Mariani- Discurso e Sunjetividade

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    1/25

    21

    POLIFONIA CUIAB EdUFMT V. 12 N. 1 p. 21-45 2006 ISSN 0104-687X

    SENTIDOS DE SUBJETIVIDADE:IMPRENSA E PSICANLISE1

    Bethania Mariani(UFF)

    RESUMO: O objetivo deste trabalho duplo: apresentar umaanlise comparativa de colunas de consultrio psicanalticopublicadas na imprensa carioca e discutir a questo dasubjetividade a partir da perspectiva da anlise do discurso e dapsicanlise.PALAVRAS-CHAVE: Discurso jornalstico. Colunas deconsultrio, Subjetividade.

    MEANINGS OF SUBJECTIVITIES:THE PRESS AND PSYCHOANALYSIS

    ABSTRACT: This paper aims to analyze comparativelypsychoanalytical columns in the Rio de Janeiro press, discussingthe question of subjectivity from the perspective of DiscourseAnalysis and Psychoanalysis.KEYWORDS: Journalistic discourse. Psychoanalytical columns.Subjectivity.

    [] a promoo do eu em nossa existncialeva, conforme a concepo utilitarista dohomem que a secunda, a realizar cada vez maiso homem como indivduo. (J. LACAN, 1998)

    1A primeira verso desse texto foi apresentada no congresso da ABRALIN realizado

    durante a SBPC (Recife, 2003).Professora do Departamento de Cincias da Linguagem da Universidade FederalFluminense e pesquisadora do CNPq. Desenvolve pesquisas sobre discursojornalstico e, tambm, sobre a histria das idias lingsticas no Brasil.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    2/25

    22

    A pergunta que inicia esse texto j aponta sem evasivaspara os resultados de um percurso que, aps uma anlise dosgestos de interpretao constitutivos de colunas de consultriopsicanaltico, chegou a concluses bastante crticas: escrever emnome da psicanlise na imprensa e, mais especificamente, nessascolunas de consultrio psicanaltico, construir discursosutilitrios, servindo como reforo para esteretipos socialmenteaceitos. So palavras prt-a-porter que funcionam para formar

    uma ilusria constituio de subjetividade.Em outras palavras, o trabalho que apresento agoraresulta de uma anlise de trs dessas colunas de consultriopsicanaltico publicadas em jornais cariocas: 1) a do psicanalistaEduardo Mascarenhas, intitulada No Div do Mascarenhas,publicada entre 1983 e 1991, no jornal ltima Hora; 2) a dasexloga Regina Navarro Lins, intitulada Conversando navaranda, publicada no Jornal do Brasil entre 1998 e 2001,e 3) ado psicanalista Alberto Gondin, intitulada Vida ntima, publicadaem O Globo, entre 1998 e 2002.

    Partindo do ponto de vista da Anlise do DiscursoFrancesa, que reterritorializa em seu quadro terico-metodolgicoconceitos oriundos da lingstica, do materialismo histrico e da

    psicanlise, interessou-me analisar a circulao de sentidosinstituda a partir de circuitos organizados em diferentes eixosinterligados: 1) as cartas enviadas para essas colunas deconsultrio, que a um s tempo 1.1) reconfiguram a posio dosujeito enquanto autor da carta enviada mas tambm de leitor dojornal e de outras cartas; alm disso, essas cartas 1.2) tornampblico algo de natureza particular; 2) as respostas dadas peloscolunistas, que envolvem ao mesmo tempo 2.1) uma superposioentre as posies de psicanalista, de colunista do jornal e de leitor(das cartas e do prprio jornal); 2.2) a retomada de conceitospsicanalticos associados utilizao de alegorias e narrativascomo elementos de explicao dessses mesmos conceitos, o queresulta na construo de um discurso pedagogizante sobrecondutas sociais. Com essa anlise, busco verificar como umcerto modo de utilizao do discurso psicanaltico, mediado pelojornalstico, vem constituindo pragmaticamente um sentido desade mental que se encontra vinculado a um sentido de sujeito

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    3/25

    23

    marcado pelo idealismo e pelo psicologismo: um sujeitoonipotente, totalmente consciente, autosuficiente, controlador eresponsvel por suas vontades, atos e palavras.

    A hiptese formulada para a pesquisa apontava para apossibilidade de serem colocados em circulao sentidospreviamente estabelecidos e socialmente institudos, de forma adomesticar o circuito explicitado acima: quem pode ocupar o lugarde leitor-missivista2 de um jornal determinado, os temas que

    podem sair do mbito privado para o mbito pblico, quem estautorizado a falar sobre esses temas e fornecer direes de sentidosobre o que seria um bem estar psquico nos dias de hoje. Soparmetros que ratificam uma forma de ser, um subjetivismovinculado a um individualismo, ou seja, reforam a formahistrica de existncia das prticas subjetivas do capitalismo3.Considerado apenas em uma individualidade bio-psico-social,submisso ao imprio da razo e da conscincia, a esse leitor-missivista s resta se assujeitar-se aos processosnormativizadores de individualizao promovidos pelo Estado,institucionalizados jurdica e pedagogicamente e difundidos pelamdia como lugar de divulgao de sentidos logicamenteestabilizados.

    Desse leitor-missivista se l uma queixa, uma pergunta.A esse leitor-missivista se d uma resposta, uma soluo. Assimsendo, as respostas dadas pelos consultores s cartas recebidas,ao invs de remeterem os missivistas para suas queixas, servemcomo reforo desse subjetivismo, pois partem da evidncia desseleitor-missivista como um indivduo bio-psico-socialmenteidentificvel, dono de suas vontades e capaz de dizer tudo o quepensa, sente etc. Os atos descritos por esse leitor so tomadoscomo a fonte do que estaria causando sua dvida ou sofrimento.Em uma palavra, o leitor-missivista naturalmente tomado comouma unidade de conscincia (PCHEUX, 1988 [1975], p. 184) jdada, no se questiona que sendo sempre-j sujeito, ele

    2Um leitor missivista que tambm leitor da coluna e do jornal.3De acordo com Pcheux, a expresso forma-sujeito, introduzida por Althusser,designa exatamente essa forma de existncia histrica de qualquer indivduo,agente das prticas sociais. (PCHEUX, 1988 [1975], p. 183).

