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Cap tulo 21 MANEJO ECOLÓGICO E O DESENVOLVIMENTO DE SOCIEDADES COMPLEXAS NA ILHA DE MARAJÓ, BRASIL DfNISE PAHl SCHAAN Oepartdmellto ele ( ¡eH UnlvNClel:\ele f"eler al elo Pará denlse';c hac1n(u> rilar Ci)C1aríi..com Introdu~ao o debate academico sobre o desenvolvimento de sociedades complexas nas terras baíxas sul-americanas tem, historicamente, girado em torno das rela<;6es entre a ecología tropical e as sociedades humanas (Carneiro 1995). A maior divergencia se localiza nas avalia~6es que sao feitas sobre os sistemas de subsistencia tropicais no que tange ao seu potencial para o sustento de popula~6es densas e para prover a base económica necessária para o desenvolvimento de complexidade social. Por um lado, há um grupo de pesquisadores que defende a idéia de que o desenvolvimento cultural na fioresta tropical esteve limitado por fatores ecológicos e que as sociedades etnográficas representam um exemplo de adapta~ao bem-sucedida aos ecossistemas amazónicos. Há o entendimento de que as sociedades aborígines baseavam suas economias em uma agricultura de subsistencia, obtendo proteína a partir de recursos silvestres limitados e sazonais (Gross 1975, Meggers 1985, 1992, 200 la). Neste sentido, tanto a limita<;aoprotéica como a pobreza dos solos amazónicos levaría estas popula~6es a mover suas aldeias constantemente. Taís sístemas de subsistencia e padr6es de assentamento limitariam, portanto, o desenvolvimento de sociedades complexas. Por outro lado, existe um outro grupo menos homogeneo de estudiosos que tem questionado esta visao ecológica a que as vezes chamam determinista, porque entendem que avalia~6es independentes dos fatores ecológicos nao sao confiáveis se nao for levada em considera~ao a habilidade das sociedades aborígines em melhorar solos e mudar a paisagem com o fim de produzir alimentos para suprir suas necessidades (Balée 1989, Carneiro 1985, n.d., Denevan 200 1, Posey & Balée 1989, Smith 1995). Alguns autores argumentam que os sistemas de subsistencia indígenas eram bastante produtivos e que sociedades complexas emergiram de forma autóctone em diversas áreas da bacia Amaz6nica (Carneiro 1998, n.d., Heckenberger et al. 1999, Neves 2003, Roosevelt 1991, 1999). Dentre as evidencias oferecidas para sustentar esta posi~ao, destacam-se

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Cap tulo 21

MANEJO ECOLÓGICO E O DESENVOLVIMENTODE SOCIEDADES COMPLEXASNA ILHA DE MARAJÓ, BRASIL

DfNISE PAHl SCHAAN

Oepartdmellto ele ( ¡eHUnlvNClel:\ele f"eler al elo Pará

denlse';c hac1n(u> rilar Ci)C1aríi..com

Introdu~ao

o debate academico sobre o desenvolvimento de sociedades complexas nas

terras baíxas sul-americanas tem, historicamente, girado em torno das rela<;6es entre a

ecología tropical e as sociedades humanas (Carneiro 1995). A maior divergencia se localiza

nas avalia~6es que sao feitas sobre os sistemas de subsistencia tropicais no que tange ao

seu potencial para o sustento de popula~6es densas e para prover a base económica

necessária para o desenvolvimento de complexidade social.

Por um lado, há um grupo de pesquisadores que defende a idéia de que o

desenvolvimento cultural na fioresta tropical esteve limitado por fatores ecológicos e que

as sociedades etnográficas representam um exemplo de adapta~ao bem-sucedida aos

ecossistemas amazónicos. Há o entendimento de que as sociedades aborígines baseavam

suas economias em uma agricultura de subsistencia, obtendo proteína a partir de recursos

silvestres limitados e sazonais (Gross 1975, Meggers 1985, 1992, 200 la). Neste sentido,

tanto a limita<;aoprotéica como a pobreza dos solos amazónicos levaría estas popula~6es

a mover suas aldeias constantemente. Taís sístemas de subsistencia e padr6es de

assentamento limitariam, portanto, o desenvolvimento de sociedades complexas.

Por outro lado, existe um outro grupo menos homogeneo de estudiosos que

tem questionado esta visao ecológica a que as vezes chamam determinista, porque

entendem que avalia~6es independentes dos fatores ecológicos nao sao confiáveis se nao

for levada em considera~ao a habilidade das sociedades aborígines em melhorar solos e

mudar a paisagem com o fim de produzir alimentos para suprir suas necessidades (Balée

1989, Carneiro 1985, n.d., Denevan 200 1, Posey & Balée 1989, Smith 1995). Alguns

autores argumentam que os sistemas de subsistencia indígenas eram bastante produtivos

e que sociedades complexas emergiram de forma autóctone em diversas áreas da bacia

Amaz6nica (Carneiro 1998, n.d., Heckenberger et al. 1999, Neves 2003, Roosevelt

1991, 1999). Dentre as evidencias oferecidas para sustentar esta posi~ao, destacam-se

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os solos de terra preta, frequentemente associados a sítios arqueológicos por toda a

regiáo, e que tem sido considerados por alguns autores como prova da capacidade das

sociedades pré-colombianas de alterar solos e praticar uma agricultura intensiva (Lehmann

et al, 2003).

