisivo para todo o campo da educaçãouniversitária em círculos protestantes por muito tempo.

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Qual foi a posição de Melanchthon relativamente a Lutero? Esta ques-tão já foi debatida por teólogos daquela época, e ainda está sendo discu-tida na moderna pesquisa. Alguns consideraram Melanchthon o fiel defen-sor e intérprete consciencioso dos ensinamentos de Lutero. Na opinião deoutros, ele teria deturpado a teologia original da Reforma, opondose fla-

grantemente às verdadeiras intenções de Lutero.Nenhuma destas interpretações é correta. Melanchthon não seguiu

Lutero em todos os pontos. Modificou alguns aspectos da posição de Lu-tero que ele próprio defendera anteriormente. Estas modificações podemser observadas nas várias edições dos seus Loc i. Por natureza, Melanchthonnão era simples repetidor, mas pessoa dotada de elevado grau de indivi-dualismo. Em seu apoio à Reforma foi diligentemente ativo. Ao mesmotempo, era irênico, procurava a harmonia — contrastando com Lutero, queapreciava um bom conflito.

Melanchthon divergiu de Lutero, não devido a qualquer falta de com-preensão da profunda mensagem da Reforma; mas o fez como resultadode sua própria deliberada escolha. Julgava que certos problemas teológi-cos deviam ser apresentados de modo diferente. A seguir trataremos des-tas diferenças.

As realizações de Melanchthon tiveram cunho bem diverso das deLutero. Pois, enquanto Lutero apareceu no palco da história com seguran-ça profética, dando forma livre a suas idéias, Melanchthon preferia a apre-

sentação sistemática e formulações cuidadosamente trabalhadas. Era acimade tudo um professor, enquanto que Lutero era profeta. Esta falta de se -melhança foi de valor extraordinário para a causa da Reforma. Sem a con-tribuição de Melanchthon, a Reforma não teria tido a solidez e amplitudeque alcançou. Foi ele quem lançou as bases para a combinação de teolo-gia com educação científica que caracterizou as igrejas estatais luteranase universidades em tempos idos. Tinha grande respeito pela educação hu-manista, julgandoa indispensável à teologia. Sem tal apoio erudito, dou-trinas falsas facilmente poderiam se infiltrar, e a teologia poderia degene-rar em especulação ignorante e confusa, fazendo todo o cristianismo cairno descrédito.

O esboço seguinte da teologia de Melanchthon terá de limitarse aospontos em que ia além de Lutero ou divergia dele.

Os Loci de 1521 concentravam sua atenção em lei e evangelho, pe-cado e graça, de acordo com o programa traçado no Prefácio ; A teologianão deve ocuparse com questões metafísicas referentes à essência divinaou às naturezas de Cristo mas com aquilo que trata da salvação da alma.Apenas desta maneira podemos alcançar conhecimento verdadeiro de Cris-to. Que adianta se um doutor sabe tudo sobre a aparência das ervas masnada sobre seus poderes cyrativos? Te r conhecimento cristão significa sa-ber o que a lei exige e como a consciência contrita pode ser restaurada.

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Com respeito ao livre arbítrio, Melanchthon de início concordava comas idéias de Lutero manifestadas no De servo arbítrio. As consideraçõesantropológicas eram típicas de Melanchthon. No que concerne a ações pu-ramente externas, o homem tem certa liberdade; a vontade pode dirigirnossa capacidade de movimentação. Porém a lei divina não se ocupa com

estas ações externas mas com os impulsos do coração. Melanchthon de-nominava estes de «sentimentos», e com respeito a eles, dizia, o homemnão é livre. Não é possível ao homem influenciar seu próprio coração. Umsentimento forte como o ódio, por exemplo, só pode ser alterado por outrosentimento mais forte. É por isso que o homem não possui liberdade al-guma na esfera espiritual. «O cristão sabe que nada existe que mais fujaa seu controle do que seu próprio coração.» Isto também explica porqueo homem é incapaz de contribuir para sua própria justificação. O coraçãoou os sentimentos só podem ser realmente alterados depois que o Espírito

Santo, pela fé, passou a habitar no homem, de modo que tem início o con-flito entre carne e espírito dentro dele.

Melanchthon também se associou a outros aspectos do «determinis-mo» de Lutero nos Loci de 1521. Justificou isto não apenas psicologica-mente mas também com o conceito de onipotência de Deus: visto todasas coisas acontecerem de acordo com a predestinação divina, a vontadenão é livre. Foi neste ponto, contudo, que Melanchthon veio a divergir deLutero mais enfaticamente. Por volta de 1530, começou a apresentar argu-mentos que, em sua estimativa, tornavam uma doutrina da predestinação,

como a recém mencionada, impossível.Modificações com respeito à linha de pensamento psicológica foram

feitas nas edições posteriores dos Loci. É verdade que apenas o Espíritode Deus é capaz de deter os efeitos corruptores do pecado original e dedestruir os poderes dos sentimentos, mas na realidade (dizia o Melanchthonamadurecido) isto acontece com a cooperação da vontade. Pois quandoo Espírito age sobre o homem através da Palavra, ele pode aceitar ou re-

 jeitar o chamado (C . R. 21, 1078). A conversão resulta da cooperação detrês fatores: A Palavra, o Espírito Santo, e a vontade humana. Num su-

plemento que apareceu pela primeira vez nos Loci de 1548, a primeira ediçãopublicada após a morte de Lutero, esta idéia foi desenvolvida mais ainda.O homem não pode desculpar sua inatividade face ao chamado da graçadizendo que nada há que possa fazer; pois com o apoio da Palavra podeao menos rogar a ajuda de Deus. Neste contexto, o livre arbítrio foi defi-nido como «a capacidade de dirigirse à graça» (facultas applicandi se ad gratiam. C. R. 21, 659). Aqui Melanchthon não pretende exprimir um pontode vista distintamente semipelagiano. Estava convencido que a ação daPalavra e do Espírito vinha em primeiro lugar, e que a vontade é capaz de

agir apenas quando é chamada por intermédio da Palavra e influenciadapelo Espírito. Mas Melanchthon também salientou que o homem não deveficar ocioso esperando por súbita inspiração do Espírito. E a isto adicio-nava outro argumento.

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Melanchthon. passou a rejeitar a própria idéia da predestinação naforma em que a apresentara anteriormente. Deus elege o homem para asalvação e realiza sua obra de salvação de acordo com seu decreto eterno.Mas isto não pode significar que Deus também tinha predeterminado adestruição dos maus. Pois em tal caso Deus apareceria como sendo a

causa do mal, o que não se coaduna com a natureza de Deus. Portanto,,a razão porque um é escolhido e outro é condenado, deve residir no homem.A promessa é universal. Se Saul é rejeitado mas Davi é aceito, a diferençadeve fundamentarse em sua própria conduta. A eleição divina é «eleiçãosecreta e eterna», sobre a qual só podemos julgar a posteriori. Os queem fé aceitam a misericórdia de Deus por causa de Cristo são eleitos. Ochamado é universal, e se um homem é rejeitado, a explicação se encontrano fato que rejeitou o chamado. Dificilmente se poderia dizer que Me-lanchthon era sinergista nesta questão, mas procurava enfatizar os aspectos

humanos e volitivos da experiência da conversão. Também divergiu doconceito de «dupla» predestinação de Lutero e da idéia da onipotência deDeus como base para a predestinação.

Com respeito à doutrina da  justificação, foi Melanchthon quem formu-lou mais precisamente a posição da Reforma, mas ao fazêlo alterou atécerto ponto as idéias básicas que encontramos em Lutero. Isto aconteceuespecialmente nas obras posteriores de Melanchthon sobre o assunto. NaApologia (1530) Melanchthon ainda era capaz de relacionar a fé a um  justum 

fieri real, uma justificação do homem inteiro, ao mesmo tempo que ele édeclarado justo perante o tribunal de Deus (justum reputari). Mais tarde,fixou o uso lingüístico de tal maneira que a justificação no sentido paulinopassou a ter significado apenas de declarar justo. Nesta conexão falamosde justificação «forense» (de «forum», praça do mercado, lugar onde ficavaa corte de justiça), visto ser considerada uma absolvição perante o tribunaldivino. Tornase difícil relacionar este declarar justo com a renovação con-creta. Melanchthon introduziu aí um problema que Lutero não discutira .De acordo com este, o homem participa do Espírito desde o momento .em

que se apropria dos méritos de Cristo pela fé. A fé significa participaçãoem Cristo, a regeneração resulta, simultaneamente, da imputação. Pois e s-ta não é apenas um ato legalista de julgamento, mas também a Palavra vivi-ficante de Deus, que soergue o homem e lhe dá o novo nascimento. Deacordo com Melanchthon, no entanto, a imputação e a regeneração não sãoa mesma coisa: aquela é a outorga do cumprimento da lei por Cristo, queocorre perante o tribunal celeste, enquanto que a infusão do Espírito é algoque segue sem estar organicamente relacionado com ela. Numa ocasião— na disputa de Melanchthon com Osiandro (a respeito da qual se falará

mais tarde) — este ponto foi de vital importância. Parece então que aexposição de Melanchthon era verdadeira defesa da posição essencial daReforma, ao mesmo tempo que perdera algo da riqueza do ponto de vistade Lutero.

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Melanchthon descrevia o arrependimento como mortificatio, efetuadapela lei, e vivificatio efetuada pelo evangelho. Aquela era considerada fe-nômeno psicológico mais ou menos limitado. Acrescentandose a isto suaênfase na atividade da vontade na conversão, o fato de separar justificaçãoe regeneração, seu conceito de arrependimento como contendo duas par-

tes, etc. — então se pode falar da tendência de Melanchthon de antecipara ordo salutis posterior, com sua divisão da vida cristã em diferentes fases.Melanchthon, todavia, não ensinou de fato esta espécie de ordo salutis;seu conceito era uma formulação clara e explícita da doutrina evangélica doarrependimento, como fora desenvolvida durante a Reforma.

A lei ocupa posição um tanto diferente na teologia de Melanchthondaquela que tem na de Lutero. Aquele considerava a lei como ordem divi-na, imutável, à qual compete ao homem obedecer. Aos dois usos da leiensinados por Lutero, usus civilis e usus theologicus, Melanchthon adicio-nou um terceiro, usus tertius in renatis. Com isto queria dizer que mesmoos regenerados estão subordinados à lei, e na pregação da lei encontramuma norma e regra de conduta para suas vidas. Necessitam da lei paraapoio e direção, pois estão afligidos por fraquezas e caem com facilidade.(Posteriormente o pietismo interpretou este ensinamento original do ter-ceiro uso da lei como referindose a uma lei especial e mais rigorosa quesó podia se r cumprida pelos fiéis — o equivalente, portanto, da doutrinacatólica romana dos conselhos evangélicos.)

O forte acento pedagógico na teologia de Melanchthon já foi mencio-nado. Juntamente com ele havia ênfase na doutrina pura. Esta ênfase tor-nouse muito proeminente na antiga teologia evangélica, e a conexão entreela e o conceito luterano de fé é óbvia. A atitude cada vez mais dogmá-tica de Melanchthon revelouse entre outras coisas em sua doutrina daigreja. Ressaltou energicamente a igreja vis íve l (ecclesia visib ilis), que écomposta daqueles que confessam a doutrina pura e participam dos sacra-mentos. A marca distintiva da igreja verdadeira, portanto, não é simples-mente a pregação da Palavra, mas também a doutrina pura. «A igreja

visível é a assembléia daqueles que abraçam o evangelho de Cristo e usamos^sacramentos corretamente. Deus opera nela mediante o ministério doevangelho e regenera muitos para a vida eterna. Apesar disso, muitos hánessa assembléia que não são regenerados, mas há concordância sobre adoutrina pura.» (C . R., 21, 826). O valor conferido ao ofício de ensinartambém era característico da eclesiologia de Melanchthon. Dividia a igrejaem membros que ensinam e os que escutam. Obediência ao ofício magis-terial era enfaticamente salientada. Como resultado disso, o conceito lute-rano de sacerdócio perdeu algo de seu significado.

A formulação de Melanchthon da relação entre igreja e autoridade se-cular também serviu de protótipo para gerações futuras. Ensinava que oestado assumira tanto as funções de poder e administração externa daigreja, como também a responsabilidade de sustentar e proteger a igreja.

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O príncipe devia ser também o custos utriusque tabulae — isto é, o pro-tetor também da fé e do verdadeiro culto a Deus. Julgavase estar ele su-bordinado ao ofício magisterial com respeito à administração da Palavrae da doutrina verdadeira na congregação.

Freqüentemente se menciona o tradicionalismo de Melanchthon. Re-ferese isto ao fato que os credos ecumênicos e o consenso do cristianismoantigo como um todo recebiam ênfase cada vez maior em sua teologia.Julgava não poder ensinar aquilo para o que não encontrava apoio na épocada igreja antiga. Melanchthon, porém, não acreditava estar a tradição nomesmo nível da Escritura . Ao invés disso, considerava a tradição apenaso meio pelo qual a revelação original chegou até nós, e que sem ela nãopoderíamos interpretar a Escritura corretamente. Portanto o maior va lor foiatribuído à mais antiga tradição. A Escritu ra e a tradição joeirada cuidado-samente formam uma unidade. Um bom exemplo da forte dependência deMelanchthon da tradição dos pais eclesiásticos, devido a seus princípios,pode se r visto em seu conceito da ceia do Senhor. Criticava o uso feitopor Lutero da doutrina da ubiqüidade nesta conexão. Não podia descobrirapoio para essa interpretação da ceia do Senhor na antiga tradição. Atinhase à doutrina da presença reat, mas insistia se r necessário entendersea mesma de outro modo. O corpo de Cristo encontrase no céu, mas de-vido a sua onipotência divina pode estar presente na ceia do Senhor (multivolipresens). Seu corpo não está incluído no pão, mas está fisicamente

presente no uso do ísacramento (in uso Eucharistiae) — com o pão mas nãono pão.

As profundas tendências humanistas de Melanchthon eram ainda maissignificativas que seu «tradicionalismo». Pressupostos filosóficos desempe-nhavam papel de destaque em sua teologia, não apenas nas modificaçõesa que deram origem, mas acima de tudo no cunho específico que impri-mira a sua teologia em geral. O método de Melanchthon foi nitidamenteinfluenciado pela filosofia. Em edições posteriores dos Loci, Melanchthonsustentou que o teólogo, como o cientista, deve empregar método e ordeme esforçarse para encontrar uma disposição clara do material com quetrabalha. Realmente, provas racionais não podem se r dadas na teologia, poisesta não se baseia em princípios racionais e sim na Escritura como a pa-lavra de Deus. Mas a própria Escritura, bem como as confissões de fé,manifestam ordem interna que se pode observar e sobre a qual se podeedificar um sistema teológico. Os próprios Loci de Melanchthon tinhamcomo objetivo seguir a ordem da história da salvação como apresentadana Escritura e nos credos. Nisto e em muitos outros aspectos, Melanchthon

antecipou desenvolvimentos subseqüentes na teologia luterana. Seu cha-mado «método dos toei» foi por muito tempo usado na dogmática. Seuestilo foi, modificado com o correr do tempo, e uma das alterações signi-ficativas foi, sem dúvida, a introdução de metodologia filosófica em grau cadavez maior. (Vejase o início do Cap. 30),

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CAPÍTULO 23

ZWÍNGLIO

As contribuições do reformador suíço Ulrico Zwínglio à história dateologia não requerem mais que um breve relato. Sua doutrina da ceiado Senhor já foi discutida em conexão com a teologia de Lutero.

Zwínglio nasceu em 1484, e depois de estudar em Viena e Basiléia(grau de mestre, 1506), tornouse pároco em Glarus e posteriormente emMariaEinsiedeln. Em 1519 tornouse «sacerdote do povo» (Leutpriester) naGrande Minster em Zurique. Encaminhouse à teologia esco lástica em suaforma tomista já muito cedo, mas logo seguiu por outros caminhos. Em1516 chegou a conhecer Erasmo de Rotterdam e foi profundamente influ-enciado por seus escr itos . A verdade é que tornouse discípulo de Erasmo,e desde o início sua posição coincidiu com o «cristianismo reformado» hu-manista de Erasmo. Erasmo julgava que o povo devia ser «iluminado atra-vés da pregação do evangelho puro de Cristo, acima de tudo através dosprincípios éticos do Sermão do Monte. Esperavase que, como resultado

disto, o culto e os costumes melhorariam gradualmente.Mas durante os anos 151920 a posição de Zwínglio modificouse.Quando percebeu que o programa humanista de reforma não alcançariaos resultados desejados, rompeu com Erasmo. Também repudiou o conceitopelagiano encontrado em Erasmo, e passou a ensinar que o homem é total-mente corrompido. Apenas através do poder transformador de Cristo po-de o homem ser justificado.

Os motivos para esta mudança em direção ao ponto de vista da Re-forma foram amplamente discutidos na pesquisa sobre Zwínglio. Alguns

acreditam que ela se dava inteiramente à influência de Lutero, cujos livrosZwínglio começou a ler em 1518. Mas sua própria descrição discorda detal suposição; de acordo com ela, Zwínglio começou a pregar o evangelhomesmo antes de 1518. Além disso, insistia firmemente não depender de Lu-tero, nem concordar com ele em tudo. Entretanto, as afirmações em queZwínglio expressa sua independência de Lutero foram condicionadas porseu desejo de manter a Reforma da Suíça livre dos efeitos do Edito deWorms, que declarava proscritos Lutero e seus seguidores. Que os es-critos de Lutero tiveram grande significado para Zwínglio não é possível

negar. No mínimo forneceram o impulso para sua atividade reformadoraTornouse comum, entretanto, salientar a independência de Zwínglio.

Além disso, notas marginais tomadas dos livros da biblioteca de Zwínglio,recentemente decifradas e publicadas, contribuíram para elucidar outra

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à ceia do Senhor encontramse: Eine klare Unterrichtung vom NachtmahlChristi (1526) e a Amica exegesis, que dirigiu contra Lutero (1527).

Zwínglio envolveuse cada vez mais na atividade política como resul-tado de seus esforços para expandir seu movimento de reforma a outraspartes da Suíça. Participou ativamente no plano fracassado de constituir

uma coalizão européia contra a Casa dos Habsburgos. Também trabalhouzelosamente para a formação de um estado evangélico unificado na Suíça,que seria dirigido por Zurique e Berna. Os cantões católicos seriam subju-gados pela força das armas. Mas mesmo alguns dos próprios seguidoresde Zwínglio se opuseram a este plano, e quando a guerra civil finalmenteirrompeu, os evangélicos estavam divididos e em inferioridade de condições.Foram derrotados na batalha de Kappel em 1531, e Zwínglio, que participouda batalha armado, foi morto. Sua morte no campo de batalha sublinha comênfase os elementos políticos e nacionalistas do ideal de sua vida. Também

revela uma atitude face à obra da Reforma bem diversa da de Lutero.

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serva nela (igreja e sacramentos). Além dos Institutos, Calvino escreveuobras menores, sermões, cartas e comentários sobre quase todos os livrosda Bíblia.

Embora Calvino em alguns sentidos perpetuasse a tradição iniciadapor Zwínglio e Bucer (notadamente no campo da organização eclesiástica),

não podemos menosprezar o fato de Calvino considerarse acima de tudoum fiel seguidor de Lutero, alguém que representava basicamente o mesmoponto de vista que o mantido por Lutero. Mas tal como acontece comMelanchthon, a teologia de Calvino leva impressa uma marca diferente dade Lutero e também revela contribuições de outras fontes. Alguns dos con-ceitos básicos de Calvino serão sintetizados no que segue.

A idéia da glória de Deus (la gloire de Dieu) ocupa lugar central nateologia de Calvino. Em sua opinião, a glória de Deus é o alvo de todos

os planos de Deus para o mundo e para a salvação, bem como o da ativi-dade humana. «(Deus) estabeleceu o mundo inteiro com esta finalidade,que possa se rvir de cenário para sua glória» (C . R ., 36, 294). As vidasdos cristãos devem servir para aumentar a glória de Deus. Sujeição abso-luta à vontade de Deus e obediência a sua lei são os fundamentos da fécalvinista. O cristão deve demonstrar sua fé, e ao mesmo tempo promovera glória de Deus, trabalhando laboriosamente na ocupação para a qual foichamado, cooperando ativamente nas questões pertinentes ao reino de Deus.

Intimamente associada à idéia da glória de Deus (gloria Dei) na mente

de Calvino estava a doutrina da providência de Deus (providentia Dei): tu-do o que acontece é impelido pela vontade onipotente de Deus e por suaativa cooperação. A onipotência divina também inclui a atividade humana,mesmo quando é má. Se rá então possível qualquer tipo de liberdade? Cal-vino respondeu dizendo que a providência de Deus não opera como coer-ção externa (coactio externa); quer apenas dizer que tudo o que acontecese encontra debaixo de uma necessidade mais elevada. Portanto não ex-clui a liberdade psicológica nas ações humanas.

Que Deus age nas coisas más que acontecem não deve, segundoCalvino, entenderse simplesmente como permissio; originase antes navontade ativa de Deus, que não somos capazes de compreender. Portanto,Deus desejou a queda de Adão, assim como decide que alguns homens seperderão e os priva de seu Espírito.

Com isto já tocamos no conceito calvinista de predestinação, quemuitas vezes é denominado a «doutrina central» do calvinismo. Assim co-mo todo curso do mundo se encontra sob a providência de Deus, assimtambém a salvação ou condenação de cada homem depende da vontade

onipotente e predestinação de Deus. Nas palavras do próprio Calvino: «De-nominamos predestinação o decreto eterno de Deus, pelo qual decidiu oque acontecerá a cada homem. Pois não foram criados todos nas mesmascondições: alguns são predestinados à vida eterna, enquanto outros à con-

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denação eterna. E uma vez que o homem é criado para alcançar um destesalvos, dizemos que é predestinado à vida ou à morte.» (C. R., 29, 864 s. —Institutos, III, 21, 5) ■

Isto, pois, é dupla predestinação — tanto para a salvação como paraa condenação. Calvino enfatizou que a rejeição também depende da eterna

predestinação de Deus, fato que não deve ser ignorado do púlpito. Mes-mo a condenação e a punição eterna dos maus servem para glorificar aDeus. Deus não é a fonte do mal, mas o emprega de modo secreto einescrutável. Deus permanece justo mesmo quando rejeita alguém, masesta justiça transcende todas as normas humanas. Por este motivo é in-compreensível; faz parte da natureza oculta de Deus.

Calvino julgava que este conceito de predestinação devia apoiar enão destruir a certeza a respeito da própria predestinação. Tornase evi-dente, desta maneira, dizia Calvino, que a salvação do homem não se ba-seia no que ele próprio faz mas num decreto eterno. Em outras palavras,a dupla predestinação segundo o modo de pensar de Calvino (como deAgostinho) é a garantia final da salvação somente pela graça. Além disso,o decreto eterno deve estar intimamente associado com o plano de sal-vação que é levado a efeito no tempo. O chamado e a justificação sãosinais evidentes que se é um dos eleitos. De maneira correspondente, osrejeitados encontram um sinal de sua condição no fato que são excluídosdo conhecimento de Cristo ou da santificação.

O conceito de predestinação de Calvino pressupõe uma jústiça divinaque vai além de tudo o que o homem concebe como justo. A ordem divinanão pode ser medida pela mesma medida que se usa para a ordem dacriação; nem tampouco pode se r perscrutada pela razão humana. Mas Cal-vino ao mesmo tempo também afirmava que há uma conexão clara entre a

 justiça divina e a humana. Na obra da criação o homem possui um teste-munho de Deus, e por meios racionais pode atingir certo conhecimento dele— o assim chamado conhecimento natural de Deus. De modo semelhante,

a lei que governa a criação é cópia da justiça eterna de Deus. Conhecendoesta lei o homem chega a perceber a lei eterna de Deus e sua justiça.

Ao mesmo tempo, portanto, há semelhança e contraste ou desseme-lhança entre o divino e o que é criado. Esta linha de pensamento, que co r-responde ao conceito medieval, tomista, da analogia do ser (analogia entis), também contribuiu para a doutrina da predestinação de Calvino. A justiçaque é expressa pelo fato de Deus rejeitar homens com base em seu de-creto eterno, é inescrutável ao homem e está em oposição ao que normal-

mente denominamos justiça. Apesar disso, esta mesma rejeição expressaa justiça divina e concorda com a justiça de Deus. Que Deus se coloquecompletamente fora da lei (sendo assim exlex), ou que a predestinação de-vesse ser decretada de modo cegamente arbitrário, está fora de questão.

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Ao se aquilatar a posição de Calvino na história da teologia, a tran-sição entre as idéias aqui apresentadas é importante ponto a ser lembrado.A doutrina da dupla predestinação associa Calvino à teologia de Lutero,enquanto o conceito de analogia nos lembra enfaticamente a Idade Médiae, acima de tudo, a tradição tomista.

A influência do conceito de analogia foi responsável pelo fato de sera doutrina da predestinação de Calvino diferente da de Lutero. Calvinotambém empregou esta doutrina de modo diverso. Relacionoua com a pró-pria aquisição da salvação, quanto Lutero, em situação correspondente, res-saltou que é preciso afastarse do Deus oculto e aterse à vontade reve-lada de Deus, à expiação obtida por Cristo, que é válida para todos.

Foi neste ponto que a tradição luterana rejeitou a doutrina calvinistada predestinação: em oposição ao conceito de dupla predestinação de Cal-vino, Lutero apontava às passagens bíblicas que falam do desejo universalde Deus de sa lvar , ou de reconciliar consigo o mundo inteiro. (C f. 1 Tm2 .4 ; 1 Jo 2 .2 ).

Em sua doutrina da predestinação como alhures, Calvino partia acimade tudo do princípio escriturístico: a teologia deve apresentar o que estáregistrado na Bíblia. Seu conceito de inspiração bíblica ele descrevia emtermos de ditado feito pelo Espírito Santo, transmitido infalivelmente pelosque escreveram as palavras da Escritura. Calvino costumava ser conside-rado o criador da doutrina ortodoxa da inspiração. Isto não corresponde

aos fatos, porque teorias semelhantes já tinham sido propostas na igrejaantiga. Na tradição calvin ista posterior, a doutrina da inspiração recebeuforma difprente, mais mecânica que na ortodoxia luterana. Se a origemdesta doutrina mecânica da inspiração pode ser encontrada já em Calvinoou não, é problema debatido.

O Antigo Testamento tinha posição diferente para Calvino do quetém na teologia luterana. Calvino mantinha que o aspecto cerimonial da leimosaica foi abolido com o aparecimento de Cristo. Mas, por outro lado,ensinava que a lei moral do Antigo Testamento se aplica também aos cris-tãos. Estão subordinados a ela e devem regulamentar suas vidas de acor-do com os preceitos que podem ser extraídos da proclamação escriturísticada lei. A sociedade também deve organizarse de acordo com os princípiosda lei bíblica. Até certo ponto, portanto, no pensamento de Calvino, atri-buíase validez permanente à lei mosaica.

Apesar de sua atitude face à lei, Calvino salientava com grande ên-fase que nossa justiça perante Deus não consiste em obras da lei, nemna regeneração que é efetuada através do Espírito. Cr iticava tanto Agos-

tinho como Osiandro neste ponto. Em sua própria teologia, Calvino enfa-tizava vigorosamente a forma forense ou imputativa da justificação.

Havia em Calvino a tendência de tornar a santificação o objetivo da justificação . A santificação, por sua vez, era considerada meio de aumen-

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tar a glória de Deus. O homem deve viver em rigorosa concordância coma lei divina e deste modo dar testemunho de sua fé e fortalecer a certezade ser um dos eleitos. A lei, portanto, é a norma da vida santificada. Alei de Deus é eterna e direta expressão de sua vontade. Portanto, devereferirse mesmo aos que renasceram, e serve de norma para suas vidas.Submissão à vontade divina é o alvo da santificação.

A piedade calvinista se caracteriza por rigorosa temperança e portrabalho árduo na vocação terrena. Esse tipo de vida tem sido chamado«ascetismo mundano», que substituiu o ascetismo monástico medieval paraos protestantes. No calvinismo uma atitude prática, responsável, foi com-binada com forte ênfase no fato que os cristãos são estrangeiros nestemundo e que a vida no além é o alvo da existência humana e a «única coi-sa necessária».

Calvino fazia distinção entre igreja visível e invisível. Esta é compos-ta pelos eleitos. A iareia visível é constituída por Palavra, sacramentos edisciplina eclesiástica. A organização congregacional deve seguir certasinstruções derivadas da Bíblia (inclusive os quatro ofícios: pastor, profes-sor, presbítero e diácono). A iareia tem também spiritualis iurisdictio. cui-dadoso controle da moral e dos costumes. Esperase que as autoridadesseculares colaborem na manutenção da disciplina ecles iástica. Sua tarefanão é só a de manter a ordem pública mas também a de apoiar os inte-resses da verdadeira religião. As autoridades são servas de Deus e es -

tão subordinadas ao ofício magisterial em todas as questões relativas àreligião e à moralidade.

A constituição eclesiástica modelo que Calvino idealizou para ser em-pregada em Genebra caracterizavase por rígida organização e escrupulo-so controle da moral e dos costumes. A maneira implacável como as au-toridades agiram contra a heresia não foi o resultado de qualquer ânsiade poder despótico da parte de Calvino, mas antes o resultado de seu zelointransigente pela verdade evangélica. O julgamento de heresia mais co-nhecido (mas de maneira alguma o único) na Genebra de Calvino foi o

que condenou Miguel Serveto à morte por recusarse a aceitar a confis-são da igreja no tocante à Trindade.

Além da predestinação, a doutrina da ceia do Senhor tem sido o pon-to mais controverso entre o calvinismo e o luteranismo. O que Calvino ob-

 jetava na posição luterana era, acima de tudo, que nela se considerava opão como sendo o corpo de Cristo em sentido substancial, sem permitirseuma interpretação figurativa das palavras da instituição. Calv ino tambémrejeitou a idéia que o corpo de Cristo é infinito e está presente em toda

parte, sem limitações locais.Contudo, ao mesmo tempo, Calvino de maneira alguma defendia um

conceito puramente simbólico da ceia do Senhor. Para ele era realmenteuma questão de participar do corpo e do sangue de Cristo. Mas em vista

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do fato que o corpo de Cristo está no céu, localmente limitado, não podeestar presente nos elementos de modo físico, «substancial». Também, umapresença física nem é necessária no sacramento. O Espírito de Cristo écapaz de unir os fiéis com Cristo no céu. Pois o Espírito não tem limites,e pode reunir aquilo que está separado pelo espaço. Por intermédio da

mediação do Espírito, portanto, os fiéis participam do corpo e do sanguedo Senhor, e assim sao trazidos à vida. Esta comunhão ocorre na ceia doSenhor sob os símbolos de pão e vinho.

Como já foi dito, a perspectiva básica de Calvino com respeito à ceiado Senhor era diferente da de Lutero. Concebia o céu, onde o corpo deCristo está desde a ascensão, como um lugar definitivo, restrito, além daesfera terrestre. O corpo de Cristo não pode participar do infinito que ca-racteriza a divindade; está localmente limitado. Quando se fala da presen-ça do corpo de Cristo na ceia do Senhor, ou se diz que os fiéis participam

dele, isto não pode referirse à presença física ou ao comer físico do cor-po e sangue de Cristo, mas apenas à presença espiritual ou ao comer es-piritual. Tratase da comunhão da fé ou do Espírito com o Cristo que su-biu ao céu.

Com base nas premissas de Calvino é preciso supor que apenas osfiéis recebem os dons outorgados na ceia do Senhor (manducatio fidelium). E esta participação ocorre através do comer espiritual, isto é, mediante acomunhão da fé com Cristo, simbolizada pela refeição sacramental (man

ducatio spiritualis).Por último, Calvino objetou à interpretação literal das palavras da ins-

tituição. A seu próprio modo, Calvino certamente acreditava na presençareal de Cristo na ceia do Senhor, mas os elementos eram consideradosapenas símbolos da comunhão espiritual ou comunhão que pertence exclu-sivamente à esfera da fé.

A distinção rigorosa entre o espiritual e o físico, portanto, caracterizao ponto de vista de Calvino, posição que posteriormente foi expressa na

fórmula Finitum non capax infiniti («O finito não pode conter o infinito»).

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CAP Í TULO 25

TEOLOG IA REFORMADA ATÉ O SÍNODO DE DORT - 1618-19, INCLUSIVE

Apenas gradualmente João Calvino tornouse a figura dominante natradição cristã que freqüentemente ostenta seu nome. A expressão «calvi-nista», na realidade, foi cunhada pela oposição luterana durante o séculoXVI, enquanto que os grupos eclesiásticos que aceitaram uma confissãocàlvin ista geralmente se denominaram «reformados». Muitos outros teólo-

gos, além de Calvino, influíram no desenvolvimento destes grupos reforma-dos. Diversamente dos luteranos, faltavalhes uma confissão comum. Emvez disso, foram preparadas várias confissões diferentes limitadas a na-ções ou áreas individuais, como por exemplo a Confissão Galicana, a Con-fissão Helvética, a Confissão de Westminster (aceita na Escócia), e o Ca-tecismo de Heidelberg (aceito no Palatinado). Muitos dos teólogos refor-mados eram relativamente independentes de Calvino. Henrique Bullinger,por exemplo, sucessor de Zwínglio em Zurique, foi influenciado especial-mente por Zwínglio e pelos teólogos de Witenberga, e reuniu elementos de

ambas as fontes. Além disso, devese lembrar que Melanchthon exerceuprofunda influência sobre a tradição reformada. Vários de seus discípulosmais chegados filiaramse a igrejas reformadas. Isto aconteceu com VitorinoStrigel, cujo nome figura na controvérsia sinergista (cf. abaixo) e CristóvãoPezel, que publicou os escritos de Melanchthon e Strigel.

Outro teólogo cuja posição se aproximava muito mais do luteranismofoi Ursino, o principal responsável pelo Catecismo de Heidelberg (1563),o documento confessional do Palatinado. Mantinha ele posição intermediá-ria entre Lutero e Calvino, posição característica da igreja no Palatinado.

O Catecismo de Heidelberg defende o conceito calvinista da ceia do Se-nhor, mas não tem muito a dizer sobre a doutrina da dupla predestinação.

Bartolomeu Keckermann, ativo no início do século XVII, também mos-trou certa independência de Calvino. A maioria de suas contribuições erade natureza filosófica. No campo da teologia tentou aplicar o assim cha-mado método analítico (principiar com o alvo e então determinar o meiode alcançálo), que foi posteriormente adotado pela ortodoxia luterana.Keckermann também fjai_o_.prim.eiro a usar o conceito «sistemático» como

termo para a descrição geral de uma disciplina científica.Foi Teodoro Beza quem perpetuou a tradição calvinista pura. Beza

desenvolveu a doutrina da predestinação mesmo mais rigidamente que Cal-vino e lhe conferiu posição mais central ainda em sua cosmovisão.

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\ Mas a ortodoxia calvinista encontrase em sua forma mais pura emFrancisco Gomaro. Ele, como Beza, representava a assim chamada posi-ção,^ugrajapsária,, que diz ter ,sidp a_ predestinação levada a efeito sem to.marjem consideração a queda do homem. _[stq_significa que não apenas aCfindonação eterna, mas também a queda em pecado, foi preordenada pelo

(Jecretode Deus. A_Epsição infralapsária afirmava que a predestinação foi levada a efeito prevendo a queda do homem em' pecado.

No Sínodo de Dort (161819), cujas decisões tornaramse normativaspara grande parte da Igreja Reformada, o ponto de vista do calvinismo clás-sico foi vitorioso. Afirmouse nele que há certo número de homens queforam escolhidos para serem salvos por Cristo, tãosomente com base nobeneplácito de Deus. X )s .q ue estão.,incluídos naate ..número podem estarseguros do sua.eleição, pois, sinais çomo fé em Cristo, amor filial a Deus,çontrição pelo pecado e ansiar por justiça são Jn fa líveis . Dos rejeitados,

dizse apenas que foram passados de largo quando os eleitos foram esco-lhidos, e entregues à miséria que trouxeram sobre si mesmos por sua pró-pria culpa (a posição infralapsária).

O Sínodo de Dort reuniuse para tratar da crescente oposição à dou-trina calvinista da predestinação, liderada por Jacó Armínio. A posição arminiana foi na verdade rejeitada em Dort, mas apesar disso chegou a tergrande significado. Isto aconteceu porque absorveu o movimento sociniano (do qual se falará mais posteriormente) e também porque antecipou os

padrões de pensamento da época do iluminismo em vários aspectos. Ape-sar de sua rejeição da doutrina ortodoxa da predestinação, o arminianismocaracterizouse por ênfase moralista (a fé era considerada realização hu-mana) e, em anos posteriores, por sua acentuada racionalização da teolo-gia. O conhecido jurista Hugo Grotius desenvolveu ponto de vista seme-lhante em seus escritos teológicos.

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CAPITULO 26

A TEOLOGIA DA REFORMA EM ÁREAS LUTERANAS ATÉ A FÓRMULA DE CONCÓRDIA - 1577

OLAVUS PETRI

Um^io^jJnmeirgsdiscípulos de Lutero_foi o reformador sueco OlavusPetri (m. 1552). Sua defesa de^Tese réalizouse em Witenberga em 1518,e disto podemos depreender que foi testemunha ocular das primeiras eta-

pas da Reforma de Lutero. Em seus escritos, que marcaram época na lite-ratura sueca, Petri apresentou uma exposição clara e independente do pon-to de vista da Reforma. Seus livros mais conhecidos são Sobre a Palavrade Deus e Preceitos e Mandamentos Humanos (1528) e Pequeno Livro deSermões (1530). Em suas idéias básicas seguiu Lutero, mas em pormeno-res e na forma de sua exposição demonstrou sua independência dele. Pe-tri também aprendeu com o humanismo. Seu interesse pedagógico, sua in-sistência em clareza, e sua argumentação bíblica revelam a influência hu-manista. Isto não significa, no entanto, que aceitava o conteúdo das dou-

trinas humanistas. Aceitava a posição de Lutero com respeito à onipotên-cia de Deus e à servidão humana. Para justificar estas doutrinas contentavase com a argumentação bíblica: a razão deve calarse perante o clarotestemunho da palavra de Deus, embora as conseqüências disto sejam apa-rentemente ilógicas em  alguns casos. Em situação semelhante Lutero commaior probabilidade teria baseado seus argumentos na fé evangélica comoum todo.

Olavus  Petri gostava de enfatizar a união entre £é.ve obras. A verda

 jdgjra fé deve expressarse numa vida nova. Exaltando a regeneração, es-tará também ausente a fe_y.erdadeira. Nas controvérsias com o teólogo deUppsala, Peder Galle, e o humanista reformador dinamarquês Paul Helie,Petri desenvolveu sua posição com grande clareza. Na maioria dos casos,entretanto, procurou atingir os alvos que se propunha a serviço da Refor-ma sem fazer uso de polêmicas.

JOÃO BRENZ

Este homem, lembrado especialmente como o reformador de Württenberg, foi um dos primeiros e mais fiéis discípulos de Lutero. Faleceu em1570. No conflito em torno da ce ia do Senhor, na década de 1520, Brenzparticipou na defesa da posição luterana. E quando a interpretação calvi

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tempo, também foi um dos principais defensores do luteranismo puro. Tam-bém empregava um método bíblico. Chemnitz é conhecido como um dosautores da Fórmula de Concórdia (cf. abaixo). Seus escritos (por exemplo,os Loci theologici, publicados postumamente) constituem a mais importan-te conexão entre o período da Reforma e a ortodoxia luterana.' Em seu livro

De duabus naturis in Christo (1570) Chemnitz apresentou uma exposiçãominuciosa e sistemática da doutrina da comunicação dos atributos. Outracontribuição exemplar de sua pena é a análise das decisões do Concíliode Trento: Examen concilii tridentini (156573).

AS CONTROVÉRSIAS TEOLÓGICAS

a. Aspectos gerais. Os conflitos doutrinários que conturbaram a

Igreja Luterana durante os anos subseqüentes à Reforma muitas vezes fo-ram considerados como mais ou menos infrutíferas batalhas em torno depalavras. Mas uma avaliação mais cuidadosa demonstrará que — na maio-ria dos casos, ao menos — estas disputas tratavam de questões doutriná-rias importantes, que necessariamente afloravam à medida em que se pro-curava dar forma mais exata à mensagem da Reforma. Algumas destas con-trovérsias trataram de questões que mais tarde demonstraram ser de ne-nhuma importância, mas no conjunto os conflitos doutrinários intraluteranosconduziram a uma compreensão mais profunda da doutrina da justificação

e a um mais exato delineamento de suas conseqüências.As muitas controvérsias diferentes podem ser examinadas mais facil-

mente se mantivermos em mente que grande número delas se relacionadiretamente entre si e diz respeito a questões referentes à salvação ou àaquisição da salvação. A assim chamada primeira controvérsia antinomistadizia respeito à pregação do arrependimento. A controvérsia sinergista tra-tava do processo da experiência de conversão. O significado da just ifica-ção foi debatido na controvérsia osiândrica, enquanto que as controvérsias

majorística e a segunda antinomista se relacionavam com a questão dasboas obras e o terceiro uso da lei.

b. A controvérsia referente ao antinomismo de Agrícola. João Agrí-cola chegou a Witenberga de Eisleben por volta de 1537 e afirmava que alei não deveria ser pregada entre cristãos, mas tãosomente o evangelho.O consolo do evangelho deveria ser pregado primeiro, e apenas então aspessoas deveriam ser atemorizadas pela ira de Deus. Nessa conexão. Agrí-cola distinguiu ira de lei de maneira bastante inusitada. Referiuse a Rm

2.4, onde é dito que «a bondade de Deus é que te conduz ao arrependi-mento». Com isto em mente, Agrícola sustentava que os homens devemser levados à contrição e ao arrependimento apenas pelo evangelho — pe-la pregação do sofrimento de Cristo. Lutero considerou a tese de Agrícolagrave deturpação de sua doutrina e envolveuse ele mesmo no conflito (em

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vários debates com os antinomistas, bem como no tratado Wider die Antino- mer, 1539). Lutero salientou que a contrição e a tristeza associadas como arrependimento só podem ser despertadas pela lei, que revela o pecado.Em vista disso , devese proclamar a lei. A lei é tudo o que. revela pecado,ira e morte. E na medida em que o cristão é sempre pecador, permanece

sujeito à operação da lei, que se destina a matar o velho homem. Os pon-tos de vista do antinomismo de Agrícola não tiveram influência ponderávelna época, mas idéias semelhantes foram postas em prática em círculos lu-teranos desde aquele tempo — por exemplo, no grupo que tinha seu cen-tro em Herrnhut.

c. O problema do sinergismo. A assim chamada controvérsia sinergista das décadas de 1550 e 1560 encontra sua origem em afirmações dealguns «filipistas» que diziam poder cooperar a vontade até certo ponto na

experiência de conversão. Os principais adversários foram Fíácio e Strigel,que fizeram análise profunda da questão no Debate de Weimar em 1560.De acordo com Strigel, a vontade, na conversão, continua a funcionar de seumodo natural. É simplesmente transformada de má vontade em vontade boa.Mas Flácio asseverava que a vontade natural é inteiramente incapaz de au-xiliar na conversão. Não permanece simplesmente passiva; resiste ativa-mente à graça. Em vista disso, uma vontade completamente nova, um «novohomem», deve ser criado, enquanto que o velho é reprimido e abafado pelagraça de Deus. Esse debate — que não produziu qualquer resultado posi-

tivo — foi obscurecido pelo fato que as facções opostas se ativeram obsti-nadamente à questão da cooperação da vontade (sinergismo), enquanto que,na realidade, outro problema também estava em pauta. Pois Strigel partiade uma teoria de cunho filosófico sobre a vontade, enquanto que Flácio —embora com expressões estranhas — apoiava o conceito bíblico de novacriação (o novo homem). O principal ponto de Strigel era que a conversão,como experiência progressiva, sempre tem lugar no nível da vontade humapa. Flácio , por seu turno, sustentava que a primeira etapa da conver-são (ou «a primeira conversão», como ele o exprimia) é inteiramente o re-

sultado da graça, e que a vontade humana, que é naturalmente depravada,está tão longe de fazer o bem que resiste à graça de Deus.

