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VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA AMAZÔNIA: CONFLITO E VIOLÊNCIA NA FRONTEIRA PARAENSE

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Livro sobre violação dos direitos humanos e grandes projetos

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  • VIOLAO DOS DIREITOSHUMANOS NA AMAZNIA:

    CONFLITO E VIOLNCIA NA FRONTEIRA PARAENSE

  • Comisso Pastoral da Terra CPTJustia Global

    Terra de Direitos

    Novembro de 2005

    VIOLAO DOS DIREITOSHUMANOS NA AMAZNIA:

    CONFLITO E VIOLNCIA NA FRONTEIRA PARAENSE

  • Coordenao: Darci Frigo, Jos Batista Gonalves Afonso, Leandro Gorsdorf, Sandra Carvalho e Srgio Sauer

    Edio e reviso: Srgio Sauer

    Equipe de Pesquisa: Antnia Lima dos Santos, Camilla Ribeiro, Darci Frigo, Felipe Prando, Jax Nildo Arago Pinto,

    Jos Batista Gonalves Afonso, Julia Figueira-McDonough, Leandro Gorsdorf, Luciana Cristina Furquim Pivato,

    Luciana Silva Garcia, Maria Rita Reis, Nadine Monteiro Borges, Renata Vernica Crtes de Lira, Sandra Carvalho,

    Srgio Sauer e Tarcsio Feitosa da Silva.

    Traduo: Phillippa Bennett, Julia Figueira-McDonough, Marsha Michel e Kristen Schlemmer

    Reviso da traduo: Carlos Eduardo Gaio e Emily Goldman

    Capa:

    Projeto grfico e diagramao: Sandra Luiz Alves

    Fotolito e Impresso :

    JUSTIA GLOBAL

    Avenida Beira Mar, 406 / 1207Rio de Janeiro/RJ - Brasil

    CEP: 20021-900Tel: (55-21)25442320

    Fax: (55 - 21) 25248435www.global.org.br

    COMISSO PASTORALDA TERRA (CPT)Secretaria Nacional

    Rua 19, n 35, 1o andarEdifcio Don Abel

    Goinia GOCEP: 74030-090

    Fax: (62) 4008-6405

    www.cptnac.com.br

    TERRA DE DIREITOS

    Rua Jos Loureiro, 464,conj 26, CentroCuritiba PR

    CEP: 80010-907Tel/Fax: (41) 3232-4660

    www.terradedireitos.org.br

    DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    S273v Sauer, Srgio.

    Violao dos direitos humanos na Amaznia : conflito eviolncia na fronteira paraense / autor: Srgio Sauer ; [traduo:Phillippa Bennett, Julia Figueira-McDonough, Marsha Michel e Kristen Schlemmer]. Goinia : CPT ; Rio de Janeiro : Justia Global ; Curitiba : Terra de Direitos, 2005.170p. ; 17,5x25cm.

    1. Direitos humanos. 2. Conflitos no campo Amaznia. 3. Posse da terra - Amaznia I. Comisso Pastoral da terra. II. Justia Global. III. Terra de Direitos. IV.Ttulo.

    CDD- 338.9811

  • COLABORAO E FONTES DE PESQUISAAssociao de Mulheres Campo Cidade de Porto de Moz

    Associao de Pescadores Artesanais de Porto de Moz

    Associao Solidria Econmica e Ecolgica de Frutas da Amaznia (ASSEFA)

    Associaes Rurais Comunitrias de Porto de Moz

    Colnia de Pescadores de Porto de Moz

    Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados

    Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA

    Comisso Pastoral da Terra (secretariado nacional e equipes de Altamira, Anapu, Belm, Marab e

    Alto Xingu).

    Comit de Desenvolvimento Sustentvel de Porto de Moz

    Delegacia Sindical dos Trabalhadores Rurais de Castelo dos Sonhos

    Federao dos Trabalhadores na Agricultura (FETRAGRI) Regional Sudeste/Par

    Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo

    Fundao Viver, Preservar e Produzir (FVPP)

    Gabinete da senadora Heloisa Helena

    Gabinete do deputado Federal Ado Pretto

    Gabinete do deputado Federal Joo Alfredo

    Greenpeace

    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA)

    Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA)

    Instituto Socioambiental (ISA)

    Justia Global

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA)

    Ministrio do Meio Ambiente (MMA)

    Ministrio Pblico Federal do Par

    Museu Emlio Goeldi

    Plataforma DhESC Brasil (Projeto Relatores Nacionais Relatoria do Direito ao Meio Ambiente)

    Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Anapu, de Porto de Moz e de Rondon do Par

    Terra de Direitos.

    SIGLASATPF Autorizaes para Transporte de Produtos Florestais

    CATP Contrato Alienao de Terra Pblica

    CCIR Certificados de Cadastro do Imvel Rural

    CPI Comisso Parlamentar de Inqurito

    CPT Comisso Pastoral da Terra

    DHESCA Direitos humanos econmicos, sociais, culturais e ambientais

    DRT Delegacia Regional do Trabalho

    FETAGRI Federao dos Trabalhadores na Agricultura

    FINAM Fundo de Investimento da Amaznia

  • FUNAI Fundao Nacional do ndio

    IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    ISA Instituto Socioambiental

    ITERPA Instituto de Terras do Par

    MDA Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    MMA Ministrio do Meio Ambiente

    MPF Ministrio Pblico Federal

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PAD Projeto de Assentamento Dirigido

    PAE Projeto de Assentamento Agroextrativista

    PAS Plano Amaznia Sustentvel

    PAR Projeto de Assentamento Rpido

    PA Projetos de Assentamento

    PDS Projeto de Desenvolvimento Sustentvel

    PIC Projeto de Integrao e Colonizao

    PIN Plano de Integrao Nacional

    PROVITA Programa de Proteo a Vtimas e Testemunhas Ameaadas

    PMF Plano de Manejo Florestal

    RESEX Reserva Extrativista Florestal

    SNCR Sistema Nacional de Cadastro Rural

    SPVEA Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais

    SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

  • AGRADECIMENTOSAgradecemos a todos aqueles que forneceram informaes para este rela-trio e responderam a nossas solicitaes de entrevista, especialmente sorganizaes parceiras no Estado do Par.

    Em especial, agradecemos a Adamir Castro Lima, Adriana Ramos,Antnia Melo, Antnio Expedito Ribeiro, Carlos Guedes do Amaral Jr,Cludio Wilson Barbosa, Dielly Pompeu da Silva, Dineusa Pompeu daSilva, Dom Erwin Krautler, Elcia Betnia da Silva Nunes, Felcio PontesJr, Francisca Castro Fres, Idalino Nunes de Assis, Ir. Jane Dwyer; JoelsonPompeu da Silva, Joo Laet, Jos Batista da Silva, Letrzia Fres Duarte,Luis de Brito, Maria Creusa Gama Ribeiro, Maria Eva dos Santos, Ma-ria de Ftima Romoaldo da Silva Nunes, Maria Joel da Costa, MarcosRogrio de Souza, Nilton Tubino, Odair Matos Lima, Pe. AderneiGuemaque, Pe. Andoni Ledesma, Pe. Danilo Lago, Pe. Jos Amaro Lopesde Souza, Pe. Robson Wander Lopes, Raimunda Regina Ferreira Barros,Roselene do Socorro Conceio da Silva e Vivaldo Ferreira Barbosa.

  • Essa publicao faz parte do projeto de cooperao Comrcio-Desenvolvimento-Direitos Humanos, realizado pelo Centro de Pesquisa e Documentao Chile-Amri-ca Latina (Forschungs und Dokumentationszentrum Chile-Lateinamerika FDCL)e pela Fundao Heinrich Bell com apoio financeiro da Unio Europia. As opiniesemitidas na publicao no expressam a posio da Unio Europia.

    A Justia Global, a Terra de Direitos e a Comisso Pastoral da Terra tambm agra-decem s Fundaes Heinrich Bll, Ford e Critas pelo apoio a essa publicao.

  • INTRODUO................................................................................................... 13

    CAPTULO I ........................................................................................................ 21A DINMICA AGRRIA E FUNDIRIA DO ESTADO DO PAR ..............................................21

    1. GRILAGEM DE TERRA E GESTO TERRITORIAL ................................................................................. 232. CONFLITO E VIOLNCIA NO MEIO RURAL ....................................................................................... 313. A PRTICA DO TRABALHO ESCRAVO................................................................................................ 374. A IMPUNIDADE NO CAMPO: UMA DAS CAUSAS DA VIOLNCIA ........................................................... 42CONCLUSO .................................................................................................................................... 50

    CAPTULO II ...................................................................................................... 51AS POLTICAS GOVERNAMENTAIS PARA A AMAZNIA E O PAR ........................................51

    1. MACROZONEAMENTO ECOLGICO E ECONMICO ......................................................................... 522. PROGRAMA PAR RURAL .............................................................................................................. 543. PROJETOS DO GOVERNO FEDERAL PARA A AMAZNIA E O PAR ....................................................... 554. O PLANO BR-163 SUSTENTVEL .................................................................................................. 575. AS POLTICAS DE ENFRENTAMENTO GRILAGEM ............................................................................. 59CONCLUSO .................................................................................................................................... 65

    CAPTULO III ..................................................................................................... 67APROPRIAO ILEGAL DE TERRAS E VIOLAO ................................................................67DE DIREITOS: O CASO DE RONDON DO PAR ................................................................67

    1. HISTRICO DE OCUPAO DO TERRITRIO .................................................................................... 692. GRILAGEM E CONCENTRAO DE TERRA: VIOLAO DE DIREITOS HUMANOS .................................... 703. A LUTA PELA TERRA EM RONDON DO PAR ................................................................................... 754. DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS ............................................................................................ 78CONCLUSO .................................................................................................................................... 81

    CAPTULO IV ..................................................................................................... 83ANAPU: RECURSOS PBLICOS, GRILAGEM E ALTERNATIVAS DE DESENVOLVIMENTO ...........83

    1. HISTRICO DA OCUPAO FUNDIRIA ........................................................................................... 842. RECURSOS PBLICOS E CONFLITOS FUNDIRIOS .............................................................................. 853. PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL (PDS) ................................................................ 884. DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS: CASO DE UM ASSASSINATO ANUNCIADO .................................. 915. VIOLAO DE DIREITOS HUMANOS, IMPUNIDADE E A FEDERALIZAO .............................................. 956. A CRIMINALIZAO DOS TRABALHADORES E DEFENSORES ................................................................ 97CONCLUSO .................................................................................................................................. 101

    CAPTULO V.......................................................................................................... 103TERRA DO MEIO: A LTIMA FRONTEIRA DO MEDO ........................................................103

    1. LOCALIZAO E CONTEXTO ........................................................................................................ 1032. DESTRUIO AMBIENTAL E VIOLNCIA NA TERRA DO MEIO .......................................................... 106

    Sumrio

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    3. A PRESENA DO ESTADO NA REGIO ........................................................................................... 110CONCLUSO .................................................................................................................................. 112