Apesar das divergencias, parece claro que ambas as abordagens tem em comum

a idéia de que uma agricultura altamente produtiva teria sido necessária para alimentar

popula~óes densas, assim como para gerar um excedente que pudesse financiar institui~óes

sociopolíticas complexas.

POI' esta razáo, um dos desafios que os arqueólogos tem encontrado é o de explicar

o desenvolvimento de complexidade social nas savanas sazonalmente alagadas da IIha de

Marajó, onde se encontram algunsdos mais pobres e menos adequados solos para agricultura

em toda a bacia Amaz6nica (Meggers 200 Ib, OEA 1974, Schaan 2004, Sombroek 1966).

Neste trabalho, apresentamos um modelo, baseado em dados ecológicos,

etnológicos e arqueológicos, para explicar a emergencia de complexidade social na IIha

de Marajó, com base em uma economia de pesca intensiva. Sugerimos ainda que a

intensifica~áo da captura de recursos aquáticos pode ter estado na base do desenvolvimento

de cacicados em toda a bacia Amaz6nica no período que antecedeu a conquista, em vez

de uma agricultura intensiva'. Entendemos que as terras pretas sáo, em sua maioria,

resultado do descarte de matéria organica produzida por sociedades pesque iras e coleto ras

e que outras classes de dados seriam necessárias para provar que as terras pretas teriam

sido solos intencionalmente modificados para agricultura.

A IIha de Marajó

A IIha de Marajó é parte de um arquipélago localizado no delta do rio Amazonas, ao

norte da América do Sul, lago abaixo da linha do Equador. Tem uma área de cerca de

50.000 km2. A parte leste da Ilha, de origem Holocenica, com 23046 km2 em área, é

caracterizada pela presen~a predominante de savanas baixas e gramíneas (Figura 1), onde

as maiores eleva~óes sao os sítios arqueológicos, localmente chamados de tesos (Figura 2).

A parte sudoeste da Ilha, ao contrário, é caracterizada principalmente pela presen~a de

florestas de terra firme, apesar de haver aí também uma diversidade ecológica significativa.

O clima é marcado por duas esta~óes bem-definidas, um inverno chuvoso e um

verao seco. As savanas apresentam solos argilosos, com capacidad e de infiltra~ao limitada,

que permanece m alagados e sao severamente lixiviados durante os seis meses de inverno.

Ao contrário, no verao, o solo se torna extremamente dissecado, argiloso e compacto,

A importancia dos recursos aquáticos para o desenvolvlmento cultural na várzea amaz6nICa fOI por divel'sas vezes enfatizada

por Lathrap (1970, 1973) e Carneiro (1970, 1998, n.d.).

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Figura I

Principais ecossistemas presentes na Ilha de Marajó

Figura 2

O sitio PA-p-21: Teso dos Bichos destaca-se sobre a planície, foto de Denise Schaan

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formando fendas profundas - as chamadas terroadas - que dao a paisagem um ar de

deserto. A ilha tem recursos aquáticos e palmeiras em abundancia, especialmente buriti

(Mauritia flexuosa) e ac;aí (Euterpe oleracea) que sao exploradas comercialmente. A

economia atual centra-se na criac;ao de gado bufalino e bovino, tendo a pesca uma

importancia secundária e sazona!.

Figura 3

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Pesquisas Anteriores

Pesquisasantenor-es haviarn estabelecido que a fase MaraJoarada Tradi<;:aoPoIicr-órnlca

Amazónica representana urna sociedade complexa que teria durado de AD. 400 a 1.300

(Meggers & Danon 1988, Meggers & Evans i 957, Roosevelt 1991). Complexidade

sociopolítica é sugerida por características tais como a constru<:;aode aterros para moradia e

cemitério, agrupamento e hierarquia entre os aterros definida pela ál'ea, altura e tipo de

cultura matenal, existenCia de ceramica cerimonial extremamente elaborada (Figura 3),

sugerindo trabalho especializado, e a plesen<:;ade objetos líticos que indicam trocas a longa

distancia, devido a ausencia de rochas na ilha (Meggers & Evans 1957) Entretanto, os autores

discordam quanto a interpretas;ao destas características, quanto a origem desta sociedade,

sua base económica, suas formas de organizas;ao soclopolítica e demografía.

Por um lado, Meggers & Evans 1957 explicaram o aparecimento de sociedades

complexas em Marajó corno resultado de difusao. Chegando a foz do Amazonas com

urna cultura altamente desenvolvida, populas;oes das terras altasteriam tido que adaptarem-

se as condi<;:oeslocais, sobrevivendo de recursos silvestres, tais corno o amido de palmeira

(Meggers 2.00 lb). Desta maneira, algumas das evidencias para complexidade social, tais

corno a construs;ao de aterros e a produS;ao de ceramica altamente elaborada foram

interpretadas corno tras;osculturais tl'azidos dos locais de ongem. Com o tempo, esta cultura

teria entrado em deciínio, urna vez que nao teria podido manter o mesmo nível de

complexidade ou evoluir sem urna agricultura altamente produtiva e permanente.

