Ler o Teatro Contemporâneo

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Ler o teatro contemporneo

Jean-Pierre Ryngaert

Mart/ns Fontes

Complementada por uma antologia, um dicionrio de autores e noes fundamentais, e tambm por uma cronologia, esta obra constitui o instrumento de referncia indispensvel a todos os estudantes e ao pblico interessado por teatro. J.-P. Ryngaert faz o balano dos anos cinqenta e do nouveau thtre que abalou profundamente o panorama da criao. Autores como Samuel Becket ou Eugne Ionesco continuam a marcar nossa poca. No entanto, seguindo a linha deles ou ao lado de seus textos, novos autores exploram outras formas. O desaparecimento das ''grandes narrativas", o nascimento de uma "'dramaturgia do 1 fragmento ', a fragmentao do espao e do tempo, a modificao das formas do dilogo e o questionamento do status da personagem colocam o leitor em uma relao diferente com os textos.Jean-lHerreRyngaert,professordeestudos teatrais na universidade de Nantes, tambm diretor. Alm disso, autor de obras e artigos relacionadosprincipalmenteencenao teatral e s dramaturgias barrocas e contemporneas.

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Ler o teatro contemporneoJean-Pierre Ryngaert

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Traduo ANDRA STAHEL M. DA SILVA

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3'Unimontes - Sistema de Bibliotecas

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Martins FontesSo Paulo I998

Lsta obra fui publicada on_etna!r>iefirc em francs ivm o lmo LlRE LE THTRE CONfEMPORAN por ditions Duiwtl Pn\ Copyright t> Dunod Paru, J993 Cop\ri$hx Li\ rtina Maritn.\ For/ies Ediwra Lida . So Pulit. ftyQH, paru ti presente edio

998

Traduo ANDRLA STAHEL M DA SILVA Reviso grfica Ana Lmitt Erunt^u Produo grfica Geraldo Aires Siudift 3 Desenvoh mientft Editorial (6957-7033}

Dados Inlemaconats de Calaiogau na Publicao (CIP) iCmara Brasileira do Livru, SP, Brasil) Ryngaert, Jcan-Pierre Ler o (cairo ctiniemporneo / Jcan-Pierre Ryngaert : traduo Andra Stabel M. da Silva. So Paulo ; Manins Fontes. 199S (Coleo leitura e criticai Ttulo original: Lire te ihttTe contemporain. Bibliografia, ISBN 85-336-0913-2 l. Crlita 9S-2778r

J. Ttulo. IL CDE>-8O9r2 ndices para cala Jugo sistemtico: 1. Teatro : Histria e crlica

Tfxios os direitos para o Brasil reservados LivrariaMartinsFontesEditoraLaia. Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (011,239-3677 Fax (0111 3105-6867 e-mail: [email protected] http:! ''H VTH1. ma rnsfontes. com

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ndice

Introduo

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O QUE O TEATRO CONTEMPORNEO?o

I. "As obscuras cia rezas e as incompreensveis luzes" II. Mal-entendidos entre autor e leitor III. Cinco incios 1. Les chaises, de Eugne Ionesco 2. Vatelier, de Jean-Claude Grumberg 3. La bonne vie, de Michel Deutsch 4. Dissident, il va sans dire, de Michel Vinaver... 5. Dans Ia sotude des champs de coton, de Bernard-Marie Kolts IV. Problemas de leitura 1. Entrar no texto 2. A rede temtica e as peas sem "assunto" 3. O "sentido" no uma urgncia 4. Construir a cena imaginria

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HISTORIA E TEORIA I. Teatro, sociedade, poltica 1- O lugar do autor no panorama teatral Um teatro de duas faces Um teatro que diz "merdra"! O teatro ainda pode incomodar? A condio de autor dramtico 2. A questo do engajamento nos anos 50-60 O texto teatral exposto poltica A polmica acercado teatro engajado 3. O questionamento do texto e do status do autor por volta de 1968 O corpo, o ator e o coletivo no processo de criao As prticas de escrita e os teatros de interveno 4. Os anos 70: o cotidiano e a Histria Emergncia e necessidade do teatro do cotidiano Um teatro prximo das pessoas Abordar novamente, pelo outro lado, o campo histrico 5. Os anos 80: a perda do narrativo, para dizer o qu? II, evoluo da representao 1. O texto e acena As relaes complexas entre autor e diretor.... O "status" do texto na representao 2. Evoluo das tcnicas cnicas O texto e a evoluo das tcnicas cnicas O teatro e as outras artes 37 37 37 38 39 41 42 42 43 46 47 49 52 52 54 55 57 61 61 61 63 66 66 68

III. O texto, o autor e as instituies 1. Situao da edio teatral 2. O papel dos locais de experimentao e pesquisa. O impacto do "Thtre Ouvert" Bales de ensaio para autores em experincia Rumo a uma nova imagem do autor dramtico? TEMAS E ESCRITA I. Os avatares da narrativa 1. A perda da grande narrativa unificadora 2. A escrita dramtica descontnua e os limites do gosto pelo fragmento 3. A voga dos monlogos e o teatro como narrativa 4. Variaes em torno do monlogo: entrecruzamentos e alternncias 5. A alternncia de monlogos e dilogos II. Espao e tempo 1. Desregramentos do tempo 2. Aqui e agora 3. As contradies do presente 4. Tratamentos da Histria 5. O presente visitado pelo passado 6. O teatro das possibilidades 7. Aqui e alhures: simultaneidade e fragmentao III. Nos limites do dilogo 1. Um teatro da conversao 2. Entranamento e entrelaamento do dilogo ... 3. O teatro da fala IV Como se fala no teatro 1. O ser privado de sua linguagem: automatismose derriso

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2. A fala das pessoas e a "dificuldade de dizer" 3. A escrita e as tentaes da linguagem oral 4. A lngua inscrita no corpo

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ANTOLOGIA DE TEXTOS I. Contextos Thtre Populaire - Retomar o teatro do Grande Comentrio Travail Thtral - Definir, com a maior exatido possvel, o ncleo da criao teatral Thtre Public - Analisar seu tempo, questionarse e debater L* Art du Thtre - A obra dramtica um enigma que o teatro deve resolver II. Aqui e agora, alhures e outrora Bertolt Brecht - A vida dos homens em comum sob todos os seus aspectos Heiner Mller- Um dilogo com os mortos Michel Vinavtr - Apreender o presente Antoine Vitez - O teatro uma arte que fala de alhures outrora III. O real e o teatral Arthur Adamov -A imagem impressionante no necessariamente teatral Samuel Beckett - No h pintura. H apenas quadros Jean Genet - O teatro no a descrio de gestos cotidianos vistos de fora Claude Rgy - Renovar sua sensao do mundo .. 183 183 184 186 187 191 191 193 194 196 199 199 201 202 204

IV O silncio, as palavras, a fala Eugne Ionesco - A palavra tagarela Nathalie Sarraute - Esse fluxo de palavras que nos fascina Jean-Pierre Sarrazac - O silncio, descoberta primordial V. O autor, o texto e a cena Jean Genet - Um ato potico, no um espetculo..., Bernard-Marie Kolts - Sempre detestei um pouco o teatro Valre Novarina - o ator que vai revolver tudo

207 207 208 210 213 213 216 218r-,

ANEXOSCi

Noes fundamentais Notas biogrficas Quadro cronolgico Bibliografia ndice de autores e diretores

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IntroduoO que no ligeiramente disforme parece insensvel - donde decorre que a irregularidade, isto , o inesperado, a surpresa, o espanto sejam uma parte essencial da caracterstica da beleza. O Belo sempre estranho.51 Baudelaire4i

O teatro contemporneo ainda identificado vanguarda dos anos 50, de tanto que o movimento foi radicai e nosso gosto por rtulos amplamente satisfeito por essa denominao/ Como imaginar, efetivamente, quarenta anos mais tarde, o agrupamento de autores to diferentes como Adamov. Beekett e Ionesco sob a mesma bandeira sem se surpreender com isso? O absurdo, o teatro metafsico e um certo teatro poltico, ou um teatro da provocao, por assim dizer, ladearam-se na mesma oposio, expressa de modos diferentes, ao 'Velho teatro", Como diz Adamov em Uhomme et l 'enfant [O homem e a criana], surpreso, mas reconhecendo seu prazer em fazer parte de uma "turma", "ns trs ramos de origem estrangeira, ns trs perturbamos a quietude do velho teatro 1 burgus" e "os crticos sucumbiram" '. Os tempos mudaram e, no entanto, o velho teatro burgus no vai to mal, A "vanguarda" admitida nos liceus. Beekett, encenado no mundo inteiro, escandaliza cada vez menos por estar morto e ser identificado como um "clssico contemporneo". A partir dos anos 50, a escrita dramtica conheceu sortes diversas. Os novos autores tiveram de enfrentar a tormenta do fim dos anos 60 e a desconfiana que pesava sobre a escrita, esse ato solitrio e vagamente elitista. Alguns resistiram ao entusiasmo em favor da linguagem do corpo e do

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indizvel. Outros tombaram no campo de batalha do teatro poltico ou se declaram assassinados por diretores cansados, por um tempo, de suas leituras dos clssicos. Outros, ainda, descobrem um dia que eles no existem, j que, como todos sabem, "no h autores", quando muito alguns "jovens autores" surpresos com sua "eterna juventude". "Os autores de nosso tempo so to bons quanto os diretores de nosso tempo", escreveu um dia Bernard-Marie Kolts, provavelmente cansado do olhar dirigido aos textos de hoje. Autores ingnuos se surpreendem com a ofensiva do teatro comercial devidamente patrocinado; os menos ingnuos sobrevivem com bolsas ou encomendas oficiais. Talvez a maior dificuldade para muitos autores tenha sido situar-se em uma escrita do "ps-Beckett", como se ele, que anunciava incessantemente o fim dessa escrita, da sua, da nossa e da escrita do teatro, tivesse, enfim, sido ouvido. Em compensao, a escrita do "ps-Brecht", esse outro pai, foi libertada pelo afastamento dos temas polticos e pelo enfraquecimento das ideologias, mesmo que a dramaturgia alem ainda influencie tanto alguns autores franceses quanto seduz os diretores. No tentaremos colocar ordem em um panorama teatral em movimento, assim como no empreenderemos a impossvel classificao dos "autores vivos" rotulando-os por escolas e panelinhas. Era necessrio um ponto de partida, encontramo-lo de forma natural nos autores dos anos 50 que se opuseram antiga dramaturgia. No os retomaremos de maneira exaustiva, j que existe uma literatura crtica sobre o assunto, mas iremos utiliz-los como uma base de reflexo. Dando seqncia a eles, citaremos, para apoiar nossa anlise, principalmente os autores que se dedicam a assuntos e formas no muito repertoriadas, em todo caso no forjadas nos moldes da dramaturgia clssica que sobreviveu amplamente na Frana para alm do sculo XIX, e com freqncia

INTRODUO

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at hoje. Evidentemente consideraremos apenas os textos publicados e apenas assinalaremos aqui alguns espetculos que no se fundam em um texto dramtico estabelecido. Faremos breves referncias a alguns autores estrangeiros, para assinalar uma influncia manifesta ou uma grande popularidade na Frana, no porque eles sejam menos importantes, mas por ser necessrio respeitar o plano desta obra. Tanto pior se por vezes se trata de fenmenos de moda, o risco que o assunto corre; tanto pior se escapam autores a nossa investigao, so os limites de nosso trabalho e talvez, tambm, de nosso gosto.