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    4/25

    24

    sempre-j se esqueceu das determinaes que o constituem comotal. (PCHEUX, 1988 [1975], p. 170).

    Se se considera um outro ponto de vista terico, se sequestiona essa evidncia, essa naturalidade atribuda ao sujeito, possvel deslocar o conceito de sujeito e pens-lo como afetado pordois esquecimentos (ou iluses). Dois esquecimentos, alis, queatuam de modo a reforar esse efeito de evidncia do sujeito emtermos de domnio de sua subjetividade. E esses dois

    esquecimentos so ambos relativos linguagem: a iluso dosujeito em ser origem do seu dizer e a iluso de que controla o quediz.

    A fim de introduzir e desenvolver as questes tericasmencionadas acima e, desta forma, melhor apresentar a anliseefetuada, destaco os pontos que sero abordados a seguir a partirda tica da Anlise do Discurso: 1) inconsciente e ideologia naconstituio da subjetividade; a questo dos aparelhos de Estadoem sua relao com a subjetividade e a subjetividade enquantomanifestao de singularidades e diferenas; 2) o lugar da colunade consultrio no discurso jornalstico;de que sujeito se trata nascolunas de consultrio e a homogeneizao da posio do sujeito-leitor e do sujeito-autor dessas colunas.

    1. Sobre a constituio do sujeito

    A Anlise do Discurso, retomando o pensamentolacaniano e os questionamentos advindos de Althusser, elaborauma crtica ao conceito de sujeito entendido como indivduo, ouseja, o sujeito do cartesianismo, produzido pela forma do sujeito-de-direito e encoberto por uma moral psicolgica. Um sujeito quese funda no esquecimento de que um ser de linguagem antes detudo e que, portanto, foi falado antes de falar. A crticaestabelecida por Pcheux (1988 [1975]) tem seus fundamentos apartir de uma reterritorializao de noes do materialismo e dapsicanlise. sempre bom lembrar que para Pcheux, a ordemdo inconsciente no coincide com a da ideologia, o recalque no seidentifica nem com o assujeitamento nem com a represso, masisso no significa que a ideologia deva ser pensada sem referncia

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    5/25

    25

    ao registro inconsciente. (PCHEUX, op. cit.: 301) Como, ento,se sustenta essa crtica formulada pela Anlise do Discurso?

    1.1. Da psicanlise na anlise do discurso

    Com Freud se d o descentramento dessa noo deindivduo bio-psico-socialmente localizvel. Postulando a hiptese

    do inconsciente, ou seja, algo que, tendo um carter psquico,atua sobre o sujeito sem o seu conhecimento, Freud mostra que oo sujeito no pode ser reduzido a um conteudismo consciente, ouseja, o sujeito no corresponde a um conjunto de significadospensados em termos de uma exterioridade cultural ou social. Nopensamento freudiano, a hiptese do inconsciente aponta para ofato de que o sujeito constitudo por algo que no pode tornar-se consciente. (JURAINVILLE, 1995, p. 31). Da o sujeito serdividido, ser marcado por um inconsciente que fala no conscientesem que ele (o sujeito) controle ou domine esse processo.

    Em seu retorno a Freud, Lacan mostrar que oinconsciente a manifestao de um saber desconhecido e nofamiliar para o sujeito, um sentido no antecipvel, irredutvel e

    irreconcilivel.4 Em suma, algo totalmente sem substncia,impensvel, inabordvel. O inconsciente, diz Lacan, umaparte que falta disposio do sujeito para restabelecer acontinuidade de seu discurso consciente. (LACAN, 1988, p. 260)Nessa perspectiva, compreende-se a subjetividade, ou seja,

    4Considerando que o inconsciente aquilo que no pode tornar-se consciente, oque a conscincia? Segundo Jurainville, quando se toma conscincia, verifica-seaquilo que j se sabia sem que justamente isso seja colocado como tal. [] Aconscincia tem um pressuposto - esse saber, que ser preciso determinar - contracujo fundo ela se desenha como verificao, ou melhor, comprovao de que issomesmo [] Que ento que caracteriza essa anterioridade na conscincia? aatribuio de um sentido. [] o que se produz com a conscincia: um sentido que

    era antecipado verificado, ou melhor, comprovado no presente - re-constitudo.[] Deveremos ento indagar-nos se no poderamos conceber um sentido que demodo algum fosse antecipvel. Se ele existisse, seria ento perfeitamente certoque nos encontraramos diante daquilo a que se deveria chamar o inconsciente, nosentido daquilo que no pode tornar-se consciente. (JURAINVILLE, 1995, p. 31-39)

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    6/25

    26

    Subjetividade aqui compreendida como o que resulta da entradado beb no campo da lei do homem enquanto lei da linguagem,permitindo que esse beb, como ser falante, possa vir a dizer eue projetar imaginariamente um mito individual, encenando umahistria que o posiciona diante do enigma que justamente o dese deparar com captulos que parecem faltar na elaborao dacontinuidade dessa histria.5 Para J. Lacan, com a entrada nocampo da linguagem, opera-se uma diviso subjetiva no aparelho

    psquico que se marca na prpria fala enquanto materializao dalinguagem: ao falarmos, dizemos mais do que supomos dizer, poisna fala se inscreve um saber inconsciente.

    Foi relendo e ressignificando o signo saussureano queLacan introduziu a noo de significante, o elemento que constituio inconsciente, que tem precedncia sobre o sentido e que vem doOutro6. Para a psicanlise lacaniana, a lingua(gem) umaestrutura na qual o sujeito humano, para advir como sujeito, necessariamente inscrito, e nessa sua inscrio no campo doOutro, algo falta. O inconsciente, como afirma Lacan, estruturado como uma linguagem (LACAN, 1996), e nessaestruturao algo falta, se encontra silenciado. Inicialmente, osujeito falado, fala-se dele e nesse processo ele se encontra

    alienado, ou seja, submetido ordem significante. Mas, aomesmo tempo, o sujeito retorna ao Outro ao se tornar um ser delinguagem.

    a possibilidade de inscrio desse significante advindodo campo do Outro, porm no aprisionado a significaes, oumelhor, precedendo ao sentido, que constitui a subjetividade: aestrutura de linguagem pre-existe; o inconsciente a suacondio. (LACAN, 1996, p. 26) E no processo de constituio dasubjetividade, a cadeia significante ir estruturar cada sujeito de

    5Diz Lacan: Eu me identifico na linguagem, mas somente ao me perder nela comoobjeto. O que se realiza em minha histria no o passado simples daquilo que foi,uma vez que ele j no , nem tampouco o perfeito composto do que tem sido

    naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que meestou transformando. (Lacan, funo e campo da fala e da linguagem, Escritos, p.301)6 Refiro-me, aqui, ao grande Autre lacaniano isto , o simblico, o Outro dalinguagem, tesouro de significantes, o inconsciente enquanto discurso do Outro(LACAN, 1998, p. 529; cf. LE GAUFEY, 1996, p. 186).

