2
12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997 LETRAS Tabucchi, um escritor . A portugues «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», numa leitura conjunta com a dos livros de José Cardoso Pires e Mário Cláudio videntemente que Tabuc- chi não é português, italia- no de nome, de cidadania e de língua materna, a sua obra tem no entanto muito a ver com Portugal, mais talvez do que a de alguns escritores aqui na pátria nascidos e nela escre- vendo: temas, ambientes, personagens, estilos de .vida, até um certo modo de pensar e de sen- tir são passíveis, nos seus romances, de se arti- cularem com a nossa experiência e modo de existir. Para isso contribui decerto a sua activi- dade de professor de Estudos Portugueses na Universidade de Sienna, ou até o seu casamen- to com uma portuguesa e as férias regularmen- te passadas em casa própria em Portugal (a menos que seja exactamente o contrário ... ), que, em todo o caso, um determinante gosto pelas coisas da cultura lu sa sobreleva e intensi- fica. Vários dos seus romances são disso teste- munho, e este último, «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», acentua nitidamente essa componente. Há, aliás, três romances recentes que o meu jeito ler não consegue deixar de harmonizar numa percepção conjunta de significado muito diferenciado mas complementar. Refiro-me a este mesmo livro de Tabucchi, a <<De Profun- dis, Valsa Lenta», de José Cardoso Pires, e a «Ü Pórtico da Glória», de Mário Cláudio. São livros de personalidades muito afirma- das na literatura que se con- frontam, todos eles, com processos de degra- dação individual, familar e civilizacional que, no entanto, resultam numa espectacular afir- mação da vida e da exuberância do cumpri- mento de um projecto humano de existir, que não se afirma em todos com o mesmo tipo de euforia, mas de algum modo a veiculam na consagração comum de uma espécie de magni- ficat verbal. <<De Profundis, Valsa Lenta» é um livro co- movente que narra a experiência do seu autor durante urna doença grave que quase o arran- cou à vida . É discutível que possa ser encarado como um romance, mas é decerto um:;i narrati- va onde a elaboração de tipo ficcional (o leitor desprevenido poderá apreender o conjunto do volume como uma construção de ficção) as- senta num percurso de degradação e recupera- ção referenciais, aliando o intimismo da refle- xão sobre sentimentos e sensações com a pre- mência de um ambiente concreto (o hospital como sinédoque mítica e negativa de uma Lis- boa concreta de sol ou chuva) que a percepção doente reconstitui. A cidade e a farru1ia consti- que atinge a comunidade em cada um de nós, presa de transacções suspeitas, um jantar de singularmente. Veja-se como Cardoso Pires tra- pescadinhas de rabo na boca ou de almônde- ta a relação médico/doente, entre a atitude de re- gas, um Torres que lembra o antigo avançado- verência em relação ao médico-Professor (paten- -centro do Benfica, um bar na Foz chamado te até na sua introdução ao texto, que, a meu ver, Puccini's, um sargento da Guarda corrupto e tem de ser lida como fazendo parte integral do um travesti de nome Wanda. A ligar tudo isto, conjunto literário que nos é transmitido) e os essencialmente duas coisas: uma voluptuosida- dados, fornecidos por outros pacientes, de uma de divertida na articulação das aventuras ines- outra imagem (disfemística) do médico (a que peradas e inverosímeis, que reabilitam uma tuem aqui a figuração ausente essencial, por poderíamos chamar o modelo «médico-da- ceita concepção do romanesco como lu gar li- privação, e o sujeito cinde-se num «eu» narra- Caixa», que trata os doentes por tu, lhes passa terário de lances extremos e implausíveis su- tivo que fala do eu-ele doente como elo sus-. receitas secamente e não se digna informá-los cessos; e um discurso linéar, enxuto, coloquial, pensivo da manutenção da vida, e, de forma sobre aquilo de que sofrem); relação que é an- essencialmente representativo, que reconduz o muito curiosa do ponto de vista literário, como corada numa problemática socioeconómica, romanesco à sua central função de condução elo suspensivo da própria relação entre a ver- concreta, mas também se alça a uma simbolo- narrativa. dade e a ficção. gia de divindade, castigo e redenção. Mas isto, que parece muito simples, compli- «Ü Pórtico da Glória» ocupa-se do desenvol- car-se-á bastante na leitura de exegese. Pode- vimento biográfico e familiar de Diego Hernán- o ra bem: foi nesta conjuntura que eu li remos mesmo dizer que o processo central na dez Bueno Muiíoz de la Pena, desde o o livro de António Tabucchi, e que ele construção romanesca de António Tabucchi mento até à morte, com sucessos profissionais, me pareceu tão português (a cidade consiste em constituir atmosferas ligeiras, con- eventos de afirmação individual e uma progres- do Porto como em Mário Cláudio, os limiares tar pequenos incidentes do quotidiano ou su- siva dispersão