LeitorComoCriador_MarcelinoPeixoto

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  • 8/3/2019 LeitorComoCriador_MarcelinoPeixoto

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    O leitor como criador

    Marcelino Peixoto

    Vejo o artista do meu tempo como pesquisador, investigador. Maurice Merleau-

    Ponty fala em artepensamento como um pensamento ativo ou uma ao

    pensante. Distingue arte e pensamento de pensamento sobre a arte. O segundo

    seria o lugar da crtica, que chega s artes sabendo o que so, podendo julg-las

    e avali-las. Ao passo que a filosofia, acolhendo o trabalho dos artistas, aprende

    com eles e atravs de suas obras alcana uma via de acesso a si prpria como

    um saber que no outra coisa seno a experincia interminvel da interrogao.

    Tenho a clareza e a tranqilidade de saber que mesmo sendo o mais objetivo

    possvel (ainda que o mximo de objetividade seja permeado pelo meu universo

    subjetivo), serei compreendido de maneira singular, como naquele conto de

    Borges1, onde buscando traar a cartografia de um territrio desconhecido, o

    protagonista constata que os contornos e linhas por ele traadas acabam por

    corresponder aos ngulos e contornos de seu prprio rosto.

    Cada leitura que se faz do mundo (das falas, das imagens, dos sons, dospensamentos) pautada pelo histrico pessoal de cada leitor. As dores e os

    amores que se vive, as delcias dos sabores que se saboreia, os livros, filmes e

    imagens que se viu, as vicissitudes scio-econmicas do mundo em que se viveu

    e se vive: tudo isso faz da leitura de cada um, uma leitura sui-generis.

    Um sujeito admico, puro e desvinculado das leis desse mundo, comea a deixar

    de existir (se que na concepo e gestao existiu) quando tal sujeito em

    contato com o seio materno inicia a construo de seus elos de ligao, passando

    paulatinamente a conhecer as leis sob as quais a sociedade em que vive se

    estrutura.

    Quando da produo ou mesmo do contato com uma obra de arte uma questo

    me assalta de imediato: a busca de uma objetividade possvel na leitura da

    mesma. Mas seria possvel tal objetividade? Ser que todos ns dominamos os

    mesmos conhecimentos o que possibilitaria tal dilogo de entendidos? E ainda

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    que o conhecimento fosse algo homogneo, ser que manipulamos os signos da

    mesma maneira?

    A autoria no est localizada na objetividade da manipulao de dados comuns.Tal pensamento ligaria a arte to somente ao universo da comunicao. E a arte,

    ainda que busque a semelhana, deve ser compreendida como um meio de

    destruir tais automatismos perceptivos. Trabalhamos com, e apesar, dos signos

    deste mundo, lidando com o que no est dado, com algo que escapa ao

    conhecido, ao institudo. Mas como, ento, ler uma obra de arte?

    Objetividade um conceito que nos diz da qualidade do que e objetivo, imparcial,

    no evasivo. Ao passo que a subjetividade caracteriza o que particular,individual e que, portanto, no tem objetividade.

    Na abordagem de uma obra de arte, esses dois conceitos trazem-nos duas

    concepes distintas acerca da verdade. A objetividade trabalha com a idia

    metafsica de que existe uma Verdade universal passvel de ser descoberta. Ao

    passo que a subjetividade trata de como o sujeito constri umaverdade.

    Durante muito tempo, vrias correntes de pensamento no campo da filosofia e das

    artes tentaram entender o processo de leitura. Essas correntes nem sempre

    compartilhavam as mesmas idias e acabaram por desenvolver teorias bastante

    distintas sobre esse processo. Alguns crticos acreditavam que o texto2 se

    constituiria em uma srie de enigmas a serem decifrados sem, contudo, haver

    espao para que o leitor completasse os enigmas apresentados de outra forma

    que no aquela previamente definida pelo autor.

    Tais tericos acreditavam que o sentido estava no texto, que o texto era

    autnomo, ou seja, existia independente do leitor. Qualquer elemento da

    subjetividade do leitor que entrasse em conflito com aquilo que o autor propuseraestava errado. Dessa forma, existiria apenas uma nica leitura correta para cada

    obra, determinada previamente pelo autor (ou pela crtica) e o ato da leitura

    consistiria em concretizar essa viso esquemtica da obra.

    1 BORGES, Histria Universal das Infmias. 1978.2 Do latim: textus, significando qualquer textura, obra construda.

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    Em sntese, num primeiro momento temos autor e obra/texto. A obra conteria umaverdade e qualquer leitura diferente de tal verdade estaria equivocada. Em tal

    concepo, a obra seria um equivalente de um mundo imutvel, exterior a ela. O

    autor dominaria as tcnicas que possibilitariam a reproduo de tal verdade

    exterior a obra.

    Tal momento estaria vinculado a idia da arte como mimese. Como na Potica,

    de Aristteles (1992) a arte imita a Natureza. O valor da obra decorreria da

    habilidade do artista para encontrar a melhor forma de obter o efeito imitativo.Imitar no significa reproduzir, mas representar a realidade atravs da obedincia

    a regras para que a obra figure algum ser. O valor do artista estaria diretamente

    ligado capacidade de domnio das tcnicas, materiais e regras que o auxilie na

    execuo mais prxima possvel da Natureza.

    O perodo moderno da filosofia (a partir do sc. XVII) marca a separao do

    homem da natureza. As verdades que antes se deduziriam de Deus passam a ser

    buscadas pelo homem atravs do exerccio da razo. Tal perodo marca a

    mudana de uma concepo unitria do mundo para uma concepo dialtica,

    formulando-se a relao sujeito-objeto. A natureza no mais a ordem revelada e

    imutvel da criao, mas o ambiente da existncia humana.

    At esse perodo as artes seguiam uma classificao proposta pelo historiador

    romano Varro entre artes liberais (prpria dos homens livres) e artes mecnicas

    (prpria dos trabalhado manual), que durou do sculo II d.C. at o sculo XVI

    tendo como pano de fundo um padro calcado na estrutura social fundada na

    escravido, que despreza o trabalho manual. A partir da Renascena, com acultura humanista, que dignifica o corpo humano, assistimos a uma valorizao

    das artes mecnicas. Alm disso, medida que o capitalismo se desenvolve, o

    trabalho passa a ser considerado fonte e causa de riquezas.

    No final do sc. XVII e a partir do XVIII, distinguiram-se as finalidades das artes

    mecnicas: as que tem por finalidade serem teis aos homens (medicina,

    agricultura, culinria, artesanato) e aquelas cuja finalidade o belo (pintura,

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    escultura, arquitetura, poesia, msica, teatro, dana). Com a idia do belo surge

    as sete artes ou belas artes.

    Tal distino entre til e belo, leva noo da arte como uma ao individualvinculada a sensibilidade de um gnio criador: o artista.

    Com o belo (finalidade da arte) surge a figura do pblico, que julga e avalia o

    objeto artstico conforme tenha realizado ou no a beleza. Surge o conceito de

    juzo de gosto, estudado amplamente por Kant.

    Gnio criador (do lado do artista) beleza, (do lado da obra); juzo de gosto (do lado

    do pblico) constituem os pilares sobre os quais se erguer uma disciplina

    filosfica: a esttica.Las meninas, de Velsquez (1656) podem ser lidas como um sintoma de tais

    transformaes. Nessa pintura nos dado a ver a representao da

    representao; tambm localizamos a figura do outro, aqui representado pelo rei e

    a rainha (no espelho ao fundo) que observam o desenrolar de tal trabalho, fazendo

    parte da cena.

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    Aps 23 sculos de definio da arte como mmese, a Filosofia passa definir aobra de arte como criao. Ao contrrio da concepo anterior onde o valor estava

    na qualidade do objeto imitado, agora o valor localizado na figura do artista

    como gnio criador. A idia da inspirao passa a explicar a atividade artstica -

    obra como exteriorizao de sentimentos interiores do gnio excepcional.

    A arte no mais reproduz a Natureza, mas liberta-se dela, criando uma realidade

    humana. Pela atividade livre do artista, os homens se igualariam ao criadora

    de Deus. Em sntese, nesse momento (esttica da criao) a Filosofia separa

    homem e Natureza.

    Como desdobramento, desenvolveu-se uma nova teoria. Baseada na idia de que

    o texto s existiria no interior de uma experincia temporal, a obra no mais vista

    como um objeto, mas como o que acontece quando estamos em contato com ela.

    Por esse ponto de vista, qualquer obra seria uma obra aberta a uma gama de

    interpretaes infinitas.

    De fenmeno fechado, que contem uma verdade em si, cujo significado se articula

    no momento da contemplao da mesma obra fechada, a obra torna-segradativamente, um fenmeno processual e, como conseqncia, o pblico deixa

    de ser quem, necessariamente, julga, para participar ativamente do acontecimento

    artstico.

    A partir do sculo XX, o ato de contemplar uma ao artstica est alm da

    reconstruo de um sentido mesmo, dado pela Obra. Os trabalhos em artes

    deixaram de ter o carter de espetculo em si mesmos, abandonando

    exclusividade da viso. O outro no est mais do lado de fora da obra, e sim como

    agente ativo no acontecimento artstico, como criador de sentidos outros, atuando

    como elemento fundamental na concretizao do fenmeno arte.

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    BIBLIOGRAFIA

    ARISTTELES. Potida. Traduo Ediouro de Souza. So Paulo:Ars Potica, 1992.

    BORGES, Jorge Luiz. Histria universal da infmia. Porto Alegre: Globo, 1978.

    CHAU,Marilena. Convite filosofia, So Paulo - Atica, 1995.

    Chau, Marilena. A experincia do pensamento: ensaios sobre a obra deMerleau-Ponty. So Paulo, Martins Fontes, 2002.

    COMPAGNON, Antoine. O demnio da teoria: literatura e senso comum.Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.

    DESCARTES, Ren. Meditaes sobre a filosofia primeira. Coimbra:Livraria Almediana, 1976.

    FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: uma arqueologia das cinciasHumanas. Lisboa/Portugal: Edies 70, 1966.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. O visvel e o invisvel. Editora Perspectiva,1971.

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