    CAPTULO VI ................................................................................................... 113

    SITUAO DE COMPLETO ABANDONO: O CASO DE CASTELO DOS SONHOS .....................1131. HISTRICO DE OCUPAO DA REGIO ......................................................................................... 1142. GRILAGEM E CONCENTRAO DE TERRA ...................................................................................... 1153. CASTELO: AUSNCIA, OMISSO E COMPROMETIMENTO .................................................................. 117DO ESTADO COM O PODER LOCAL ................................................................................................... 1174. AS POLTICAS DE COMBATE AO DESMATAMENTO ............................................................................ 1195. LUTA PELA TERRA: ACAMPAMENTO BARTOLOMEU MORAIS DA SILVA ............................................... 1226. DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS: O CONTEXTO DA VIOLNCIA ANUNCIADA ............................. 1237. CASO EXEMPLAR DE VIOLAO DE DIREITOS HUMANOS: A MORTE DE BRASLIA ............................... 128CONCLUSO .................................................................................................................................. 130

    CAPTULO VII .................................................................................................. 131

    A LUTA PELA PRESERVAO AMBIENTAL: O CASO DE PORTO DE MOZ .............................1311. A QUESTO FUNDIRIA ............................................................................................................... 1332. A EXPLORAO MADEIREIRA NA REGIO ....................................................................................... 1393. A LUTA PELA PRESERVAO AMBIENTAL ........................................................................................ 1415. A CRIAO DA RESEX VERDE PARA SEMPRE .............................................................................. 1436. DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS: LUTAS E AMEAAS ............................................................... 146CONCLUSO .................................................................................................................................. 147

    CAPTULO VIII ................................................................................................ 149

    RECOMENDAES PARA O ESTADO DO PAR ...............................................................1491. RECOMENDAES CONTRA A VIOLNCIA E A IMPUNIDADE ............................................................ 1492. RECOMENDAES SOBRE TRABALHO ESCRAVO .............................................................................. 1503. RECOMENDAO PARA A PROTEO DOS DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS ................................ 1504. RECOMENDAES PARA REFORMA AGRRIA .................................................................................. 1514.1. RECOMENDAES PARA RONDON DO PAR, CASTELO DOS SONHOS E ANAPU ............................ 1515. RECOMENDAES PARA COMBATER A GRILAGEM ........................................................................... 1525.1. RECOMENDAES ESPECFICAS PARA ANAPU .............................................................................. 1535.2. RECOMENDAES ESPECFICAS DE RONDON DO PAR ............................................................... 1536. RECOMENDAES PARA O PROBLEMA DO DESMATAMENTO ............................................................. 1546.1. RECOMENDAES PARA PORTO DE MOZ, CASTELO DOS SONHOS E ANAPU ................................ 1546.2. RECOMENDAES PARA TERRA DO MEIO ................................................................................. 1557. RECOMENDAES CONTRA A CORRUPO NOS RGOS PBLICOS ................................................. 155

    ANEXOS............................................................................................................. 157ANEXO I LIDERANAS ASSASSINADAS NO ESTADO DO PAR ..........................................159ANEXO II LISTA DAS PESSOAS AMEAADAS DE MORTE NO ESTADO DO PAR ...................160ANEXO III EMPREGADORES AUTUADOS POR TRABALHO ESCRAVO NO ESTADO DO PAR ...165

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    Introduo

    A gente nunca sabe a hora do ataque. Eu no consigo nem ir Igreja. Eles acabam com avida da gente em vida. Mas eu vou continuar at o fim e quero que esta histria no seja umahistria de morte, mas uma histria de vida, da vida dos trabalhadores

    Maria Joel da Costa presidente do Sindicato dos TrabalhadoresRurais de Rondon do Par

    Eu moro na rea h vinte e dois anos. Eu trabalho com todo esse pessoal... Ns vimosocupando a terra palmo a palmo, lutando... Ns procuramos esse PDS j em 1994, porquetodo esse povo migrante e saiu de lugares onde no tm mais como sobreviver, como noNordeste, porque a mata acabou. Ento, nosso plano, j de muitos anos, para criar umarea sustentvel, onde se tenha futuro, onde a mata no acabe... Esse projeto, que o Incraendossa e nos deu toda a confiana, nos deu toda a razo para criarmos esse projeto, pelo qualo povo vai sobreviver de uma maneira digna

    Irm Dorothy Stang

    Essa pesquisa foi motivada, em grande medida, pela histria de vida de defensoras edefensores dos direitos humanos como a sindicalista Maria Joel da Costa e amissionria Dorothy Stang. Essas duas mulheres so exemplos da luta protagonizadapor posseiros, ribeirinhos, sem-terra, trabalhadores rurais, extrativistas, ndios em defe-sa dos direitos humanos e da preservao da Amaznia.

    Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Par, Maria Joel(viva do sindicalista Jos Dutra da Costa, conhecido como Dezinho, assassinado em2000) uma militante em prol da justia social e da reforma agrria; irm Dorothy foiuma missionria dos direitos dos trabalhadores rurais, da justia ambiental e da preser-vao da Amaznia. Dorothy foi assassinada e Maria Joel uma das inmeras pessoasameaadas de morte no Par. A resistncia e o trabalho dessas mulheres, e de muitaspessoas, marcam a luta pela terra nesse Estado.

    Os registros da Comisso Pastoral da Terra (CPT) materializam uma triste realida-de, pois mais de setecentos camponeses e outros defensores de direitos humanos foramassassinados nos ltimos trinta anos no Par. A maioria das mortes foi registrada nasregies sul e sudeste do Estado. Muitas dessas mortes foram nitidamente seletivas, pois

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    as vtimas exerciam funes importantes em organizaes de trabalhadores, eram defen-sores dos direitos humanos, eram lideranas. O objetivo claro, enfraquecer as organi-zaes e desarticular a luta dos trabalhadores.

    A problemtica que envolve os conflitos e a violncia no Estado do Par est dire-tamente associada concentrao da propriedade da terra, inclusive feita atravs daapropriao ilegal de terras pblicas, conhecida como grilagem. O Par tem mais de30 milhes de hectares de terras griladas, e este tem sido o pano de fundo das maisvariadas formas de violao de direitos. Essas violaes vo desde a negao de um meioambiente ecologicamente equilibrado, com a extrao criminosa dos recursos florestais,at a expulso violenta e prises de posseiros, extrativistas, ribeirinhos, indgenas, popu-laes tradicionais que ocupam a terra h muitas dcadas. As violaes agravam-se comas prticas de trabalho escravo e culminam com nmeros assustadores de assassinatos detrabalhadores e suas lideranas.

    Diante dessa realidade, em fevereiro desse ano, o Sindicato dos Trabalhadores Ru-rais de Rondon do Par, a Comisso Pastoral da Terra, a Terra de Direitos e a JustiaGlobal solicitaram audincia com o ento ministro de Direitos Humanos e representan-tes do Ministrio de Desenvolvimento Agrrio para que estes representantes do Estadoouvissem as histrias de ameaas, de violncia e de morte dos prprios trabalhadores etomassem as providncias solicitadas por diversas organizaes h muito tempo. O mi-nistro resolveu ento realizar uma audincia pblica na cidade de Rondon do Par, emque compareceram representantes dos governos federal, estadual e municipal, alm demembros do Poder Judicirio e Ministrio Pblico.

    Maria Joel, smbolo da resistncia e luta dos trabalhadores rurais, no entanto, nopde falar naquele dia. Temendo por suas vidas, ela e vrias lideranas tiveram que sefazer ouvir atravs de pessoas de fora do Estado, capazes de denunciar os mandos edesmandos do agrobanditismo sem correr o risco de serem mortas aps a sada dasautoridades federais da regio.

    De Rondon do Par, a comitiva do governo federal partiu para a capital do Estadopara lanar o Programa Nacional de Proteo aos Defensores de Direitos Humanos. Naaudincia em Belm, a irm Dorothy Stang, outra defensora dos direitos humanos, fezgraves denncias de ameaas e intimidaes que ela e outros trabalhadores rurais deAnapu vinham sofrendo por parte de grileiros, madeireiros e latifundirios. Estas ame-aas impediam a permanncia dos trabalhadores nos Projetos de Desenvolvimento Sus-tentvel (PDS), com suas milcias armadas e, inclusive, com a conivncia do PoderJudicirio. Uma semana depois desta audincia, sem que as autoridades federais e esta-duais tivessem tomado medidas efetivas em relao s graves denncias que fizera, Dorotyfoi assassinada a tiros no PDS Esperana, em Anapu.

    Nessa trgica ocasio, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estava no Esta-do, mais precisamente no municpio de Porto de Moz para criar a reserva extrativistaVerde para Sempre. A Agncia Brasileira de Inteligncia (ABIN) chegou a afirmar que oassassinato de Dorothy era um recado ministra e ao governo brasileiro. Essa ao

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    violenta dos fazendeiros teria como objetivo intimidar rgos e funcionrios pblicospara no implantar polticas e programas ambientais e agrrios na Amaznia.

    Infelizmente, nem sempre a presena de autoridades federais representa garantias erespeito aos direitos humanos dos mais pobres e a preservao do meio ambiente. His-toricamente, a ao do Estado na Amaznia foi marcada por uma profunda dicotomia,pois, se de um lado, atuou ostensivamente para implantar um modelo concentrador (deterra e de renda) e predatrio de desenvolvimento (criou e implantou projetos de colo-nizao, financiou grandes obras de infra-estrutura, ofereceu subsdios aos latifundiri-os e grileiros), por outro, no garantiu os direitos das populaes tradicionais pobres.Alis, esta populao foi includa da maneira mais perversa, tendo servido de mo-de-obra barata ou escrava.

    Alm da omisso, conivncia ou ainda ao direcionada do Estado, as aes deautoridades do Poder Judicirio e do Executivo, via de regra, favorecem grileiros, lati-fundirios, madeireiros etc. O Poder Judicirio rpido em autorizar aes policiais dedespejo de trabalhadores rurais, decretar priso de seus lderes, mas ao mesmo tempo,confere inmeros benefcios a latifundirios e grileiros. Mandantes e assassinos no sopresos nem so levados a julgamento; mandados de priso no so cumpridos e pistolei-ros agem em conjunto com policiais. Mesmo nos crimes nos quais houve julgamento, asaes judiciais s foram possveis depois de longos anos de luta, presso e denncias dostrabalhadores rurais e de entidades de direitos humanos nacionais e internacionais.

    A impunidade acoberta aes criminosas desses grupos e nenhum esforo feitopelos rgos de Segurana Pblica e pelo Poder Judicirio para combat-la. A morosi-dade da Justia parcial e reflexo de uma sujeio presso do poder poltico e econ-mico, retardando ou influenciando o andamento dos processos e dos julgamentos. Aprescrio penal acaba alcanando a maior parte dos crimes contra trabalhadores e a certe-za da impunidade alimenta o ciclo vicioso da violncia contra os trabalhadores no Par.