"As obscuras clarezas e as incompreensveis luzes"

Se fosse necessrio dar a mais ampla definio do texto de teatro moderno e contemporneo, talvez pudssemos retomar a bela formulao de Umberto Eco, que qualifica os textos de "mquinas preguiosas", em Lector in fbula [O papel do leitor], e considerar que nosso corpus rene os mais preguiosos de todos. No necessariamente os mais abstratos ou mais enigmticos, como s vezes se ouve dizer, mas antes os que no se revelam facilmente no ato de leitura, que resistem ao resumo rpido das programaes publicadas nas revistas e solicitam do leitor uma verdadeira cooperao para que o sentido emerja. "Ser que no estamos significando alguma coisa?", diz Hamm a Clov em Fin de partie [Fim de jogo], de Beckett. Ouve-se essa rplica entre o jbilo e o terror dos que se expem ao olhar dos outros e que literalmente correm o risco de ficarem surpreendidos por serem tomados pelo que no so ou pelo que no desejariam ser. Em outras palavras, eles correm o risco, como que sua revelia, de ser "interpretados" no simulacro de vida que levam e de ver atribudos a seus atos mais andinos indcios de significao, "idias". Essa brincadeira humorstica de Beckett evoca sua desconfiana dos smbolos e, mais ainda, dos exegetas de todos os tipos diante da representao. Somos o que somos e fazemos o que estamos fazendo, diz o olhar cmplice dos atores fin-

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gindo espanto por serem tomados pelo que so, isto , atores interpretando personagens. Esses mesmos personagens se inquietam ou se alegram por ver atribudo um sentido "representao da vida" que eles se esforam para reviver maquinalmente sob o olhar dos espectadores. Esse sistema em trompe l 'oeil* nega representao o direito de ser outra coisa que no o que ela , um simulacro, no prprio momento em que ela se d como tal e em que se correria o risco de tom-la por "verdade" dando-lhe sentido demais. Dar sentido demais ou no dar o suficiente , j de incio, o problema do leitor confrontado com os textos atuais. O teatro no so idias, mas ser que ele ainda pode ser pensamento nascente? "Suas obscuras clarezas, suas incompreensveis luzes", como diz Valre Novarina sobre Rabelais, uma formulao que gostaramos de retomar ao comentar os textos. Reivindicaramos para o teatro o que Christian Prigent louva nos textos de Francis Ponge, uma "obscuridade homeoptica", que mostra que: a implicao no figurar o mundo, mas responder sua presena real por uma igual presena verba], por uma densidade equivalente; ao mesmo tempo polissmica e insignificante.Ceux qui merdrent [Os que merdram]r

E quase um programa de leitura, uma procura de um caminho. Estamos no momento em que as vanguardas esto mortas e so redescobertas. Em um momento em que no bom, para um autor, revelar inveno formal demais sob pena de ser rejeitado como ilegvel e suspeito de um retorno* Literalmente, "engana o olho"; d a idia de ^aparncia enganadora", deriva do nome de um tipo de pintura que visa essencialmente a criar, por artifcios de perspectiva, a iluso de objetos reais em relevo (Le pe Rabert, 1995). RdoT.)

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do terrorismo intelectual. Em que melhor que um texto no perturbe demais a linguagem acadmica e manifesta da boa vontade para comunicar. Em que, talvez, o pensamento seja suspeito, se no "ultrapassado", se no se apresentar imaculado e andino. Aqui estamos, de sada, submetidos ao paradoxo teatral, divididos entre o desejo de compreender e explicar os textos, e cheios de amor pelos que resistem, que no se mostram imediatamente como fceis, entregando pronto um universo raso ou insignificante. O texto de teatro no imita a realidade, ele prope uma construo para ela, uma rplica verbal prestes a se desenrolar em cena. Entre os textos com que iremos trabalhar, alguns parecem obscuros e no se abrem leitura. Textos ruins, textos fracassados ou leitores ruins, leitores insuficientes diante de formas que ainda no so de domnio pblico? O teatro repousa, desde sempre, sobre o jogo entre o que est escondido e o que mostrado, sobre o risco da obscuridade que de repente faz sentido. A representao, derrisria em seu prprio projeto, esfalfa-se para mostrar o mundo em cena com os meios rudimentares do artesanato de feira e pela linguagem, Isso verdade desde os Mistrios da Idade Mdia, cujas representaes de Cristo ou dos diabos do Inferno encantavam, segundo dizem, os espectadores. Isso ainda verdade, mas hoje em dia no completamente, j que existem muitos outros meios de representao alm do teatro, bem mais "verdadeiros", principalmente as imagens filmadas, e bem mais "falsos"; so apenas imagens, e nem sempre imagens exatas, diria Jean-Luc Godard. Vem da, provavelmente, um primeiro mal-entendido entre os que escrevem e encenam o teatro de hoje e os que assistem a ele. Existe uma grande distncia entre o teatro tal como praticado e tal como percebido ou, em todo caso, segundo a idia que se faz dele. Nos sales, e s vezes nas

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universidades, ainda ouvimos falar de cortinas vermelhas, dos faustos do teatro italiana, iluso, magia do ator-estrela, e inquietao do personagem, isto , rapidamente, uma concepo que remonta ao sculo XIX. E isso no est errado, o teatro ainda vive disso, de sua parte de espetculo. Quando se trata de escrita teatral, ouvimo-nos dizer: intriga, desfecho, pea bem feita e golpes teatrais, talvez mesmo trs unidades; de modo geral, o conhecimento transmitido pelo ensino tradicional. E isso tambm no est errado, j que nenhuma escrita, mesmo que se levante contra esse outro teatro, pode ignorar sua origem. Ensaiam-se formas para representar o mundo com regras que nem sempre derivam de Aristteles. Contudo, e a h outro paradoxo, no pode haver ruptura radical com as antigas formas, ou melhor, apesar dessas rupturas, a matriz primeira continua sendo uma troca entre seres humanos diante de outros seres humanos, sob seu olhar que cria um espao e funda a teatralidade. Portanto, h nos autores de hoje um desejo de romper com uma certa rigidez da representao tradicional. Essa crise, quando comea pela escrita, opera um desregramento nas convenes da representao. Esta se isola ao se opor ao savoir-faire dramtico e inevitavelmente ao enredo.

II. Mal-entendidos entre autor e leitor

Um clich bem conhecido mostra os produtores hollywoodianos, diante dos roteiristas que os assediam, como aqueles que querem saber, o mais rpido e diretamente possvel, qual a histria que estes tm para contar ao pblico. "What is the story?" continuaria sendo a questo essencial, todo o resto seria uma questo de savoir-faire e de "literatura". Os produtores teatrais no fazem necessariamente essa pergunta aos novos autores, mas ela permanece implcita nas relaes entre o objeto cnico e o pblico que exige, evidentemente, compreend-lo. Compreender continua sendo sempre, no imaginrio coletivo, compreender a histria e resumir a narrativa, o que Aristteles e a dramaturgia clssica chamam de enredo, como se o sentido se apoiasse essencialmente na histria narrada. Essa uma primeira razo de mal-entendido na medida em que uma parte dos autores contemporneos considera a relao com o enredo de maneira diferente. Eles se colocam menos como "contadores de histrias" e mais como escritores que recorrem a toda a densidade da escrita. Poderamos imaginar que eles so legitimados, ou que se sentem como tal, pela evoluo dos estudos crticos sobre a leitura, sobre o modo como os estruturalistas e depois os semilogos, de Roland Barthes a Umberto Eco, deram um novo enfoque atividade do leitor na relao com o texto e

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na elaborao do sentido. Mas a resistncia forte e, se de um ponto de vista terico, o ato de leitura parece estabelecer com certeza a atividade do leitor que constri seu texto ativando redes de sentido que lhe permitem se relacionar com o autor, na prtica escolar ou universitria, at mesmo nos meios artsticos, s vezes se continua a perguntar, antes de qualquer outra forma de estudo, "o que isso est contando?". No se pode, evidentemente, ignorar essa questo no trabalho de dramaturgia. Mas esse um primeiro mal-entendido acerca dos escritores, dos quais se diz que "enfraqueceram o enredo" e at que renunciariam a qualquer enredo coerente em suas obras. O mal-entendido se agrava assim que nos interessamos pelo sistema de informaes utilizado pelo escritor O modelo clssico repousa sobre a evidente clareza das informaes do enredo, que devem ser completas, coerentes e compactas desde o incio do texto. A informao insuficiente na escrita dificilmente aceita como um jogo com o leitor, como a montagem de um quebra-cabea informativo cujas peas chegaro apenas aos poucos e, bem pior, como um quebra-cabea em que faltaro obrigatoriamente elementos, j que estaria pressuposto que estes existem na enciclopdia individual do leitor e que seu papel trabalhar sobre essas ausncias e sobre o esvaziamento da escrita para nela introduzir seu prprio imaginrio. Os dois modelos perduram; um, ainda clssico, de uma escrita informativa e, no fim das contas, fechada, ao menos tanto quanto autoriza a aspirao imposta pela cena seguinte; o outro, cheio de vazios, de uma escrita que no se esfora para fornecer narrativa mas que, se bem-sucedida, impe suas "ausncias" como ms para atrair sentido, para excitar o imaginrio para construir a cena seguinte. No se escapa, na abordagem das escritas contemporneas, devido falta de certezas e modelos, suspeita da au-

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sncia de savoir-faire. Uma escrita muito aberta e sem trama narrativa bem amarrada no esconderia a impotncia do autor para construir uma histria? No se pode levantar essa suspeita mais do que a que visa um pintor abstrato quando perguntam se ele sabe desenhar "bem". O trabalho de leitura consiste, com a menor dose de a priori possvel, em entrar no jogo do texto e medir sua resistncia.