Roosevelt 1987, por outro lado, inicialmente propós que Marajó teria solos férteis e

que o cultivo de milho teria proporcionado as condis;oes económicas necessárias para a

emergencia de urna chefia centralizada. Entretanto, no seu estudo de um aterro Marajoara

(SítioTesodos Bichos), Roosevelt 1991 nao encontrou evidencias para o cultivo de milho, mas

uma economia baseada na pesca sazonal e coleta. Corno resultado, Roosevelt 1999 propós

um modelo diferente para dar conta das evidencias de complexidade social. Observando as

similaridadesem culturd material, padroes de assentamento e práticasfunerárias conhecidas para

váriosdos sítiosdafaseMarajoara, Roosevelt concluiu que todos os aterros seriam funcionalmente

similarese que associedades Marajoara nao eram centralizadaseconómica ou politicamente. Ao

ignorar 05 dados existentes sobre hierarquia de assentamentos apresentados por pesquisas

anteriores (Hilbert 1952.,Meggers & Evans 1957, Simoes 1967, Simoes & Figueiredo 1965),

e ao mesmo tempo considerar que realmente nao teria havido uma agricultura permanente na

IIha, Roosevelt 1999 pmpós que o conceito de "heterarquia" (Crumley 1987, 1995) poderia

melhor explicar a organizas;aopolítica dassociedades MaraJoara.

lodos estes trabalhos, apesar de terem contribuíudo enormemente para nosso

conhecimento da fase Mal-aJoara,nao explicaram de forma convincente o surgimento de

sociedades complexas, suasformas organizativas e suaevoluS;aocronológica Com o objetivo

de preencher esta lacunano conhecrmento realizamos um extenso levantamento e escavas;oes

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em sítios arqueológicos da regiao do alto rio Anajás, Ilha de Marajó (Figura 4). Os resultadosdestas pesquisas, discutidos em detalhe na Tese de Doutorado intitulada "The CamutinsChiefdom: Rise and Development ofSocial Complexity on Marajó Island" (Schaan 2004) sao

aqui sumarizados.

Um Modelo Ecológico-Económico

Sabe-se através de pesquisas anteriores que a iconografiafunerária e os conjuntos cerfunicosvariam singincativamente entre os sitiosda fase Marajoara (Magalis 1975, Palmatary 1950, Penna1885, Rooseveh: 1991 , Schaan 200 1).Os sitios sao compostos por grupos de aterras, em geralum ou dais aterras cerimoniais e diversos outros aterras para habitac;áo(Meggers & Evans 1957,Simóes 1967). Apesar dos estudiosos terem considerado as sociedades Marajoara como umaformac;áosocialúnica, os dados indicamque nao haveria apenas um, mas diversos cacicados na Ilha.

A localizac;áodos aterras, próximos a lagose cabeceiras de riosé bastante sugestivasobre ostipos de recursos que eram láexplorados, diferindo, neste aspecto, dos sitiosdas fases anteriores.Estas sao áreas de ah:aprodutividade de recursos aquáticos que hoje sao manejados e exploradospelas popula<;óesnativas locais.Durante a estac;áochuvosa, cerca de 70% da área de savannas (oucampo) ncam alagadas (OEA 1974), conectando os diversos rios e formando grandes lagos. Issoocasiona a dispersao das popula<;áesde peixes, que se alimentam da vegetac;áoaquática e de frutosque caem na água ou que se tomam acessíveisdevido a proximidade dos galhosdas árvores durante

Figura 4Localiza<;ao de sítios arqueológicos e área da pesquisa na Ilha de MaraJó

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asenchentes; enfim, toda a área de campos toma-se extremamente propícia paraa reprodu<;áodepeb<es(Smith2002).Ao final da esta<;áochuvosa, quando aságuascome<;am a baixar, quantidades

impressionantes de peixes sáo retidas nas áreas mais profundas em pequenos rios e lagossazonais. Atualmente, a popula<;áo aproveita-se para optimizar a coleta de peixes construindo

barragens, fechando os rios com redes ou cercas removíveis, construindo currais, ouenvenenando a água com "timbó" (Serjania fuscifolia).

Observando práticasatuaisde manejo, é possívelpropor a hip6tese de que popula<;áespré-coloniaisteriam migrado sazonalmente paraestasáreasde concentra<;áode recursos aquáticos,onde

poderiam aumentar a produ<;áo de alimentos usando técnicas simples tais como a de envenenar

pequenos lagos,e encurralar peixes em rios secundários, utilizando cercas removíveis e redes de

pesca. Um meio mais complexo para manejo de recursos, no entanto, seria a escava<;áode lagosartificiaisque poderiam reter quantidades massivasde peixes durante amaré baixa e meses sem

chuvas (FiguraS).Apesar das pesquisasanteriores náo terem se preocupado com asmodifica<;áesda paisagemefetuadasno passado, há informa<;áesde que diversos aterros teriam sido construídos

dentro do leito de pequenos rios, nestes casosfuncionando inicialmente como barragens. A1ém

disso, pesquisas anteriores freqüentemente relatam a existencia de "baixas" junto aos tesos, de

Figura 5Modelo hipotético para o manejo de recursos aquáticos

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onde teria sido retirado sedimento para sua constru\ao (Derby 1879). É razoável supor, portanto,

que a constru\ao de aterros nao teria sído uma estratégia para escapar das cheias sazonais, mas era

de fato parte de um sistema de manejo hidráulico.