    O governo e o Poder Judicirio paraense tm agido com muita celeridade quandose trata de penalizar trabalhadores e lideranas populares. Exemplo dessa situao foi aconcesso de mais de 40 liminares de despejo, muitas cumpridas em junho de 2005, defazendas ocupadas na regio sul e sudeste do Estado, atingindo quase cinco mil famlias.As decises judiciais que concederam essas liminares no levaram em conta os direitoshumanos dos trabalhadores (de acesso ao trabalho, alimentao, moradia, educao) eforam fundamentadas no absoluto direito de propriedade. No levaram em contatambm o cumprimento da funo social da propriedade (artigo 186 da ConstituioFederal), inclusive porque muitas no constituem propriedade, pois so posses de grileirosque se apropriaram criminosamente de terras pblicas. Em parte significativa das liminaresconcedidas, o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) j haviainclusive iniciado os procedimentos para desapropriao ou retomada das propriedades.

    H tambm um crescente processo de criminalizao e perseguio, inclusive comprises arbitrrias, como forma de desmobilizar as lutas por parte das Polcias Civil eMilitar e do Poder Judicirio. Os juzes se referem aos trabalhadores sem-terra como

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    desocupados que promovem a desestabilidade social ao ocupar terras pblicas ou griladas,desconsiderando o vnculo do trabalhador com a terra e os comandos constitucionaisque os tornam os destinatrios da poltica pblica de reforma agrria.

    Conseqentemente, h uma ausncia do Estado na formulao e implementaode polticas sociais re-distributivas, resultando em mais pobreza e destruio ambiental.Por outro lado, h uma presena omissa ou conivente que acaba fortalecendo a impuni-dade, gerando mais violncia e constantes violaes dos direitos de posseiros, campone-ses, trabalhadores, extrativistas, populaes tradicionais e defensores. Um exemplo des-sa ausncia que, alm de no cumprir suas prprias metas de regularizao fundiriae assentamento de famlias para os ltimos dois anos, o governo federal bloqueou maisde 50% do oramento de 2005, destinado para aes de reforma agrria.

    Essa ausncia do Estado acaba se materializado em conflitos depois expressos emnmeros e cifras de trabalhadores rurais mortos ou ameaados. Esses conflitos ceifaramvidas de muitas lideranas e trabalhadores rurais no Estado do Par. O caso mais conhe-cido o massacre de Eldorado do Carajs que tirou a vida de 19 trabalhadores sem-terraem 1996. Infelizmente, conhecido, mas no o nico caso, pois a truculncia dos fazen-deiros fez, e ainda faz, outras vtimas entre os trabalhadores e defensores dos direitoshumanos.

    O anncio sobre devastao e mortes no Par preenche as pginas dos jornaislocais, nacionais e internacionais, levadas a conhecimento pblico atravs das aes deentidades, sindicatos e, principalmente, da voz dos defensores de direitos humanos daregio. A aliana entre um modelo de desenvolvimento calcado no agronegcio (inclu-sive com o rpido avano da soja) e na exportao de madeira e no exerccio do poderpoltico baseado na propriedade fundiria (latifundirios, grilagem, milcias privadas eassassinatos) traz como conseqncia a apropriao ilegal e predatria dos recursos na-turais, da biodiversidade e das vidas dos trabalhadores rurais, posseiros, ribeirinhos,extrativistas, populaes indgenas da Amaznia.

    O caos fundirio no Par alcanou tal dimenso que, em muitas oportunidades, ogoverno federal acabou desapropriando reas pblicas griladas por grandes fazendeiros.Exemplo clssico desta situao foi a desapropriao da Fazenda Flor da Mata, em 1998,localizada em So Flix do Xingu. Esta rea, falsamente particular, estava localizada emrea indgena e utilizava-se de trabalho escravo. Apesar de todas estas ilegalidades, a reafoi desapropriada e a indenizao (pagamento da terra e benfeitorias) foi paga a umpretenso proprietrio com base em ttulos falsos de propriedade.

    Os defensores de direitos humanos e do meio ambiente lutam e trabalham em prolde um desenvolvimento diferente do modelo atual implantado na regio Amaznica eno Par. Eles trabalham por um modelo de desenvolvimento baseado em justia social,sustentabilidade ambiental e respeito aos direitos humanos. Maria Joel e Dorothy Stangso protagonistas dessa luta e resistncia. So smbolos e representantes da luta contra aao predatria e ilegal de grileiros, madeireiros e latifundirios, que vm assassinandopessoas e, de forma criminosa, se apropriando e destruindo a Amaznia brasileira.

  • VIOLAO DOS DIREITOS HUMANOS NA AMAZNIA: CONFLITO E VIOLNCIA NA FRONTEIRA PARAENSE

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    Alm das constantes denncias s autoridades responsveis, inclusive com o deslo-camento de ministros e foras-tarefas para a regio, aes como a realizao do TribunalInternacional dos Crimes do Latifndio, em outubro de 2003, buscam chamar a aten-o para a gravidade da situao. Esse tribunal levantou e demonstrou a violao siste-mtica dos direitos humanos por parte de latifundirios, cometida com a omisso, coni-vncia ou mesmo participao de rgos do Estado, sendo que vrios casos analisadosnesse relatrio j se constituam, na ocasio, em casos exemplares no Par.

    Face gravidade do problema, as aes e mobilizaes so constantes. Aps a mor-te da irm Dorothy, por exemplo, o Frum Nacional da Reforma Agrria e Justia noCampo organizou uma campanha nacional e internacional, denominada ReformaAgrria: desenvolvimento sustentvel e direitos humanos. Foi articulada para pressio-nar os governos federal e estadual a adotar medidas efetivas para apurar e responsabilizaros criminosos e a proteger as pessoas ameaadas no Par.

    Buscando contribuir para o debate sobre a questo da violncia e impunidade quevitimam trabalhadores e defensores de direitos humanos na Amaznia, a Comisso Pas-toral da Terra, a Justia Global e a Terra de Direitos realizaram essa pesquisa. Esserelatrio tem como objetivos:

    colocar a necessidade da reforma agrria, do combate violncia e impunidadee da promoo de um desenvolvimento sustentvel na pauta da sociedade brasilei-ra, especialmente buscando sensibilizar setores urbanos;

    provocar uma ao dos rgos pblicos, especialmente das Polcias Civil e Fede-ral e do Judicirio contra a impunidade, nos casos de crimes ambientais, grilageme contra os defensores de direitos humanos;

    mobilizar setores organizados da sociedade civil internacional e organismos inter-nacionais de direitos humanos da Organizao dos Estados Americanos (OEA) eda Organizao das Naes Unidas (ONU) para pressionar as diversas esferas degoverno (Executivos Federal e Estadual; Legislativo e Judicirio) para implementaraes efetivas de reforma agrria, preservao ambiental e proteo aos direitoshumanos.

    Esse relatrio se inscreve em uma perspectiva ampla do conceito de violaes dedireitos humanos. No se limita apenas defesa dos direitos civis e polticos, mas seredimensiona a partir dos direitos humanos econmicos, sociais, culturais e ambientais(Dhesca). Esses se apresentam como direito humano terra, ao meio ambiente, aotrabalho, gua, entre outros, defendendo sempre a indivisibilidade dos direitos huma-nos. indiscutvel que a discusso sobre os Dhesca coloca impasses, a serem enfrenta-dos no contexto das propostas de desenvolvimento para Amaznia, seja por parte dosgovernos estadual e Federal, seja dos entes privados, do latifundirio, da agroindstria,das madeireiras.

  • VIOLAO DOS DIREITOS HUMANOS NA AMAZNIA: CONFLITO E VIOLNCIA NA FRONTEIRA PARAENSE

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    O debate acerca das violaes dos direitos humanos compreende as dimenses dereparao, proteo e promoo dos Dhesca, apresentando dificuldades e limites para oacesso a esses direitos pelos trabalhadores e trabalhadoras do Par. Isso amplia o marconecessrio para a garantia dos direitos humanos pelo Estado e pela sociedade civil. Adiscusso dos defensores de direitos humanos se d a partir da ao concreta e cotidianapela efetivao dos direitos, estabelecendo uma correlao imediata entre a luta destesdefensores e a represso contra os mesmos, buscando inibir a sua atuao.

    Este trabalho deu especial ateno ao tema dos defensores de direitos humanos, sreconhecidos pela ONU no ano de 1998. A ONU ento declarou que so defensoresde direitos humanos todos os indivduos, grupos e rgos da sociedade que promoveme protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhe-cidos (Resoluo 53/144, de 09 de dezembro de 1998). Na ampla conceituao daDeclarao da ONU, so defensores de direitos humanos todos os homens, mulheresou entidades que atuam promovendo e/ou denunciando as violaes contra os direitoshumanos.

    A partir das manifestaes da Representante Especial da ONU para defensores dedireitos humanos, o Programa Nacional de Proteo aos Defensores de Direitos Huma-nos (lanado em outubro de 2004, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos daPresidncia da Repblica, em Braslia e re-lanado em fevereiro de 2005, em Belm),apesar de ainda no ter sado do papel, considera que os defensores podem integrarquadros dos sindicatos, de associaes civis, religiosas, comunitrias, de movimentossociais, de entidades de defesa dos direitos humanos, de corporaes policiais, de enti-dades de defesa do meio ambiente, de combate corrupo, do Ministrio Pblico, daMagistratura, dos setores de fiscalizao do Estado e de outras instituies.

    No se trata de alguns indivduos isolados, mas de todos os que se colocam nadefesa dos direitos humanos, incluindo-se tambm trabalhadores e lideranas comuni-trias. Esse relatrio adota, portanto, o conceito amplo de defensores de direitos huma-nos, assumido pelas Naes Unidas e, conseqentemente, pelo Programa Nacional deProteo aos Defensores de Direitos Humanos. Desde o destaque inicial deste relatrio,no depoimento comovente de Maria Joel da Costa, at suas ltimas linhas, passando porirm Dorothy e tantos outros, a ao dos defensores e defensoras de direitos humanos chave na resistncia s cotidianas violaes dos direitos dos trabalhadores e na constru-o de projetos baseados na sustentabilidade socioambiental e nos direitos humanos.

    Essa publicao busca ser um reforo para que a histria de Maria Joel e de tantaspessoas seja uma histria de vida e no termine tragicamente como foi o caso da irmDorothy e de dezenas de lideranas, assassinadas no Par nos ltimos anos. As organi-zaes responsveis por este relatrio pretendem que este seja mais um instrumentodos trabalhadores rurais, ribeirinhos, extrativistas, posseiros e demais defensores dedireitos humanos do Par na luta pela realizao da reforma agrria como um dospassos indispensveis na direo de um desenvolvimento verdadeiramente sustentvelda Amaznia.

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    Em razo da extenso territorial do Estado e da diversidade dos conflitos, essetrabalho de pesquisa tomou alguns locais, temas e lutas como casos emblemticos darealidade do meio rural paraense. Os modelos de desenvolvimento implantados na re-gio acabaram sendo motores do processo de concentrao fundiria, da grilagem deterras, da extrao ilegal de madeiras, da expanso do agronegcio, responsveis emgrande medida, pela violncia e impunidade. O relatrio traz uma anlise sobre a situ-ao fundiria e a violncia no Estado (captulo I), procurando explicitar as relaesentre degradao ambiental, ao do latifndio e violao dos direitos humanos.

    Na seqncia (captulo II), esto colocadas algumas polticas e programas governa-mentais, elaboradas e implementadas, ou em processo de implementao, como tentati-vas do poder pblico de responder s demandas populares por direitos no Estado. Oobjetivo deste relatrio no realizar uma descrio exaustiva nem analisar todos osprogramas, mas apenas sistematizar algumas aes do Poder Pblico estadual e federal,como exemplos de polticas governamentais implantadas na Amaznia.

    As polticas governamentais adotadas para combater as ilegalidades e irregularida-des so, quando existentes, extremamente tmidas. Uma anlise, ainda que breve, daspolticas e programas de combate grilagem e devastao ambiental demonstrammuitas fragilidades frente ao devastadora que assola o Par. Os projetos governa-mentais atuais, por outro lado, continuam sendo contraditrios porque aplicam recur-sos pblicos para promover o agronegcio em grandes extenses de terras, especialmen-te para expandir o desmatamento (40% do PIB paraense baseado na extrao madei-reira), a pecuria e, por ltimo, abriu suas portas produo de soja e outros gros,atividades altamente predatrias.

    As aes governamentais acabam sendo, no mnimo, contraditrias porque bus-cam formas para implementar um desenvolvimento sustentvel, baseado em aes dereforma agrria e em polticas de preservao ambiental. No entanto, essas mesmasaes incentivam, inclusive com a destinao de grandes somas de recursos pblicos,atividades produtivas baseadas na expanso do agronegcio, promovendo a devastaoambiental e, freqentemente, efetivada atravs da apropriao ilegal de terras e na pr-tica da violncia.

    A partir das denncias e lutas dos trabalhadores, os temas privilegiados neste rela-trio so o desmatamento, a grilagem e a violao dos direitos humanos. As reflexesprocuram tambm abordar e analisar as dificuldades na implementao de um progra-ma de reforma agrria sustentvel e na demarcao de reservas extrativistas.

    Como lugares e exemplos dessa luta, foram visitadas e pesquisadas as localidades deRondon do Par, Anapu, Terra do Meio, Castelo dos Sonhos e Porto de Moz (captulosIII a VII respectivamente). Essas ilustram, por um lado, a ao criminosa de latifundi-rios, grileiros, madeireiros e, muitas vezes, a no menos criminosa ao de rgos doPoder Pblico. Por outro, so palcos de luta e resistncia de posseiros, ribeirinhos, tra-balhadores rurais, defensores de direitos humanos na busca de uma reforma agrria e deum desenvolvimento capaz de garantir melhores condies de vida e a preservao daAmaznia.

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    Entre as lutas e propostas de desenvolvimento para a Amaznia, merece destaque aluta dos trabalhadores rurais para implantar os chamados Projetos de DesenvolvimentoSustentvel (PDS). So projetos concebidos pelas organizaes sociais que possibilitamcombinar produo e conservao da Floresta Amaznica. Assim como essa, vrias ou-tras propostas surgem da experincia e vivncia das populaes tradicionais com o seumeio, criando uma sustentabilidade no encontrada nos modelos impostos regio.

    Ao final (captulo VIII), buscando contribuir com as lutas, as entidades apresen-tam um rol de recomendaes, especificando os rgos competentes a que se destiname as competncias que lhes cabem em cada uma delas. Este relatrio, alm de ser maisuma ao de denncia e monitoramento em torno das violaes de direitos humanos edestruio ambiental no Par, quer contribuir para transformar essa realidade.

    Esse trabalho no possui um fim em si mesmo, mas objetiva ser uma ferramenta nomonitoramento sobre violaes dos direitos humanos e resistncias populares no terri-trio paraense. Nesse sentido, pode ser uma ajuda no trabalho dos defensores nos pro-cessos de resistncia e defesa de direitos humanos, sociais e econmicos da populaoamaznica.

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    Localizado na parte oriental da Amaznia brasileira, o Par um dos estados maisafetados pelas polticas governamentais direcionadas para a Amaznia, inclusive pelapoltica agrria com a implantao de vrios assentamentos de reforma agrria.1 Tam-bm os incentivos exportao e a construo de infra-estrutura de transporte e escoa-mento geraram novos investimentos na produo agropecuria, tornando mais agudosos problemas sociais e ambientais.

    Os planos oficiais de ocupao da Amaznia foram definidos a partir da concepode que a regio tratava-se de um vazio demogrfico. Na dcada de 40, no governoVargas, foi iniciado o primeiro plano oficial para ocupao do centro-oeste e Amaznia,incluindo a rea da BR-163, chamado Marcha para o Oeste. A tarefa para organizaresse processo de ocupao foi destinada Superintendncia do Plano de Valorizao daAmaznia (SPVEA).

    Os governos militares ps-64 definiram como estratgia a integrao nacional, quefoi iniciada pela Operao Amaznia, cuja ideologia serviu de lema ao chamado Pro-jeto Rondon: integrar para no entregar. Tambm fez parte da estratgia o apoio, osinvestimentos no campo e os incentivos fiscais da Superintendncia do Desenvolvimen-to da Amaznia (SUDAM). Os governos militares transformaram os capitalistas do Sule Sudeste em grandes latifundirios que investiram na regio, favorecendo a expansoda pecuria que devastou a floresta na Amaznia Legal.2

    Em 1966, foi criada a Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia(SUDAM), instituda pela Lei 5.173, em substituio Superintendncia do Plano deValorizao Econmica da Amaznia (SPVEA). Criada durante a ditadura militar, nogoverno do general Humberto Castelo Branco, a SUDAM fazia parte de um plano

    Captulo I

    A DINMICA AGRRIA E FUNDIRIADO ESTADO DO PAR

    1 A maioria dos assentamentos est concentrada na regio sul e sudeste do Par onde, h muitos anos, os camponeseslutam pelo direito de acesso (assentamento) ou pela permanncia na terra (manuteno e regularizao de posses).2 Plano de Desenvolvimento Regional Sustentvel para a rea de Influncia da Rodovia BR-163, Cuiab-Santarm.Grupo de Trabalho Interministerial. Decreto de 15 de maro de 2004.

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    estratgico traado pelos militares para promover o desenvolvimento e a ocupao daAmaznia, diminuindo as desigualdades regionais atravs da integrao da regio aorestante do pas.3

    Em 1970, no governo do general Emlio Garrastazu Mdici, foi lanado o Plano deIntegrao Nacional (PIN), que tinha por objetivo a ocupao e povoao dos imensosespaos vazios da Amaznia. O Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria(INCRA) realizou, nesta poca, uma anlise das terras localizadas no Estado do Parcomo, por exemplo, das glebas localizadas em terras que hoje fazem parte da regio deAnapu. Foi constatado que no havia naquelas terras propriedades particulares, ou seja,as reas poderiam ser incorporadas ao plano de ocupao da Amaznia.4

    Um dos projetos do PIN previa a construo de dois grandes eixos rodovirios naAmaznia: a Transamaznica e a Cuiab-Santarm, que deveriam ligar a Amaznia aoresto do pas. O Estado do Par teve a sua integrao fsica acelerada e consolidadadepois dos anos 1970, com a construo das estradas. A abertura das rodovias Belm-Braslia (BR-010) e Cuiab-Santarm (BR-163) transformaram a histria recente doPar.

    A expanso e a colonizao por estradasseguem ritmos diferenciados desde os ltimos35 anos. Momentos acelerados (1975-85),momentos mais lentos (1986-1997), novaacelerao desde ento. Esses perodos se tra-duzem com ritmos globais diferentes de des-matamento e violncia, estando ligados im-portncia do dinamismo agroexportador,principalmente da pecuria, do minrio e docultivo da soja.

    A abertura de novas estradas e o proces-so acelerado de ocupao no Estado do Par

    tm reativado fronteiras econmicas antigas (como o que ocorre no nordeste, sul e oesteparaenses com o cultivo da soja e a explorao mineral) e movimentado novas fronteirascomo o que ocorre em Anapu, Castelo dos Sonhos (Altamira), Novo Progresso e SoFlix do Xingu. Essas novas dinmicas tm acelerado o processo de expropriao e ex-plorao irracional do territrio, que resultam em desmatamento e muita violncia en-volvendo novos e antigos ocupantes do espao territorial.

    3 Miranda, Vernica Maria. Anlise do trabalho desenvolvido pela SUDAM e pela SUFRAMA para o desenvolvimen-to da Amaznia. Brasileiro. Consultoria Legislativa da Cmara dos Deputados, Fevereiro de 2002. Disponvel em:http://www2.camara.gov.br/publicacoes/estnottec/tema14/ index.html/view? searchterm=SUDAM4 Informaes colhidas em documento divulgado pela organizao Greenpeace: Grilagem de terras na Amaznia:Negcio bilionrio ameaa a floresta e populaes tradicionais, disponvel em: http://www.greenpeace.org.br/amazonia/pdf/grilagem.pdf .

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    Desde a gesto do governador Almir Gabriel (1994) que o Estado prioriza investi-mentos em produtos da tabela de exportao de commodities. A movimentao dasnovas fronteiras e o reativamento das antigas se pautam nessa lgica de investimentos naescala produtiva que se alinha com a poltica agropecuria nacional, centrada na grandeproduo para exportao. O resultado histrico da implementao desse modelo noEstado tem sido a violncia, o desmatamento, o desemprego e a misria, que assolam ocampo e a cidade.

    1. GRILAGEM DE TERRA E GESTO TERRITORIALConhecida como grilagem,5 a apropriao ilegal de terras pblicas marca cons-

    tante da formao da estrutura fundiria brasileira, caracterizando-se como componen-te importante do processo de concentrao da terra. De acordo com levantamento rea-lizado em 1999 pelo governo federal, existem aproximadamente 100 milhes de hecta-res de territrio ilegalmente apropriado por particulares no Brasil.6 Essa rea correspondea algo como trs vezes o territrio da Alemanha, duas vezes o tamanho da Espanha oudez pases como Portugal.

    A grilagem, de acordo com dados do prprio governo, foi propiciada pela fragilida-de do sistema de registro de terras e ocorreu, no decorrer da histria, atravs de diversosmecanismos: falsificao de ttulos e seus registros, registro de escritura de compra evenda sem a linhagem da transmisso, invaso de reas para derrubada da floresta eprtica da pecuria extensiva e ainda por acrscimo de reas nos documentos de posse.Outro fator fundamental para a ocorrncia da grilagem foi a superposio de competn-cias entre a Unio e o Estado para proceder titulao em vrios perodos histricos.