III. Cinco incios

Propomos, ento, uma viagem sem roteiro determinado por cinco textos contemporneos dos quais leremos as primeiras rplicas ou linhas sem formalizar demais as proposies. Trata-se de uma espcie de teste em que entraremos em contato com escritas diferentes sem que elas sejam rotuladas e sem que estabeleamos um mtodo explcito de leitura. As entradas sistemticas no texto sero propostas no terceiro captulo. Aqui, trata-se antes de abrir cada um dos cinco volumes: Les chaises [As cadeiras], de Eugne Ionesco; Vatelier [O ateli], de Jean-Claude Grumberg; La bonne vie [A boa vida], de Michel Deutsch; Dissident, il va sans dire [Dissidente, evidente], de Michel Vinaver; Dans Ia solitude des champs de coton [Na solido dos campos de algodo], de Bernard-Marie Kolts. Iremos dedicar-nos a um ato de leitura breve e sinttico, limitando-nos estritamente ao fragmento citado. Os textos foram escolhidos porque propem escritas diferentes umas das outras e porque seus autores, mesmo que no sejam muito conhecidos pelo "grande pblico", foram todos encenados vrias vezes em teatros nacionais franceses ou de importncia nacional. Estudaremos prioritariamente o sistema de informaes e o modo como se instaura o dilogo entre autor e leitor em funo de suas respectivas "enciclopdias", tendo em mente Lector in fbula, de Umberto Eco. Evidentemente, no esgotaremos o

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trabalho sobre o sentido e nos limitaremos a algumas observaes preliminares, Uma viagem como essa pelos incios dessas peas recentes mostra que no existe soluo nica nas escritas contemporneas. As narrativas se estabelecem em diferentes nveis de informao e com subterfgios muito contrastantes sem que se possam classificar automaticamente essas diferentes escritas em funo de uma esttica. Ao entender como se estabelece a relao entre autor e leitor, compreenderemos melhor como construdo todo o sistema narrativo.

l."Leschaises" Eugne Ionesco (estreada em 1952; Gallimard, 1954)Levantam-se as cortinas. Penumbra. O Velho est em cima do escabelo, debruado na janela da esquerda. A Velha acende o lampio de gs. Luz verde. Ela vai puxar o Velho pela manga. - Vamos, meu amorzinho, feche a janela; a gua estagnada est cheirando mal, e, alm disso, esto entrando mosquitos. o VELHO - Deixe-me em paz! A VELHA - Ora, vamos, meu amorzinho, venha se sentar. No se debruce, voc pode cair na gua. Voc sabe o que aconteceu com Francisco L preciso tomar cuidado. o VELHO - Novamente exemplos histricos! Que bosta! Estou cansado da histria da Frana. Quero ver; os barcos na gua fazem manchas no sol. A VELHA - Voc no pode v-los, no h sol; noite, meu amorzinho. o VELHO - Ainda h a sombra do sol.A VELHA

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Ele se debrua mais ainda. A VELHA (ela o puxa com ioda fora) - Ah!... voc me assusta, meu amorzinho... venha se sentar, voc no os ver chegar. No vale a pena. J noite... O Velho se deixa levar a contragosto. o VELHO - Eu queria ver, gosto tanto de ver a gua. A VELHA - Como pode, meu amorzinho? Isso me d vertigem. Ah! no consigo me acostumar com esta casa, com esta ilha. Tudo cercado de gua... gua sob as janelas, at o horizonte... A Velha e o Velho, ela o levando, dirigem-se s duas cadeiras no primeiro plano da cena; o velho se senta com toda a naturalidade no colo da velha. o VELHO - So seis da tarde... j noite. Voc se lembra? Antes no era assim; ainda estava claro s 9 da noite, s 10, meia-noite. A VELHA - mesmo, que memria! o VELHO - As coisas mudaram muito. [...]

Essas doze primeiras rplicas fornecem uma grande quantidade de informaes ao leitor, mas estas so, de incio, suspeitas e se revelam pouco teis. O espao dado, um espao fechado cercado de gua; banal para uma ilha, menos banal para uma casa. O tempo, muito preciso j que o velho diz que so seis horas, de repente relativizado, diretamente pela invocao recordao, indiretamente por uma aluso s estaes; inverno e essa contestao das informaes pouco comum no teatro. A referncia histrica a Francisco I no , evidentemente, digna de f, embora se trate aparentemente de um hbito da velha sustentar assim suas afirmaes de lembranas "culturais", e um hbito do velho queixar-se delas. A ao tambm banal, j que se trata, para um. de olhar pela janela, e, para o outro, de o impedir.

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As relaes entre esses personagens muito idosos (Ionesco indica na abertura que eles tm, respectivamente, 95 e 94 anos) so confusas devido a seus comportamentos. A velha trata o velho como se ele fosse uma criana imprudente e ele se senta em seu colo. Alm disso, eles se interpelam utilizando palavras que se referem infncia ("meu amorzinho, que bosta"), surpreendentes no contexto. Essa situao, em resumo burlesca, que revela um velho casal em sua intimidade derrisria, contrariada pela temtica do fim que se impe desde o incio de maneira recorrente. inverno, o fim do dia sobre a gua estagnada e do sol resta apenas a sombra. A morte est presente na ao (risco de cair na gua) tambm pelas aluses aos cheiros e luz verde. Essas velhas crianas isoladas em uma paisagem sem fim e sem luz perderam suas referncias temporais, ou ento embelezam-nas pela memria. O enclausuramento renegado ou enunciado como tal, e o horizonte estabelecido h pouco j est fechado. Se o leitor corre o risco de fazer uma leitura naturalista, esta imediatamente encontra obstculos nas informaes vacilantes e na ausncia de unidade do texto. Se se trata de um velho casal que espera a morte, o dilogo o enuncia apenas de maneira indireta, sem patos e de uma maneira que se diria, sobretudo, burlesca. A vertigem diante da ausncia de referncias uma das chaves do fragmento, j que o texto comea ao modo do fechamento e do lamento e j que a pea se abre para o vazio e a ausncia de projetos. Se o leitor j freqentou o teatro rotulado de "absurdo" ou "metafsico", ele imediatamente encontra uma temtica familiar. Caso contrrio, confrontado com um sistema de informaes contraditrias que se funda na pardia da dramaturgia tradicional.

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2."Catelier" Jean-Claude Grumberg (estreada em 1979; Actes Sud Papiers, 1985) Cena 1, A experincia (fragmento)Bem cedo, em uma manh de 1945. Simone, sentada cabeceira da mesa, de costas para o pblico, trabalha. Em p, perto de outra mesa, Hlne, a patroa, tambm trabalha. De vez em quando ela olha para Simone. - Eles tambm prenderam minha irm em 43... SIMONE - Ela voltou? HLNE - No... ela tinha vinte e dois anos (Silncio.) Voc trabalhava por conta prpria? SIMONE - Sim, s meu marido e eu; na poca de maior trabalho contratvamos uma operria... Tive de vender a mquina no ms passado; ele no poder nem mesmo voltar a trabalhar... Eu no deveria t-la vendido, mas... HLNE - Uma mquina uma coisa fcil de achar... SIMONE (concordando com a cabea) - Eu no deveria t-la vendido... Ofereceram-me carvo e...HLNE

;i.

Silncio. - Vocs tm filhos? SIMONE - Sim, dois meninos... HLNE - Qual a idade deles? SIMONE - Dez e seis. HLNE - uma boa diferena... Pelo menos, o que dizem... No tenho filhos. siMONE - Eles se viram bem; o mais velho toma conta do menor. Estavam no campo, em zona livre; quando voltaram o maior teve de explicar ao menor quem eu era; o menor se escondia atrs do grande, no queria me ver, me chamava de dona...HLNE

Nas indicaes cnicas e nessas doze primeiras rplicas, Grumberg fornece imediatamente muitas informaes

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teis para a construo do enredo. Trata-se de dados histricos e "objetivos" (1945, a zona livre, a falta de carvo, a priso em massa), dados concernentes aos dois personagens (maridos, filhos, trabalho), elementos mais psicolgicos (os silncios, o estabelecimento das relaes entre as duas mulheres). A cena tem um ttulo e podemos deduzir que Simone, a quem so feitas as perguntas, que est em perodo de experincia. notvel que as duas mulheres falem ao trabalhar e, portanto, que o problema da atividade dos personagens em cena esteja resolvido, assim como notvel ajustificao do aparecimento da palavra, o dilogo tomando a forma de uma espcie de conversa iniciada entre duas mulheres que trocam de maneira "natural" informaes sobre elas mesmas, informaes evidentemente destinadas indiretamente ao leitor, que tem condies, mesmo em um espao de dilogo to breve, de situar satisfatoriamente o enredo inicial. Ele sabe onde e quando se passa a ao, comea a dispor de elementos biogrficos enunciados ou sugeridos (existncia de uma irm para uma, de um marido para a outra). A ancoragem imediata e mais forte ainda se o leitor tem uma boa possibilidade de dispor em sua "enciclopdia" pessoal de muitos elementos que lhe permitam completar a rede de informaes, graas s histrias sobre a ocupao transmitidas pela memria coletiva. Grumberg sabe disso, j que no faz afirmaes inteis, nomeia o inimigo apenas com um "eles", insinua mais do que enuncia o racionamento e todo um modo de vida que se tornou "comum" em uma situao fora do comum (as crianas em zona livre). Ele ainda no constri um "drama", mas deixa entrever que j dispe de elementos patticos fortes o suficiente, ainda no assumidos emocionalmente pelos personagens, para que o drama possa se desenvolver (os seres queridos arrancados de suas famlias, o filho que no reconhece mais a me). Tudo

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est dado, e bem dado, em poucas palavras, ainda que subsistam lacunas suficientes para que o leitor faa sua parte de trabalho e, portanto, que seu interesse seja atrado. Poderamos dizer que esses vazios no foram, de modo algum, deixados ao acaso. Aqui eles esto perfeitamente indicados e como cercados de informaes para que cada pessoa os localize sem incertezas inteis. No fundo, o leitor tem a satisfao de estar diante de um texto moderno cujas chaves lhe so, contudo, familiares.

3. "La bonne vie" Michel Deutsch (Thtre Ouvert; Stock, 1975; 10/18,1987) Cena 1, A felicidadeUm caminho florestal declina. A auto-estrada, ao fundo, avana, Um R8 e um velho Peugeot Dois casais e uma criana. Almoo sobre a reiva... pode-se dizerpiquenique. Trata-se da trucagem um pouco fraca de uma fotografia? Talvez do cinema sobre fundo de tela pintada... Sobretudo palavras: gelados... longnquos.., geolgicos.RAYMOND -

um belo dia. JULES - ... tambm acho. MARIE - Mas no se ouvem mais os pssaros. RAYMOND - Exato. Isso a vida moderna No se pode ter tudo. Sempre digo: o progresso tem seu lado bom e seu lado ruim, Mas preciso conviver com sua poca. So os pssaros ou a auto-estrada,FRANOISE-Eu... RAYMOND-Sim? FRANOISE - Ouvi

um agora h pouco!

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LER O TEATRO CONTEMPORNEORAYMOND - Voc ouviu um pssaro? FRANOISE - Ouvi, Posso at dizer que era um melro. JULES - Acho que no. Em todos os casos posso afirmar

que

no era um melro. Isso posso afirmar. Pausa. Era um arqueopterix. MARIE - Ento voc tambm ouviu. RAYMOND - Um arqueopterix?... Mulher, a cerveja. JULES - o que estou dizendo. Li que esse tipo de ave dentada instalou-se h alguns anos nos arbustos que crescem perto dos trevos de auto-estradas. Voc tambm poderia ter lido isso. MARIE - Nem todo o mundo l a mesma coisa. JULES - Justamente, MARIE - H pessoas que lem o mesmo jornal sem ler a mesma coisa.

Dessa vez, o leitor no dispe de informaes diretas sobre a poca. O ttulo da cena geral demais para fornecer uma indicao; pode-se at supor que no seja isento de ironia. J de incio, as didasclias surpreendem por seu carter no prescritivo, ao contrrio da tradio. Deutsch se questiona e nos devolve a pergunta, deixa escapar um "talvez". O "declnio" do caminho florestal j pode ser entendido nos dois sentidos e se ope auto-estrada que "avana**. Dos modos de marcar a dinmica de espaos que se opem. O piquenique corrige com humor o que o "almoo sobre a relva"* prope de cultural e conota uma outra cultura. Tudo gira em torno da produo de imagens, do quadro foto. O cinema sobre fundo de tela pintada pode ser entendido como uma rubrica para o teatro e tambm como uma escolha est-

* Referncia a Le djeuner sur 1'herbe (em portugus, "o almoo sobre a relva"}, quadro de . Manet. (N. do T.)

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tica, "Sobretudo palavras" contradiz tudo o que at ento era visual, e o surpreendente "geolgico" anuncia provavelmente o arqueopterix que aparecer no dilogo. Essas informaes cnicas mais questionam do que informam (a nica informao objetiva se refere aos personagens e aos carros), so polissmicas e, dessa maneira, "poticas". O humor cria um efeito de surpresa e prope, de sada, um vnculo particular, "ativo", com o leitor, que se sente como convidado a participar de um trabalho de decifrao do que est sendo escrito. O dilogo fornece muito poucas informaes. Ele desfia deliberadamente uma srie de lugares-comuns conver1 sacionais (do "belo dia ' evoluo da "vida moderna") e cria uma espcie de cromo do piquenique de periferia, cerveja includa. A histria ainda no est "no ponto" (como se diz de um cimento que endurece), ainda que se esbocem relaes de fora na conversa entre os que sabem ou preu tendem saber e os que tm acesso palavra. O eu" pronunciado por Franoise seguido do "sim" de Raymond chamam a ateno. Essa troca vazia de contedo indica que a fala no totalmente "livre", e que um controle, do lado masculino, opera-se na sua distribuio. (Na relao de personagens, Franoise anunciada como mulher de Raymond.) Evidentemente o arqueopterix (que se ope ao melro, mais esperado no cenrio) que prende a ateno, como uma surpresa lexical no contexto sobretudo banal das trocas. Esse saber particular justificado pela leitura do jornal, com uma espcie de ironia de Deutsch, em forma de anncio ( preciso ler e sobretudo saber ler, ou seja, escolher o que se l e o que se acrescenta a isso). Ainda no se sabe o que vem fazer esse pssaro familiar dos arbustos dos trevos de autoestrada, exceto que ele estimula o intercmbio (Jules vem em auxlio de Franoise e Marie).

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O leitor s pode construir com prudncia (ele convidado a ler com ateno) em um dilogo sinuoso e acidentado. Dois carros, dois casais, dois caminhos to opostos quanto os dois pssaros. Demarcaes, sob a forma de rplicas j conhecidas ou que incitam a um efeito de reconhecimento (a situao seria um piquenique no campo). Uma surpresa, o pssaro pr-histrico acerca do qual se esboa um minconflito de saber, talvez uma espcie de vaga ameaa. Tudo era raso, nem tudo j o inteiramente (procure-se o erro no dilogo, no lxico) e no cerne da banalidade surgem palavras que convidam derivao. Poderamos prosseguir na construo, mas ento nos instalaramos em um jogo de hipteses que a cena convidada a esclarecer, se no a resolver. Contudo, evidente que para ler La bonne vie no devemos nos contentar com as aparncias, mas devemos estar atentos s ranhuras do cromo, s distncias que se instauram nessa foto suspensa, nesse instantneo captado entre dois espaos (o antigo e o novo), dois pssaros (o familiar e o inslito) e dois tempos (o passado e o futuro). A incerteza e, talvez, o mal-estar esto no centro dessa encruzilhada de trocas entre modos de vida. Sem recorrer a uma anlise minuciosa, o leitor no escapar ao sentimento de banalidade e de j lido.

4. "Dissident, il va sans dire" Michel Vinaver(L'Arche, 1978)UM

- Elas esto no bolso do meu casaco. PHILIPPE - No nem em cima do mvel. HLNE - Voc gentil. PHILIPPE - Por voc o ter deixado em fila dupla? HLNE - Ento talvez eu as tenha esquecido em cima do carro.HLNE

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k - Um dia vo roub-lo voc. HLNE-Voc no se candidatou? PHILIPPE - Claro que sim. HLNE - No tive coragem dei no sei quantas voltas no quarteiro est ficando cada vez mais difcil. PHtLiPPE - Vou estacion-lo para voc. HLNE - Daqui a um ano voc poder tirar sua habilitao.PHILIPPE-, HHLNE HLNE

- Este pulver novo? - Pergunto-me de onde vem o dinheiro.

PHILIPPK-.

No h didasclias nesse fragmento, introduzido somente por um nmero, mas a lista dos personagens define que Philippe filho de Hlne. Este dilogo lacnico e sem pontuao toma a forma de uma conversa iniciada que trata simultaneamente de vrios assuntos. Aparentemente estamos no andino, no banal. O carro e suas chaves, achar ou no achar lugar para estacionar (isso aconteceria em Paris ou em uma cidade grande!), a habilitao, o emprego (candidatar-se), o puver, o dinheiro. Preocupaes comuns de personagens comuns, com informaes destiladas indireta e habilmente (Philippe tem 17 anos, procura emprego, provavelmente mora com a me, ela tem um carro, talvez ela at esteja voltando do trabalho, preocupa-se com o filho, com o que ele faz, o que veste, com o dinheiro que ele tem ou no, em todo caso ela quem faz as perguntas). Mas isso passa rpido, e o dilogo no desenvolve nada e parece colocar tudo no mesmo nvel de interesse, o que seria importante "dramaticamente" (a histria de um jovem desempregado?) e o que o seria menos (Hlne perdeu as chaves do carro). Como em uma conversa "de verdade", os personagens no nomeiam o que evidente para eles (as chaves que permanecero "elas", "o mvel" e o carro, imprecisos porque familiares). uma primeira causa dos "vazios" desse dilo-

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go, j que s nomeado o que importante para os personagens; cabe ao leitor fazer o resto, a informao no lhe fornecida com insistncia. Entretanto, pela desordem aparente da conversa ir instaurar-se um outro nvel de sentido se relacionarmos as rplicas (e os assuntos) entre si. Hlne procura uma vaga (para seu carro), ou melhor, ela no a encontrou. Hlne espera que seu filho encontre uma vaga (ele se candidatou?) e se ele no responde, est pronto a encontrar uma (para o carro) mesmo que isso "esteja ficando cada vez mais difcil". Hlne deu 'Voltas" e "no teve coragem" de deixar de outro modo que no fosse em "fila dupla". Onde est a coragem de Philippe cujo lacnico "claro que sim" levanta um muro diante de sua situao real (estaria, ele tambm, em "fila dupla"?)? Philippe que se preocupa com o eventual roubo do carro, mas Hlne que se pergunta de onde vem o dinheiro do novo pulver (emprestado, roubado?). Hlne tem uma habilitao, Philippe ainda no (de que habilitao ele precisa?). Hlne perde suas chaves, Philippe as encontra e est pronto a achar uma vaga para a me. Assim se instaurar o sentido se o leitor procurar preencher os vazios, ou de preferncia encontrar ligaes entre as ilhotas de palavras que so as rplicas. Se nada mais importante do que o resto, se s vezes eles do a impresso de falar para no dizer nada, porque tudo importante e porque, nesse dilogo, no dizer nada , ainda assim, dizer, a partir do momento em que relacionar as rplicas provoca curtos-circuitos que chamam a ateno. As trocas so como que abandonadas logo depois de iniciadas ("Voc no se candidatou? Claro que sim"). No momento em que o leitor espera obter mais, a conversa bifurca e a me que fala em lugar do filho, de seu problema com a vaga, o dela (e, alm disso, talvez seja justamente o dele). Uma enorme importncia , portanto, dada ao leitor, j que ningum alm dele pode determinar as ligaes subterrneas e as implicaes secretas das trocas de palavras

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que, na superfcie, permanecem obstinadamente rasas. Vinaver trata apenas indiretamente do "retorno da me ao lar para junto de seu jovem filho desempregado", se a questo for realmente essa, suprimindo de seu teatro todo risco de pattico, ou pior, de peso dramtico. Resta ao leitor encontrar seu caminho entre essa superfcie banal e o jogo das profundezas, sabendo que a interpretao no deve, em nada, criar um peso que no pertenceria mais ao registro dessa escrita.

5. "Dans Ia solitude des champs de coton" Bernard-Marie Kolts (Editions de Minuit, 1986)O TRAFICANTE

Se voc est andando, a esta hora e neste lugar, porque deseja alguma coisa que no tem, e eu posso fornec-la para voc; pois se estou neste lugar h muito mais tempo que voc e por muito mais tempo que voc e se mesmo esta hora, que a hora das relaes selvagens entre os homens e os animais, no me expulsa daqui, porque tenho o que necessrio para satisfazer o desejo que passa diante de mim, e como um peso do qual preciso me livrar em cima de qualquer um, homem ou animal, que passe diante de mim. por isso que me aproximo de voc, apesar da hora que , normalmente, a hora em que o homem e o animal se jogam selvagemente um sobre o outro; aproximo-me de voc, com as mos abertas e as palmas voltadas para voc, com a humildade de quem possui diante de quem deseja; e vejo seu desejo como se v uma luz que se acende, em uma janela bem no alto de um prdio, no crepsculo; aproxmo-me de voc como o crepsculo aproxima esta primeira luz, vagarosamente, respeitosamente, quase afetuosamente, deixando l embaixo na rua o animal e o homem esticarem suas correias e se mostrarem, selvagens, os dentes. [...]

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LER O TEATRO CONTEMPORNEOO CLIENTE

No estou andando em determinado lugar em determinada hora; estou somente andando, indo de um lugar a outro, para negcios privados dos quais se trata nestes lugares e no no meio do caminho; no conheo nenhum crepsculo nem nenhum tipo de desejo e quero ignorar meus acidentes de percurso. Eu ia desta janela iluminada atrs de mim, l em cima, a esta outra janela iluminada, l embaixo, na minha frente, segundo uma linha bem reta que passa por voc porque voc se colocou a deliberadamente. Ora, no existe nenhum meio que permita, a quem vai de uma altura a uma outra altura, evitar descer para em seguida ter de subir de novo, no absurdo de dois movimentos que se anulam e correndo o risco de; entre os dois, pisar a cada passo nos dejetos jogados pelas janelas; quanto mais alto moramos, mais o espao saudvel, porm mais dura a queda; e, no momento em que o elevador o deixa embaixo, ele o condena a andar no meio de tudo o que no se quis l em cima, no meio de um monte de recordaes que esto apodrecendo, como num restaurante quando um garom faz a conta e enumera em seus ouvidos repugnados todos os pratos que voc est digerindo h muito tempo. [...]

O incio desse texto citado de maneira muito incompleta, j que as primeiras "rplicas" alternadas do traficante e do cliente ocupam, cada uma, muitas pginas. Tivemos ento de romper com nosso mtodo de amostragem e interromper de maneira insatisfatria para apresentar, mesmo assim, trechos do texto de cada um para que a obra no aparecesse na citao como um monlogo. O texto no precedido por nenhuma outra indicao alm de uma longa definio do "trfico", "transao comercial referente a valores proibidos ou estritamente controlados, e que se conclui, em espaos neutros, indefinidos, e no previstos para tal uso, entre fornecedores e consumidores [-..]".

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Essas longas rplicas rompem com a utilizao contempornea do dilogo nervoso ou dos longos monlogos, exigese uma escuta particular entre os parceiros. O leitor dificilmente acha nelas seu espao e sua dose de informaes, ainda que paradoxalmente o texto proceda a uma descrio extraordinariamente minuciosa dos fatos e gestos de cada um, de seus projetos respectivos e de suas intenes aparentes ou mascaradas. No somente a fala quase no esvaziada como tende a uma espcie de saturao, rumo a uma litania verbal ritualizada na qual as estratgias no se expem na troca relacionai mas no desdobramento lento e preciso das palavras. Seria um erro saltar para a concluso, voltar-se para a transao comercial da qual se trata e nome-la para que o sentido aparea. Ora, reduzir a troca ao trfico de drogas ou prostituio enfraquece o texto de maneira evidente, reduzindo-o a uma anedota, mesmo sendo possvel que uma parte dos rituais daquelas transaes comerciais esteja presente na escrita. o Talvez seja necessrio analisar primeiramente o aspectoo do espao e do movimento, O traficante est inicialmente postos, instalado, como que imvel, espera, tal como indic? toda a rede lexical. Em seguida, contudo, ele descreve sua abordagem do cliente, que apresentado como estando em movimento. Uma parte da rplica do cliente serve para justificar seu deslocamento, sua caminhada em terra desde o momento em que um elevador o deixou embaixo. Alis, a verticalidade recorrente em suas palavras. Ao redor deles, edifcios imveis abstratos, janelas iluminadas como referncias, a meno ao solo e possvel queda. Eles se consagram, pois, tanto um como outro, a um jogo de movimentos, a estratgias espaciais complexas cujo objetivo , para um, ir em direo ao cliente, e para o outro negar qualquer inteno de compra, no final das contas, normal, na presena do trafi-

a

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cante. As aluses caa e aos animais selvagens, ao crepsculo, remetem tambm noo de territrio. Uma outra rede lexical remete religio e ao sagrado. As janelas iluminadas so os pontos para os quais o cliente se dirige, mas seu desejo luz, diz o traficante que se adianta com "humildade", "as mos abertas e as palmas voltadas para voc". Esses avanos tm algo de ritual e sagrado, apesar ou por causa da evocao do desejo e das intenes comerciais no dissimuladas. O traficante sabe qual o desejo do cliente, mas no nomeia o objeto do desejo, de tanto que ele evidente e provavelmente porque isso no o que interessa a Kolts. Nesse lugar "baixo" cheio de dejetos que caem do alto, o que dado a ver uma espcie de dana ritual, um encontro de trajetrias abstratas, inevitveis e, por isso, quase trgicas. Eles acabaro por se encontrar, pois esse o objeto dessa dana, insinua o traficante. Efetivamente, ele s podia passar por ali, reconhece o cliente, que no evita o traficante, j que este estava no percurso previsto por sua trajetria inicial. Essa "dana do desejo" incessantemente falada, comentada e desrealizada, em uma linguagem que , ela prpria, regozijo em seu desdobramento. Talvez a pea fale essencialmente da tenso nica que ao mesmo tempo rene e ope dois seres ligados pelo desejo e pela possibilidade de satisfaz-lo. A longa aproximao verbal, quase manaca em sua preciso nos dois personagens, participa dessa "exibio" do desejo - ou do comrcio, como se queira - que rene a pessoa que possui e a que pede, a denegao do desejo fazendo parte do ritual obrigatrio e inquietante que possibilita o acesso ao prazer.

IV. Problemas de leituraA abordagem desses textos, no teorizada aqui, evidentemente no d conta de todas as escritas atuais. Sua brevidade permite apenas que se tenha conscincia de sua diversidade e complexidade. Podemos tirar disso algumas hipteses de trabalho.

1. Entrar no texto A leitura do texto se realiza sem pressupostos dramatrgicos, ou melhor, ela se efetua com instrumentos diferentes de acordo com os textos. Os textos teatrais considerados ilegveis ou hermticos so textos que no sabemos ler, ou seja, para os quais no achamos nenhuma chave satisfatria. Com freqncia, trata-se de textos que no obedecem s regras da dramaturgia clssica, aos quais o leitor se refere com maior ou menor conscincia. Todo texto legvel se dedicamos tempo a ele e se nos damos os meios para isso. O critrio de legibilidade, de qualquer maneira muito discutvel mesmo que seja difundido, no deveria ser acompanhado de um julgamento de valor sobre a "qualidade" do texto, ou seja, sobre nosso prazer de leitor que entra em relao com o autor durante o ato de leitura. Vrios dos textos apresentados aqui fornecem poucas informaes que ajudam a construir uma histria, ou, pior.

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Hi

algumas informaes aceitas sem verificao conduzem a falsas pistas, a fragmentos de histria que no levam a lugar nenhum. O piquenique de La bonne vie no um piquenique comum, mesmo que parea ser. Uatelier no apenas uma histria que se passa sob a ocupao ou logo depois, ainda que isso constitua um ponto de partida essencial. O que podemos chamar de "subinformaao narrativa" , com bastante freqncia, o regime dos textos que nos interessam aqui. Portanto, preciso mudar de distncia focai e, em vez de se preparar para captar com a grande-angular o retrato da sociedade ou a epopia, comear a identificar, no prprio cerne do texto, todos os indcios que ajudaro a construir um sentido. Na maior parte do tempo deveremos renunciar s macroestruturas que ajudam a compreender um texto, s vezes rpido demais, em sua totalidade e construir t4 a partir do quase nada" que nos dado. Portanto, ler tambm, ou sobretudo, olhar pelo microscpio. Nada do que se encena em As cadeiras e em Dissident, il va sans dire tem possibilidade de chegar a ns se imediatamente reduzimos esses textos a partir do "j conhecido" e de conversas correntes. Sem dvida so conversas, mas maquinadas, organizadas, cheias de armadilhas, e todo o seu interesse est em sua organizao. No caso de Dans Ia solitude des champs de coton, escolhemos centrar a anlise no espao porque ele aparece como a rede de sentido mais abundante e mais pertinente, ao menos nessas primeiras pginas.

t \

2. A rede temtica e as peas sem "assunto" A pergunta "o que isso narra?" se desdobra em uma reflexo sobre "de que isso fala?". Uma classificao temtica mais insatisfatria do que nunca se leva a imaginar que os autores "escrevem sobre", isto , que eles "tratam de um

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assunto". A maioria deles antes de tudo escreve, e so os assuntos que nascem da escrita e no os assuntos preexistentes que fazem a escrita, mesmo que haja, como veremos, uma poltica de encomendas ou escritas mais intencionais que outras. Pode-se dizer que Dissident trata do desemprego dos jovens ou da relao entre rnaes e filhos? Que Dans Ia solitude des champs de coton fala do mercado de drogas e La bonne vie, do estado do campo ao redor das auto-estradas? No trabalho sobre o sentido, um recenseamento temtico exaustivo interessante quando no reduz a pea a uma anedota, ilustrao de um assunto ou, pior, de um problema social. Evidentemente existem peas conjunturais ou didticas e interessante ver como elas resistem ao tempo. Quando so importantes, no se limitam a seu assunto e resistem a ele.

3 . 0 "sentido" no uma urgnciaO problema do "sentido" de um texto a questo mais rdua j abordada pelos trabalhos tericos nessa rea. principalmente os de Roland Banhes, Umberto Eco e Anne UbersfelcL Notemos simplesmente que se trata aqui, contrariamente a uma certa prtica, da coisa menos urgente a ser formulada para o leitor e que ao querer dar sentido logo de incio que se perde p na leitura. De fato, damos sentido incessantemente quando observamos diferentes redes (narrativas, temticas, espaciais, lexicais..,), j que tentamos interlig-las. Diante de textos complexos importante escapar de uma hierarquizao grande demais da anlise, a que privilegia justamente as redes narrativas ou temticas em detrimento de estruturas propriamente teatrais (o dilogo e o que ele revela das relaes entre os personagens, o sistema espao-temporal...).

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4. Construir a cena imaginria A leitura de um texto teatral eqivale a construir uma cena imaginria na qual o texto seria percebido da maneira mais satisfatria para o leitor Isso no quer dizer que o texto teatral seja "incompleto" por natureza, mas que ele resulta de um regime paradoxal, tal como abordamos em nossa Introduo anlise do teatro*, Ele completo enquanto texto, mas toda leitura revela as tenses que o encaminham a uma prxima cena. A cena no explica o texto, ela prope para ele uma concretizao provisria. Diante de um novo texto, o leitor no pode nem se referir a uma concepo antiga da mquina teatral nem se apoiar na dramaturgia tradicional. As solues cnicas evidentes demais fecham o texto antes mesmo que tenhamos podido apreender seu interesse. Imaginar Dissidente il va sans dire ou Dans Ia solitude des champs de coton em um cenrio falsamente naturalista emprestado do teatro de bulevar no traria nada para a compreenso desses textos- Seria o mesmo caso de uma concepo obstinadamente "vanguardista" de toda escrita nova, que a encerraria em um outro sistema de clichs. A representao teatral contempornea "representa" menos do que no passado e alguns diretores se chocam com obstinao contra o muro do no-representvel ou do menos representvel quando procuram fazer recuar os limites do 7 que habitualmente dado a ver. Como "mostrar' (fazer sentir, partilhar) a ausncia, ou a morte, por exemplo, e todas as emoes que no participam do espetculo convencionado? Existe ainda uma confuso entre "teatro" e "espetculo", embora essas duas noes no coincidam. A teatralidade no senso comum se traduz com muita freqncia em um exage* Trad. bras. Martins Fontes, 1996.

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ro nas tintas, um adensamento das emoes, uma simplificao do que dado a ver. Mas a teatralidade (no sentido do que se desenrola em um espao dado e sob o olhar do Outro) tambm existe com discrio, pudor, moderao. A falta de viso no se traduz automaticamente em falta de percepo, sensao ou compreenso. Em compensao, a cena contempornea aposta no fato de que "tudo representvel", isto , nenhum texto est, a priori, excludo do campo do teatro por falta de teatralidade. As cadeiras ou Dans Ia solitude des champs de coton no so apriori textos de espetculo, mas seria um erro classific-los como textos radiofnicos ou "textos para serem recitados", como se a cena no tivesse nada o que fazer com eles, ao passo que suas representaes, quando necessrio, provaram o contrrio. O que seria da cena seguinte em Dans Ia solitude des champs de coton? Uma confluncia de ruas cheia de lixo entre blocos de conjunto habitacional? A reproduo do que se passa sob o metr elevado de Barbs-Rochechouart? Uma alameda do Bois de Boulogne? Trajetrias entre sombra e luz em um planalto nu? A que se assemelhariam as pessoas que fazem piquenique em La bonne viel A heaufs* da histria em quadrinhos de Cabu? Aos operrios de Billancourt vestidos pela Trois suisses? A primos de personagens que escaparam da obra de Jean Renoir? A caadores de arqueopterix? O leitor, se no nem cengrafo nem diretor, trabalha, no entanto, para construir imagens na relao entre o que l e o estoque de imagens pessoais que detm. E ainda necessrio que ele organize as imagens persistentes impostas pela concepo dominante do teatro e que ouse recorrer a um imaginrio no convencionado.

* Pequeno burgus com idias limitadas, conservador e machista (Le petit Rohen, 1995. {N, do T)

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. o personagem central do gari brilha; cinco autores diferentes, com idades de 9 a 46 anos, so responsveis por ele. A cena se divide em sete lugares que situam momentos do passado, do futuro sonhado por Auguste G. e diferentes momentos do presente- Em Chant public devant deux chaises lectriques [Canto pblico diante de duas cadeiras eltricas] (Seuil, 1964) existem cinco espaos-possibilidade representando salas de espetculo em Lyon, Hamburgo, Turim, Los Angeles e Boston, em que espectadores assistem simultaneamente representao de uma pea sobre o caso Sacco-Vanzetti, o que d execuo e suas conseqncias uma dimenso mundial. Em Lapassion du general Franco [A paixo do general Franco] (Seuil,

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1968), ele inventa trajetos geogrficos que estruturam a pea e ilustram a situao do espanhol errante, exilado poltico ou econmico, Gatti um autor pouco encenado hoje, talvez devido ao engajamento poltico de seu teatro. No entanto, sua dramaturgia teve uma influncia duradoura e quase subterrnea na percepo do tempo e do espao no teatro.

7. Aqui e alhures: simultaneidade e fragmentao O espao-tempo fragmentado nem sempre tem tais pressupostos ideolgicos. Em vrias de suas obras, Michel Vinaver imbrica diferentes conversas que prosseguem ao longo de toda uma seqncia. Desse modo, ele entrelaa discursos que poderiam advir de espaos-tempo diferentes e faz com que sejam ouvidos simultaneamente. Em La demande d'empioi (1972), "pea em trinta partes", quatro personagens (Wallace, diretor de recrutamento de executivos, CIVA; Fage; Louise, sua mulher; Nathalie, filha deles) so captados entre uma conversa familiar e a continuao de um questionrio de admisso. ''Eles esto em cena sem interrupo", define Vinaver, que, por outro lado, no fornece nenhuma indicao cnica e, principalmente, nenhuma indicao espacial. Este o incio da primeira parte, intitulada UM:- O senhor nasceu dia 14 de junho de 1927 em Madagascar LOUISE- Querido FAGE - Fisicamente tenho WALLACE - E evidente LOUISE - Que horas so? NATHALIH - Papai, no faa isso comigo FAGE - um ideal forjado em comum, quero dizer que no se trabalha s pelo contrachequeWALLACE

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- Voc deveria ter me acordado FAGE -- Eu ia acord-la, mas voc estava dormindo to profundamente WLLACE - O que seus pais estavam fazendo em 1927 em Madagascar? FAGE- Com o brao dobrado, era bonito de olhar NATHALIE - Papai, se voc me fizer isso Louist - No engraxei seus sapatos FAGF - Meu pai era mdico do exrcito LOUISH - Voc saiu todo enlameado NATHALIE -Papai, responda-me FAGE-"Naquela poca naguarnio em Tananarive WALLACK - Em nossa sociedade FAOE - Mas no me recordo de nada WALLACE - Damos muita importncia ao homem [,..].

Nessa forma de conversa mltipla, dispomos de poucos indcios espaciais, Podemos imaginar um local privado, ntimo, o da famlia, e um local externo, social, o do escritrio de uma empresa. Nesse caso, Louise e Nathalie esto ligadas ao primeiro, Wallace ao segundo, e Fage garante a conexo, j que ele que fala nesses dois locais ao mesmo tempo. Nada torna esses lugares realmente indispensveis representao. Talvez se trate de um local nico, o de Fage ou de sua conscincia, atravessado pelos dois discursos. Mas podemos imaginar outras solues, inclusive uma "instalao" da famlia na empresa ou uma incrustao do diretor de recrutamento no local privado. Do ponto de vista temporal, podemos imaginar um retorno ao lar aps a entrevista (uma parte das rplicas concernem ao perodo da manh, antes de Fage sair), mas ainda assim nada evidente e nada data, por exemplo, as intervenes de Nathalie. Lgica demais na separao dos espaos levaria a um reexame do dilogo entrelaado. Mas o interesse do texto reside precisamente nos entrechoques das falas, na confrontao entre o discurso profissional que se torna-

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r impiedoso e o enfraquecimento progressivo do discurso familiar Em Oeuvres completes [Obras completas], Vinaver apresenta a pea:Desempregado h trs meses, um diretor de vendas procura um novo emprego. Ao mesmo tempo que se submete a questionrios aplicados corno mquinas infernais, ele encara sua filha, esquerdista, e sua mulher, que no lida bem com a perda de um modo de vida seguro. Esta trama simples serve de suporte a uma escrita dramtica fora de esquadro: ausncia de lugar, ruptura de cronologia, encavalamento de motivos e ritmos. Nos espaos misturados, os personagens entrecruzam seus tempos e se falam. No sem realismo: como sempre, cada um aqui est sozinho com todos e em todos os lugares.

Mesmo que a chave esteja dada (o encavalamento), nada est resolvido do ponto de vista da representao, mas uma coisa certa: a escolha da forma est, aqui, totalmente ligada ao modo de narrar e quilo que poderamos chamar de ideologia da narrativa. A complexidade inerente obra e no deve absolutamente ser analisada como uma preocupao voluntria de parecer "moderno". O carter musical da construo do dilogo, observvel em Vinaver, acentuado por Daniel Lemahieu em Viols [Violaes] (1978), em que toda relao com um espao e um tempo identificveis desaparece em benefcio nico dos fragmentos do dilogo para duas vozes de mulheres. Nesse caso, a simultaneidade mais formal, menos ancorada ainda no espao e no tempo, e o texto se assemelha a um oratrio. Nesses dois exemplos o dilogo prevalece sobre todas as marcas espao-temporais; o texto em fragmentos atinge limites em que a enunciao privilegiada, o que torna o trabalho do leitor particularmente delicado por falta de

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apoios concretos concernentes situao. preciso, ento, que ele aceite abandonar seu sistema habitual de observao, que desconsidere o que seria da ordem de uma situao tradicional e que se entregue aos fragmentos do dilogo. Esse o preo para se encontrar a unidade profunda de textos em que as variaes do espao e do tempo so tantas e to repentinas que prefervel ficar na superfcie da fala, no ponto em que o choque das rplicas fragmentrias produz sentido quando se aproximam umas das outras e podem ser compreendidas em sua continuidade. A grande liberdade dramatrgica que se instaurou nas relaes com o tempo e o espao marcada por uma obsesso pelo presente, qualquer que seja a forma que assumam esses diferentes "presentes", e por uma desconstruo que embaralha as pistas da narrativa tradicional fundada na unidade e na continuidade. O "aqui e agora" do teatro se torna o cadinho em que o dramaturgo conjuga em todos os tempos os fragmentos de uma realidade complexa, em que os personagens, invadidos pela ubiqidade, viajam no espao, por intermdio do sonho ou ento, mais ainda, pelo trabalho da memria. Tudo se passa como se um teatro atual voltasse obstinadamente a hoje e como se todos os acontecimentos convocados fossem revividos e julgados novamente luz do presente. Pode-se ver nisso o indcio de uma espcie de imperialismo da conscincia contempornea que ainda se alimenta de acontecimentos passados sob condio de aproveit-los sem demora, da impacincia de uma poca em que a percepo do instante teria primazia sobre o longo trabalho de reconstituio precisa da Histria. Talvez tambm se deva buscar na influncia da psicanlise esta relao com um presente revisitado pelo passado ou assombrado por ele. De qualquer forma, os acontecimentos colocados no teatro so incansavelmente questionados, confrontados, ligados entre si e como

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que movidos por uma agitao que transcende as incertezas. Na falta de um ponto de vista ideolgico seguro, a narrativa se entrega dvida. A conscincia admitida como inteiramente subjetiva quando a busca individual submetida s vacilaes da memria. Ela recorre aos pontos de vista mltiplos e refrao prismtica para compreender um mundo instvel, considerado entre a ordem e a desordem. A fragmentao no uma palavra de ordem de cunho modernista, mas na maioria das vezes a expresso de um questionamento, at mesmo de uma angstia, sobre a verdade dos fatos e seus desdobramentos. Ao passo que Gatti mostrava otimismo ao falar das "possibilidades" desta ubiqidade narrativa, a desconstruo agiu jogando a responsabilidade para o campo do leitor e submetendo-o, por sua vez, s incertezas dadecifrao.

III. Nos limites do dilogo

E o dilogo que representa o modo de expresso dramtica por excelncia", escrevia HegeL Michel Corvin, em seu Dictionnaire encyclopdique du thtre [Dicionrio enciclopdico do teatro], salienta que "o dilogo o sinal de reconhecimento mais imediato do teatro como gnero at o fim dos anos 60" e "(que ele) se mostra definitivamente quando seus elementos constitutivos, as rplicas, no so mais atribudos exclusivamente a personagens individualizados". Sem dvida foi na esfera do dilogo que o teatro moderno modificou com maior freqncia as regras tradicionais da fala e de sua circulao, ao ampliar o sistema de convenes da enunciao, A troca de falas alternada entre vrios personagens que simulam a comunicao de informaes dirigidas, em ltima instncia, ao leitor e ao espectador, chamada "dupla enunciao" pelos lingistas e semiologos. Esse sistema lindador da comunicao teatral dificilmente pode ser modificado em seu princpio, o de uma fala procura de destinatrio, para retomar a formulao de Anne Ubersfeld. No mximo, seria possvel modificar algumas de suas regras, enfraquecendo-as ou agravando-as. O verdadeiro dilogo contemporneo se faz cada vez mais diretamente entre o Autor e o Espectador, por diversos procedimentos enunciativos, o personagem enfraquecido mostrando ser um intermedirio cada vez menos indispensvel entre um e outro.

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Os dramaturgos considerados "do absurdo" fizeram da fala repisada, verborrgica, desregrada em sua necessidade e na segurana das informaes que transmite, uma das chaves de seu teatro. A fala circular, de utilidade duvidosa, embaralha as trocas entre os personagens e lana, em direo ao espectador, informaes incertas ou contraditrias. A conveno do dilogo em que se falaria para dizer e construir o enredo foi abalada, como vimos no roteiro de leitura. Ao passo que o classicismo fizera da preciso, da segurana e do carter completo das informaes dirigidas ao espectador uma das regras da escrita teatral, os dramaturgos do absurdo propuseram um embaralhamento geral que torna a necessidade do "dizer" cada vez mais problemtica. O enfraquecimento do personagem enunciador, sua desmultiplicao ou sua supresso pura e simples uma outra modificao notvel. A fala no mais necessariamente enunciada por um personagem construdo, com identidade observvel. Ele ainda fala, mas nem sempre se sabe de onde isso vem, por falta de referncias sociais, psicolgicas, ou simplesmente de identidade afixada. Nem sempre se sabe precisamente de onde vem a fala, ou quem fala, e tambm no se sabe a quem ela se dirige. Os entranamentos do dilogo modificam as leis da alternncia e fazem com que nem sempre se saiba com certeza a quem so destinados os discursos. Pode ser que o dilogo se apresente sob a forma de um novelo no qual os assuntos se entremeiam para simular os caprichos da conversa e romper a tradio do "falso dilogo", brilhante em todas as suas palavras espirituosas e regrado como uma partida de pinguepongue. Enfim, a palavra mantm uma relao cada vez menos necessria ou cada vez menos codificada com a situao e a ao. Os personagens falam "ao lado" da situao, sem dar a

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impresso de que esta levada em conta ou sem que ela seja observvel. Daniel Lemahieu escreve em "Prludes et figures" [Preldios e figuras], posfcio de Usinage:Oposio entre a situao em que se encontram imersos o personagem e seu discurso. Exemplo: a cama como lugar de debates polticos; a reunio de famlia como metfora de um tempo de trabalho.

Esse descolamento do dilogo e da situao difcil de perceber, pois ele inova no que se refere a uma dramaturgia em que o que falado inevitavelmente o reflexo do que interpretado. As relaes entre a palavra e a ao, contraditrias ou divergentes, mostram a inquietao ou a estratgia de personagens que no correspondem fatalmente ao que dizem ou fazem. Todo um teatro construdo estritamente no terreno da fala, como se as verdadeiras implicaes estivessem nos desafios e nas fragilidades de sua emergncia, como se a fala fosse a nica coisa capaz de construir uma realidade teatral que desconfia das convenes.

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1. Um teatro da conversao Um teatro da conversao um teatro em que as trocas e as circulaes de palavras prevalecem sobre a fora e o interesse das situaes, um teatro em que nada ou quase nada "agido", em que a fala, e somente ela, ao. Podese at acrescentar, considerando a palavra "conversao" ao p da letra, que os enunciados intercambiados apresentam um interesse restrito, que as informaes que circulam por intermdio dessas palavras so antes andinas, ligeiras, superficiais e sem relao direta obrigatria com a situao. Tornada assim independente da situao, desconectada da

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urgncia de nomear ou de fazer progredir a situao, a fala se manifesta por si mesma na situao, apenas expondo as implicaes das trocas entre os personagens-enunciadores quando ainda existem. Est muito longe do teatro dramtico convencional, em que se pede aos leitores que procurem a situao, e aos atores que a interpretem, para alm das falas, portanto, ou como se essas falas s encontrassem todos os seus sentidos em uma relao com a situao. O que s vezes no teatro chamado de "subtexto" comporta justamente os elementos da situao que justificam a tomada de palavra dos personagens, se est convencionado que estes falam para agir, isto , para influenciar a situao ou para faz-la progredir O que acontece quando a situao no mais perceptvel, ou quando ela se mostra to enfraquecida que o fato de observ-la (ela facilmente observvel, de tanto que insignificante e banal) no faz mais nada progredir? Pode-se dizer que uma das tendncias do teatro contemporneo minar a situao e, assim, fazer recuarem os limites do "dramtico". As trocas verbais acarretam, para os enunciadores, a adoo de posturas sucessivas, assim como tantas outras situaes fugidias independentes da situao geral. Em Faons de parler [Formas de falar], E. Goffmann define assim a conversao; "De acordo com a prtica da 1 sociolingstica, "conversao ' ser utilizada aqui de maneira no rigorosa, como equivalente de palavra trocada, de encontro em que se fala. Ele a ope ao uso que se faz dela na vida cotidiana, "fala que se manifesta quando um pequeno nmero de participantes se rene e se instala no que sentem como [...] um momento de lazer vivenciado como um fim em si*' (p. 20). Ele acrescenta que "as rplicas tambm so encontradas, sob forma artstica, nos dilogos do teatro e dos romances, transmutao da conversao em um jogo creptante em que a posio de cada jogador restabelecida ou

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modificada a cada vez que ele toma a palavra, o que constitui 1 o alvo principal da rplica seguinte,./ A ttulo de exemplo, aqui est uma "verdadeira conversao" gravada e transcrita:1. Comprei quinze merguez* 2. Quinze mergitez, mas voc louca 3. Ora oito para hoje noite trs para cada um de ns e duas para voc 2. No voc sabe muito bem que eu s como uma 1. No na verdade sempre fazemos duas para voc voc coloca uma no seu prato e a outra voc come em pedacinhos na travessa 2. No eu como s uma voc louca de sempre desperdiar assim 3. Por que voc comprou tantas 1. Ora essa voc foi comigo ao Mareeir

3- E mas eu no estava prestando ateno temos que congel-las seno no vai adiantar nada ter comprado um congelador 1. E mas est temperada se bem que Catherine congelou chourios antilhanos 2, E mas ela os jogou fora mas verdade que Alain e Christiane tambm os tinham congelado 1. Ns dois juntos ento comemos cinco e voc uma o que d seis faremos ento sete devemos congelar oito s temos que congelar oito no papel alumnio comeremos o guisado de carneiro amanh e as comeremos na tera 2. Se vocs vo com-las na tera no vale a pena congel-las 3. Ento o que adianta ter comprado um congelador

Esse "drama" das merguez se funda em uma troca conversacional em que a situao insignificante (volta das* Pequena lingia apimentada, base de carne de vaca e de carneiro (Le peiiiRohert, 1995). (N. do T.)

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compras, preparo da refeio) mas em que as implicaes traduzidas pela fala so fortes, pois permitem entrever conflitos, alianas, rancores, rituais, assim como uma experincia comum implicitamente transmitida (a recente compra de um congelador, a experincia dos outros personagens conhecidos). Pode-se comparar esse intercmbio que no pertence ao corpus dos textos de teatro a um fragmento de dilogo extrado de Lejour se leve, Lopold [Est amanhecendo, Lopold], de Serge Valletti (Bourgois, 1988):MEREDICK-Entre.

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(entrando) - Parece que ele est muito mal-humorado..Lopold me disse. BASTIEN (a Suzy) - Ele tambm vir, est encarregado dos ovos, achamos que fosse ele. MEREDICK - Bom dia, Suzy! SUZY - Bom dia, Biquet*. Ela telefonou? Por causa do aspirador? MEREDICK - Sim, ele disse que desta vez era para comprar os sacos s no Frelon. SU2Y - Frelon me enche o saco, vou dizer isso! MEREDICK - Ela disse que no era para dizer. SUZY - Essa no! Se no dissermos nada, nunca teremos o que bom, teremos sempre o que ruim. Isso eu garanto! MEREDICK (mudando de assunto) - Ento, foi tudo bem? Lopold disse... SUZY - Mas s vezes certo. Eu no gostei da msica por causa das gravaes. Todas eram uma nulidade! MEREDICK - Voc danou?SUZY SUZY - MuitO pOUCO.

- Pelo menos eles foram gentis com voc? SUZY- S faltava essa..-!MEREDICK &

* Literalmente, "cabrtinho"; usado como um termo afetuoso em relao a crianas. (N. doT.)

TEMAS E ESCRITA BASTIEN

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(a Suzy) - Est lhe fazendo perguntas porque ele sempre faz perguntas... MEREDICK (interrompendo-o) - Fica quieto, Pastille*! Eu te arrebento! SUZY - Eles esto brigando... Que idiotice! Mesmo assim preciso trocar os sacos do aspirador?

Aqui tambm a situao insignificante e as implicaes da "conversao" tanto mais fortes quanto considervel o subentendido existente entre os personagens. Do ponto de vista do enredo, a discusso acerca do aspirador no tem nenhum interesse e nem traz nada de novo situao. Em compensao, Suzy que comea a falar nesse assunto aparentemente "neutro" e que o retoma, enquanto Meredick se preocupa com o que Suzy fez na noite anterior e a bombardeia de perguntas. No entanto, Valletti desenvolve como quer o assunto de carter domstico, conduzindo os leitores por uma "falsa pista" narrativa que segue os meandros do dilogo. Tudo tratado da mesma maneira, e nesse momento do texto o leitor incapaz de discernir uma hierarquia dos assuntos. Desse modo, uma das questes tradicionalmente "dramticas" (Com quem Suzy danou na noite anterior, sem a presena de Meredick?) se perde em meio a assuntos mltiplos (o que Frelon disse a respeito dos sacos, o rancor de Meredick que recai sobre Frelon...). O teatro da conversao registra uma espcie de desgaste das situaes dramticas que levam a um "dilogo de bois"** quando o que falado repousa inteiramente no que deve ser dito, comunicado ou feito. Quando no existe mais nenhuma distncia entre o dizer e o fazer, o dilogo torna-se fatalmente redundante. Isso evidente quando se assiste a improvisaes medocres em que a palavra apenas nomeia e* Literalmente, ''comprimido, pastilha". (N. do T.) ** Referncia a langue de bois. Ver nota p. 50. (N. do T.)

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repisa a situao por meio de clichs. Se a situao for uma refeio em famlia, o dilogo misturar "o que dito" nas refeies em famlia, se a situao for em uma estao, o dilogo ser um dilogo de estao e nunca se afastar disso. Infelizmente s vezes esse tambm o caso de alguns textos de teatro. Ao se interessarem tanto pela conversao, os sociolingistas e os lingistas ofereceram dramaturgia uma ferramenta de anlise suplementar ligada observao do sistema de enunciao, vlida para qualquer pea de teatro fundada em uma troca de palavras. O que nos interessa aqui, alm das ferramentas emprestadas de Goffmann, Searle ou Catherine Kerbrat-Orecchioni, a existncia de uma dramaturgia amplamente fundada na prtica conversacional, que se poderia fazer remontar a Tchekov, com a devida distncia artstica a ser observada, claro. Nem por isso esses dilogos so realistas. Paradoxalmente, os dilogos que citam ou mimam a conversao reintroduzem uma forte teatralidade. Nas obras do dramaturgo ingls Harold Pinter, que damos como exemplo por ele fazer escola desde os anos 60, as trocas amortecidas de palavras andinas so fotogrficas apenas aparentemente, pois deixam vastos espaos para que a interpretao se precipite nelas. Os enunciados so to insignificantes que preciso confiar em tudo que lhes permita aparecer e, portanto, nas implicaes no verbais. A situao, tambm bastante insignificante, s apresenta interesse na medida em que a fala introduz nela defasagens nfimas que se revelaro explosivas. E o que ocorre em Lamant [O amante] (Gallimard, 1967 para a traduo francesa), nesta cena de fim de dia, na falsa banalidade de um retorno do trabalho, da qual suprimimos as indicaes cnicas iniciais:SARAH-Boa noite,RICHARD

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- Boa noite.

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(Ele a beija na bochecha, entrega-lhe o jornal da noite, pega o copo que ela lhe estende e se senta. Ela se senta novamente no sof, com o jornal.) Obrigado. (Ele bebe um gole, apia-se no encosto e d um suspiro de bem-estar.) ah!SARAH

- Cansado? RICHARD - Um pouquinho. SARAH - Engarrafamentos? RICHARD - No, o trnsito no estava nem um pouco ruim. - O fluxo estava regular. (Um silncio.)

SARAH - Ah, bom. RICHARD

- Tive a impresso de que voc estava um pouco atrasado. RICHARD - Voc acha? SARAH - Um pouquinho. RICHARD - Havia um congestionamento na ponte.SARAH

O que veiculado pelo dilogo no ter estritamente nenhum interesse se no for retransmitido pela interpretao (e aqui essencialmente pelo ritmo). Richard est objetivamente atrasado? Por que est cansado? Por que Sarah aborda a questo do atraso indiretamente (a questo dos engarrafamentos)? So muitas as pistas de leitura que a interpretao deve abrir ou sugerir mas que no so verbalizadas de maneira evidente pelos personagens, No h nada a assinalar sobre a atitude do casal do ponto de vista dessa conversa rasa demais, a no ser o indcio de nfimas fendas pelas quais o sentido pode se precipitar. Um pouco de sentido, pois a sobre interpretao de um dilogo to insignificante pode tra-lo ao lhe dar demasiada importncia dramtica e chaves demais ao espectador.

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Da mesma forma, o dilogo lacnico ganha novo impulso quando a identidade dos personagens misteriosa e a situao inabitual. Em Transat [Transatlntico/Espreguiadeira], de Madeleine Lak (Thtre Ouvert/Enjeux; 1983), Madame Sarah "aluga" uma criana por algum tempo. Na temporada de estria, um ator adulto, Andr Marcon, foi responsvel pelo personagem. Os no-ditos do dilogo do um cheiro estranho a todo a troca conversacional, sendo que a banalidade aparente das palavras trocadas se apoia no carter ambguo da situao:TOMMY - Eu falei enquanto dormia? SARAH - No, no! Voc no disse nada;

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pelo contrrio, estava muito calmo, estava dormindo profundamente. TOMMY - Eu estava realmente com os punhos cerrados?*- No, na verdade no... E uma maneira de falar, uma expresso consagrada. TOMMY - E... voc se debruou sobre mim enquanto eu dormia? SARAH - No, no me debrucei sobre voc.SARAH

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TOMMY-Ah, bom!SARAH

- Por qu?

Toda anlise do dilogo deve levar em conta a relao dialtica que se instaura entre o personagem e sua fala. Embora na verdade este no preexista ao que fala, as interpretaes de identidade e os desvios entre a fala esperada (a que deveria convir situao) e a fala efetivamente proferida do a alguns dilogos atuais uma cor estranha. A ''conversao" subsiste como fio condutor, mesmo que no constitua seu ncleo.l* Referncia frase anterior em francs Dormir a poings ferms - literalmente "Dormir com punhos fechados", mas uma expresso que significa "Dormir profundamente". (N. doT.) . \ |

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2, Entranamento e entrelaamento do dilogo A verdadeira conversao tambm se caracteriza pelo carter aleatrio do encadeamento das rplicas e por um encavalamento dos assuntos que obedece apenas ao desejo das pessoas que falam. Os lingistas identificaram regras da conversao que os participantes seguem com maior ou menor conscincia para que a fala possa se produzir e se desenvolver. Os desvios em relao a essas regras nas tomadas de palavra fazem sentido tanto na conversao quanto nos dilogos que elas inspiram. Alguns dramaturgos se interessam h muito tempo por uma "fala em fragmentos" cuja distribuio em rplicas obedece menos necessidade de construir um discurso do que de compreender o movimento da fala, seus fluxos e refluxos, suas hesitaes, seus fracassos e suas obsesses. Esse processo de escrita no repousa no interesse ou na clareza dos enunciados mas nos rituais sociais, nas relaes de fora e nos movimentos da conscincia que constrem a enunciao. Esses textos s vezes resistem leitura a ponto de conferirem a seus autores a reputao de difceis ou obscuros. Mas o encavalamento aparente das rplicas, cuidadosamente organizado, em geral se esclarece por ocasio da passagem acena, j que o interesse se desloca do que dito para o que leva o personagem a tomar a palavra. Trata-se efetivamente de reconstruir na encenao ou na leitura do texto de teatro todo o aparelho extraiingstico que acompanha o discurso; ele que faz sentido, e no, como nos sugere a tradio, o discurso propriamente dito. Essa impresso de obscuridade agravada por uma alta dose de subentendido que existe entre os personagens; como em uma conversa verdadeira, o autor os faz dizer apenas o necessrio para a troca de informaes entre eles. No respeita uma conveno habitual do dilogo segundo a

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qual, no processo de comunicao teatral, todas as informaes so destinadas, antes de tudo, ao leitor ou ao espectador, com o inconveniente de que, como em algumas cenas de prtase clssicas, eles repetem longamente uns para os outros tudo o que j sabem, inclusive suas identidades e biografias, em benefcio unicamente do espectador que est de fora. Anne Ubersfeld fala disso como "dilogo esburacado", em todo caso, mais esburacado do que o intercmbio teatral comum, Essa escrita investe em proteger o subentendido que preside as trocas entre os personagens organizando uma quantidade suficiente de informaes ou referncias para que o espectador no seja excludo definitivamente delas. E o que ocorre no incio da parte intitulada "A abertura do pacote postal de tmaras" que abre Nina, c 'est aatre chose (UArche, 1978), de Michel Vinaver, em que vrios assuntos de preocupao dos dois personagens esto encavalados de maneira - contudo - lgica, desde que se esteja sensvel aos subentendidos que comandam as tomadas de palavras:F

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SBASTIEN - Querem que CHARLBS - - Mas conte SBASTIEN

eu passe a ser chefe de equipe

- Contei dez vezes CHARLES - Como ela abriu suas pernas SBASTIEN - Foi ela que abriu as pernas dela CHARLES - , foi ela e alm disso no se recusa o avano SBASTIEN - No gosto de comandar CHARLES - O lado para abrir este SBASTIEN - Ela tinha pequenos sininhos pendurados nas pulseiras no colar CHARLES - Tenho medo por Nina na nossa casa lugar o que no falta ela vai ficar muito pequenininha j que no chega a um metro e sessenta SBASTIEN - Na nossa casa CHARLES - Se eles esto propondo que voc passe a ser chefe de equipe porque o acham capaz de ser chefe de equipe

TEMAS E ESCRITASBASTIEN

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- Ela tinha um colar comprido que fazia vaivm na minha barriga CHARLES - O patro uma dessas noites vai segui-la e subir at seu quartinho ontem noite ela se regalou voc viu? Ela adora coelho ela repetiu duas vezes seria melhor ela se mudar

As implicaes da fala no so dadas de imediato, elas se esclarecem medida que o dilogo se desenvolve e nenhuma obscuridade gratuita entra nesse dilogo. Vrios assuntos se encavalam logicamente nas conscincias: a abertura do pacote postal de tmaras; a recordao ertica da pessoa que os envia; para Sbastien, a urgncia de uma preocupao recente, passar ou no passar a ser chefe de equipe; para Charles, fazer Nina ir casa "deles". Nada explicitamente desenvolvido em termos de informao macia j que o dilogo toma a forma de uma conversa em que os personagens externos fala so perfeitamente conhecidos dos sujeitos falantes, Vinaver definiu, em um texto publicado com o ttulo "Une criture du quotidien" [Uma escrita do cotidiano] {Ecrits sur le thtre, pp. 126 ss.), o que ele entendia por 4 'Entrelaamento" e como o sentido se construa progressivamente sem que nada fosse dado de imediato: O fluxo do cotidiano arrasta materiais descontnuos, disformes, indiferentes, sem causa nem efeito. O ato de escrita no consiste em orden-los, mas em combin-los, tal como so, brutos, por meio de cruzamentos encavalados uns nos outros. o entrelaamento que permite aos materiais se separarem para se reencontrarem, que introduz intervalos e espaamentos. Pouco a pouco tudo comea a piscar. Aqui, a abertura do pacote postal de tmaras se cruza com a abertura das pernas, a abertura da casa a uma pessoa

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de fora com a abertura novidade (Nina, um novo cargo); o antigo sonho ertico de Sbastien com a urgncia amorosa de Charles. So vaivns do sentido que introduzem, secundariamente, a maioria dos temas que so desenvolvidos na primeira parte e na totalidade da pea. O entrelaamento torna-se mais complexo quando os personagens so numerosos, quando as rplicas se cruzam e quando o autor faz do subentendido a pea mestra de um jogo com o leitor em que o exposio do "assunto" motor do dilogo est no cerne da dramaturgia. o caso deste fragmento de uma cena de Usinage, de Daniel Lemahieu, intitulada "La table de mariage (b)" [A mesa de casamento (b)] (ThtreOuvert/Enjeux, 1984):(Eles entram um por um.) o PAI - No consegui impedi-lo A ME, - Voc tinha de atravessar sem olhar A IRM - Mas ele olhou para atravessar A ME - No atrs dele para ver se alguma coisa o seguia A TIA - Pior que havia um perseguidor o TIO - No piore as coisas no hora o AMIGO - No tem ningum? Ningum que possa me ajudar a peg-lo? Ele est dando uns gritinhos de acreditar que ainda esteja vivo o PAI - O que voc est esperando? A M - Quem? Eu? Estou enjoada o PAI - No estado em que ele est so necessrias duas pessoas A IRM - So uns barbeiros s porque tm um carro ficam loucos A ME - Pra mijar na cabea dos outros, isso sim o NOIVO - Ela ficou perto dele ela est chorando e ou outro no pra de gemer (A noiva entra segurando um cachorro ensangentado.)

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Essa seqncia dialogada funciona a partir de um duplo questionamento do leitor. O acontecimento principal (o acidente com o cachorro) no anunciado de forma precisa no texto. Ele permanece impreciso por muito tempo. Trata-se provavelmente de um acidente, como indica o lugar-comum "atravessar sem olhar1' em que interveio um carro (a aluso aos "barbeiros"). A impreciso sobre a identidade da vtima subsiste por mais tempo ainda. Ela designada por pronomes ou vocbulos indefinidos, por impessoais, a palavra ''cachorro" nunca empregada. Lemahieu joga com as regras da comunicao teatral. Dado que os personagens conhecem a vtima, no sentem necessidade de design-la de maneira precisa na conversa. Suas intervenes verbais os reconduzem a suas prprias reaes, a suas eventuais relaes com o acontecimento, nunca ao acontecimento em si. A didasclia fornece, enfim, a chave do enigma. A expectativa e a ambigidade foram a jogar o jogo das hipteses. A confrontao entre uma conversa andina e um acontecimento sangrento faz aparecer uma espcie de mal-estar interessante no plano dramtico, pertinente do ponto de vista da construo do sentido global. A noiva ou o noivo (que estava bbado e doente na seqncia anterior), ou mesmo outro personagem, poderiam ter se acidentado. O melodrama ("acidente no dia de seu casamento'1) no ocorre, mas esboado, sugerido como uma possibilidade dramtica para, em seguida, ser mais bem esquivado. Todos os acidentes de sentido so possveis, portanto, no momento de vacuidade em que o leitor est entregue a conjeturas, como na confrontao entre a imagem violenta e o dilogo andino, para um drama banal que nunca conduz a uma crise de verdade. Trata-se sempre de um material esburacado que se origina da conversa. Lemahieu enfatiza seus efeitos de sncope e de indeciso, "o deslocamento de rplicas que se ajustam bem demais", como diz J.-R Sarrazac. Nem sempre se sabe

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a que a rplica se refere, e na leitura tambm nem sempre se sabe a quem ela se dirige, Pode at, no momento em que proferida, ter apenas uma relao indireta com a situao imediata, encerrando o personagem em um discurso que d conta sobretudo de suas emoes do instante e de suas estratgias pessoais. Experincias ainda mais radicais conduzem a escritas em que subsistem apenas retalhos de rplicas que se cruzam, a um dilogo fragmentado cuja reconstituio em funo de critrios convencionais quase no mais possvel. Elas so acompanhadas, como j vimos, de uma maneira diferente de considerar o espao e o tempo. Essas espcies de oratrio constituem um tipo de limite do dilogo do qual o personagem definitivamente excludo, e para alguns crticos elas revelam apenas um impasse da dramaturgia. Em compensao, a fala pode voltar a ser a essncia da teatralidade quando tudo o que se interpreta se inscreve em funo da necessria fragilidade de sua emergncia.

3* O teatro da fala Tendo feito seu luto da narrativa perdida da qual fala Jean-Franois Lyotard a propsito da poca ps-moderna, alguns dramaturgos se colocam resolutamente no terreno da "prtica lingstica" e da "interao comunicacionar. A partir da, o que importa, na ausncia de toda busca de uma narrativa e mesmo na ausncia de todo discurso, menos a pertinncia dos enunciados do que o interesse das circuns