Portanto, avaliando a ecología dos local s onde os sítios da fase MaraJOara se Iocalizam,

Juntamente com dados que indicam a pesca intensiva como fonte alimentar (Roosevelt 1991),

além das práticas de subsistencia atuais, parece razoável supor que as popular;6es MaraJoara

teriam desenvolvido uma economia baseada na explora\ao intensiva de recursos aquáticos,

em vez de agricultura. Vale ressaltar que os sítios cerimoniais da fase MaraJoara somente

apresentam tel-ra preta em áreas reduzidas, onde esta parece estar assoClada ao descarte de

matéria organica (algumas áreas de cemitério e áreas domésticas) e que os sítios-habltar;ao,

bem menores em tamanho, apresentam terra preta sempre associada a fragmentos ceramicos.

De qualquer maneira, parece-nos que a razao maior para o nao-desenvolvimento

de uma agricultura intensiva nao seria a pobreza dos solos, mas a abundancia dos recursos

aquáticos, que proporcionavam uma fonte de alimentos mais confiável, que poderia ser

explorada com baixo investimento de trabalho.

O modelo ecológico-econ6mico que apresentamos prop6e que a localizar;ao dos sítios

da fase Marajoara pode ser prevista com base na localizar;ao de recursos aquáticos. De acordo com

esse modelo, cacicados surgiram nas cabeceiras dos rios que drenam as savanas, onde o manejo

hidráulico era necessário para garantir suprimentos de água durante todo o ano e controlar recursos

aquáticos. Este sistema de manejo poderia ter emergido inicialmente com base na cooperar;ao entre

diversas famnias (e.g., Stanish 2004), sendo compreendido por uma série de construr;6es de terra

interconectadas, tais como barragens, lagos, canais, aterros e caminhos elevados para ligar;ao entre

os aterros. Com o tempo, houve oportunidade para que algumas famOiascontrolassem os recursos,

restringindo ou impondo condir;6es para o acesso de novas famílias.

Logo, os aterros cerimoniais, assim controlados por uma elite, estariam localizados perto

dos principais lagos para retenr;ao de recursos aquáticos, implicando controle religioso e político

sobre o sistema de subsistencia, movimentar;ao de excedente e trabalho. De acordo com este

modelo, estratificar;ao social teria surgido quando grupos familiares locais obtiveram controle sobre

o excedente produzido pela intensifica~ao da economia de pesca.

As condi~6es que entendemos necessárias para a forma~ao dos cacicados MaraJOara sao

aquelas especificadas por Carneiro 1981, 1998, ou seJa,concentra~ao de recursos, circunscri~ao

social e ambiental, e pressao populacionaL A idéia de que cooperar;ao esteve na origem de uma

intensifica~ao da produr;ao de alimentos encontra suporte no modelo que Stanish 2004, desenvolve

para a evolu~ao de chefaturas. Coopera~ao seria uma estratégia vantaJosa por levar a um aumento

da produ~ao de recursos alimentares sem aumento no número de horas trabalhadas. Dentro

deste modelo, considera-se importante levar em conta a circular;ao de excedente para entender

como as novas institui¡;6es sociais sao criadas e mantidas (Isaac 1975, 1988, Saitta & Keene

1990, Stanish 2004).

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As eVidencias arqueológicas que sustentam este modelo seriam as construc;;óes de aterras

em áreas ótimas para a captura de recursos aquáticos, e a construc;;ao nestes locais de lagos e

barragens associadas com aterros para habitac;;aoe cerim6nias. A Iocalizac;;aodos aterros cerimoniais

Junto aos reservatórios para peixes indicaria o controle religioso e político sobre a economia.

o Cacicada dos Camutins

Para testar o modelo acima descrito e melhor entender as instituic;;óes sociopolíticas

que caracterizaram um dos cacicados MaraJoara, selecionamos para estudo um sítio

arqueológico composto por 34 aterros localizados ao longo do rio Camutlns, um tl'ibutário

do alto rio AnaJás. A pesquisa conslstiu em um estudo de arqueologia da paisagem,

realizando-se o mapeamento dos aterros e de todas as feic;;óes antrópicas do entorno,

combinado com o estudo da distribuic;;ao espacial da cultura material e das áreas de atividade

nos dois maiores aterros do conjunto. Como resultado, relacionou-se os locais de moradia,

cerim6nias e festas com as transformac;;óes antrópicas da paisagem e, ao mesmo tempo,

estudou-se as estruturas internas dos aterras cerimoniais, de forma a entender aqueles

indicadores de complexidade social considerados críticos para o estudo de cacicados -

especializac;;ao e controle sobre a circulac;;ao de bens de prestígio, hierarquia, centralizac;;ao

política, legitimidade (ideologia, religiao), militarizac;;ao, entre outros (Earle 1991).

De acordo com as feic;;óesculturais e estudo dos artefatos, os tesos foram c1assificados

em dois tipos funcionalmente diferentes, seguindo uma distinc;;aojá proposta anteriormente por

Meggers & Evans 19572 Foram identificados tesos com ceramica cerimonial e enterramentos,

que foram interpretados corno locais para moradia da elite e realizac;;aode cerim6nias e festas

comunais. Foram também identificados tesos com pouca ou nenhuma ocorrencia de ceramica

decorada, que parece m ter sido locais para a residencia da populac;;ao comum.