    De acordo com informaes do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio:

    A grilagem de terras acontece normalmente com a conivncia de serventurios de Cartriosde Registro Imobilirio que, muitas vezes, registram reas sobrepostas umas s outras ouseja, elas s existem no papel. H tambm a conivncia direta e indireta de rgos governa-mentais, que admitem a titulao de terras devolutas estaduais ou federais a correligionriosdo poder, a laranjas ou mesmo a fantasmas pessoas fictcias, nomes criados apenas paralevar a fraude a cabo nos cartrios. Depois de obter o registro no cartrio de ttulos de imveis,o fraudador repetia o mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado, no Cadastro doIncra e junto Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados que dessem fraudeuma aparncia de consistente legalidade.7

    5 A grilagem de terras ocorre de formas distintas em diferentes regies do pas, mas geralmente acontece com a coni-vncia de Cartrios de Registro Imobilirio que registram reas inexistentes ou fornecem documentos falsos de pro-priedade. Grilagem de Terras Perfil dos Proprietrios/Detentores de Grandes Imveis Rurais que no Atenderam Notificao da Portaria 558/99, disponvel em www.incra.gov.br6 Livro Branco da Grilagem, p. 12. Disponvel em www.incra.gov.br. Acessado em 20-7-2005.7 Grilagem: balano definitivo. Disponvel em www.mda.gov.br. (acessado em 20-7-2005).

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    Em 2000, a Cmara dos Deputados instalou uma Comisso Parlamentar de Inqu-rito (CPI) para investigar a ocupao de terras pblicas na Regio Amaznica8 (CPI dagrilagem). Essa CPI concluiu a este respeito que:

    A atividade notarial e registral tem grande importncia no contexto da grilagem, porque atravs da lavratura de certides e do registro que so aparentemente legitimados os ttulosque serviro para alicerar a apropriao ilegal de terras.

    A situao da grilagem de terras na Regio Norte a mais grave de todo o pas: deacordo com o INCRA, esta regio , isoladamente responsvel por mais da metade darea total suspeita de grilagem no Brasil. A extenso da rea grilada tambm impressi-onante: informaes do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, datadas de 2001 ecom base em dados que consideraram apenas as propriedades com rea superior a 10mil hectares, demonstram que 0,2% dos imveis rurais suspeitos de grilagem, abran-gem 26% do territrio da Regio.9

    Nesse sentido, o relatrio final da CPI da grilagem, apresentado em 29 de agostode 2001, apontou a existncia de mais 30 milhes de hectares grilados no Par. NoEstado do Amazonas, os nmeros foram igualmente impactantes: 37 milhes de hecta-res. No Acre e em Rondnia, pelo menos 1,5 milhes de hectares foram identificadoscomo grilados.

    As caractersticas dos proprietrios/detentores dos imveis suspeitos de grilagem daregio Norte em relao s demais regies do Brasil, segundo o INCRA, so tambmdistintas: nessa regio que se verifica a maior rea mdia por proprietrio (em torno de69 mil hectares), bem como o maior nmero mdio de imveis por proprietrio (1,4imveis). Dentre os estados da regio norte, o Estado do Par o que possui a maiorrea mdia por proprietrio (cerca de 88 mil hectares).

    Cerca de 15 milhes de hectares no Par no apareciam na contabilidade do gover-no e surgiram depois que o INCRA passou a examinar reas abaixo de 10 mil hectares,registradas em cartrios paraenses. Apenas os trs maiores grileiros de terras no Estadodo Par, juntos, alegam possuir cerca de 20 milhes de hectares (Carlos Medeiros dizpossuir 13 milhes de hectares, o grupo CRAlmeida reivindica em torno de 6 milhese a Jari Celulose cerca de 3 milhes de hectares).

    O fantasma Carlos Medeiros, como veremos abaixo, possui cerca de 1.200 ttu-los de propriedade (falsos), espalhados por mais de 83 municpios, totalizando mais de13 milhes de hectares. O INCRA est prestes a concluir esse levantamento, que dever

    8 A CPI destinada a investigar a ocupao de terras pblicas na Regio Amaznica foi criada atravs do Requerimenton 2/99 e instalada em 14 de maro de 2000. O relatrio final e demais documentos relacionados aos trabalhos da CPIesto disponveis em http://www.camara.gov.br/internet/comissao/.9 Sabbato, Alberto Di. Perfil dos Proprietrios/detentores de grandes imveis rurais que no atenderam a notificaoda Portaria 558/99. Projeto de Cooperao Tcnica INCRA/FAO. Projeto UTF/BRA/051.

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    incluir cerca de 300 propriedades irregulares cuja posse ou domnio dificilmente pode-ro ser comprovadas por intermdio de documentao emitida por cartrios.

    Esse processo de concentrao de terra no Par10 teve como componente essencial,alm da superexplorao do trabalho e dos recursos naturais (que possibilitaram acumu-lao e concentrao de renda) a grilagem11 de terras pblicas. Pode-se afirmar aindaque a grilagem de terras caminhou juntamente com os sucessivos ciclos de desenvolvi-mento da regio: minerao, explorao da madeira, pecuria e, mais recentemente, aproduo de soja.

    No que se refere ao Estado do Par, o relatrio da CPI da Cmara dos Deputadosdescreve com detalhes alguns dos que certamente, esto dentre os maiores casos degrilagem do Brasil. Em apenas um destes casos, o relatrio aponta que o resultado foi aapropriao privada de cerca de 12 milhes de hectares, o que corresponde a 8% doEstado do Par ou 1% de todo o territrio brasileiro.12 Esse caso de grilagem se apropriade uma rea correspondente soma dos territrios da Dinamarca, Holanda e Sua.

    Esta superoperao de falsificao de documentos teve incio na metade da dcadade 70, quando, uma pessoa chamada Carlos Medeiros que atualmente sabe-se quenunca existiu recebeu uma Carta de Adjudicao que lhe teria sido transmitidaatravs de um processo judicial de inventrio, relativo transmisso dos bens de ManoelFernandes de Souza e Manoel Joaquim Pereira. Os imveis descritos na mencionadaCarta foram todos legitimados em 1975 pelo juiz da 2a Vara Cvel de Belm, Arman-do Brulio Paul da Silva, em um procedimento ilegal.13

    De posse desse documento, Carlos Medeiros, sempre atravs de prepostos e pro-curadores, passa a efetuar vendas a terceiros, negociando reas de todos os tamanhos eespalhando novos documentos fraudulentos. Atravs destes documentos fraudulentos,inmeras posses de populaes tradicionais e pequenos posseiros foram tomadas porgrandes grileiros. O processo judicial que deu origem s titulaes irregulares desapare-ceu do Cartrio em que foram arquivados em 1981.

    Os autos desse processo foram restaurados apenas em 1993 e, ainda naquele ano, oPoder Judicirio determinou o registro de parte das reas vendidas por Carlos Medeiros.O inventrio e todos os atos processuais e registros feitos a partir desse processo s

    10 O ndice GINI do Par o 4o maior do Brasil (0,87), estando acima da mdia nacional que 0,86.11 Confirmando este fato, o relatrio da CPI da grilagem analisa o papel do Poder Pblico Estadual: Os sucessivosgovernos do Estado a tudo assistiam inertes. E, nas poucas vezes em que procuraram servir como mediadores, tentandodisciplinar o j catico panorama fundirio paraense, quase sempre viabilizaram os interesses concentracionistas, aopermitirem concesses e doaes de terras e ao alienarem reas pblicas com enormes dimenses, promovendo, comtais aes destitudas de qualquer planejamento, uma crescente desagregao nas estruturas fundirias anteriormenteexistentes. (Relatrio Final, p. 236)12 Relatrio disponvel em www.camara.gov.br.13 De acordo com dados do relatrio, o mencionado juiz foi afastado da magistratura por cometer inmeras irregula-ridades.

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    foram anulados em 1995, quando o Tribunal de Justia do Estado do Par proferiuacrdo favorvel a uma Apelao interposta pelo Instituto de Terras do Estado do Par(ITERPA).

    Durante depoimento na Comisso Parlamentar de Inqurito da AssembliaLegislativa do Par,14 o jornalista Lcio Flvio assim descreveu a atuao da quadrilhaque promoveu a grilagem de milhes de hectares: Ento, na verdade, a origem foiarquitetada pelo dr. Veigas. Foi um grupo de advogados espertos que freqentam oFrum, que transitam no Frum, um dos quais, irmo de um Desembargador, queinventaram essa histria. A partir do momento que eles inventaram a bomba, outrosmais espertos e mais poderosos foram usando. Os 22 casos de manejo florestal em reasgriladas de Carlos Medeiros que o dr. Felcio Pontes (procurador da Repblica do Par)denunciou aqui, a nova gerao dos espertos que esto utilizando pra ganhar muitomais dinheiro do que eles, porque eles ganharam pouqussimo dinheiro com isso.

    Reportando-se a outro incrvel caso de grilagem de terras no Par, o jornalistaLcio Flvio escreveu:15

    O Par est oferecendo um bom exemplo sobre a necessidade do controle externo do poderjudicirio, um dos temas mais candentes no Brasil atual. O caso envolve a segunda maiorgrilagem de terras do pas e, provavelmente do mundo. Diz respeito a uma rea situada nofrtil vale do rio Xingu, 800 quilmetros a oeste de Belm, atualmente sob o impacto defrentes econmicas pioneiras. Tendo, no mnimo, cinco milhes de hectares, essa grilagem,que consiste no uso de fraudes para a apropriao ilcita de terras pblicas, pode atingir atsete milhes de hectares.

    Continua, o jornalista:

    Com esse tamanho, a rea poderia formar o 27 Estado brasileiro em territrio, no total de 27unidades federativas do pas. Corresponde a 6% da superfcie do Par, o segundo maior Esta-do da federao, com uma rea de 1,2 milho de quilmetros quadrados, que equivale superfcie da Colmbia, onde vivem quase 45 milhes de pessoas (a populao do Par de 7milhes de habitantes).

    O domnio dessa rea, atribudo ao grupo empresarial CRAlmeida, pblico, e foiapropriado poca em que o governo paraense e rgos federais realizavam contratos dearrendamento com particulares, de reas de castanha, seringa e caucho. Os contratos

    14 A Assemblia Legislativa do Par instalou uma CPI, em 1999, com o objetivo de apurar denncias de irregularida-des na rea de terra adquirida pela empresa CRAlmeida no municpio de Altamira, no Estado do Par.15 Artigo publicado no Jornal Pessoal, sob o ttulo Grilagem: uma histria confusa e uma moral nada recomendvel,escrito por Lcio Flvio Pinto, Belm, 2/set./2004. No dia 21 de janeiro de 2005, esse jornalista registrou queixa deagresso e ameaa de morte contra o empresrio Ronaldo Maiorana e seus seguranas (dono o maior conglomeradoempresarial de comunicaes do Par), resultado de seu compromisso histrico em defesa da Amaznia. Ver a nota deesclarecimento de Lcio Flvio (22/01/2005) em www.amazonia.org.br.

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    tinham, geralmente, a validade de um ano. Expiravam automaticamente quando noeram renovados e garantiam a explorao extrativista dos produtos oriundos da floresta.