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    7/25

    27

    maneira singular em funo do modo prprio como se organiza ese presentifica seja na cristalizao de determinados sentidos,seja, ao mesmo tempo, na re-significao e na manifestao deequvocos e falhas na ordem da lngua. O sujeito encontra-sesempre dividido entre o moi ou ego-imaginrio, que se perde noengano de se julgar como unidade de um dizer unvoco e o je o sujeito enquanto efeito do inconsciente, representado pelosignificante.7

    A cadeia significante precisa ser compreendida comofalhada: em cada falha na cadeia significante, a cada lapsocometido marcas dessa diviso inconsciente, da presena dojeo sujeito (moi) busca retomar, retomar ou repetirparafrasticamente um sentido aceito como unvoco, aquilo queconsidera como fundador de sua subjetividade, ou seja, o sujeitoimaginariamente se reconstri como unidade, como moi, e isso sematerializa na linguagem, ganhando o contorno de um imaginriolingstico. Em outras palavras, no imaginrio lingstico (corpoverbal) se encontram as evidncias linguageiras para o sujeito queenuncia, a partir do significante advindo do campo do Outro: eusou assim, bvio. (PCHEUX, 1988 [1975], p. 176)8

    1.2. Do ideolgico na constituio do sujeito

    Trago, ento, as pistas deixadas por Pcheux ao retomarLacan e Althusser: o sujeito dividido, ou seja, afetado peloinconsciente, quando diz eu (ego-moi, conforme expostoacima), o faz a partir de um efeito retroativo que resultado desua constituio pela linguagem os significantes aparecemsempre como j-l e interpelao pela ideologia o efeito deevidncia dos sentidos, produzido a partir de significantes coladosa determinadas significaes. Para ter a iluso de ser sujeito doque diz, sendo assujeitado a significantes com significaesdeterminadas, foi necessria uma pr-inscrio no campo da

    7Essa distino entre o moi e oje, proposta por Lacan, no apresenta equivalncia,em termos de uma traduo, no portugus.8 Para Pcheux, o imaginrio lingstico pode ser pensado como o correspondenteterico ao ego freudiano.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    8/25

    28

    linguagem, e isso no se realiza de qualquer maneira. Em termosdiscursivos mais especficos, nessa inter-relao entreinconsciente e ideologia tal como Pcheux preconiza, asubjetividade se constitui na interpelao ideolgica e nainscrio-identificao do sujeito na formao discursiva matrizde sentidos que o constitui.9

    a partir dessa posio discursiva resultante de suaconstituio por uma matriz de sentidos determinada, e inserido

    em uma relao imaginria com a realidade do que lhe dado aser, agir, pensar no plano do teatro da conscincia, que o sujeitose encontra submetido ilusria origem e ao ilusrio controledessa mesma linguagem que o constituiu como sujeito falante.

    Ora, o que se tem aqui, como j foi dito, umaanterioridade do significante produzindo a inscrio do sujeito aocampo da linguagem, ou seja, o que se tem uma dependncia dosujeito ao significante. No entanto, com uma diferena. ParaPcheux, em sua proposta terica da relao entre o inconscientee a ideologia, essa dependncia ao significante, ou seja, essainscrio no campo da linguagem no se realiza fora do ideolgico.Como afirma o autor, h que se considerar a existncia de umprocesso do significante, na interpelaoidentificao. Na

    constituio da subjetividade, ento, ocorre um duplo processoengendrado pela inscrio do significante estruturando oinconsciente e constituindo o sujeito: uma identificao simblicado sujeito formao discursiva na qual ele se constitui e umassujeitamento ideolgico aos sentidos que essa mesma formaodiscursiva, enquanto matriz de sentidos, produz. Porm, comonos diz Pcheux, esse duplo processo de interpelao-identificaose encontra recalcado:

    Os significantes aparecem dessa maneira nocomo as peas de um jogo simblico eterno queos determinaria, mas como aquilo que foisempre-j desprendido de um sentido: no h

    naturalidade do significante; o que cai,enquanto significante verbal, no domnio do

    9Uma formao discursiva corresponde ao que pode e deve ser dito a partir de umlugar determinado, em uma conjuntura determinada.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    9/25

    29

    inconsciente, est sempre-j desligado de umaformao discursiva que lhe fornece seusentido, a ser perdido no non-sense dosignificante. (PCHEUX, 1988 [1975], p. 163)

    Esse significante sempre-j desligado de uma formaodiscursiva, no entanto, retorna para o sujeito que nele ir colaralgum sentido buscando produzir um arranjo, uma linearidade dacadeia significante e nas narrativas que constri para si. nesse

    ponto que se pode reconhecer o funcionamento do imaginriolingstico enquanto um processo que no tem sua origem nosujeito falante, mas nele se manifesta como resultado dofuncionamento do esquecimento nmero 2 encobrindo oesquecimento nmero 1. Dizendo de outro modo, nesse corpoverbal encontram-se os efeitos do inconsciente e da ideologia naconstituio do sujeito pelo linguagem. Ou ainda, pode-se dizerque no imaginrio lingstico se realiza um esforo (consciente) doego-moiem se assegurar como unidade linguageira, ou seja, umaespcie de cegueira do sujeito em no reconhecer ofuncionamento do inconsciente e da ideologia na lingua(gem).