desagregadora, concretizada nos da vida e da morte - pessoais, comunitários, cessos de gravidade deplorável mas comum, múltiplos descendentes, de desiguais talentos e institucionais hospitalares - como em Cardo- de um modo simultaneamente sorridente e ter- personalidades, que fatalmente corroem uma so Pires, um misto de literatura e realidade a no, mas certeiro e vertiginoso, sem delongas imagem de que o texto construiu a consagração. entrelaçarem-se nesse indeciso objecto que é a reflexivas ou questionamentos transcendentais, Ao contrário do livro de Cardoso Pires, este não palavra escrita a construir representações que que assim envolve o texto na paródia, por ve- se ocupa de um momento excepcional da exis- configuram o nosso particular imaginário); ao zes esfuziante mas quase sempre humorística. tência humana, antes a vê como conjunto evolu- mesmo tempo, Tabucchi transcende essa di- Como se Tabucchi quisesse deste modo pres- tivo, tempo de justaposições e de consequênci- mensão nacional, não propriamente pelo que tar homenagem a uma concepção da leitura as . De uma certa forma , «De muito mais que da escrita, e da Profundis, Valsa Lenta», não leitura como prazer de encadea- obstante a sua remissão voluntá- mento temporal, in génua e ado- ria e assumida para o real, é um lescente, evocativa de romances livro mais literário do que «Ü de capa e espada ou de fo lh etin s Pórtico da Glória», uma vez do século XIX, ou, neste caso que este se dá a ler como narrati- concreto, de romances e filmes va genealógica também verídica policiais (a personagem do Dr. e assumida, mas naturaliza o de- Lóton, construída a partir da fi- curso vivencial da experiência gura de Charle s Laughton , é humana, ao passo que Cardoso bem exemplo disso). Só que a Pires se situa naquela zona im- lógica do texto institui, qu ase possível do limiar da consciên- sem se dar por isso, um progres- cia, para o abordar. sivo renversement de situações e Mário Cláudio , no entanto , '-------.-------------------..,.------ de climas socioculturais; com prende-se· ao naturalism.o de forma historica- se pode entender como universalidade dos invejável mestria, com aquele carácter so ur- mente evasiva, jogando com as suas regras seus temas, mas por um modo desprendido, si- nois (manhoso ... ) que caracterizava os roman- mas subvertendo-as amiúde (intromissão des- multaneamente exterior e empenhado, fora do cistas clássicos, de Fielding ao primeiro Bal- pudorada do narrador, narrativização das inter- mundo que narra e nele acabando por se des- zac (penso obviamente em «Tom Jones» ou pretações factuais, poetização das sínteses evo- cobrir aprisionado e inquieto; de facto, estran- na «Histoire des Treize»), que simulam afixar lutivas). Neste sentido, atente-se nos títulos geiro e português - o que significa·que, a par- os seus processos de construção romanesca pa- ctos capítulos (ex. «A Princesa do Arco-Íris», rir destes três escritores, não estamos só a falar ra de modo mais eficaz prenderem o leitor na «Ü tear Eterno», «Uma Nuvem de Pólen»), ou de literatura portuguesa, mas, eventualmente, teia que eles tecem, Tabucchi vai fazendo des- no belíssimo capítulo final, «As Rias», onde o de literatura europeia. lizar gradualmente a ligeireza em seriedade, a futuro d·á conta da desagregação dispersiva «A Cabeça Perdida de Damasceno Montei- paródia em crítica acerada de costumes, vícios (aureolada) desse conjunto familar que atra- ro» consiste num relato de peripécias e muta- e instituições, e a vertigem de inebriamento vessou o pórtico da_ glória e, obliquamente, as- ções romanescas abruptas, muito no. estilo si- novelesco em ressaibo amargo de um saldo de sim entra na literatura. Concepção neobarroca multaneamente fantasioso e «verista» de Ta- significação deceptivo e frustrante, normal- esta que se afasta, mais uma vez, da trivialida- bucchi, que adopta o tipo de desenrolar narra- mente inconcluso, levando o leitor, que entrou, de anodina do comum, emergente em Cardoso tivo do naturalismo para o homenagear e paro- divertido, na acção do livro, a quedar no seu Pires, e da sua frase indagativa mas directa: diar. Há um cigano que descobre um cadáver final silencioso e pensativo, mesmo algo triste . um homem pode morrer, e este é o aconteci- decapitado, um jornalista que tem de abando- mento fundan1ental, mas a percepção nar um projecto de ensaio sobre literatu- de que um homem pode morrer, realizada por ra italiana («et pbur cause» ... ) para se deslocar ele no concreto, corresponde à de que todos os em investigações de reportagem ao Porto, ci- homens podem morrer, e de que o que funda- dade que detesta, como todo o bom lisboeta; menta a experiência é esse sentimento do risco há uma pensão residencial duvidosa, uma em- P or outras palavras, a construção roma- nesca de Antonio Tabucchi envolve doi s aspectos singularmente importantes, um deles literário, e o outro de preferência temáti- co-conjuntural. Assim, e por um lado, o pro-

LETRAS Tabucchi, um escritor portugues Ahemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997 LETRAS Tabucchi, um escritor portugues .A «A Cabeça Perdida

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: LETRAS Tabucchi, um escritor portugues Ahemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997 LETRAS Tabucchi, um escritor portugues .A «A Cabeça Perdida

12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997

LETRAS

Tabucchi, um escritor . A

portugues «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», numa leitura conjunta com a dos livros de José Cardoso Pires e Mário Cláudio

videntemente que Tabuc­chi não é português, italia­no de nome, de cidadania e de língua materna, a sua obra tem no entanto muito a ver com Portugal, mais talvez do que a de alguns

escritores aqui na pátria nascidos e nela escre­vendo: temas, ambientes, personagens, estilos de .vida, até um certo modo de pensar e de sen­tir são passíveis, nos seus romances, de se arti­cularem com a nossa experiência e modo de existir. Para isso contribui decerto a sua activi­dade de professor de Estudos Portugueses na Universidade de Sienna, ou até o seu casamen­to com uma portuguesa e as férias regularmen­te passadas em casa própria em Portugal (a menos que seja exactamente o contrário ... ), que, em todo o caso, um determinante gosto pelas coisas da cultura lusa sobreleva e intensi­fica. Vários dos seus romances são disso teste­munho, e este último, «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», acentua nitidamente essa componente. Há, aliás, três romances recentes que o meu jeito d~ ler não consegue deixar de harmonizar numa percepção conjunta de significado muito diferenciado mas complementar. Refiro-me a este mesmo livro de Tabucchi, a <<De Profun­dis, Valsa Lenta», de José Cardoso Pires, e a «Ü Pórtico da Glória», de Mário Cláudio. São livros de personalidades já muito afirma­das na literatura contemporãn~a, que se con­frontam, todos eles, com processos de degra­dação individual, familar e civilizacional que, no entanto, resultam numa espectacular afir­mação da vida e da exuberância do cumpri­mento de um projecto humano de existir, que não se afirma em todos com o mesmo tipo de euforia, mas de algum modo a veiculam na consagração comum de uma espécie de magni­ficat verbal. <<De Profundis, Valsa Lenta» é um livro co­movente que narra a experiência do seu autor durante urna doença grave que quase o arran­cou à vida. É discutível que possa ser encarado como um romance, mas é decerto um:;i narrati­va onde a elaboração de tipo ficcional (o leitor desprevenido poderá apreender o conjunto do volume como uma construção de ficção) as­senta num percurso de degradação e recupera­ção referenciais, aliando o intimismo da refle­xão sobre sentimentos e sensações com a pre­mência de um ambiente concreto (o hospital como sinédoque mítica e negativa de uma Lis­boa concreta de sol ou chuva) que a percepção doente reconstitui. A cidade e a farru1ia consti-

