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12 Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997
LETRAS
Tabucchi, um escritor . A
portugues «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», numa leitura conjunta com a dos livros de José Cardoso Pires e Mário Cláudio
videntemente que Tabucchi não é português, italiano de nome, de cidadania e de língua materna, a sua obra tem no entanto muito a ver com Portugal, mais talvez do que a de alguns
escritores aqui na pátria nascidos e nela escrevendo: temas, ambientes, personagens, estilos de .vida, até um certo modo de pensar e de sentir são passíveis, nos seus romances, de se articularem com a nossa experiência e modo de existir. Para isso contribui decerto a sua actividade de professor de Estudos Portugueses na Universidade de Sienna, ou até o seu casamento com uma portuguesa e as férias regularmente passadas em casa própria em Portugal (a menos que seja exactamente o contrário ... ), que, em todo o caso, um determinante gosto pelas coisas da cultura lusa sobreleva e intensifica. Vários dos seus romances são disso testemunho, e este último, «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», acentua nitidamente essa componente. Há, aliás, três romances recentes que o meu jeito d~ ler não consegue deixar de harmonizar numa percepção conjunta de significado muito diferenciado mas complementar. Refiro-me a este mesmo livro de Tabucchi, a <<De Profundis, Valsa Lenta», de José Cardoso Pires, e a «Ü Pórtico da Glória», de Mário Cláudio. São livros de personalidades já muito afirmadas na literatura contemporãn~a, que se confrontam, todos eles, com processos de degradação individual, familar e civilizacional que, no entanto, resultam numa espectacular afirmação da vida e da exuberância do cumprimento de um projecto humano de existir, que não se afirma em todos com o mesmo tipo de euforia, mas de algum modo a veiculam na consagração comum de uma espécie de magnificat verbal. <<De Profundis, Valsa Lenta» é um livro comovente que narra a experiência do seu autor durante urna doença grave que quase o arrancou à vida. É discutível que possa ser encarado como um romance, mas é decerto um:;i narrativa onde a elaboração de tipo ficcional (o leitor desprevenido poderá apreender o conjunto do volume como uma construção de ficção) assenta num percurso de degradação e recuperação referenciais, aliando o intimismo da reflexão sobre sentimentos e sensações com a premência de um ambiente concreto (o hospital como sinédoque mítica e negativa de uma Lisboa concreta de sol ou chuva) que a percepção doente reconstitui. A cidade e a farru1ia consti-
que atinge a comunidade em cada um de nós, presa de transacções suspeitas, um jantar de singularmente. Veja-se como Cardoso Pires tra- pescadinhas de rabo na boca ou de almônde-ta a relação médico/doente, entre a atitude de re- gas, um Torres que lembra o antigo avançado-verência em relação ao médico-Professor (paten- -centro do Benfica, um bar na Foz chamado te até na sua introdução ao texto, que, a meu ver, Puccini's, um sargento da Guarda corrupto e tem de ser lida como fazendo parte integral do um travesti de nome Wanda. A ligar tudo isto, conjunto literário que nos é transmitido) e os essencialmente duas coisas: uma voluptuosida-dados, fornecidos por outros pacientes, de uma de divertida na articulação das aventuras ines-outra imagem (disfemística) do médico (a que peradas e inverosímeis, que reabilitam uma
tuem aqui a figuração ausente essencial, por poderíamos chamar o modelo «médico-da- ceita concepção do romanesco como lugar li-privação, e o sujeito cinde-se num «eu» narra- Caixa», que trata os doentes por tu, lhes passa terário de lances extremos e implausíveis su-tivo que fala do eu-ele doente como elo sus- . receitas secamente e não se digna informá-los cessos; e um discurso linéar, enxuto, coloquial, pensivo da manutenção da vida, e, de forma sobre aquilo de que sofrem); relação que é an- essencialmente representativo, que reconduz o muito curiosa do ponto de vista literário, como corada numa problemática socioeconómica, romanesco à sua central função de condução elo suspensivo da própria relação entre a ver- concreta, mas também se alça a uma simbolo- narrativa. dade e a ficção. gia de divindade, castigo e redenção. Mas isto, que parece muito simples, compli-«Ü Pórtico da Glória» ocupa-se do desenvol- car-se-á bastante na leitura de exegese. Pode-vimento biográfico e familiar de Diego Hernán- o ra bem: foi nesta conjuntura que eu li remos mesmo dizer que o processo central na dez Bueno Muiíoz de la Pena, desde o nasci~ o livro de António Tabucchi, e que ele construção romanesca de António Tabucchi mento até à morte, com sucessos profissionais, me pareceu tão português (a cidade consiste em constituir atmosferas ligeiras, con-eventos de afirmação individual e uma progres- do Porto como em Mário Cláudio, os limiares tar pequenos incidentes do quotidiano ou su-siva dispersão desagregadora, concretizada nos da vida e da morte - pessoais, comunitários, cessos de gravidade deplorável mas comum, múltiplos descendentes, de desiguais talentos e institucionais hospitalares - como em Cardo- de um modo simultaneamente sorridente e ter-personalidades, que fatalmente corroem uma so Pires, um misto de literatura e realidade a no, mas certeiro e vertiginoso, sem delongas imagem de que o texto construiu a consagração. entrelaçarem-se nesse indeciso objecto que é a reflexivas ou questionamentos transcendentais, Ao contrário do livro de Cardoso Pires, este não palavra escrita a construir representações que que assim envolve o texto na paródia, por ve-se ocupa de um momento excepcional da exis- configuram o nosso particular imaginário); ao zes esfuziante mas quase sempre humorística. tência humana, antes a vê como conjunto evolu- mesmo tempo, Tabucchi transcende essa di- Como se Tabucchi quisesse deste modo pres-tivo, tempo de justaposições e de consequênci- mensão nacional, não propriamente pelo que tar homenagem a uma concepção da leitura as . De uma certa forma , «De muito mais que da escrita, e da Profundis, Valsa Lenta», não fiiiii~iii9iiiiiiJiJiijifijijJijiiiijjjjjij,.JipjjÍjjjJiijiii leitura como prazer de encadea-obstante a sua remissão voluntá- mento temporal, ingénua e ado-ria e assumida para o real, é um lescente, evocativa de romances livro mais literário do que «Ü de capa e espada ou de fo lhetins Pórtico da Glória», uma vez do século XIX, ou , neste caso que este se dá a ler como narrati- concreto, de romances e filmes va genealógica também verídica policiais (a personagem do Dr. e assumida, mas naturaliza o de- Lóton, construída a partir da fi-curso vivencial da experiência gura de Charles Laughton , é humana, ao passo que Cardoso bem exemplo di sso) . Só que a Pires se situa naquela zona im- lógica do texto institui , quase possível do limiar da consciên- sem se dar por isso, um progres-cia, para o abordar. sivo renversement de situações e Mário Cláudio , no entanto , '-------.-------------------..,.------ de climas socioculturais; com prende-se· ao naturalism.o de forma historica- se pode entender como universalidade dos invejável mestria, com aquele carácter sour-mente evasiva, jogando com as suas regras seus temas, mas por um modo desprendido, si- nois (manhoso ... ) que caracterizava os roman-mas subvertendo-as amiúde (intromissão des- multaneamente exterior e empenhado, fora do cistas clássicos, de Fielding ao primeiro Bal-pudorada do narrador, narrativização das inter- mundo que narra e nele acabando por se des- zac (penso obviamente em «Tom Jones» ou pretações factuais, poetização das sínteses evo- cobrir aprisionado e inquieto; de facto, estran- na «Histoire des Treize» ), que simulam afixar lutivas). Neste sentido, atente-se nos títulos geiro e português - o que significa ·que, a par- os seus processos de construção romanesca pa-ctos capítulos (ex. «A Princesa do Arco-Íris», rir destes três escritores, não estamos só a falar ra de modo mais eficaz prenderem o leitor na «Ü tear Eterno», «Uma Nuvem de Pólen»), ou de literatura portuguesa, mas, eventualmente, teia que eles tecem, Tabucchi vai fazendo des-no belíssimo capítulo final, «As Rias», onde o de literatura europeia. lizar gradualmente a ligeireza em seriedade, a futuro d·á conta da desagregação dispersiva «A Cabeça Perdida de Damasceno Montei- paródia em crítica acerada de costumes, vícios (aureolada) desse conjunto familar que atra- ro» consiste num relato de peripécias e muta- e instituições, e a vertigem de inebriamento vessou o pórtico da_ glória e, obliquamente, as- ções romanescas abruptas, muito no. estilo si- novelesco em ressaibo amargo de um saldo de sim entra na literatura. Concepção neobarroca multaneamente fantasioso e «verista» de Ta- significação deceptivo e frustrante, normal-esta que se afasta, mais uma vez, da trivialida- bucchi, que adopta o tipo de desenrolar narra- mente inconcluso, levando o leitor, que entrou, de anodina do comum, emergente em Cardoso tivo do naturalismo para o homenagear e paro- divertido, na acção do livro, a quedar no seu Pires, e da sua frase indagativa mas directa: diar. Há um cigano que descobre um cadáver final silencioso e pensativo, mesmo algo triste. um homem pode morrer, e este é o aconteci- decapitado, um jornalista que tem de abando-mento fundan1ental, s~mpre; mas a percepção nar um v~lho projecto de ensaio sobre literatu-de que um homem pode morrer, realizada por ra italiana («et pbur cause» ... ) para se deslocar ele no concreto, corresponde à de que todos os em investigações de reportagem ao Porto, ci-homens podem morrer, e de que o que funda- dade que detesta, como todo o bom lisboeta; menta a experiência é esse sentimento do risco há uma pensão residencial duvidosa, uma em-
Por outras palavras, a construção romanesca de Antonio Tabucchi envolve dois aspectos singularmente importantes, um
deles literário, e o outro de preferência temático-conjuntural. Assim, e por um lado, o pro-
Quarta-feira, 13 de Agosto de 1997
cesso de degradação a que fizemos referência na correlação estabelecida com os livros agora publicados de Mário Cláudio e de José Cardoso Pires (em «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro» concretizado no crime, na corrupção, na personalidade humana frustrada e na justiça traída) resolve-se em processo também literário de corrosão das imagens (sociais e literárias), que em Mário Cláudio mantêm a sua dignidade de figurações neobarrocas (e por isso mesmo afinal perecíveis), e em Cardoso Pires se investem do carácter sóbrio da perplexidade do sobrevivente, e da sua indagação. João Lobo Antunes defende, no final da sua introdução, que «certas coisas não se sabem, e é preferível não se saberem», aludindo ao poema de Pessoa sobre o binómio de Newton e a Vénus de Milo; será? Ou será que é preferível, de facto, indagar, e entender que há enigmas do processo criativo (em literatura como em ciência) cuja beleza só a indagação, que é ainda uma forma de exercício do fascínio, pode manter? Por outro lado, esse pendor corrosivo (ainda de tipo paródico, mas crepuscular e já não cruamente luminoso), adquire matizes de denúncia social que francamente se expõe numa proposta ideológica, lateral embora ou risonhamente desenganada, e que sobriamente impede o seu desenvolvimento explicativo, que aqui e ali aflora, a despertar o apetite do leitor para as facilidades, goradas, da reflexão. O jornalista que quer escrever ensaísmo sem o conseguir, mas encontra a soluçao de um crime complexo sem por isso se sentir valorizado; a percepção negativa de uma cidade que se odeia, e que afinal se vai revelando em inúmeros e acentuados encantos; o advogado Lóton, gordinho bonacheirão e gourmet que poderia no entanto ter saído directamente de «A Sede do Mal», e já não se chamaria Lóton, mas possivelmente Véles; um julgamento gravado num aparelho que funciona mal e restitui fragmentos dos discursos do tribunal em irrupções abruptas e truncadas como a paisagem que desfila fragmentariamente pelas janelas do comboio onde a gravação é ouvida - são figurações do texto, entre outras, que transformam os episódios desgarrados da significação comum em realidade efectiva múltipla, que a literatura ganha em questionar dessa maneira alusiva e indirecta. Antonio Tabucchi, aliando deste modo o comum e o excepcional, introduzindo em ele-
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mentos aparentemente neutros da escrita poderosos instrumentos ideológicos, simbólicos e poéticos, numa construção literária disfarçada e ingénua, participa do hibridismo corrente na literatura europeia contemporânea, da sua intensidade de diálogo metatextual, da sua profunda implicação no quotidiano que em muitos casos, como neste, não deixa de ser participante. Mas então, também é um escritor português? Veja-se a apresentação do jornalista Finnino: «Firmino estava parado no semáforo do Largo do Rato. Era um semáforo interminável, já sabia, e o táxi impaciente atrás dele tinha praticamente encostado o pára-choques ao seu carro. Firmino habituara-se a ter paciência com aquelas obras da Câmara, que prometia uma cidade limpa e organizada, e que queria tudo pronto para a Expo. Ia ser um acontecimento mundial, anunciavam os painéis publicitários colocados nos pontos nevrálgicos do tráfego, um daqueles acontecimentos que iam promover Lisboa a cidade do futuro. Firmino, para já, sabia apenas o que era o seu futuro imediato, o outro não o conhecia. Significava ter de esperar pelo menos cinco minutos no semáforo, até o maquinista da escavadora se chegar para o lado, e mesmo que o semáforo ficasse verde não havia nada a fazer, era preciso esperar ( ... ) Firmino regressava de uma semana de férias passada numa aldeiazinha do Alentejo com a namorada, tinham sido dias revigorantes, apesar de terem apanhado marés vivas, todavia o Alentejo não o desiludira, aliás como sempre. Tinham descoberto um turismo rural na costa, os donos eram alemães, ao todo, nove quartos e depois o pinhal, a praia deserta, os jogos de amor ao ar livre.»
S e isto não é de escritor português, é, pelo menos, de escritor muito imbuído das coisas e do espírito contemporâneo em
Portugal; para além da questão do semáforo, que lembra imediatamente o início do último romance de Saramago (que me perdoem os dois escritores a aproximação, mas eu tenho de ser uma leitora despreconceituosa!), onde num semáforo tudo muda. Aqui, pelo contrário, nada muda (Tabucchi convoca dezenas de citações episódicas, não só literárias mas fílmicas, plásticas e outras, na maior parte dos seus livros), o semáforo é citacionalmente exorcizado, mas o insólito e o fantástico vão ultrapassar este eventual jogo crítico para dominarem também
os seus livros. É justamente durante um jantar de almôndegas com molho de tomate, na pensão da Dona Rosa, que o Dr. Lóton questiona o binarismo interpretativo, num jeito de facto muito pós-moderno, ante o ar de relutância desinteressada do jornalista, que para o seu ensaio sobre o romance italiano se baseia convictamente em Lukacs, mas acaba por confessar que gosta de ficção científica. «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro» nada tem a ver, aparentemente, com a ficção científica, mas ainda aqui o processo de corrosão das imagens, pelo menos na sua vertente literária, se pode considerar actuante. Consideremos ainda o início da reportagem radiofónica onde se entrevista o guarda suspeito de ter assassinado o jovem Damasceno Monteiro. «Estamos na Antárctica, conhecida geladaria da Foz do Douro. Acedeu em encontrar-se connosco um personagem que tem estado ultimamente sob os reflectores da opinião pública, e sobre quem, segundo alguns testemunhos, recairiam graves responsabilidades na morte de Damasceno Monteiro: o sargento Titânio Silva da Guarda Nacional. Dele um rápido perfil. Cinquenta e quatro anos, nascido em Felgueiras, de modesta condição social, ingressa aos 20 anos no curso de sargentos milicianos, destacado como furriel para Angola de 1970 a 1973, donde regressa como 2.º sargento, Cruz de Guerra de 2." classe pelos serviços prestados em África, há dez anos ao serviço da Guarda Nacional do Porto. - Sargento Silva, confirma o rápido perfil tra~ çado por nós? O senhor é um herói da guerra de África? - Não me considero um herói, apenas cumpri o meu dever para com a minha Pátria e para com a minha bandeira. Para ser franco, quando fui para Angola nem sequer conhecia a sua geografia. Digamos que foi nos nossos territórios do Ultramar que adquiri a minha consciência nacional. ' Etc.» A corrosão das imagens pratica-se, assim, no plano de uma reconstituição de mentalidades que aparece deslocada da hora actual e por isso se dá a ler como crítica social ou, mais adequadamente, no processo de composição de Antonio Tabucchi, como acção ficcional da referencialidade que acaba por alterar o verosímil da própria ficção. Quer dizer: o insólito não reside, aqui, no romanesco fictivo; é, pelo contrário, o romance que, aparentemente construído sobre um processo narrativo inócuo e linear, «sofre» com a «ficção» (inverosímil) que a própria conjuntura referencial lhe impõe. O sargento Silva é um exemplo da impossibilidade social portuguesa contemporânea e, existindo na ficção de Tabucchi, não só provoca o riso (ou a indignação, ou o temor, tudo formas de distanciamento) como exibe o poder ficcional (poético-paródico, ou terrífico-fantasmático) da realidade quotidiana que bem pode afinal ser possível e existente, e que a ficção vem sublinhar. O que me parece importante é que, sendo um notável escritor, Tabucchi sabe ver Portugal, e ver-nos a nós próprios com os seus olhos é gratificante (ou arrepiante, confonne os casos), mas tem o gosto de um gesto de ternura e apreço, ou mesmo de amor, que é bom sabermos existente e actuante.
António Tabucchi A CABEÇA PERDIDA DE DAMASCENO MONTEIRO Ed. Quetzal, 253 págs.12.940$00 José Cardoso Pires ( DE PROFUNDIS, VALSA LENTA Dom Quixote, 69 págs.11.980$00 Mário Cláudio O PORTICO DA GLORIA Publicações Dom Quixote, 216 págs.12.500$00 ..
·o·· .. ·· .. q. ue têm Salazar e António Perto a ver com a nossa ora-. . tória? O que tem David . Mourã0,-Ferreira a ver com a ressurreíção &a carne? E Úm telemóvel, que terá a ver com um parêntesis? E que tem ela a ver com Paris •. a língua vernácula de Aquilino?
,, Interrogações perturbantes, que, todavia, só surgem quando já se deu com as respostas. E as respostas encontram-se no número 2 desta, novamente, magnífica «Boca do Inferno», revista literária de Cascais. A ftgura de Ferro, que na nossa desatenta fantasia surgiu sempre demasiado redonda de foleirice, é afinal ,particularmente trágica - e francamente interessante. · Suplementar erazer, o guía é um Jos~-Augusto França truculento que eu de todo desconhecia. Dupla desatenção, confesso, pois. É uma delícia percorrer esta biografia informadíssirna e picante dum homem que, no SNI, usàva «armas mais inteligentes ou mais limpas» do que o Regime circundante, «evitando muitas 'iezes o pior» - e quem ler perceberá aqui a reserva mental. Uma «Meditação sobre os parênteses», de Paulo Cunha Porto, conduz-nos a bem curiosas reflexões. Servirão os parênteses para uma «aferição qualitativa da prosa»? São eles uma pura, e impiedosa, sinalização do supérfluo? Não são eles, sobretudo, estratagemas de escritor principiante? Poderá a gente camuflá-los? Tudo questões candentes. Um facto é que os bons prosadores costumam evitar os parênteses. Tal como evítam as reticências. E as exclamações. (Só uma coisa, sr. Porto: não há, para tratamento destes simpáticos assuntos, uma só fontezinha portuguesa?) Damos, também, com um tranquilo ,artigo sobre o erotismo em Mourão-Ferreira, de Montezurna de Carvalho, con:i cartas inéditas de Lopes-Graça, e muito mâis, numa revista que José Jorge Letria dirige com o melhor instinto. Destaque merece-o, ainda, o artigo de Jorge Reis sobre Aquilino Ribeiro, com esta tese aliciante; o clima cultural de Paris estimulou no ro'mancista o vernaculismo da expressão. Pois não haviam sido Flaubert e Maupassant, também, normandos castiços? E a prosa de Zola e de Daudet, não rescendia ela a sul? Aquilino, anota Reis, «meteu o dente em toda, essa esplendorosa literatura», e achou, pasme-se, as Terras
, do Demo. Jorge Reis, habitante de Paris, relata tud9 isto com brilho e uma- imensa garta. Estranha coisa essa, já com José-Augusto França
. ilustrada. Fará Paris, afinal, bem à nossa língua? Não lembra ao Demo.
i BOCA DO INFERNO, n.9 2 '' Cflmara Municipal de Cascais, 1997, 251 t págs.12. ()()0$(J(}
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