    Entre 1995 e 2002, consolidou-se no Par o que considerado o maior latifndiocontnuo do mundo. Se trata de rea pertencente s empresas Rondon Projetos Ecolgi-cos Ltda e Indstria, Comrcio, Exportao e Navegao do Xingu Ltda (INCENXIL),com extenso de 6 milhes hectares (60 mil km), na regio de Altamira (Terra doMeio). Ambas as empresas so controladas pelo empresrio da construo civil CeclioRego de Almeida. A ttulo de ilustrao, este nico latifndio tem extenso superior rea territorial total de seis estados brasileiros (Estados de Sergipe, Alagoas, Rio de Janei-ro, Esprito Santo, Rio Grande do Norte e Paraba).

    Devidamente identificado pela Comisso Parlamentar de Inqurito da AssembliaLegislativa do Estado do Par (instalada para investigar a grilagem de terras no Estado),esse latifndio foi constitudo atravs da apropriao ilegal de terras pblicas pertencen-tes ao INCRA, Fundao Nacional do ndio (FUNAI) e ao Estado-Maior das ForasArmadas.

    Em relao s pretenses das empresas de Ceclio Rego de Almeida, aps fortepresso da sociedade, o ITERPA ingressou com ao de nulidade das matrculas feitasno cartrio de Altamira. O processo permaneceu desaparecido por dois anos e meio equando reapareceu foi com uma sentena (retroativa ao ms subseqente ao desapareci-mento) em favor dos grileiros, devidamente assinada pelo juiz da Comarca.

    Recentemente, o esquema de grilagem sofreu um revs, apontado na perspectivado enfrentamento da grilagem. O Ministrio Pblico Federal ajuizou Ao Civil Pbli-ca contra o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis(IBAMA) e a empresa Indstria, Comrcio, Exportao e Navegao do Xingu Ltda(INCENXIL), de propriedade do Grupo CRAlmeida, com objetivo de impedir que oIBAMA indenizasse essa empresa pela desapropriao de aproximadamente 4,7 milheshectares, localizados na Terra do Meio16 e com titulao falsa decorrente do esquema defalsificao de ttulos acima descrito. A Justia Federal deu liminar ao Ministrio Pbli-co que obteve tutela antecipada, impedindo que o IBAMA pague qualquer valor INCENXIL a ttulo de indenizao pela rea da Fazenda Curu.

    Se, no passado, a cobia pela regio do vale do Xingu era resultante da disputapelos produtos extrativos da floresta, atualmente a busca pelo mogno, o ouro verde daAmaznia. Esse chega a custar 1.800 dlares o metro cbico no mercado europeu,saindo a um custo de 100 dlares do interior das florestas amaznicas. Diferentementetambm daquele perodo, onde os desbravadores e expropriadores eram comerciantes ecoronis da oligarquia paraense, hoje so fazendeiros do centro sul do pas, grileiros,produtores de soja e multinacionais exploradoras de minrio.

    16 Em parte desta rea, o governo federal criou a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrsio em 8 de novembro de 2004.Como o decreto presidencial autorizava o IBAMA a proceder desapropriaes por interesse social de imveis rurais dedomnio privado e suas benfeitorias identificados dentro da Reserva Extrativista, certamente o governo pagaria inde-nizao por uma rea grilada e pertencente Unio.

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    De acordo com o relatrio final da Comisso Parlamentar de Inqurito realizadana Assemblia Legislativa do Estado do Par, em 1999:

    A situao to catica e crtica que existem municpios cuja rea registrada nos cartrioscomo imveis de particulares superior sua extenso territorial (...): o municpio de Acarcom uma superfcie de 854.200ha, tem 1.040.112,7ha registrados no cartrio; Tom-Au,com uma superfcie de 582.200ha, tem 819.314,8ha registrados em cartrio; Paragominas,com uma superfcie de 2.716.800ha, tem 3.327.234ha registrados em cartrio; e, o caso maisclamoroso, Moju, que apesar de ter uma extenso territorial de 1.172.800ha j tem registradoem cartrio 2.750.080,4ha, ou seja, j registrou at terrenos no cu.

    A grilagem de terras pblicas, associada extrao ilegal de madeira e ao desmata-mento, constitui outra grave violncia, em muitos casos, incentivada pelas prpriasautoridades do governo e do Judicirio. O processo de grilagem sempre foi favorecidopelo prprio ente estatal. O Instituto de Terras do Par (ITERPA), criado em 1975 como objetivo de assumir o controle administrativo das terras, segundo Flvio Pinto, aca-bou se transformando numa instncia governamental para a resoluo de problemas degrandes grupos interessados em terras no Par.

    Em depoimento na CPI da Assemblia Legislativa, o jornalista Flvio Pinto aindaressaltou que,

    Em 1975 foi a ltima tentativa do Estado em ter um controle administrativo, quando criou oITERPA. (...) Quem for ler com ateno a lei que criou o ITERPA, verificar que ali estcheio de alapes e armadilhas para os poucos privilegiados de escritrios de advocacia utiliza-rem aquela estrutura para seus parceiros, seus clientes. (...) Ento, o ITERPA acabou se trans-formando numa instncia governamental para resoluo de problemas de grandes gruposinteressados em terras no Par, e eu acho que o ITERPA no conseguiu cumprir sua funo.17

    As agncias oficiais ambientais e de reforma agrria, estaduais e federais, no ado-taram medidas efetivas para coibir a crescente apropriao ilegal de terras pblicas. Ocaos fundirio no Par alcanou tal dimenso que, em muitas oportunidades, o governofederal acabou desapropriando reas pblicas griladas por grandes fazendeiros. Exemploclssico desta situao foi a desapropriao da Fazenda Flor da Mata, em 1998, localiza-da em So Flix do Xingu. Esta rea, falsamente particular, estava localizada em reaindgena e tinha trabalho escravo. Apesar de todas estas ilegalidades, a rea foi desapro-priada e a indenizao (pagamento da terra e benfeitorias) foi um valor 25 vezes superi-or ao pago pelos fazendeiros pelos ttulos falsos.

    17 Trechos do depoimento do jornalista Lcio Flvio Pinto na CPI da Grilagem na Assemblia Legislativa do Estado doPar.

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    A grilagem de terras tem sido, portanto, o pano de fundo das mais variadas for-mas de violao dos direitos humanos no Estado do Par. Essas violaes vo desde anegao de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, com a extrao criminosados recursos florestais, at a expulso violenta e prises dos pequenos posseiros. Essesocupam a terra, h dcadas, mansa e pacificamente. As violaes agravam-se com asprticas de trabalho escravo e culminam com o nmero assustador de assassinatos detrabalhadores e suas lideranas em decorrncia das invases dos grileiros.

    A apropriao ilegal de terras pblicas fortemente relacionada s violaes dedireitos humanos existentes na Regio Amaznica, em geral, e no Par, em particular.Primeiro porque componente essencial da concentrao de terra, que por sua vez,possibilita a violao de direitos econmicos, sociais e culturais, sendo fortemente asso-ciada perda de territrio pelas populaes tradicionais, posseiros, trabalhadores ruraise extrativistas.

    Os recursos dos projetos aprovados pela SUDAM financiaram benfeitorias queeram posteriormente indenizadas, quando o fazendeiro era obrigado a devolver a reapara a Unio, constituindo um ciclo da indenizao e uma estreita relao entre recur-sos pblicos e grilagem. Na verdade, os recursos pblicos da SUDAM acabaram promo-vendo a grilagem de terra na Amaznia, porque, primeiro, terras apropriadas ilegalmen-te cumpriam a funo de garantia exigida para emprstimos. Segundo, os projetosfictcios de investimentos na agropecuria exigiam a apresentao de rea disponvelpara sua implementao, estimulando a grilagem de terras pblicas.

    Em inmeros casos, a ilegalidade dos ttulos das falsas propriedades a motiva-o dos latifundirios na utilizao da fora, da violncia e da corrupo para garantir aposse e impedir a interveno de rgos pblicos na regularizao fundiria. Alm disso,diversos documentos oficiais, dentre eles o Plano de Combate ao Desmatamento, apon-tam que uma medida essencial nas polticas pblicas que visam diminuir degradaoambiental da Amaznia o combate grilagem de terras.

    A problemtica que envolve os conflitos e a violncia no Estado do Par se colocaem um contexto de ausncia da gesto oficial do territrio, principalmente no que tangeao processo de ocupao das zonas de fronteira e gravidade da questo agrria. H umaomisso, conivncia ou ainda ao direcionada do Estado nesses cenrios, marcados pelaapropriao ilegal dos recursos naturais, indefinio da propriedade da terra (incenti-vando a prtica da grilagem e a apropriao ilegal de terras pblicas) e pela violncia.Essa realizada por aes policiais em despejos e pela atuao de milcias privadas, queprocuram coibir aes dos movimentos sociais organizados, e incentivada pela moro-sidade da Justia e pela impunidade.

    A gesto territorial por parte do Estado um tema que se coloca com mais gravi-dade na fronteira, mas no deixa de ser uma problemtica que envolve quase a totalida-de da extenso territorial rural. No Par, os dados so alarmantes, pois dos mais de 124milhes de hectares, apenas 40 milhes, cerca de 32,1% do total da rea do Estado,esto nos cadastros oficiais do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR). Enquanto

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    que mais de 84 milhes de hectares, cerca de 67,8% da rea total, esto fora dos regis-tros oficiais do SNCR.

    Essa situao se agrava ainda mais se considerarmos as estatsticas dos imveisrurais. Das reas que se encontram cadastradas (32,1% do total), cerca de 24 milhes dehectares esto em apenas 26 mil propriedades e o restante (16 milhes de hectares) estem 84.124 posses. Isso totaliza apenas 111 mil imveis cadastrados, os quais concen-tram mais de 30% da rea total, evidenciando um alto ndice de concentrao fundiriano Estado.

    A anlise detalhada dos imveis paraenses cadastrados no SNCR confirma a teseacima. Dos 111 mil imveis rurais cadastrados, cerca de 100 mil (90% do total cadastra-do) tm reas de at 500 hectares e detm 7,3 milhes de hectares, correspondente a 18%da rea cadastrada. Enquanto que 5.414 posses (6% do total), com rea acima de 500hectares, detm mais de 10 milhes de hectares, ou seja, cerca 25% do total das reascadastradas, com concentrao nos imveis que possuem entre 2 e 5 mil hectares.18

    Os dados indicam, de um lado, a falta de gesto no territrio por parte do Estado,sendo conivente com a grilagem (apropriao ilegal de terras pblicas), no tomandomedidas para arrecadar ou registrar terras pblicas, no incentivando o cadastramentodas reas privadas, etc. Por outro lado, esses dados confirmam o alto ndice de concen-trao fundiria, reforando a lgica de conivncia dos governos estaduais na concessode posses aos latifundirios.

    Os governos no reconhecem publicamente esse quadro catico e dramtico, massabem que a situao grave e necessita de um plano estratgico eficaz, a curto e a longoprazos. Como a fronteira no Par est em vias de se fechar19 pela expanso acelerada dadinmica econmica, novos agentes do agronegcio esto vidos por mais terras. Issodesafia o Estado a dar solues no que tange a gesto territorial, ou de outra forma osconflitos se acentuaro, acompanhados de violncia, morte e destruio.

    Parte significativa dos conflitos fundirios e problemas ambientais resultado daimplantao dos projetos de colonizao, promovidos pelos governos militares. Sob gidedo Estatuto da Terra, a poltica agrria era baseada na distribuio de reas nas novasfronteiras agrcolas, como uma forma de diminuir a presso por terra nas regies sul,sudeste e nordeste. Os projetos de colonizao, incentivados por propaganda e recursosgovernamentais, promoveram o deslocamento de milhes de famlias em direo Amaznia. A falta de assistncia governamental, no entanto, fez surgir novos focos deconflitos e disputas por terra, aumentando a violncia no campo e a destruio ambien-tal na regio.

    18 Dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do INCRA.19 O fechamento da fronteira se d pelo avano acelerado das frentes produtivas centradas na explorao florestal,mineral e no agronegcio, ocupando e apropriando as ltimas reas de terras disponveis, que ainda possuem reasflorsticas preservadas.

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    O grande desafio a pouca tradio na gesto eqitativa das terras pblicas. OEstado sempre impulsionou e at planejou a dinmica econmica, inclusive oferecendoincentivos fiscais para os grandes investimentos na aquisio de terras na Amaznia.Utilizou, no entanto, o discurso da livre concorrncia para justificar a no-atuaonos processos de apropriao ilegal das terras. Foi amplamente conivente, inclusive,com a grilagem de grandes reas de terras na esperana de atrair investimentos emprojetos agropecurios, capazes de promover o desenvolvimento econmico. O resulta-do, no entanto, vem sendo o aprofundamento da concentrao da propriedade da terra,gerando violncia e pobreza no meio rural paraense.

    2. CONFLITO E VIOLNCIA NO MEIO RURALO Estado do Par tem sido marcado e conhecido, nacional e internacionalmente,

    pelos graves e violentos conflitos pela posse da terra, os quais nas ltimas dcadas, viti-maram centenas de trabalhadores rurais, dirigentes sindicais, religiosos, advogados,ambientalistas, parlamentares e outros defensores dos direitos humanos.

    A dinmica dos conflitos de terra na fronteira explicada pela sobreposio entreduas economias antagnicas: terra para trabalho (camponeses) versus terra de explora-o (empresrios e fazendeiros). Assim, a onda de migrantes aflui fronteira em buscado acesso a meios de trabalho e a liberdade, caindo na subordinao capitalista. SegundoMartins, Na fronteira ocorre ento um conflito endmico entre a apropriao de terraslivres por camponeses independentes e a converso da terra em capital.20

    Alfredo Wagner, analisando a dinmica dos conflitos agrrios na Amaznia, afirmaque: Os conflitos agrrios na regio amaznica passaram a ser formalmente reconheci-dos como questo relevante para a interveno governamental na segunda metade dadcada de 1970-80, do sculo XX. Ento, a despeito do vigor das aes repressivas, osconflitos ampliavam-se e erigiam obstculos implantao dos projetos agropecurios,madeireiros e de minerao, que ameaavam o sistema de apossamento preexistente21.

    Alfredo Wagner relata que, tanto no perodo militar como nos anos de transiodemocrtica, o Estado brasileiro tratou as questes relacionadas aos conflitos e a violn-cia no campo, principalmente em rea de fronteira, como parte da tecnocracia estatal.No priorizou efetivamente o controle dos confrontos endmicos do interior da frontei-ra amaznica. Ainda segundo esse autor,

    O descompasso entre a intensificao dos conflitos de terra e o carter irregular e desigual dainterveno governamental tm-se constitudo num trao marcante da estrutura agrria daregio amaznica no decorrer das duas ltimas dcadas. Prevalece neste perodo uma represen-

    20 Martins, Jos de Souza. Fronteira: a degradao do outro nos confins do humano. So Paulo. Hucitec, 1997.21 Almeida, Alfredo Wagner Berno de. O intransitivo da Transio: o Estado, os conflitos agrrios e a violncia naAmaznia. In: Amaznia fronteira agrcola 20 anos depois. Museu Emlio Goeldi, 1991, p. 263.

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    tao oficial algo tecnocrtica dos conflitos, e particularmente da violncia, considerados comofatores inerentes modernizao da agricultura e ao desenvolvimento das foras produtivasnuma regio de fronteira agrcola. Interpreta-se de maneira naturalizada o acirramento dastenses sociais e dos confrontos no endosso tcito concentrao fundiria sob o ditame dafora bruta e da coero. A subjugao pela violncia, de diferentes segmentos camponesesdenominados regionalmente de posseiros e pees, e de diversos grupos indgenas, no obstanteprovocar declaraes pblicas de indignao moral, manifesta-se implicitamente, nos mean-dros desta lgica, como um fato necessrio e peculiar aos processos econmicos e s estrutu-ras polticas de uma situao de fronteira, delineando-se numa constante observvel tanto emperodos explicitamente ditatoriais (1964-85), quanto em conjunturas definidas como de tran-sio democracia (1985-89). Sem conhecer maiores reverses essa tendnciaconcentracionista, de certo modo reproduz, na fronteira, padres culturais intrnsecos for-mao de latifndios tal como verificada em reas de colonizao antiga. O princpio dasubordinao dos camponeses por atos coercitivos e por modalidades diversas de banditismo epistolagem mostra-se historicamente coextensivos consolidao dessa grande propriedadeterritorial fundada num acesso aos meios de produo pela destruio dos sistemas deapossamento preexistente e na adoo de mecanismos de imobilizao, como a peonagem dadvida, que configuram modalidade extrema de represso da fora de trabalho.

    A maioria dos conflitos que envolvem a questo agrria acompanhada pela prti-ca de pistolagem, fenmeno que comeou tambm a integrar o cotidiano de ocupaoda terra. Esse fenmeno recente no Par e na Amaznia, datando de mais ou menostrinta anos. Mas, no s neste aspecto o pistoleiro da Amaznia difere do cangaceiro edo capanga do Nordeste. Ele tem uma origem histrica e social diferente e possui umanatureza tambm prpria.

    O pistoleiro surge na regio para proteger de invaso (por parte de posseiros) asgrandes extenses de terras adquiridas por latifundirios, mas ociosas ou improdutivas.Um pistoleiro pode ser contratado para expulsar camponeses de terras ocupadas, paraassassinar lideranas e sindicalistas, ou ainda para ajudar nas aes policiais de despejode posseiros. Como o contingente policial era, e ainda , insuficiente para executardespejos forados, fazendeiros contrataram pistoleiros para reforar os contingentespoliciais encarregados da expulso.

    Sob o olhar conivente e tolerante do Estado, empresas e grileiros formaram milci-as privadas, a que chamam de vigilncia ou segurana, montadas para garantir aposse e a defesa da terra na Amaznia.22 Assim, estabeleceu-se um compartilhamento de

    22 As estratgias adotadas pelos latifundirios e grileiros para combater as aes dos trabalhadores rurais e defensoresincluem tambm a formao de empresas de segurana clandestinas, com o uso de armamento pesado, sesses detreinamento e ataques a trabalhadores acampados. A pgina da Unio Democrtica Ruralista (UDR) apresentava, emjulho de 2002, um artigo intitulado Segurana Privada na propriedade rural: direito, justificando o armamento defazendeiros para a sua autodefesa.

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    objetivos comuns entre fazendeiros interessados nas terras, autoridades que ignoravama participao das milcias privadas de defesa das fazendas, polticos beneficiados comterras e a pistolagem.

    Mesmo com o processo de redemocratizao do pas, o Estado no conseguiu recu-perar para si o poder de polcia que, informalmente, havia antes delegado ou repartidocom fazendeiros da regio para ajudar a pr ordem nas questes fundirias e nosconflitos delas decorrentes. A origem central da pistolagem na Amaznia clara: decor-re da repartio do poder do Estado com os integrantes, defensores e prepostos do novocapital que se instalou desordenadamente na regio desde os anos de 1970.

    O Estado tolerou, durante vrias dcadas, esta diviso do poder de polcia, igno-rando as denncias da Comisso Pastoral da Terra e de outras organizaes sobre aparticipao de pistoleiros nos contingentes policiais e a formao de milcias privadas.Esta prtica flagrante de violao dos direitos humanos enrazou-se nas relaes sociais epolticas da regio. Hoje, o Estado procura retomar o controle desta situao que enver-gonha a sociedade brasileira, mas tem dificuldade em dominar esta anomalia que deixoucrescer.

    O Par carrega alguns tristes ttulos, como o de campeo dos conflitos de terra e demortes. De fato, nos ltimos dez anos, os nmeros relativos aos conflitos, mortes eameaas de morte so excessivamente elevados, conforme se v na tabela a seguir.

    TABELA 1:CONFLITOS NO PAR 1994-2004

    1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 TOTAL

    Conflito de terras 35 38 63 60 37 86 53 115 110 136 104 837

    Assassinatos 12 14 33 12 12 9 5 8 20 33 15 173

    Ameaas de morte 42 54 24 29 11 36 17 46 78 61 103 501

    Fonte: Cadernos de Conflitos no Campo Comisso Pastoral da Terra, 200423

    Os registros da CPT (Comisso Pastoral da Terra) mostram que, de 1971 a 2004,foram assassinados 772 camponeses e outros defensores de direitos humanos no Par,sendo que a maioria dessas mortes (574 casos) foi registrada na regio sul e sudeste doEstado. Na primeira metade do perodo mencionado (1971-1985) foram registrados

    23 A CPT define como conflitos por terra as aes de resistncia e enfrentamento pela posse, uso e propriedade daterra e pelo acesso a seringais, babauais ou castanhais, quando envolvem posseiros, assentados, remanescentes dequilombos, parceleiros, pequenos arrendatrios, pequenos proprietrios, ocupantes, sem-terra, seringueiros, quebradeirasde coco babau, castanheiros, etc.

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    340 assassinatos em conflitos fundirios. Na segunda metade do perodo (1986-2004)foram vitimados 432 camponeses, demonstrando assim a persistncia no tempo do pa-dro de violncia existente no Par.

    Importante registrar que no decorrer dos mandatos do presidente da RepblicaFernando Henrique Cardoso, ao longo do perodo 1995-2002, segundo dados e regis-tros coletados pela Comisso Pastoral da Terra, foram assassinados 271 trabalhadoresrurais e lideranas, em conflitos relacionados posse da terra em todo o pas. Dessetotal, 113 trabalhadores rurais foram mortos no Estado do Par, na gesto do governa-dor Almir Gabriel, correspondendo a 41,69% dos registros nacionais. Somente no lti-mo ano do perodo (2002) foram assassinados 20 trabalhadores rurais no Par, corres-pondendo a 46,51% do total nacional (43 casos).