O estudo da distribuic;;ao espacial dos assentamentos indicou que os aterras estavam

dispostos em tres grupos espacialmente segregados ao longo do rio, nos cursos inferior (4

aterras), médio (15 aterros) e superior (15 aterras). Os maiores aterros da elite se localizavam

no curso inferior do rio (3 aterras cermoniais e um habitac;;ao), enquanto que no alto rio

Camutins foram identificados 3 tesos da elite e 12 tesos-habitac;;ao. No curso médio nenhum dos

15 aterras apresentou ceramica decorada em praporc;;óes significativas,o que parece indicar que

estes compunham urna comunidade da populac;;ao comum. A ocorrencia dos maiores aterras

cerimoniais no curso inferior do rio parece assinalar que lá se localizariam o núcleo cerimonial epolítico mais importante (Figura 6).

Meggers e tVJr15 dlstlngulr"arn entre tesos-hJ.oita,J.o e tesos- cerniténo, baseados nas propon;oes de eel-árnica decorada

encontradas f'm (JeJa local. Neste tr'abalho o,; tesoscerrllkno sao considerados corno l"esldelKld da elite e e5pa~o cel-irnonlJ.l,

enquanto os teso,; -hahlta~jo tellam Sido ocupados pela popula</Io cornum

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· a:e-~~~~ao~~bami::lenbkadaspn:)Xlmas aos aterros cenÍ770nJáls H- /, H- /7 e /'1-/6, a tnalor de/as representando a rerT7Ofáo

de pe/o menos 27000 1713 de sedimentos. Um dos aterras do conjunto. M-/6. parece ter

sido originalmente construí do como uma barragem. acabando por desviar o curso do rio(Figura 7). Apesar de outras barragens, po~os e escava~óes de lagos e canais terem sido

identificados também nos outras grupos de aterras nos cursos médio e superior do rio, o

tamanho tanto dos aterras quanto das estruturas eram significativamente menores.

Algumas regras hipotéticas foram pensadas para explicar a distribuifáo espacialdos tesos, de acordo com sua funfáo dentro de sistema de assentamento. Observa-se

que os tesos da elite estao localizados nas duas extremidades. Enquanto que os tesos daelrte no curso inferior do rio estáo localizados próximos asmaiares escava~óesde lagos,o que

pode signfiicar controle sobre a economia pesqueira, a localiza~áo de tesos da elite no cursosuperior do río podem estar relacionados a uma estratégiageopolftica. Uma vez que o controle

do curso superior do rio poderia desafiar o manejo de recursos no curso inferior do rio, seria

importante ter um bra~o da elite lá.Vilas sem estruturas cerimoniais estariam localizadas no

médio curso do rio.

Figura 6Distribuic;ao dos tesos arqueológicos ao

langa do rio Camutins

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Manejo ecológico e o desenvolvimento de sociedades 359

Náo foi encontrada nenhuma correla<;áo entre a área e altura dos tesos. A1gunstesoshabita<;áosáo mesmo maisaltos do que tesos da elite. Neste caso,a altura pode estar indicandotempo de ocupa<;áoao invésde importancia polftica.A rela<;áoentre área e localiza<;áodos tesoslocalizados no médio curso do rio mostra que os aterros no centro desta concentra<;áo sáomaiores tanto em altura quanto área, o que parece sugerir serem estesos maisantigos e que, amedida que a popula<;áocrescia,novos aterros iam sendo construídos nasperiferias,expandindoo assentamento para os dois lados.

A própria forma dos aterros parece indicar esta possibilidade. Os tesos náo tem

uma plataforma muito extensa, mas duas ou tres plataformas em níveis diferentes. Algunsque sáo percebidos como apenas um aterro sáo na verdade dois aterros conectados por

uma passagem elevada de terra. Isto sugere que quando a popula<;áo crescia um novoaterro era construído ao lado do primeiro. Também sugere que os aterros náo foram

construídos de uma só vez, mas em vários episódios. A área plana no topo dos aterrosgeralmente náo é maior do que 20 metros, o que sugere a existencia de apenas uma casa

grande comunal, que, de acordo com padróes etnográficos poderia tertido uma área de 20 por

30 metros, abrigando de tres a 12famOiasnucleares. Considerando a área disponível no topodos aterros, sugere-se que o assentamento poderia tertido um mínimo de 28 e um máximo de

43 casas.Multiplicando estes números por uma média populacional por casa,calcula-se umapopula<;áohipotética de 2000 pessoas para os 34 aterros que compóe o assentamento (verdetalhes em Schaan 2004: 170- 171).

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!ZZ3 '- de/Cerime>niol

c::J Hobito.;ao

C:J Escovo~oo+p.;o Figura 7Núcleocerimonialdo sítioPA-jO-15:

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360 Denise Pahl Schaan

Estratigrafia dos Aterros Cerimoniais

Escava<;6es nos dois aterros maiores do assentamento (M-I e M-17) foram realizadas

com o objetivo de entender os processos de constru<;áo. assim como estudar as atividades

que caracterizaram cada um destes sítios e seu papel na economia política. Em M-l. o

estudo consistiu na limpeza de perfis em barrancos erodidos. e também em escava<;6es

realizadas na extremidade oeste do aterro, junto ao rio. a única parte do teso ainda

completamente preservada depois de anos de retirada indevida de material arqueológico.A estratigrafla mostrou que os tesos foram construídos através da adi<;áode areia tazida

de áreas adjacentes, indicando que a escava<;áo de lagos e constru<;áo de barragens eram

atividades ligadas a constru<;áo das plataformas de terra para moradia. Algumas estruturas

identificadas no processo de constru<;áo mostram que a areia era eventualmente encapsulada

por camadas compostas por fragmentos de cerámica e argila. que eram queimadas no local para

adquirir resistencia e prevenir contra erosao. Camadas espessas de areia depositadas em períodos

curtos de tempo foram interpretadas como um esfor<;o maior relacionado as escava<;6es de

lagos para reten<;áo de recursos aquáticos. enquanto que camadas finas representam manuten<;áo

anual do sistema. Camadas com carváo e argila que imada. por outro lado. foram interpretadascomo pisos de ocupa<;áo. Em dois perfis, quatro estratos contendo matéria organica carbonizada,

separados por camadas de areia de diferentes espessuras foram datadas. o que permitiu perceber

Figura 8Áreas escavadas e interpreta<;áo deáreas de atividade no teso Belém. sítioPA-JO-15: Camutins.