que atinge a comunidade em cada um de nós, presa de transacções suspeitas, um jantar de singularmente. Veja-se como Cardoso Pires tra- pescadinhas de rabo na boca ou de almônde-ta a relação médico/doente, entre a atitude de re- gas, um Torres que lembra o antigo avançado-verência em relação ao médico-Professor (paten- -centro do Benfica, um bar na Foz chamado te até na sua introdução ao texto, que, a meu ver, Puccini's, um sargento da Guarda corrupto e tem de ser lida como fazendo parte integral do um travesti de nome Wanda. A ligar tudo isto, conjunto literário que nos é transmitido) e os essencialmente duas coisas: uma voluptuosida-dados, fornecidos por outros pacientes, de uma de divertida na articulação das aventuras ines-outra imagem (disfemística) do médico (a que peradas e inverosímeis, que reabilitam uma

tuem aqui a figuração ausente essencial, por poderíamos chamar o modelo «médico-da- ceita concepção do romanesco como lugar li-privação, e o sujeito cinde-se num «eu» narra- Caixa», que trata os doentes por tu, lhes passa terário de lances extremos e implausíveis su-tivo que fala do eu-ele doente como elo sus- . receitas secamente e não se digna informá-los cessos; e um discurso linéar, enxuto, coloquial, pensivo da manutenção da vida, e, de forma sobre aquilo de que sofrem); relação que é an- essencialmente representativo, que reconduz o muito curiosa do ponto de vista literário, como corada numa problemática socioeconómica, romanesco à sua central função de condução elo suspensivo da própria relação entre a ver- concreta, mas também se alça a uma simbolo- narrativa. dade e a ficção. gia de divindade, castigo e redenção. Mas isto, que parece muito simples, compli-«Ü Pórtico da Glória» ocupa-se do desenvol- car-se-á bastante na leitura de exegese. Pode-vimento biográfico e familiar de Diego Hernán- o ra bem: foi nesta conjuntura que eu li remos mesmo dizer que o processo central na dez Bueno Muiíoz de la Pena, desde o nasci~ o livro de António Tabucchi, e que ele construção romanesca de António Tabucchi mento até à morte, com sucessos profissionais, me pareceu tão português (a cidade consiste em constituir atmosferas ligeiras, con-eventos de afirmação individual e uma progres- do Porto como em Mário Cláudio, os limiares tar pequenos incidentes do quotidiano ou su-siva dispersão desagregadora, concretizada nos da vida e da morte - pessoais, comunitários, cessos de gravidade deplorável mas comum, múltiplos descendentes, de desiguais talentos e institucionais hospitalares - como em Cardo- de um modo simultaneamente sorridente e ter-personalidades, que fatalmente corroem uma so Pires, um misto de literatura e realidade a no, mas certeiro e vertiginoso, sem delongas imagem de que o texto construiu a consagração. entrelaçarem-se nesse indeciso objecto que é a reflexivas ou questionamentos transcendentais, Ao contrário do livro de Cardoso Pires, este não palavra escrita a construir representações que que assim envolve o texto na paródia, por ve-se ocupa de um momento excepcional da exis- configuram o nosso particular imaginário); ao zes esfuziante mas quase sempre humorística. tência humana, antes a vê como conjunto evolu- mesmo tempo, Tabucchi transcende essa di- Como se Tabucchi quisesse deste modo pres-tivo, tempo de justaposições e de consequênci- mensão nacional, não propriamente pelo que tar homenagem a uma concepção da leitura as . De uma certa forma , «De muito mais que da escrita, e da Profundis, Valsa Lenta», não fiiiii~iii9iiiiiiJiJiijifijijJijiiiijjjjjij,.JipjjÍjjjJiijiii leitura como prazer