    1.3. Dos aparelhos de Estado em sua relao com asubjetividade

    Como foi mencionado na seo anterior, encontra-sematerialmente constitudo na linguagem o vnculo do sujeito formao discursiva que o domina, vnculo esse concebido porPcheux como identificao simblica, ou seja, identificao adeterminados significantes na linguagem, significantesconstitutivos do sujeito do discurso (ego-moi) como efeito. Naidentificao simblica esto inscritas, portanto, asrepresentaes verbais (termo de Pcheux), ou seja, o resultado doefeito do assujeitamento ideolgico a uma dada formao

    discursiva. As representaes verbais vinculam-se entre si emfuno dos processos de reformulao parafrstica inerentes sformaes discursivas. E, como efeito de haver sentido, essasrepresentaes verbais produzem uma consistncia imaginria

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    10/25

    30

    para o sujeito, ou seja, ficam impregnadas do que seriamevidncias de sentidos cristalizados que aparecem para o sujeitocomo nicos, bvios, enfim, aqueles que constituem suaidentidade psico-social.

    Esse o processo que constitui o chamado teatro daconscincia e que funciona reforando o vnculo entre o sujeitode direito (aquele que entra em relao contratual com outrossujeitos de direito; seus iguais) e o sujeito ideolgico (aquele que

    diz ao falar de si mesmo: Sou eu!). (PCHEUX, op. cit., p. 154)Considerando a questo da subjetividade em suaconstituio pela ideologia, ou seja, considerando o sujeito em suainterpelao ideolgica, Orlandi dir que no pelo contedo quea ideologia afeta o sujeito, na estrutura mesma pela qual osujeito (e o sentido) funciona. Visando compreender de quemodo a ideologia leva ao equvoco da impresso idealista daorigem em si mesmo do sujeito, a autora apresenta o que chamade um duplo movimento da subjetividade. (ORLANDI, 2002, p.70-71).

    Em um primeiro momento (e no se trata aqui de umacronologia), e entendendo que o processo significante que afeta osujeito no a-histrico, encontra-se justamente a interpelao

    do indivduo em sujeito pela ideologia. A interpelao produzassujeitamento e isso ocorre em qualquer poca histrica, emquaisquer que sejam as condies de produo, pois resulta dainscrio do sujeito no simblico e, ao mesmo tempo, produzcomo resultado que esse sujeito, afetado pelo simblico, expressea sua subjetividade na iluso de autonomia e de ser origem do seudizer. A forma-sujeito, que resulta dessa interpelao pelaideologia, uma forma-sujeito histrica, com suamaterialidade.10

    Em um segundo momento (que no correspondenecessariamente, deve-se ressaltar, a uma temporalidadeexpressa em dias ou anos), ocorre um estabelecimento (etransformao) das formas de individua(liza)o do sujeito emrelao ao Estado. Em outras palavras, ocorre umaindividualizao histrica da forma-sujeito em funo da insero

    10id., ibid, e que corresponde ao que Orlandi chama de I.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    11/25

    31

    do sujeito nas relaes sociais regidas pelas instituies que soreguladas pelo Estado. Do indivduo interpelado em sujeito (I)resulta o sujeito em sua forma individualizada concreta (I), ouseja, aquela visvel e a partir da qual possvel adaptar o sujeitoao social. Como afirma a autora, no caso do capitalismo, que ocaso presente, a forma de um indivduo livre de coeres eresponsvel, que deve assim responder, como sujeito jurdico(sujeito de direitos e deveres), diante do Estado e de outros

    homens. (ORLANDI, op. cit., p. 72).Ora, o que me interessa destacar aqui o papel da mdia(escrita ou falada) como instituio regulada pelo Estado, mastambm reguladora do Estado. Nessa relao com o Estado, amdia uma instituio que abrange a sociedade letrada eurbana, agendando para os sujeitos leitores o que ler, fazer,comer, pensar, agir, criticar etc. Est em jogo nos modos deorganizao dessa agenda uma padronizao, umahomogeneizao histrica do sujeito.

    a partir dessa tica que as colunas de consultrio estosendo discutidas.

    1.4. Do sujeito enquanto singularidade e diferena

    Como fica a questo da singularidade na constituio dasubjetividade? Qual o papel da interpelao ideolgica em seuprocesso de uniformizao do teatro da conscincia regido, emltima instncia, pelas instituies? Como fica a singularidadesubjetiva frente interpelao ideolgica?

    Em parte, essa questo j foi respondida quando semencionou que h um modo especfico de inscrio dosignificante em cada sujeito. Acrescente-se a isso que, quandoPcheux descreve o processo ideolgico de interpelao ideolgica-identificao simblica, verifica-se que se trata de um processo dosignificante nunca completo ou absoluto. o que faz com que afalha tambm seja constitutiva do sujeito. Alm disso, Orlandinos lembra que o processo de subjetivao ideolgica no simblicofunciona pela forma do equvoco, produzindo como efeito a

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    12/25

    32

    possibilidade de resistncia do sujeito quanto ao modo de suaindividualizao pelo Estado.

    Pode-se levar em considerao nessas respostas,tambm, o fato de que a singularidade aponta para o heterogneo,para o descontnuo. Falar em questes de singularidade,portanto, tocar na questo da produo de diferenas subjetivasque se marcam no campo do homogneo e contnuo (BIRMAN,1994, p. 152). Assim sendo, vale a pena retomar o que foi dito

    sobre a constituio da subjetividade, considerando essacontradio entre o homogneo e o heterogneo causada pelasingularidade enquanto produo de diferenas.

    Falemos, ento, do sujeito da diferena do ponto de vistada psicanlise. Em primeiro lugar, a singularidade pode remeterpara o que se encontraria bastante fora da ordem cultural, indoao encontro, nesse sentido, do excntrico, do exibicionismo, daperverso. Mas no dessa diferena que se trata aqui.

    Interessa, aqui, trabalhar com a singularidade que,mesmo tendo como pano de fundo uma presso dehomogeneidade, mostra-se enquanto diferena. Tal singularidade,se resultado de um modo prprio de constituio do sujeito pelosignificante, resulta tambm daquilo que escapa inscrio pela

    via do significante, ou seja, em termos freudianos, h um algo amais inscrito no aparelho psquico e no absorvido no simblico: afora das pulses. Como afirma Birman, este algo, plo dafundao das diferenas subjetivas, o que permite e indica aexistncia de um eu sinto que no se conjuga como eu devo doimperativo categrico freudiano. [...] Esta diferena mnima entreo eu sintoe o eu devo o que pode permitir que o sujeito constituaum estilo singular de existncia, marcando de maneira radical suadiferena face a qualquer outro sujeito.(BIRMAN, op. cit., p. 150)

    Se o eu devoresulta da entrada do sujeito no simblico,se estar no simblico estar na linguagem, com sua ordemprpria, com um trabalho de administrao das significaessustentado pelo eu (ego, moi), por outro lado, no se podeesquecer que a prpria lngua um sistema de significantesregido por oposies e diferenas. E mais, as ausncias contamna lngua: a lngua no-toda, ou seja, o todo da lngua s existeconstitudo pelo signo ausente, pelo no dito. (PCHEUX, 2004

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    13/25

    33

    [1981], p. 74). Assim, ainda de acordo com Birman, a exignciade diferena possibilitada pelo corpo pulsional se inscreve numcampo representacional marcado pela diferena. Enfim, aproduo da diferena encontra as suas condies depossibilidades nos registros pulsional e simblico, e na passagemdo primeiro para o segundo. (PCHEUX, id., ibid).

    Dito de outra maneira, para haver constituio do sujeito necessria a desordem das foras pulsionais estar submetida

    inscrio no simblico. Em termos lacanianos, essa desordem da ordem do impossvel: h um impossvel de ser dito que insistee retorna, causando estranhamento para o sujeito. Esseimpossvel irrepresentvel pela lngua denominado por Lacan delalangue, lugar do no idntico, da repetio e da no repetio aomesmo tempo.11

    Em resumo, a subjetividade no que ela se mostra, noque se esconde, no que repetio ou equvoco, no que se marcacomo diferena, no que se inscreve enquanto homogeneidade resulta do acontecimento da linguagem12 no sujeito. Umacontecimento que tanto possibilita a singularizao da diferenaquanto a regulao do sujeito relativamente a uma universaladaptao do sujeito ordem cultural e social atravs do mesmo

    simblico que o constituiu.

    2. Sobre as colunas de consultrio e a psicanlise no discursojornalstico

    Parto de uma srie de reflexes j realizadas sobre odiscurso produzido pela imprensa de referncia (MARIANI, 1998).Trata-se, como j tive a ocasio de dizer em outros momentos, deuma prtica discursiva que atua na construo e reproduo desentidos, prtica essa realizada a partir de um efeito ilusrio dafuno do jornal como responsvel apenas por uma transmisso

    11 Estamos nos valendo de algumas formulaes de Leite (2000, p. 40) sobre aquesto da singularidade frente ao universal, no campo do cientfico.12 Guimares, partindo de outras questes, ir conceituar a enunciao,afirmando: acontecimento no qual se d a relao do sujeito com a lngua (2000,p. 4)

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    14/25

    34

    objetiva de informaes. O discurso jornalstico constri-se, dessaforma, com base em um pretenso domnio da referencialidade,pois baseia-se em uma concepo de linguagem que considera alngua como instrumento de comunicao de informaes.Decorrem da vrios efeitos constitutivos dos sentidos veiculadoscomo informaes jornalsticas: objetividade, neutralidade,imparcialidade e veracidade.

    Alm disso, essa pretensa informatividade jornalstica se

    sustenta com base em uma ideologia utilitria, ou seja, parte-sede um pressuposto (construdo historicamente na relao entrejornais e leitores) de uma necessidade social de saber os fatosrelatados. Estes, dessa forma, j figuram nas pginas impressaspr-significados por uma relevncia constituda pelo imaginrio:se o jornal publicou porque importante ou s importante oque aparece no jornal. Fica apagado para o leitor o fato de terhavido uma seleo das notcias (a pauta), ficando igualmenteapagado que as manchetes tambm resultam de tomadas dedeciso realizadas pelos editores e assim por diante.

    Leitores e jornalistas encontram-se, dessa maneira,enquadrados nos domnios de pensamento de sua poca, ficandoimersos em uma agenda (organizada pelos donos do jornal)

    previamente constituda por interpretaes legitimadas, ou jtomadas como socialmente consensuais, ou que viro a se tornarconsenso por fora, exatamente, dos efeitos produzidos pelaprpria imprensa. possvel afirmar, ento, que h umaritualizao ideolgica presente no discurso jornalstico,entendendo ritualizao aqui como uma forma de manuteno erepetio de determinados sentidos.

    2.1. As colunas de consultrio no discurso jornalstico: umparadoxo?

    Paradoxalmente, essa noo higinica de informaodos fatos encontra-se afetada nas colunas de consultrio: ao invsde uma voz impessoal, responsvel por um relato que se pretendeimparcial, objetivo e til, encontra-se uma voz que, narrando emprimeira pessoa, faz o relato de um problema absolutamente

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    15/25

    35

    pessoal, de modo completamente subjetivo e, muitopossivelmente, sem interesse social. Se retomamos a afirmaode Pcheux de que no h ritual sem falhas, essas colunascorresponderiam a uma falha nesse ritual ideologicamenteconstrudo da informatividade jornalstica?

    Em princpio, a resposta para a questo afirmativa.Afinal, as colunas representam um lugar de produo de umsentido outro, um sentido estranho ao discurso jornalstico. So

    stios de significncia duplamente subjetivados e dialogicamenteorganizados: de um lado, cartas de leitores dirigidas apsicanalistas; de outro, respostas fornecidas por psicanalistas(supostamente) com base no saber psicanaltico.

    Seria possvel considerar, ento, que essas colunasconstituem uma brecha, uma rachadura, uma falha no ritualideolgico jornalstico de apresentao da verdade de fatos quefalam por si, cujo suporte seria a lngua entendida comoinstrumento de comunicao de informaes.13 O que provoca afalha a irrupo de uma subjetividade, de uma pessoalidade: acarta apresenta um problema pessoal, um sofrimento particular esingularizado. Assim, as colunas estariam fomentando duasfraturas nesse ritual: a irrupo de uma subjetividade, de uma

    pessoalidade, como j foi dito, e, tambm, o acolhimento dodiscurso psicanaltico como lugar de respostas para os problemasapresentados.

    Qual a pertinncia, ento, de tais colunas em meio aodiscurso jornalstico? Elas corresponderiam a ilhas desubjetividade voltadas para leitores curiosos em saber da vidaalheia, sua pertinncia estaria na acolhida a uma espcie devoyerismoconsensual e socialmente aceito.

    Ora, se assim for, essa resposta inicial, que supe ascolunas como lugares de falha no ritual jornalstico, precisa sermais trabalhada. Afinal, quando se tematiza a questo da falhaem termos discursivos, est-se falando de uma fratura no ritualideolgico que resulta na produo de um acontecimento: narelao sujeito-lngua-histria, a instaurao de um lapso

    13 Em Mariani (1998) j havia feito uma meno s charges e caricaturas comolugares de instalao de falhas no ritual jornalstico.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    16/25

    36

    lingstico, de um equvoco histrico, a presentificao, enfim,de um sentido no previsto que pode vir a produzir umdeslocamento, uma reviravolta para o sujeito, para a histria.Desta forma, uma vez instalada uma fratura em rituaisideolgicos, dois so os desdobramentos socialmente possveis,dois so os destinos para o sentido inesperado: a falha, enquantolugar de resistncia, pode engendrar rupturas e conseqentetransformao do ritual, ou, por outro lado, pode vir a ser

    absorvida pelo discurso hegemnico, contribuindo para apermanncia dos sentidos legitimados historicamente.Um exame detalhado das colunas aponta para o segundo

    desdobramento, ou seja, as colunas, tal como se apresentam nosjornais atualmente, e porque esto inseridas nesse discurso,sofrem os efeitos desse imaginrio jornalstico da imparcialidade,veracidade etc. Por essa via, ao invs de fraturar o ritual,reforam os domnios de pensamento de nossa poca em umaspecto especfico: promovem a idealizao do sujeito centrado eautnomo, capaz de decidir sobre seu destino, ou melhor,responsvel pela felicidade ou infelicidade de seu futuro. Ascartas e as respostas teatralizam a conscincia do eu (ego, moi),idealizando, em nome da psicanlise, comportamentos scio-

    culturalmente admissveis.Foi possvel observar que o discurso produzido em tais

    colunas funciona como um meio no qual so imaginarizadasrepresentaes de sujeito que podem vir a atuar na formao deuma subjetividade homognea e coletivamente disseminada, poisapresentam e descrevem idealmente determinados modos deestar-no-mundo para o sujeito leitor. o que mostrarei a seguir.

    2.2. Reforando o ritual do teatro da conscincia

    Antes de mais nada, deve-se ter em mente que taiscolunas se constituem como espaos previamente marcados eautorizados pelo prprio discurso jornalstico para a apresentaode narrativas de problemas pessoais. Trata-se de uma falha ritualautorizada, por assim dizer. E, sendo autorizada, no constituiuma possibilidade de ameaa ao ritual. A questo : quais os

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    17/25

    37

    efeitos de sua insero no discurso jornalstico, e at que ponto ascolunas reforam a iluso de neutralidade e veracidade dessemesmo discurso?

    Se os leitores que escrevem so annimos (valendo-se depseudnimos na assinatura da carta), os colunistas so sujeitosque, ocupando um lugar de psicanalista, tm seus nomesdivulgados, inclusive, em outros espaos do jornal, pois emitemopinies sobre eventos, novelas, tm seus livros resenhados etc.

    Falam de um lugar de autoridade, de especialistas sodoutores, seus ttulos aparecem junto com seus nomes estabelecido com o auxlio do prprio jornal e, dessa forma, a eles atribudo uma competncia e um poder de dizer a verdade. Oscolunistas so, inclusive, objeto de reportagens, so entrevistados.

    Dos trs, E. Mascarenhas era sem dvida uma figuracarismtica e que mais freqentou as pginas jornalsticas,sobretudo a partir dos seguintes eventos: foi expulso, junto comHlio Peregrino, da SPRJ; foi o primeiro a falar de psicanlise naimprensa e na televiso (no programa Interiores, da TVE) e foieleito deputado federal. Seu propsito inicial e declarado eradivulgar o pensamento psicanaltico. Como ele prprio afirmava:ao contrrio do que se pensa, um psicanlista no d conselhos,

    nem alimenta dependncias com relao a sua pessoa. Ele noorienta [...] No impe padres de comportamento. Mas, aoexplicar o lugar de onde ele iria escrever e dar noes gerais sobrea psicanlise, dizia: Estou certo de que assim estarei colaborandopara esclarecer cucas, desenrolar coraes e circular idias.

    Goldin, por sua vez, parte sempre de uma narrativa naqual ele insere personagens que podem sugerir/criticar esituaes prximas descrita na carta. Como ele mesmo diz:Escrevo as colunas utilizando histrias, metforas, imagensporque acredito que seja a melhor forma de transmitir as difceisquestes que abordo. Assim, em suas repostas, ao valer-se deuma polifonia, ele escreve de uma posio secundada por outras.R. Lins, alm das respostas, introduz em sua coluna entrevistascom pessoas conhecidas (atrizes, polticos, especialistas etc) sobrequestes ligadas ao sexual (sexualidade masculina, prostituio,posies sexuais etc).

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    18/25

    38

    Antes de prosseguir, relevante dizer alguns aspectossobre as condies de produo do discurso psicanaltico naimprensa.

    J h algum tempo vem ocorrendo uma maior circulaosocial das idias psicanalticas. E a forma como essa difuso vemse fazendo, de algum modo, induz a uma legitimao dapsicanlise como lugar de produo de saber, mas ao preo detransformar esse saber e os conceitos a ela pertinentes em uma

    moral laica. Como afirma Birman, desde os anos 60 e a partir deuma americanizao do pensamento freudiano, a psicanlise foitransformada numa viso de mundo, numa moral para amodelagem da individualidade s multiplas exigncias dasociedade complexa. [...] A psicanlise apresentada como umcdigo fechado onde as individualidades encontram um mapa comdirees infalveis para seus percursos na incerteza da existncia.(BIRMAN, 1994, p. 121)

    Se Freud e Lacan mostram-se compromissados com umatica sustentada na questo do desejo, se ambos so pessimistasquanto aos destinos desse sujeito desejante, a leitura que seencontra na imprensa, e mais especificamente nessas colunas, aocontrrio, coloca a psicanlise como um lugar de promoo da

    felicidade. Em nome da psicanlise, o que se l nas colunas uma valorizao psicolgica do sujeito colocada lado a lado dereportagens sobre novos medicamentos, livros de auto-ajuda,recentes descobertas da medicina, dicas sobre alimentos paramanter a sade perfeita, dietas da moda e sua adequao ao tipofsico e/ou emocional, roupas adequadas para a saudvel prticade esportes, enfim, um receiturio bem disfarado, fornecendoinformaes sobre as supostas necessidades do leitor, um sujeitourbano, e que coloca como casos exemplares, personalidades daprpria mdia ou pessoas da classe mdia.

    Assim, um psicanalista, ao ocupar o lugar de colunista,defronta-se com essa imagem pr-construda e socialmente aceitasobre seu saber: um saber voltado para a divulgao deexplicaes e solues de problemas assim como as demaismatrias presentes no mesmo caderno. Cabe ao psicanalistaapaziguar, tirar dvidas e dar conselhos sobre modos sociais de

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    19/25

    39

    existncia da mesma forma que as outras reportagens e colunastiram dvidas sobre moda, gastronomia, doenas, direito legal etc.

    Como nos lembra Pcheux, o subjetivo simula oobjetivo. a partir de relatos individuais, feitos por sujeitosconcretos, membros de uma mesma comunidade, que vo sendoconstrudas solues reguladas, visando a adaptao dessessujeitos concretos ordem scio-cultural vigente. Esse conjuntode imagens do eu acaba funcionando como um nico sujeito e,

    ao se inscrever no discurso jornalstico, torna-se partcipe doefeito de objetividade, reforando o teatro da conscincia do que dado a pensar e dos sentidos possveis de serem ditos (e vividos).

    2.3. As cartas

    A leitura das cartas aponta para um eixo temticomajoritariamente comum: questes amorosas insatisfeitas eopes sexuais igualmente insatisfeitas, gerando dilemas morais eimpasses sobre atitudes a serem tomadas. Foi interessanteobservar o quanto as cartas se parecem entre si, constituindo umconjunto de imagens do eu bastante assemelhadas em termos

    de insucessos amorosos ou fracassos sexuais.Na coluna de Goldin, so os conflitos amorosos que

    comparecem mais. Na coluna de Lins, que escreve como sexloga,os conflitos amorosos aparecem relacionados explicitao dedvidas ligadas ao sexo. J na coluna de Mascarenhas, que foi oprimeiro psicanalista a escrever na imprensa, de incio havia umadiversidade maior de temas colocados, sendo que alguns tocavamem problemticas sociais, mas com o passar do tempo asquestes amorosas ganharam maior relevo.

    Essas cartas estabelecem um elo comunicativo naacepo mais tradicional. Da parte do leitor-missivista h, emtermos pragmticos, uma inteno: ele quer ser compreendido,precisa/pede conselhos, quer escrever com clareza e espera, ousupe, ter alcanado uma transparncia na linguagem

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    20/25

    40

    utilizada.14 Essa uniformizao temtica funciona de modo aapagar as diferenas subjetivas, produzindo uma homogeneizaodas singularidades. Aos olhos dos leitores, missivistas ou no, avida fica reduzida a casamentos infelizes, adolescnciastraumticas, dvidas sobre caractersticas anatmicas ou opessexuais frustradas. No lugar de diferenas subjetivas, o que seencontra um conjunto de relatos individualizados, girando emtorno de uma mesma temtica e produzindo um efeito de

    naturalizao sobre o tipo de problema emocional que se tem nacontemporaneidade. Dito de outra forma, depreendem-se nascartas (e, bem entendido, nas respostas produzidas) traos deuma representao social cuja homogeneidade afeta a sociedadecomo um todo.

    Vejamos, em cartas dirigidas a Mascarenhas, Goldin eLins, algumas marcas do funcionamento lingstico quesemantizam essa posio sujeito leitor-missivista que fala de si,sua posio subjetiva. Os trechos transcritos abaixo foramrecortados do conjunto de cartas escritas para as colunas nosperodos mencionados anteriormente.

    Sou o namorado e preciso elaborar uma

    estratgia para me ajudar a solucionar oconflito... (para A. Goldin)

    Quando era adolescente, conheci uma garota[...] Eu me apaixonei [...] Perdi completamenteo controle sobre a minha vida [...] A famliadela passou a me odiar [...] Eu no suportariamanter outro relacionamento [...] (para A.Goldin)

    Diante de uma mulher fico paralisado [...] Noestou conseguindo superar sozinho esses

    14

    No se desconsidera, aqui, a edio das cartas feita pelo jornal: ao jornalinteressa uma carta clara, compreensvel, em uma palavra, digervel. Seja comofor, interessa ao analista de discurso construir um dispositivo analtico de forma acompreender o gesto de interpretao ali colocado. Mesmo que esse gesto resultede um amlgama (leitor-missivista + editor), interessa observar o lanamento dealgo privado para a ordem do pblico, com suas interdies, excluses e inseres.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    21/25

    41

    traumas e deficincias... Quero ter uma vidanormal. (para A.Goldin)

    Considero que no devia teresses sentimentosindignos. (para A.Goldin)

    Tenho 21 anos e sou homossexual, mas notenho relao com ningum. No aceito queum homem transe com outro homem. [...]