M-17 _ Topo~rcfia e Locolizo~Oo D¡stribuj~Oo E.paciol do, Áreas de •.tividode

do Esco"'o~6es

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Page 13: MANEJO ECOLÓGICO E O DESENVOLVIMENTO DE … · assentamento limitariam, portanto, o desenvolvimento de sociedades complexas. Por outro lado, existe um outro grupo menos homogeneo

que a velocidad e de corlstrLJc:;aodo aterro val~ioucronologicamente. O trabalho permitiu propor

uma cronologia para a cOrlstruc;ao de M-l. Segundo esta hipótese, tena havldo uma ocupac;ao

inicial, nao estudada por esta pesquisa, que pode remontar aAD 400, que é uma data iniCialjá

aceita para outros aten'os localizados na área sudeste da Ilha (Roosevelt 199 1). Houve uma

construc;ao mais intensa antes (provavelmente desde AD 400) e em torno de AD 700, pois é

neste período que tres metros de sedimentos foram adicionados ao topo do aterro. Isto indica

que o sistema de manelo hidráulico estava operando plenamente nesta época. /l.pósAD 850, M-

I cresceLJ a um ritmo menos aceiel-ado até pelo menos AD I I50

o Estudo de Áreas de Atividade

Em M-17, áreas domésticas, cer~imoniais e áreas ao ar livre foram estudadas Esse

aterro tem IJma forma alongada, e sua plataforma superior tem 25 metros de largura por

80 metros de comprimento (Figura 8). A área doméstica foi identificada pela presenc;a de

camadas bem preservadas na plataforma sul do teso, onde havia um fogao, com poucos

artefatos, próximo a uma ál~ea de descarte, com terra preta e remanescentes de artefatos

domésticos. Urna área com restos de produc;ao ceramica e ausencia de pisos de ocupac;ao

foi interpretada como urna área ao al~livre Outra área contendo sepultamentos e fogües

relativamente bem preservados foi interpretada como um templo cerimonial.

Foi constatado que a estratigrafía de M-17 era similar a de M-l. Os tres metros

superiores de M-17 foram também construídos a partir de AD 700, o que o coloca

contemporaneo a M- I No entanto, M-17 fOlam encontradas várias estruturas de argila

queimada, em forma de U, que parece m ter sido fogües de uso ritual, que nao

encontramos em M-l. Isso pode ser c:reditado, no entanto, a um problema de amostragem,

tendo em vista que as áreas escavadas er¡¡ M-I eram aquelas que restaram do teso após

décadas de saques de material arqueológico.

Os 25 m2 escavados na área de sepultamentos em M-17 revelaram a presenc;a de

24 urnas funerárias distribuídas em pelo menos quatro estratos distintos. As urnas continham

ossos humanos, em diferentes estados de preserva<;ao e alguns poucos itens nao perecíveis,

tais como tangas, pequenos vasos, pratos e objetos líticos. Seis urnas continham tangas e,

portanto, estes foram interpretados como sepultamentos femininos.

O estudo das práticas funerárias revelou mudan<;as diacrónicas importantes. Os

enterramentos mais antigos eram primários, enquanto que aqueles mais recentes foram

enterramentos secundários ou uemac;6es. Objetos líticos, denotando tracas a langa

distancia, foram encontrados somente nos dais enterramentos mais antigos. Análises

preliminares dos remanescentes humanos realizados pela Dra. Sheila Mendon<;a, da

FIOCRUZ, indicam que o sepultamento mais antigo, que estava associado com um machado

de basalto e um colar de cantas líticas, era de uma crianc;a de cerca de 10 anos de ¡dade. Outros

esqueletos eram adultos jovens, sem patologlas. Foi também identificado padrao de desgaste

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362 Denisc Pahl Schailn

dentário (algo que já havia sido mencionado por pesquisas anteriores de Meggers & Evans e

Greene & Roosevelt) compatíveis com a ingestao de alimentos abrasivos. As análises ainda nao

foram completadas.

No terceiro período de uso da área de sepultamentos, as urnas funerárias aparecern

dispersas, reviradas, quebradas, corn seu conteúdo rernexido. Isto foi interpretado como conflito

e posterior abandono da área. Após certo período o local foi novamente usado para sepultarnentos.

Algumas das urnas mais recentes sao urnas grandes e bem elaboradas, o que nao

corrobora a tese defendida por alguns autores (Palmatary 1950) de que teria havido urna

decadencia nas práticas funerárias, com o uso de urnas menores e sem decora~ao nos

níveis superiores. Um dos sepultarnentos mais recentes foi datado em AD 1000, o que

significa que um pouco depois desta data a ocupa~ao do teso foi descontinuada.