de encadea-obstante a sua remissão voluntá- mento temporal, ingénua e ado-ria e assumida para o real, é um lescente, evocativa de romances livro mais literário do que «Ü de capa e espada ou de fo lhetins Pórtico da Glória», uma vez do século XIX, ou , neste caso que este se dá a ler como narrati- concreto, de romances e filmes va genealógica também verídica policiais (a personagem do Dr. e assumida, mas naturaliza o de- Lóton, construída a partir da fi-curso vivencial da experiência gura de Charles Laughton , é humana, ao passo que Cardoso bem exemplo di sso) . Só que a Pires se situa naquela zona im- lógica do texto institui , quase possível do limiar da consciên- sem se dar por isso, um progres-cia, para o abordar. sivo renversement de situações e Mário Cláudio , no entanto , '-------.-------------------..,.------ de climas socioculturais; com prende-se· ao naturalism.o de forma historica- se pode entender como universalidade dos invejável mestria, com aquele carácter sour-mente evasiva, jogando com as suas regras seus temas, mas por um modo desprendido, si- nois (manhoso ... ) que caracterizava os roman-mas subvertendo-as amiúde (intromissão des- multaneamente exterior e empenhado, fora do cistas clássicos, de Fielding ao primeiro Bal-pudorada do narrador, narrativização das inter- mundo que narra e nele acabando por se des- zac (penso obviamente em «Tom Jones» ou pretações factuais, poetização das sínteses evo- cobrir aprisionado e inquieto; de facto, estran- na «Histoire des Treize» ), que simulam afixar lutivas). Neste sentido, atente-se nos títulos geiro e português - o que significa ·que, a par- os seus processos de construção romanesca pa-ctos capítulos (ex. «A Princesa do Arco-Íris», rir destes três escritores, não estamos só a falar ra de modo mais eficaz prenderem o leitor na «Ü tear Eterno», «Uma Nuvem de Pólen»), ou de literatura portuguesa, mas, eventualmente, teia que eles tecem, Tabucchi vai fazendo des-no belíssimo capítulo final, «As Rias», onde o de literatura europeia. lizar gradualmente a ligeireza em seriedade, a futuro d·á conta da desagregação dispersiva «A Cabeça Perdida de Damasceno Montei- paródia em crítica acerada de costumes, vícios (aureolada) desse conjunto familar que atra- ro» consiste num relato de peripécias e muta- e instituições, e a vertigem de inebriamento vessou o pórtico da_ glória e, obliquamente, as- ções romanescas abruptas, muito no. estilo si- novelesco em ressaibo amargo de um saldo de sim entra na literatura. Concepção neobarroca multaneamente fantasioso e «verista» de Ta- significação deceptivo e frustrante, normal-esta que se afasta, mais uma vez, da trivialida- bucchi, que adopta o tipo de desenrolar narra- mente inconcluso, levando o leitor, que entrou, de anodina do comum, emergente em Cardoso tivo do naturalismo para o homenagear e paro- divertido, na acção do livro, a quedar no seu Pires, e da sua frase indagativa mas directa: diar. Há um cigano que descobre um cadáver final silencioso e pensativo, mesmo algo triste. um homem pode morrer, e este é o aconteci- decapitado, um jornalista que tem de abando-mento fundan1ental, s~mpre; mas a percepção nar um v~lho projecto de ensaio sobre literatu-de que um homem pode morrer, realizada por ra italiana («et pbur cause» ... ) para se deslocar ele no concreto, corresponde à de que todos os em investigações de reportagem ao Porto, ci-homens podem morrer, e de que o que funda- dade que detesta, como todo o bom lisboeta; menta a experiência é esse sentimento do risco há uma pensão residencial duvidosa, uma em-

Por outras palavras, a construção roma­nesca de Antonio Tabucchi envolve dois aspectos singularmente importantes, um

deles literário, e o outro de preferência temáti­co-conjuntural. Assim, e por um lado, o pro-

Page 2: LETRAS Tabucchi, um escritor portugues Ahemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997 LETRAS Tabucchi, um escritor portugues .A «A Cabeça Perdida

Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997

cesso de degradação a que fizemos referência na correlação estabelecida com os livros agora publicados de Mário Cláudio e de José Cardo­so Pires (em «A Cabeça Perdida de Damas­ceno Monteiro» concretizado no crime, na corrupção, na personalidade humana frustrada e na justiça traída) resolve-se em processo também literário de corrosão das imagens (so­ciais e literárias), que em Mário Cláudio man­têm a sua dignidade de figurações neobarrocas (e por isso mesmo afinal perecíveis), e em Cardoso Pires se investem do carácter sóbrio da perplexidade do sobrevivente, e da sua in­dagação. João Lobo Antunes defende, no final da sua introdução, que «certas coisas não se sabem, e é preferível não se saberem», aludin­do ao poema de Pessoa sobre o binómio de Newton e a Vénus de Milo; será? Ou será que é preferível, de facto, indagar, e entender que há enigmas do processo criativo (em literatura como em ciência) cuja beleza só a indagação, que é ainda uma forma de exercício do fascí­nio, pode manter? Por outro lado, esse pendor corrosivo (ainda de tipo paródico, mas crepus­cular e já não cruamente luminoso), adquire matizes de denúncia social que francamente se expõe numa proposta ideológica, lateral embo­ra ou risonhamente desenganada, e que sobria­mente impede o seu desenvolvimento explicati­vo, que aqui e ali aflora, a despertar o apetite do leitor para as facilidades, goradas, da reflexão. O jornalista que quer escrever ensaísmo sem o conseguir, mas encontra a soluçao de um cri­me complexo sem por isso se sentir valoriza­do; a percepção negativa de uma cidade que se odeia, e que afinal se vai revelando em inúme­ros e acentuados encantos; o advogado Lóton, gordinho bonacheirão e gourmet que poderia no entanto ter saído directamente de «A Sede do Mal», e já não se chamaria Lóton, mas possivelmente Véles; um julgamento gravado num aparelho que funciona mal e restitui frag­mentos dos discursos do tribunal em irrupções abruptas e truncadas como a paisagem que desfila fragmentariamente pelas janelas do comboio onde a gravação é ouvida - são fi­gurações do texto, entre outras, que transfor­mam os episódios desgarrados da significação comum em realidade efectiva múltipla, que a literatura ganha em questionar dessa maneira alusiva e indirecta. Antonio Tabucchi, aliando deste modo o co­mum e o excepcional, introduzindo em ele-

LETRAS

mentos aparentemente neutros da escrita pode­rosos instrumentos ideológicos, simbólicos e poéticos, numa construção literária disfarçada e ingénua, participa do hibridismo corrente na li­teratura europeia contemporânea, da sua inten­sidade de diálogo metatextual, da sua profunda implicação no quotidiano que em muitos casos, como neste, não deixa de ser participante. Mas então, também é um escritor português? Veja­-se a apresentação do jornalista Finnino: «Firmino estava parado no semáforo do Largo do Rato. Era um semáforo interminável, já sa­bia, e o táxi impaciente atrás dele tinha pratica­mente encostado o pára-choques ao seu carro. Firmino habituara-se a ter paciência com aque­las obras da Câmara, que prometia uma cidade limpa e organizada, e que queria tudo pronto para a Expo. Ia ser um acontecimento mundial, anunciavam os painéis publicitários colocados nos pontos nevrálgicos do tráfego, um daque­les acontecimentos que iam promover Lisboa a cidade do futuro. Firmino, para já, sabia ape­nas o que era o seu futuro imediato, o outro não o conhecia. Significava ter de esperar pelo menos cinco minutos no semáforo, até o ma­quinista da escavadora se chegar para o lado, e mesmo que o semáforo ficasse verde não havia nada a fazer, era preciso esperar ( ... ) Firmino regressava de uma semana de férias passada numa aldeiazinha do Alentejo com a namora­da, tinham sido dias revigorantes, apesar de te­rem apanhado marés vivas, todavia o Alentejo não o desiludira, aliás como sempre. Tinham descoberto um turismo rural na costa, os donos eram alemães, ao todo, nove quartos e depois o pinhal, a praia deserta, os jogos de amor ao ar livre.»

S e isto não é de escritor português, é, pelo menos, de escritor muito imbuído das coisas e do espírito contemporâneo em

Portugal; para além da questão do semáforo, que lembra imediatamente o início do último romance de Saramago (que me perdoem os dois escritores a aproximação, mas eu tenho de ser uma leitora despreconceituosa!), onde num semáforo tudo muda. Aqui, pelo contrário, nada muda (Tabucchi convoca dezenas de citações episódicas, não só literárias mas fílmicas, plásti­cas e outras, na maior parte dos seus livros), o semáforo é citacionalmente exorcizado, mas o insólito e o fantástico vão ultrapassar este eventual jogo crítico para dominarem também

os seus livros. É justamente durante um jantar de almôndegas com molho de tomate, na pen­são da Dona Rosa, que o Dr. Lóton questiona o binarismo interpretativo, num jeito de facto muito pós-moderno, ante o ar de relutância de­sinteressada do jornalista, que para o seu en­saio sobre o romance italiano se baseia convic­tamente em Lukacs, mas acaba por confessar que gosta de ficção científica. «A Cabeça Perdida de Damasceno Montei­ro» nada tem a ver, aparentemente, com a fic­ção científica, mas ainda aqui o processo de corrosão das imagens, pelo menos na sua ver­tente literária, se pode considerar actuante. Consideremos ainda o início da reportagem ra­diofónica onde se entrevista o guarda suspeito de ter assassinado o jovem Damasceno Mon­teiro. «Estamos na Antárctica, conhecida geladaria da Foz do Douro. Acedeu em encontrar-se connosco um personagem que tem estado ulti­mamente sob os reflectores da opinião pública, e sobre quem, segundo alguns testemunhos, recairiam graves responsabilidades na morte de Damasceno Monteiro: o sargento Titânio Silva da Guarda Nacional. Dele um rápido perfil. Cinquenta e quatro anos, nascido em Felgueiras, de modesta condição social, in­gressa aos 20 anos no curso de sargentos mili­cianos, destacado como furriel para Angola de 1970 a 1973, donde regressa como 2.º sargen­to, Cruz de Guerra de 2." classe pelos serviços prestados em África, há dez anos ao serviço da Guarda Nacional do Porto. - Sargento Silva, confirma o rápido perfil tra~ çado por nós? O senhor é um herói da guerra de África? - Não me considero um herói, apenas cumpri o meu dever para com a minha Pátria e para com a minha bandeira. Para ser franco, quando fui para Angola nem sequer conhecia a sua ge­ografia. Digamos que foi nos nossos territórios do Ultramar que adquiri a minha consciência nacional. ' Etc.» A corrosão das imagens pratica-se, assim, no plano de uma reconstituição de mentalidades que aparece deslocada da hora actual e por is­so se dá a ler como crítica social ou, mais ade­quadamente, no processo de composição de Antonio Tabucchi, como acção ficcional da referencialidade que acaba por alterar o vero­símil da própria ficção. Quer dizer: o insólito não reside, aqui, no romanesco fictivo; é, pelo contrário, o romance que, aparentemente cons­truído sobre um processo narrativo inócuo e li­near, «sofre» com a «ficção» (inverosímil) que a própria conjuntura referencial lhe impõe. O sargento Silva é um exemplo da impossibili­dade social portuguesa contemporânea e, exis­tindo na ficção de Tabucchi, não só provoca o riso (ou a indignação, ou o temor, tudo formas de distanciamento) como exibe o poder ficcio­nal (poético-paródico, ou terrífico-fantasmáti­co) da realidade quotidiana que bem pode afi­nal ser possível e existente, e que a ficção vem sublinhar. O que me parece importante é que, sendo um notável escritor, Tabucchi sabe ver Portugal, e ver-nos a nós próprios com os seus olhos é gratificante (ou arrepiante, confonne os casos), mas tem o gosto de um gesto de ternura e apreço, ou mesmo de amor, que é bom saber­mos existente e actuante.

António Tabucchi A CABEÇA PERDIDA DE DAMASCENO MONTEIRO Ed. Quetzal, 253 págs.12.940$00 José Cardoso Pires ( DE PROFUNDIS, VALSA LENTA Dom Quixote, 69 págs.11.980$00 Mário Cláudio O PORTICO DA GLORIA Publicações Dom Quixote, 216 págs.12.500$00 ..

·o·· .. ·· .. q. ue têm Salazar e António Perto a ver com a nossa ora-. . tória? O que tem David . Mourã0,-Ferreira a ver com a ressur­reíção &a carne? E Úm telemóvel, que terá a ver com um parêntesis? E que tem ela a ver com Paris •. a lín­gua vernácula de Aquilino?

,, Interrogações perturbantes, que, to­davia, só surgem quando já se deu com as respostas. E as respostas en­contram-se no número 2 desta, no­vamente, magnífica «Boca do Infer­no», revista literária de Cascais. A ftgura de Ferro, que na nossa de­satenta fantasia surgiu sempre de­masiado redonda de foleirice, é afi­nal ,particularmente trágica - e francamente interessante. · Suple­mentar erazer, o guía é um Jos~-Au­gusto França truculento que eu de todo desconhecia. Dupla desaten­ção, confesso, pois. É uma delícia percorrer esta biografia informadís­sirna e picante dum homem que, no SNI, usàva «armas mais inteligentes ou mais limpas» do que o Regime circundante, «evitando muitas 'iezes o pior» - e quem ler perceberá aqui a reserva mental. Uma «Meditação sobre os parênte­ses», de Paulo Cunha Porto, conduz­-nos a bem curiosas reflexões. Servi­rão os parênteses para uma «aferição qualitativa da prosa»? São eles uma pura, e impiedosa, sinalização do su­pérfluo? Não são eles, sobretudo, es­tratagemas de escritor principiante? Poderá a gente camuflá-los? Tudo questões candentes. Um facto é que os bons prosadores costumam evitar os parênteses. Tal como evítam as reticências. E as exclamações. (Só uma coisa, sr. Porto: não há, para tratamento destes simpáticos assun­tos, uma só fontezinha portuguesa?) Damos, também, com um tranquilo ,artigo sobre o erotismo em Mourão­-Ferreira, de Montezurna de Carva­lho, con:i cartas inéditas de Lopes­-Graça, e muito mâis, numa revista que José Jorge Letria dirige com o melhor instinto. Destaque merece-o, ainda, o artigo de Jorge Reis sobre Aquilino Ribei­ro, com esta tese aliciante; o clima cultural de Paris estimulou no ro­'mancista o vernaculismo da expres­são. Pois não haviam sido Flaubert e Maupassant, também, normandos castiços? E a prosa de Zola e de Daudet, não rescendia ela a sul? Aquilino, anota Reis, «meteu o den­te em toda, essa esplendorosa litera­tura», e achou, pasme-se, as Terras

, do Demo. Jorge Reis, habitante de Paris, relata tud9 isto com brilho e uma- imensa garta. Estranha coisa essa, já com José-Augusto França

. ilustrada. Fará Paris, afinal, bem à nossa língua? Não lembra ao Demo.

i BOCA DO INFERNO, n.9 2 '' Cflmara Municipal de Cascais, 1997, 251 t págs.12. ()()0$(J(}

13