    No perodo 1985-1994, o nmero de trabalhadores rurais assassinados no Parcorrespondeu a 39,23% do total nacional dos registros. Ao longo do perodo 1995-2002, registram-se os dois anos de maior participao proporcional do Estado sobre ototal nacional de assassinatos de trabalhadores rurais: 1996 com quase 72% dos casos e2002 com quase 47%. Em nenhum ano entre 1964 e 1994, foram identificados nme-ros proporcionais to elevados como em 1996 e 2002. Esses nmeros indicam clara-mente a continuidade da dinmica de violncia no Par, inclusive com ligeiro incre-mento na participao proporcional sobre o total de assassinatos em termos nacionais.

    Nos dois primeiros anos do governo Lula, esse quadro de violncia no mudou,pois foram 48 assassinatos no Par. A esperana alimentada em torno de uma possvelacelerao da poltica de reforma agrria, provocou um aumento vertiginoso das famli-as em acampamentos e ocupaes de latifndios. A excessiva demora do governo emdesapropriar as terras provocou uma reao violenta dos latifundirios, culminando noassassinato de dezenas de trabalhadores e lideranas populares.

    A ttulo de ilustrao sobre o trgico e crescente padro de violncia no Par, maistrabalhadores rurais foram assassinados no perodo 1995 a 2004 (169 ocorrncias) doque nos primeiros quinze anos de ditadura militar (1964-1979), quando 89 trabalhado-res foram mortos, precisamente os anos que so tradicionalmente considerados os demais intensa represso aos movimentos populares.

    Os dados oficiais so ainda mais estarrecedores. No final do ano de 2002, a Secre-taria Especial de Defesa Social do Estado do Par publicou estudo intitulado Inventriode Registros e Denncias de Mortes Relacionadas com a Posse e Explorao de Terra noEstado do Par 1980-2001. Neste levantamento, os dados referentes ao perodo 1995-2001 indicam o nmero de 328 assassinatos no Par em conflitos pela posse e explora-o da terra. A fonte destes estudos so os registros criminais da Delegacia Especializadaem Conflitos Agrrios da Polcia Civil do Estado.

    Em todos os anos do perodo 1995-2004, o Par foi o Estado com o maior nmerode assassinatos de trabalhadores rurais em conflitos relacionados posse da terra. Nesseperodo, houve ainda 128 tentativas de assassinato e foram registradas 459 ameaas demorte contra trabalhadores rurais e outros defensores dos direitos humanos no Par.

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    Raimundo Deumiro de Lima dos Santos

    Benedito Freire

    Raimundo Pereira do Nascimento

    Dionsio Pereira

    Ednalva Rodrigues Arajo

    Sebastio Alves de Sousa

    Jos Agrcio da Silva

    filhos de Jos Agrcio

    Raimundo Vicente da Silva

    Tereza Ferreira da Silva

    Gilson Jos da Silva

    Francisco de Assis Soledade da Costa

    Ivanilde Maria Prestes Alves

    Genival Soares dos Santos

    Raimundinho

    Maria Joel Dias da Costa

    Jos Soares de Brito

    Antonio Gomes

    Maria do Esprito Santo

    Cordiolino Jos de Andrade

    Geraldo Soares Fernandes

    Tarcisio Feitosa da Silva

    Carmelita Felix da Silva

    Sandra Barbosa Sena

    Maria de Ftima Moreira

    Ccero Pinto da Cruz

    Geraldo Margela de Almeida Filho

    J. L. S. (53 anos)

    Francisco de Assis dos Santos Souza

    Gabriel de Moura

    Pe Amaro Lopes de Souza

    Idalino Nunes Assis

    Adernei Guemaque Leal

    Antonio Ferreira de Almeida Silva

    Raimundo Nonato dos Santos (ndio)

    Raimundo Nonato Costa Silva (Italiano)

    Manoel

    Antonia Melo da Silva

    Claudio Wilson Soares Barbosa

    Jos Claudio Ribeiro da Silva

    Odino Ferreira da Conceio

    Frei Henri des Reziers

    Elias Pereira de Sousa

    Eloina Estevo de Araujo (Maria)

    Deurival Xavier Santiago

    Raimundo Paulino da Silva

    Sebastio Rodrigues de Castro

    Maria Gorete Barradas

    TABELA 2:PESSOAS AMEAADAS DE MORTE NO ESTADO

    Fonte: Comisso Pastoral da Terra (Regional do Par)

    Em termos absolutos e proporcionais, a violncia contra trabalhadores rurais su-planta qualquer referencial nacional. No ano de 1996, 33 trabalhadores rurais foramassassinados no Estado do Par. Este nmero representa 4,79% do nmero total dehomicdios (688 casos) em todo o Estado no mesmo ano. Ainda em 1996, foram aotodo 54 assassinatos de trabalhadores rurais no pas, correspondendo a 0,12% do totaldo nmero de homicdios (42.131 ocorrncias). A proporo do nmero de homicdiosde trabalhadores rurais sobre o total de homicdios foi, no Par, 39 vezes superior mdia brasileira de 1996.

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    Durante o perodo 1995-2004, os assassinatos de trabalhadores rurais passaram aser mais seletivos, visando atingir os principais dirigentes do conjunto dos movimentossociais rurais. O objetivo impedir o fortalecimento das organizaes dos trabalhadoresque lutam pela reforma agrria, pela preservao ambiental e pelos direitos humanos.Os assassinatos de Onalcio Arajo Barros (Fusquinha), em 1998; Jos Dutra da Costa(Dezinho), em 2000; Ademir Alfeu Federicci (Dema), em 2001; Jos Pinheiro Lima(Ded), em 2001; Bartolomeu Morais da Silva (Braslia), em 2002; Ivo Laurindo doCarmo, em 2002; Ribamar Francisco dos Santos, em 2004 e irm Dorothy, em 2005so indicativos precisos do novo padro de violncia contra trabalhadores rurais e defen-sores no Par.

    Ao longo do perodo 1995-2004, a violncia fsica contra trabalhadores rurais seexpandiu fortemente para diversas regies do Estado do Par, no se limitando mais sregies sul e sudeste, tradicional rea de intensos conflitos. Especialmente nas novasreas de expanso da fronteira agrcola, ao longo dos rios Xingu (Altamira e So Flix doXingu) e Curu (Novo Progresso), importantes dirigentes sindicais rurais passaram a sersistematicamente assassinados. As mortes de Bartolomeu Morais da Silva (o Braslia),ocorrida em 2002, de Ademir Alfeu Federicci (o Dema), ocorrida em 2001, e de irmDorothy, em 2005 so representativas desta nova fase do padro de violncia fsicacontra lideranas populares. (Fotos: Foto1, Foto 2, Foto 3)

    Abril Vermelho, 2004, Suldo Par Foto: Joo Laet

    Manifestao na Curva do S, local emque ocorreu o Massacre de Eldorado doCarajs em 17 de abril de 1996.Foto: Joo Laet

    Falta LegendaFoto: Joo Laet

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    3. A PRTICA DO TRABALHO ESCRAVOO Par, lamentavelmente, no desponta no cenrio nacional apenas em assassina-

    tos no campo, mas tambm em uma srie de outros crimes, cometidos contra as pessoase o meio ambiente, como casos de trabalho escravo, grilagem de terra pblica, desmata-mento ilegal, despejos violentos, ameaas de morte, etc. Infelizmente, esse cotidianoviolento tem marcado a vida das populaes pobres e do ecossistema amaznico.

    De acordo com dados da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo,coordenada pela CPT, nos ltimos cinco anos, mais de 300 fazendas foram denunciadaspela prtica do crime de trabalho escravo, envolvendo mais de 10 mil trabalhadores. Emresposta a essas denncias, a fiscalizao mvel do Ministrio do Trabalho conseguiulibertar em torno de 50% desses trabalhadores.

    Mesmo nos ltimos dois anos, apesar da dura fiscalizao, esta triste realidadeainda persiste na maioria das grandes fazendas do Estado. Uma realidade que no inco-moda as autoridades do governo e do Judicirio paraense. A Terra do Meio possui amaior concentrao de uso de trabalho escravo do pas. Estimativas aproximadas daCPT indicam que cerca de 10 mil trabalhadores so mantidos escravizados na regio.

    A situao do trabalho escravo no Par amplamente conhecida e documentada.Repetidamente, nos ltimos anos, a imprensa tem noticiado o drama vivenciado pormilhares de trabalhadores rurais. Os membros da Comisso Interamericana de DireitosHumanos da OEA,24 com base em visita realizada ao Par, constataram que:

    A mesma situao de pobreza e de falta de oportunidades provocadas pela m distribuio deoportunidades de acesso terra e servios, leva explorao, em condies de servido, dostrabalhadores rurais. A Comisso comprovou a existncia no Par de grupos que se aprovei-tam dessas condies para conduzir trabalhadores desse e de outros Estados a situaes desemi-escravido, estabelecendo, ainda, um clima de insegurana e ilegalidade atravs de agres-ses fsicas tanto contra os trabalhadores como contra seus defensores. Sua impunidade estassegurada pela lentido e inoperncia do sistema judicial, bem como pela falta de eficcia dasautoridades para prevenir e punir suas atividades.

    Face compreenso do problema, a Organizao do Estados Americanos determi-nou ao Brasil, adotar legislao e polticas efetivas para pr fim s situaes de trabalhoem condies de servido e das aes de empreiteiros e criminosos que perpetuam suaexistncia. Criar condies especiais de segurana e plena vigncia de direitos aos lderessindicais e trabalhadores rurais, especialmente em reas onde ocorrem mais denncias arespeito da persistncia de trabalho em condies de servido rural. Tais recomenda-es no foram atendidas pelo governo brasileiro.

    24 Comisso Interamericana de Direitos Humanos da Organizao dos Estados Americanos. Relatrio sobre a Situa-o dos Direitos Humanos no Brasil. Washington: Organizao dos Estados Americanos, 1997, p. 133.

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    Exemplo patente do fracasso das iniciativas oficiais na represso ao trabalho escra-vo a taxa de reincidncia constatada no perodo 1995-2002. A Fazenda Brasil Verde(Xinguara) foi denunciada em 1996 (78 trabalhadores escravos) e, no ano seguinte, foiconstatada a reincidncia (49 trabalhadores escravos). A Fazenda Santa Lcia(Curionpolis) denunciada em 1996 (133 trabalhadores escravos) foi novamente de-nunciada em 2002 (25 trabalhadores escravos). Dentre as 117 fazendas denunciadas em2002, 27 eram reincidentes na prtica de trabalho escravo.

    Incluindo o ano de 2002, a Fazenda Forkilha, localizada em Santa Maria das Bar-reiras, pertencente a Jairo Andrade, foi denunciada por reincidncia no uso de trabalhoescravo em dez anos diferentes. A Fazenda Rio Vermelho, localizada em Sapucaia epertencente ao Grupo Quagliato, foi denunciada em nove diferentes anos por reinci-dncia.

    Diante deste quadro, em 2003, o governo federal lanou o Plano Nacional para aErradicao do Trabalho Escravo, uma articulao entre vrias instncias dos PoderesExecutivo e Judicirio e a sociedade civil organizada, que tem como objeto principal aerradicao de todas as formas contemporneas de escravido. Esse Plano apresenta umconjunto de aes que visam melhorias das