Dados obtidos a partir do estudo das fei~6es culturais nao sao conclusivos sobre

uma rela<;ao hierárquica entre M-I e M-17. Os dados indicam, ao contrário, que atividades

similares eram realizadas em ambos os aterros. Tanto os métodos de constru~ao, observados

através da estratigrafia, assim como as estruturas funerárias (as de M-I descritas em Meggers

& Evans 1957) eram semelhantes.

Análise de Artefatos

Foi realizada análise dos artefatos coletados em ambos os aterros com o objetivo de

iden-tificar asatividades realizadas em cada local para que se pudesse avaliar padr6es de hierarquia.

Investigou-se também aspectos da produ~ao cerarnica, tendo sido encontradas evidencias para

produ~ao ceramica nos dois aterros, indicando que tanto a ceramica doméstica como a cerimonial

era a1iproduzida. Estasevidencias consistem na matéria-prima, ou seja, argila trabalhada, artefatos

inacabados, restos de roletes e suporte de argila para a forma<;ao de vasos.

A área de grande ocorrencia de materiais relacionados a produ¡,;ao ce ram ica em M-17

estava localizada no topo do teso entre a casae a área de enterramentos. A presen<;ade brinquedos

de crian<;a(miniaturas mal-acabadas de argila)e a proximldade ao contexto doméstico sugere também

um contexto doméstico para a produ<;iio ceramica. Depósitos de argilaforam identificados ao lango

das margens do rio e em áreas escavadas para o sistema de manejo hidráulico.

Foi realizado um experimento com produ~ao ceramica usando material local e

reproduzindo tecnologia pré-colonial. A colora¡,;ao da ceramica queimada, tanto no seu núcleo

quanto no engobo foram observados ser igual aos exemplares arqueológicos, sugerindo a

origem local da argila. Dadas as condi~6es climáticas Iocais e tempo necessário para secagern é

razoável supor que a ceramica era produzida apenas nos meses sem chuva. Logo, a produ¡,;ao

ceramica era uma atividade sazona!.

A análise da ceramica mostrou que a ceramica decorada ocorria na propor¡,;ao de lOa

30% nos dois tesos. As maiores propor<;6es da ceramica decorada ocorreram na área de

sepultamentos em M-17. Comparando M-I e M-17 com respeito as propor<;6es dos tipos

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rv1¡HiCjO('(ologl(O e o dC5envolv!lncnto de sOCiedades 363

cerámicos, foi observado que em M-17 a cerámica decorada era mais freqüente e tinha tipos

decorativos mais variados, Ambos os aterras tinham grandes prapon;;6es de cerámica utilitária,

indicando que as atividades domésticas eram importantes nos dois Iocais,

Com base nas amostras de fragmentos de ambos os aterras, foi concebida uma tipologia

cerámica com o objetivo de investigar os tipos de atividades relacionadas com a produ¡,;ao de

alimentos, festas e sua importáncia relativa na vida social. Foram concebidas a partir da amostra tres

categorias principais de vasilhas: 1)vasilhas para pracessamentos de alimentos; 2) vasilhas para

servir; e 3) vasilhas para bebidas e estocagem,

Comparando M-I e M-17 observou-se que as propor¡,;6es de cada categoria de

vasilhas nos dois aterras eram bastante semelhantes, o que indica que o processamento de

alimentos, festas e estocagem acontecia nos dois tesos, Entetanto, há varia¡,;6es dentro das

categorias e percebe-se preferencias locais quanto a formas e tamanhos, ainda que a maioria

dos tipos de vasilhas ocorriam nos dois aterras. Estas varia¡,;6es foram interpretadas como

possível especializa¡,;ao em certas atividades e varia¡,;ao entre os pradutores e preferencias

locais, já que as vasilhas eram produzidas localmente, Dada a proximidade dos dois aterras

é possível que as atividades, quando diferentes, tenham sido complementares,

A análise de outras objetos de ceramica, tais como bancos, estatuetas e tangas, mostrou

também diferen~as sutis entre os dois aterras, as quais também nao puderam ser correlacionadas

com hierarquia, Por exemplo, os banquinhos ceramicos de M-I sao menores em média do

que os de M-17, mas mais frequentemente decorados. Os banquinhos cerámicos de M-17

sao maiores em média, mas gel-almente nao-decorados, Uma vez que nao é possível avaliar

com certeza o significado social do tamanho ou decora~ao, e a amostra é pequena, nao é

possível concluir se estas observa~6es sao de fato relevantes para avalia~ao de hierarquia,

Os fragmentos de estatuetas coletadas de quatro dos aterros cerimoniais mostraram

uma variabilidade que é bastante comum em cole~6es museológicas, Os dados sugerem

que rituais envolvendo estatuetas eram realizados em todos os tesos da elite e nao apenas

nos dois que compreendem o núcleo cerimonial. Em M-17 a maior parte dos fragmentos de

estatuetas foi encontrada na área de sepultamentos, o que sugere seu uso ritual. No entanto,

estes fragmentos nao estavam associados a nenhum sepultamento em particular,

Fragmentos de tangas foram encontrados somente nos dois aterros maiores do núcleo

cerimonial, M-I e M- 17, estado ausentes dos tesos cerimoniais do curso superior do rio, As

tangas vermelhas eram as mais populares tanto em M-I como em M-17 e perfizeram cerca de