    Existe um tratamento para me fazer umhomem normal? (para Regina N. Lins)

    [...] sofro com o problema da [...] No tenhomais me aproximado de ningum [...] (paraRegina N. Lins)

    Tenho 44 anos, solteira [...] conheci uma pessoa[...] chegar ao amor completo no foi possvel.No por falta de insistncia [...] mas disse queno teria coragem de encarar minha me.(para Eduardo Mascarenhas)

    Dr. Eduardo, volto ao seu div. [...] Meu

    relacionamento sexual anda mal [...] Passamcoisas na minha mente que me deixambastante assustado. O que est acontecendocomigo? (para Eduardo Mascarenhas)

    Os missivistas acima citados (assim como outros), dizemde que lugar falam (sou o namorado, sou homossexual, sofrocom o problema) para em seguida colocar em dvida esse prpriolugar (perdi o controle, preciso elaborar, no suportaria, noaceito, no estou conseguindo, no tenho) valendo-se paratanto da negao, da utilizao de futuro do pretrito e/ou daformulao de perguntas. Eles se colocam, assim, em um tempo-espao pessoal e, ao mesmo tempo, vinculado a valores

    estabelecidos previamente.Ora, um sujeito dividido que escreve, que pergunta, quenega a si prprio. Pode-se afirmar, ento, que duasrepresentaes de sujeito comparecem, materializando o conflito

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    22/25

    42

    entre a posio15 de onde o sujeito fala com uma posioidealizada, no dita (necessariamente), porm presente nas cartas.

    Existe um tratamento para me fazer um homemnormal?, O que est acontecendo comigo? o que perguntam osleitores, explicitando nas cartas sua submisso aos efeitosideolgicos da dominncia imaginria do sentido nico. A marcalexical aponta para a sujeio desses sujeitos a parmetrosprvios: o significante normal, ou o sintagma acontecendo comigo,

    aparecem como evidncias lexicais inscritas na prpria lngua,apagando, desse modo, a memria discursiva que instituiu talnormalidade.

    As respostas dos colunistas acabam indo na direo dereforar para os missivistas uma individualizao que no outraseno a submisso a construtos modelizados socialmente. Naresposta dada, o trao subjetivo fica submetido ao social a partirdo momento em que se produz um fechamento em torno de umsentido unificante. Muitas vezes, na tentativa de solucionar e dedar respostas, a singularidade do sujeito acaba sendo inscrita nauniversalidade de um quadro clnico idealizado, o qual (se) mostra(com) afirmaes genricas, reforo do senso comum. Conselhos,em resumo, como resposta a pedidos (como o caso: Peo que

    diga algo que me ajude. Ou Por favor, ajude-me a ver o quedeveria fazer). Assim a coluna de consultrio, apesar de suaespecificidade, se insere na escrita jornalstica institucionalizada eritualizada, ou seja, lugar onde se organizam sentidos sobre omundo e sobre o sujeito. Vale a pena recortar alguns trechosdessas respostas:

    O bissexual tem ento de conciliar doisaspectos inconciliveis em nossa culturamonogmica... (Lins)

    15 Lembremos, aqui, que para a anlise do discurso, a posio de sujeito seproduz entre diferentes discursos numa relao regrada com a memria do dizerface s situaes, definindo-se em funo de uma formao discursiva em relaos demais. (ORLANDI, 1996)

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    23/25

    43

    A solido um problema grave, que s podeser comparada obrigao de suportar uma mcompanhia. (Goldin)

    Meu conselho: sorria de novo em casa etrabalhe duro... (Goldin)

    ...jamais deveriater abandonado seus estudose deve retom-los. No h isca mais apetitosa

    para uma mulher do que umjovem ambicioso,admirado por seus pares, com sucesso nosestudos, praticando esportes [...] No devemaisfazer... (Goldin)

    Senti um pouco de medo de errar na respostae... (Goldin)

    Toro por voc. Me deixe sabendo das coisas.(Mascarenhas)

    De uma maneira geral, o homem ocidental, comtantos preconceitos e tabus em relao ao sexo,no tem muita coragem para partir para

    novas experimentaes. (Lins) preciso arregaar as mangas e ir luta.(Mascarenhas)

    A partir da leitura das cartas e das respostas dadas peloscolunistas, os demais leitores do jornal, missivistas ou no,imaginarizam identificaes (se eu estivesse onde voc/ele/x seencontra, eu veria e pensaria o que voc/ele/x v e pensa(PCHEUX, 1998 [1975], p. 188) que apagam asdescontinuidades, o heterogneo subjetivo e produzem uma ilusode consenso tanto no que se refere questo relatada (todostemos o mesmo tipo de problemas) quanto ao tipo de soluo

    proposta pelo colunista-psicanalista (todos podemos resolver damesma forma). O individual, dessa forma, serve como modelopara a construo de uma subjetividade coletiva alm defuncionar como suporte para a normatizao moral das relaessociais. Nas colunas de psicanlise popularizada, ao alcance de

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    24/25

    44

    todos, depreende-se um pequeno manual com explicaes simplesde auto-ajuda. Prt--porter, como havia mencionado no incio.

    Para finalizar, retomando tambm as observaes deOrlandi, o que fica de fora quando se pensa o sujeito jindividualizado justamente o simblico, o histrico e a ideologia,que tornam possvel a interpelao do indivduo em sujeito. E euainda acrescentaria: nas colunas de psicanlise, fica de foratambm o inconsciente como lugar em que o sujeito falha e que

    pode estar apontando justamente para essa moral reguladora dasrelaes sociais.

    Referncias bibliogrficas

    BIRMAN, Joel. Psicanlise, cincia e cultura. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1994.______. Estilo e modernidade em psicanlise. So Paulo:Editora 34, 1997.JURAINVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar& Campo Freudiano do Brasil, 1987.LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

    1998.______. Seminrio 11: os quatro conceitos fundamentais dapsicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.LE GAUFEY, Guy. Lincompletude du symbolique. Paris: EPPEl,1996.LEITE, Nina V. Sobre a singularidade. In Cadernos de estudoslingsticos A singularidade como questo, No. 38. Campinas,IEL/Unicamp, 2000. p. 39-50.MARIANI, Bethania. Subjetividade e imaginrio lingstico. InLingua(gem) em discurso Subjetividade. V.3, nmero especial,Tubaro, SC, Rev. da UNISUL, 2003. p.55-72.MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas noimaginrio dos jornais. Campinas, Rio de janeiro: Revan & Ed.da Unicamp, 1998.ORLANDI, Eni P. Interpretao. Petrpolis: Vozes, 1996.______. Lngua e conhecimento lingstico. Campinas: Pontes,2002.

  • 7/25/2019 Mariani- Discurso e Sunjetividade

    25/25

    45

    PCHEUX, Michel. Semntica e discurso: uma crtica afirmao do bvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988[1975].______. A lngua inatingvel: o discurso na histria dalingstica.Campinas: Pontes, 2004 [1981].