A controvertida doutrina de Flácio sobre o pecado original também foiincluída no mesmo debate. Strigel, que mantinha que o homem não recebeuma nova vontade (no sentido substancial) na conversão, também asseve-rava que a essência do homem não foi perdida na queda em pecado. Po-dia, pois, descrever o pecado original como «acidente». Mas Flácio julgavaque isto constituía uma modificação no conceito de pecado, e assim tam-bém se opôs a Strigel neste ponto. De acordo com Flácio, o pecado origi-nal é «substância», ou antes, algo congruente com a forma substancial dohomem (forma substantialis). Basicamente, Flácio desejava defender o pon-to de vista bíblico e luterano de totus homo (segundo o qual o pecado ori-ginal se refere ao homem inteiro, assim como a regeneração implica no

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aparecimento de um «novo homem»), mas ele transformou esta linha depensamento numa teoria (mesmo filosoficamente) insatisfatória que foi re-pudiada pelos teólogos em geral e lançou a sombra da heresia sobre seuautor.

d. A rejeição da doutrina da justificação de Osiandro. AndreasOsiandro (lembrado como o líder da Reforma em Nürenberg, mais tarde pas-tor em Königsberg) num debate em 1550 apresentou certas idéias relativasà justificação que obviamente diferiam da interpretação corrente. Osiandroacreditava que nossa justificação não pode ser obtida através da obra ex-piatória de Cristo realizada há centenas de anos atrás. Deve,, antes, rela-cionarse com o Cristo que habita dentro de nós, isto é, com a naturezadivina que nos é outorgada através da aceitação do evangelho. O queOsiandro não aceitava, em outras palavras, era um conceito de imputação

extremado. Ensinava que nos tornamos justos, não mediante imputação ex-terna, mas pelo fato que Cristo habita em nós como «Palavra interna».A expiação é apenas a premissa indispensável para esta experiência, rea-lizada uma vez por todas.

Os críticos de Osiandro (sobretudo, Melanchthon e Flácio) insistiamque o conceito de «justificação», como usado na Bíblia, significa «declarar

 justo». Justificação pela fé é possível por causa do cumprimento supera-bundante da lei por Cristo , o qual nos é imputado. Esta é aliena justitia, localizada fora de nós (extra nos). É preciso distinguir cuidadosamente en-

tre esta e as primeiras etapas da regeneração, que chega a existir comoresultado do Espírito que habita nos crentes e que não constitui a base da

 justificação .A idéia extremada de imputação e seu correlato conceito forense de

expiação tornaram difícil de entender como justificação e regeneração serelacionam uma com a outra. Mas como resultado da controvérsia osiândrica,a idéia original da Reforma que é o pecador que é justificado e que a

 justificação pela fé consiste no perdão dos pecados (e não de qualidadesinerentes) foi energicamente afirmada. A seu próprio modo, Osiandro ten-

tara expressar algumas facetas da teologia de Lutero que tinham sido ignpradas por outros, mas confundiu conceitos da Reforma com especulaçõésderivadas da Cabala e do misticismo (a Palavra interna). A interpretaçãoluterana da justificação, então em voga, estabeleceuse mais firmemente co-mo resultado da discussão com Osiandro. A tendência de distinguir entreimputação e regeneração e de considerar a expiação apenas em categorias

 jurídicas foi fortalecida.

e. A controvérsia majorística não fez qualquer contribuição essencial

à discussão teológica. George Major, um dos seguidores de Melanchthon,defendeu a proposição: «boas obras são necessárias à salvação». Os gnésioluteranos consideraram isto um exemplo de justiça de obras, e replica-ram (como tinham feito na controvérsia osiândríca) traçando nítida linha di-

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visória entre justificação (que precede todas as obras) e regeneração. Umdos mais zelosos adversários de Major, Nicolau von Amsdorf, defendia atese oposta, que «boas obras são prejudiciais à salvação». É óbvio queambas as proposições foram mal formuladas e deram origem a numerososmalentendidos. Major não queria dizer que as boas obras são necessá-

rias para a justificação, apenas  queria dizer que devem acompanhar a fé— que a fé cessaria sem elas. Daí decorre que as boas obras são neces-sárias para preservar a fé. Contra isto foi ressaltado que a justificação nãoé preservada por obras mas apenas pela fé, o que vale dizer, retornandoseà graça.

Amsdorf pretendia expressar o conceito luterano de sola fide quandoapresentou sua tese. Mas a maneira como o fez, serviu para obscurecer aindissolúvel conexão entre fé e obras. Os principais resultados desta con-trovérsia foram que no futuro muitas das formulações ambíguas usadas no

debate foram evitadas e que surgiram condições para uma definição maisclara do lugar das boas obras dentro do contexto da doutrina da justificação.

f. A segunda controvérsia antinomista tratou especialmente da ques-tão do terceiro uso da lei. Alguns dos assim chamados gnésioluteranos —Amsdorf, Poach e Otto — sustentavam que nem a justificação nem a novavida são reguladas pela lei, mas que ambas se elevam acima da ordem le-gal. O homem justificado não se encontra, pois, sob a lei; cumpre livre-mente seus mandamentos. Isto não é antinomismo no sentido restrito do

termo, visto estes homens não colocarem em dúvida a pregação da lei ounegarem a função da lei em produzir o conhecimento do pecado. Simples-mente desejavam enfatizar o contraste entre o evangelho como dom  dagraça e a lei como algo que os homens devem cumprir por obrigação. Osque se opuseram a eles, diziam que negar a existência do terceiro uso dalei implicava em menosprezo do papel da lei, e por isso o denominaramantinomismo. O problema foi solucionado de maneira tal que a idéia deum terceiro uso da lei foi geralmente aceita. Isto implica em ser o concei-to de lei entendido, no sentido mais amplo, como designação para a von-

tade de Deus em geral, e não simplesmente como expressão de uma or-dem obrigatória. Também se assinalou que os regenerados não são ape-nas «justos» mas também «pecadores», e por causa disto exigem que alei os guie e nutra.

g. O conflito em torno dos adiáforos. Com o objetivo de atingir aunião entre as diferentes confissões, Melanchthon concedeu que os lutera-nos poderiam reintroduzir várias cerimônias que tinham abandonado. Estaseram, do ponto de vista luterano, «adiáforos» — coisas indiferentes à fé

e à consciência. O ínterim de Leipzig de 1548, documento confessional ace i-to por certo tempo por algumas igrejas, elaborou este ponto de vista. Con-tudo, os luteranos mais inflexíveis, consideraram isto um ato de traição con-tra a fé evangélica. As cerimônias reinstituídas certamente eram adiáforos;

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mas quando os inimigos do evangelho insistiam em seu uso como coisanecessária, então sua aceitação implicava na negação da liberdade evan-gélica. Numa situação que atinge a confissão de fé ou a liberdade do evan-gelho, nada pode ser considerado adiáforo. Flácio disse: «Quando confis-são e ofensa estão em pauta, nada é adiáforo» (In casu confessionis et

scandali nihil est adiaphoron). As duras palavras de Paulo a Pedro na s i-tuação registrada em Gl 2 foram usadas como comparação. Melanchthonmais tarde reconheceu ter errado nesta questão.

h. A controvérsia em torno da ce ia do Senhor. O conceito calvinista da ceia do Senhor foi atacado em 1552 pelo teólogo luterano JoaquimWestphal de Hamburgo. Isto conduziu a um exaustivo debate sobre o sa-cramento entre luteranos e calvinistas. Entre os luteranos que participaram,encontravase o já mencionado João Brenz, que sustentou a posição lute-

rana conservadora e novamente expôs os conceitos de ubiqüidade e da co-municação dos atributos como argumentos em favor da interpretação lite-ral e realista das palavras da instituição.

Melanchthon e seus discípulos, que dominavam a Faculdade em Witenberga nessa época, não se envolveram de início nesta controvérsia. Depoisda morte de Melanchthon, no entanto, a ceia do Senhor tornouse o pontode controvérsia decisivo entre os filipistas e os gnésioluteranos. Os teó-logos de Witenberga achavam que a doutrina da presença rea l não deve-ria se r explicada com auxílio da doutrina da ubiqüidade. Foram combatidospor Martinho Chemnitz e Jacó Andreà de Württemberg. Quando uma de-claração anônima escrita por um dos seguidores de Melanchthon foi publi-cada em 1574, apresentando as implicações reformadas da doutrina de Me-lanchthon sobre a ceia do Senhor, o Eleitor decidiu agir contra os teólo-gos de Witenberga. Os assim chamados Artigos de Torgau condenaram aposição calvinista. Os filipistas da Faculdade de Witenberga foram substi-tuídos na década de 1570 por teólogos luteranos conservadores, e o assimchamado criptocalvinismo foi debelado.

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CAPITULO 27

A FÓRMULA DE CONCÓRDIA

A controvérsia sobre a ceia do Senhor demonstrara que a posiçãofilipista era incompatível com o luteranismo genuíno. Como resultado disso,o desejo acalentado desde longa data de unir as igrejas luteranas em tornode uma confissão comum foi finalmente concretizado. O trabalho realizadoneste projeto, que foi apoiado por vários príncipes evangélicos (havia tam-bém implicações políticas nisso), eventualmente levou à elaboração da as-sim chamada Fórmula de Concórdia, que foi aceita pela maioria das igre-

 ja s luteranas. Este documento apresentou a posição luterana em contrasteflagrante com o calvinismo. Também excluiu o ponto de vista especifica-mente filipista; o que de modo algum contradiz o fato de ser a Fórmula deConcórdia, em grande parte, baseada na interpretação dada por Melanchthonè teologia da Reforma. É apenas naqueles pontos em que Melanchthon sedesviou de Lutero que a Fórmula de Concórdia faz objeções à posição melanchthoniana.

A Schwäbische Konkordie de 1574, escrita por Jacó Andreã de Tübin-gen, constituiu a base da Fórmula de Concórdia. A obra de Andreã foi sub-seqüentemente revisada por Martin Chemnitz e outros, e como resultadouma declaração doutrinária comum foi' aceita em Württemberg e na Saxo -nia (Schwäbisch-Sächsische Konkordie, 1575). Essa declaração, por sua vez,foi revisada por um grupo de teólogos de Württemberg (a Fórmula Maulbronner). Numa conferência teológica convocada pelo Eleitor Augusto daSaxônia e realizada em Torgau em 1576, um relatório (denominado Torgi- sches Buch) baseado nas duas declarações acima mencionadas foi enviado

à várias igrejas regionais para seus comentários. Numa convenção poste-rior, realizada num mosteiro de Bergen, perto de Magdeburgo, o Torgisches Buch recebeu nova forma à luz das opiniões recebidas. Os teólogos pre-sentes assinaram essa confissão e a enviaram ao Eleitor. Foi denominadaBergisches Buch ou Fórmula de Concórdia e foi posteriormente assinadapor príncipes, clérigos e teólogos de várias igrejas regionais e aceita porcerca de dois terços dos estados do Império que já tinham adotado a Con-fissão de Augsburgo. A Fórmula de Concórdia compõese de uma partepormenorizada (Declaração Sólida) e uma versão mais breve (Epítome); es-

ta se baseia num extrato feito por Jacó Andreã do Torgisches Buch.Por que foi elaborada esta Fórmula? Para decidir de modo compatí-

vel com a Escritura e com os ensinamentos evangélicos, as controvérsiasdoutrinárias que tinham surgido entre os luteranos. A posição flaciana com

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respeito ao pecado original foi rejeitada, bem como o foi a doutrina da jus-tificação de Osiandro e o conceito supostamente antinomista de Amsdorfe o terceiro uso da lei. As tendências sinergistas dos filipistas foram igual-mente repudiadas. A posição luterana pura sobre a ceia do Senhor, comodesenvolvida por Brenz e Chemnitz, triunfou. O ponto de vista de Lutero

com respeito à predestinação foi finalmente modificado, uma vez que asidéias de Lutero relativas à onipotência de Deus e sua vontade oculta emconexão com a predestinação foram deixadas de lado.

Através da elaboração da Fórmula de Concórdia foi preparado o ter-reno para uma coleção uniforme das declarações confessionais pelas dife-rentes igrejas luteranas. Isto se concretizou no ano de 1580 com a publi-cação do Livro de Concórdia. Este inclui, além da Fórmula de Concórdia,os seguintes documentos: os três Credos antigos, a Confissão de Augsburgo e sua Apologia, os Artigos de Esmalcalde, o Tratado sobre o Poder e

o Primado do Papa e os dois Catecismos de Lutero. O Livro de Concórdiasubstituiu as coleções de documentos doutrinários (corpora doctrinae) quetinham sido usadas anteriormente nas várias igrejas regionais (por exemplo,o Corpus Philippicum de 1560, aceito na Saxônia, Dinamarca e alhures).Como antologia dos documentos confessionais luteranos, o significado doLivro de Concórdia gradualmente chegou a ser reconhecido mesmo forados circulos do luteranismo alemão. Na Suécia , um edito promulgado em1663 recomendou que os pastores o estudassem. Na Dinamarca e na No-ruega, entretanto, não foi oficialmente reconhecido, visto as autoridades des-tes países não se desejarem comprometer à Fórmula de Concórdia.

Dentro do Livro de Concórdia, a Confissão de Augsburgo ocupa aposição de maior destaque como o documento confessional básico lutera-no da época da Reforma. A Confissão de Augsburgo é colocada ao ladodos três Credos antigos. Conforme a finalidade expressa claramente naprópria Fórmula de Concórdia, ela não tinha a intenção de apresentar novomaterial para superar a Confissão de Augsburgo. Por outro lado, em con-cordância com a Confissão dè Augsburgo e com a palavra de Deus, a. Fór-

mula de Concórdia tinha como objetivo fornecer análise clara e fundamen-tal sobre algumas das questões controversas surgidas entre 1530 e a dé-cada de 1570.

O conteúdo teológico da Fórmula de Concórdia se evidenciará, atécerto ponto, no resumo seguinte das principais questões tratadas nela.

Importância vital tem a Introdução. Referência se faz nela à Escrituracomo a única norma e regra a ser usada em todas as questões doutriná-rias. A Confissão de Augsburgo é nela mencionada como «a confissão de

nossa época», mas também se enfatiza que todos os credos e documentosdoutrinários são apenas testemunhos da fé. Mostram como a doutrina bí-blica foi preservada e como a Escritura Sagrada foi interpretada em épo-cas diferentes e à luz de questões diversas.

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I.  Sobre o pecado original: Contra Flácio (cujo nome não é men-cionado) e seus seguidores, fazse distinção entre a natureza humana e opecado original. Justificase isto dizendo que aquela foi criada, redimidae um dia ressuscitará dos mortos. O mesmo não se pode dizer do pecadooriginal que, apesar disso, é corrupção profunda que não se separará da

natureza humana até a ressurreição.II.  Sobre o livre arbítrio: Com respeito à função da vontade huma-

na em assuntos espirituais, a Fórmula de Concórdia rejeita o pelagianismoem todas as suas formas. A cooperação da vontade na experiência de con-versão (sinergismo) é similarmente repudiada. Os «entusiastas» que diziamocorrer a conversão por iluminação direta, sem o uso dos meios da graça,receberam o mesmo veredito.

III.  Sobre a justiça da fé perante Deus: Com respeito à principal

questão em pauta na controvérsia osiândrica,  deixouse claro que Cristoé nossa Justiça, o que vale dizer que Deus perdoa nossos pecados ape-nas por causa da perfeita obediência de Cristo, sgm levar em conta nossas_ obras ou a regeneração efetuada pelo Espírito Santo. Ao mesmo tem-po, entretanto, a fé verdadeira vem sempre acompanhada de obras, amore esperança.

IV. Sobre as boas obras: Tanto a tese de Major («Boas obras sãonecessárias para a salvação») como a de Amsdorf («Boas obras são pre-

 judiciais à salvação») foram rejeitadas. As boas obras do homem não aju-

dam a preserválo na fé. _As boas obras são apenas testemunho da fé edo Espírito que habita no crente. O antinomismo, que dizia não dever a leiser pregada entre os cristãos, também foi rejeitado neste artigo.

V . Sobre lei e evangelho: O problema antinomista também serve de contexto aqui. É o evangelho apenas proclamação da graça, ou é tambémproclamação de arrependimento, que repreende a descrença? A implicaçãoneste caso é que_a_[e^ não é capaz de desmascarar a descrença. Em res-posta, a Fórmula afirma que lei e evangelho devem ser distinguidos cuida-

dosamente: Tudo o que castiga o pecado é lei, enquanto que o evangelhoprega apenas a promessa da fé e só procura reavivar e encorajar.

VI. Sobre o terceiro uso da lei: O problema em pauta na segundacontrovérsia antinomista é tratado neste artigo. Os três usos da lei sãoos seguintes: manter a ordem públjç a,conduz ir ,os homens ao conheci-mento do pecado e dar ao cristão uma norma de conduta. A mesma leise aplica tanto aos regenerados como aos irregenerados. Deve se r pre-gada com poder também entre os fiéis, uma vez que a carne  continuamentese opõe ao Espírito em suas vidas. A única diferença é que os irregene-

rados fazem o que a lei exige apenas quando são coagidos (e mesmo en-tão o fazem relutantemente), enquanto que os fiéis, na medida em que sãorenascidos («novos homens»), voluntariamente cumprem a lei e fazem oque a lei jamais poderia obrigálos a fazer.

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X. Sobre as cerimônias da igreja denominadas adiáforos: Este pro-blema, levantado pelo ínterim de Augsburgo, foi respondido do seguintemodo: Em épocas de perseguição, quando se requer uma confissão clara,ou quando a liberdade evangélica está em perigo, não se pode ceder ter-reno à oposição, mesmo em assuntos triviais.

XI. Sobre a presciência e a eleição eterna de Deus : Afirmouse emoposição g dupla predestinação calvinista, que a eleição eterna só se re-fere aos que, mediante fé em Cristo , serão salvos . As promessas do evan-gelho e a pregação do arrependimento são universais . A condenação dosímpios resulta do fato que desprezam a Palavra ou a lançam fora. Por cau-sa disto, sua própria maldade, s   não o decreto de Deus, é responsável porseu destino. O conceito pelagiano, que mantém ser a eleição condicionadapela conduta do homem, também foi rejeitado. «Pois Deus nos escolheuem Cristo, não apenas antes que fizéssemos algo de bom, mas mesmo an-

tes de nascermos — sim, isto foi feito mesmo antes que os fundamentosdo mundo foram lançados.» (Declaração Sólida, 88).

XII. O artigo final da Fórmula de Concórdia apresenta breve descri-ção de certas seitas que não aceitaram a Confissão de Augsburgo, os anabatistas, os schwenkfeldianos, os antitrinitários, cujos ensinamentos foram

 julgados opostos à palavra de Deus e à confissão.

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CAPITULO 28

ACONTRA-REFORMA: TEOLOGIA CATÓLICA ROMANA

O desenvolvimento da teologia escolástica continuou dentro da IgrejaCatólica Romana durante o século XVI e na maior parte do século XVII,mas sob novas condições. Paris não era mais o centro da educação teo-lógica; outros centros educacionais, como Salamanca na Espanha e Coimbraem Portugal, menos atingidos pelas novas correntes de pensamento, toma-

ram seu lugar. Fator vital em tudo isso foi a organização de duas novasordens religiosas, a Sociedade de Jesus (jesuítas) e os carmelitas refor-mados.

Entre os teólogos dominicanos o cardeal Cajetano da Itália assumiuposição de liderança. Participou nas discussões re lativas a Lutero e à Re-forma mas é provavelmente mais conhecido por seu comentário sobre aSumma theologica de Tomás de Aquino (que foi reimpressa na publicaçãooficial desta obra, a edição leonina de 1882 ss .). Falando em traços gerais,a teologia de Tomás de Aquino passou a ser cada vez mais empregada

como base da instrução teológica durante essa época. Sua Summa theologica substituiu as Sentenças de Pedro Lombardo. A esco la dominicana deSalamanca tornouse o principal centro divulgador da tradição tomista.(Cf. Dominicus Soto, m. 1560, o Melchior Cano, m. 1560, autores do Loci theologici, o primeiro de sua espécie)

Entre os teólogos que se envolveram diretamente na controvérsia comos reformadores (especialmente Lutero) encontramse João Eck (Enchirridion locorum communium adversus Lutheranos, 1525), e Pedro Canísio (jesuíta,

m. 1597), líder da ContraReforma na Alemanha.O evento decisivo para a Igreja Católica Romana do século XVI foi

o concílio que se reuniu em Trento a 13 de dezembro de 1545, e continuou(em três fases diferentes, com longos intervalos) até 4 de dezembro de1563. (Foram realizadas ao todo 25 sessões .) O Concílio de Trento cons-tituiu o ponto final de certos desenvolvimentos medievais e teve grandesignificado para o futuro, uma vez que fixou a doutrina e a praxe católicaromana para a nova situação surgida com a Reforma. Entre as decisões

cruciais do Concílio de Trento, que afetaram a doutrina e a praxe da IgrejaCatólica Romana, estamos aqui especialmente interessados no decreto daquarta sessão, referente às Escrituras canônicas, e no decreto da sétimasessão, referente à justificação. .

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Os limites do cânone bíblico foram estabelecidos em Trento (os livrosapócrifos do Antigo Testamento foram incluídos), e a tradução latina «Vul-gata» foi declarada a autêntica (uma edição normativa foi publicada em1590). Mas além das Escritu ras canônicas, o Concílio de Trento tambémaceitou, como sendo igualmente valiosas para determinar os dogmas, as

«tradições» que se originaram com Cristo ou com os apóstolos e que fo-ram preservadas na igreja através dos anos. Estas foram «recebidas ehonradas com a mesma piedade e reverência» que as Escrituras (pari pietatis affectu ac reverentia suscipit et veneratur). Concluiuse que essas tra-dições, como definidas por Trento, foram «ditadas pelo Espírito Santo» ,talcomo o foram as Escrituras canônicas. A questão concernente à relaçãoentre Escritura e tradição (são duas fontes paralelas ou podese considerara tradição de certo modo incluída na Escritura?) foi debatida exaustivamen-te em tempos recentes. A interpretação tridentina sugeriu, entretanto, que

se tratavam de duas normas de fé paralelas, atitude claramente diversado princípio escriturístico da Reforma.

A doutrina da justificação tridentina fundamentouse em dois conceitosbásicos, os quais indicam nitidamente a diferença entre a doutrina católicaromana da salvação e a evangélica: por um lado a idéia que a vontadehumana coopera com a graça de Deus para se alcançar a salvação e, poroutro, a reivindicação que as boas obras são necessárias para a preser-vação da justiça e para a posse final da vida eterna.

Nas questões controversas entre o tomismo (influenciado por Agos-tinho) e o escotismo (afetado pelo semipelagianismo) foi possível evitar umatomada de posição definitiva. Julgouse necessár io certo preparo para a justificação, mas nada foi dito sobre ser este meritório ou não. O queestá incluído nele? Aceitar a graça que convida, e cooperar naquelas açõesque seguem o convite e precedem o batismo (arrependimento, amor a Deus,fé na revelação, etc.). Em concordância com o tomismo, presumiuse quea graça que convida é o primeiro passo na conversão, mas Trento ao mes-mo tempo atribuiu significado à cooperação da vontade e às ações prepa-

ratórias. O que os reformadores disseram sobre completa certeza foi reje i-tado («esta vã confiança, distante de toda piedade»). Em vez disso, afirmouseque nunca se pode saber com certeza se se possui a graça de Deus e quepara se permanecer na graça e crescer nela é preciso cumprir com osmandamentos de Deus e da igreja. A passagem «a fé sem obras é morta»é citada nesta conexão. A vida eterna é descrita ao mesmo tempo comodom da graça, tornado acessível por meio de Cristo, e também como re-compensa pelos próprios méritos. As doutrinas que a justificação consistedo perdão dos pecados e que o dom da vida eterna é outorgado exclusi-

vamente por causa de Cristo são anatematizadas mais do que todas asoutras.

Se a justificação é considerada, essencialmente, como infusão da gra-ça, e se se julga que isso ocorre por intermédio dos sacramentos, então

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é perfeitamente natural que as decisões tridentinas referentes à justificaçãosejam seguidas por deliberações relativas à doutrina dos sacramentos. Aquinta sessão, e várias outras que seguiram, formularam decretos concer-nentes a esta questão. Realmente, a doutrina dos sacramentos assumiuposição dominante durante todo o período remanescente do Concílio de

Trento. Muitos dos pontos de doutrina que desde então foram conside-rados como especificamente característicos da Igreja Católica Romana re-ceberam sua formulação definitiva em Trento. Por exemplo, a doutrina datransubstanciação (na 13<? se ssão); o uso do confessionário (na 14? sessão );a doutrina do sacrifício da missa (na 22° sessão); e a adoração de santose relíquias, além da doutrina do purgatório e das indulgências (na 25<? ses-são).

Depois do Concílio de Trento, a teologia escolástica floresceu pormais um século inteiro. Introduziuse novo elemento com o filosofia dohumanismo, com sua insistência no retorno às fontes antigas. O estudorenovado de Aristóteles e outros filósofos da antiguidade foi o resultadodeste programa. Contudo, na maioria dos casos, as antigas ordens mo-násticas perpetuaram suas tradições teológicas. A teologia tomista exerceua maior influência. O escotismo foi perpetuado especialmente entre osfranciscanos. A nova ordem jesuíta foi de natureza eclética. Também foia mais receptiva à nova filosofia. Houve longas controvérsias entre jesuítase tomistas.

Um dos jesuítas que levou o escolasticismo humanista da Espanhaà Alemanha foi Gregório de Valência (m. 1603, professor em Ingolstadt).Como resultado de seus esforços, o escolasticismo romano foi reavivadona Alemanha. O mais destacado entre os teólogos jesu ítas, bem como en-tre os novos escolásticos em geral, foi Francisco Suarez (m. 1617, ativoem Salamanca). Sua fusão da teologia escolástica com a metafísica neoaristotélica contribuiu decisivamente para a educação teológica da época.Seu manual no campo de metafísica, Disputationes metaphysicae, foi tam-bém largamente usado entre os protestantes. Como resultado de seus la-

bores, Suarez tornouse um dos precursores de escola neoaristotélica naAlemanha (sobre a qual ainda se falará mais tarde).

Entre os teólogos polêmicos, o jesuíta Roberto Bellarmino (m. 1621,cardeal) sobressaiuse dos demais. Seu livro, Disputationes de controversis de christianae fidei (158693), tratou das objeções protestantes ponto porponto. Por causa disto, contestações ainda mais fundamentais e amplasapareceram do lado protestante. (Por exemplo, a Confessio catholica deJoão Gerhard, 163437; cf. abaixo).

Faceta singificativa da teologia católica romana — mesmo em temposmais recentes — tem sido a literatura mística. Tal como acontecera como escolasticismo, o misticismo do século XVI foi, acima de tudo, produtoda Espanha. O fundador da ordem jesuíta , Inácio de Loiola (m. 1556), exe_r

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ceu forte influência sobre a piedade católica romana, principalmente atravésde seus Exercícios Espirituais, manual destinado à disciplina da vida espi-ritual. Os mais destacados místicos da época foram Teresa de Jesus (m.1582) e João da Cruz (m. 1591), que juntos organizaram a assim chamadaordem dos «Carmelitas Descalços». Sta. Teresa, que também é conhecida

por sua obra literária, descreveu as experiências dos místicos com profundapercepção psicológica. João da Cruz, empregando conhecimentos teológi-cos fundamentais em Tomás de Aquino, nos apresentou em forma clássicaa psicologia e a metafísica do misticismo católico romano. Foi denominado«o mestre do misticismo católico» (Grabmann).

Um dos adversários do escolasticismo dominante, com suas tendêncisa pelagianas e sua ênfase em mérito, foi o teólogo belga Miguei Baius(m. 1589, chanceler da Universidade de Louvain). Retornou à Bíblia e aAgostinho, e ensinou que o homem é incapaz do bem, rejeitando ao mes-mo tempo a natureza meritória das boas obras. Em 1567, o papa Pio Vcondenou 76 proposições dos escritos de Baius.

A crítica de Baius ao escolasticismo reapareceu com força renovadano «jansenismo». Comélio Jansen (m. 1638, professor em Louvain e bispode Ypres) concluiu, como resultado de seu exaustivo estudo dos escritosde Agostinho, que a teologia escolástica se tinha desviado da antiga tra-dição eclesiástica . Em sua obra principal, Agostinho, publicada em 1640,apresentou o conceito agostiniano de graça e predestinação em sua formamais estrita. Escreveu que a vontade humana é completamente depravadae subordinada à concupiscência. Apenas o dom da graça pode capacitaro homem a praticar boas obras.

A teologia agostiniana também desempenhou papel fundamental nomovimento de reforma que teve como centro o convento em Port Royal.Na década de 1640, Antoine Arnauld foi o chefe desse movimento, que so-freu forte oposição por parte dos jesuítas. O papa condenou algumas fa-cetas da teologia de Port Royal, que supostamente repetia idéias jansenis

tas. Entre os que se envolveram no conflito merece destaque Blaise Pascal(m. 1662), que se identificou com os jansenitas. Em suas conhecidas Cartas Provinciais (165657), Pascal atacou com brilho e vigor o conceito pelagianode graça e a casuística da ética jesuíta com sua desatenção à consciência.

Embora fosse atacado violentamente pelos jesuítas, o movimento jansenista continuou sua atividade por longo tempo, e só foi eliminado gra-dualmente. O convento de Port Royal foi destruído em 170910, e na bulapapal «Unigenitus» (1713) a posição jansenista foi novamente condenada.

A crítica penetrante dirigida por eles aos jesuítas (especialmente nas Cartas Provinciais), tornouse uma das causas da crescente oposição às atividadesdos jesuítas. Como resultado, os jesu ítas foram proibidos de trabalhar naFrança em 1764.

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Um dos principais desenvolvimentos na Igreja Católica Romana desdemeados do século XVII até o século XIX foi a progressiva desintegraçãoda teologia esco lást ica . Como aconteceu isso? O movimento jansenista,cujas críticas foram motivadas por profunda preocupação pela igreja, con-tribuíram para esse declínio, bem como a nova filosofia e, posteriormente,

o espírito do lluminismo.

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mer, o corpo de Cristo está localizado em certo lugar no céu e, portanto,não pode estar presente no pão na ceia do Senhor. Em vista disso, quandose diz que os que recebem o sacramento dignamente e com fé «comemo corpo de Cristo» isto deve ser entendido como linguagem figurada. Éum «comer» espiritual que tem lugar exclusivamente pela fé e também pode

ocorrer fora do sacramento. Em grande parte, esta concepção do sacra -mento foi mais tarde sancionada nos Trinta e Nove Artigos. (Art. IV, XXVIII,XXIX; cf. abaixo).

Tomás Cranmer, sob cujos auspícios a Igreja da Inglaterra tornouseuma igreja episcopal independente, subordinada à supremacia real, e quecontribuiu muito para fixar a posição doutrinária dessa igreja, foi executadodurante a reação católica sob a rainha Maria, «a sanguinária» (1556). En-frentando seu martírio, deu prova corajosa de convicção profunda, qualidademuitas vezes ausente em sua política eclesiástica.

Durante o reinado de Elizabeth I (15581603), a Igreja da Inglaterraconsolidouse, em geral de acordo com a orientação anteriormente dadapelos eclesiásticos protestantes. O Livro da Oração Comum aceito em 1559concordava basicamente com a edição evangélica de 1552. Os Quarentae Dois Artigos foram transformados nos Trinta e Nove Artigos de 1563.Neste documento confessional da Igreja Anglicana encontramos vestígiosde dependência do cristianismo evangélico do continente, bem como as ca-racterísticas próprias do anglicanismo. Dizse neles que a Bíblia Sagradacontém tudo que é necessário para a salvação, de modo que nada quenão encontra nela sua fonte pode ser imposto a qualquer pessoa comoartigo de fé. O princípio católico romano da tradição foi assim rejeitado.Os livros apócrifos não foram aceitos como parte do cânone e como fontede doutrina; os apócrifos do Antigo Testamento, no entanto, foram reco-mendados para uso nas igrejas , para ensino e direção (Art. VI). Com res-peito ao pecado original, como corrupção da natureza (Art. IX), e a incapa-cidade da vontade de crer e de realizar obras agradáveis a Deus (Art. X),a posição confessional anglicana segue o ponto de vista estritamente agos

tiniano, e aceita a doutrina luterana da justif icação apenas pela fé. A dou-trina católica romana sobre boas obras que precedem a justificação comomeritum de congruo foi repudiada em favor da concepção agostiniana quetodas as obras sem a graça são pecado (Art. XIII). A predestinação éapresentada como eleição para a salvação. Portanto, não se reconhece aexistência de uma «dupla» predestinação; a doutrina calvinista sobre esteponto foi cuidadosamente evitada (Art. XVII).

A igreja é definida (como em Agostinho) como sendo a comunhão doscrentes em que a palavra pura de Deus é pregada e os sacramentos são

administrados corretamente segundo a ordem de Cristo (Art. XIX ). Atribuise autoridade à igreja tanto com respeito a cerimônias como em contro-vé rsia s doutrinárias. Ela não pode, contudo, prescrever algo contrário àEscritura, cuja testemunha e preservadora é a igreja. As tradições e ceri-

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mônias da igreja não são consideradas como tendo sido dadas uma vezpor todas na Bíblia; podem ser alteradas de tempos em tempos. Cadaigreja nacional tem o direito, portanto, de mudar ou deixar de lado essascerimônias e ritos, enquanto tal ação não venha a contradizer a Escritura.Por outro lado, nenhum indivíduo tem o direito de modificar as tradições

e cerimnôias da igreja com base em seu próprio discernimento, enquantoelas não se opuserem à palavra de Deus. (Art. XXXIV).

Como já foi indicado acima, o ensinamento luterano da ubiqüidadede Cristo foi excluído pelas afirmações do Art. IV, e a presença de Cristona ce ia do Senhor foi descrita de acordo com a seguinte formulação calvinista: «O corpo de Cr isto é dado, tomado e comido na ceia, apenasde maneira celeste e espiritual. E o meio pelo qual o corpo de Cristo érecebido e comido é a fé.» (Art. XXVIII).

Os Trinta e Nove Artigos afirmam a supremacia do poder real sobrea Igreja da Inglaterra. Ressaltam , no entanto, que o rei não deve ocuparse com o ministério da Palavra, ou a administração dos sacramentos, masapenas com o controle externo da igreja. Sob Elizabeth I a designação«Supremo Cabeça» foi modificada para «supremo governante».

A posição adotada pela Igreja Anglicana pode ser descrita como in-termediária entre Roma e Genebra. O «Acordo Elizabetano» («ElizabethanSettlement») em questões religiosas provocou oposição de duas fontes, doscatólicos romanos e dos puritanos. Contra aqueles, João Jewel, bispo de

Salisbury escreveu sua Apologia da Igreja da Inglaterra (1562). Salientoua conexão entre a Igreja Anglicana e a igreja original dos apóstolos. Roma,disse, condenou o protestantismo no Concílio de Trento sem lhe prestara devida atenção. Se os protestantes fossem realmente heréticos, deve-riam ter sido derrotados com a Escritura.

Os dirigentes mais destacados do movimento puritano durante o rei-nado de Elizabeth, Tomás Cartwright e Walter Travers, ambos tinham resi-dido em Genebra, onde se tinham impressionado com a organização ecle-siástica de Calvino. Era seu desejo introduzir as idéias calvin istas no go-verno da igreja da Inglaterra reorganizada. Em vista disso, o movimento querepresentavam também foi denominado presbiterianismo, o que se referiaàquele ramo do puritanismo que esperava substituir o poder dos bispos naIgreja da Inglaterra pela autoridade exercida por consistórios ou sínodos,compostos de pastores e presbíteros. Os puritanos não desejavam reco-nhecer o sistema episcopal estabelecido sob Eduardo VI e Elizabeth I (aIgreja Estabelecida). A idéia básica no programa presbiteriano era que aEscritura Sagrada, como palavra de Deus, deve constituir a única fonte dedireção tanto para a conduta cristã como para as ordenanças e cerimôniasda igreja. Os cristãos esperam encontrar na Bíblia instruções explícitaspara governar suas atividades em várias situações, e seguindo o mesmoraciocínio julgavam apresentar a Bíblia também um padrão definido para aorganização da igreja. Também criam ser esta igreja escrituristica idêntica

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à formada com base em pressupostos semelhantes em Genebra. Era, emprincípio, imutável, uma vez que, supostamente, se baseava na palavra deDeus.

Entre os que combateram Cartwright encontravase João Whitgift, pos-teriormente arcebispo de Cantuária, que defendeu a organização eclesiástica

existente . A igreja, dizia Whitgift, tem a liberdade de adaptar as cerimô-nias e praxes externas de acordo com os tempos e as circunstâncias; enão é obrigada a seguir certa organização revelada uma vez por todas naEscritura.

O programa presbiteriano foi apresentado num escrito anônimo sobredisciplina eclesiástica em 1574, cujo autor foi Walter Travers, pastor quemais tarde lecionou na escola de direito, «O Templo», em Londres. Alienvolveuse em discussão teológica com Ricardo Hooker, o Mestre do «Tem-

plo» (e mais tarde pastor em Kent, m. 1600), que representava a posiçãoanglicana. Como resultado de seu debate com Travers, Hooker foi obrigadoa examinar o problema da organização adequada da igreja, o que fez novolumoso compêndio; As Leis da Organização Eclesiástica. Essa obra fa-mosa, cujos primeiros cinco volumes apareceram entre 1594 e 1597, nãotem rival como defesa erudita e sagaz do sistema anglicano. O livro deHooker que ainda hoje é usado como padrão para a instrução dos sacer-dotes anglicanos, se distingue por sua análise exaustiva do assunto, suamoderação exemplar, e seus julgamentos discretos. Exerceu grande influ-

ência também sobre o pensamento político inglês.

Hooker, bem como seus adversários, via claramente que a organiza-ção eclesiástica — como todos os sistemas humanos — deve repousarsobre autoridade divina. Isso não quer dizer, entretanto, que a organizaçãoeclesiástica pode ser derivada em todos os pormenores de instruções eexemplos bíblicos. Procurar um padrão para ordenanças e cerimônias naBíblia é exigir demais dela. A «perfeição» da Bíblia deve se r entendida emtermos de seu propósito expresso — providenciar o conhecimento necessá-

rio para a salvação humana. Mas uma organização eclesiástica válidá paratodos os tempos não pode se r derivada da Bíblia . A ordem jurídica quedeve existir na igreja, bem como em todas as relações humanas, repousasobre outro fundamento. Deus deu ao homem a lei natural, que coincidecom os juízos da razão, e que dá ao homem um conhecimento inato doque é certo e errado. Não há uma organização ec lesiástica válida para to-dos os tempos; mas a igreja, com base em exemplos e instruções bíblicas,bem como na base da sabedoria expressa na tradição, deve estabelecer umaforma racional de organização eclesiástica.

Hooker, nos primeiros quatro volumes de As Leis da Organização Eclesiástica, apresentou as bases essenciais da posição anglicana. No Vol. Vdescreveu o desenvolvimento contemporâneo dos ritos e ordenanças daigreja. Os vols. V I, VII e VIII foram publicados muito tempo após a morte

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de Hooker, e se são completamente autênticos é questão muito discutida.A posição verdadeira de Hooker só se reflete fidedignamente nos primeiroscinco volumes.

Os presbiterianos julgaram que a igreja estatal inglesa continha ele-mentos do romanismo, que desejavam uma «reforma da Reforma». Dese-

 javam conseguir seu objetivo dentro da estrutura da igreja estatal e emcolaboração com as autoridades. Mas alguns dos puritanos eram maisradicais e desejavam uma reforma sem depender do estado ou da hierar-quia. Em sua opinião, a congregação cris tã (composta apenas dos verda-deiros fié is) é a única autoridade dentro da igreja. O próprio «povo santo»representa a autoridade de Cristo. Como resultado, cada congregação localdeveria resolver por si mesma seus problemas, sem a interferência de auto-ridades seculares ou eclesiásticas. Os leigos e o clero têm diferentes fun-ções, mas não há diferença de grau entre eles . Este ideal democrático para

a igreja — geralmente denominado congregacionalismo ou independentismo— foi esquematizado por Roberto Browne, que fugiu para a Holanda em1582 a fim de escapar da perseguição (mas posteriormente retornou à igrejaestatal), e por Henrique Barrowe, que sofreu o martírio em 1593 por causade suas convicções congregacionalistas.

A Igreja Batista na Inglaterra, cujo líder foi um certo João Smyth, des-membrouse do congregacionalismo como movimento distinto, separatista.A primeira congregação batista na Inglaterra foi fundada por Tomás Helwys

em 1612. (Smyth organizara uma congregação em Amsterdam antes disso.)Os batistas ingleses sofreram influência dos anabatistas do continente. Ca-racterizavamse, entre outras coisas, por sua forte insistência na liberdadede consciência e tolerância religiosa. Diziam se r a religião algo entre Deuse o indivíduo, e, como resultado, a interferência das autoridades não podiaser tolerada. Os dissidentes de todos os tipos rejeitaram o Livro da Ora-ção Comum bem como a imposição de uma liturgia fixa, prescrita por lei.Isso tornouse um dos principais pontos em conflito er>tre os anglicanose os nãoconformistas. A teologia anglicana desenvolveuse durante o sé -

culo XVII conforme as diretrizes estabelecidas por Ricardo Hooker em As Leis da Organização Eclesiástica. A questão da ordem eclesiástica desem-penhou papel de destaque nesse desenvolvimento, tal como acontecera nolivro de Hooker. A originalidade da posição anglicana evidenciouse comoresultado de seu conflito com Roma e, sobretudo, com o puritanismo. Suacaracterística é a firme adesão à tradição episcopal e ao sistema eclesiás-tico estatal, evitando os extremos de ambos. Com respeito a cerimônias,as palavras seguintes encontramse no Prefácio do Livro da Oração Comumde 1662: «Tem sido a sabedoria da Igreja da Inglaterra desde que compilou

sua Liturgia Pública, conservar a linha média entre os extremos, de dema-siada rigidez em recusar, e de muita facilidade em admitir variações nela.»

Entre os que se opuseram ao puritanismo, destacase William Laud(arcebispo de Cantuária a partir de 1633), que é conhecido por seu uso

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inescrupuloso do poder no conflito para impor uniformidade quanto à pra-xe eclesiástica. Teologicamente falando, Laud divergia não apenas da praxepuritana mas também do calvinismo extremado com que o puritanismo fre-qüentemente se relacionava. Aceitava o conceito arminiano de predesti-nação e concedia certa liberdade no setor doutrinário, que unia à rigidez

implacável na observância do ritual. Os puritanos, por sua vez, em geralcombinavam severa observância doutrinária com liberdade no tocante àordem do culto.

A grande revolução que se abateu sobre a Inglaterra na década de1640 alterou radicalmente a situação ecles iástica. A princípio os presbiteria-nos dominaram, durante o período do Longo Parlamento, mas depois osindepentes tomaram conta, durante o regime de Cromwell. William Laudfoi aprisionado e, após longo julgamento, foi executado em 1645. O reiCarlos I, o principal defensor da Igreja Anglicana, teve o mesmo destinoem 1649. Ambos estes homens, e em especial Carlos I, consideraramsemártires da Igreja Anglicana, e muitos de seus contemporâneos concor-davam com isto. A Restauração de 1660 não solucionou satisfatoriamenteos conflitos religiosos (como muitos esperaram). O anglicanismo genuínofoi o mais favorecido na Conferência de Savóia de 1661, que fora convoca-da para resolver os problemas eclesiásticos, e o Livro da Oração Comumrevisado, de 1662, marca a conclusão do desenvolvimento em que a ori-ginalidade do anglicanismo foi moldada em meio a conflitos violentos com

não anglicanos. Entre os teólogos anglicanos mais proeminentes do sécu-lo XVII (além dos já mencionados) merecem destaque James Ussher (m.1656) e João Pearson (m. 1686). A Exposição do Credo de Pearson é exce-lente exemplo da literatura dogmática anglicana.

Durante o século XVII, a teologia anglicana afastouse sempre maisdas diretrizes do calvinismo ortodoxo. Calvino ainda gozava de grandereputação entre a maioria dos teólogos, e vários teólogos anglicanos par-ticiparam do Sínodo de Dort e aceitaram sua posição extremada sobre apredestinação, mas esta não era a regra geral. Como já mencionamos, fa-

lando de William Laud, o arminianismo influiu consideravelmente na teologiainglesa. Os presbiterianos dominaram o Sínodo de Westm inster (1643), emque a Confissão de Westminster foi aceita. Esse documento doutrináriotornouse obrigatório para a Igreja Presbiteriana na Inglaterra desde então.O mais destacado teólogo presbiteriano deste período foi Ricardo Baxter,mais conhecido por seus escritos devocionais, que circularam até em meiosluteranos (cf. O Repouso Eterno dos Santos , 1650). Um dos resultados ne-gativos da política eclesiástica da Restauração foi a expulsão dos presbite-rianos da igreja estatal anglicana, fazendo eles, por isso, causa comum comos independentes. Este desenvolvimento contribuiu para aumentar o hiato so-cial e teológico entre anglicanos e presbiterianos. Depois da Revolução Glo-riosa (168889), nada menos que 400 clérigos anglicanos, por questão deprincípios, recusaramse a jurar obediência ao novo rei, Guilherme III, que

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não era, em sua opinião, o rei legítimo. Estes «nonjurors» foram destituídosde seus cargos, e o resultado foi que a igreja ficou enfraquecida. Istoevidenciouse especialmente no confronto entre a igreja e o deísmo e ou-tras tendências racionalistas dos anos subseqüentes.

Entre os puritanos mais extremados da época encontramse o poeta

João Milton (Paraíso Perdido, 1667) e João Bunyan (batista, autor de OPeregrino — Pilgrim’s Progress, 1678) cujos nomes devem também ser lem-brados em conexão com a teologia da Inglaterra do século XVII.

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A metafísica escolástica exprimiu os conceitos universais do mundoe da realidade em fórmulas claras. Definia os pressupostos intelectuais daciência contemporânea em termos conceptuais — pressupostos que em par-te também serviam de base para a atividade teológica. O paralelismo en-tre a ortodoxia luterana e a filosofia escolástica podese ver no fato que

ambas floresceram ao mesmo tempo. Além disso, ambas foram suplanta-das por outras correntes de pensamento mais ou menos ao mesmo tempo(no início do século XVIII). A cosmovisão da filosofia escolástica distin-guiase, entre outras coisas, pelo conceito de conhecimento aristotélico(procedese da realidade externa — tanto sensível como suprasensível —como sendo a realidade primeira e imediata) bem como pela concepção aristotélica de forma (é a forma das coisas, e não sua substância, que torna arealidade acessíve l ao conhecimento). Como resultado, este ponto de vis-ta desligouse tanto do idealismo como da concepção mecanicista do mun-

do. A aceitação da filosofia escolástica pela teologia foi facilitada pelo fatoque aquela baseava seu conceito universal de mundo num princípio religio-so : é Deus a realidade • suprema (a forma ou o ato absoluto) e também ofundamento e o alvo de todas as outras realidades.

O neoaristotelismo também suscitou completa revisão do métodocientífico, fato que igualmente influenciou a exposição teológica. O princi-pal filósofo foi Jacó Zabarella (professor em Pádua, m. 1589), que julgavahaver apenas duas maneiras de se apresentar uma certa proposição emtodos os ramos da ciência. Denominou a primeira ordo compositivus, que

parte dos princípios às conclusões. A outra é a ordo resolutivus, que co-meça com o alvo em mira e então estabelece os meios de atingir o obje-tivo. Acreditavase na época, entretanto, que a teologia, por estar fora daesfera científica, não estava vinculada a nenhum destes métodos. Contu-do, foram empregados, até certo ponto, também na exposição teológica,como por exemplo no desenvolvimento do princípio escriturístico como fun-damento da teologia, e sobretudo na aceitação do assim chamado métodoanalítico. Tentativas foram feitas já no início do século XVII para orientara apresentação da teologia dé acordo com o método que era aplicável às

assim chamadas ciências práticas, isto é, a acima mencionada ordo resolutivus. O luterano Baltazar Mentzer e o teólogo reformado de nomeKeckermann encontravamse entre os que fizeram esta tentativa. Começa-ram dizendo que Deus é o alvo eterno, e então principiaram a tratar dadoutrina do homem, o assunto da teologia, e finalmente dos meios pelosquais o homem pode alcançar a bemaventurança eterna. Este método ana-lítico foi geralmente aceito em círculos luteranos posteriormente (cf. Calixtoe Calov) e substituiu o método mais antigo dos «loci». O método analíticofoi uma tentativa de apresentar a teologia numa forma mais padronizada doque se fizera anteriormente, isto é, a de apresentála como doutrina da sal-vação e dos meios pelos quais esta salvação pode se r alcançada. No en-tanto, também os tratados teológicos que empregaram este método, ao mes-mo tempo seguiram a ordem da história da salvação, que é independente

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de métodos filosóficos. Os desenvolvimentos teológicos no século XVIIconduziram a uma reformulação mesmo mais sistemática ainda da enormemassa de material herdada da tradição luterana mais antiga. As obras dosdogmáticos ortodoxos posteriores muitas vezes se caracterizaram por in-findável número de distinções artificiais.

Na medida em que foi aceita pela teologia, a filosofia escolástica ale-mã serviu para fortalecer a tendência intelectualista que caracterizou a or-todoxia luterana. Também contribuiu para um tratamento mais científicodas questões teológicas. Pelo seu emprego da filosofia a ortodoxia lutera-na, de certo modo, estava melhor aparelhada para preservar e transmitir aherança bíblica e da Reforma. Não foi senão quando este elemento filosó-fico foi abandonado que a estrutura ortodoxa da teologia começou a pare-cer a muitos como formalismo alheio à essência do cristianismo.

A exposição ortodoxa da doutrina repousava principalmente em argu-mentos derivados da Bíblia. Semelhantemente, o estudo contínuo da Escr i-tura formou a base da educação teológica. A adesão a princípios filosófi-cos da época não significou qualquer confusão fundamental entre os prin-cípios da fé e a razão. Concordavase que o aparato conceptual da filo-sofia só devia funcionar em defesa da fé ou explicar as questões teológi-cas no contexto acadêmico. Com respeito ao conteúdo das doutrinas, todoargumento racional devia ceder seu lugar diante do testemunho da Escri-tura. Neste ponto a ortodoxia luterana divergia tanto do escolasticismo

medieval como da ortodoxia reformada da época, em que se fizeram ten-tativas (até certo ponto) de harmonizar o conteúdo da revelação com osargumentos da razão. Keckermann achava, por exemplo, que a doutrina daTrindade podia ser demonstrada filosoficamente, mas os luteranos discor-davam. Seu ideal era o que Baltazar Meisner denominava sobria phiiosophia,isto é, uma filosofia sóbria que humildemente se subordina ao testemunhoda verdade revelada.

Mas ao mesmo tempo que as obras dogmáticas eram baseadas na Es-critura como único fundamento (o princípio escriturístico), a interpretação

da Bíblia, por sua vez, era influenciada pela concepção dogmática do todoe pela atitude polêmica. As primeiras tentativas de interpretar a Bíblia his-toricamente (no sentido moderno do termo) foram realmente feitas no sé-culo XVII — não, contudo, pela tradição luterana ortodoxa, mas em outroscírculos. O jurista e teólogo holandês Hugo Grotius foi um dos que ante-ciparam o ponto de vista moderno nesta questão.

Como já foi dito, as exposições dogmáticas ortodoxas luteranas se-guem a ordem da história da salvação: Criação, Queda, Redenção e Esca

tologia são ós pontos principais que sempre aparecem em tais apresenta-ções. A doutrina da Palavra e a doutrina de Deus são analisadas em pri-meiro lugar. A ordem comum nos vários loci geralmente inclui o seguinte:(1) a Escritura Sagrada, (2) a Trindade (a doutrina de Deus, de Cristo, do

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Espírito Santo), (3) Criação, (4) Providência, (5) Predestinação, (6) Imagemde Deus, (7) Queda do Homem, (8) Pecado, (9) Livre Arbítrio. (10) Lei, (11)Evangelho, (12) Arrependimento, (13) Fé (justificação), (14) Boas Obras, (15)Sacramentos, (16) Igreja, (17) os Três Estados e (18) Escatologia.

O que aqui temos é uma forma objetiva de teologia, bem diferente do

método moderno de exposição dogmática. A teologia era então definidacomo «ensinamento sobre Deus e coisas divinas». A revelação, como co-dificada na Escritura, fornecia o ponto de partida, e não a fé como algo den-tro da alma. A teologia em geral era considerada disciplina «prática», masisto significava apenas que se destinava a aplicações práticas, e não quetinha sua base na experiência da fé. Este ponto de vista foi pela primeiravez alterado pelo pietismo.

O princípio escriturístico excluía o principio do tradicionalismo (que

considera a tradição como normativa). Mas apesar deste fato, a tradiçãoocupava lugar de grande destaque na teologia ortodoxa. O ideal de Gerhardera uma «teologia evangélicocatólica», uma teologia do ponto de vista daReforma, que pode ser encontrada na tradição teológica preservada durantetodos os sécu los da história do cristianismo. A dogmática da ortodoxiaclássica caracterizouse pelo copioso emprego do material patrístico e (emgrau menor) da esco lástica . Agostinho exerceu, sem dúvida, a mais forteinfluência neste setor.

Com respeito a sua versátil compreensão do material teológico e à

amplitude de seu conhecimento da Bíblia, a ortodoxia luterana marca o pon-to alto de toda a história da teologia E não foi apenas a tradição da épo-ca, ou a imediatamente anterior, que forneceu o material para as grandesexposições doutrinárias do século XVII, mas em grau maior ainda o forama Bíblia e as fontes patrísticas.

O método empregado foi diferente do usado pelos dogmáticos hoje.Não se julgava que a teologia tinha de ser apresentada de maneira unifor-me, enfatizando certas idéias básicas. Pelo contrário, os dogmáticos doséculo XVII acreditavam que era sua tarefa reproduzir a infinita riqueza darevelação bíblica. Como resultado desta atitude, suas mentes estiveramabertas a todos os pormenores na tradição que lhes tinha sido transmitida,mas este método também conduziu a uma divisão infindável de questões,tornando difícil distinguir entre o essencial e o secundário. Foram feitastentativas de sistematizar este esforço, mas não tiveram sucesso. Porexemplo, o método analítico foi uma tentativa de organizar toda a exposi-ção doutrinária debaixo de um único ponto de vista: Como alcançará o

homem seu alvo supremo, a bemaventurança eterna? Tendência semelhan-te podese perceber no conceito dos assim chamados artigos fundamentais:apenas uma parte da fé pode ser considerada necessária à salvação, en-quanto que outras partes da doutrina são apenas de importância secundária.

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REPRESEN TANTES DA ORTODOXIA LUTERANA;SUAS ETAPAS DE DESENVOLVIMENTO

Na realidade, a era da ortodoxia luterana abrangeu todo o séculoXVII, mas podese distinguir entre o período clássico na primeira metade

do século e uma fase posterior que principiou com a Paz de Westfália (1648).Este segundo período caracterizouse pela luta contra o sincretismo, bemcomo por uma atitude mais dogmática.

Os principais representantes da ortodoxia mais antiga, isto é, clássi-ca, foram Leonardo Hutter (m. 1616, professor em Witenberga) e João Ger-hard (m. 1637, discípulo de Hutter, ativo na maior parte do tempo em Jena).A dogmática concisa de Hutter: Compendium locorum theologorum, exSeripturis Sacris et Libro Concordiae collectum (1610), em geral substituiuos Loci de Melanchthon como livro de texto.

Gerhard, o mais notável dogmático da ortodoxia luterana, continuoua edificar sobre a tradição da Reforma (especialmente com base na obrade Chemnitz), mas também lançou os fundamentos para a atividade teoló-gica que seguiria. O mais conhecido de seus escritos é a obra Loci theo- logici (161025), exaustiva análise da posição doutrinária evangélica, basea-da num conjunto de fontes extraordinariamente amplo. Sua Confessio ca- tholica (163337) procurou refutar as objeções da teologia católica romanacom citações tomadas da própria tradição da Igreja de Roma. Gerhard tam-

bém escreveu comentários bíblicos, obras devocionais como as popularesMeditationes sacrae (1606), tratados homiléticos (Postilla, 1613), debates euma pormenorizada exposição da ética da vida da fé, Schola pietatis (1621).

Nicolau Hunnius (m. 1643) é mais conhecido por sua teoria dos arti-gos fundamentais — a idéia que apenas certos pontos de doutrina, e nãotodo o conteúdo da Escritura deveriam ser considerados necessários à sal-vação, e só eles estabeleceriam a posição teológica de alguém. O sumárioda doutrina da fé de Hunnius, Epitome credendorum (1625), foi largamenteusado.

Matias Hafenreffer de Tübingen também esteve ativo nesse período.Seu Compendium doctrinae coeiestis, edição abreviada de seus Loci de1600, ainda era usado como compêndio cem anos mais tarde (na Suécia,por exemplo).

Posição diferente foi tomada pelo destacado teólogo de Helmstedt,George Calixto (m. 1656), que acreditava poderem as diferentes confissõesunirse com base no consensus quinquesaecularis, a tradição cristã maisantiga, reconhecida por todos como o fundamento das doutrinas. Este as-

sim chamado conceito sincretista foi desenvolvido mais amplamente porseus seguidores, os membros da «escola de Helmstedt». O conflito contrao sincretismo imprimiu uma marca indelével na ortodoxia luterana, na se-gunda metade do século XVII.

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pecto interno (significado, conteúdo) bem como ao externo, do qual o in-terno ou formal» (para usar a terminologia filosófica da época) é básico.O conceito aristotélico de forma dotou a concepção ortodoxa da Escrituracom uma qualidade ausente no biblicismo de anos posteriores, que freqüen-temente atribuía dignidade divina à interpretação racional, literal.

O desenvolvimento da doutrina da inspiração pode ser considerado emconexão com este conceito de Escritura. Que a Escritura é a palavra deDeus baseiase no fato que é divinamente inspirada. Isto significa, na tra-dição ortodoxa mais antiga, que aos profetas e apóstolos foi confiada amissão divina de anotar e transmitir, por escrito, a mensagem que rece-beram de Deus e que tinham proclamado primeiro oralmente. Em virtudedesta missão a Palavra divina foi preservada na Escritura sem erro ou de-ficiência . Portanto, a Escritura é a norma infalível para a fé e a condutacristãs, e o juiz de todas as controvérsias doutrinárias (norma fidei, judex 

controversiarum).

Quando se faz referência à «perfeição» ou à «suficiência», da Escri-tura, isto significa que a Escritura, como o único princípio teológico, contémtudo o que se necessita saber para a salvação — «que a Escritura nos ins-trui plena e perfeitamente em todas as coisas necessárias para se alcançara salvação». (Gerhard, Loci, Ed. Cotta., II, 286a).

A regra geral, aplicada à exegese da Escritura, era que a Escritura

é clara em si (per se evidens) e pode, portanto, servir de seu próprio in-térprete (sui ipsius interpres). Isto decorre do que já foi dito, pois se aEscritura é a única e suficiente norma de fé, então seu conteúdo deve seracessível ao entendimento, uma vez que este conteúdo é necessário paraa fé. As passagens difíceis devem ser interpretadas com a ajuda das maisclaras . Como regra geral, a interpretação deve concordar com a analogiada fé, isto é, com a doutrina da fé como claramente apresentada na Escri-tura. Atribuíase grande importância à interpretação literal: Pode haver ape-nas um sentido original, o sensus literalis. Também foram reconhecidas co-

mo válidas exposições alegóricas, mas eram consideradas aplicações figu-rativas — a não ser que o próprio texto o prescrevesse, como se julgavaser o caso dos Cantares de Salomão, constituindo assim o sentido alegó-rico seu sensus literalis original. Esse conceito não implicava numa inter-pretação histórica no sentido moderno, mas designava, em geral, o sentidooriginalmente pretendido pelo Espírito Santo. A tipologia, ou a alegoria, eraconsiderada (mesmo quando sugerida pelo próprio texto) como aplicaçãoe não como sentido «místico» original do texto. Na ortodoxia posterior, sefazia referência a um verdadeiro duplex sensus, isto é, um sentido literal

e um místico no mesmo texto.Uma controvérsia que teve lugar na década de 1620 ilustra o concei-

to de Escritura. A questão em pauta dizia respeito à ef icácia da Palavra eà relação entre Palavra e Espírito. Hermann Rahtmann (pastor em Danzig)

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dissera (referindose em parte a João Arndt) que a Palavra em si seria ape-nas letra morta. O homem só pode ser convertido com a cooperação doEspírito. Deste modo Rahtmann .distinguiu entre a Palavra externa e a Pa-lavra interna, identificando esta com o poder do Espírito. Em sua opinião,o fato de tão poucos serem influenciados pela pregação só pode ser ex-

plicado desta maneira. Os teólogos ortodoxos, inclusive Gerhard, não con-cordaram com esta linha de pensamento. Mantinham que assim como aPalavra é em si mesma inspirada e tem plena autoridade divina, assim tam-bém tem o poder de converter o homem. O Espírito, portanto, relacionasediretamente com a Palavra, e  constantemente usa a Palavra como meio pe-lo qual realiza sua missão. Também se afirmava — como conseqüência úl-tima disto — que a Palavra possui sua eficácia espiritual mesmo antes deser usada (extra usum). Mas isto os conduziu, de certo modo, a uma po-sição insustentável, visto a eficácia da Palavra sempre pressupor seu uso.

A conclusão é compreensível, no entanto, quando é considerada em termosdo conceito aristotélico de forma, que aí foi empregado. De acordo comele, a «Palavra» não se compõe de tantas cartas ou de um livro (a Bíblia)mas é um conteúdo vivo. A posição tomada no debate com Rahtmann foisimplesmente a conseqüência da doutrina de autoridade e inspiração da Pa-lavra. A rejeição do espiritualismo foi característica básica da tradição or-todoxa. O Espírito não age ao lado da Palavra ou independentemente dela,mas em e com a Palavra divina quando é ouvida ou lida.

b. A doutrina de Deus. Em certo sentido, toda a posição dogmáticortodoxa constitui uma «doutrina de Deus». A doutrina da criação e oplano de salvação relacionamse com a exposição do ser de Deus (a Trin-dade, Cristologia, etc.) como sendo descrição da vontade de Deus, mani-festada em suas obras. Também se faz referência a Deus como o «prin-cípio do ser» da teologia (principium essendi): na medida em que ele serevelou a si mesmo, Deus é a causa de nosso conhecimento dele. Assimcomo as coisas do mundo em torno de nós influenciam o intelecto e destamaneira evocam conhecimento sensitivo e conceptual, assim também é a

manifestação de Deus feita por ele mesmo — seu aparecimento em suaspalavras e obras — a causa direta de nosso conhecimento dele. Esta idéiabásica era pressuposto fundamental da teologia ortodoxa.

Faziase distinção entre conhecimento natural e sobrenatural de Deus.Este é o que foi dado através dos profetas e apóstolos e que agora se en-contra na Escritura Sagrada. Aquele é em parte congênito, em parte ad-quirido (notitia insita et acquisita). O conhecimento congênito de Deus foiconsiderado como sendo percepção colocada no coração do homem, nacriação; após a queda foi reduzido a fracas reminiscências da luz origi-nal e perfeita, que uma vez iluminara a alma. Apenas inclui a idéia queDeus existe, que é onipotente, etc. — exemplos disto podem ser encon-trados nas formas pagãs de culto (cf. Rm 1.19 ). A isto devese adicionara consciência, que também é faculdade congênita, que capacita o homem

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a distinguir entre o certo e o errado (cf. Rm 2.14,15). Uma concepção deDeus também se pode encontrar nisto, indiretamente, uma vez que o co-nhecimento natural da lei (lex naturae) pressupõe a questão: Quem esta-beleceu esta lei? As acusações da consciência, embora possam se r vagasou mesmo suprimidas, ainda assim transmitem o conhecimento que existe

alguém que pune as más ações. O conhecimento adquirido de Deus é aque-le que obtemos quando observamos as coisas criadas. Neste ponto as «pro-vas» da existência de Deus que tinham sido desenvolvidas pelos escolás

-----------------------------1:   -----------£   -------------------------- ------------------------------------------------- . . .   --------------- ----------------- ---------------- -------------------------------------- -----------   ---------------------1 -

a prova «causal» (a cadeia de causas pressupõe uma causa última ou primeira) e a prova «teleológica» (pode-se perceber certa finalidade nas coisas criadas, o que pressupõe ter alguém concebido estas ítiaVdades). Deve-se notar que se considerava o conhecimento naturâPite.£>bus parte da, revelação — em conformidade com a idéia (mçn-çtónadk^ fcima) que todV S 

nosso conhecimento de Deus tem sua base n o ^ m v j íi e Deus se . revelou a si mesmo, ou através da obra da criaçãp^áwatF^vés da Palav,Ka>-|J ‘

Este conhecimento natural de Efensv^Ji—deturpado, e é y^hteiramenteinsuficiente para se alcançar a saívãsâqvA/ísto limitarse çfri grande parteà percepção do fato que Deus^exjsteJ^àáso conhecimen0jjsobre como Deusé — conhecimento de sua iwtirèza^e seus atributoâjp^ deve ser obtidosobretudo da EscrituraJãâaraalír^Os ensinamè^fi^Sobre os atributos deDeus são, em sua rr\aiÇÍr pa/te, exposição sistemática do que a Bíblia nos

diz sobre ele. Este métqãff não nos proRaciona um conhecimento adequa-do de Deus —rs iQ i^ D èu s habita nu ífp^ T ina ce ssív eU — meramente nosensina cer^tè\wÇeã necessárias à=ie\é '   adaptadas a nossa capacidade decompreensãd^Fazse distinçã,o^OTfe os atributos internos, os que são intrínsB^à^àyjfopria divindadé/^por exemplo, que Deus é um ser espiritual2  ir visível, eterno e onipresente), e os atributos externos, aqueles que semamíestam em relaçftçTà criação (por exemplo, a onipotência, a justiça e avefacidade de própria div isão em atributos é em si uma adapta-ção à nossa .capacidade imperfeita de entender: o fato em questão é que

as qualida^^de Deus não são acidentais, mas idênticas com sua natu-reza. Çtèus; por exemplo, não é simplesmente «veraz» mas é «a própriaverdade» (ipsa veritas). Freqüentemente se ouve dizer que a posição ortoagp com respeito aos atributos de Deus é apenas especulação abstrata,ornamentação erudita da fé cristã. Mas isto é um equívoco, pois estas afir-mações doutrinárias expressam, em muitos casos, conceitos fundamentaisque são pressupostos necessár ios para a teologia em geral. O conceitode onipotência divina, por exemplo, constitui o fundamento para a confian-ça na providência que é característica da piedade luterana, e o conceito

de justiça é fundamental para a doutrina da expiação.A doutrina da Trindade foi desenvolvida em associação com a tradi-

ção patrística, sobretudo o Symbolum quicunque (o Credo Atanasiano). Atri-buíase importância especial às provas da Escritura. Faziamse referências

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à narrativa da criação no Antigo Testamento, por exemplo, onde se fala dapalavra de Deus e do Espírito de Deus, que «pairava por sobre as águas*.No Novo Testamento, faziase referência à descrição do batismo de Jesus(Mt 3.1617) ou à ordem de batizar (Mt 28.19). Alguns dos pontos de vistafundamentais apresentados são os seguintes: As distinções intertrinitárias

entre as pessoas residem no fato que o Pai não é gerado nem criado(agenneesia), o Filho é gerado pelo Pai (genneesía), e o Espírito não é ge-rado nem criado mas procede do Pai e do Filho (ekpóreusis). Com respeitoà criação, as pessoas podem ser distinguidas pelo fato de se r a criaçãoprincipalmente atribuída ao Pai, a redenção ao Filho e a santificação aoEspírito. Ao mesmo tempo, no entanto, todas as três pessoas cooperamnestas atividades; a obra externa da Trindade é indivisível.

A prova escriturística da divindade do Filho e do Espírito foi elabo-rada com grande cuidado, notadamente porque colocava à disposição dos

luteranos um dos seus principais argumentos no conflito contra o socinianismo (do qual ainda se falará mais tarde).

A Cristologia era exposta como a «doutrina da pessoa e obra deCristo» . Em conformidade com a formulação da igreja antiga, diziase serCristo «verdadeiro Deus» e «verdadeiro homem». A questão crucial era:como se deve entender a união das duas «naturezas». A doutrina da unio personalis tornouse, portanto, o ponto central da cristologia luterana. Asfiguras empregadas para ilustrar esta união não eram satisfatórias. Suge-

riase, por exemplo, que podia ser ilustrada pela união de corpo e alma,ou pelo ferro em brasa que é união de ferro e fogo. A cristologia, real-mente, não sugere que dois elementos se uniram para formar um terceiro;em lugar disso afirma que Cristo é simultaneamente Deus e homem. Ocorpo de Cristo não se encontra separado do Logos, a natureza divina, eo Logos (após a encarnação) não se encontra separado do corpo de CristQ. Neste ponto os luteranos discordavam dos calvin istas, que sustentavamestar o corpo de Cristo no céu, enquanto que Cristo, como espírito, estápresente em toda a parte e, portanto, também existe longe do corpo (idéia

expressa pelo termo extra calvinisticum).O conceito de unio personalis indica que Deus e homem se uniram

em Cristo de tal maneira que formam uma pessoa. Que «o Verbo se fezcarne» não deve, entretanto, entenderse como significando que a carnetransformouse em natureza divina. Tampouco a divindade manifestouseem forma corporal — como se isto fosse uma forma de revelação tempo-rária (comparável às narrativas do Antigo Testamento que nos contam co-mo Deus se revelou em forma humana). Mas a unio personalis significa queo Logos, a segunda pessoa da Divindade, assumiu a «pessoa» (ou hipóstase) da natureza humana. Em outras palavras, o luteranismo ortodoxo acei-tou as idéias que foram expressas de maneira clássica por João de Da-masco (teologia enhupostasis), com a exceção de alguns de seus pontosde vista platônicos.

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Visto manterem a unio personalis, os luteranos também ensinaram acommunio naturarum e a communicatio idiomatum. A «comunicação das na-turezas» se refere ao fato de as naturezas divina e humana se relaciona-rem intimamente uma com a outra, que a natureza divina permeia e aper-feiçoa a humana, ao mesmo tempo que esta se transmite à divina. Em vir-

tude desta comunhão entre as duas naturezas, o que é verdadeiro para umapode ser afirmado da outra. Podese dizer, por exemplo, «O Filho de Deusé homem» ou, «O homem Jesus é Deus». Ao mesmo tempo, contudo, am-bas as naturezas permanecem separadas e distintas; a natureza divina nãose transforma na humana, nem a humana na divina.

O conceito de «comunicação de atributos», que foi tomado de em-préstimo de tradição anterior, expressa convicções semelhantes. Como con-seqüência da communicatio naturarum, os diferentes atributos que distin-guem as naturezas também pertencem a Cristo como pessoa e, portanto,atuam os de uma natureza sobre os da outra da maneira mais íntima. Umanatureza participa dos atributos da outra, e ambas as naturezas participamnos atributos da pessoa. Todavia, os vários tipos de communicatio idiomatum que podem ser vistos no retrato bíblico de Cristo se limitam a trêsespécies, ou gêneros (cf. a Fórmula de Concórdia). O primeiro, o genus idiomaticum, significa que os atributos de uma natureza também podem serafirmados de toda a pessoa de Cristo . Assim , quando se diz de Jesus C ris -to, por exemplo, que é «o mesmo ontem, hoje e para todo o sempre», istoquer dizer que um atributo divino lhe é conferido; ou quando se diz que«Cristo nasceu da Virgem Maria», «Cristo é da descendência de Davi», en-tão um atributo humano lhe é conferido. O mesmo acontece quando atri-butos humanos são afirmados de Cristo como Deus, como quando lemos.«Crucificaram o Senhor da glória (1 Co 2.8). O segundo gênero, genus majestaticum, significa que a natureza divina transmite sua majestade e gló-ria à natureza humana, sem participar nos sofrimentos da carne. Isto podeser ilustrado com as palavras: «Toda a autoridade me foi dada no céu ena terra» (Mt 28.18), ou com as de João 6.51 ss., onde se diz que comer

o corpo de Cristo fará o homem «viver eternamente». Não há reciprocida-de em tal caso, pois, enquanto se pode dizer que as qualidades divinas fo-ram transmitidas à natureza humana, as qualidades humanas não foram trans-mitidas à natureza divina, que é imutável e eterna. A doutrina da ubiqüidadedo corpo de Cristo pertence a este gênero. O terceiro tipo, genus aposte- lematicum, se refere a ações realizadas por Cristo. Cada uma das nature-zas estava ativa nestas ações de acordo com suas próprias peculiaridades,enquanto a outra natureza também participava. Assim quando lemos que«Cristo morreu pelos nossos pecados» ou que «Cristo ensina» ou que «en-

tregouse como sacrifício a Deus», tais afirmações pertencem a este gênero.A distinção entre o «estado de humilhação» de nosso Senhor e seu

«estado de exaltação» é esclarecida por esta doutrina da communicatio. O estado de humilhação se refere à vida de Jesus na terra; o de exalta-

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invis íve is. Havia um tempo quando a matéria não existia. Mas quando ddcriação, Deus primeiro produziu uma massa informe, da qual o mundo vi j- sivel subseqüentemente recebeu forma ç ordem. A criação foi, no início,boa; seus aspectos maus e deficientes chegaram a existir gradualmente.Deus criou o mundo para sua glória, e também para o benefício do homem.

O homem — a coroa da criação é um «epítome» do universo, um«microcosmo» — foi criado à «imagem» e «semelhança» de Deus (Gn 1.26).Estes termos bíblicos são interpretados como duas expressões da mesmarealidade. A semelhança de Deus, imago Dei é definida (parcialmente emconexão com Ef 4.24) como uma forma original inata de justiça e santi-dade. Isto significa a perfeição e a harmonia do homem inteiro: em suacompreensão, sabedoria e conhecimento de Deus; em sua vontade, justiçae conformidade com a lei de Deus. A isto devese adicionar a imortalidade.Esta condição original era «natural», isto é, dada em e com a criação e

não como dom sobrenatural.

A queda — a trangressão do mandamento de Deus, provocada pelasartimanhas do diabo — trouxe consigo a perda da justiça original (justitiaoriginalis). Como resultado disto — visto ter sido a perfeição «natural» —o homem ficou totalmente corrompido. E por causa da unidade de suaespécie, esta corrupção transmitiuse de geração a geração por meio donascimento físico . Em lugar da justiça original, entraram no mundo umacondição de culpa (reatus) e uma inclinação para o mal (concupiscentia)

através do «pecado original» (peccatum originis). O homem se encontrasob a ira de Deus, a não ser que seja regenerado, está sujeito à puniçãotemporal e eterna. A morte se relaciona diretamente com o pecado. Amorte, portanto, não reinou sobre o homem no início; não fazia parte danatureza do homem na criação mas chegou a existir como resultado desua transgressão . A vida pressupõe justiça, isto é, harmonia interior entrepoderes espirituais e físicos, e uma relação contínua com Deus.

Há um paralelo nítido entre a justiça ou perfeição original, e a cor-rupção que entrou no mundo pela queda (pecado original), e a nova criaçãoque chega a existir por meio de Palavra e sacramentos. A vida que foiperdida pela queda de Adão nasce novamente pela fé na obra redentorade Cristo.

d. Providência e predestinação. O conceito ortodoxo de providêncise relaciona diretamente com a doutrina da criação, e é seu complementoindispensável. Considerada de certo ângulo, a providência (providentia)nada mais é que a creatio continuata, criação contínua. Deus não apenascriou as coisas no início; também as preserva em sua existência contínua.Sem esta preservação (conservatio) não poderiam existir ou trabalhar emconformidade com sua natureza. «As coisas criadas não subsistem porseu próprio poder, mas 'Deus sustenta o universo pela palavra do seu po-der’ , Hb 1 .3 (Gerhard, Loci, Ed. Cotta, IV, 83 a). A existência de homens

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e coisas, seu movimento e atividade, pressupõem a perpétua cooperaçãocriadora e sustentadora de Deus. É Deus quem faz o sol se levantar, quedá ao pão seu poder nutricional, às ervas sua capacidade de curar, etc. Semesta contínua cooperação as coisas não teriam sua eficácia natural.

De modo similar, tudo o que acontece, todos os eventos — man-

tendose a liberdade da vontade e as causas naturais — estão subordina-dos inteiramente à direção e supervisão diretas de Deus; nada ocorre semsua vontade. Além disso, dirige tudo ao alvo que escolheu. No cuidadopela criação por parte de Deus, o homem ocupa o primeiro lugar. Osobjetivos de Deus para o homem (que é um «epítome do mundo») cons-tituem o centro do curso do mundo, especialmente o alvo que estabeleceupara os fiéis no plano de salvação. Aqui podemos aplicar as conhecidaspalavras: «Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daquelesque amam a Deus» (Rm 8.28). A atividade divina de dirigir os aconteci-

mentos é denominada gubernatio, em contraste com a conservatio.Considerada de outro ângulo, a providência também inclui a presciên-

cia (praescientia) de Deus, o que significa, falando mais precisamente, queDeus, habitando num perpétuo «agora», vê tudo e conhece tudo. Vistose r Deus eterno, as fronteiras do tempo não existem para ele. A vontadeativa de Deus de cuidar do mundo e do homem se associa intimamentecom sua presciência — a eterna decisão relativamente a tudo o que subse-qüentemente acontece no tempo.

Na tradição ortodoxa posterior, a doutrina da providência — comoaconteceu com tantos outros pontos de doutrina — foi dividida em muitosconceitos e definições diferentes, e como resultado o quadro geral foi ra-pidamente obscurecido. Não há dúvida, no entanto, quanto ao significadoessencial desta doutrina para a posição luterana tomada como um todo.Influenciou tanto a piedade individual como a cosmovisão geral.

Mas como Deus se relaciona com o mal? Esta questão levantou pro-blemas especialmente difíceis. O conceito calvinista, que ensinava que Deus

préordenou e realizou o mal de acordo com sua vontade oculta, foi re- jeitado pelos luteranos. Como disse Melanchthon, não podemos conceberDeus como tendo duas vontades contraditórias. E ainda assim podesedizer que Deus está ativamente envolvido nas ações más de modos dife-rentes: Ele sustém as capacidades naturais do homem enquanto o mal épraticado; permite que o mal aconteça; abandona os que praticam o mal;e finalmente, estabelece limites em conformidade com sua vontade livree pode transformar o mal em bem. Quando Deus «endureceu o coraçãode Faraó», isto não foi o resultado de «predestinação» para o mal; foi pu-

nição para a impenitência de Faraó.E com isso tocamos no problema da predestinação. A ortodoxia lu-

terana resolveu este problema, em traços gerais, concordando com a Fór-mula de Concórdia. Diziase que a predestinação, ou eleição, só se refere

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aos que chegam a crer em Cristo e que permanecem nesta fé até ao fim.Deus os escolheu para a vida eterna em Cristo antes da criação do mundo.Por outro lado, a condenação se refere aos que persistem na descrençae impenitência até ao fim. Estes recebem o justo juízo da morte eterna.Jsto também se baseia sobre um «decreto» eterno.

Mas nenhum destes decretos é incondicional: a eleição é concretizadapor causa de Cristo e se baseia no fato que Deus prevê quem permane-cerá fiel até ao fim (ex praevisa fide). A condenação, por sua vez, se baseiano fato que Deus prevê quem permanecerá impenitente até ao fim.

A doutrina luterana ortodoxa da predestinação aderia ao que podeser denominado uma teoria imperfeita, logicamente incompleta: De um lado,apenas Deus é a fonte da salvação do homem (que reside na predestinação),enquanto que do outro, não é Deus mas o próprio mal do homem que o

conduz à rejeição. A questão da onipotência de Deus foi deliberadamenteomitida neste contexto, o que sugere não ter sido feita justiça às idéiasque Lutero apresentara no seu De servo arbítrio. Por outro lado, entre-tanto, o conceito calvinista da dupla predestinação foi claramente repudiado.

e. Livre arbítrio. A doutrina do «livre arbítrio» (De libero arbitriodesempenhou papel importante na estrutura da dogmática do luteranismoortodoxo. Mas é necessário dizer que a questão referente à relação entrea vontade e a predestinação não foi aí tratada de maneira específica (o

que é deveras surpreendente); os dogmáticos, em lugar disso, enfatizaramo problema sinergista, que traz consigo a questão de ter ou não a vontadehumana a capacidade de cooperar em coisas espirituais antes da experi-ência de conversão ou durante ela. Esta questão foi respondida dizendoseque ao homem, em casos específicos, falta o livre arbítrio. Encontrasecativo (servum arbitrium) como conseqüência do pecado e, portanto, é in-capaz de fazer o bem espiritualmente; não pode, como resultado, cooperarem sua conversão. Em vista disso, aceitouse a posição estabelecida naFórmula de Concórdia, e o ponto de vista enunciado por Melanchthon foi

rejeitado (juntamente com formas mais grosseiras de sinergismo).No locus dogmático De Libero arbitrio esta questão foi situada num

contexto mais amplo. O problema do determinismo não foi realmente tra-tado, nem o problema psicológico da função e natureza da vontade( emboratais problemas sejam tocados tangencialmente aqui e ali). O tema é anteseste : o homem como um todo visto no contexto do plano da salvação . Emconcordância com Agostinho e com a tradição medieval se fazem referên-cias ao homem «antes da queda», «depois da queda mas antes da con-

versão», ao «homem regenerado» e finalmente ao «homem depois da res-surreição». A liberdade da vontade em relação com sua capacidade defazer o bem, em sentido espiritual, é dividida nestas várias categorias: Emsua condição original o homem estava livre para fazer o bem, como resul-tado de sua justiça inata; depois da queda, a condição descrita acima pre-

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valece — o homem é completamente incapaz de fazer o bem; mediante aregeneração, a liberdade do homem é parcialmente restaurada, de modo quepode cooperar com a graça e combater o pecado; a condição da bemaventurança traz consigo a libertação final do cativeiro do pecado.

A questão neste contexto não dizia respeito à liberdade como fato

psicológico (isto é, se a ação volitiva tem ou não caráter «voluntário»),mas tratava da liberdade da vontade em relação ao objeto escolhido. Nesteponto estabeleciase uma distinção entre coisas físicas (res corporales) iátoé, o «hemisfério inferior» ou «bem social», e coisas espirituais (res espiri- tuales), isto é, verdadeiro temor a Deus, amor puro, etc. Com respeitoàquelas, diziase que certa liberdade permaneceu, mesmo depois da queda.O homem pode, até certo ponto, praticar a justiça externa, civ il. Mas comrespeito a estas, a liberdade (como já se frisou) perdeuse inteiramente —o que significa que o homem é incapaz de cooperar em sua sa lvação ou

de fazer o que é bom diante de Deus.

f. Lei e evangelho; arrependimento. Já falamos da Palavra como meida graça. A função da Palavra divina no plano da salvação é elucidada ain-da mais pela doutrina de lei e evangelho. É em virtude da operação dalei e do evangelho — e apenas por meio dela — que o homem pode serconvertido e passar da morte e da ira à vida. Isto também se denominaarrependimento (poenitentia).

O que é a lei? Em resposta a esta questão, a definiçãosugerida porMelanchthon foi aceita : a lei é «eterna e imutável sabedoria e regra de

 justiça válida perante Deus». Esta lex aeterna se reflete na justiça do pri-meiro homem, e subseqüentemente no decálogo dado no Sinai. Não apenasexige ações externas mas também que o homem concorde em todas ascoisas com a vontade de Deus (lex spiritualis). Esta é a lei que Cristocumpriu de modo perfeito mediante sua obediência e que fornece o padrãopara a vida santa e piedosa dos cristãos neste mundo, bem como para a

perfeição que antecipamos e que se tornará realidade na vida futura.Por ser o homem incapaz de cumprir com as exigências da lei, ela

não é a regra para a conduta de sua vida. Em vez disso , a lei serve pararevelar o pecado, para acusar o homem, e para condenar todos os que nãoforam libertados da maldição da lei pela graça, tornada acessível pela ex-piação de Cristo. O perdão é pronunciado mediante o evangelho, que emcontraste com a lei, não é conhecido pela razão humana; é apenas reve-lado pela palavra de Deus, transmitida a profetas e apóstolos. O evangelho,como proclamação da completa redenção de Cristo, é mensagem conso

ladora e edificante. A idéia que o evangelho também acusa o homem depecado, suplementando assim a lei, foi rejeitada. Neste sentido restrito dotermo, a lei é a palavra que ameaça, acusa e condena, enquanto que oevangelho consola, edifica e salva.

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O conceito evangélico de arrependimento foi desenvolvido em cone-xão direta com a doutrina de lei e evangelho. O arrependimento foi postoao lado da conversão, a experiência através da qual a fé é acesa e o ho-mem passa da ira para a graça. Por acreditarse que isto só podia serfeito através da Palavra, era apenas lógico definirse o arrependimento co-mo o efeito da operação de lei e evangelho no homem. Ao invés de sedizer que o arrependimento consiste de contrição, confissão e satisfação(como se fazia na Idade Média), diziase que a experiência decisiva doarrependimento consiste de contrição e fé. Aquela resulta dá lei, esta doevangelho. Fazendo o homem perceber seu pecado e a ira de Deus, a leio impele ao arrependimento. O evangelho, por seu turno, traz a certezado perdão dos pecados por causa de Cristo, consolando a consciência con-trita. Os frutos desta fé são boas obras e reforma da vida. Para deixarbem claro, a idéia que boas obras fazem parte integrante do arrependimento

foi rejeitada. No sentido restrito, o arrependimento consiste apenas de con-trição e fé.

Na ortodoxia posterior essas idéias relativas ao arrependimento evan-gélico foram suplementadas por minuciosa discussão das várias ações pelasquais o Espírito Santo «aplica» a salvação ao indivíduo (faziase referênciaà gratia Spiritus Sancti applicatrix). Incluídas entre as facetas dessa ordo salutis estavam as seguintes: chamado (vocatio), iluminação, regeneraçãoe conversão, renovação (renovatio) e união mística. Essa doutrina da «or-dem da graça» encontra suas origens em tempo bem remoto — no conceitoagostiniano de graça. Mas foram os dogmáticos da ortodoxia posterior quepela primeira vez deram a esse conceito sua forma caracte rística . Subse-qüentemente tornouse um dos aspectos centrais da teologia do pietismo.A exposição ortodoxa enfatizava, no entanto, que os diferentes conceitosnão designam etapas diversas pelas quais se deve passar. Conceitos como

 justificação, conversão e regeneração só podem ser distinguidos em sen-tido lógico, de modo que diferentes aspectos da mesma experiência possamser esclarecidos.

g. Fé e obras. A fé que é o «instrumento» para a justificação (fide justificans) era descrita como notitia, assensus e fiducia (em contraste coma fides histórica, a mera aceitação dos fatos da fé). O conhecimento (notitia) da fé se refere à palavra divina registrada na Escritura, à qual o crente dáseu assentimento (assensus). Como confiança (fiducia) a fé se dirige àgraça divina prometida em Cristo.

A justificação e a regeneração estão incluídas na fé. Ambas se refe-rem ao perdão dos pecados, não a transformação concreta que é o resul-

tado da fé (renovatio). Na ortodoxia posterior aparecem referências, nestecontexto, à união mística como sendo o ápice da fé. Quando o homemrenasce, ocorre uma união «substancial» entre Deus e a alma; a SantíssimaTrindade passa a habitar no crente.

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Os frutos da fé são boas obras. A renovação, ou «nova obediência»,abrange o início da transformação do homem para tornarse igual à imagemem que uma vez fora criado. As ações do homem são boas quando estãoem conformidade com a lei de Deus, mas visto ninguém poder cumprir alei, é apenas por causa da fé que se pode dizer que uma ação é boa no

verdadeiro sentido. Pois, é por causa da fé que as falhas que continuama existir no homem podem ser cobertas, de modo que ele pode ser con-siderado justo perante o tribunal de Deus. Apenas aquelas ações que seoriginam na fé e numa boa consciência são boas. O modelo para a expo-sição da ética cristã era sobretudo o decálogo, interpretado de acordo compressupostos da época.

A finalidade das boas obras é a de glorificar a Deus e de promovero bemestar do próximo. O homem não é declarado justo por causa desuas obras, pois é justificado tãosomente pela fé que se apega à expiaçãode Cristo e à misericórdia de Deus nela revelada.

A conexão entre fé e obras é a de serem estas frutos da fé. A fédeve fazerse acompanhar por uma renovação real o que é revelado pelofato que «pecados contra a consciência» fazem com que ela seja perdida.Ta is trangressões «conscientes» manifestam a ausência de renovação. Quan-do isto acontece, a fé também não pode estar presente.

h. Os sacramentos, a igreja e escatologia. O batismo e a ceia d

Senhor foram considerados réplica exata dos «sacramentos» do Antigo Tes-tamento, a circuncisão e a páscoa judaica. Estes eram considerados pro-tótipos do Messias vindouro, enquanto que os sacramentos neotestamentários apresentam o Cristo revelado na carne, isto é, a realidade predita nasprofecias do Antigo Testamento (figura — veritas; umbra — corpus). Apesardessa diferença, entretanto, o propósito e o significado eram, e são os mes-mos em ambos os casos, a saber, transmitir os dons celestiais, prometidosnas palavras da instituição, e aplicar ao indivíduo a promessa do perdãodos pecados, que pertence ao evangelho. Essa promessa foi dada em. pri-

meiro lugar no Antigo Testamento, embora ali fosse apresentada de ma-neira mais «sombria», imperfeita do que no Novo Testamento, que dá teste-munho do Cristo encarnado. A participação em sua obra expiatória, em seucorpo e sangue, é seu dom celestial (res coelestis) que, no poder das pala-vras da promessa, é dado em, com e sob os sinais externos — a águano batismo e pão e vinho na ceia do Senhor. A presença de Cristo naceia do Senhor era interpretada como concordando essencialmente com oponto de vista dos luteranos mais conservadores (Brenz, Chemnitz) e coma Fórmula de Concórdia.

Definiase a igreja, em conformidade com os pressupostos da Refor-ma, como eine heilige Gemeine, «a congregação dos santos e crentes», emque a Palavra divina é pregada em pureza e os sacramentos são correta-mente administrados. Esta congregação, que se estende por todo o mundo,

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unida pelos laços de amor, inclui todos os que professam o evangelho eos sacramentos. Entre eles encontramse os que pertencem à igreja ape-nas exteriormente, bem como os que são verdadeiros crentes. Em vistadisso, distinguiase entre a comunhão visível — a igreja como organizaçãoexterna — e a comunhão invisível dos que são membros verdadeiros e vivos

da igreja. Mas até o Dia do Juízo este grupo não pode ser distinguidodos que são cristãos apenas de nome. Os critérios para se determinar seuma igreja como tal é verdadeira ou falsa são, sobretudo, a pregação cor-reta da Palavra e a administração correta dos sacramentos.

A eclesiologia luterana destacase por sua ênfase na igreja inteira,que é bem diferente do conceito de comunhão introduzido mais tarde nateologia protestante. «A igreja», ou congregação, não é simplesmente a

soma dos indivíduos reunidos em torno de certo objetivo; é antes uma uniãoorgânica, na qual os indivíduos são colocados como membros uns a ser-viço dos outros. O conceito de igreja como então era concebido, tambémensinava que a finalidade das agências espirituais e seculares é a de apoiara comunhão externa, seja ela a família, a congregação ou a nação. É den-tro desses grupos ou associações naturais que a igreja chega a existir namedida em que elas são afetadas pela comunhão interna, invisível do Es-pírito a communio sanctorum. Dentro da igreja (no sentido amplo) há trêsordens ou esferas distintas: o ofício da pregação (ordo ecclesiasticus), a

autoridade política (ordo politicus), e a esfera doméstica, constituída pelomatrimônio (ordo oeconomicus). A primeira das três se destina a conduziro homem à salvação eterna, a segunda, a manter a ordem e a proteger asociedade, a terceira, a de aumentar a raça e a providenciar apoio mútuo.

A concretização do plano da salvação, iniciada no tempo, também ter-minará no tempo. Todavia seu alvo ultrapassa as fronteiras do tempo, atin-gindo a vida eterna. A escatologia, a doutrina das últimas coisas, ocupalugar importante na dogmática ortodoxa. O fim do homem (microcosmo) é

a morte, quando o corpo é separado da alma e se desintegra no túmulo.No fim dos tempos, no «dia derradeiro», ocorrerá a ressurreição dos mor-tos, seguida do juízo final, quando cada homem terá de enfrentar novamenteas ações de sua vida na terra. E assim como a vida do homem terminacom a morte, também todo o mundo atual (o macrocosmo) encaminhasepara seu destino fatal. Isto acontecerá pelo fogo que destruirá e consu-mirá tudo (consummatio mundi). Na existência eterna, que seguirá o fimdos tempos, os que praticaram o mal receberão a morte eterna, e os que

fizeram o bem herdarão a vida eterna. Com base nestes conceitos princi-pais, desenvolvidos sobre fundamento bíblico, julgavase que a história domundo bem como a realização do plano da salvação em breve atingiriamsuas etapas finais.

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0 CONFLITO CONTRA O SOCINIANISMO

O século XVI testemunhou a propagação de um ponto de vista antitrinitário que se originara na Itália. Na Transilvân ia e na Polônia, que nãoforam afetadas por perseguições eclesiásticas, foram estabelecidas congre-

gações em que este ponto de vista foi ensinado. Na Polônia vário s gruposdivididos foram unificados por Fausto Socino (em latim Socinus, m. 1604),que também se notabilizou como o principal teólogo deste movimento. Emmeados do século XVII o «socinianismo» foi proibido na Polônia, terminandopouco depois sua existência organizada. Contudo, na história da teologia,este movimento desempenhou papel destacado: o socianianismo, por suacrítica radical aos dogmas aceitos, preparou o caminho para a teologia racionalista da era do iluminismo e também prenunciou o conceito modernode religião em muitos sentidos.

A rejeição da posição sociniana foi aspecto importante da tradiçãoluterana ortodoxa. Baseado em vários pontos na herança do nominalismoda Baixa Idade Média e do humanismo da Renascença, o socinianismo in-sistia que dogma, ou o conteúdo da Escritura — cuja autoridade era aceitade maneira formal — deve justificarse perante o tribunal da razão humana.Em vista disso, os socinianos repudiaram as doutrinas que julgavam opostasà razão. Em sua exposição da Escritura estabeleceram como critérios bá-sicos a inteligibilidade racional e a utilidade moral.

O socinianismo, naturalmente, era antitrinitário: a divindade de Cristoe do Espírito Santo era negada. Cristo era considerado mero homem commissão profética. O Espírito Santo era concebido como sendo mero «po-der» divino. As passagens bíblicas que diziam o contrário eram reinterpretadas radicalmente. Em oposição a essas tendências racionalistas, osteólogos ortodoxos afirmavam categoricamente o princípio escriturístico co-mo base de sua teologia; os socinianos, na realidade, consideravam a razãocomo sua norma decisiva.

Com respeito a sua antropologia, os socinianos seguiam o pelagianis

mo. Adão não fora criado para se r imortal; a semelhança de Deus no ho-mem, que não foi perdida com a queda, apenas consistia em certo domíniosobre a criação. Negavam o pecado original, e diziam possuir o homemlivre arbítrio com o qual podia obedecer a Deus. «A ajuda da graça» eraconsiderada apenas expressão das ameaças e promessas incluídas nos ser-mões. Em todos estes pontos, a teologia ortodoxa — como ficou evidentenos parágrafos precedentes — se opunha implacavelmente ao socinianismo.

Porém, foi a doutrina da expiação, que se tornou o ponto mais con-troverso neste conflito. Socino e seus seguidores atacavam a idéia orto-

doxa de satisfação. Mantinham que a justiça de Deus não exige expiação.Justiça é algo que caracteriza as ações externas de Deus; não é qualidade«essencial», ou uma que faça parte de sua natureza. Deus, por sua livrevontade e em «vontade absoluta», pode perdoar e outorgar a vida eterna a

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todos os que crêem e procuram vive r em inocência. Como conseqüêncialógica disto, os socinianos negavam que a obediência de Cristo tinha qual-quer valor substitutivo e que sua morte constituíra satisfação pela culpados homens. A morte de Cristo na cruz apenas provou ser Jesus obediente,e sua ressurreição confirmou sua missão divina. As passagens bíblicas

que falam de expiação, redenção, etc., eram reinterpretadas livremente. Aobra de Cristo consistia apenas nisto, que mostrou aos homens como vi-ver uma vida melhor perante Deus. Nisto encontramos a «expiação».

Ao refutar estas idéias, os teólogos ortodoxos apresentaram os se-guintes princípios: Há uma just iça «éssencial» em Deus, segundo a qualo homem pecador deve se r punido. Mas por ser ele também misericor-dioso, Deus deseja poupar a espécie humana. Por este motivo Cristo veiopara trazer mérito e oferecer satisfação . O castigo que o pecado merecefoi transferido a Cristo; como resultado, Deus pode receber os pecadorespor graça sem vio lar sua justiça. Em vista disso temos esta «maravilhosacombinação de justiça e misericórdia divinas» (Gerhard, Loci, VII, 47 b).Cristo era apresentado como Mediador entre Deus e os homens, libertandonos da maldição da lei, da ira de Deus e do juízo eterno. Ele é o Reden-tor, a »expiação por nossos pecados». Por este motivo denominase Cristo:causa meritória justificationis, aquele que opera nossa justificação atravésde seu mérito. Sua morte foi satisfactio viçaria.

Nesta questão, como em muitos outros pontos — poderseia ainda

mencionar a doutrina dos sacramentos, pois os socinianos também nega-vam o efeito regenerador do batismo infantil e a presença real de Cristona ceia do Senhor — o socinianismo se apresentava como crítica racionaldos dogmas. Em formas um tanto diversas, e em condições mais favorá-veis, esta crítica foi freqüentemente repetida na nova era que começoucom o pietismo e o iluminismo. Várias características da moderna interpre-tação protestante do cristianismo já se encontravam plenamente desenvol-vidas no socinianismo.

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CAPÍTULO 31

OPIETISMO

A POSIÇÃO DO PIETISMO NA HISTÓRIA DA TEO LOG IA

O movimento pietista, que penetrou em território luterano em fins doséculo XVII e contribuiu para o declínio ou para a transformação internada tradição luterana ortodoxa, não era simplesmente reação contra certasfraquezas na vida da igreja da época; era antes nova posição teológica,

que se baseava em novo conceito de realidade e que continha em seu âma-go as sementes da posição moderna. Mas como se relacionava o pietismocom a tradição anterior e com a seguinte? Os estudiosos ainda estão de-batendo esta questão. Certos pontos de vista serão mencionados no quesegue.

Em sua insistência numa piedade viva bem como na demonstração dainsuficiência do conhecimento teológico objetivo, o pietismo teve muitosprecursores entre os luteranos anteriores, tais como João Arndt e JoãoGerhard no início do século XVII e em Teófilo Grossgebauer e Henrique

Müller (ambos de Rostock) na segunda metade do século. A realidade éque os principais teólogos ortodoxos estavam bem cientes da finalidadeprática da teologia, como também em geral insistiam no melhoramento damoral e dos costumes. Muitos dos que eram rigidamente ortodoxos tam-bém reagiram de modo positivo ao ler as recomendações para reforma deSpener propostas em sua obra Pia desideria, 1675 (trad. Theodore G. Tappert; Philadelphia: Fortress Press, 1964).

Ao mesmo tempo, entretanto, o pietismo revelou várias das novas

tendências que eram contrárias aos pressupostos fundamentais da teologiaortodoxa. Essas novas idéias aos poucos tornavamse mais evidentes. Aslongas e violentas controvérsias entre os representantes da ortodoxia e ospietistas revelam claramente a grande diferença entre as duas posições.

De onde vieram as novas idéias do pietismo? Várias fontes (mesmofora do luteranismo) foram sugeridas, tais como, misticismo católico roma-no, certas facetas da teologia reformada, a saber, os princípios de inter-pretação bíblica de Grotius e Coccejus, a pregação de Labaldie, o assimchamado precisianismo da Holanda. Outra possibilidade, geralmente esque-

cida ou ignorada, é o socinianismo. Mas, nesta conexão, é preciso lembrarque uma nova linha de pensamento nem sempre pode ser inteiramente ex-plicada à luz do que aconteceu antes. Ela pode representar, em vez disso,algo basicamente novo, cujas origens são obscuras.

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Mas o que dizer sobre a relação entre o pietismo e as tendênciassubseqüentes? Freqüentemente se dizia que, essencialmente, o pietismopermaneceu vinculado à posição luterana ortodoxa, enquanto que o iluminismo indicaria o surgimento de uma nova era. Porém, em tempos maisrecentes, os estudiosos vêm ressaltando a íntima conexão entre o pietismo

e o iluminismo. Apesar de em geral rejeitar as novas tendências filosóficasdo século XVIII, o próprio pietismo auxiliou a preparar o terreno, em mui-tos sentidos, para as novas correntes de pensamento. O pietismo, entre-tanto, inclui várias tendências diferentes; algumas delas próximas da po-sição racionalista (por exemplo, o pietismo radical) enquanto que outrasse aproximavam da tradição luterana ortodoxa (por exemplo, o assim cha-mado pietismo de Württemberg).

A TEOLO GIA DE SPENER

O mais notável teólogo do pietismo, e seu fundador dentro do luteranismo, foi Filipe Jacó Spener (16351705, a partir de 1691 decano em 

Berlim). Transmitiu o ponto de vista do pietismo de forma moderada. Pro-curou reter a base doutrinária ortodoxa sem alterações. Mas as questõesde que tratava, e notadamente seu método de apresentação, manifestavamnovo espírito teológico e nova maneira de pensar.

Em seu livro Pia desideria (1675) propôs várias recomendações parareformas destinadas a curar o estado de decadência em que a igreja seencontrava. Sugeria, por exemplo, que a Bíblia fosse estudada mais inten-sivamente. Com esta finalidade, recomendava a organização de associaçõespara promover a piedade (collegia pietatis). O sacerdócio universal deveriase r exercido através de admoestação mútua e cura d’almas. Também ex-pressou o desejo de reformar o estudo da teologia: o método dialético de-veria ser substituído pela leitura da Bíblia e literatura devocional.

O pietismo luterano surgiu, em primeiro lugar, como movimento de

reforma com finalidades práticas, mas, gradualmente, começou a ter efeitotransformador na atividade teológica bem como na perspectiva geral. Spe-ner publicou sua posição teológica especialmente na grande coleção inti-tulada Theologische Bedenken, lIV (1700 e anos seguintes) em Die evangelische Glaubenslehre in einem Jahrgang der Predigten (1688).

A nova maneira de pensar foi expressada na epistemologia. De acor-do com Spener, a experiência é o fundamento de toda certeza, tanto nonível natural como no da revelação. Como resultado, a experiência pessoal

dos piedosos é o fundamento da certeza em matéria de conhecimento teo-lógico. Apenas o cristão regenerado pode ser verdadeiro teólogo e possuirconhecimento real da verdade revelada. Spener contrastava o conhecimen-to físico com o espiritual. Aquele considerou conhecimento morto, quemesmo os irregenerados podem obter. A doutrina da fé é, pois, acessível

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sem o auxílio do Espírito, como mero conhecimento externo; mas, para se radquirido no verdadeiro sentido do termo, devese ter experiência pessoale renascer através do Espírito. Estas idéias se fundamentam em pressu-postos completamente diversos dos encontrados entre os ortodoxos. Estesacreditavam que, sob quaisquer circunstâncias, para se perceber a verdade

revelada é preciso receber a iluminação do Espírito Santo. Os pietistasresponderam que tal conhecimento podia ser adquirido mesmo pelos des-crentes; uma vez que por luz do Espírito os ortodoxos entendiam a luzque se encontra na própria Palavra, a doutrina verdadeira podia, portanto,se r proclamada mesmo por um mestre irregenerado. — À luz do prece-dente, não é de surpreender que Spener fosse criticado pelos ortodoxoscomo tendo separado a Palavra do Espírito, e o pietismo era às vezesconsiderado recrudescência da posição de Rahtmann. (Cf. acima, pp. 265-266) '

A nova orientação de Spener com respeito ao conceito de fé e àdoutrina da justificação nos proporciona exemplos semelhantes. Tal comoSpener a entendia, a fé não é mero conhecimento e confiança (notitia, assensus e fiducia); é ao mesmo tempo um poder vivo, do qual procede averdadeira experiência da renovação. Certamente não se é justificado poreste poder ou virtude, mas se não está presente, a fé também não pode

 justificar, pois então não é fé viva. Entre a fé histórica e a fé justificantehá portanto a «fé morta» (fides mortua), que pode apreender a verdadeiradoutrina mas não pode justificar.

Davase maior destaque à regeneração, que Spener entendia comosendo a concessão da nova vida. A justificação é o fruto da regeneração.A doutrina da imputação foi, pois, substituída pela idéia que justificaçãoe santificação formam uma unidade. Esta unidade é expressa pelo termo«regeneração» (ou «novo nascimento»), que não mais coincide — como natradição mais antiga — com o conceito de perdão dos pecados, mas designaa transformação interna que por sua vez é a fonte da nova vida, que ca-racteriza o cristão.

O mesmo conceito também pode ser expresso do seguinte modo, queconforme Spener a justificação se relaciona diretamente com o habitar deCristo no crente. A fé, pois, não é simplesmente a aceitação dos méritosde Cristo; também deve levar Cristo a habitar no coração do crente. Comoresultado, alguns pietistas começaram a dizer de si mesmos, «Eu sou Cris-to»; contudo Spener não aprovava tais exageros. A idéia da união pessoalcom Cristo não era nova, naturalmente — a ortodoxia falava da unio mysticacomo fruto da fé — mas o que havia de novo era que Spener concebiaesta transformação interna como o aspecto básico essencial da fé e ex-

pandia o conceito de justificação para incluir também a nova criação interna.O contraste entre a ortodoxia e o pietismo freqüentemente tem sido

descrito como contraste entre doutrina e vida. Embora isto seja equivocantee quase não atinja as diferenças reais, é correto no sentido de ter o pie

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tismo enfatizado a vida santificada como testemunho da verdadeira fé. Istoconcordava com os ensinamentos do luteranismo ortodoxo, mas o novoaspecto se expressava em termos de atitude negativa face à vida nestemundo. Morrer para o mundo se manifestava na abstenção de tudo queera mundano, de todos os prazeres e diversões. Spener não acreditava

que o cristão podia levar vida perfeita neste mundo, mas acreditava quehá os que conseguem libertarse de todos os pecados intencionais. Comoresultado, a posição pietista conduziu a uma ética mais ou menos ambi-valente: exigências mais rigorosas feitas aos cristãos que aos homensem geral.

A severa crítica de Spener ao estado insatisfatório da igreja contem-porânea se unia com a visão otimista do futuro da igreja. Não comparti-lhava a crença dos pietistas mais radicais, milenistas, sobre um futuro reinoterreno de 1.000 anos, mas previa um período de grande sucesso para a

igreja, em que os judeus seriam convertidos em escala universal e o pa-pado cairia. Spener divergia da tradição mais antiga ao sustentar estasidéias, pois ela antecipava o iminente fim do mundo, juntamente com adegenerescência gradativa e cada vez maior oposição à igreja cristã.

CA RA CT ER ÍSTICA S DO PIETISMO

Apesar da atitude conservadora de Spener e de sua adesão básica

à tradição doutrinária luterana ortodoxa, ocorreram profundas alterações emmuitos pontos de doutrina.

A teologia do pietismo concentravase na problemática da salvação.Eram tratadas com o maior interesse as questões relacionadas diretamentecom o plano da salvação e com a conversão individual ou a conduta davida. As questões metafísicas foram eliminadas, bem como a infraestruturafilosófica tradicional. Spener fazia objeções à filosofia de Aristóteles, e re-

 jeitava seu emprego no campo da teologia. A autoridade canônica do An-tigo Testamento era claramente reconhecida, mas o Antigo Testarriento erasubordinado ao Novo Testamento, porque a verdade revelada naquele eraconsiderada de natureza mais periférica. Os pietistas de Halle até mesmocomeçaram a criticar certas partes do Antigo Testamento como sendo con-trárias à moralidade.

Outra característica era de eventos subjetivos serem tomados comoponto de partida. O papel da experiência como fundamento da certeza jáfoi ressaltado. Fenômenos espirituais internos e experiências  individuaisprovocavam o maior interesse e forneciam o ternário para discussão teo-

lógica.Podemos ver aí nova atitude face a questões teológicas. A ortodoxia

partia da realidade objetiva e fundamentava a certeza do conhecimento teo-lógico no princípio escriturístico, que era considerado autoevidente e, por

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assim dizer, autocriador do conhecimento com que a teologia lida. O pietismo, por sua vez, partia da experiência; considerava a experiência do in-divíduo como sendo fundamental ao conhecimento ou à percepção religiosa.A exposição teológica pietista passou a tratar principalmente de fatos reli-giosos empíricos, pois se pressupunha que o conhecimento teológico não

podia ser adquirido sem a experiência da regeneração (o novo nascimento).Foi assim que o pietismo conservador iniciou, de vários modos, a nova

maneira de se pensar no campo da teologia e da eclesiologia. Em seuconceito subjetivo de conhecimento e em seu interesse na moralidade enos fatos empíricos da religião, o pietismo trazia dentro de si tendênciasque chegaram ao pleno desenvolvimento no pensamento do íluminismo, tan-to na área secular como na esfera da teologia.

PIETISMO DA HALLE

De vital importância para o desenvolvimento do pietismo foi o fatoque a recém fundada universidade de Halle supriu várias das posições desua Faculdade com pessoas de orientação pietista. Augusto HermannFrancke (m. 1727) ali começou a lecionar em 1692, tornandose o líder dopietismo de sua era e o fundador do famoso orfanato de Halle. Outrosteólogos com as mesmas convicções foram Joaquim Justus Breithaupt, JoãoAnastásio Freylinghausen e Joaquim Lange, os quais lecionaram em Halle.João Jacó Rambach (m. 1735), ativo em Giessen, exerceu grande influênciacomo pregador e intérprete da Bíblia.

A ciência da teologia foi completamente modificada pelos pietistas deHalle. A atividade teológica era dominada pelo estudo da Bíblia que sedestinava a finalidades práticas, devocionais. Para conseguilo, o própriométodo de interpretação foi simplificado. O conceito mais antigo de umúnico significado literal de cada passagem da Escritura foi gradualmenteabandonado; foi substituído por um sentido duplo e às vezes triplo — literal,

espiritual e místico (Rambach). Este sistema facilitava a explanação da-quelas partes do Antigo Testamento que eram consideradas ofensivas. Osestudos dogmáticos foram reduzidos à insignificância. Os homens de Hallese satisfaziam com a repetição concisa do sistema doutrinário ortodoxo,modificado pelas alterações introduzidas por Spener. O aparato conceptualfilosófico foi rejeitado.

Os pietistas de Halle divergiam da posição de Spener em certos as-pectos, especialmente com respeito a sua doutrina sobre o conflito do arre-pendimento e sua atitude legalista face ao mundo. Enquanto Spener acre-ditava que Deús agia de várias maneiras com pessoas diferentes na con-versão, Francke asseverava a regra que o cristão devia ser capaz de apon-tar a uma experiência de conversão distinta, delimitada, precedida por criseinterna (o conflito de conversão) provocada pela pregação da lei. Nessa

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situação, o homem é levado ao ponto em que decide a romper com o mundoe iniciar nova vida. É então que o dom da fé lhe é outorgado, e é atravésdesta fé que recebe o perdão dos pecados.

A nova conduta da vida, que é o fruto da fé, se caracteriza por rigo-roso autoexame e a supressão dos sentimentos naturais. Cada detalhe

da vida deve ser dirigido pelo Espírito Santo, ou pelos sentimentos da fé.O que é natural é considerado, em vista disso, como sendo intrinsecamentepecaminoso. O cristão piedoso evitará prazeres e diversões mundanas. Dan-çar, jogar e ir ao teatro eram considerados pecaminosos. — Também nesteponto, Spener se abstivera de dar instruções moralistas.

PIETISMO RADICAL

O pietismo conservador foi seguido por uma tendência radical quese relacionava com os entusiastas do período bem como com o socinianismo. Nele, como tantas vezes aconteceu em outros movimentos, uma reli-giosidade fanática, mística combinouse com a crítica racionalista da dou-trina da igreja. A influência da filosofia teosófica de Jacó Boehme se per-cebe claramente em certos casos (por exemplo, Dippel; cf. abaixo).

João Guilherme Petersen (m. 1727) representava a posição extremadaquiliasta. A referência ao reino de 1.000 anos de Cristo em Ap 20 não

era interpretada, como na tradição anterior, como dizendo respeito ao do-mínio do mundo por parte da igreja, do tempo de Constantino ao papadode Gregório VII. Petersen, ao invés disso, na maneira judaica, o interpre-tava como profecia referente a um reino futuro — em que os fiéis reina-riam com Cristo por 1.000 anos. Spener não rejeitou a posição milenistade todo, mas (como se viu acima) sua interpretação era um tanto diferente.

Godofredo Arnold (m. 1714) também pode ser incluído entre os pietistas radicais. Escreveu a conhecida obra Unparteyische Kirchen und

Ketzergescichte (16991700), em que se coloca acima de todas as confis-sões (unparteyisch — «imparcial») em sua descrição da história da igreja,criticandoas de maneira desdenhosa. Em sua opinião, o cristianismo ve r-dadeiro foi quase sempre preservado e transmitido pelas seitas.

O mais original dos pietistas radicais foi João Conrado Dippel (m.1734). Criticava especialmente a doutrina ortodoxa da expiação. De acordocom Dippel, a satisfação é contrária ao amor de Deus, que simplesmenteignora o pecado e recria o coração. Tal como acontecia com Boehme, Dip-pel ensinava que todas as coisas serão restauradas. Também aceitava a

posição milenista. O reino de 1.000 anos, para ele, seria a libertação doscrentes do domínio da igreja e do estado. A posição de Dippel, que foipublicada em Vera demonstratio evangelica (1729), provocou violentas con-trovérsias, mesmo na Suécia, onde viveu por algum tempo.

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HERRNHUTISMO

Enquanto que o pietismo radical quase sempre surgia na forma demovimentos fanáticos temporários ou de idéias só defendidas por algunsindivíduos, a organização dos «Irmãos Moravianos, fundada pelo conde

Nicolau von Zinzendorf em 1727, tornouse instituição permanente. Em con-traste com o pietismo radical, o movimento de Herrnhut tinha a igreja emalto conceito. Baseavase na Confissão de Augsburgo, mas seus adeptosnão consideravam essenciais as distinções feitas entre as várias comu-nhões. Como resultado, não era necessár io alguém ser luterano para serbemvindo em Herrnhut; membros de outros grupos confessionais tambémforam recebidos.

Von Zinzendorf focalizava toda sua teologia em um ponto: o senti-mento de comunhão com Cristo, obtido através da contemplação da cruz.Em sua opinião, a teologia não tinha qualquer conexão com a filosofia oucom a educação em geral; também não aceitava qualquer tipo de conhe-cimento natural de Deus. O conhecimento de Deus vem apenas por meiodo Crucificado. Tudo o mais é especulação pagã. Sua teologia da cruzera inteiramente subjetiva e de elevado teor emocional. Em virtude da con-templação da cruz, do sangue e dos ferimentos, chegase a sentir que oconflito e o sofrimento de Cristo nos libertam da punição e nos unem comaquele que foi enviado para ser nosso Salvador, e que também é Pai eCriador.

Os irmãos moravianos de Herrnhut não se referiam ao conflito dearrependimento provocado pela pregação da lei, como faziam os pietistasanteriores. Toda a experiência da conversão era substituída pela experi-ência da cruz e da expiação. A pregação da cruz de maneira evangélicaera a única coisa que importava. Essa posição se caracteriza por suaatitude antinomista.

Mas, apesar de sua tendência hiperevangélica, não se falava emHerrnhut (como entre os pietistas radicais) em abolir a doutrina ortodoxada expiação. O sofrimento substitutivo de Cr isto e sua redenção do pe-cado se encontravam, ao contrário, no próprio centro da fé dos irmãos deHerrnhut.

O modo como a expiação era apresentada pelos irmãos de Herrnhut,no entanto, era bem diferente da tradição mais antiga. A ênfase recaíasobre a experiência emocional do sofrimento de Cr isto. O subjetivismoera levado a extremos. A relação do cristão com Deus e com Cristo eradescrita em termos de intimidade humana, freqüentemente de uma maneira

tal que consideramos de mau gosto e repugnante hoje.Ao mesmo tempo que o movimento de Herrnhut indubitavelmente pro-

curava fazer justiça a uma das idéias básicas do luteranismo, devido a suaênfase subjetiva, estava fortemente condicionado pela épòca em que sur-

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giu. O movimento de Herrnhut sofreu oposição não apenas por parte dosortodoxos mas também dos pietistas conservadores (por exemplo, Bengel).

PIETISMO DE WÜRTTEMBERG

João Albrecht Bengel (m. 1752) e Magno Frederico Roos (m. 1803),ambos conhecidos como autores de literatura devocional, foram os líderesdo ramo do pietismo que floresceu em Württemberg. Este grupo manteverelação íntima com a igreja, e se ateve mais fielmente à herança ortodoxado que outros ramos do pietismo.

As maiores contribuições de Bengel foram feitas no campo dos es-tudos bíblicos. Sua publicação do Novo Testamento Grego, em que dividiuos manuscritos em grupos de acordo com o local de sua origem, forneceua base para a moderna crítica do texto. O comentário que se tornou suaobra mais difundida, Gnomon Novi Testamenti, destacase por suas perspi-cazes observações e pela profunda análise de minúcias textuais. O idealque Bengel procurava atingir era uma interpretação concreta, histórica, li-vre de todo formalismo filosófico ou doutrinário. Em sua exegese do Livrode Apocalipse tentou apresentar uma interpretação profética da história.Até mesmo afirmou que o fim do mundo poderia ser esperado para o anode 1836.

Roos era membro da escola de Bengel com respeito è exegese bíblica,e era essencialmente ortodoxo na doutrina. Sua posição também foi influ-enciada pelos princípios básicos do pietismo, bem como pelo conflito con-tra o racionalismo de seu tempo. O mais conhecido de seus escritos éChristliches Hausbuch, que juntamente com vários outros de seus livros,foi traduzido para o sueco. Estes livros foram especialmente populares en-tre os suecos seguidores de Henrique Schartau.

A CONTRO VÉRSIA EM TORNO DO PIETISMO

Não foi muito tempo depois de seu aparecimento que o movimentopietista passou a sofrer violenta oposição por parte dos teólogos ortodoxos.O pietismo era criticado por sustentar toda espécie de heresia e por diluira doutrina pura como resultado de seu indiferentismo. Grande número detratados polêmicos foram publicados de um lado e do outro nas décadasimediatamente anteriores e posteriores a 1700. Entre os que atacaram aposição pietista encontramse vários membros da Faculdade de Teologiade Witenberga, bem como Benedito Carpzov de Leipzig e João FredericoMayer de Greifswald (m. 1712, muito respeitado pelo rei Carlos XII daSuécia). Es tes críticos encontraram no pietismo tendências platônicas, ati-tude schwärmerisch (entusiasta) face à Palavra e sacramentos, além de

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doutrina «osiândrica» da justificação. Muitas outras questões controversasforam discutidas. Tocamos em alguns dos pontos principais nas secçõesanteriores: as questões da eficácia do poder da Palavra, da relação entrePalavra e Espírito, da theologia regenitorum da fides mortua, do conceitomoralista de santificação (a atitude negativa face à natureza e face a adiá

foros). A assim chamada controvérsia terminista foi provocada pelo fatode vários pietistas proporem a idéia que no caso de certos homens ímpioso período da graça e a possibilidade da conversão terminarem mesmo an-tes de morrerem (terminus gratiae). A esperança milenista alimentada poral.guns pietistas também foi incluída na lista das questões controversas.

A mais notável confrontação entre as posições pietistas e as orto-doxas deuse na controvérsia entre Valentino Ernesto Löscher (m. 1749,superintendente geral em Dresden) e o teólogo de Halle, Joaquim Lange.Aquele, em seu Timotheus Verinus, apresentou penetrante crítica do pietis

mo do ponto de vista ortodoxo, mas também estendeu a mão da reconci-liação ao mesmo tempo. Lange replicou com polêmica veemente mas dequalidade inferior. Löscher não pensava, no entanto, estar simplesmentelutando contra um fenômeno temporário, cujos defeitos facilmente podiamser identificados; ao contrário, acreditava representar o pietismo um novoespírito dos tempos, cujas tendências em direção ao «entusiasmo» e aoindiferentismo ameaçavam destruir de dentro os próprios pressupostos dopensamento ortodoxo. Sua crítica não alcançou o alvo desejado.

A atitude subjetiva, antropocêntrica do pietismo dissolveu o conceitoobjetivo de realidade como expresso na antiga filosofia escolástica e nateologia luterana ortodoxa. Ou como Löscher o expressou em seu vereditosobre o pietismo: a prática externa da religião (habitus religionis) foi trans-formada em religião e salvação.

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CAPITULO 32

O ILUMINISMO

ORIGENS

Podese dizer, falando em termos gerais, que a era do iluminismo nocontinente europeu coincidiu com o século XVIII. Durante esse séculoocorreu profunda transformação científica e cultural, transformação essaqué alterou completamente as condições nas quais se desenvolvia a ati-vidade teológica.

As raízes desta era e suas idéias encontramse no humanismo daRenascença e no socinianismo, bem como no deísmo da Inglaterra do sé-culo XVII. Os sistemas filosóficos que começaram a substituir a estruturafilosófica anterior, na segunda metade do século XVII (Descartes, Leibnitz,Locke), também auxiliaram a preparar o terreno para o iluminismo. Novasdescobertas e teorias no campo das ciências naturais (Newton) e no campoda jurisprudência (Grotius, Pufendorf) também contribuíram para o desen-

volvimento do ponto de vista moderno, que se propagou amplamente noséculo XV III. No campo da teologia, o pietismo serviu para promover estemesmo desenvolvimento em alguns sentidos.

A época que agora analisaremos marca o início da era moderna. Naesfera cultural passou a dominar uma nova cosmovisão, e novos pressu-postos intelectuais surgiam rapidamente. A fim de se entender o alcancedesta mudança radical, é útil comparála em certos pontos com a tradiçãoanterior e seus princípios científicos.

O pensamento filosófico foi transformado a partir de suas raízes, tantoatravés dos grandes sistemas filosóficos como através da nova filosofiaescolástica que substituiu o escolasticismo aristotélico nas universidadesalemãs no século XVIII (Thomasius, Wolff).

O conceito metafísico de formas substanciais foi substituído por umconceito empírico e atomista de realidade. Anteriormente o mundo espi-ritual, concentrado em Deus (ens supremum), era considerado a realidadeprimeira e mais elevada. Mas isto não mais acontecia na era do iluminismo,em que os olhos dos homens se voltaram para o mundo material com todaa sua diversidade. A antiga filosofia objetiva foi substituída por uma formaprática e utilitária de sabedoria, cujo objetivo primordial era o de ensinaro homem a entender e controlar seu ambiente e gozar a felicidade nestemundo (a assim chamada filosofia da moderação).

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Formas anteriores de pensamento partiam do objeto — a metafísicaprocurava obter um conhecimento objetivo do significado mais profundo darealidade. A nova filosofia principiava com o sujeito, que era consideradoem primeiro lugar na busca do conhecimento. O conhecimento de si pró-prio e a experiência interna eram considerados os fatores mais óbvios e

fundamentais — imediatamente à mão, para o sujeito pensante e sensível.A tendência em direção ao pensamento racionalista, deste modo, ficavaevidente: faziamse tentativas de explicar o mundo com base nos princí-pios da razão humana.

Um dos pressupostos mais importantes da era do iluminismo, e por-tanto também do pensamento moderno, foi o novo conceito de educação. Afilosofia não era mais considerada a serva da teologia (ancilla theologiae). A educação foi libertada da influência da teologia e da metafísica escolás-tica, passando a basearse nas observações da experiência e em princípios

racionais. Deste modo, já no século XVII, aconteceu que o assim chamadosistema natural de conhecimento — baseado na idéia que a erudição hu-manista, a religião e a moral, a lei e a política, podem ser fundamentadasem princípios racionais específicos, comuns aos homens de todas as épocas— começou a desenvolverse. Esse conhecimento natural era consideradocomo sendo autônomo, imediatamente acessível e na íntegra evidente atodos, sem ter sido obscurecido pelo pecado original.

Talvez mais profunda ainda, foi a transformação ocorrida no campodas ciências naturais. Os estudiosos começavam agora a aplicar o métodomecânico matemático e se fundamentavam, mais do que em qualquer épocaanterior, na observação empírica.

Essa nova ciência natural trouxe consigo um quadro do mundo modi-ficado. A investigação empírica do mundo passou a se r de interesse pri-mordial. Foi apenas no século XVIII que a concepção do sistema solarapresentada por Copérnico no século XVI foi geralmente aceita. A terranão era mais considerada o centro de tudo, e o homem, nesta nova pers-pectiva, tornouse apenas um grão de poeira no universo — ao mesmo

tempo que controlava o universo através de sua razão. O conceito aristotélico de forma foi substituído pela explicação mecânicoatomista do mun-do. A vida consiste de espaço inalterável, as co isas são compostas departículas que exercem influência mecânica umas sobre as outras e preen-chem o espaço. Os homens não mais consideravam as formas substanciaiscomo sendo os elementos básicos no edifício do universo; ao invés disso,pensavam somente em termos de entidades materiais. O contraste básicoentre matéria e espírito, sensitivo e suprasensível, foi um dos resultadosdessa explicação mecânica da natureza. Isso não se distanciava apenas da

antiga metafísica escolástica mas também da cosmovisão luterana original(com seu finitum capa infiniti).

Subjacente a essa nova maneira de conceituar o mundo se encon-trava a crença que a razão humana tem competência para observar e con

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trolar seu ambiente, para estabelecer leis para os fatos da vida bem comopara as regras da sociedade humana. Uma explicação racionalista da natu-reza e uma doutrina racionalista de moralidade resultaram dessa nova ati-tude. O iluminismo caracterizouse por sua fé ingênua no homem e emsuas potencialidades.

No campo da  jurisprudência novas idéias foram publicadas por HugoGrotius (m. 1645) e Samuel von Pufendorf (m. 1694), que forneceram a basepara o moderno conceito de direitos naturais. A antiga tradição protestantetambém falava de direitos naturais ou de lei natural. Mas isto se referiaao conhecimento de certo e errado que fora colocado no coração do homemna criação, cujos fracos vestígios tinham permanecido após a queda. Aidéia de lei natural era, pois, integrada no contexto da revelação e no con-ceito bíblico de homem. Os direitos naturais da era do iluminismo eman-ciparamse disto. Baseavamse na crença que princípios de lei específicos

estão engastados na razão humana e que estes formam a base comumpara a administração pública da lei. A moralidade, portanto, baseavasena razão autônoma. Rompeuse assim o elo entre revelação e lei natural.

Modificação semelhante teve lugar no conceito de estado. Enquantoque a tradição luterana considerava a autoridade instituição divina, comis-sionada para ser «o protetor de ambas as tábuas da lei» (custos utriusque tabulae), homens como Tomás Hobbes conceberam a idéia do estado se-cular, baseado na indulgência humana, destinado a promover a salus publica— o bemestar geral. No estado dirigido por um príncipe absolutista, asconsiderações políticas eram colocadas acima das eclesiásticas, perdendoa igreja sua independência. O novo conceito de estado também era baseadonuma fé otimista na razão; acreditavase ser o homem capaz de organizaros problemas políticos de tal maneira que o bem comum seria conseguido.

Passouse longo tempo até o iluminismo começar a influir seriamenteno campo da teologia. Foi apenas na segunda metade do século XVIII quea neologia, ou teologia racionalista, começou a aparecer entre os protes-tantes alemães. Todavia, mesmo antes disso, as transformações gerais no

modo de pensar tinham deixado suas marcas também nesta área.A mais influente das novas idéias introduzidas na teologia do ilumi-

nismo foi o conceito de religião natural. Este foi desenvolvido em primeirolugar no deísmo inglês do século XV II. Em seu livro De veritate (1625)Herberto de Cherbury apresentou a idéia que há uma religião natural, co-mum a todos os homens e independente de revelação, pela qual o homempode tornarse bemaventurado mesmo sem conhecimento da revelação. Con-siderava Cristo um mestre sábio e sobretudo um exemplo de virtudes. Oconteúdo da religião natural era apresentado nas cinco proposições seguin-

tes: Há um Deus, um ser supremo; este ser supremo deve ser cultuado eservido, este culto consiste acima de tudo em piedade e virtude; desviosda virtudo (pecado) exigem arrependimento, e se houver arrependimento,haverá perdão, o mal será punido e o bem será recompensado numa vida

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futura. A idéia que as doutrinas de «Deus, vir tude e imortalidade» formam 

um sumário de religião, muito acalentada durante a era cio iluminismo, já está presente aqui.

Durante o século XVIII, o deísmo aparece em forma mais radical. Isto 

pode ser visto, por exemplo, no conhecido livro de Mateus Tindal Christia

nity as Old as the Creation (1730) (O Cristianismo tão velho como a criação), bem como nos filósofos do iluminismo francês e no racionalismo alemão (por exemplo, nos Fragmentos de Wolfenbiittel, escritos por Reimarus e publicados por Lessing).

 A cultura do iluminismo dist inguia-se por sua crescente secularização.  A nova forma de ciência natural se ocupava com uma explicação imanen- tista do mundo. A cultura secular desenvolv ia-se independente de igreja e 

conf issões. O estado, de modo similar, libertava-se de suas finalidades 

religiosas e de sua conexão com as confissões cristãs.

O processo de secularização, contudo, não implicou na rejeição do 

cristianismo ou da religião, mas trouxe consigo profunda alteração dos pressupostos para a teologia e a pregação cristã.

Essa transformação revelou-se (entre outras coisas) nas seguintes tendências, que exerceram influência na teologia do iluminismo.

1. A teologia tornou-se mais ou menos dependente da filosof ia e do 

pensamento racionalista. Mesmo naquelas exposições em que o autor não desejava ir tão longe a ponto de substituir a revelação pela religião natural, procurando, em lugar disso, ficar totalmente dentro da tradição cristã, não era raro encontrar-se argumentação racional colocada ao lado da revelação, atribuindo-se-lhe o mesmo valor. Em lugar de se exig ir que a razão 

se sujeitasse ao testemunho da Escritura, passou-se a crer fi rmemente que revelação e princípios racionais estão em completa harmonia, além disso, desejava-se justificar a revelação perante o tribunal da razão.

2. Paralelamente à racionalização da teolog ia havia a tendênc ia de 

moralizar. A moralidade é preocupação mais imediata no conceito de vida moderno, racional, do que a religião. Julgava-se que conseguir moralidade elevada era a principal finalidade do cristianismo, e o conteúdo ético sua própria essência.

3. A idéia que a religião se fundamentava em especial em princípios 

racionais fortalecia a concepção individualista: a religião tornou-se assunto 

individual, privado, sua certeza baseava-se nas experiências da própria pessoa.

4. Característica básica da teologia do iluminismo foi a tendência de «humanizar» o cristianismo, de acomodá-lo a uma estrutura antropocêntrica. Esperava-se que a teologia promovesse o bem-estar humano, e procurava-se harmonizar verdade teológica com princípios racionais geralmente aceitos.

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 Ao lado do lati tudinarísmo, que era moderado em sua atitude e se esforçava por manter os elementos essenciais da tradição cristã, o deísmo  radical apareceu em novas formas, desenvolvidas em concordância com as idéias expostas anteriormente por Herberto de Cherbury (cf. acima). O livro publicado por João Toland em 1696, Christianity not Mysterious (O Cristianismo não Misterioso), procurou extrair do cristianismo certos dogmas simples e básicos sobre Deus e a imortalidade, que eram considerados  essenciais e os aspectos racionais do cristianismo. Os elementos «misteriosos» da fé cristã, por sua vez, deveriam ser repudiados. No livro de Mateus Tindal mencionado acima, Christianity as Old as the Creatlon (1730), foi proposta a tese que o evangelho era simplesmente reiteração da religião natural primitiva. Seu conteúdo é essencialmente a proclamação da vida pura e moral, que promove a glória de Deus e a felicidade do homem.   A tese relativa à religião racional foi assim combinada com a idéia que a 

moralidade é o alvo e o objetivo da religião. Esse cris tianismo muti lado, 

que foi extraído dos evangelhos, dizia-se ser idêntico à religião natural da razão e, portanto, a forma de religião melhor aparelhada para estimular a moralidade e a felicidade.

Entre os que combateram os deístas encontrava-se José Butler (16921752, bispo de Durham), que publicou sua famosa obra apologética, The Analogy of Religion, Natural and Revealed, to the Constitution and Course of Nature (A Analogia da Religião, Natural e Revelada, à Constituição e ao 

Curso da Natureza), em 1736. A analogia de Butler pressupunha a fé num supremo Criador do mundo. Não se dir igia, pois, contra o ateísmo, mas 

procurava manifestar a probabilidade da fé e sua concordância com a razão  

para os que já reconheciam Deus como criador. Em oposição aos deístas, Butler afirmou a necessidade da revelação; a religião natural de maneira 

alguma tornaria a revelação supérflua.

O principal argumento na parte do livro de Butler que trata da religião 

revelada é este: Se admit imos que a Escritura veio até nós da parte do 

Deus, que é o Criador da natureza, então podemos esperar encontrar nas verdades da fé algo da mesma espécie — e bem tão difícil de explicar em 

sua totalidade — daquilo que encontramos na esfera natural. Isto é o que 

Butler denominou analogia entre relig ião e o mundo da natureza. Não sugeriu que tal analogia possa ser encontrada em toda parte; os exemplos  

são no máximo esporádicos. Mas para ele isso era o suf ic iente. Não podemos esperar obter prova exata para as reivindicações da fé. A probabilidade é o alvo mais elevado que podemos alcançar neste sentido, e a demonstração da probabilidade é o que Butler procurou estabelecer através 

de pormenorizada prova da analogia que existe entre natureza e religião.  Aproximava-se de vár ios modos da posição deísta quanto à afinidade entre religião natural e cristianismo, mas diversamente dos deístas desejava defender também a revelação cristã específica.

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Um dos principais pontos referiase à doutrina da expiação. Os deístasconsideravam a expiação supérflua, uma vez que a miseriçórdia de Deusdeveria ser suficiente já por si para perdoar os pecados dos que se arre-pendem. Mas Butler afirmava ser o sofrimento substitutivo de Cristo ofundamento para o perdão, e demonstrou que se pode encontrar analogias

para isto no mundo que nos cerca. A crítica de Butler ao deísmo não dei-xava de ter suas contradições, mas podese notar em sua obras os con-tornos de novo conceito de revelação. Durante o século X IX , a influênciade Butler sobre a teologia inglesa foi maior ainda do que no tempo emque vivia.

O conflito contra o deísmo ocupou lugar importante na teologia in-glesa do século XV III. Cedo, no entanto, foi eclipsado por outro fator —o progresso vitorioso do movimento metodista, iniciado no final da décadade 1730. Este não é o lugar para se descrever a história do metodismo, ou

seu efeito sobre a igreja e a sociedade; analisaremos apenas seus contor-nos teológicos.

João Wesley (170391) era sacerdote da igreja estatal da Inglaterra,e cedo tornouse um dos líderes de um movimento da «igreja alta» (highchurch) na universidade de Oxford. Do lado materno também tinha cone-xões com a tradição latitudinária (broad church) e com a sociniana; alémdisso, durante o período de dois anos em que serviu como missionáriona colônia da Geórgia, entrara em contato direto com o ponto de vista dos

irmãos de Herrnhut, sendo influenciado por ele. Como resultado de suaassociação com o herrnhutismo, Wesley convenceuse que a confiança nosméritos de Cristo constitui a base única para a salvação, doutrina que en-controu confirmada nas homilias publicadas dentro da Igreja da Inglaterrana época da Reforma. Sua conversão (1738), que serviu de ponto de par-tida para o avivamento metodista foi descrita por Wesley como a certezarepentinamente despertada do perdão dos pecados pela fé em Cristo tãosomente. Isto ocorreu sob o impacto do Prefácio aos Romanos, de Lutero.Carlos, o irmão de João, experimentara conversão semelhante, suscitada por

seu estudo do comentário sobre Gálatas , de Lutero.A justificação apenas pela fé era o ponto central da pregação de João

Wes ley após sua conversão . Rompeu, por conseguinte, com a idéia predo-minante então na teologia anglicana, a saber, que as boas obras são oalvo da fé, e qualificação necessária para a salvação. Os clérigos da épocade Wesley em geral não estavam a par da doutrina da justificação apenaspela fé. Wesley insistia que a santificação não deve ser confundida coma justificação. É fruto da fé. É característico do metodismo que o novonascimento não é atribuído ao batismo mas à justificação, que se associa

à conversão ou ao despertamento consciente da fé.Wesley procurou evitar controvérsias por tanto tempo quanto possível.

Toda sua mensagem se destinava a levar as pessoas a vidas de fé ativae santidade. É natural, portanto, que seu interesse em controvérsia dou-

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trinária fosse mínimo. Apesar disso, no entanto, várias diferenças de opiniãoprofundas gradualmente surgiram^ mesmo dentro do metodismo. Wesleysubseqüentemente desenvolveu a doutrina de fé e obras numa direção queo afastou mais do ponto de vista da Reforma e o aproximou da concepçãoinglesa corrente. Mantinha que as obras são a condição necessária para

a justificação . Como resultado disto, entrou em conflito com os calvinistasconservadores, que mantinham serem os méritos de Cristo a única basepara a salvação humana.

A doutrina da predestinação também tornouse foco de controvérsia.Wesley proclamou a graça universal à moda arminiana e veementementeopôsse à idéia da eleição divina para a condenação. George Whitefield,que juntamente com os irmãos Wesley encontrase entre os mais desta-cados líderes do movimento metodista, seguia a tradição calvinista rígidae pregava a dupla predestinação Devido a estas opiniões contraditórias, o

metodismo dividiuse em duas facções.O metodismo parecia apresentar o maior contraste com o pensamento

teológico em geral do iluminismo com seu interesse expresso em argumen-tos racionais e a harmoniosa combinação de filosofia e religião. O meto-dismo respondia as questões levantadas pelo deísmo de forma completa-mente diversa, por exemplo, da analogia desapaixonada de Butler. Mas

 justamente em sua reação contra o racionalismo, o metodismo não estavainteiramente alheio ao desenvolvimento geral do pensamento na Igreja da

Inglaterra na era do iluminismo.

TEOLOG IA DE TRANSIÇÃO

Esta designação é empregada para agrupar os teólogos alemães, daprimeira parte do século XVIII, que combinaram uma atitude conservadoraface à antiga tradição luterana com a posição filosófica da parte inicial doiluminismo e a teologia do pietismo. Em contraste com os pietistas típicos,

esses homens se interessavam profundamente pela teologia sistemática ehistórica, e fizeram contribuições significativas nestes setores.

João Francisco Buddeus (m. 1729, professor em Halle e Jena) tambémera filósofo e procurou, em vários compêndios de grande aceitação, substi-tuir a filosofia esco lástica de Aristóteles por uma filosofia «eclética». Bud-deus salientava especialmente o uso prático do conhecimento; a metafísicaera limitada à explicação de certos conceitos úteis à teologia; evidenciaseuma atitude empírica em suas obras. Paralfejos podem ser encontrados nosescritos de Cristianio Thomasius (m. 1728, professor em Halle), que foi o

primeiro a dar expressão filosófica ao espírito da nova era.Na teologia de Buddeus (cf.  Institutiones theologiae dogmaticae, 1723),

a tradição luterana ortodoxa era permeada pelo novo fermento. Fins prá-ticos eram salientados energicamente: o alvo da teologia era considerado

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como sendo a apresentação daquilo que o homem pecador deve saber parase r salvo. A religião natural era colocada ao lado da reve lação; julgavaseque no recôndito da alma humana havia a capacidade de perceber e co-nhecer a Deus como o bem supremo. Mesmo a verdade da revelação deveser legitimada perante esse conhecimento natural de Deus (que não é ape-

nas teórico mas sobretudo prático, volitivo). A revelação não pode conterqualquer coisa contrária à religião natural; pode apenas suplementála.

Buddeus procurou entender a teologia de modo empíricohistórico.Foi o primeiro a escrever a história do período do Antigo Testamento e daera apostólica. Um de seus mais destacados d iscípulos nesta área foi JoãoGeorge Walch, conhecido como historiador da igreja e editor das obrasde Lutero.

Outros «teólogos de transição» também devem ser mencionados. C ris-

tóvão Mateus Pfaff (m. 1760, professor em Tübingen e Giessen) foi influ-enciado tanto pelo pietismo como pelo conceito deísta de religião natural,perante a qual a revelação deve se r legitimada. João Lourenço von Mosheim(m. 1755, professor em Helmstedt e Gõttingen) aplicou as novas idéias cien-tíficas ao campo da teologia. Sua obra Institutiones historiae ecclesiasticaeNovi Testamenti (1726 e 1737) tratava a história da igreja do ponto de vistada história secular. A mesma perspectiva histórica é aplicada à Bíblia, cujasverdades devem ser apresentadas cientificamente pelos dogmáticos.

WOLFFIANISMO TEOLÓG ICO

Cristiano Wolff (m. 1754, professor de matemática e posteriormentetambém de filosofia em Halle e Marburgo) procurou edificar um sistema defilosofia esco lástica racional usando a matemática como modelo. Estruturasua metafísica não só com base na lei da contradição (a mesma coisa nãopode ser e deixar de ser ao mesmo tempo) mas também fundamentouseno «princípio da razão suficiente» de Leibnitz («Tudo o que existe deve pos-suir uma base racional suficiente.») «Nada existe sem uma base racional

suficiente». Enquanto a filosofia escolástica anterior tratava da diversidadede existência de modo mais empírico, o assim chamado método de demons-tração visava descrever as coisas de maneira tal que um atributo seria de-rivado de outro em relação estritamente lógica. A educação deve basearseem conceitos claros e específicos; nada deve ser apresentado sem prova— este era um dos princípios básicos de Wolff.

Quando comparado com a teologia de transição, o wolffianismo re-presenta um retorno a uma posição mais objetiva. Independentemente deobjetivos práticos e experiências subjetivas, a teologia, dizia Wolff, forma

um sistema logicamente conseqüente, sujeito à argumentação racional. Estafilosofia influenciou fortemente a atividade teológica por vários decênios apartir da década de 1720 e também estabeleceu os padrões para a edu-cação de sua época. Os pietistas e outros opunhamse às idéias de Wolff 

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por consideraremnas perigosa forma de racionalismo, mas outros julgaramque forneciam a solução para o problema da educação mesmo no campoda teologia.

Entre os que procuraram aplicar o método de Wolff no campo dadogmática encontramse Israel Gottlieb Canz (m. 1753, professor em Tübin-

gen) e Jacó Carpov (m. 1768; Theologia revelata methodo scientifica adornata, 173765).

Um dos mais notáveis expoentes da teologia sistemática de meadosdo século XVIII, Sigmundo Jacó Baumgarten (m. 1757, professor em Halle),foi profundamente influenciado pelo wolffianismo mas ao mesmo tempo con-tinuou dentro da tradição derivada da ortodoxia e do pietismo. Sua obraEvangelische Glaubenslehre (175969), a primeira grande dogmática escritaem língua alemã, caracterizavase por sóbria racionalidade e escrupulosadivisão lógica do material. Aceitava pacificamente a harmonia entre razão

e revelação; o próprio conhecimento natural de Deus que possuímos nosconduz à idéia de revelação especial, e as provas racionais para a verdadeda Escritura nos convencem que a Bíblia é a fonte desta revelação. Oconteúdo da Escritu ra complementa a religião natural. Baumgarten insistiaem fazer investigação científica livre. Colocava-se em  posição intermediá-ria entre a tradição anterior do século XVIII e a neologia propriamente dita,para a qual preparou o caminho em certos sentidos — sem, contudo, pre-tender desviarse da doutrina luterana pura.

NEOLOGIA

Este termo designa .aquela etapa no desenvolvimento teológico daera do iluminismo em que o deísmo inglês conseguiu estabelecer uma ca-beça de ponte na vida cultural da Alemanha, quando idéias típicas do ilu-minismo começaram a infiltrarse na teologia protestante.

Enquanto que o wolffianismo pretendia defender a doutrina tradicionalda igreja com o auxílio da razão, a neologia representa a transição a uma

consciente crítica dos dogmas. As doutrinas do pecado original e da Trin-dade, além da crístologia da teologia tradicional, foram rejeitadas com ênfaseespecial. Es tes dogmas foram atacados com o emprego do método histó-rico, cuja aplicação agora principiava. Os dogmas cristãos eram conside-rados como fator variável introduzido no desenvolvimento histórico. Emvista disso, julgavase se r seu conteúdo relativo. Era submetido à perspec-tiva histórica, que levou à separação entre dogma e a teologia contempo-rânea.

Talvez a modificação de maior alcance foi o emprego do ponto devista histórico no estudo da Escritura. A Bíblia foi inserida no esquema dodesenvolvimento humano. O Antigo Testamento foi separado do Novo Tes-tamento como algo pertencente a um nível inferior. O conteúdo da Bíbliafoi exposto à crítica com base em normas modernas.

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Tanto o wolffianismo como a neologia mantinham a necessidade darevelação. Mas enquanto aquele em geral aceitava os dogmas (tendoosrelacionado com o pensamento lógico, matemático), a neologia partia de umconceito ampliado de razão. A ênfase principal recaía no sentimento (das Gemüt) e na consciência moral. Julgavase que o conceito de razão incluía

também estas facetas do espírito humano. A religião era avaliada de acor-do com seus benefícios práticos e conforme a «necessidade espiritual».Consideravamse os dogmas pouco ou nada eficientes, ou mesmo preju-diciais à moral. Como resultado, foram reduzidos ou reinterpretados consi-deravelmente.

O «psicologismo moralista» da neologia ia de mãos dadas com umconceito otimista do homem. Pensavase ser a doutrina do pecado originalcontrária à idéia do valor humano. Não houve queda em pecado. O homemdeve ser despertado para a compreensão de sua bondade inerente. A dou-

trina da Trindade e a cristologia tradicional também foram expostas à críticaradical. Cristo não era considerado Filho de Deus; em lugar disso se diziaque era o Salvador enviado pelo Pai. Todas as referências à expiação eà satisfação eram omitidas; supunhase ser o Espírito apenas um poder pa-ra fazer o bem.

O mais destacado dos neólogos foi João Frederico Guilherme Jerusa-lém (m. 1789). Já em 1745 criticava a doutrina do pecado original do púlpito,e gradualmente desenvolveu uma posição em que defendia as idéias men-

cionadas acima. Finalmente publicou sua posição num livro intitulado Observações sobre as Principais Verdades da Religião (176979). Outros neólo-gos incluiam João Joaquim Spalding (m. 1804), João Gottlieb Toellner (m.1774), e João Cristóvão Dõderlein (m. 1792).

A neologia deve ser distinguida do naturalismo, que correspondia aodeísmo inglês. Tal como os deístas, os naturalistas punham em dúvida anecessidade da revelação e desejavam substituíla pela religião natural.

Embora os elementos essenciais da neologia fossem derivados de fon-

tes anteriores, ainda assim ela merece seu nome: «a nova doutrina», poisfoi nesta escola que o espírito moderno chegou a expressarse como posi-ção teológica plenamente desenvolvida. A partir desse momento é possívelfalar do «novo protestantismo» como força dominante em contraste com o«antigo protestantismo».

João Salomão Semler (m. 1791, professor em Halle) foi outro lideieminente dessa esco la. Muito fez para promover o desenvolvimento da teo-logia através da aplicação do método histórico, tanto à Bíblia como à his-

tória do dogma. Em alguns pontos, entretanto, criticava as novas idéias,opunhase categoricamente ao naturalismo de Carlos Frederico Bahrdt eGermano Samuel Reimarus. Semler aproximavase mais de Baumgarten eprocurava (apesar de suas novas idéias radicais) manter uma conexão como antigo luteranismo. Realmente, acreditava poder citar Lutero para apoiar

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sua posição. Em vista de sua atitude mediadora, sua posição é, em muitossentidos, obscura e contraditória.

A principal contribuição de Semler foi sua aplicação do método históricocrítico. Era seu desejo renovar a teologia e libertála das cadeiasdos dogmas com base numa crítica sem preconceitos. Para Semler, a pers-

pectiva histórica era o meio de libertar a teologia dos dogmas.Foi Semler quem lançou os fundamentos para a história do dogma

como disciplina separada. Também foi um dos primeiros críticos bíblicos,uma vez que aplicou o método crítico de pesquisa histórica à Escritura.Presumiu haver diferença nítida entre o Antigo e o Novo Testamento. Paraele, o cânone era simplesmente a coleção dos escritos que a igreja aceitara.Não reconhecia qualquer autoridade canônica original. O conteúdo da Es-critura devia se r julgado por padrões moralistas. A assim chamada críticaliterária do Novo Testamento encontra sua origem nas pesquisas de Semler

— por exemplo, seu exame da linguagem da literatura joanina.A fim de explicar a falta de concordância entre o Novo Testamento

e a religião moralista que usava como critério básico, Semler presumiu queJesus e os apóstolos se adaptaram conscientemente às idéias de seu tem-po (a assim chamada teoria da acomodação). O cristianismo pode e deve,portanto, se r desenvolvido acima e além da posição bíblica, o que constituisua «capacidade de aperfeiçoamento». A revelação não coincide com aEscritura. O que é essencial nela são as verdades básicas que dizem res-

peito diretamente ao aperfeiçoamento moral dos homens e podem produzirresultados éticos (Deus como Pai, Jesus como mestre, e o Espírito Santocomo a fonte do novo caráter).

A tentativa de Semler de apresentar as novas idéias sem rejeitar porinteiro a tradição antiga expressouse na distinção que fez entre teologiae religião, e entre religião privada e pública. Não justapôs a teologia coma doutrina bíblica ou com o conteúdo da revelação, como fora feito ante-riormente; para ele, a teologia era meramente o conhecimento de fatos queos professores de teologia discutem. A teologia, portanto, é consideração

humana, histórica, mutável em seu conteúdo, dependendo de tempo, lugare partido religioso. Em contraste com a teologia existe a religião, que sig-nifica a piedade viva que coincide com a consciência religiosa universal,mas que, ao mesmo tempo, se baseia na revelação cristã. Face à religião,a teologia tem função históricocrítica . A relação íntima entre teologia e afé da igreja, que caracterizava a tradição mais antiga, foi substituída porSemler por uma linha de demarcação nítida.

Semler também distinguia entre religião privada e pública. Enquanto

que o indivíduo deve concretizar seus próprios sentimentos religiosos (deacordo com sua consciência moral), a sociedade, por causa da ordem pú-blica e da praxe religiosa uniforme, deve adotar certas confissões ou certasdoutrinas, que não correspondem inteiramente às intenções da piedade in-dividual.

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Tal como Semler o descrevia, o desenvolvimento da teologia não éuma repentina derrubada das posições anteriores, mas a cautelosa reformae o gradual aperfeiçoamento das mesmas.

Apesar da falta de clareza característica da posição de Semler, suasidéias tiveram importância extraordinária para os desenvolvimentos subse-

qüentes. Frederico Schleiermacher (cf. abaixo) foi, em muitos sentidos, oprincipal herdeiro de Semler. Foi ele, por exemplo, quem perpetuou a idéiado desenvolvimento doutrinário da doutrina da igreja. Semler e Schleier-macher também eram aliados (e da neologia em geral) em sua negaçãoda autoridade da Escritura no sentido anterior, em sua crítica dos dogmas,bem como em sua análise subjetiva da religião.

João Augusto Ernesti (m. 1781, professor em Leipzig) foi mais con-servador do que Sem ler. Suas principais contribuições foram feitas no cam-

po da hermenêutica. Era convicção sua que a interpretação históricogramatical da Escritura deveria formar a base para a atividade teológica. Ainterpretação da Bíblia foi, por ele, colocada no nível das outras interpre-tações . O trabalho no campo da filosofia formava o ponto de partida. Oalvo de Ernesti era uma exegese livre de dogmas. Não reconhecia a exi-gência do pietismo concernente à piedade pessoal do intérprete. Apesarde sua atitude conservadora, Ernesti fazia objeções à teologia tradicional,e rejeitava (entre outras coisas) a doutrina ortodoxa sobre os três ofíciosde Cristo.

O RACIONALISMO E O SUPERNATURALISMO

Toda a posição da era do iluminismo é, às vezes, denominada racionalismo, mas isto é generalização um tanto falha, uma vez que o problemade revelação e razão foi resolvido de muitas maneiras diferentes dentro devários movimentos neste período. É mais apropriado, pois, reservar a de-signação «racionalismo» para o conceito que sustentava que a religião re-

velada inclui uma religião baseada inteiramente na razão e que gradual-mente se desenvolve até chegar a ela. (Diferentemente do deísmo, o racio-nalismo não ignorava a herança cristã por inteiro.) Ta is idéias racionalistasforam expressas na década de 1770 por Gotthold Efraim Lessing (m. 1781).Eram características de sua oposição tanto à ortodoxia como à neologia.Pois também a neologia acreditava que as proposições de religião naturaleram  garantidas pela revelação, enquanto que Lessing considerava a reve-lação como etapa ultrapassada: seu conteúdo podia ser transformado emverdade racional. Em vista disso^ também se opunha à neologia.

O racionalismo teológico em forma refinada também se encontra nolivro de Immanuel Kant (m. 1804): Religion innerhalb der Grenzen derblossen Vernunft, 1793). De acordo com a própria caracterização de Kant,o racionalismo é diferente do naturalismo (deísmo radical) pois não nega a

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revelação. Insiste, contudo, que a religião moralista da razão é a única re-ligião necessária. O aspecto mais importante da experiência religiosa é amodificação no caráter por cujo intermédio o «mal radical» no homem é der-rotado e o bem é trazido à tona. Isto acontece através de punição e arre-pendimento. A igreja, o cristianismo, pode fornecer o impulso que conduz

a tal salvação. Seus ensinamentos devem ser interpretados de acordo comidéias morais, que são as únicas universais e congruentes com a religiãoda razão. Kant rompeu com o eudemonismo do iluminismo: colocou emprimeiro lugar a exigência ética absoluta, não a felicidade. Por outro, man-teve sua doutrina pelagiana de salvação e seu conceito moralista de reli-gião. A ênfase deísta em Deus, virtude e imortalidade tinha seu lugar bemdefinido nessa teoria.

O mais notável dogmático do racionalismo foi Júlio Augusto LuísWegscheider (Institutiones theologiae Christianae , 1815). Ou rejeitava ou

deturpava os ensinamentos básicos do cristianismo; milagres, bem comotudo o que fosse sobrenatural, eram rejeitados; a conversão era concebi-da em sentido pelagiano, os sacramentos eram interpretados simbolica-mente. Wegscheider explicava a ressurreição de Cristo como despertamento de «morte aparente», e afirmava que a morte de Cristo simboliza o fatoque os sacrifícios cessaram . Não aceitava a expiação, e mantinha que aascensão era conto de fadas. O conceito de pecado original era rejeitadocomo ilusão sombria, o arrependimento supunhase ser obra do próprio ho-mem, o batismo era classificado como cerimônia de dedicação, a ceia doSenhor como festa memorial. Carlos Gottlieb Bretschneider se situava maispróximo das doutrinas da igreja (cf. seu Handbuch der christlichen Dogma-tik, 1814).

O racionalismo sofreu oposição decidida da parte do supematuralismo, que se fundamentava na necessidade de revelação e da autoridade daEscritura. Tal como o nome o expressa, havia os que desejavam defendero sobrenatural, aquilo que a razão não pode compreender no cristianismo.Todavia, tanto o racionalismo como o supernaturalismo tinham esta caracte-

rística em comum: um conceito intelectualista de religião. A substância dareligião era apresentada em termos de proposições doutrinárias, algumasdas quais descobertas pela razão humana, e outras que só foram dadasatravés da revelação. Também o supernaturalismo se caracterizava por só-bria racionalidade. Faziamse tentativas de provar a credibilidade da Es-critura e de defender o conteúdo da revelação com base em argumentaçãoracional. Representantes dessa linha de pensamento incluíam Gottlob Cristiano Storr (m. 1805, ativo em Tübingen) e Francisco Volkmar Reinhard (m.1812).

O contraste entre o racionalismo e o supernaturalismo — entre osquais havia várias tendências intermediárias — foi eliminado como conse-qüência do novo conceito de religião de Schleiermacher. A influência doromantismo, com seu novo sentido do histórico na religião, além de seu

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interesse no imediato e no transcendental, também contribuíram para o mes-mo resultado. Quando os homens deixaram de pensar na religião como co-leção de doutrinas, e passaram, em vez disso, a considerála elemento davida pessoal da alma, a alternativa entre racionalismo e supernaturalismonão era mais relevante, pois ambos podiam ser integrados num ponto de

vista uniforme. A religião não era mais considerada em termos de mora-lidade e metafísica mas como manifestação independente da vida espiritualdo homem.

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CAPÍTULO 33

CORRENTES TEOLÓGICAS DO SÉCULO XIX

SCHLE IERMACHER

Frederico Schleiermacher (m. 1834, professor em Berlim a partir de1810) foi educado em ambiente moraviano, mas rompeu com a fé dos ir-mãos de Herrnhut quando tinha 19 anos. Em seus primeiros escritos , so-bretudo em suas famosas Reden über die Religion an die Gebildeten unter

ihren Verächtern, 1800 (Discursos sobre a Religião às Pessoas Cultas en-tre seus Desdenhadores), associouse com o romantismo e deu expressãoa seus sentimentos recém despertados para o elemento religioso.

Uma das maiores contribuições de Schleiermacher à história da teo-logia foi sua tentativa de descrever o caráter distintivo da religião comofunção da alma humana. Em oposição ao racionalismo, afirmou em suasReden que a religião não consiste dos elementos intelectuais ou moralis-tas; referese, em lugar disso, a uma área independente na vida do espí-

rito. Religião não é conhecer ou fazer, mas «a consciência imediata daexistência universal de todas as coisas finitas dentro do infinito e atravésdo infinito, de todas as coisas temporais dentro do eterno e através doeterno» (das unmittelbare Bewusstsein von dem allgemeinen Sein alles End-lichen im Unendlichen und durch das Unendliche, alles Zeitlichen im Ewigenund durch das Ewige). Definiu a religião nas Reden como «intuição douniverso». Na consciência imediata da unidade com tudo o que existe , ohomem experimenta o divino. A idéia de Deus, portanto, coincide com osentimento da unidade universal e da identidade com o infinito. Sch le ier-

macher pressupunha encontrarse este sentimento de modo inerente na al-ma humana.

Em Der Christliche Glaube (A Fé Cristã 182022), a obra mais impor-tante de Schleiermacher no campo da dogmática, a religião era definidacomo o «sentimento absoluto de dependência» (das schlechthinige Abhängig-keitsgefühl). A palavra «sentimento» (Gefühl) não era usada no sentido co-mum neste contexto, mas referiase a algo que faz parte da autoconsciên-cia imediata. O homem sente que é absolutamente dependente do infinito.Nisto reside a religião — e é este sentimento de dependência que carac-teriza o homem como espírito.

Seria errôneo considerar este conceito de religião puramente subje-tivo. Schleiermacher procurava, neste contexto, eliminar o contraste entreo subjetivo e o objetivo: o que é mais especificamente humano coincide

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exposição especulativa da ciência racional que encontra seu paralelo naciência natural. A descrição concreta das religiões da humanidade é for-necida na filosofia da religião. A teologia, a ciência necessária para guiara igreja, se divide em filosófica, prática e histórica. A primeira destas (quepor sua vez é dividida em apologética e polêmica) se destina a apresentar

a essênc ia e a originalidade do cristianismo. A dogmática que está incluídana teologia histónca, descreve a fé cristã tal como aparece em certa épocaou em certo grupo eclesiástico.

tm Der Christliche Glaube (182022, 2a. ed. 1830), encontramos a ex-posição da doutrina evangélica do próprio Schleiermacher. As idéias ca-racterísticas do livro, que marcaram época em seu tempo, devem ser aquiconsideradas sob vários itens:

1. Na doutrina de Deus, Schleiermacher geralmente concordava com

os pressupostos filosóficos. Estar consciente de Deus implica em devotaautoconsciência. Sentir que se é absolutamente dependente é o mesmoque estar consciente de se encontrar numa relação com Deus (4). Nessaautoconsciência imediata o ser de Deus coincide com o próprio ser dohomem. A questão da existência de Deus tornase irrelevante. A dogmá-tica só precisa tomar em consideração o estar consciente de Deus, quecoincide com a devota autoconsciência.

As doutrinas da criação e da preservação são tratadas de maneiracorrespondente como expressões que mostram que Deus e o contexto na-tural são um. O mundo é absolutamente dependente de Deus. Isto estáimplícito na idéia da criação que, em vista disso, não se refere a um fatoacontecido no tempo. A doutrina da providência expressa esta r o homemconsciente de que sua dependência da natureza coincide com sua depen-dência de Deus. Os conceitos de intervenção divina, milagres ou reve la-ção, no verdadeiro sentido do termo, foram rejeitados. Como já se indicouem outro contexto, essa idéia de criação não pode ser combinada com aidéia de um poder espiritual mau. Como resultado, nenhuma realidade ou

influência pode ser atribuída ao diabo.2. A doutrina cristã do pecado também causou dificuldades a Schle ier-

macher. O pecado é relacionado com o sentimento de desconforto mentalsempre presente quando se está devotamente consciente de Deus, por seristo dificultado pela sensualidade. O pecado pode, pois, se r descrito comoa carne em oposição ao espírito; é este conflito que dificulta a consciên-cia de Deus. Por outro lado, a idéia que o pecado é transgressão da leidivina foi rejeitada. Schleiermacher não situava o pecado no campo davontade mas no dos sentimentos piedosos. Não se pode falar de queda

ou dizer que o pecado originouse numa ação voluntária . Presumia que opecado estivesse no homem desde sua origem. Está implícito no fato queo sentimento de dependência ainda não é completo. O conceito de pecadooriginal foi repudiado como sendo inadequado. Schleiermacher concebeu

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o pecado original em termos da pecaminosidade ou incapacidade de fazero bem, comum à humanidade desde a sua origem.

O conceito de pecado perdeu seu caráter ético na teologia deSchleiermacher. Considerava o pecado não apenas algo mau mas algoincluído na consciência de Deus — o pressuposto indispensável para sesentir a necessidade de salvação e deste modo também para o desenvol-vimento do bem. Eliminase, assim , o contraste entre Deus e o pecado.Schleiermacher supunha fazer parte do próprio plano de Deus o fato quea consciência do pecado devia preceder a salvação . O pecado é a natu-reza não desenvolvida. Não é contrário à criação; faz parte dela. A idéiado pecado de Schleiermacher representa uma tentativa de harmonizar oconceito cristão com a concepção monista do mundo que era seu pontode partida.

3. Schleiermacher descrevia a salvação como a transição a umaconsciência superior de Deus, não dificultada pela sensualidade, que podese r alcançada na congregação cristã pela fé em Jesus Cristo. Jesus tinhaperfeita consciência de Deus, cujo poder e cuja bemaventurança ele trans-mite à natureza humana. Cristo é o segundo Adão, o protótipo da novahumanidade. Sua consciência plena de Deus indica que a criação atingiuseu objetivo. Desde o início a natureza humana se inclinara para esta uniãocom Deus, mas ela não fora atingida por causa da presença do pecado noshomens. A influência exercida sobre os homens pela pessoa de Cristo é

da mesma espécie que outro poder espiritual qualquer. Portanto, não sepode falar em expiação no sentido próprio do termo. (Schleiermacher real-mente usou a palavra Versöhnung, mas com sentido completamente dife-rente; referiase particularmente à bemaventurança outorgada por Cristo.)A obra de Cristo — ou seu sofrimento, morte e ressurreição — nada signi-fica para a salvação, mas apenas sua pessoa, que representa a perfeitaconsciência de Deus. Nem tampouco o perdão dos pecados era conside-rado a essência da salvação; a única coisa que importa é a transformaçãodo homem com o subseqüente aperfeiçoamento de seus sentimentos reli-

giosos. Não se pode atribuir qualquer significado ao sofrimento de Cristona cruz nesse contexto. A história da paixão serve apenas como exemploe ilustração da perseverança em meio ao sofrimento. Schleiermacher con-siderava a ressu rreição como despertamento de morte aparente, e se re-feria à ascensão como a verdadeira morte de Cristo. A salvação só serefere a «Deus estar em Cristo» (das Sein Gottes in Christo) e ao impactopóstumo de sua pessoa — não à morte e à ressurreição.

4. Na cristologia de Schleiermacher encontramos uma projeção de

seu conceito geral das relações entre Deus e os homens. A união do di-vino com o humano recebeu sua expressão perfeita na pessoa de Cristo.A pessoa de Cristo certamente significa um aperfeiçoamento em relação àhumanidade anterior à sua época, mas ao mesmo tempo representa apenaso desenvolvimento mais elevado do que é humano. A criação e a salvação

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doutrina é aquela que consegue manterse através de desenvolvimento. Jáse disse que Schleiermacher substituiu o princípio escriturístico pelo «prin-cípio evolutivo da tradição». A consciência da fé que existe na igreja é aautoridade final. A Bíblia é colocada no mesmo nível da tradição cristã,embora goze de prioridade cronológica e realmente contenha a mais signi-

ficativa descrição da experiência religiosa.A autoridade da Escritura não pode servir de base para a fé; supõe,em lugar disso, que a fé já esteja presente. A idéia de ser a Escritura evi-dente por si mesma, ou que a Palavra tenha a capacidade de criar a fé foieliminada.

Revelação, nesse contexto, tornouse sinônimo de devota autocons-ciência, que indica a presença de Deus no homem.

O conceito geral de religião foi, desse modo, colocado acima da Es-critura e da Palavra. O emprego de provas escriturísticas na dogmática sóé justificado se isto significa que certa posição doutrinária se destaca comoexpressão legítima da piedade cristã.

O sistema teológico de Schleiermacher representa uma profunda trans-formação da dogmática tradicional. Foi a tentativa de lançar novos funda-mentos para a ciência da teologia. Como resultado dos esforços de Schleier-macher, a teologia começou a ser considerada uma ciência, situada no mes-mo nível dos ramos secu lares de conhecimento. A dogmática tornouseuma exposição histórica descritiva da devota autoconsciência cristã. Em

oposição ao racionalismo e ao supernaturalismo, a religião era descrita co-mo esfera distinta ao lado das esferas intelectual e moral. Afirmações teo-lógicas, como expressões de sentimento religioso, possuem seu caráterpróprio.

Mas mesmo que Schleiermacher tenha conduzido a teologia a umlugar de destaque na cultura de sua época e tenha descoberto novos meiospara resolver seus problemas técnicos, seu sistema de doutrina — julgadopuramente com base em seu conteúdo — era essencialmente alheio à dou-trina evangélica da fé. Sua dogmática, baseada como estava sobre a teoria

de autoconsciência imediata como fundamento da religião, na realidade con-duziu a um sistema gnóstico, monista, cuja conexão com o cristianismo his-tórico não impediu a reinterpretação e deturpação de elementos essenciaisda fé cristã.

Embora Schleiermacher tivesse poucos discípulos pessoais, o signi-ficado de sua teologia foi extraordinário, não apenas no século XIX (emque várias escolas teológicas foram influenciadas por ele em grau maiorou menor), mas também em nosso século.

Crítica profunda, mas por vezes inadequada, da posição de Schleier-macher partiu dos teólogos dialéticos (Barth, Brunner), que tentaram rom-per com toda a tradição da qual ele fora o fundador e principal represen-tante.

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HEG EL E A TEOLOGIA ESPECU LAT IVA

George Guilherme Frederico Hegel (m. 1831, professor em Berlim apartir de 1818), o mais influente filósofo idealista alemão, também desem-

penhou papel de destaque na história da teologia em virtude de seus prin-cípios religiosos e filosóficos, e de seu enorme impacto sobre a teologiae sobre a pesquisa histórica do século XIX.

Hegel voltouse contra Schleiermacher e os românticos, para os quaisa religião se manifestava como intuição imediata e sentimento do absoluto.Segundo Hegel, a religião (como a vida da mente em geral) aparece sobre-tudo na forma dos pensamentos ou conceitos humanos. Sentir é forma in-fer ior de consciência, enquanto que o raciocínio — que distingue o homemdos animais — é a forma mais elevada. «Se Deus se revela ao homem, ele

o faz essencialmente ao homem como se r pensante . . . os animais não têmreligião.» O sistema de Hegel abria espaço para os aspectos eruditos eespeculativos da teologia. A diferença entre ele e Schleiermacher pode serexplicada em parte pelas origens religiosas diversas dos dois: pois enquantoSchleiermacher viera do ambiente «Herrnhut», Hegel fora criado numa es-fera em que dominava o «antigo protestantismo» (na Suábia).

Para Hegel, conceito ou pensamento científico coincide com a reali-dade. A verdade se encontra no sistema que exp ressa os pensamentos que,

tendo sido contemplados, tornamse conscientes de si mesmos. Isto é tam-bém denominado Der Geist — o espírito. O espírito é o absoluto, a únicarealidade.

A realidade ideal, de acordo com Hegel, não é uma forma estáticado mundo como no idealismo platônico, mas uma que também inclui a rea-lidade espacial e o desenvolvimento histórico. Era caracter ístico de Hegelintroduzir o desenvolvimento histórico em seu sistema — e foi talvez estasua mais importante contribuição filosófica,

O absoluto, a verdadeira realidade e o conhecimento plenamente de-

senvolvido sempre incluem uma progressão que Hegel supunha ser de tipodialético, lógico, ao mesmo tempo que também a julgava ser transformaçãohistórica. Em vista d isso, Hegel baseou seu sistema no assim chamado mé-todo dialético: cada conceito aponta além de si mesmo a outro conceitocontrário; resolvendose a oposição numa unidade mais elevada. Essa pro-gressão (de tese à antítese e à síntese) constitui o esquema para o de-senvolvimento das idéias bem como para o curso da história. Tambémfornece a base para o sistema universal em que Hegel procurou sintetizartanto o conhecimento como a realidade.

O absolúto aparece como pura concepção. É isso que constitui alógica, a primeira parte da filosofia. Mas o absoluto é transformado em seuoposto, das Anderssein — o individual, o particular, «aquilo que é coisa».Esse aspecto do conhecimento é tratado sob o título filosofia natural. Final

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mente o absoluto volta à consciência de si mesmo e se torna espírito. Afilosofia do espírito dividese na doutrina do espírito subjetivo (antropolo-gia; fenomenologia, isto é, o ensinamento da evolução da consciência e doconhecimento; psicologia), e do espírito objetivo (moralidade, lei, política),e do espírito absoluto (arte, religião e filosofia).

Há completa harmonia entre religião e filosofia no sistema hegeliano.Ambas têm o mesmo objetivo, o absoluto. O cristianismo é a etapa finalno desenvolvimento da religião. Seu correspondente no campo da filosofiaé o sistema hegeliano (de acordo com Hegel).

Hegel apresentava o cristianismo como a religião absoluta. Julgava queo método dialético podia se r encontrado na doutrina da Trindade. A divin-dade evoluiu em três etapas. Deus é sua idéia eterna (o reino do Pai),ele se revela na finitude, na consciência, e em ação (o reino do Filho), e

então volta a si mesmo na união com o finito na congregação (o reino doEspírito).

A influência de Hegel se estendeu muito além daqueles que se deno-minavam «hegelianos». Seu método dialético, por exemplo, exerceu forteinfluência sobre os autores tanto de história eclesiástica como de históriasecular e também contribuiu com novas idéias para a apresentação da his^tória do dogma.

Durante o tempo de vida de Hegel havia os que consideravam seu

sistema a solução definitiva para os problemas teológicos. Pensavase quetodo o campo da teologia podia ser reconciliado com a mais avançada edu-cação da época com base em seu sistema. As doutrinas cristãs foram in-troduzidas no esquema hegeliano. A revelação foi colocada ao mesmo ní-vel do espírito absoluto, com o conhecimento especulativo — que era a umsó tempo considerado o próprio conhecimento de Deus e o conhecimentodo absoluto por parte do espírito humano.

Entre os representantes desse hegelianismo ortodoxo (geralmente de-

signado «teologia especulativa») encontramse Carlos Daub (m. 1836, pro-fessor em Heidelberg e Filipe Conrado Marheineke (m. 1846, professor emBerlim). Este se opunha a Sch leiermacher cuja análise da religião consi-derava unilateral. Para os hegelianos, a religião não era apenas vida esentimento mas, sobretudo, conhecimento da verdade. A filosofia hegelianaera considerada a forma científica correta para a apresentação da fé cristã.

O hegelianismo, entretanto, também fez surgir uma tendência que che-gou a conclusões inteiramente diversas das de Hegel. Esta era a assimchamada «esquerda» hegeliana, representada (entre outros) por Davi Fre-derico Strauss (m. 1874), que em seu Das Leben Jesu (1835 s.) apresentoua mensagem do evangelho como mito. No centro da fé cr istã substituiu apessoa de Cristo pela «idéia da humanidade». Strauss julgava que as afir-mações cristológicas só se deveriam referir a este conceito coletivo, em

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virtude do fato que o Jesus histórico era apenas um homem comum, ummestre de moralidade e religião.

Outro membro da «esquerda» hegeliana foi o filósofo Ludwig Feuer-bach (m. 1872). Seu conceito de religião como fator na vida humana evoluiuaté chegar a uma negação específica da existência de Deus. Deus, dizia

ele, é apenas a soma de todas as qualidades humanas, e fé em Deus é oresultado das fantasias humanas.

TEOLOGIA DA RESTAURAÇÃO

Nas décadas de 1830 e 1840 teve início uma transformação, cujos efei-tos ainda se fazem sentir em nossos dias. O período áureo do romantismoe do idealismo alemão já tinha passado. Novas ideologias eram propostas,a saber, o socialismo e o materialismo, que assumiram atitude completa-

mente diversa face à religião. Como resultado de sua influência, novamentepassou a ter importância a interpretação racionalista do cristianismo.

Ao mesmo tempo ocorriam modificações econômicas e políticas na so-ciedade — transformações designadas pelos termos industrialização e libe-ralismo. O sistema patriarcal começou a ruir, e outro tipo de estado surgiuem que predominavam novos ideais políticos e condições sociais profunda-mente alteradas.

Não menos profundas foram as transformações feitas no campo cien-

tífico. As modernas ciências naturais, narrativas históricas mais exatas, adivisão da educação universal resultante da especialização extremada, oavanço da tecnologia — estes são alguns dos fenômenos que caracterizama época iniciada nestas décadas. Essa época levou a teologia a enfrentara tarefa de resolver — sob novas condições — a questão de cristianismoe cultura, de ciência e religião, tarefa que raras vezes tem sido respondidade maneira satisfatória mesmo em nossos dias.

Muitas soluções foram tentadas no período de tempo com que nos

ocupamos agora. Estas tentativas se caracterizavam ou por seu retorno àtradição antiga, a fim de preservar intacta a doutrina da igreja (teologiada restauração), ou então se subordinavam inteiramente ao espírito da épo-ca e deste modo abandonavam certos aspectos fundamentais da fé cristã(teologia «livre» ou «liberal»). O tipo de síntese entre cristianismo e cul-tura que encontramos em Hegel e Schleiermacher não mais podia ser al-cançado. Perdeuse a uniformidade na teologia e na vida da igreja, comotambém a uniformidade na vida cultural em geral.

Die Erweckung («o avivamento»), o movimento reavivamentista que já estava em andamento no início do século, pode ser incluído na teologiarestauracionista — isto é, a tendência de procurar atingir alvos teológicosretornando à tradição antiga, anterior ao racionalismo. Die Erweckung emparte provinha do antigo pietismo, sobretudo do tipo de Württemberg, mas

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também se relacionava com o interesse religioso despertado pelo romantismo e pelo idealismo alemão. Seus adeptos com orgulho reivindicavam Lutero como patrono (o jubileu da Reforma em 1817 tornou novamente atuais as idéias da Reforma), mas não se deu importância à diferença entre a teologia luterana e a reformada. A influência do avivamento sobre a vida da igreja em geral não foi mais significativa do que as contribuições que fez à teologia sistemática. Este movimento estava mais interessado na teo logia histórica e na erudição bíblica do que na dogmática.

Os principais expoentes da assim chamada «teologia da restauração» foram Ernesto Guilherme Hengstenberg (m. 1869) e Frederico Adolfo Philippi (m. 1882; Kirchliche Glaubenslehre, 1845-79, em seis volumes). Essa escola pretendia reavivar a antiga teologia protestante, que era considerada interpretação adequada (e para a igreja evangélica, a interpretação normativa) da Bíblia e das confissões. A aplicação da moderna ciência à teologia foi 

rejeitada, bem como a transformação idealista do cris tianismo. A teologia da restauração exerceu grande influência sobre a vida da igreja, e suas  tentativas de reavivar a antiga tradição foram em muitos sentidos bem-sucedidas para a igreja e a teologia de seu tempo. Suas realizações, todavia, foram limitadas pela falta de atenção à teologia de Lutero e também em vista do fato que seus líderes pareciam ignorar a diferença entre os pressupostos intelectuais do antigo período protestante e os do século XIX. instintivamente aceitavam a cosmovisão de sua própria época e com isso caíam em contradições. Uma restauração genuína demonstrou ser impossí

vel. A antiga posição luterana foi negada em vários pontos. A distinção entre luteranismo e calvinismo foi considerada sem importância. Hengstenberg, em vista disso, defendeu a causa do unionismo. Mas como resultado de sua forte oposição ao pietismo e ao iluminismo, bem como a Schleiermacher e ao idealismo, a teologia da restauração auxiliou a manter viva a antiga tradição luterana durante o século XIX. Também é digno de nota que Hengstenberg tentou recolocar o Antigo Testamento no seu lugar dentro da vida da igreja. O sumário de Henr ique Schmid da antiga teologia luterana, amplamente usado: Die Dogmatik der evangelisch-Iutherischen Kirche, 1843 (Teologia Doutrinária da Igreja Evangélica Luterana), é outro exemplo dos esforços realizados pelos teólogos da restauração.

O «neoluteranismo» assemelhava-se à teologia da restauração, mas em geral é considerado tendência independente. Também era for temente confessional e se opunha vigorosamente ao espírito da nova era. Os neo- luteranos rejeitavam a interpretação subjetiva da religião, então dominante, e procuravam encontrar uma realidade palpável, objetiva que pudesse garantir a verdade do cristianismo e sua existênc ia permanente. Esse funda

mento objetivo não foi encontrado na Palavra e na fé como no antigo protestantismo, mas na igreja, que era considerada a «instituição» através da qual os dons da salvação eram outorgados aos homens geração após geração.

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Frederico Júlio Stahl (m. 1861), um advogado, forneceu a base legalpara esse novo conceito de igreja. Em sua concepção, igreja e estado sãoinstituições estabelecidas por Deus, em que o indivíduo é colocado e acuja autoridade é obrigado a se sujeitar. Entre os teólogos e ec lesiásticosque interpretaram idéias de «igreja alta» (high-church) relativas à igreja e

ao ofício clerical e procuraram dar aplicação prática às mesmas, encontramse Teodoro Kliefoth (m. 1895; Acht Biicher von der Kirche, 1854), GuilhermeLõhe (m. 1872, fundador das instituições em Neuendettelsau), e AugustoFrederico Cristiano Vilmar (m. 1868). Os sacramentos receberam ênfaseespecial como o fundamento objetivo da igreja, em parte às custas da dou-trina da Palavra e da fé.

Com respeito à questão da igreja, e outras facetas da vida cristã, aintenção era a de revitalizar o que se considerava a posição luterana ori-ginal (daí o nome «neoluteranismo») e não simplesmente retornar à orto-doxia, como os teólogos da restauração o tinham feito. Os neoluteranosopunhamse enfaticamente à tradição reformada. Além disso , enfatizavama união da igreja visível com a invisível (a instituição objetiva e a comunhãoespiritual dos verdadeiros crentes) e criticavam os pietistas por separaremas duas. Assim fazendo, davam expressão a uma idéia luterana. Porém, nodesenvolvimento de sua eclesiologia, os neoluteranos aceitaram, até certoponto, idéias que não eram características do luteranismo original. A igrejae os sacramentos eram considerados ordenanças institucionais, até certo

ponto independentes da Palavra.A tendência conservadora também trouxe consigo a exigência de es-tudos teológicos bíblicos básicos. Uma forma de teologia bíblica originalfoi criada por João Tobias Beck (m. 1878, professor em Tübingen). Com-binou a antiga tradição de Württemberg de Bengel e Oetinger com fortedose de filosofia idealista. A teologia de Beck destacavase por sua acen-tuada tendência especulativa. O conteúdo da Bíblia era considerado comosistema conceptual divino, de natureza uniforme, que nos traz o poder vivodo Espírito Santo e as realidades sobrenaturais do reino de Deus. O bibli

cismo de Beck exerceu grande influência, na Finlândia, por exemplo.Na Suécia posição intimamente relacionada com a do neoluteranismo

foi desenvolvida por um grupo de teólogos de Lund, inclusive Ebbe GustafBring (m. 1884), Guilherme Flensburg (m. 1897) e Anton Niklas Sundberg(m. 1900). Manifestavam suas idéias no periódico denominado Svensk Kyrkotidning» («Notícias Eclesiásticas Suecas»), publicado de 1855 a 1863.

O movimento de Grundtvig na Dinamarca, de grande significado tantopara a igreja como para a cultura, também pode ser incluído entre as ten-

dências de «restauração», embora fosse original em muitos sentidos, tantoem comparação com movimentos da época como com outros. Nicolau Fre-derico Severin Grundtwig (17831872) foi influenciado pelo racionalismo iluminista e posteriormente pelo romantismo e idealismo alemão. Também in-teressouse pela mitologia nórdica quando jovem, e isso chegou a desem

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penhar papel de destaque em sua criação de símbolos e em seudesenvolvimento teológico. Houve um período em sua vida quando foi de-fensor extremado da ortodoxia luterana, mas seu forte senso histórico olevou a duvidar da doutrina ortodoxa da inspiração. Fez o que ele própriodenominou de «maravilhosa descoberta» que o fundamento da fé cristã não

se encontra nas Escrituras (como palavras escritas) mas na Palavra viva daigreja, nos sacramentos e na confissão batismal. Foi sobre essa base queGrundtvig desenvolveu seu conceito de igreja. Seu ideal era uma igrejalivre, em que poderiam estar   representados vários pontos de vista sem ha-ver coerção institucional ou confissão compulsória. Grundtvig julgava quee forma primitiva, popular, de religiosidade, simbolizada pela mitologia nór-dica, preparara o caminho para o advento do cristianismo. Em sua mente,os elementos nacionais e cristãos fundiamse num só.

Grundtvig inspirouse em muitos pontos na teologia de Irineu. Essa

influência se reflete, por exemplo, na posição central atribuída à confissãode fé, bem como a importância de categorias tais como «mortevida» (emvez de «culpaperdão») e «criaçãorestauração» em sua doutrina da salva-ção. Grundtvig opunhase à doutrina do pecado original como então ensi-nada, e acreditava que o homem retinha a semelhança com Deus que podiaformar um elo de ligação com a instrução e educação cristãs.

TEO LOGIA MEDIADORA; A QUESTÃO CRISTOLÓG ICA

A tradição iniciada com Schleiermacher foi levada avante em parti-cu lar pela tendência geralmente denominada «teologia mediadora». O apa-recimento dessa tendência pode ser datado do ano 1827 quando foi fun-dado o periódico intitulado Theologische Studien und Kritiken. Seu programaproposto era o de mediar entre a fé bíblica e o moderno espírito científico.Mas ao mesmo tempo que esta escola teológica procurava mediar entre ocristianismo e a ciência, também tentava mediar entre várias escolas depensamento. Sch leiermacher foi o espírito que guiava seus adeptos porexcelência, mas também havia ligação íntima com a tradição antiga, bemcomo com o avivamento e, por vezes, com Hegel.

Os principais portavozes desta escola eram discípulos de Schleier-macher tais como Carlos Immanuel Nitzsch (m. 1868, seu System der Christ-lichen Lehre, 1829, foi um dos livros de texto de dogmática mais usadosem sua época) e Augusto Delter Christian Twesten (m. 1876). Devesetambém mencionar Isaque Augusto Dorner (m. 1884), que com auxílio deformas de pensamento hegelianas tentou apresentar uma nova exposição

da cristologia (Entwicklungsgeschichte der Lehre von der Person Christi,1839 ss .). (História do Desenvolvimento da Doutrina da Pessoa de Cristo ).

Dorner encontrou dificuldades em combinar o retrato do Jesus histó-rico, como criado pela moderna pesquisa, com a antiga doutrina das duas

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naturezas, constituindo isto a base de seu estudo cristológico. Rejeitou aidéia da «enhupostasis» (cf. acima, pp. 8788) e ensinava que a naturezahumana é pessoa independente. A divindade de Cristo nesse contexto eraconcebida como união gradual com o Pai. Falando em termos gerais, esteconceito significava o abandono da concepção tradicional da encarnação.

Se a divindade de Cristo é apresentada em termos de sua comunhão comDeus — como representante e protótipo da humanidade — não se tratamais então do Logos que se fez carne, ou de um verdadeiro «Deushomem»

Outra tentativa de solucionar o problema cristológico encontrase noass im chamado quenoticismo. Este foi defendido sobretudo pelo teólogo deErlangen, Godofredo Thomasius (m. 1875, Christi Person und Werk, 1852-61). Cr iticava acerbamente a Dorner, e em contraste com ele atinhase àdoutrina tradicional das duas naturezas. A idéia básica de Thomasius eraque quando o Logos se fez homem, despojouse (kénoosis) dos atributosdivinos que indicam relação com o mundo (onipotência, onipresença, etc.).Quando foi glorificado, Cristo os retomou. Desta maneira tentava fazer jus-tiça à humanidade de Cristo e manter as antigas categorias. Devese notar,entretanto, que essa doutrina da quênose afastavase da tradição clássicaem certos aspectos. Na cristologia clá ss ica não se diz que o Logos des-pojouse, antes se crê que a natureza humana, com que o Logos se uniuem Cristo, deixou de fazer uso dos atributos divinos. Estes, no entanto,permaneceram com Cristo durante sua vida terrena na pessoa divina.

Este conceito quenoticista ilustra o problema que afeta toda a teo-logia do século XIX: como podem as antigas categorias da doutrina cristãser combinadas com o moderno ponto de vista? Este problema manifestavase no fato que mesmo as tendências conservadoras e eclesiais encontraramdificuldades em manter intata a antiga tradição.

Outro dos teólogos mediadores foi o dinamarquês, Hans Lassen Mar-tensen (m. 1884; sua Dogmatik de 1849, foi por muito tempo usada comocompêndio em escolas superiores). Martensen aceitou a cristologia queno-ticista , que desenvolveu de maneira magistral. Foi influenciado não apenas

por Schleiermacher mas também por Hegel e por um misticismo teosóficoque influiu especialmente sobre sua concepção dos sacramentos.

O mais notável representante desta escola foi Ricardo Rothe (m. 1867),que, com a ajuda de Schleiermacher e Hegel, edificou uma filosofia da reli-gião completa apresentada em sua Theologische Eth ik (184548). Foi alémdos limites da escola mediadora e na realidade aproximavase mais do pon-to de vista da teologia liberal.

A ESCOLA DE ERLANGEN

Um princípio teológico independente foi elaborado pelos assim cha-mados teólogos de Erlangen, que no mais se aproximavam muito do grupoconfessional. O fundador desta escola foi Adolfo Harless (m. 1879), que

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baseou sua teologia em grande parte em estudos sobre Lutero. Tambémdesenvolveu o princípio característico do método de Erlangen, que mantinhaque o conteúdo da Escritura e a experiência pessoal de salvação do cristãocorrespondemse mutuamente.

João Criátiano Conrado von Hofmann (m. 1877), o mais conhecido dos

teólogos de Erlangen, fez süas maiores contribuições no campo da inter-pretação bíblica. Em seu magnum  opus: Weissagung und Erfüllung (1841-44), procurou demonstrar que a profecia não só inclui prognóstico ou pres-sentimento mas também profunda interpretação da situação contemporânea,baseada no fato que a história aponta para além de si mesma àquilo queum dia se cumprirá. Toda a Escritura era por ele interpretada como históriada salvação uniforme, em que o Antigo Testamento aponta para Cristo, e oNovo Testamento aponta para a consumação. Em outra grande obra, DerSchriftbeweis (185256), Hofmann apresentou os fundamentos de seu mé-

todo teológico.De acordo com Hofmann, podese testar um sistema teológico com

base nos três fatores objetivos que formam o fundamento das afirmáçõesteológicas. Estes são: a experiência do novo nascimento, a igreja e a Es -critura Sagrada. Hofmann era especialmente devotado ao teste escriturístico. Um sistema deve estar em harmonia com a história da salvação comoapresentada na Escritu ra. O método delineado por Hofmann consistia es-sencialmente no seguinte: o novo nascimento conclui a história da sa lva-ção, que está implícita nele. Os testemunhos da experiência e da Escrituradevem sempre apoiarse mutuamente. A linha de pensamento é aproxima-damente esta: o que toma um homem cristão é fato imediatamente acessívelà teologia, a saber, a comunhão pessoal entre Deus e o homem, mediadapor Jesus Cristo . Vejase a famosa frase de Hofmann: «Eu como cristãosou o material mais próprio para mim como teólogo» (Ich der Christ bin mirdem Theologen eigenster Stoff meiner Wissenschaft). Esse fato garantetoda a história da salvação como descrita na Bíblia — a eterna, como pres-suposto da histórica, e a temporal, desde a criação até a consumação. A

validez deste argumento, que na maioria das vezes não era utilizado nemmesmo pelo próprio Hofmann, tem sido posta seriamente em dúvida.

A base empírica e subjetiva do método de Hofmann o conduziu a umcontato íntimo com o avivamento e a teologia de Schleiermacher. Maiorimportância para a posteridade teve sua obra no campo da teologia bíblica,em que se associou à escola de Württemberg (Bengel, Beck ). Sua inter-pretação da Escritura distinguiase sobretudo pela aplicação do ponto devista da história da salvação. Em geral, a teologia de Hofmann marca atransição de uma teologia mais filosófica e especulativa a uma teologia

mais inteiramente condicionada pela perspectiva histórica.Hofmann procurou substituir a doutrina ortodoxa de salvação por ou-

tra teoria: A morte de Cristo, dizia ele, foi apenas a demonstração de umaobediência e amor que derrotam o pecado e a morte. Uma expiação no

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senvolvimento da vida do homem. No que segue prestaremos atenção es-pecial aos conceitos de «existência» e de «indivíduo» de Kierkegaard —duas de suas categorias básicas.

O que Kirkegaard entendia por «existência» evidenciase melhor, tal-vez, na descrição dos «estágios» da vida que apresentou em obras como

Ou Um ou Outro (1843) e Estágios do Caminho da Vida (1845).Os três «estágios» — o estético, o ético e o religioso — não se re-

ferem tanto a um desenvolvimento pessoal mas a três pontos de vista ouatitudes distintas face à vida. O objetivo principal de toda a exposição dosestágios é determinar tão cuidadosamente como possível o que significase r cristão. Se não se tomar este ponto de vista como pressuposto básico,não se pode entender a descrição de homem de Kierkegaard ou seu con-ceito de «existência». É neste ponto que a moderna filosofia existencialista

difere radicalmente de seu suposto mestre.Os vários pontos de vista não são descritos com o emprego de fór-

mulas abstratas; Kierkegaard o faz refletindoos nas vidas de diferentesindivíduos fictícios que aparecem em seus escritos pseudônimos (João, oSedutor, o Asses so r Guilherme, AntiClimacus, etc.). Deixando estes váriospseudônimos falar, Kierkegaard visava conduzir o leitor, de modo indireto,a uma situação existencial em que é preciso tomar uma decisão concreta.Kierkegaard procurava, através deste método — comparável à «obstetríciaintelectual» de Sócrates — afastarse do pensamento objetivo e da ob-

servação histórica, que não desejava rejeitar, mas que considerava semvalor para delinear a natureza do cristianismo. É preciso acrescentar, quecom isso tocamos apenas num dos motivos de Kierkegaard para usar pseu-dônimos. O problema que oferecem tem sido amplamente discutido porestudiosos de Kierkegaard, e ficou demonstrado que vários outros fatoreslevaram Kierkegaard a publicar seus escritos desta maneira.

O estágio estético é característico do epicureu superficial, que viveexclusivamente para os alvos visíveis, temporais e incidentais e que julga

a vida em função da beleza. O homem estético fica alheio à decisão ética,«a escolha». Além disso, visto limitarse aos elementos externos e finitosda vida, é incapaz de relacionar o eterno com o temporal — isto é, encon-trar uma síntese entre tempo e eternidade, que é característica do cristia-nismo. O indivíduo especulativo, que por intermédio de pensamento obje-tivo foge de situações em que tem de fazer uma escolha, também se en-contra no nível estético.

O estágio ético começa quando o homem entra em relação com oabsoluto — quando enfrenta a exigência absoluta de Deus na «escolha»entre bem e mal. O ético não consiste de certas regras racionais, univer-sais — como Hegel afirmara — mas de uma exigência absoluta feita àconsciência, como um «ou um ou outro» que o indivíduo enfrenta. Nesta«escolha» ética o indivíduo encontra a si mesmo «em seu valor eterno».

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Ou atinge ou não atinge o alvo que é a vontade de Deus para sua vida.Em Temor e Tremor (1843) Kierkegaard apresenta o sacrifício de Isaque porAbraão como exemplo de um homem numa situação em que precisa fazeruma escolha. A fé de Abraão era tal que podia obedecer humildementeà ordem divina, embora contrariasse tudo o que era razoável.

A exigência ética — incapaz de ser cumprida — força o homem aconsiderar sua própria vida com uma seriedade que é determinada pelovalor eterno da escolha. Isto, por sua vez, produz dentro dele uma con-dição de remorso ou arrependimento, pois pode ver que não satisfaz asexigências eternas adequadamente. E é então que o estágio ético conduzdiretamente ao estágio religioso, com o qual coincide parcialmente. Poisé na decisão «ética» e através dela que o homem tornase consciente deDeus. É o arrependimento — o reconhecimento da culpa — que distingueo estágio religioso do ético.

Kierkegaard distinguiu entre uma atitude religiosa geral («religiosida-de A») e o estágio cristão verdadeiro («religiosidade B» ), Este consiste darevelação de Cristo (Deus no tempo), da consciência de pecado (consciên-cia de pecaminosidade total em oposição a uma consciência geral de culpa),e da fé no perdão do pecado pelo poder da expiação de Cristo.

Dentro do estágio cristão (o paradoxoreligioso) a síntese entre eter-nidade e tempo, que é o destino do homem na vida, é concretizada. Morrerpara o que é imediato e que pertence ao estético no  «momento» — isto é,no sempre presente agora, em que a eternidade incide sobre o tempo —tornarse nada perante Deus, e consciente de que se é nada perante asexigências eternas, apegarse ao Cristo que está presente na fé — isto érealizar a «síntese», viver existencialmente.

É com base neste conceito de existência — entendido ou em seucaráter geral ou em seu sentido especificamente cristão — que se deveentender a afirmação de Kierkegaard que «subjetividade é verdade». Pen-samento objetivo, ou especulação, é fuga da existência, da decisão. O co-

nhecimento só atinge a verdade quando se relaciona com a existência deum indivíduo, com a decisão do próprio sujeito pensante, com a síntese en-tre o finito e o infinito. Não se trata, portanto, de um «subjetivismo» no sen-tido comum do termo. O verdadeiro conhecimento pressupõe que o indi-víduo se coloque em relação existencial com seu objeto. A descrição deKierkegaard da relação do cristão com Deus é a melhor ilustração do queele quer dizer com isto. Não se refere a uma teoria filosófica, geral, deconhecimento existencial. Quando Kierkegaard falava do «existencial», pen-sava sobretudo na síntese entre o temporal e o eterno — «o interesse apai-

xonadamente infinito na própria salvação eterna pessoal» — que é o pres-suposto da fé.

Kierkegaard freqüentemente salientava o fato que em seus escritosdirigiase ao «indivíduo». A decisão éticoreligiosa só se aplica ao indiví

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duo. As massas, ou a espécie humana em geral, não formam um elo entreo individuo e o absoluto. O cristianismo só se concretiza na fé do indi-víduo. Cristo é Aquele Um que está sempre presente, com quem o homemda fé se torna «contemporâneo», não retornando na história ao Cristo quecaminhou sobre a terra, mas tornandose um com ele e recebendo sua pre-

sença no «momento», na situação presente. «Contemporaneidade» é , porconseguinte, um dos principais conceitos empregados para descrever a fécristã (como, por exemplo, em Educando no Cristianismo, 1850).

A vida cristã caracterizase pela «imitação», que para Kierkegaard nãosignificava imitatio no sentido medieval mas a emulação de Cristo no so-frimento da reconciliação e do amor triunfante. (C f. As Obras de Amor, 1847, e Educando no Cristianismo).

Em meio a sua amarga controvérsia com a igreja, que constituiu o

fim dramático da atividade literária de Kierkegaard, ele cada vez mais en-fatizava a necessidade da ofensa. O ódio e a perseguição do mundo sãoinevitáveis na vida do cristão. A exigência de «imitação» foi levada ao ex-tremo. Em O Momento (1855), Kierkegaard expressou sua convicção queo cristianismo «oficial» de sua época era uma escandalosa falsificação, queo cristianismo do Novo Testamento não mais existia. Quem quisesse sercristão teria de romper completamente com a igreja existente ; esta, naopinião de Kierkegaard, era uma exigência inevitável. Opiniões de estudio-sos sobre o último ataque violento de Kierkegaard contra a igreja de sua

época têm variado. Em alguns sentidos parece que esta crítica condiziacom suas idéias anteriores, mas não podemos ignorar que este conflito,em que gastou suas últimas energias, revela elementos patológicos, tãounilateral se mostra nele.

A influência de Kierkegaard não foi grande durante sua vida. Suasidéias eram por demais diferentes das principais tendências de sua épocapara serem utilizadas na educação. Mas em nosso século, especialmentenas várias décadas passadas, os escritos de Kierkegaard tiveram aceitaçãoincomum. Em parte se deve isso ao fato que a assim chamada «filosofiaexistencialista» fez uso do legado do pensador dinamarquês. Mas isto nãoé tudo, pois também na teologia (notadamente nos Estados Unidos) foramfeitas tentativas sérias de se utilizar a riqueza de conteúdo que os livrosde Kierkegaard contêm. É verdade que em certos sentidos a obra de Kier-kegaard não encontra paralelo no século XIX, nem ainda em toda a histó-ria da teologia.

RITSCH L E SEUS DISCÍPULOS

O protestantismo «liberai» manifestouse de várias formas diferentesem contextos diversos durante o século XIX . Suas origens encontramse,na maioria dos casos, nas opiniões deistas e racionalistas do iluminismo.

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A maioria dos representantes dessa escola liberal foram teólogos que pro-curaram aplicar o ponto de vista críticohistórico no campo da teologia,inclusive o acima mencionado D. F. Strauss e também F. C. Baur (m. 1860,professor em Tübingen). Ambos aplicaram a critica histórica à Bíblia, eBaur foi também influente como historiador do dogma.

Uma teologia «liberal», até certo ponto nova e original, surgiu em finsdo século XIX e nos primeiros anos de nosso século, tendo como propugnadores Albrecht Ritschl (m. 1889, professor em Göttingen) e seus dis-cípulos.

Ritschl fora influenciado tanto por Kant como por Schleiermacher.Localizava a essência da religião não no sentimento de dependência ab-soluta mas nas  idéias específicas da comunhão religiosa, que se referemà modificação da vontade e à promoção da salvação ou bemaventurança

humana. Ritschl não aceitava a revelação no sentido real do termo. «Re-velação», em sua opinião, é o mesmo que religião positiva. A «religiãocristã» tem seu ponto de referência na congregação cristã e na pessoa deJesus. A única tarefa da teologia, segundo ele, é a de descrever a comu-nhão do homem com Deus como esta se expressa no cristianismo histórico.

Ritschl pretendia lançar um fundamento sólido de erudição para a teo-logia, e procurava garantir sua posição contra os ataques da ciência na-tural materialista. Assim fazendo, recorria à religião positiva e a conside-rava fato histórico. A dogmática era empregada para descrever historica-mente a fé.

Em oposição aos que diziam ocuparse o cristianismo só com a sal-vação obtida através de Jesus Cristo, Ritschl enfatizava que temos de lidarcom duas idéias básicas dominantes: O cristianismo pode se r comparadoa uma «elipse que é controlada por dois focos». Segundo Ritsch l, o cris -tianismo ocupase tanto com o alvo ético comum, o reino de Deus, comocom a salvação do indivíduo.

Considerações éticas eram decisivas para Ritschl. A função da reli-

gião é especialmente a de promover e trazer à existência o reino de Deus— o destino do homem concebido em categorias éticas .

Salvação, que Ritschl define como «justificação» (Rechtfertigung) ou«perdão dos pecados», restaura a liberdade ética entravada pelo pecado.Mediante a fé a relação entre o homem e Deus, antes perturbada, trans-formase em confiança e filiação. Disto resulta uma modificação internana vontade do homem: o homem chega a reconhecer a vontade de Deuse deste modo se predispõe a fazer o bem. Tal transformação interna é oque Ritschl denomina «reconciliação» (Versöhnung). Esta, por sua vez,manifestase em boas obras. A salvação, portanto, não se refere apenasà bemaventurança do indivíduo; também diz respeito a um objetivo éticocomum, a concretização do reino de Deus, que é o bem supremo do ho-mem.

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Caso se queira, podese atribuir «salvação» à religião e «o reino deDeus» à ética, mas assim fazendo é preciso lembrar que, de acordo comRitschl, religião e ética estão interrelacionadas e atuam uma sobre a outra.Podese dizer melhor que o elemento religioso é subordinado ao ético, em-bora ambos estejam incluídos como os dois «focos» no que Ritschl deno-

mina a religião cristã.As doutrinas tradicionais foram podadas consideravelmente ou rein

terpretadas para harmonizálas com as idéias básicas «éticas» ou «espiri-tuais», que segundo ele continham o significado essencial da salvação.Ritschl não concebia o pecado como corrupção universal perante Deus;em lugar disso, o considerava desvios isolados do bem, que resultam deconhecimento insuficiente do bem comum, que simultaneamente é o bemético. A liberdade ética que faz parte das qualidades naturais do homemdeve, pois, se r fortalecida e aperfeiçoada. Isto se consegue através da

nova relação com Deus que se torna acessível ao homem pela fé em Cris-to e sua salvação.

Cristo pode se r chamado Deus só em sentido figurado: sua divinda-de existe na unidade de sua vontadè com Deus, na perfeita comunhão comDeus que manifestou em obediência ao chamado de Deus. O sofrimentoe a morte de Cristo são simplesmente a prova final e decisiva dessa obe-diência. São importantes para a salvação apenas como exemplos da obe-diência pela qual Cristo pode conduzir outros à mesma relação em que ele

se encontra com Deus Pai (Unterricht in der christlichen Religion, 42). Re-ferências ao sofrimento substitutivo ou propiciatório da punição eram re- jeitadas. Segundo Ritschl Deus é amor, ponto final; ira, vingança ou juí-zo são alheios a sua natureza. Punição e disciplina só são empregadaspara educar o homem.

A tarefa da teologia, tal como Ritschl a via, consiste em harmonizaro cristianismo tradicional com a «conscientização do mundo» do homemcontemporâneo. A religião não se destina a exp licar o mundo, ou a fazerpronunciamentos teóricos, metafísicos; pode apenas fazer juízos de valor.O alvo é uma «filosofia cristã», que satisfaça plenamente a exigência deuma religião moral e espiritual perfeita.

Ritschl apresentou seu sistema especialmente na volumosa obra in-titulada Die christliche Lehre von der Rechtfertigung und Versöhnung, llll,187074. Breve resumo dele podese encontrar em seu livro Unterricht inder christlichen Religion, 1875.

Em seus escritos, Ritschl estruturou uma forma sóbria, burguesa dereligião, bastante condizente com a atitude cultural de sua época. Sua abor-dagem racional e prática à religião nos faz lembrar enfaticamente o socinianismo e outras formas de racionalismo. Enquanto ressaltava a serieda-de ética do cristianismo, reduzia seu conteúdo a uma cosmovisão e a umsistema ético. A grande influência que as idéias de Ritschl tiveram podese

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explicar não tanto em termos de sua profundidade e originalidade como porsua capacidade de satisfazer o espírito geral da época e de tornar atuaisos problemas que então o pensamento teológico tinha de enfrentar.

Entre os seguidores de Ritschl destacase Wilhelm Herrmann (m. 1922,professor em Marburgo, também influente na Suécia), que aprofundou e

completou em muitos sentidos as idéias de Ritschl. Separou a teologiada metafísica ainda muito mais do que Ritschl o fizera. Herrmann dizia se -rem as afirmações da fé julgamentos que estão diretamente envolvidos naexperiência pessoal de Deus, e como resultado estão em nível diferenteque todos os pronunciamentos filosóficos e metafísicos. Os julgamentosreligiosos são considerados incompatíveis com os filosóficos. Herrmannconcentrava todo o sentido do cristianismo na revelação de Jesus Cristo.Enquanto Ritschl deduzia o significado da fé desta revelação de forma maisracional e desapaixonada, Herrmann salientava a experiência pessoal dafigura de Cristo como base da fé. A realidade religiosa tornase evidentepara o homem apenas quando chegou a reconhecer sua  própria impotênciae culpa à luz dos imperativos éticos. O homem que toma a sério estes im-perativos éticos é interiormente «subjugado» pela influência da pessoa de'Jesus e deste modo é trazido à fé. O conceito de uma revelação geral erarepudiado. O elo de ligação entre o homem natural e a fé cristã tem na-tureza ética. As obras mais conhecidas de Herrmann são Der Verkehr des Christen mit Gott (1886) e Ethik (1901).

O conhecido historiador do dogma Adolf von Harnack (m. 1930, pro-fessor em Berlim) também deve ser incluído entre os seguidores de Ritschl.Sua contribuição teológica será analisada no próximo capítulo «A Teologiana Parte Inicial do Século XX».

TEO LOGIA INGLESA NO SÉCULO X IX

Três fatores especialmente caracterizaram o desenvolvimento da teo-logia inglesa durante o século XIX : o movimento de Oxford, a tradição fi-

losófica autóctone (notadamente a síntese entre platonismo e cristianismo)e a crescente influência da crítica histórica.

O movimento de Oxford foi inspirado por um grupo de teólogos deOxford. Entre eles encontravase John Keble (17921866), cujo famoso ser-mão em 1833 sobre «a apostasia nacional» criticava acerbamente a políticaparlamentar liberal da época, que se envolvia em questões eclesiásticas, eque com base no ideal de um estado secularizado ameaçava a independên-cia da igreja. Este sermão é geralmente considerado o momento inicial do

movimento de Oxford. Entre os principais representantes (além de Keble)encontravamse Edward Pusey (180082) e John Henry Newman (180190).Foi Newman quem publicou os «Panfletos para a Época» (Tracts for the Times, iniciando em 1833), em que o programa da igreja alta foi desenvol-vido em parte com forte tendência romanizante.

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A sucessão apostólica foi apresentada como fundamental para o ofí-cio do ministério. O conceito de igreja e sacramentos também foi desen-volvido de acordo com o sistema romano. No Panfleto N? 90 (publicado em1841), Newman tentou provar que os Trinta e Nove Artigos podiam ser in-terpretados de modo a se harmonizarem com as decisões do Concílio de

Trento. O objetivo original do Movimento de Oxford foi enfatizar o aspectocatólico da Igreja Anglicana a fim de revitalizar esta instituição, mas New-man e depois dele também outros teólogos interpretaram isto de maneiratal que se passaram para a Igreja de Roma (Newman em 1845). O movi-mento continuou, todavia, e gradualmente tornouse uma tendência mais ge-ral anglocatólica, exercendo influência decisiva sobre a vida e a teologiada igreja inglesa nos tempos modernos. O tradicionalismo é um de seusaspectos característicos. Seu programa teológico inclui o retorno à teolo-gia da igreja antiga e à teologia anglicana clássica dos séculos XVI e XVII.

Foi especialmente por este motivo que o estudo dos Pais Eclesiásticos pas-sou a ter lugar central na teologia inglesa. Também foi levado a efeito am-plo programa de publicações como resultado da iniciativa anglocatólica(cf. a «Library of AngloCatholic Theology», 88 vols., 184166).

Samuel Taylor Coleridge (17721834), poeta e filósofo, exerceu gran-de influência na teologia inglesa, apesar da natureza fragmentária de suasobras filosóficas e teológicas. Influenciado pelo romantismo e idealismoalemão, bem como pela tradição platonizante da Inglaterra (os platonistasde Cambridge dos séculos XVII e XVIII), Coleridge opôsse ao deísmo ecriou uma síntese entre a teologia e a filosofia. Para ele, a religião era umarealidade espiritual, mística, em que a razão podia penetrar ainda mais pro-fundamente em virtude de sua participação na natureza divina. Coleridgeparece ter oscilado entre o panteísmo e uma posição mais ortodoxa. Combase em suas reflexões sobre a diferença entre filosofia e teologia expandiuos horizontes da teologia e criou uma alternativa à atitude negativa face aocristianismo mantida pelos deístas e unitários.

Sob a influência de Coleridge e outros, Frederick Denison Maurice

(180572) continuou a platonização da teologia inglesa. Sua posição teoló-gica tem sido descrita como «platonismo cristianizado», cujo centro era for-mado pela combinação do divino com o que há de mais elevado na huma-nidade, manifestado em Cristo, «o Filho de Deus e o Filho do Homem».Esta combinação fundamentase no amor de Deus e se expressa de modosemelhante no Logos que habita em todos os homens. Este Logos é afonte da revelação progressiva , que atingiu a perfeição em Cristo. Mau-rice interpretava «eternidade» (vida eterna, punição eterna) não em cate-gorias temporais mas qualitativas; isto suscitou oposição, e Maurice per-deu seu cargo de professor em Oxford como resultado. Maurice represen-ta um tipo de idealismo cristão que não nega a verdade histórica do cris-tianismo, mas que recorre especialmente ao coração, ao que há de maiselevado na humanidade.

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cipal representante foi Johann Adam Mõhler (m. 1838), conhecido entre ou-tras coisas por sua Symbolik, incisiva confrontação com a teologia protes-tante. Esta escola interessavase sobretudo na teologia histórica. Em v is-ta disso, também preparou o caminho para nova e mais. profunda compre-ensão das tradições patrísticas e medievais.

A tradição clássica da doutrina católica romana baseavase numa apre-ciação positiva do conhecimento racional como pressuposto para o conhe-cimento da fé. Durante o século XIX , duas tendências surgiram que repre-sentaram pontos de vista contrastantes. O tradicionalismo considerava arevelação e a fé não apenas como norma de conhecimento religioso mastambém de conhecimento natural (dentro da metafísica e da moralidade).O ontologismo, representado por Henri Maret (m. 1884) e outros, que en-controu seu protótipo na tradição agostiniana, conjeturou que há um co-nhecimento intuitivo de Deus que constitui a base de todo conhecimento

da verdade. Ambas estas posições foram rejeitadas por decreto oficial,aquela em 1840 e 1855 e esta em 1861.

O problema de razão e revelação foi respondido de maneira inteira-mente diversa pela escola de pensamento que se tornou dominante emmeados do século XIX — o neoescolasticismo, também conhecida por neotomismo. Como resultado da influência de vários teólogos italianos e fran-ceses — bem como os da escola de Tübingen na Alemanha e o notávelteólogo alemão Joseph Kleutgen (m. 1893) — o escolasticismo medievaltornouse o centro de interesse não apenas dentro da teologia histórica

mas também no campo da dogmática. A confirmação da posição dominanteque esta tendência desfrutava veio com a encíclica Aeterni Patris (1879)de Leão XIII, em que a filosofia de Tomás de Aquino é prescrita como es-tudo básico para a educação superior dentro da igreja. Assim aconteceque na teologia católica romana moderna este teólogo medieval se desta-ca como mestre da igreja por excelência. Ordenase na lei canônica (Codex 

 juris canonici, can. 1366) que o estudo e a instrução tanto na filosofia co-mo na teologia em instituições educacionais católicas devem corresponderàs idéias e aos princípios de Tomás de Aquino.

Os escritos de Matthias Joseph Scheeben (m. 1888), que provavel-mente foi o maior dogmático católico romano do século XIX, também de-ram testemunho da importância então conferida à tradição clássica dos paisda igreja bem como do escolasticismo medieval. Scheeben baseava suadogmática sobre estas fontes e procurava uma análise independente e pro-funda para insuflar nova vida na herança recebida desta antiga tradição.Scheeben dava ênfase particular à distinção entre a fé cristã e o que émeramente racional ou natural. É nesta conexão que cunhou a expressão

«supernatureza», usada para exprimir   aquilo que na doutrina cristã é trans-cendental e inacessível à razão (Die Mysterien des Christentums, 1865).

Na bula Ineffabilis Deus (1854), Pio IX proclamou o dogma da «imacu-lada conceição da Virgem Maria», isto é, o dogma que ensina que Maria,

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mediante privilégio especial, foi preservada da mácula do pecado original.Esta declaração, que constituía concessão à adoração popular de Maria, trou-xe à luz um novo conceito sobre a natureza dos pronunciamentos dogmá-ticos, uma vez que a necessidade de base bíblica ou apostólica, nos demaiscasos autoevidente, foi posta de lado. Essa proclamação de um novo dog-

ma pressupunha que o ocupante do mais elevado cargo na igreja tem opoder de autorizar novos dogmas que são obrigatórios para a igreja. NoPrimeiro Concílio Vaticano (186970), que a Igreja de Roma reconhece co-mo o Vigésimo Concílio Ecumênico, esta doutrina foi confirmada e procla-mada no dogma da infalibilidade papal: Quando o papa fala em virtude deseu ofício e define doutrina referente à fé ou à moral, que é válida para aigreja inteira, possui a infalibilidade que o Salvador prometeu a sua igreja.

No «Syllabus de Erros», publicado em 1864, Pio IX condenou fenô-menos modernos como panteísmo e racionalismo e indiferentismo, bem co-

mo as filosofias críticas e agnósticas. Julgamentos semelhantes foram pro-nunciados sobre várias outras facetas do ponto de vista moderno em di-ve rsas ocasiões. Esse desenvolvimento continuou e intensificouse durantea longa e (considerada do ponto de vista da dogmática) fatídica luta con-tra o modernismo no fim do século XfX e no início deste século. O moder-nismo foi um movimento de ampla propagação, cujos representantes pro-curaram de vários modos combinar a fé católica romana com a culturamoderna. Assim fazendo, advogavam o criticismo histórico com respeitoà Bíblia, voltaramse contra a influência dominante da escolástica no campo

da filosofia, e procuraram introduzir um ponto de vista filosófico moderno.Um dos centros, em que estas novas idéias eram acalentadas, foi o InstituteCatholique em Paris, onde Alfred Loisy (m. 1940) trabalhou por algum tem-po como professor e levou a efeito um programa de pesquisa crítica daBíblia. Na encíclica Providentissimus Deus (1893), Leão XII realmente su-blinhou a importância da erudição no estudo da Bíblia, mas advertiu contraa concepção crítica da história que Loisy defendia. Lo isy foi demitido deseu cargo mas continuou a defender a causa do modernismo, como porexemplo em seu livreto L ’evangile et 1’eglise (1903), em que atacou o Das

Wessn des Christentums (cf. abaixo) de Harnack. Loisy defendeu a liturgiae os dogmas da igreja contra Harnack mas indicou, ao mesmo tempo, quesua origem não podia se r encontrada no evangelho; são criação posterior,dizia, que expressava o indispensável desenvolvimento dentro da congre-gação resultante da parúsia que deixara de ocorrer. O livro de Loisy foicolocado no Index e ele foi excomungado em 1908.

O clímax do conflito da igreja com o modernismo foi atingido com apublicação da bula Pascendi Dominici gregis (1907) de Pio X, em que opapa expõe as várias tendências e conceitos diversos do movimento e uma

análise incisiva e os declara heréticos. No mesmo espírito, decidiuse em1910 que todos os sacerdotes e professores deviam subscrever uma con-fissão da fé católica com seu repúdio dos falsos ensinamentos do moder-nismo (o juramento antimodernista).

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Apesar da rejeição original da crítica bíblica, a abordagem científicaà Bíblia progrediu em círculos católicos romanos do mesmo modo comonas outras igrejas. A bula Providentissimus Deus (1893) recomendava oexame científico da Bíblia dentro de certos limites. Cinqüenta anos depoisa encíclica correspondente Divino afflante Spiritu (1943) fez concessões

de grande alcance aos pontos de vista científicos e críticos. Poucos anosdepois, no entanto, a bula Humani generis (1950) rejeitava rispidamente anova forma de modernismo, que segundo ela, ameaçava a fé católica.

O conceito católico romano de tradição, tal como a atitude face aocriticismo bíblico, sofreu mudanças óbvias em anos recentes. Esse desen-volvimento encontra sua origem no século passado. Na teologia póstridentina, a tradição era entendida como sendo fonte de revelação paralelaà Escritura, diferindo do testemunho apostólico registrado na Bíblia, mas,suplementandoo ao mesmo tempo. Porém, o contato intensificado com ateologia da igreja antiga e a da Idade Média durante o século XIX conduziua uma nova interpretação do significado de tradição. Os pioneiros nestaquestão foram os acima mencionados J. A. Mõhler e M. J. Scheeben, jun-tamente com o Cardeal Newman. Estes homens encaravam a Escritura ea tradição como uma unidade orgânica e consideravam esta o fator dinâ-mico que inclui todo o ofício magisterial da igreja. A Escritura, também,é tradição considerada de certo ponto de vista . Ressaltavam que a Escr i-tura não podia ser interpretada sem a tradição, mas a tradição não maisera considerada uma nova fonte de revelação ao lado da Escritura; eraagora considerada o desenvolvimento contínuo da revelação. Esta nova ati-tude face à tradição ainda não produziu qualquer decisão doutrinária ofi-cial, mas fornece importante pressuposto para a discussão teológica denossos d!as, notadamenté no confronto com a posição das igrejas evan-gélicas.

MOVIMENTOS REAV IVAM ENTISTAS NO SÉCULO X IX

Grandes campanhas de reavivamento foram levadas a efeito na se-gunda metade do século XIX, especialmente no mundo anglosaxônico mastambém nos países escandinavos. A tarefa de descrever o desenvolvimen-to destes movimentos e seus principais personagens realmente pertence àesfera do historiador eclesiástico. No contexto presente nos contentaremoscom uma análise breve de vários dos aspectos ideológicos básicos dosmovimentos reavivamentistas.

Ao se falar de movimentos reavivamentistas no sentido amplo do ter-

mo, seria possível incluir fenômenos como o grundtvigianismo na Dinamar-ca e o movimento de Oxford na Inglaterra entre eles . Como regra geral,no entanto, o vocábulo tem sentido mais restrito. Mas mesmo entre os«reavivamentos» mais típicos há grande diferença entre os que brotaram

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Na Escandinávia, as primeiras congregações batistas foram organiza-das em meados do século XIX (Dinamarca, 1839; Suécia, 1843; Finlândia,1856; Noruega, 1860). E embora a denominação metodista tivesse simpa-tizantes e adeptos na Escandinávia antes disso, as primeiras congregaçõesmetodistas só foram formadas mais tarde (Noruega, 1856, Dinamarca, 1859;Suécia, 1868; Finlândia, 1884). De grande significado para este desenvol-vimento foram os 12 anos em que o ministro metodista George Scott ficouem Estocolmo como pregador (183042). C. O. Rosenius foi profundamenteinfluenciado por Scott e encontrou nele um exemplo para sua própria pre-gação.

A Convenção Missionária Sueca (fundada em 1878), que pretendia ini-cialmente ser uma sociedade missionária, realmente chegou a ser uma igre-

 ja livre do tipo congregacionalista. Sua posição doutrinária foi determinadaem grande parte por Paul Peter Waldenstrom (m. 1917), que foi seu prin-

cipal dirigente por muitos anos.

No que tange à posição e à estrutura, os movimentos reavivamentistas de igrejas livres mencionados acima apresentam grande número de ca-racter ísticas comuns. A natureza original da teologia do reavivamento podeprovavelmente ser melhor entendida quando se estuda o que os reavivamentistas ensinavam com referência (1) à regeneração e santificação, (2)

à igreja e sua organização e (3) aos sacramentos.

1. Em sua doutrina da justificação, o metodismo (como já indicadanteriormente) foi influenciado preponderantemente pelo luteranismo. Comoresultado, definiu a justificação como perdão dos pecados e a imputaçãoda justiça de Cristo. Em outras denominações, entretanto, a justificação,via de regra era identificada com a regeneração e era descrita como mu-dança evidente na atitude da pessoa. «Justificação» deve significar que apessoa realmente é «tornada justa», e isto supunhase que exigia uma trans-formação interna.

No início da década de 1870 o já mencionado Waldenstrom propôs aidéia que a expiação, em seu sentido neotestamentário, não podia incluira propiciação do Pai pelo Filho, uma vez que Deus é a plenitude do amorimutável. Ao invés disso , dizia Waldenstrom, «expiação» (ou «reconcilia-ção») se refere a uma mudança na mente do homem. Este ponto de vista,que representava um rompimento claro com a doutrina tradicional da ex-piação, provocou violento debate durante os anos seguintes. Contra oconceito de expiação de Waldenstrom, com sua ênfase na transformaçãomoral do homem (expiação «subjetiva»), ficava a posição eclesiástica cor-rente que a justa ira de Deus contra o pecado do homem tinha sido des-viada pelo sacrifício de Cristo (expiação «objetiva»). Waldenstrom basea-va sua doutrina da expiação em certos padrões de linguagem que notou noNovo Testamento — «está escrito» era o argumento a que constantemente

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recorria — mas suas idéias também se harmonizavam com a poderosa tra-dição liberal do século XIX ; eram o resultado da interpretação racionalista e moralizante do cristianismo que ele representava.

Crescimento contínuo na santidade (ou santificação), concebido comoprolongamento da regeneração (a mudança que é resultado da justificação),

é um dos pontos mais freqüentemente enfatizados na teologia e pregaçãodo reavivamentismo. O cristão é obrigado a viver de maneira condizentecom a nova lei de Cristo, que é considerada não apenas com explicaçãoe repetição da lei dada na criação, ou da lei universalmente válida incor-porada nos Dez Mandamentos, mas como esfera ética superior que só po-de ser atingida pelos fiéis. A santificação baseiase na justificação pela fé,mas é também, por sua vez, o pressuposto para se alcançar a salvação,assim como também é a exigência prévia para se continuar membro na co-munidade cristã.

2. Tal como acontece com a doutrina da santificação, os movimen-tos reavivamentistas de igrejas livres também possuem, em certos sentidosao menos, posição uniforme com respeito à igreja e suas funções: A igre-

 ja é a comunhão vis ível dos crentes. Apenas aqueles que declararam suafé e seu desejo de viver em santidade são aceitos como membros de taiscongregações.

A organização externa, por seu turno, pode ser variada. Os meto-

distas possuem uma ordem definida para a recepção de membros, e tam-bém formam um grupo eclesiástico internacional com organização rigoro-samente regulamentada.

Mas outros grupos reavivamentistas, tais como os batistas e a Con-venção Missionária Sueca, são em princípio congregacionalistas, o que va-le dizer que partem do princípio que cada congregação local é independen-te e representa a igreja de Cristo. Todos os crentes são bemvindos emtais congregações, mas todos os descrentes devem ser excluídos. E as -

sim como os membros individuais devem viver em santidade, lutando con-tra a carne com a ajuda do Espírito Santo, assim também a congregaçãodeve crescer em santidade e por meio de rigorosa disciplina eclesiásticaexcluir os que vivem em descrença ou transgridem abertamente as regrasda congregação.

3. Relativamente aos sacramentos, opiniões e praxes divergentes

prevalecem.

Os batistas consideram o batismo apenas ato simbólico mediante o

qual o cristão confessa sua fé e é recebido na congregação. A exigênciade batismo de adultos resulta deste conceito. O significado atribuído aobatismo varia de um grupo batista para outro, mas nem o batismo nem aceia do Senhor são considerados meios da graça pelos quais se obtêmo perdão dos pecados.

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Este ponto de vista reformado também pode ser observado em outrosgrupos reavivamentistas de igrejas livres . Waldenstrõm, por sua vez , to-mou uma posição inteiramente diversa do conceito batista simbólico dossacramentos. Apesar disso, várias opiniões e praxes existem dentro daConvenção Missionária Sueca . •

O observador da época moderna pode ver que muitas mudanças ocor-reram com respeito a pressupostos doutrinários e que as diferenças entreas grandes denominações e as igrejas livres não são mais tão agudas co-mo uma vez foram. Isto pode ser explicado, em alguns casos, pela menorImportância conferida à doutrina, mas também há outros motivos para tanto.Existe, de ambos os lados, a tentativa de explicar de maneira mais simplese concreta os elementos fundamentais da fé cristã . Em vista disso, as an-tigas controvérsias tornaramse obsoletas. O diálogo ecumênico entre asigrejas estabelecidas e as igrejas livres é um dos resultados contemporâ-

neos. As discussões na Inglaterra entre a Igreja Metodista e a Igreja An-glicana, que visam união completa num futuro próximo, são talvez o exem-plo mais notável desta atividade.

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CAPITULO 34

A TEOLOGIA NA PARTE INICIAL DO SÉCULO XX ;TENDÊN CIAS CONTEMPORÂNEAS

HARNACK, KÀ H LER E B ILL ING

Adolf von Harnack (m. 1930), a quem já se fizeram referências acimacomo discípulo de Albrecht Ritschl, notabilizouse especialmente como his-toriador da igreja, dando ênfase maior à história do dogma. Dominou estaárea no tempo de sua própria vida e chegou a conhecer o vasto campoda patrística e da exegese como nenhum outro. Sua obra mais conhecida,Lehrbuch der Dogmengeschichte (llll, 188690, várias edições posteriores)foi o fruto maduro de sua multiforme pesquisa histórica.

Numa famosa série de conferências realizada em Berlim em 1900, pu-blicada posteriormente com o título Das Wesen des Christentums (O queé o Cristianismo), Harnack procurou apresentar um sumário do que ele con-siderava a essência do evangelho. Se Wilhelm Hermann (cf. acima, p. 327)

salientava sobretudo a experiência pessoal, interna, de Jesus, que se tornareal para o homem através da proclamação da Bíblia, Harnack dava maiorênfase ao cristianismo como fenômeno histórico. O elemento não temporalem sua mensagem, a verdadeira substância da fé cristã, é a pregação ori-ginal de Jesus , que pode se r derivada da leitura dos evangelhos. O pro-cesso de extrair o conteúdo doutrinário de qualquer documento era, paraHarnack, tarefa puramente histórica, e considerava os evangelhos comosendo, na maior parte, textos autênticos. Harnack resumiu a proclamaçãodo evangelho de Jesus sob os três tópicos seguintes, cada um dos quais,

 julgava ele, continha todo o evangelho:1. O reino de Deus revelado como realidade presente no coração

do homem.

2. Deus como Pai, o va lor absoluto do homem.

3. A justiça superior proclamada por Jesus, isto é, a lei do amor.

Este «ensinamento simples de Jesus» foi derivado dos evangelhos pe-la aplicação do método histórico. Poderseia considerálo a essência das

verdades religiosas ideais mais sublimes. Harnack com isso fixou firme-mente o cristianismo na história mas, ao mesmo tempo, também o apre-sentava como religião não afetada pelo tempo, universalmente válida. Tra-çava uma linha demarcatória definida entre os dogmas cristãos e o evan-gelho original, e considerava aqueles como desenvolvimentos posteriores,

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condicionados pela filosofia grega. Considerava os dogmas «criações doespírito helenístico no solo do evangelho».

O conceito de cristianismo de Harnack, tal como o de Hermann, ca-racterizavase pelo forte interesse na apologética. Numa época quando pa-recia estarem sendo os dogmas cristãos minados pela ciência, havia aqueles

que desejavam apresentar o que, independente de toda crítica científica,podia se r considerado como permanente e imutável na mensagem cristã. Oque de inusitado aconteceu com a interpretação histórica do cristianismo deHarnack é que foi refutada em muitos pontos pela própria pesquisa exe-gética e patrística feita nas primeiras décadas do século XX.

Que importância tem para a fé cristã a história que o estudo cientificoda Bíblia nos legou? Esta era uma das perguntas cruciais com que a teo-logia se defrontava no início do século. Como já vimos, Hermann e Harnack,ambos discípulos de Ritschl e membros da escola liberal de pensamento,

chegaram a respostas diferentes. Para Hermann o fundamento da fé residena atitude de confiança que chega a existir quando o quadro da vida internade Jesus é tornado real a uma pessoa através das palavras da Bíblia. Porconseguinte, do histórico dirigiase à experiência intemporal de uma con-frontação pessoal com Cristo. Para Harnack o cristianismo era, em primeirolugar, uma realidade histórica. Através da ciência da história podese en-contrar o evangelho, a proclamação original de Jesus, que, em seu ambientehistórico, é ao mesmo tempo uma verdade perene, que representa o idealreligioso.

No ano de 1892 Martin Kãhler (professor em Halle, m. 1912) publicouo livreto intitulado Der sogenannte historische Jesus und der geschichtliche biblische Christus (O Assim Chamado Jesus Histórico e o Cristo Bíblico Histórico). Nesta obra Kãhler abordou o problema de fé e história de ummodo que prenunciou as novas tendências da teologia. Kãhler rejeitou astentativas dos teólogos liberais de descrever um retrato do Jesus histórico.Tais esforços resultam numa falsificação, uma vez que as fontes existentes— sobretudo, os evangelhos — não visavam apresentar uma biografia deJesus no sentido moderno do termo. Destinavamse antes a fornecer o fun-damento para a proclamação de Cristo por parte da igreja. O objetivodos evangelhos não era o de apresentar a descrição erudita de uma pes-soa mas promover a proclamação que estabeleceria a igreja e criaria afé. O Cristo da fé é idêntico ao Cristo histórico (geschichtlich) de quem aBíblia dá testemunho. Kãhler distinguiu entre historisch e geschichtlich nes-te contexto. Como historisch referiase ao que a moderna ciência da histó-ria incorpora a seu cabedal de fatos concretos. Geschichtlich, por outrolado, era empregado com referência ao histórico em seu significado paraa humanidade ou para os homens de nosso tempo. De acordo com Kãhler,a fé não apenas se relaciona com o histórico mas também com o que sesitua «além da história», isto é, com o eterno, que é decisivo para a sal-vação do homem e é revelado nos eventos históricos testemunhados pelaBíblia.

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O livro de Kãhler continua a manter sua importância até o presente.Seu ponto de vista foi o prenúncio de várias tendências teológicas quedesde então se afirmaram poderosamente. Os exegetas da assim chamadaescola da «crítica da forma», por exemplo, retomaram a idéia que a próprianatureza do evangelho tinha como finalidade servir a sua proclamação e

era determinada pela pregação sobre Cristo, corrente na comunidade cristã.Esta percepção também formou a idéia básica da assim chamada teologia«querigmática», representada por Karl Barth e seu grande número de dis-cípulos.

Havia uma faceta idealista no pensamento de Kãhler, por exemplo, suaênfase no que está «além da história». Em si, este termo podia ser inter-pretado como apontando exclusivamente ao transcendental, ao eterno —àquilo que está «acima da» história. Este, porém, não é o caso. Kãhlerdizia que o que é importante para a fé cristã pode ser encontrado preci-samente dentro do contexto da história, no Cristo histórico da Bíblia (totusChristus) e não apenas em sua vida interior (como Hermann dizia) ou emcertos conceitos religiosos intemporais contidos em sua pregação, comoHamack afirmava.

A crítica histórica da Bíblia — que já começara há muito tempo masnão se tornara o método teológico dominante antes do final do século XIX— pode ter parecido um adversário da fé cristã, na medida em que seconsiderava esta uma doutrina intemporal e imutável, transmitida uma vez

por todas na Bíblia, e na medida em que se acreditava que a Bíblia comoum todo continha pronunciamentos de valor absoluto. A solução dos pro-blemas suscitados por esta nova crítica da Bíblia foi um dos principais temasda atividade teológica no início do século. Já notamos como Martin Kãhlertentou responder uma das questões em pauta insistindo que o assim cha-mado Jesus «histórico» era uma fals ificação moderna. O Cristo real bíblicoé o Cristo que é proclamado em toda parte, que vive e está presente nacongregação cristã . O Cristo em quem os cristãos crêem e o Cristo doqual os evangelhos dão testemunho é um só e o mesmo. A «crítica» his-

tórica do texto nunca pode recuar além dos «testemunhos da fé» originais,e estes devem ser considerados como elementos na pregação das primeirascongregações.

Problemas semelhantes foram também enfrentados por Einar Billing(professor em Uppsala, bispo de Vãsteras, m. 1939), que demonstrou clara-mente tratar a revelação bíblica de fatos históricos, da maneira de Deuslidar com seu povo e da vida de Jesus, e não, como no caso da filosofiagrega, de um conceito universal de conhecimento. Ainda que o contraste

entre o pensamento grego e a Bíblia não é tão fundamental como algunspretendem, a descoberta de Billing do que mais tarde foi denominado con-ceito «dinâmico» da revelação da Bíblia teve valor perene. Este conceitonão apenas serviu para alterar a maneira de se encarar a Bíblia mas tambémo modo de se conceber a tarefa da teologia. Se nosso contato com o divino

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e o eterno é concretizado, de acordo com a Bíblia, pela própria intromissãode Deus na história, e não através de qualquer conhecimento intemporal deverdades eternas, então decorre disso que a função da teologia não podeser a de apresentar o cristianismo como sistema lógico impecável; a teo-logia de algum modo deve fazer justiça aos elementos históricos e dinâ-micos na revelação bíblica.

Billing tornouse figura proeminente na moderna teologia sueca tam-bém por outros motivos. Como resultado de erudito exame da doutrina doestado de Lutero (1900) tornouse o progenitor da moderna pesquisa deLutero na Suécia, escola que chegou a dominar a teologia sueca nas dé-cadas de 1920 e 1930, até mesmo, em grande parte, no setor da sistemática.Esta «renascença de Lutero», como geralmente é denominada, contribuiusignificativamente para a teologia protestante do século XX. Pois a pesquisade Lutero desenvolveuse de modo similar também no continente europeu,liderada por historiadores como Karl Holl e Heirich Boehmer e sistemáticoscomo Cari Stange, Rudolf Hermann e Paul Althaus.

Na discussão sobre a natureza da igreja, Billing desenvolveu (em vá-rias contribuições significativas) o que denominava a idéia da igreja popularmotivada pela religiosidade». Esta idéia baseavase no caráter territorialda Igreja da Suéc ia. Toda a Suéc ia está dividida em paróquias, e Billingafirmava que tal sistema muito contribui para dar expressão à universalidadeda proclamação da graça. A igreja tem a responsabilidade de pregar o evan-gelho a toda a nação. A igreja popular motivada pela religiosidade, diziaBilling, não se prende à estrutura de uma «igreja estatal» — mas sua idéiade igreja também não se baseava num conceito de religiosidade universalque deveria constituir o fundamento da proclamação cristã. A eclesiologiade Billing dirigiase claramente contra a tendência da igreja livre com seuconceito de igreja como a comunhão exclusiva dos crentes. A idéia daigreja popular como proposta por Billing, no entanto, não esclareceu ques-tões como disciplina eclesiástica e o papel das confissões como base dacomunhão eclesiástica.

A ESCOLA DA HISTÓRIA DAS RE LIGIÕ ES

Quando Adolf von Harnack proferiu suas conferências sobre «Que éo Cristianismo?» afirmou que uma apresentação universalmente válida dareligião cristã podia ser feita com base no exame puramente histórico damensagem original de Jesus. Todavia, a pesquisa contemporânea no campoexegético revelou outra tendência, que parecia contradizer os pressupostosde Harnack e da teologia liberal. Esta téndência originouse com certosteólogos que receberam a denominação de escola da história das religiões(ou religiões comparadas).

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Investigandose a história do cristianismo primitivo, com a aplicaçãodo método histórico, não se encontrará uma religião universal mas váriasidéias e pressupostos que são tão estranhos ao moderno modo de pensarque não podem ser transferidos com sucesso para nosso tempo e incor-porados em nossa instrução religiosa.

A maioria desses elementos estranhos do cristianismo primitivo sãode natureza escatológica e apocalíptica. Jesus e seus discípulos tomaramessas idéias do judaísmo da época do Novo Testamento. Num livro sobreo conceito do reino de Deus na pregação de Jesus (Die Predigt Jesu vom Reich Gottes, 1892), o jovem estudioso alemão Johannes Weiss demonstrou,de modo puramente exegético, que a pregação de Jesus sobre o reino deDeus falava da vinda de um reino futuro, escatológico, de Deus, que setornaria realidade no fim iminente da época atual.

Isso constituía sério desafio ao conceito liberal de reino de Deus(como, por exemplo, em Ritsch l; cf. acima, pp. 32527). A escola liberal con-cebia o reino de Deus como entidade no mundo atual, tornada realidadepela fé e manifestada cada vez mais na comunidade cristã.

Johannes Weiss e seus colaboradores destacaram estes elementos ori-entais e do judaísmo tardio tão alheios à era moderna. O interesse nocontexto histórico das religiões começou então, e o cristianismo chegou aser considerado um elo no desenvolvimento que resultara em parte da his-tória religiosa oriental antiga e em parte da história religiosa helenístico

 judaica. Mas é possível aceitar essa interpretação e ainda assim insistir queo cristianismo é uma religião adequada à era moderna e que satisfaz asnecessidades religiosas modernas? Este tornouse um problema real paraa escola da história das religiões. Esta escola foi apoiada por forte inte-resse erudito, e auxiliou a desacreditar muitas das ilusões que a teologialiberal acalentara ao tentar adaptar a fé cristã ao pensamento moderno.

Do ponto de vista da pesquisa a escola da história das religiões foide grande importância; esclareceu o caráter único, suigeneris do cristianis-

mo em muitos pontos. Foi precisamente contra esta perspectiva de estudomais profunda da história das religiões que tornouse especialmente signi-ficativo investigar e descrever o cristianismo em seu caráter histórico semparalelo, sem adaptálo a pressupostos racionalistas modernos. A esco lada história das religiões realizou bom trabalho preliminar nesta área, emboranão alcançasse resultados definitivos de importância fundamental para ofuturo. Mas, bom número de homens nesta escola finalmente terminaramesposando os conceitos da teologia liberal, especialmente quando enfren-tavam a tarefa de apresentar a mensagem real do cristianismo.

A razãtí para a ausência dos resultados esperados reside talvez nofato que o quadro então pintado do desenvolvimento histórico da religiãofoi em grande parte uma invenção, alheia aos textos examinados. A finali-dade declarada não correspondia com a concepção do próprio cristianismo

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sobre seus documentos originais: o objetivo em mira não era o de com-preender a natureza própria destes textos mas de usálos como base paraa estruturação de uma história da religião de Israel e do cristianismo pri-mitivo. Neste programa residiam tanto a força como a fraqueza da escolada história das religiões. ’

A descoberta de Weiss, que o reino de Deus, na pregação de Jesus,era uma realidade futura, situada além desta era presente, foi retomada ereestruturada por Albert Schweitzer (m. 1965) no livro intitulado Von Rei- marus zu Wrede (1906; edições posteriores levavam o título: Die Geschichte der Leben-Jesu-Forschung). Neste estudo Schweitzer interpretou toda a car-reira de Jesus (e não apenas suas palavras) como visando alcançar umobjetivo: apressar a queda da atual estrutura do mundo e assim fazer vir oreino de Deus.

Quando as expectativas referentes ao retorno de Jesus e à imediatavinda do reino de Deus não se cumpriram, o conteúdo da mensagem cristãfoi gradualmente alterado. Toda a doutrina da igreja, como a proclamaçãodo Novo Testamento, devem ser entendidas à luz dessa convulsão escatológica originalmente esperada mas que deixou de concretizarse.

A tese de Schweitzer — denominada a tese da «escatologia coerente»— foi edificada sobre fundamento exegético inadequado e subseqüentemen-te foi abandonada pelos estudiosos. Mas suscitou vivo debate logo quefoi publicada, e como resultado alcançou grande repercussão. Schweitzer

enfatizava tão claramente como possível que a suposta mensagem originalde Jesus não era algo que pudesse ser aplicado nos tempos modernos;pertencia ao meio apocalíptico estranho ao homem de hoje.

A concepção do cristianismo de Schweitzer como religião existencialnão tem relação com os resultados de sua própria pesquisa sobre o cristia-nismo primitivo. Por outro lado, escolheu algumas idéias do idealismo ale-mão e do humanismo e tornou o conceito de «reverência pela vida» (Ehrfurch vor dem Leben) a base de sua vida religiosa.

Schweitzer foi o mais radical representante da escola da história dasreligiões, mas houve muitos outros estudiosos de destaque que estruturaramseus princípios básicos em sua obra. Entre estes encontrase HermannGunkel (m. 1932), que, entre outras coisas, fez contribuição significativa àhistória da literatura do Antigo Testamento num comentário sobre Gênesis(1901), e Wilhelm Bousset (m. 1920), que investigou o conceito de Cristona igreja antiga, usando a nova história das religiões como ponto de par-tida. Isto ele fez em seu livro Kyrios Christos: Geschichte des Christusglaubens von den Anfängen des Christentums bis auf Irinäus (1913).

As contribuições feitas pela escola da história das religiões na áreada pesquisa bíblica também inspiraram novo interesse na história religiosauniversal (Nathan Sõderblom; Eduard Lehmann), bem como na psicologiada religião (cf. William James, The Varieties of Religious Experience, 1902,

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obra que se tornou normativa para a moderna pesquisa empírica no campoda religião).

Historiador e filósofo da religião de alto gabarito, que também podeser considerado representante da escola da história das religiões, foi EmstTroeltsch (professor em Heidelberg e alhures, m. 1923). Troeltsch baseou

suas conclusões numa radical interpretação histórica do cristianismo. Ocristianismo, dizia, não pode ser considerado a religião absoluta, mas ape-nas a forma historicamente mais elevada de religião do desenvolvimento dapersonalidade. Troeltsch defrontouse com o problema de revelação e his-tória. Para ele, esta era uma questão fundamental: Como é que se podeaceitar uma interpretação histórica coerente do cristianismo e ao mesmotempo afirmar seu poder salvador e seu papel na pregação contemporânea?Troeltsch procurou encontrar uma síntese cultural através do conceito dereligião natural. De acordo com sua opinião, todos os julgamentos de valor,

religiosos bem como morais, baseiamse em certos pressupostos evidentesna razão humana (o a priori religioso).

O significado da liberdade pessoal e de tomar decisões foi claramentereconhecido por Troeltsch, mas jamais conseguiu resolver o problema derelacionálo com o conceito crítico, empiricamente indutivo da história. Emtudo isto, entretanto, antecipou desenvolvimentos posteriores e apontou atendências que subseqüentemente floresceram com grande vigor. Tal acon-teceu, por exemplo, com a ênfase dada ao cristianismo como mensagem pro-

clamada que leva o indivíduo a enfrentar a necessidade de tomar uma de-cisão aqui e agora (teologia dialética), e também com a discussão contínuaem torno da justificativa da interpretação histórica do cristianismo e suaimportância para a teologia.

As contribuições feitas pela escola da história das religiões à esferada teologia sistemática foram de pouco valorpara ofuturo e, em sua maio-ria, já foram há muito esquecidas. Mas a metodologia e a pesquisa pura-mente histórica deste grupo tiveram significado permanente.

TEOLOG IA D IALÉT ICA

Imediatamente após o fim da Primeira Guerra Mundial foi publicadoum comentário sobre a Carta de Paulo aos Romanos(Der Romerbrief, 1919,o Prefácio, 1918) pelo pastor suíço chamado Karl Barth (m. 1886, professorem Basilé ia a partir de 1935, m. 1968). Neste livro Barth formulou vigorosoprotesto não apenas contra a teologia contemporânea mas contra toda atradição que se vinha formando desde Schleiermacher e que fundamentavao cristianismo na experiência humana e considerava a fé um elemento navida espiritual do homem. Der Romerbrief foi também um protesto contraaquelas escolas que tinham transformado a teologia em ciência da religiãoe tinham apresentado a análise históricocrítica da Bíblia como a única

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interpretação possível. Barth publicou a segunda edição da obra poucosanos depois (1922; Prefácio, 1921), e esta edição, completamente revisada,pode ser considerada o início da nova escola que posteriormente tornouseconhecida como a escola dialética. O homem que mais intimamente cola-borou com Barth nesta escola foi Edouard Thurneysen (m. 1888, pastor naSu íça , e mais tarde professor em Basilé ia). Outros colaboradores foram EmilBrunner, como Barth, teólogo reformado (professor em Zurique, m. 1966),e o teólogo luterano Friedrich Gogarten (n. 1887, professor em Gõttingendesde 1935).

Durante a década de 1930 Barth e Brunner separaramse, e tambémGogarten passou a manifestar suas reservas quanto à teologia barthíana.A partir de então é impossível falar da teologia dialética como escola uni-forme.

Tendo em vista nossa finalidade presente, dirigiremos nossa atençãoa várias idéias básicas tratadas na literatura barthíana. Além do já men-cionado Rõmerbrief, a enorme produtividade de Barth resultou na publicaçãode obras significativas tais como Das Wort Gottes und die Theologie, 1925 ,coleção de proposições que esclarecem consideravelmente as primeiras fa-ses da teologia dialética; Christiiche Dogmatik-Prolegomena, 1927 (a primei-ra versão de sua dogmática que não chegou a concluir); Fides quaerens intellectum, 1931, comentário sobre a teologia de Anselmo; Kirchliche Dogmatic, 1932 ss.

Barth também escreveu sobre questões políticas. Foi um dos líderesda «igreja confessante» na Alemanha Nazista, e foi expulso daquele paísem 1934. A assim chamada declaração de Barmen — que serviu de docu-mento confessional para a igreja em seu conflito contra o hitlerismo —baseouse na teologia de Barth e foi, em grande parte, produto de suapena. Em anos subseqüentes, Barth insistiu que a igreja mostrasse maiorabertura face ao comunismo (Eine Schweizer Stimme, 1945).

Em notável contribuição à controvérsia sobre o batismo (Die kirchliche 

Lebre von der Taufe, 1934), Barth, usando a tradição reformada como pontode partida, repudiou o batismo infantil recomendando o batismo de adultos.

A teologia dialética foi um dos resultados da crise cultural que surgiucomo resultado da Primeira Guerra Mundial, e continha, entre outras coisas,violenta crítica à teologia da escola da história das religiões. Barth nãorejeitou a interpretação históricocrítica da Bíblia em si, mas acreditou quedeixava de atingir seu alvo porque se ocupava com questões periféricas e dei-xava de enfrentar os problemas reais nos textos em consideração. Comofez ver claramente em Der Rõmerbrief, Barth pretendia substituir a interpre-

tação meramente filológica e histórica com uma exposição «dialética» maisprofunda do próprio material bíblico. Encontrou seus exemplos principal-mente nos clássicos da tradição cristã, como, por exemplo, em Lutero eCalvino. A interpretação da Bíblia de Barth, entretanto, não é mera cópia

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da obra dos reformadores; a dialética que encontrou na Bíblia não é, comoacontece com Lutero, o contraste entre a ira e a graça de Deus, entre opecado do homem e a justiça providenciada por Deus; é antes o contrastefundamental entre eternidade e tempo, entre Deus como Deus e o homemcomo homem. «Se eu tenho um sistema', é este, que no grau mais elevado

possível, fixo minha atenção tanto sobre o significado positivo como sobreo negativo do que Kierkegaard denominava ‘a diferença qualitativa infinita'entre tempo e eternidade. ‘Deus está no céu, e tu estás na terra. A rela-ção deste Deus com este homem, e a relação deste homem com este Deusé para mim tanto o tema da Bíblia como a totalidade da filosofia» (Der Rõmerbrief, Prefácio da Segunda Edição).

A aplicação deste conceito fundamental, via de regra, resultou na re- jeição do humano, fazendo assim lugar para a revelação divina, para o«totalmente outro», que é revelado pela palavra de Deus aos que em espí-

rito de humildade mostramse receptivos às ações divinas e à mensagemda igreja.

A idéia de revelação de Barth — ou a palavra de Deus (da qual falounos dois primeiros volumes de sua Kirchliche Dogmatik, 193238) — é con-dicionada de princípio a fim pelo contraste entre tempo e eternidade. Estapressuposição constitui um elemento de idealismo na teologia de Barth,que de outro modo toma a forma de protesto contra a tradição idealista.«Eternidade» neste contexto não sugere prolongação do tempo, ou eterni-dade no sentido bíblico de nova era. Como Barth usa o termo, refereseem lugar disso, ao puramente transcendental, que nada tem em comumcom o tempo e que portanto pode estar igualmente presente em todas asépocas. A relação Deushomem é concebida como paralelo direto do con-traste entre tempo e eternidade.

A Palavra e as ações de Deus, portanto, nunca podem ser identificadascom palavras humanas ou eventos históricos registrados na Bíblia, mas de-vem ser consideradas puramente transcendentais. Quanto à teologia, istosugere — entre outras coisas — que a assim chamada teologia natural deve

ser negada. O divino implica na negação do humano e nunca pode serconsiderado como imanente na natureza humana ou como tendo qualquerponto de contato com ela. Portanto, Barth chegou a considerar a Bíb lia ea história da salvação como meras analogias da Palavra e das ações trans-cendentais de Deus e testemunho (Zeugnis) delas. A Palavra pregada eescrita — a única que ultrapassa o abismo entre Deus e o homem — nadamais faz do que apontar (hinweisen) para a verdadeira revelação divina, asaber, a palavra de Deus em seu sentido absoluto e transcendental.

Nisto podemos ver a base para o emprego do assim chamado método

dialético por parte de Barth — pelo qual colocamse pontos de vista dife-rentes um em oposição ao outro, a fim de que possam mutuamente lançarluz sobre o assunto em foco. Barth insiste que somos incapazes de esc la-recer ou expressar o conteúdo da revelação divina usando afirmações di-

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retas, o que constituiria uma abordagem «dogmática». Isto ,em sua opinião,só pode ser feito com base no confronto permanente de afirmações con-trastantes. Deste modo, podese atingir um equilíbrio entre as declaraçõesque afirmam e as que negam certa proposição. Desta maneira interrogamse as respostas e respondemse as perguntas. «Apenas resta, pois . . .

relacionar ambos, o positivo e o negativo, um com o outro. Para esclarecero sim pelo não e o não pelo sim, sem nos demorarmos mais que um mo-mento no sim ou no não; deste modo, por exemplo, falando da glória deDeus na criação apenas para passar imediatamente a ressaltar que Deusestá completamente oculto a nós na natureza, e falar da morte e da transitoriedade da vida apenas para lembrar a majestade da vida inteiramenteoutra que vem a nosso encontro nessa própria morte.» (Das Wort Gottesund die Theologie, p. 172).

A idéia que a proclamação, ou o quérigma, constitui o ponto de par-

tida para a teologia é fundamental para o pensamento de Barth, e muitosoutros teólogos modernos tomaram de empréstimo essa idéia, inclusive al-guns que no mais estão muito afastados da escola dialética.

O próprio Barth era pastor paroquial quando estreou como escritorno campo da teologia, e julgava que a teologia devia servir exclusivamenteàs necessidades da pregação. Ou, mais especificamente, diria que a tarefada teologia é a de testar e guiar a pregação de maneira crítica. Isto é acimade tudo a tarefa da dogmática, que Barth define nas palavras seguintes:

«A dogmática como disciplina teológica é a autocrítica científica da igrejacristã relativamente ao conteúdo de sua linguagem própria sobre Deus.»(Kirchliche Dogmatik, I, 1, 1).

A proclamação assume posição central não apenas como pressupostoda atividade teológica mas também porque é o ponto em que a palavrade Deus confronta a congregação ouvinte hoje. Assim é que o encontrodivinohumano ocorre, conduzindo à decisão e à fé. Muitos teólogos mo-dernos combinaram este conceito básico com a filosofia existencialista, co-mo, por exemplo, a escola de Bultmann. Ouvimos muito hoje sobre teologia

«querigmática», que se distingue da que é mais dirigida para a história,e da espécie de teologia que se contenta em fornecer uma análise des-critiva ou crítica da tradição cristã.

O conceito de palavra de Deus de Barth nos conduz a sua cristologia.A palavra de Deus, segundo Barth, confronta o homem não apenas na men-sagem proclamada, mas também na palavra escrita (a Bíblia), que forneceas normas para a pregação e o critério segundo o qual a pregação deveser testada. Significa isto, então que a Escritura é a palavra de Deus? Não

no sentido direto, segundo Barth — mas a Escritura, por seu turno, referese à Palavra «revelada», a saber, ao aparecimento do Deus oculto em Cristo.A Bíblia «dá testemunho» da revelação que ocorreu com a vinda de Cristo.«Dar testemunho» (bezeugen) neste contexto significa «apontar a uma dire-ção definida além de si próprio a alguém outro» (Kirchliche Dogmatik, I, 1,

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14). O divino não pode de nenhum modo ser colocado no mesmo nível comqualquer coisa temporal ou humana; esta pode, portanto, apenas «apontar»na direção daquele.

O abismo entre Deus e o homem foi ultrapassado em um ponto, en-tretanto, e isto ocorreu com a encarnação, que significa que a eterna pa-

lavra de Deus houve por bem assumir a natureza humana, e o fez em JesusCristo . Isto foi expressão da liberdade soberana de Deus, ação que ocorreuexclusivamente como resultado do exercício da liberdade divina. Barth en-contra isto ilustrado no nascimento de virgem: o milagre da encarnaçãoteve lugar sem qualquer cooperação humana.

A cristologia que Barth desenvolve a partir dessas premissas ocupalugar central em sua dogmática. Visto não se r possível qualquer contatoentre o divino e o humano a não ser na encarnação, o resultado é que

todas as questões no campo da dogmática são relacionados com a cristo-logia. A relação entre Deus e o homem — o tema básico da teologia (vejaseacima) — foi demonstrado em Cristo de modo exemplar. Nele vemos re-fletido o modo de Deus tratar com o homem e a obediência do homem esua elevação à semelhança com Deus. A criação não tem outro significadoque o de prefigurar a ação de Deus que seria realizada em Cristo. A dou-trina da igreja de Barth, e também sua ética, foram desenvolvidas de acordocom sua cristologia; supunha ele servirem ambas para explicar a relaçãoentre Deus e os homens que é ilustrada na pessoa e obra de Cristo.

O modo como Barth relaciona a doutrina da predestinação com suacristologia é especialmente esclarecedor. Assim como a corrente reformadaà qual ele pertence, Barth aceita o conceito da dupla predestinação. Maso termo «predestinação» não significa, de acordo com Barth, que algumaspessoas foram escolhidas para serem salvas e outras para serem conde-nadas; referese, em vez disso, a Cristo , que ao mesmo tempo representaa escolha e a rejeição do homem. O destino sofrido por Cristo reflete umprocesso intratrinitário com o qual Deus escolhe o Filho, e nele a espéciehumana, e que ele rejeitou o Filho e permitiu que se submetesse à mortea fim de que pudesse ser ressuscitado para a glória eterna na ressu rreiçãoe através dela. A predestinação é, pois, uma decisão eterna feita por Deus,significando que os homens — todos os homens — são admitidos à salva -ção, enquanto que o próprio Deus, na forma do Filho, toma sobre si mesmoa condenação.

Isto significa, segundo a interpretação de Barth, que o relato do NovoTestamento referente a Jesus de Nazaré não é em si e por si só mensa-gem de salvação , mas apenas uma referência a — ou imagem de — algo

que teve lugar na esfera eterna como processo dentro da divindade. Asalvação é universal e, falando praticamente, é concebida como ocorrênciatranscendente de que a Palavra proclamada pode apenas ser testemunha(Zeugnis).

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Barth encara a morte e a ressurreição de Jesus como analogia ao pro-cesso eterno de Deus rejeitar e esco lher o Filho. À luz desta interpretação,a vida terrena de Jesus, em sua maior parte, é relegada a uma posição se-cundária. A rejeição de Cristo por parte de Deus Pai não é tornada claraaté o momento de sua morte, enquanto que a Iressurreição retrata sua elei-

ção eterna.Ao mesmo tempo, o que ocorreu na vida de Cristo serve como pa-radigma para a salvação de toda a humanidade. Chegando a perceber asalvação eterna, o homem vem a participar nela. Esta percepção chega aohomem através da pregação do evangelho de Cristo, através da Palavraproclamada.

A cristologia de Barth, finalmente, resulta, pois, em uma espécie dedoutrina especulativa de salvação universal. Comparandose esta concep-ção com a variedade de pontos de vista sustentados na história do cristia-

nismo antigo, descobrese que a posição de Barth é um tanto inusitada:contém tanto tendências docéticas como nestorianas. É docética na medidaem que sugere ser a mensagem do evangelho apenas ilustração de um even-to intratrinitário, de natureza exclusivamente divina, e é nestoriana na me-dida em que a humanidade de Cristo nunca é identificada com sua divindademas é concebida apenas como analogia dela. Ou — expressandoo de ou-tra maneira —■o histórico (o testemunho neotestamentário de Cristo), queBarth toma muito a sério em si, é considerado como possuindo significadoapenas enquanto expressa o que Barth denomina de die Urgeschichte, isto

é, o evento intemporal dentro da divindade, o modo como o Pai trata como Filho.A faceta «cristocêntrica» da teologia de Barth implica no completo re-

púdio de toda e qualquer espécie de teologia «natural». Já em seu comen-tário sobre Romartos, Barth atacava a religiosidade humana (ou religião na-tural), que se baseia somente na experiência humana e considerava a reli-gião um dos aspectos desta experiência . Tudo o que é humano deve redu-zirse a nada na presença da Palavra divina, que vem «diretamente do alto»e assim invade a existência humana e leva o homem a enfrentar a necessi-

dade de tomar uma decisão.Quando Emil Brunner em Natur und Gnade (1934) afirmou que apesar

disso deve haver um ponto de contato no homem natural para a Palavraproclamada a fim de que o homem possa ser influenciado por ela, Barthrespondeu com um não categórico. Em uma declaração intitulada Nein (1934) Barth não só se dissociou da teologia natural em sua forma tradicional (aidéia que o homem possui certo conhecimento de Deus e também umapercepção natural relativa a certo e errado) mas também do conceito deBrunner da existência de «um ponto de contato». Esta controvérsia pro-

vocou a separação de Bart e Brunner. Mas a rejeição da «teologia natural»por parte de Barth provocou forte impacto sobre a teologia contemporâneaem todo o caso, mesmo fora da escola dialética. Aparece, por exemplo, naDeclaração de Barmen de 1934.

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e outros filósofos. Era teólogo e filósofo da religião; o principal problemade que tratam seus livros é a relação entre teologia e filosofia, entre re-velação e realidade empírica, bem como entre teologia e cultura.

Desde o ataque violento de Kierkegaard ao sistema hegeliano, a filo-sofia do idealismo e o tipo de pensamento que se baseia a experiência hu-

mana concreta eram considerados incompatíveis e opostos entre si. A ori-ginalidade da obra de Tillich reside nisto, que edificou seu sistema de ma-neira estritamente idealista, mas também incorporou nele uma «análise exis-tencial» através da qual procurava utilizar os estímulos do pensamento exis-tencialista. Todavia, é necessário que se diga que o que Tillich escreveusobre a situação humana em relação às questões últimas da vida (ou sobrea «existência» do homem) parece ser exatamente o contrário do conteúdodo seu sistema. Isto parece indicar que o sistema é o fator dominante —o que determina o conteúdo da análise existencial.

De acordo com Tillich, aquilo que constitui nossa «preocupação últi-ma» é o objeto da teologia. A fim de determinar o que esta é, empregoua terminologia da antiga ontologia: nossa preocupação última é o que de-termina nosso «ser ou não ser». Deus, que é o «Ser em si» , é a respostaàs questões últimas do homem. A própria situação do homem é de alie-nação relativamente à realidade verdadeira. Mas uma vez que Deus ingres-sou na existência humana, deu ao homem a possibilidade de descobrir seudestino no Novo Ser, que se realiza em Cristo.

O sistema de Tillich se baseia, portanto em uma espécie de ontologiaque, presumese, dá a resposta absoluta às questões que os homens le-vantam como resultado de seu sentimento de alienação. A suposição quepergunta e resposta, sistema e análise existencial, relacionamse mutuamen-te é a essência da abordagem metodológica que Tillich emprega.

A substância dos dogmas cristãos está incluída no sistema de Tillich,mas seu caráter genuíno de algum modo perdeuse nele. Foi inteiramentereinterpretada e reduzida a símbolos que são usados para ilustrar a tran-sição do homem do estado de alienação ao Novo Ser. O fato que a união

entre Deus e homem, entre ser e existência, é ilustrado na figura neotestamentária de Jesus de Nazaré é coincidência . A historicidade da vida ter-rena de Jesus, sua morte e ressurreição, deixam de ter significado no con-texto do sistema. (C f. K. Hamilton, The System and the Gospel, 1963).

Numa situação influenciada tanto pelo existencialismo de Kierkegaardcomo pela percepção da base histórica do cristianismo, o sistema teológicode Tillich pode parecer um remanescente antiquado da tradição idealista.Mas subjacente a sua confiança num sistema de absolutos, e subjacentea suas especulações metafísicas, encontrase um interesse apologético —

o de apresentar o cristianismo como a maneira de escapar da confusão daépoca atual, capacitando os homens a experimentar o senso de integralidade, que, segundo este mesmo sistema, é a resposta às necessidades maisprofundas do homem.

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Tillich, ao mesmo tempo, também procurou criar uma síntese cultural,em que o humanismo e o cristianismo pudessem ser reunidos em comple-ta harmonia. Neste sentido sua teologia contrasta flagrantemente com ade Barth. A principal obra teológica de Tillich é sua Teologia Sistemática (Systematic Theology). Boa parte de sua obra trata da filosofia da religião.

RUDOLPH BULTMANN; O DABATE SOBRE QUERIGMA E HISTÓRIA

Intenso debate teológico foi deflagrado em 1941 quando o famosoexegeta Rudolph Bultmann (n. 1884, professor em Marburgo) publicou opequeno volume intitulado Neues Testament und Mythologie (que era umaparte da obra maior Offenbarung und Heilsgeschehen). Numerosas contri-buições foram introduzidas na discussão que seguiu, escritas tanto por teó-

logos como por cientistas. O assim chamado debate de Bultmann abran-geu várias questões de primeira importância nos campos da teologia exe-gética e sistemática, e constitui um dos mais importantes elementos no de-senvolvimento teológico do período de apósguerra.

O volume de Bultmann, acima citado, afirmava que a cosmovisão doNovo Testamento, com seu conceito de demônios e ações sobrenaturais,de milagres, da preexistência de Jesus, dos cataclismas dos últimos dias,etc., é incompatível com o conceito de realidade do homem moderno. Bultmsnn referese a esses elementos neotestamentários como sendo «mitoló-gicos». Como devem se r eles interpretados? Como deve o homem que re-cebeu uma educação moderna encarálos? Este é o problema, tal comoBultmann o formula.

É claro que na opinião de Bultmann os elementos mitológicos do No-vo Testamento não são de natureza meramente periférica — também abran-gem os elementos essenciais da fé cristã.«Em vista disso, não é soluçãosatisfatória a da teologia liberal, isto é, eliminar simplesmente o mítico afim de preservar a base moral e as idéias religiosas na Bíblia. Também não

se pode fazer um sacrificium intellectus e aceitar o mítico como tal, sim-plesmente porque se encontra na Bíblia. Isto seria repugnante à honesti-dade intelectual e tornaria a fé uma realização humana. Foi em vista dissoque a exposição de Bultmann resultou na exigência da «desmitíficação»(Entmythologisierung) da mensagem do Novo Testamento. Empregando es-te termo — que tantas vezes provocou equívocos — Bultmann não sugereque o mitológico seja eliminado, mas antes que seja interpretado de acor-do com sua finalidade original. Quando isto acontece, diz Bultmann, o ele-mento mítico cairá por si mesmo.

De acordo com Bultmann, a exigência de desmitificação é realmentefeita pelos próprios mitos, uma vez que não pretendem descrever eventosou fatos externos mas antes dizer algo sobre a existência humana. Devemser interpretados antropologicamente, não cosmologicamente — ou, para

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usar outra das expressões do próprio Bultmann, a necessidade da corretacompreensão dos mitos, por um processo de desmitificação,' só pode sersatisfeita através da «interpretação existencial».

Isto significa que a referência da mensagem à situação humana, e oapelo ao homem para tomar uma decisão, são colocados no centro. Bult-

mann combina conceitos fundamentais teológicos querigmáticos com pon-tos de vista que deliberadamente extraiu da filosofia existencialista con-temporânea, cujo principal expoente alemão, Martin Heidegger, foi por al-gum tempo colega de Bultmann em Marburgo.

Nesta filosofia Bultmann encontra um conceito de homem que, emessência, concorda com a concepção neotestamentária. Em seu ambientenatural, o homem está sujeito aos poderes deste mundo, aos interessestemporais, às coisas que tem a seu dispor. Seu verdadeiro destino encon-

trase na libertação desta dependência, de modo que possa dedicarse aofuturo sem esses sentimentos de ansiedade que o perseguem enquanto éconservado cativo pelo que é temporal. Esta mudança na situação humanapode ter lugar através da mensagem sobre Cristo, que por sua morte re-presenta o morrer para este mundo, tornandose com isso a fonte de novaforma de existência. O querigma, a mensagem da morte de Cristo e deseu triunfo sobre a morte, oferece a possibilidade de alterar a existênciado homem; isto acontece na decisão da fé, que é a resposta do homemao apelo do querigma.

Tal é, em forma esquemática, o conceito de existência humana queconstitui o ponto de partida para Bultmann. A interpretação existencial visadescrever as condições da existência humana e as possibilidades que ohomem tem de alterar sua existência e de tornarse livre. O alvo propostoé dar ao homem uma nova compreensão de si mesmo (Selbstverstãndnis).

O que Bultmann pretendia fazer com isso é utilizar o conteúdo doevangelho apresentandoo em uma forma que corresponda à compreensãodo homem moderno de si mesmo e de sua situação. Em sua opinião, a

antropologia da filosofia existencialista não representa apenas o conceitomoderno de realidade; também concorda com o objetivo principal do pró-prio Novo Testamento.

Em algumas de suas obras anteriores (por exemplo, Jesus, 1926) Bult-mann — em harmonia com a escola da critica da forma — enfatizara queos evangelhos não visavam fornecer uma biografia de Jesus mas apresentara própria mensagem de Jesus e a das primeiras congregações cristãs. Essaatitude concordava com o conceito básico da teologia querigmática: é atra-vés da Palavra proclamada que o homem enfrenta a necessidade de tomaruma decisão, e é assim que experimenta a transição de falta de fé à fé.A Palavra se apresenta ao homem como sendo mensagem divina e nãotanto como informação de fatos ou idéias religiosas.

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Bultmann combina idéias da crítica da forma e da teologia querigmática , adicionandolhes a antropologia da filosofia existencialista. É nestapersepctiva que coloca a necessidade da interpretação existencialista doNovo Testamento.

Desde 1941 Bultmann prosseguiu na elaboração de suas teorias epropôs uma justificativa filosófica para sua antropologia e seu método deinterpretação bíblica (cf. Glauben und Verstehen, antologia que apresentaas teses do próprio Bultmann nos vols. IIII, e Kerygma und Mythos, que trazdocumentação do prosseguimento do debate bultmaniano).

Já se tornou evidente que o programa de Bultmann contrasta flagran-temente com o da teologia liberal com suas tentativas de criar um retratodo Jesus histórico. Em outros aspectos, no entanto, Bultmann aproximasemais da tradição liberal. Isto se dá, por exemplo, com respeito a seu em-

prego do conceito de mito que, realmente, permanece obscuro em sua ar-gumentação. Esta falta de clareza influiu no debate sobre a «desmitificação». À luz da erudição moderna ,«mito» indica algo que é inaceitável, enão deixa de causar estranheza que se queira usar isto como base plau-sível para se determinar o que significa uma interpretação adequada dostextos bíblicos.

Aspecto mais importante ainda do programa de Bultmann é o quetrata da interpretação existencialista. Como muitos críticos ressaltaram, es-

ta abordagem rejeita como não essencial a reivindicação do evangelho detrazer informação sobre fatos e testemunhos oculares. Na opinião de Bult-mann, o querigma só tem raízes históricas no sentido que remonta à pes-soa e à mensagem de Jesus. A substância do querigma acredita ele, inde-pende de fatos históricos. A morte e a ressurreição de Cristo só são sig-nificativas no sentido de simbolizarem a alteração da existência humanaque é oferecida como possibilidade no querigma. Bultmann, digase depassagem, reconhece a crucificação como fato histórico, mas não a res-surreição . As afirmações relativas à ressurreição de Cristo apenas expres-

sam o fato que os discípulos fiéis atribuíram tão grande significado à mor-te de Cristo, porque suas vidas tinham passado por uma alteração decisiva.

Muitos dos próprios seguidores de Bultmann em anos mais recentesdissociaramse destas conclusões extremadas e salientaram com maior ên-fase a relação entre o Jesus da história e o Cristo do querigma. O próprioBultmann, entretanto, manteve a centralidade de sua interpretação existen-cial, o que vale dizer que a questão da historicidade dos eventos indivi-duais nos evangelhos não tem importância para ele. O que é importanteé o que os relatos — sejam eles míticos ou históricos — dizem respeitoà existência humana, e à capacidade de despertar o homem para tomar umadecisão.

A utilização coerente por parte de Bultmann de idéias tomadas dateologia querigmática e da filosofia existencialista, mais do que nunca an-

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tes na história da teologia, tornou atual a questão referente à importânciada evidência histórica para a fé cristã. Grande número de notáveis teólo-gos contemporâneos dedicaramse a este problema, que tem sido tratadotanto do ponto de vista exegético como da história da filosofia.

Uma das alternativas mais claras e básicas ao bultmanismo foi apre-

sentada pelo exegeta suíço Oscar Cullmann (n. 1902, professor em Basi-léia e Paris). Imediatamente após a II Guerra Mundial, Cullmann publicoua obra intitulada Christus und die Zeit , 1946. Este estudo não se relacio-nava diretamente com o debate em andamento; mas examinava, de modopuramente histórico, o conceito de tempo do cristianismo primitivo e ocontrastava com o sistema gnóstico de salvação. Todavia, as conclusõesde Cullmann eram inteiramente contrárias à interpretação da Bíblia reco-mendada pela escola de Bultmann.

Cullmann demonstrou, entre outras coisas, que a descrição bíblica dapassagem do tempo desde a criação até a consumação (a história da sa l-vação) pressupõe o conceito linear de tempo (em contraste com o esque-ma cíclico dos gnósticos) e que esta concepção da história é básica parao Novo Testamento. O fato singular que é sugerido ou descrito de váriasmaneiras é apresentado como sendo decisivo na mensagem do evangelho.Aqueles pormenores que constituem os fatos centrais da história da salva-ção também formam o fundamento para a salvação da humanidade. Deacordo com o Novo Testamento, a morte e a ressurreição de Cristo en-contramse situadas no centro real da história do mundo, que atingirá suaconsumação na segunda vinda de Cristo, quando o mundo será julgado eo reino de Deus se concretizará plenamente.

Este conceito de tempa entrou em conflito com a doutrina gnósticade salvação nos primeiros sécu los da história do cristianismo. A doutrinagnóstica era apresentada como mensagem intemporal, em que não se fa-zem referências a eventos passados como a base da salvação, mas a cer-tas idéias religiosas gerais, apresentadas em forma mítica.

Em obra posterior, Heil ais Geschichte (1965), Cullmann comparou os

resultados de sua pesquisa com a teologia de Bultmann e examinou maiscuidadosamente o papel desempenhado pelos aspectos históricos na fé ena salvação do indivíduo de acordo com o ponto de vista neotestamentário. A principal ênfase de Cullmann nesta obra é que a referência aos as-pectos históricos que está incluída na confissão cristã não sugere uma ob

 jetivação desinteressada da fé cristã; estes fatos relacionamse com a cer-teza de que eles têm valor imediato para a existência dos homens ind viduais, uma vez que fé significa estar o destino da vida individual incluidona história da salvação como apresentada na Bíblia. Uma «interpretação

existencial» — para a qual a fidedignidade dos fatos históricos não temsignificado e para a qual a história da salvação nada significa — é, porsua vez, semelhante à transformação do cristianismo num sistema gnósticoou idealista de salvação.

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A atual discussão em torno de querigma e história diz respeito aquestões de vital importância para toda a interpretação do cristianismo.Como Cullmann demonstrou, esta discussão em vários pontos repete di-ferenças de opinião que já existiam no tempo do Novo Testamento e quereapareceram em formas diversas em várias épocas da história da teologia.

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Arão 19, 246 'Abelardo 14143, 146, 148, 175

Abraão 193, 323Adão 26, 38, 40, 120, 148, 171, 271,278, 310

Agostinho 42, 7274, 82, 93, 95118, 119-21, 12731, 133, 144, 172, 178, 181,205, 220, 225, 226, 248, 262, 273

Agrícola 23334Ailly, Pedro d' 169Alberto Magno 156Alcuino 12728Aleandro 183

Alexandre de Alexandria 6364, 67Alexandre de Hales 15455Althaus 340Ambrósio 82, 97Amónio Saccas 50Amsdorf 236, 240, 241Andrea 239Anselmo 14148, 154, 161Apolinário 7578, 8384Ario 6365, 6769, 83Aristides 21

Aristóteles 27, 43, 85, 123, 140, 15154,180, 182, 211, 247Armínio 230Arnauld 248Arndt 266, 281Arnold 286Atanásio 63, 6672, 111Atenágoras 21Augusto da Saxônia 239Aulen 41Averróis 151

Avicena 151Bahrdt, K. F. 301Baier 264Baius 248Barnabé 13, 16, 20Barrowe 255Barth, K. 6, 312, 34349Basílides 18, 28, 41Basíiio 71Baumgarten 300Baur 325Baxter 256Beck 317, 320Beda 127Bellarmino 247Benedito de Nursia 124

Bengel 288, 317, 320Berengário de Tours 140

Bernardo de Claraval 175, 178Beza 230Biel 16970, 180Billing 33940Boécio 123Boécio da Dácia 153Boehme 286Boehmer 340Boaventura 15556, 175Bonifácio II 121Boso 14647

Bousset 342Breithaupt 285Brenz 23132, 237, 240, 242, 276Bretschneider 304Bring, E. G. 317Bring, R. 111Brochmand 264Browne 255Brunner 312, 344, 348Bucer 205, 22324, 251Buddeus 298

Bullinger 229Bultmann 35154Bunyan 257Butler 29697

Cajetano 182, 245Calixto, 47, 90Calixto, G. 260, 263Calov 25960, 264Ca l vino 22328, 229, 256, 270, 344Canisio 245

Cano 245Canz 300Carlos Magno 128Carlos I 256Carlos V 184Carlos XII 288Carpov 300Carpzov 288Cartwright 253Cassiano 11920Cassiodoro 124Celéstio 111Celso 53Cerinto 18Cesário de Arles 12122Chemnitz 23234, 237, 23940, 242, 259.

263, 276

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Cherbury 293, 296Cícero 96Cipriano 42, 9192, 104106Cirilo 7982, 84Clemente de Alexandria 4952, 54, 60, 67Clemente de Roma 13, 19, 26

Coccejus 281Coleridge 328Constantino 64, 286Copérnico 292Cotta 265, 271Cranmer 25152Crisóstomo 76Cromwell 256Cullmann 35455Cusa; cf. Nicolau de Cusa

Darwin 329Daub 314Davi 17, 80, 214, 269de Faye 50Descartes 291Diodoro de Tarso 76Diogneto 21Dionísio o Areopagita 123Dippel 286Doederlein 301Donato 104Dorner 319Dostoievski 349Duns Scotus 15961, 16466, 175

Eck 182, 183, 245Eckhart 17678Eduardo VI 223, 251Edwards 333Ekstroem 329Elipando de Toledo 12728Elizabeth I 252, 253Elcasai 26

Erasmo 19697, 219, 223Ernesti 303Estêvão de Roma 92Estrabão 127Eugênio IV 167Eusébio de Cesaréia 14, 21, 27, 52, 64Eusébio de Nicomédia 64, 65Eutiques 8284

Fausto de Rieza 120Feuerbach 315

Filipe o Chanceler 150Filo 53, 97Flácio 232, 23447, 241Flaviano 83Flensburg 317Fócio 128

Fotino 65Francisco I 220Francke 28586Frederico o Sábio 180, 183Freylinhausen 285 .Fulgêncio de Ruspe 121

Galle 231Gerhard 188, 247, 26264, 270, 271, 279,

281Gerson 173Guilherme III 256Guilherme de Champeaux 142Gogarten 344Gomaro 230Gore 329Gottschalk 129Grabmann 248Gregório VII 286Gregório de Nazianzo 7172Gregório de Valência 247Gregório o Grande 12325, 127, 131Grossgebauer 281Grotius 230, 261, 281, 291, 294Grudtvig 31718Gunkel 342

Hafenreffer 263Hamilton 350

Harless 31920Harnack, A. 5, 28, 32, 98, 327, 331, 337-

38, 33940Harnack, T. 321Hauge 333Hedberg 333Hegel 311, 31315, 318, 322Hegesipo 27Heidegger 352Heinemann 50Helie 231

Helwys 255Hengstenberg 316Henrique VIII 251Hermann, R. 340Hermann, W. 327, 33738Hermas 13, 17, 19Hilário, discípulo de Agostinho 119Hilário de Poitiers 82Hincmaro de Reims 127, 129Hipólito 27, 47, 90Hobbes 293

Hofmann 320Holl 42, 98, 340Hollaz 264Homero 23Hooker 25455Hósio 64

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Hugo de S. Vítor 143, 146, 154, 176Hunnius, Egídio 259Hunnius, N. 263Hus 167, 172Husserl 349Hutter 263

Inácio 13, 1719, 55, 89inocêncio III 141Irineu, 14, 18, 24, 27, 29, 33, 3542, 44,

4647, 55, 68, 89, 318Isidoro de Sevilha 124

James, W. 342Jansen 248Jerônimo 53Jerusalém, J. F. W. 301

Jewel 253Jó 108João 35João da Cruz 248João de Damasco 8788, 128, 268João Scotus Erigena 123Judex 232Juliano de Eclano 111 \Juliano de Halicarnasso 85 'Justino 2123, 26

Kahler 33839Kant 303, 325Karlstadt 203, 205Karpp 44Keble 327Keckermann 229, 261Kelly, 6, 24, 76Kerdo 32Kierkegaard 32124, 345, 34950Kleutgen 330Kliefoth 317Koch 50König 264

Labadie 281Laestadius 331Lanfranc 140Lange 285, 289Laud 25556Laurelius 264Leão I 8283Leão XIII 33031Lehmann 342

Leibniz 291, 299Leôncio de Bizâncio 8586, 87, 128Lessing 294, 303Linton 20Locke 291, 295Löhe 317

Loisy 331Lombardo; cf. Pedro LombardoLoofs 5Löscher 289Loiola 247Luciano de Antioquia 63

Luis da Bavária 169Lutero 67, 117, 169, 173, 178, 179209,211217, 22324, 226, 228, 229, 23132,233, 235, 23940, 245, 251, 297, 299,316, 32021, 344

Major 235, 241Mani 96Marcelo 65Marcião 26, 28, 3234, 41, 46Maret 330

Marheinecke 314Maria 1718, 40, 75, 80, 83, 269, 331Maria da Inglaterra 252Martensen 319Martini, C. 259Martini, J. 259Martini, O. 264Matthiae 264Máximo o Confessor 8687Mayer 288Meisner 259, 261

Melanchthon 21117, 223, 229, 232, 235-37, 239, 263, 272Menno Simons 333Mentzer 260Metódio de Olimpo 61Migne 128, 132Milton 257Möhler 330, 332Moisés 19, 25Moody 333Mosheim 299

Müller 281Münzer 202, 203

Nestório 7677, 7982, 8384Newman 32728, 332Newton 291Nicolau de Cusa 176Nitzsch 318Noeto 59Nörregaard 98Navaciano 60, 91, 104, 106

Nygren 14, 50, 104

Occam 169172, 180Oecolampádio 205206Oetinger 317Optato de Mileve 106

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Orígenes 24, 2951, 5256, 58, 6061, 6771, 97

Osiandro 214, 226, 233, 235, 240Otto 236

Panteno 51

Papias 14, 20Pascal 248Pascásio; cf. RadbertoPaulo 1416, 25, 3234, 92, 97, 117, 123,

177, 187, 19293Paulo de Samósata 58, 63Paulino Gothus 264Pearson 256Pedro 14, 26, 92, 208, 237Pedro Lombardo 144, 149, 154, 164, 169,

180, 245

Pelágio 96, 11113, 11718, 120Petersen 286Petri 231Pezel 229, 232Pfaff 299Philippi 316Pitágoras 27Pio V 248Pio IX 33031Pio X 383Platão 23, 27, 43Plínio o Moço 17Plotino 50Poach 236Policarpo 13, 35Praxeas 59Prenter 349Prierias 18283Proclo 123Próspero de Aquitania 11921Pufendorf 291, 293Pusey 327

Quenstedt 264

Rabano Mauro 127, 129Radberto 127, 13133, 140Rahtmann 26566, 282Rambach 285Ratramno 127, 13233, 140Reimarus 294, 301Reinhard 304Ricardo de S. Vitor 143, 175Ritschl, A. 32447, 33738, 341

Roos 288Roscelino 141Rosenius 333Rothe 319Rudbeck 264Rufino 53

Ruotsalainen 333Ruysbroeck 176

Sabélio 5960Salomão 43Sankey 333 'Saturnino 28, 41Saul 214Schartau 288, 333Scheeben 330, 332Scheibler 259Schleiermacher 303, 304, 30712, 31416,

31819, 325, 343Schmid 316Schoeps 26, 76Schweitzer 342Scott 334Seeberg 5, 20, 79, 132Selneccer 232Semler 301303Serapion 67Serveto 227Severo de Antioquia 84, 86Sigério de Brabante 153Simão o Mago 28Simão o Cireneu 18Smyth 255Socino 278Sócrates 23Söderblom 342Sohm 19Soto 245Spalding 301Spencer 329Spener 28186Spurgeon 333Stahl 317Stange 340Staupitz 18081Storr, G. C. 304

Strauss 314, 325 'Strigel 229, 23234Suarez 247Sundberg 317Suso 176, 177

Taciano 21Tauler 176, 178, 186Teodora de Cantuária 127Teodoro de Mopsuéstia 7677Teodoreto 76

Teodorico 123Teodoto 58Teófiío de Antioquia 21Teresa 248Tertuiano 27, 33, 35, 4247, 5355, 5759,

60, 71, 82, 90

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Thomasius, C. 291, 298Thomasius, G. 319, 321Thurneysen 344Tibério 33Tillich 34951Tillotson 295

Tindal 294, 296Toellner 301Toland 296Tomás a Kempis 178Tomás de Aquino 136, 142, 145, 148,

15253, 15561, 16367, 16970, 17576177, 245, 248, 330

Torrance 16Trajano 17Travers 25354Troeltsch 343Twesten 318Tyndale 251

Ursinus 229Ussher 256

Valentino 2830, 43Vitor de Roma 58Vilmar 317Vicente de Lerins 120

Walch 299

Waldenstrom 33435Wegscheider 304Weiss 34142Wesley, C. 29798Wesley, J. 29798Westphäl 237Whitefield 298Whitgift 254Wigand 232, 259Wiclif 167, 172Wingren 3738, 42

Wolff 291, 299300Zabarella 260Zenäo 27Zinzendorf 287Zwlnglio 205207, 21921, 22324, 229

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Absolvição 9091, 166, 191Aceitação 184

Acomodação, teoria da 302Adiáforo 23637, 243, 289Adopcionismo 26, 58, 65, 128Agostinianismo 11922, 140, 15256, 164,

175, 180, 181, 246, 248, 251, 252, 275,330

Alexandrina, teologia 4956, 64, 67, 71,7778, 8084

Alexandrina, cosmovisão 50, 5456 Al iena justi t ia 193, 235Alegórica, interpretação 1617, 5354, 76-

78, 97, 189, 265 Alloeos is 206207 Amor , amor sui 101103Anabatistas 204, 243, 255, 333Anagógica, interpretação 189Analogia, doutrina da 155, 15758, 225,

296Analítico, método 229, 260, 262Anjos 38, 55, 123, 155, 159, 176

 Annihilatio 165Antropologia 3738, 40, 5556, 7677, 111-

16, 12122, 15354, 175, 177, 18586,19498, 21213, 234, 241, 251, 260,271, 27879, 293, 302, 30911, 350 51

Antinomismo 190, 23334, 236, 241, 287Antioquia, escola de 7684 'Apologistas 2124, 43, 44, 49Arianismo 6366, 6768, 70, 75, 111, 128Aristotelismo 15254, 156, 15859, 180,

298Arminianismo 230, 256, 298Arrependimento 189191, 21415, 233,

243, 246, 262, 27475, 286, 287, 323Ascetismo 27, 31, 33, 46, 96, 227

 At tr it io 162Autoridade 5152, 15253, 15859, 172,

18485, 196, 200, 25455, 329de bispos 92da Escritura 1617, 36, 52, 67, 14344,170, 18788, 26566, 278, 284, 302303,304, 31112da igreja 9899, 128, 25354

Barmen, Declaração de 344, 348Batismo 31, 90, 9293, 104107, 112, 114-

15, 122, 16365, 208, 220, 246, 276,279, 297, 304, 335, 344interpretação simbólica do 335

Batismo herético 89, 9293, 104107

Batismo infantil 204, 220, 279, 344Batistas 255, 257, 333, 33536

Bispo, ofício de 19, 8993, 104106Calvinismo; cf. Reformada, teologiaCânone 1617, 34, 36, 67, 188, 246, 252,

302, 311Capadocianos 66, 7173, 76, 85Caritas, caritas-cupiditas 101104, 107,

110, 114, 11617, 172Carmelita, ordem 245, 248Carneespírito 196, 213, 242, 317Ceia do Senhor 31, 91, 107, 125, 13133,

14041, 16366, 202207, 208, 216, 220223, 22728, 229, 231, 237, 239, 242,25152, 276, 279, 304interpretação simbólica da 107, 13133,

164, 172, 205206, 22021, 22728,242, 25152, 335

Céu 228, 252, 268Chamado 162, 199, 209, 213, 224, 227,

275Character indelebilis 106, 165Ciência 21, 7980, 123, 15152, 156, 158-

60, 16970, 212, 25960, 291, 294, 299,31213, 31516Clareza da Escritura 189, 265Cluny, reformas de 140Comunicação dos atributos 207, 233,

237, 242, 26869Concílio

Calcedônia 64, 8284, 127Constança 167Constantinopla (381 d. C) 6364, 66Constantinopla (553 d. C.) 86Constantinopla (68081 d. C.) 86Constantinopla (870 d. C.) 128Éfeso 81, 112Florença 167Nicéia (325 d. C.) 6366Nicéia (787 d. C.) 88, 128Quarto Laterano 141, 165Trento 24546, 253, 328Vaticano I 331

Concupiscência 114, 195, 196, 248, 271Confissão 90, 13537, 166, 191, 195, 247,

275, 318Confessores 91Confirmação 16465Congregacionalismo 255, 333, 335Consensus quinquesaecularis 263Consubstanciação 141, 165, 205

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Contemplação 143, 155, 175, 177Contrição 90, 136, 163, 166, 191, 232,

27475Conversão 101, 103, 120, 186, 190, 233-

34, 241, 266, 27375, 28485, 287, 304de Agostinho 98de Wesley 297

Cosmovisão 2930, 37, 49, 53, 96, 123,15253, 223, 272, 29193, 351

Creacionismo 44Credo 216, 240

Atanasiano 7274, 121, 267Niceno 6366, 73, 128, 211

Credo ut intelligam 99, 144, 146, 152Criação

Agostinho 102, 11314, 116Ario 6364, 6768Apologistas 23Atanásio 6770Barth 34647Calvino 22325escolástica 153, 15557gnosticismo 2930, 3132, 35Grundtvig 318Irineu 3641Lutero 199, 200Marcião 33-34 misticismo 17677Orígenes 55

ortodoxia 262, 26668, 27073Pedro Lombardo 144Schleiermacher 30910

Criptocalvinismo 237, 242Cristologia 7588

adopcionismo 26, 58, 65, 127Agostinho 116

Anselmo 141, 14649Apolinário — João de Damasco 7576Apologistas 2324Ario 6365

Atanasiano, Credo 74Barth 34748cristianismo judaico 2526dinamismo 58Dorner, Thomasius 31819Duns Scotus e Tomás 161Fórmula de Concórdia 242Gnosticismo 3031Gore 329Harnack 327Herrnhut 287

Irineu 4042Kahler 338Lutero 22627Marcião 3334Maurice 328Melanchthon 212

modalismo 59neología 300301Nicéia 6365Orígenes 54, 5556Ortodoxia 26870Pais Apostólicos 1416, 1718, 26Ritschl 326Schleiermacher 31011socinianismo 278Strauss 31415Tertuliano 4445

Crítica da forma, escola da 338, 353Culpa 11415, 125, 19596, 220, 271, 318,

323, 326Culto 202204

Deificação; cf. Igual a DeusDeísmo 31, 57, 256, 291, 29397, 299,

300301, 303304, 324, 328Demonstração método de 299Desmitificaçâo 35153, 354Descida ao inferno 242, 270Deus

atributos de 267imagem de (cf. também igual a Deus)

3738, 40, 68, 195, 262, 271, 318«razão» de 2224, 44, 58, 60reino de 270, 325, 337, 34142

Deus, doutrina de

Agostinho 98Ario 6365Calvino 22325Duns Scotus 160gnosticismo 29Lutero 19799Marcião 33misticismo 176-77 monarquianismo 5761neoplatonismo 97Orígenes 5455

ortodoxia 260, 261, 26667 ■Pais Apostólicos 17platonismo alexandrino 50Ritschl 326Schleiermacher 309Tomás 157, 160Tillich 350

Deus, provas de 157, 170, 267causai 267cosmológica 44, 145, 170ontológica 145

teológica 338Deus absconditus 198Dialética 139, 14244, 15152, 154, 170,

175, 180, 189, 211, 31314, 34349Dinamismo 58, 5861, 63, 65, 80, 83Diofisitismo 83, 85, 319

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Dioteletismo 8687Disciplina prática, teologia como 262,

281, 299, cf. 302Docetismo 18, 3031, 3334, 40, 57, 75-

76, 86, 348Documentos confessionais 211, 216, 229,

23637, 23943, 25152, 256, 259, 317-18

Dominicanos 151, 152, 156, 16061, 176,245

Donatismo 93, 96, 104106, 107108Donum superadditum 163, 271Dualismo 27, 30, 31, 96, 154, 195, 207,

308Duas naturezas, doutrinadas; cf. dio

fisitismo

Ebionismo; cf. cristianismo judaicoEconômica», teoria da Trindade 45, 57-

59, 65, 73Eficácia da Palavra 265, 289Emanação 50, 176Encarnação 26, 35, 6870, 7588, 104,

144, 146, 176, 319, 329, 347Encratitas 31Enhupostasis 8586, 268, 319Entusiasmo 187, 201205, 208, 241, cf.

232, 286, 288Eons, doutrina dos 2931Epistemologia 43, 15355, 15760, 26467,

282Escatologia 20, 32, 126, 262, 277, 311,

328, 34142Escolástica 95, 123, 13950, 15167, 169-

73, 17576, 18085, 189, 193, 196, 204,219, 24559, 25962, 291, 33031

Escritura conceito deAgostinho 9697Alexandrinos 49Anselmo 147

Antioquia 7677Atanásio 67Barth 34445, 348Beck 317Bengel 288Billing 399Bultmann 35153carolíngia, teologia 127Cullmann 354Erlangen, escola de 31920Flácio e outros 232

Fórmula de Concórdia 240Hooker 254inglesa, teologia 329Irineu 3637, 41Kãhler 33839Lutero 181, 18788, 19697

Melanchthon 216neologia 300303nominalismo 171Orígenes 5354ortodoxia 26162, 26466Pais Apostólicos 1617pietismo 28485presbiterianismo 253Rambach 285romana, teologia 331Schleiermacher 31112socinianismo 27879supernaturalismo 304Trinta e Nove Artigos 252

Escrituratradição 1617, 19, 3637, 49,139, 143, 144, 160, 171, 246, 25253,264, 332

Esferas, espiritual e secular 200Espírito Santo 29, 31, 39, 4546, 5760,

65, 6770, 72, 7374, 9193, 103, 105-108, 189, 196, 198, 207, 21214, 226-28, 246, 26566, 268, 275, 27778, 302,311, 314

Espiritualismo 44, 201, 205206, 266entusiastas 201gnosticismo 44Rahtmann 266Zwínglio e outros 205206

Essência, substância 4546, 5860, 6465,7074, 76, 78, 8185, 14142

Essênios 25Estado, o 109111, 200202, 215216, 220-

21, 227, 253, 293, 31617Estado, condição original 113, 271, 273Estético, «estágio» 322Estoicismo 2230, 4344Eternidade, tempoeternidade 323, 344-

45, 35354Ética 27, 31, 33, 96, 125, 151, 172, 180,

211, 220, 248, 263, 276, 284, 294, 302,304, 308309, 32124, 32526, 347

Eudemonismo 101, 304Eutiquianismo 8284Evangelho (cf. também leievangelho) 33,

188, 200, 233, 262, 274Evolução, teoria da 329Ex opere operato 165, 204Existência, decisão existencial 32124,

350, 352, 35354Existencialista, filosofia 324, 346, 34850,

35153

Experiência 142, 175, 18586, 189, 195,282, 28485, 294, 31112, 320

Expiação 16, 55, 65, 116, 125, 129, 146-48, 162, 195, 225, 235, 268, 271, 276,278, 28687, 297, 300, 304, 310, 320,323, 326, 329, 334

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Extra calvinisticum 268Extrema unção 164, 166Facere quod in se est 16263, 171, 180,

184Fé

Abelardo 143, 145adquirida 192Agostinho 99100, 117, 144, 149, 153Anselmo 142, 14446Arminianismo 230Clemente de Alexandria 5152encarnada 194fides apprehensiva Christi 192fides explicita 171fides histórica 275, 283fides implícita 17fides informis 162, 164fides inspirata 153

fides quaerens intellectum 143, 344Hugo de S. Vítor 146infusa 153, 163, 170, 192

 justificante 27576, 28283latitudinarismo 29596Lutero 18183, 18587, 189, 19199,

204205, 206208, 214Marcião 32Melanchthon 215morta 283, 289nominalismo 171, 181, 18485

Orange, Sínodo de 12122ortodoxia 26162, 27476pietismo 28284, 28586romana, teologia 32930Schleiermacher 31112Spener 28284Tertuliano 43Trinta e Nove Artigos 252

Fé e obras 117, 19294, 23536, 241,.246, 252, 27475, 29798

Filioque 128

Filosofia 95101, 12324, 13942, 15152,156, 15759, 160, 177, 211, 216, 229,232, 234, 249, 25961, 282, 28489,29192, 29799, 313, 31922, 323, 326-28, 33031, 34849, 351, 35253e cristianismo 2223, 36, 4244, 47, 49-

50, 5153, 67, 87e teologia 14445, 15152, 159, 16970,

172, 18283, 18485, 309, 32829,34849

cristianismo como a verdadeira filo-

sofia 2122, 36, 49filosofia grega 2728, 31, 4244, 47,4950, 5253, 87, 131

Fotinianismo 65Fornes 171Forense 214, 226

Franciscanos 151, 15255, 15966, 170,175, 247

Fundamentais, artigos 26263

Geração eterna do Filho 41, 55, 60, 65,70, 72, 83

Gnosticismo 1718, 2734, 3538, 39, 41,4344, 47, 49, 5152, 68, 89, 96, 311,312, 35354

GraçaAgostinho 103104, 11118AgostinhoSínodo de Orange 11922Alta Escolástica 155, 157, 16165, 167Calvino 225Erasmo 19697Gottschalk 129Gregório 12425

Jansen 248Lutero 19699Melanchthon 21213nominalismo 171, 18182, 184Pais Apostólicos 16primeira fase da escolástica 149ortodoxia 27375sinergista, controvérsia 23435socinianismo 278Tertuliano 46Trento, Concílio de 24647

Trinta e Nove Artigos 252Zwínglio 220Gratia

applicatrix 275cooperans 149, 164creata 162elevans 150, 163glorificationis 163gratis data 162gratum faciens 163increata 162infusa

171irresistibilis 118, 11920operans 149, 164praeparans 125praeveniens 149prima 114, 163sanans 116, 149, 163subsequens 149

Gravuras, adoração de 88, 128, 203

Habitus 171, 184

Herrnhutismo 234, 287, 297, 307, 313, 333Hílicos; cf. materialistasHipóstase (cf. também Pessoa) 5760,

65, 71, 73, 76, 81, 8486, 268História, problema da 33739, 34144,

34546, 34755

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História das religiões, escola da 34043,344

Históricocríticó, método 300303, 325Homem; cf. AntropologiaHomoiousianos 66Homoousios 55, 64, 70, 75, 77Humanismo 197, 216, 219, 223, 231, 247,

259, 278, 291, 351

Idealismo 35, 78, 176, 260, 313, 31418,328, 339, 345

igreja, conceito de 1920, 8993, 10413,200201, 207209, 215, 224, 227, 252-56, 262, 27677, 28384, 311, 31718,324, 328, 340, 347

Igreja de São Tomé 79■Igrejas livres 104106, 25357, 31718,

333Igual a Deus, deificação 3738

natureza de Cristo deificada 69, 76,80, 84

Iluminação 241, 275, 283teoria da 153, 158

Imitação de Cristo 177, 178, 266, 321,324

Imortalidade 1516, 39, 41, 69, 269, 271,296

Imputação 117, 184, 193, 198, 214, 226,235, 27576, 283

incorruptível, docetismo 85independência, independentes 25556Indulgências 166, 172, 182, 191, 247Infralapsarismo 230Inspiração 17, 171, 226, 246, 264, 266,

318Intelectualismo 22, 24, 15254, 15960,

261Islamismo 26

Jesuítas 245, 24748

Judaico, cristianismo 2526, 31, 58, 75Justiça 1516, 40, 58, 149, 182, 186, 190-

97, 198, 226, 241, 246, 26768, 271,27374, 278, 337coram Deo-coram hominibus 194

Justiça divina 22425Justificação

Agostinho 11617Alta Escolástica 16164Ambrósio 97Barth 349

Calvino 225, 226Flácio 235Fórmula de Concórdia 240Lutero 19194, 19697Marcião 33Melanchthon 213, 214, 235

metodismo 297, 334movimentos reavivamentistas 334nominalismo 181, 184ortodoxia 262, 27576Osiandro 235Pais Apostólicos 16pietismo 289Ritschl 325socinianismo 279Spener 283Trento 246Trinta e Nove Artigos 253Zwínglio 219

Kénoosis 270, 319, 329

Latitudinarismo 29495, 297Lei 1415, 3839, 46, 51, 11213, 162, 171,

18894, 197, 200, 213, 21415, 224, 225-26, 233, 23536, 241, 262, 267, 27476,279

Leievangelho 14, 3234, 90, 162, 18890,200, 213, 233, 236, 241, 274

Libertasin externis 197restituta 116, cf. 274

Libertinismo 27, 31, 96Livre arbítrio 54, 11217, 11922, 129,

182, 19598, 213, 224, 241, 262, 271-74

Lógica 140, 14546, 15152, 16970, 182,224

Logos 21, 2224, 41, 4446, 51, 55, 57-58, 60, 6366, 6870, 7577, 8687, 319,328

Mandenismo 27Manducatio fidelium, infidelium, oralis, 

spiritualis 206, 228, 232, 242, 253Maniqueísmo 96, 99Manuscritos do Mar Morto 25Materialistas (hílicos) 30, 52Matrimônio 33, 164, 167, 201, 277Meditação 143, 177Mérito 46, 90, 11617, 12122, 124, 149,

16264, 171, 18687, 19192, 193, 197,246, 248de Cristo 148, 161, 166, 192, 197, 279,283, 29798

Meritum de congruo-meritum de condigno 16263, 171, 197, 252

Metafísica 118, 15152, 154, 15960, 169-70, 189, 212, 220, 24748, 25960, 284,29193, 29899, 304305, 32627, 330

Metodismo 29798, 33235Milagres 125, 304, 351Milenismo; cf. Quiliasmo

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Missa, sacrifício da 125, 131, 203, 205Mística, união 275, 283Misticismo 95, 123, 152, 17578, 181, 184,

18587, 197, 232, 235, 24748, 281, 319Mito, mitologia 35155Modalismo 43, 45, 47, 57, 61, 65, 71,

76, 311Modernismo 331Monarquianismo 5761, 111Monasticismo 124, 140, 202Monismo 17677, 307Monofisitismo 8186Montanismo 42, 46, 90Moralismo 1415, 24, 3234, 230Moralidade; cf. ÉticaMorte 3940, 68, 111, 129, 271, 277, 346

de Cristo 69, 125, 148, 204, 270, 279,304, 310, 320, 326, 347, 34950, 352,35354

Multivolipresens 242

NagHammadi 27Nascer de novo 193, 241, 274, 275, 283,

297, 334Nascimento de Virgem 26, 58, 347Natural

conhecimento de Deus 228, 26667,287

direitos 293

lei 254, 293religião 29397, 299, 300301, 348teologia 44, 345, 348

Naturalismo 301, 303, 311Natureza(s) de Cristo 46, 70, 7588, 111,

12728, 142, 161, 212, 232, 242, 268-69, 319

Neoaristotelismo 247, 25960Neologia 58, 300303Neoluteranismo 31617Nèoplatonismo 30, 32, 50, 95100, 104,

107, 123, 15153, 176, 178Neoprotestantismo 301Neotomismo 330Nestorianismo 7984, 112, 128, 348Nominalismo 14142, 154, 15960, 166,

16973, 18085, 187, 205, 207, 278

Ocamismo; cf. nominalismoOfícios (eclesiásticos) 19, 123, 166, 189,

201, 207209, 215, 227, 317, 328, 331de Cristo 242, 270, 303

Onipotência 26667, 273, 319Ontologismo 330Ordenação 105106, 164, 166, 209

Palavra e Espírito 213, 26566, 283, 289Panteísmo 176, 318, 328, 331Patripassionismo 45, 59

PecadoAgostinho 96, 97, 111, 11217Anselmo 14748Apologistas 24Atanásio 6870 .Cassiano 120Irineu 3940, 46Kierkegaard 372Lutero 18182, 186, 18999Melanchthon 21213, 235Occam 171ortodoxia 262, 26971, 27476Pais Apostólicos 15Pelágio 11213Ritsch! 325Schleiermacher 30910Tertuliano 4647Trinta e Nove Artigos 252

Pecado original 42, 46, 113, 11416, 120-21, 171, 186, 19498, 213, 220, 234,241, 252, 271, 278, 301, 304, 309, 318

Pedagogia de Deus 51, 5456Pelagianismo 11118, 12022, 219, 231,

243, 248, 278, 304Penitência (cf. também Arrependimento)

4547, 8991, 105, 125, 135, 149, 163-64, 166, 172, 180, 18991

Perdão 16, 69, 8991, 97, 107, 11617,14749, 171, 183, 18991, 204, 206, 220,235, 241, 246, 27476, 283, 297, 318,323, 325, 334

Perdeitas boni-perseitas boni 16061Permissão divina 224, 272Perseverança, dom da 108, 117Pessoa

em cristologia 4546, 78, 81, 8388,128, 161, 242, 26870, 319

na doutrina da Trindade 24, 4546, 57-61, 7074, 127, 141, 268

Pessoaofício 201 ■Pietismo 215, 28189, 29899, 303, 315-

17, 333Plano da graça 171, 275Plano da salvação, ordo salutis, oeco- 

nomia salutis 3639, 40, 45, 57, 68,113, 117, 16062, 184, 197, 215, 225,261, 266, 272, 275, 27778, 284

Platonismo 5056, 97100, 186, 32729Platonismo médio 50Pneumáticos 30, 52Potentia absoluta-potentia ordinata 160-

61, 172, 182, 184Precisianismo 281Predestinação, doutrina da

Agostinho 108109, 113, 11718AgostinhoSínodo de Orange 11922anglicana, teologia 252, 256

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Barth 347Bucer 223Calv ino 22425 .Clemente de Alexandria 52escolástica 162, 172Fórmula de Concórdia 240, 243gnosticismo 30Gottschalk 129Gregório 124Jansen 248Lutero 181, 198Melanchthon 21314metodismo 298reformada, teologia 22930

Preexistência de Cristo 26, 37, 41, 45,55, 60, 351

Presbiterianismo 25354Presciência 124, 272Presença Real 13132, 205207, 232, 237,

276, 279Principio escriturístico 67, 216, 22526,

231, 246, 261, 26465, 278, 285Propter Christum 184, 193, 246, 256Protestantismo 270Psíquicos 30Purgatório 125, 247Puritanismo 25357

Queda 5455, 11416, 14647, 149, 224,

230, 234, 262, 27071, 273, 301, 317Quérigma 339, 346, 35254Quiliasmo 20, 26, 41, 254, 286, 289

Racionalismo 5758, 197, 21617, 220,230, 257, 27879, 286, 288, 291305,307, 312, 315, 324, 326, 33031

Razão 184, 195, 200201, 315, 225, 231,254, 274, 278, 29296, 299férazão 18485, 261razãorevelação 299, 303304, 330

Realismo 44, 14142, 159, 169, 172, 232Reavivamentistas, movimentos 33236Recapitulação 40Reconciliação 270, 334, 349Reformada, teologia, calvinismo 207,

22330, 237, 239, 24143, 25153, 268,272, 281, 298, 31617, 333, 335, 344,347

Regeneração; cf. Nascer de novoRegra da fé, da verdade 6, 36, 41, 43,

54, 56, 67

Ressurreiçãodo corpo 32, 34, 56de Cristo 43, 58, 77, 85, 125, 176, 204,

270, 279, 304, 310, 348, 349, 353dos mortos 277

Restauração 31617

Restauração de todas as coisas 56, 61,286, 311

Revelação 22, 45, 49, 51, 5960, 70, 144-46, 15860, 172, 18485, 192, 198, 262,26667, 283, 293304, 31112, 314, 325,327, 328, 330, 339, 345

Roma, primado de 9192Romana, teologia 103, 18586, 189, 199,

202204, 25153, 255, 263, 264, 281,328, 32932

Romantismo 176, 304, 307, 313, 31415,321, 328, 329

Sabelianismo 5860, 65, 311Sacramentários 242Sacramentos

Abelardo 148Agostinho 106107Alta Escolástica 16167Calvino 224, 22728Cranmer 251Dionísio 123gnosticismo 31Gregório 12425Idade Média, fase inicial da 13133,

13940, 143Inácio 89Lutero 183, 202207Martensen 319

Melanchthon 216místicos 176ortodoxia 262, 270, 27677Oxford, movimento de 328pietismo 288racionalismo 304reavivamentistas, movimentos 335restauração, teologia da 31118socinianismo 279Tomás 161Trento 247

Zwinglio 220Sacrifício 125, 161, 203, 205, 270Salvação (cf. também Plano da salva-

ção) 1416, 24, 2932, 35, 3641, 45-46, 5354, 5556, 6870, 80, 103104,11113, 11518, 12122, 148, 16162,17677, 184, 19699, 21213, 22325,230, 233, 246, 251, 252, 260, 26263,265, 26667, 270, 273, 284, 304, 30911,316, 318, 32324, 347, 349certeza da 22526, 230, 297

Santificação 226, 268, 283, 289, 297Satisfação (na penitência) 90, 125, 146-48, 166, 191, 275

Scintilla animae 176, cf. 186Semipelagianismo 11922, 161, 213, 246-

47

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Í N D I C E

 Apresentando ........................................................... .............................................   7Do Prefácio da Segunda Edição ......................................... ................................... 9

Prefácio da Terceira Edição .................................................................................. 11

I PARTE 

 A ERA DOS PAIS ECLESIÁSTICOS

1. Os Pais Apostól icos ......................................................................................... 13

Características Gerais .................................................................................. 14Conceito de Escritura .................................................................................. 16 A Doutr ina de Deus; Cristologia .................................................................. 17

Conceito de Igreja............................................................................................ 19Escatologia...................................................................................................... 20

2. Os Apologistas................................................................................................. 21

Considerações Gerais....................................................................................... 21Cristianismo e Fi lo s o f ia.................................................................................. 22Cristologia do Logos ....................................................................................... 23

3. Cristianismo Judaico eGnosticismo ............................................................... 25

Cristianismo Judaico ....................................................................................... 25O Gnosticismo................................................................................................. 27

4. Os Pais Antignósticos   .................................................................................. 35

Ir in eu ................................................................................................................ 35Tertuliano......................................................................................................... 42H ip ó l i t o ........................................................................................................... 47

5. Teologia Alexandr ina  ................................................................................... 49

O Platonismo de A lexand r ia.......................................................................... 50Clemente ......................................................................................................... 51

Or ígenes ........................................................................................................... 52

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6. Monarquianismo: O Problema Trinitário ...................................................... 57

Monarquianismo Dinamista .......................................................................... 58Modalismo ....................................................................................................... 59

 A Atitude da Ig reja.......................................................................................... 60

7. O Arianismo: O Concílio de Nic éia .........................................• ..................... 63

8.  Atanásio: A Formação da Dout rina Trin itár ia..............................................   67

Os Três Capadocianos ....................... . ........................................................... 71 Agostinho e a Doutrina da Trindade —O Credo A tanas iano ..................... 72

9. O Problema Cristológico  ................................................................................ 75

 Apolinár io......................................................................................................... 75 Antioquia e A lex an d r ia.................................................................................. 76

Nestório e C ir i lo ............................................................................................... 79Eutiques; O Concílio de Calcedônia.............................................................. 82Severo; Mo nofisitismo..................................................................................... 84Leôncio de Bizâncio; A Controvérsia Monoteleta ......................................   85João de Dam as co ............................................................................................. 87

10. O Desenvolvimento do Conceito da Ig r e ja ...................................................   89

11.  A gost inho ......................................................................................................... 95Considerações Ger ais....................................................................................... 95Desenvolvimento Pessoal de Agostinho ........................................................   96O Conceito Básico de Cristianismo de Agostinho ....................................... 98

 A Doutrina da Igreja Segundo Agostinho......................................................104 A Doutrina de Pecado e Graça de A g os t in h o .............................................. 111

II PARTE

 A IDADE MÉDIA DE AGOSTINHO A LUTERO

12.  A Controvérsia sobre o Agostinianismo até o Sínodo deOrange, 529  . . . 119

13.  A Transição do Período Antigo ao Medieval; Gregório,o Grand e..............123

14. Teologia Carolíng ia ..........................................................................................127

15.  A Ceia do Senhor na Primeira Parte da Idade Méd ia....................................131

16. A Doutrina da Penitência na Primeira Parte da Idade Média   135

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17. Fase Inicial da Escolástica  .............................................................................139

Considerações Gerais....................................................................................... 139 A Ceia do Sen h o r ............................................................................................ 140 A Controvérsia entre o Nominal ismo e o Realismo ....................................141O Desenvolvimento do Método Teológico ................................................... 142Fé e R azão .......................................................................................................144

 A Teor ia da Expiação Segundo Anselm o......................................................146O Problema de Graça e Natureza...................................................................149

18.  A A lta Escolástica............................................................................................151

 Agostinianismo e Aristotel ismo..................................................................... 152Os primeiros Franciscanos .............................................................................154 A Escola Dominicana .................................................................................... 156

 A Doutr ina do Conhecimento de Deus Segundo Tomás de A q u in o .......... 157

Teologia e Ciência Segundo To más ................................................................ 158Duns Scotus e seu Conceito de Fé e Conhecimento ....................................159Duns Scotus e Tomás de A q u in o ...................................................................160

 A Doutrina da Graça na Alta Escolástica......................................................161 A Alta Escolástica e os Sacramentos..............................................................164

19.  A Fase final da Escolás tica.............................................................................169

0 Ocam ism o.................................................................................................... 169

Oposição na Baixa Idade Méd ia..................................................................... 172

20. Os Místicos Medievais .....................................................................................175

III PARTE

O PERÍODO MODERNO 

DESDE A REFORMA ATÉ O PRESENTE

21. L u t e r o .............................................................................................................. 179

O Desenvolvimento de Lutero até a Dieta de Worms, 1 5 2 1 ..........................179 A Teologia de Lutero em Relação ao Ocamismo e ao Misticismo da BaixaIdade Média.........................................................................................................184

 Aspectos mais importantes da Teologia deLutero ........................................ 187

22. Melanchthon .......................................................................................................211

23. Zwíng l io ..............................................................................................................219

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25. Teologia Reformada até o Sínodo de Dort — 1618-19, In c lu s iv e ................ 229

26.  A Teologia da Reforma em Áreas Luteranas até a Fórmula de Concórdia - 1577   ..................................................................................................................................231

Olavus P e tr i..................................................................................................................................231João B re n z .....................................................................................................................................231

Teologia B íb lic a ...........................................................................................................................232Os Discípulos de ft/lelanchthon .......................................................................................... 232AsXontrovérsias Teo lógicas.............................................................................................. 233

27. A Fórmula de Concórdia.................................................................................239

28. A Contra-Reforma: Teologia Católica Romana..............................................245

29. A Teologia na Inglaterra a partir da Reform a................................................. 251

30. A Ortodoxia Lu terana......................................................................................... 259

Características Gerais ....................................................................................... 259Representantes da Ortodoxia Luterana; suas Etapas de Desenvolvimento .................................................................................................................263Principais características da Teologia Luterana Ortodoxa ............................ 264O Confl ito Contra o So cin ianismo...................................................................278

31. O Pietismo  .................................................................................................................281A posição do Pietismo na História da Teologia...............................................281A Teologia de Spener .......................................................................................282Características do Piet ismo............................................................................... 284Pietismo de H a l l e ..............................................................................................285Pietismo Radical................................................................................................. 286Herrnhutismo ....................................................................................................287Pietismo de Württemberg..................................................................................288A Controvérsia em Torno do Pietismo ...........................................................288

32. O lluminismo..............................................................................................................291

Origens................................................................................................................. 291A Teologia Inglesa na Era do lluminismo ........................................................295

Teologia de Trans ição .......................................................................................298Wolffianismo Teoló gi co .................................................................................... 299

Neo log ia..............................................................................................................300O Racionalismo e o Supernaturalismo............................................................. 303

33. Correntes Teológicas do Século X IX   .................................................................... 307

Schleiermacher.................................................................................................... 307