70% de todos os fragmentos de tangas coletados, Entretanto, observando-se a rela~ao entre

tangas decoradas com desenhos (do tipo Joanes Pintado) e tangas vermelhas observou-se a

maior freqüencia de tangas Joanes Pintado em M-17 do que em M-I , Esses dados parecem

indicar diferen~as importantes na composi~ao da popula¡,;ao de mulheres que habitavam cada

um desses aterras,

Foram encontradas diversas evidencias que indicam a realiza~o de festas nos dois aterros,

incluindo vasos grandes, vasos com formatos pouco comuns, pratos decorados e objetos rituais.Além

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dasvasilhasdecoradas,as propon;6es significativasde um tipo de vaso nao-decorado identificado

como uma vasilha para triturar alimentos chamam a atenr;;ao Esta pode ter sido uma vasilha

usadapara preparar amido e talvez produzir bebidasalcoólicéLspar-afestas

A análise dos artefatos demonstrou que atividades tais como preparo de alimentos,

atividades domésticas, festas e cerimonias ocorriam nos dois aterros Apesar de que cada

um destes aterros deve ter' desempenhado um papel diferente, mas complementar na

economia política, este papel nao pode ser determinado pela anállse de artefatos

Constatou-seque a iconografiafuneráriaem M-17 era bastantehomogenea, especialmente

durante o segundo período de uso da área de cemitério, quando quasetodos os enterramentos

consistiam-sede vasosglobularescom pintura em negativovermelha sobre branco, representado

uma face humana estilizadacom um grande sorriso.

A uniformidade destes vasos parece sugerir que membros de uma mesma família

ou linhagem foram enterrados naquele sitio Juntamente com a falta de uma enfase em

identidades individuais, a iconografia refon;a e idéia de que um grupo ou Ilnhagem estava

no poder e que este poder nao era baseado somente em um indlvíduo.

Conclusóes

Paraconcluir, a pesquisa foi capaz de identificar felr;;6esda paisagem relacionadas a um

sistema de manejo hidráulico ao longo do rio Camutins, que estavafuncionando plenamente

em AD 700. Consistia de uma barragem e dois lagosconectados ao rio, com capaCidade para

reter recursos aquáticos, Os dois aterros maiores do assentamento, contendo evidencias

para festas, culto dos antepassados e atividades domésticas estavam localizados perto dos

viveiros de peixes, indicando controle sobre os recursos, Estecontrole envolvia a manipular;;ao

de uma ideologia religiosa, assim como a capacidade de reunir mao-de-obra para trabalhar na

manutenr;;ao do sistema de retenr;;aode peixes,

Os conjuntos de artefatos sugerem que uma fonte principal de amido era usada, que

pode ter sido obtida de palmeiras como sugere Meggers 200 1,ou ainda mandioca Dada a

ausencia de campos elevados para agricultura, a hipótese do uso de amido de palmelra surge

como a mais plausível. Em todo o caso, é possível que a elite tenha trocado peixe por

alimentos produzidos em outras regi6es. Neste caso, asfestaspodem ter sido oportunidades

para a feitura de trocas e outros produtos. assim como um meio para promover a integrar;;ao

e eaoperar;;ao dentro do grupo social (Dietler & Hayden 200 1, Hayden 200 1).

As diferenr;;asdentro do grupo da elite nao eram importantes, indicando que de fato

um grupo corporativo estava no poder e que indicadores de prestígio e poder pessoaltambém

nao eram importantes. Somente alguns poueas itens de trocas á longa distancia foram

encontrados, Em M-17 estes estavarn associados corn os enterTarnentos rnais antigos

escavados Ern M-l. dados de pesquisa prévia (Meggers & Evans 1957) indicam o rnesrno.

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Logo, itens de troca a longa distáncia podem ter sido importantes dUI-ante o período de maior

desenvolvimento do sistema de cria~ao de peixes, mas tornal-am-se raros no final da seqüencia.

Produ~ao ceramica nao era uma atividade especializada no sentido que o termo

usualmente tem em sociedades complexas (Costin 1991). Cerámica era produzida para

consumo local dentro do domínio da elite e era urna atividade sazonal. É possível que a

produ~ao de poucos itens mais elaborados fosse urna atividade para poucüs, mas que

nao levava a especializa~ao de celios indivíduos no sentido de alÍJá-los de outras atividades

produllvas e criar uma c1asse especial na sociedade.

Os resultados apresentados aqui sao sugeridos corno um modelo para outros

cacicados a serem ainda estudados na Ilha. A pesquisa sugere que outros cacicados surgiram

em locais onde as condi<;óes ecológicas favorece ram a reprodu<;ao de sistemas de

subsistencia similares. Estes cacicados certamente interagiram entre si em um sistema que

envolvia trocas, alian~as matrimonials e guen'as. Futuras pesquisas devem ser capazes de

identificar e mapear este s outros cacicados e fornecer urna descri~ao de suas rela~óes

socio políticas em nivel supra-regional.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Dra. Betty Meggers por ter recomendado minha

participa~ao no Simpósio e a Gaspar Morcote Ríos pelo convite e esfor<;os para viabilizar

minha participa~ao. As pesquisas no alto rio Anajás foram financiadas pela National Science

Foundation (Grant N° 0233788), Earthwatch Institute e Universidade de Pittsburgh. Além

disso, recebi suporte financeiro da Funda~ao Heinz, de Pittsburgh. Durante a pesquisa

recebi tambérn bolsas de estudo e pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico - CNPq e apoio institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi.