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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sodré,Muniz, 1942Antropológica do espelho : uma teoria da comunicação linear e em rede / Muniz Sodré. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2002. ISBN 85.326.2684-X Bibliografia. 1. Antropologia social 2. Comunicação e cultura I. Título. 01-6228 CDD-302.2 índices para catálogo sistemático: 1. Comunicação em rede : Ciências sociais 302.2 2. Comunicação linear : Ciências sociais 302.2 Muniz Sodré Antropológica do espelho Uma teoria da comunicação linear e em rede Va EDITORA VOZES Petrópolis 2002 © 2002, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editoração e org. literária: Femanda Rezende Machado ISBN 85.326.2684-X Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Este livro é parte de uma pesquisa empreendida sob os auspícios do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq), ao qual agradeço. Sumário Apresentação, 9 I - O ethos midiatizado, 11

Muniz Sodre - Antropologica Do Espelho

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Teoria da comunicação

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do

    Livro, SP, Brasil)

    Sodr,Muniz, 1942Antropolgica do espelho : uma teoria da comunicao linear e

    em rede / Muniz Sodr. - Petrpolis, RJ : Vozes, 2002.

    ISBN 85.326.2684-X

    Bibliografia.

    1. Antropologia social 2. Comunicao e cultura I. Ttulo.

    01-6228

    CDD-302.2

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Comunicao em rede : Cincias sociais 302.2

    2. Comunicao linear : Cincias sociais 302.2

    Muniz Sodr

    Antropolgica do espelho

    Uma teoria da comunicao linear e em rede

    Va EDITORA VOZES

    Petrpolis

    2002

    2002, Editora Vozes Ltda.

    Rua Frei Lus, 100

    25689-900 Petrpolis, RJ

    Internet: http://www.vozes.com.br

    Brasil

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou

    transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico,

    incluindo

    fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem

    permisso

    escrita da Editora.

    Editorao e org. literria: Femanda Rezende Machado

    ISBN 85.326.2684-X

    Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

    Este livro parte de uma pesquisa empreendida sob os auspcios do Conselho

    Nacional de Pesquisas Cientficas (CNPq), ao qual agradeo.

    Sumrio

    Apresentao, 9

    I - O ethos midiatizado, 11

  • 1. Um quarto bios, 21

    2. Efeitos polticos, 28

    3. Um espao evanescente, 38

    4. Habitao e costumes, 45

    5. O caos e o ndice, 53

    6. Uma outra realidade, 60

    7. A teodicia do mercado, 67

    8. O ultra-humano planetrio, 72

    9. Coexistncia e integrao, 78

    II - A hexis educativa, 83

    1. Humanismo e trabalho, 87

    2. Um novo paradigma?, 91

    3. Mutaes pedaggicas, 96

    4. Tecnicismo e privatismo, 101

    5. Finalidade e sentido, 107

    in - Virtus como metfora, 119

    1. A questo da conscincia, 126

    2. Noosfera e cultura, 130

    3. A coisa e sua projeo, 138

    4. Identidades novas, 149

    5. Dessubjetivao e integrao sistmica, 158

    IV - Communitas, ethik, 169

    1. Razo e consenso, 185

    2. Comum, pblico, consciente, 193

    3. Uma tica, por qu?, 201

    V - Comunicatio e epistme, 221

    1. Autonomia do campo, 232

    Bibliografia seleta, 261

    Apresentao

    Espelho - com seus espectros - metfora para o novo ordenamento artificial do

    mundo e suas resultantes em termos de poder, identidade, mentalidade e conduta.

    figura relativa tanto mdia linear ou tradicional quanto s teletecnologias,

    comunicao em rede ou simplesmente "hipermdia" que, vetorizadas pelo

    universalismo

    jurdico e pelo mercado, vm produzir transformaes importantes no modo de

    presena do indivduo no mundo contemporneo.

    Vamos levar em considerao:

    - a transformao da pauta de interesses e costumes, por efeito de uma

    qualificao virtualizante da vida: o que se descreve em 1) O ethos

    midiatizado;

    - a transformao das referncias simblicas com que se forma (educacionalmente,

    politicamente) a conscincia de jovens e adultos: o que se discute em 2) A

    hexis

    educativa;

    - a transformao dos modos operativos da conscincia, isto , dos processos de

    construo da realidade, da memria e da identificao dos sujeitos: o que se

    especula

  • em 3) Virtus como metfora;

    - a transformao do campo das normas e valores de sociabilidade: o que se

    apresenta em 4) Communitas, ethik;

    - a transformao do sistema de pensamento pelo qual se vem tradicionalmente

    aferindo os fatos socioculturais: o que se sugere em 5) Communicatio e

    epistme.

    I

    O etnos midiatizado

    Aqui se vai procurar mostrar que a mdia ("meios" e "nipermeios") implica uma

    nova qualificao da vida, um bios virtual. Sua especificidade, em face das

    formas

    de vida tradicionais, consiste na criao de uma eticidade (costume, conduta,

    cognio, sensorialismo) estetizante e

    vicaria, uma espcie de "terceira" natureza.

    A maneira do "anjo", mensageiro de um poder simultneo, instantneo e global

    exercido num espao etreo, as tecnologias da comunicao instituem-se como

    "toca de

    Deus": uma sintaxe universal que fetichiza a realidade e reduz a complexidade

    das antigas diferenas ao unum do mercado. ..-. A ,

    A virada do sculo coincide com a passagem da comunicao centralizada.,

    vertical e unidirecional (comunicao de massa, identificada por Edgar Morin num

    texto clebre

    como o "esprito do tempo") as possibilidades trazidas pelo avano tcnico das

    telecomunicaes, relativas interatividade e ao multimidialismo. H quem a

    elas

    se refira como tecnologias "ps-miditicas".

    As novas tecnologias apoiam e coincidem, em termos econmi cos, com a

    extraordinria acelerao da expanso do capital (o "turf bocapitalismo") esse

    processo tendencial de transnacionalizao do ' sistema produtivo e de

    atualizao do velho liberalismo de Adam t Smith a que se vem chamando de

    "globalizao"

    e cuja autopropa

    ganda, atravessada pela ideologia do pensamento nico, lhe atribui poderes

    universais de uniformizao. Na realidade, esta ltima

    caracterstica mais postulado

    do que fato, uma vez que a globalizao mostra-se, claramente regional (os

    investimentos concentram-se em determinadas regies do mundo) no seu modo de

    ao. Global

    mesmo a medida da velocidade de deslocamentos de capitais e

    11

    informaes, tornados possveis pelas teletecnologias - globalizao ,

    portanto, um outro nome para a "teledistribuio" mundial de pessoas e coisas.

    De fato, o que

    o fenmeno globalista (j antigo) tem de muito novo no fim deste milnio - alm

    da "financeirizao" do mundo capitaneada pela vocao imperial dos Estados

    Unidos

    - primeiramente uma base material caracterizada por verdadeira mutao

    tecnolgica, que decorre de macia concentrao de capital em cincias como

    engenharia microeletrnica

  • (nanotecnologia), computao, biotecnologia e fsica. Em seguida, esbatida

    contra este pano de fundo, a "informao", palavra de grande ambigidade

    semntica, mas

    que vem designando modos operativos, baseados na transmisso de sinais, desde

    estruturas puramente matemticas at as organizacionais e cognitivas.

    No mercado, o termo informao recobre uma variedade de formas (filmes,

    notcias, sons, imagens, dgitos, etc.), definidas em ltima anlise como

    "fontes de dados"

    e economicamente caracterizveis como produtos. Sobre este ltimo tipo de

    informao incide principalmente a mutao, que favorece o intercmbio ampliado

    e acelerado

    entre naes. Sobre os novos produtos no paira mais o temor - tpico dos anos

    1960 e 1970 - de destruio da "alta cultura" por uma suposta homogeneizao

    inapelvel

    da "cultura de massa", uma vez que as fronteiras entre ambas se apagam diante da

    onda planetarista da globalizao ou da chamada "sociedade da informao",

    indiferente

    a tudo que no seja a velocidade de seu processo distributivo de capitais e

    mensagens.

    No faltam os que exaltem o computador e a Internet como "a verdadeira revoluo

    do sculo", comparvel imprensa de tipos mveis de Gutenberg, que modificou a

    maneira de pensar e aprender. E corrente a expresso "Revoluo da Informao",

    como um sucedneo de "Revoluo Industrial", para designar os impactos em curso.

    A palavra "revoluo" pode revelar-se, aqui, enganosa. Ela sempre implicou o

    inesperado do acontecimento (portanto, o transe de uma ruptura) e o vigor tico

    de um

    novo valor. Revoluo no conceito que se reduza ao da mudana pura e simples,

    uma vez que seu horizonte teleolgico acena tico-politicamente com uma nova

    justia.

    As transformaes tecnolgicas da informao mostram-se

    12

    francamente conservadoras das velhas estruturas de poder, embora possam aqui e

    ali agilizar o que, dentro dos parmetros liberais, se chamaria de

    "democratizao".

    Mesmo do ponto de vista estritamente material, mutao tecnolgica parece-nos

    expresso mais adequada do que "revoluo", j que no se trata exatamente de

    descobertas

    linearmente inovadoras, e sim da maturao tecnolgica do avano cientfico, que

    resulta em hibridizao e rotinizao de processos de trabalho e recursos

    tcnicos

    j existentes sob outras formas (telefonia, televiso, computao) h algum

    tempo. Hibridizam-se igualmente as velhas formaes discursivas (texto, som,

    imagem),

    dando margem ao aparecimento do que se tem chamado de hipertexto ou hipermdia.

    com a Revoluo Industrial ocorreu algo semelhante, como bem assinala Drucker1.

    A mquina a vapor (transformadora da relao matria/energia) foi, assim como o

    computador

    para a contemporaneidade, o gatilho das transformaes que levaram mecanizao

    da produo de bens. Mas o impacto efetivamente revolucionrio, no sentido da

    transformao

    de economia, poltica e vida social, deu-se com a inveno da ferrovia - uma

    recombinao de recursos tcnicos j existentes -, que unificou naes e

    mercados,

  • modernizando processos e mentalidades. O "novo", como se v, consistiu

    propriamente no aumento da velocidade de deslocamento ou "distribuio" de

    pessoas e bens no espao.

    A se nucleava propriamente o poder civilizatrio do industrialismo europeu.

    Isto fica sintomaticamente explicitado na declarao de uma escritora inglesa,

    Mary

    Kingsley, ao retornar de uma visita frica, uma dcada depois da diviso

    daquele continente entre as potncias imperialistas da Europa (1884): "[...] O

    que me

    deixa orgulhosa de ser inglesa no so as nossas maneiras e costumes [...],

    aquilo que est corporificado nas ferrovias. [...] a manifestao da

    superioridade

    da minha raa".

    No que diz respeito Revoluo da Informao, novo mesmo o fenmeno da

    estocagem de grandes volumes de dados e a sua rpida transmisso, acelerando, em

    grau indito

    na Histria, isto que se tem revelado uma das grandes caractersticas da

    Modernidade - a

    f

    l.Cf. Drucker, Peter. O futuro j chegou. Revista Exame, de 22/03/2000, p. 113-

    126.

    13

    mobilidade ou a circulao das coisas no mundo. Se a Industrial centrou-se na

    mobilidade espacial, a da Informao centra-se na virtual anulao do espao

    pelo tempo,

    gerando novos canais de distribuio de bens e a iluso da ubiqidade humana.

    Reencontra-se a parcialmente o sentido grego de economia, que era propriamente

    distribuio ordenada dos bens - o nomos da palavra oikonomos deriva do verbo

    nemein,

    que significa propriamente apascentar, bem distribuir o rebanho no espao, no

    ritmo adequado. O nomos da modernidade tardia caracteriza-se por velocidade e

    fluidez

    dos processos.

    Esta a singularidade ou o esprito do tempo presente. Frente aos tericos que

    buscam caracterizar a sociabilidade atual a partir da metfora explicativa da

    "rede"

    (onde as conexes e as intersees tomam o lugar do que seria antes pura

    linearidade, caracterstica do "telgrafo"), preciso abandonar a iluso de uma

    originalidade

    substancialista desta hiptese e trabalh-la, sob o prisma da velocidade e

    fluidez das conexes. O diferencial a acelerao distributiva (o oikonomos

    intensificado)

    dos processos. No , portanto, a mera presena macia da tcnica nos processos

    sociais, e sim a singular relao intensificadora das neotecnologias com o fluxo

    temporal.

  • Entram em questo as novas nuances da economia capitalista, que tendem a

    favorecer uma catalaxia, ou seja, um ordenamento mercadolgico do mundo, para

    alm de qualquer

    desgnio humano. Isto se realiza historicamente por meio de polticas

    diferenciadas em seus modos de aplicao, mas com um denominador comum

    configurvel como um

    novo tipo de ideologia planetarista capaz de perpassar as instncias econmicas,

    polticas, sociais e culturais.

    Em termos pblicos, o fenmeno recebe o nome de globalizao, mas politicamente

    coincide com a ideologia do "neoliberalismo", uma plataforma econmico-poltico-

    social-cultural,

    empenhada em governo mnimo, fundamentalismo de mercado, individualismo

    econmico, autoritarismo moral e outros. A exacerbao desta ideologia em

    governos ou doutrinas,

    tais como os da inglesa Margaret Thatcher ou do norte-americano Ronald Reagan,

    pode eventualmente conhecer um recesso. Mas, de um modo geral, livre trnsito de

    commodities

    e a velocidade circulatria dos capitais especulativos so valores excelsos do

    novo "oikonomos".

    14

    De fato, na esfera econmico-financeira, acelera-se a mobilidade de grandes

    massas de capitais. A negociao empresarial e o comrcio por meios eletrnicos

    demandam

    a mudana de mtodos, gestes e padres de qualificao profissional, ensejando

    uma nova cultura pblica, fortemente comprometida com o esprito do tempo em

    crescente

    hegemonia. No mbito dos objetos tcnicos, o "futuro" comparece na forma de cada

    novo indutor de nomadismo e velocidade inscrito num instrumento: fluidez da

    telefonia

    celular e da Internet, acrescenta-se, por exemplo, o hbrido "Internet mvel",

    ou seja, Internet pelo celular para gente em trnsito. No campo da mdia, a

    tnica

    do discurso social passa da televiso em circuito aberto para as

    telecomunicaes por toda parte, avana-se na direo da montagem de infra-

    estruturas para as infovias

    ou para os servios de informao de alta velocidade.

    A acelerao do processo circulatrio dos produtos informacionais (culturais)

    tem-se chamado de comunicao, nome de velha cepa que antes designava uma outra

    idia:

    a vinculao social ou o ser-em-comum, problematizado pela dialtica platnica,

    pela koinoniapolitik aristotlica e, ao longo dos tempos, pela palavra

    comunidade.

    Daqui parte a comunicao de que hoje se fala, mas vale precisar que no se

    trata exatamente da mesma coisa - ela agora integra o plano sistmico da

    estrutura de

    poder.

    com efeito, j lugar-comum afirmar que o desenvolvimento dos sistemas e das

    redes de comunicao transforma radicalmente a vida do homem contemporneo,

    tanto nas

    relaes de trabalho como nas de sociabilizao e lazer. Mas nem sempre se

    enfatiza que est primeiramente em jogo um novo tipo de exerccio de poder sobre

    o indivduo

  • (o "infocontrole", a "datavigilncia"). Os sistemas informacionais e as redes de

    telecomunicaes, originalmente concebidos no mbito estratgico das mquinas

    blicas

    e de controle da populao civil preconizadas pela Guerra Fria, ampliam-se

    continuamente como gigantesco dispositivo de espionagem global, controlado

    principalmente

    pela rede de inteligncia norte-americana, centralizada na National Security

    Agency (NSA).

    So sintomticos os debates realizados no Parlamento europeu, no final do

    milnio, sobre o chamado "Echelon", sistema utilizado para a prtica de

    espionagem econmica

    e industrial em pases da

    15

    Unio Europia, assim como na China, Rssia e Amrica Latina. Em meados do ano

    2000, avaliava-se que o sistema seria capaz de realizar diariamente trs bilhes

    de

    interceptaes de mensagens2.

    Tudo isso se pe hoje a servio no apenas do Estado, mas tambm das grandes

    organizaes civis (empresas multinacionais, corporaes de servios, etc.)

    que,pari

    passu com o aumento exponencial de dados sobre consumidores reais e virtuais,

    consolidam pela vigilncia contnua o seu poder de identificao e imobilizao

    dos

    antigos cidados polticos nas funes atribudas pelo mercado.

    Est depois em jogo um novo tipo de formalizao da vida social, que implica uma

    outra dimenso da realidade, portanto formas novas de perceber, pensar e

    contabilizar

    o real. Impulsionadas pela microeletrnica e pela computao ou informtica, as

    neotecnologias da informao introduzem os elementos do tempo real (comunicao

    instantnea,

    simultnea e global) e do espao virtual (criao por computador de ambientes

    artificiais e interativos), tornando "compossveis" outros mundos, outros

    regimes de

    visibilidade pblica. Mas tambm intensificando os cenrios de antecipao dos

    acontecimentos, o que de algum modo neutraliza a abertura para o futuro.

    Na realidade, toda e qualquer sociedade constri (por pactos semnticos ou

    semiticos), de maneira mais ostensiva ou mais secreta, regimes auto-

    representativos ou

    de visibilidade pblica de si mesma. Os processos pblicos de comunicao, as

    instituies ldicas, os espaos urbanos para os encontros da cidadania integram

    tais

    regimes.

    No sistema moderno de comunicao das sociedades ocidentais, seja baseado na

    transmisso oral ou na escrita, as informaes eram simplesmente representadas,,

    isto

    , apresentadas ao receptor numa forma isenta de sua dinmica ou de seu fluxo

    original, o que implica como principais recursos de linguagem a palavra e o

    conceito.

    Nesta esfera movem-se o livro e a imprensa clssica, caracterizada pela

    ideologia poltica das liberdades civis e do discurso crtico.

    com as tecnologias do som e da imagem (rdio, cinema, televiso), constituiu-se

    o campo do audiovisual, e o receptor passou a 2. Em La marca de Ia bestia -

    Identificacin, desigualdades e infoentretenimiento en Ia sociedad contempornea

    (Editorial Norma, 1999), Anbal Ford traa um

  • quadro bastante preciso dessa questo.

    16

    acolher o mundo em seu fluxo, ou seja, fatos e coisas reapresentados a partir da

    simulao de um tempo "vivo" ou real, na verdade uma outra modalidade de

    representao,

    que supe um outro espao-tempo social (imaterialmente ancorado na velocidade do

    fluxo eletrnico), um novo modo de auto-representao social e, por certo, um

    novo

    regime de visibilidade pblica. Fala-se aqui, por conseguinte, de simulao,

    quer dizer, da existncia de coisa ou fato gerados por tcnicas analgicas

    (ondas hertzianas,

    transmisso por cabo).

    A partir do computador, a simulao digitaliza-se (a informao veiculada por

    compresso numrica) e, nos atuais termos tecnolgicos, passamos da dominncia

    analgica

    digital, embora os dois campos estejam em contnua interface. Da decorre a

    conformao atual da tecnocultura, uma cultura da simulao ou do fluxo, que faz

    da

    "representao apresentativa" uma nova forma de vida. Saber e sentir ingressam

    num novo registro, que o da possibilidade de sua exteriorizao objetivante,

    de

    sua delegao a mquinas.

    Atesta-se a presena, no atual regime de visibilidade, de um verdadeiro

    paradigma analgico-digital, que introduz novas variveis tcnicas, econmicas e

    polticas.

    Vejamos as tcnicas: a convergncia digital reduz as barreiras materiais,

    permitindo a unificao de telefonia, radiodifuso, computao e imprensa

    escrita; alm

    disso, registra-se em determinados pases uma tendncia para a aproximao entre

    o campo comunicacional e toda e qualquer empresa que trabalhe com fluxo ou rede,

    a exemplo de eletricidade, eletrnica, transportes, etc.

    Em seguida, as econmicas: do lado da produo, a tendncia de fuso das

    indstrias setoriais, gerando conglomerados poderosos (seis grandes empresas

    dominam hoje

    o mercado mundial) enquanto que do lado do consumo prev-se maior ajuste entre a

    oferta e demanda (um exemplo a televiso digital, de alta definio, que

    permite

    ao usurio "montar" o seu prprio programa), capaz de levar a redefinio da

    relao produto/consumidor3. Mas preciso observar que,

    3. No final do milnio, a "economia digital" - comrcio eletrnico e indstrias

    de tecnologia da informao - j era o setor econmico de maior crescimento nos

    Estados

    Unidos, embora com uma participao ainda relativamente modesta de 1,7% do

    Produto Nacional Bruto. Mas o setor tornou-se responsvel por cerca de um quarto

    de toda

    a capitalizao do mercado de aes norte-americano,

    o que significa um papel central na dinamizao do crescimento tanto do mercado

    de consumo quanto do investimento de capitais.

    17

    apesar dos discursos sobre o "acesso universal", o consumo desses produtos

    cada vez mais privatizado e socialmente diferenciado; e polticas: na medida em

    que

  • as indstrias da telefonia e da computao avanam sobre o territrio

    tradicionalmente ocupado pela radiodifuso em circuito aberto, abrem-se as vias

    para o redesenho

    do controle poltico dos meios de comunicao; tais vias, entretanto, dentro do

    atual modelo neoliberal para a mdia, favorecem quase exclusivamente apenas o

    setor

    privado das comunicaes.

    enorme o impacto da chamada "economia digital" sobre o mundo do trabalho e

    sobre a cultura: na indstria, na pesquisa cientfica, na educao, no

    entretenimento,

    as novas variveis transformam velozmente a vida das pessoas. Um sistema

    produtivo pode fragmentar-se numa escala global, organizando a diviso do

    trabalho segundo

    suas convenincias regionais ou sindicais. O comrcio mundial tende a confluir

    para a rede ciberntica, abrindo possibilidades de novos empregos e atividades

    rendosas.

    Desenha-se a partir da a possibilidade de um novo tipo de empresa, a "empresa

    virtual", definida como uma estrutura hbrida de atividades organizadas, mas sem

    a

    dependncia constante de decises hierrquicas ou de canais de controle.

    Ao mesmo tempo, o virtual representa no mbito da economia a possibilidade de se

    agir generalizadamente em funo de expectativas difusas, indeterminadas. Marx

    j

    falava de "capital fictcio", uma outra dimenso da ratio econmica, onde se

    especula com opes reais para um futuro imaginrio. As opes podem,

    estrategicamente,

    tornar-se mais importantes que os lucros especulativos imediatos. A exacerbada

    mobilidade contempornea torna aguda a conscincia de que preciso acompanhar

    as

    mudanas, mesmo sem que se conhea exatamente a sua natureza.

    Por exemplo, no final do sculo XX, as aes das empresas que trabalhavam com a

    Internet (ditas "pontocom") passaram a ter muito valor, embora a maioria tivesse

    lucro inexpressivo ou at mesmo operasse no vermelho. O que importava era o

    potencial de lucro implicado na empresa. Evidentemente, isto no poderia durar

    muito

    tempo, uma vez que existe o contrapeso concreto da economia: muitas das empresas

    ditas "virtuais" terminaram em falncia, seno expulsas do mercado por aquelas

    que

    efetivamente dispunham de sustentao no mundo "real-histrico".

    18

    largo, no entanto, o espectro das transformaes epocais. Muda, por exemplo, a

    natureza do espao pblico, tradicionalmente animado pela poltica e pela

    imprensa

    escrita. Agora, formas tradicionais de representao da realidade e novssimas

    (o virtual, o espao simulativo ou telerreal da hipermdia) interagem,

    expandindo

    a dimenso tecnocultural, onde se constituem e se movimentam novos sujeitos

    sociais.

    A imprensa escrita, como apontam vrios analistas de mdia, sempre esteve no

    centro desse processo representativo. Numa perspectiva diacrnica, pode-se

    formular

    para ela modelos diversos de comunicao, correspondentes a diferentes etapas

    histricas nas sociedades liberais-democrticas.

  • Mige4, por exemplo, distingue quatro modelos: 1) imprensa de opinio -

    caracterizada pela produo artesanal, tiragens reduzidas, estilo polmico e

    manifestao

    de idias; foi o tipo de imprensa que introduziu no espao pblico a razo

    argumentativa cara burguesia ascendente; 2) imprensa comercial - organizada em

    bases

    industriais/mercantis, com prioridade para a publicidade e a difuso informativa

    (notcia), politicamente ligada democracia parlamentar; 3) mdia de massa -

    produo

    definitivamente dependente de investimentos publicitrios e tcnicas de

    marketing, predomnio das tecnologias audiovisuais e grande valorizao do

    espetculo; 4)

    comunicao generalizada - a reboque do Estado, das grandes organizaes

    comerciais e industriais, dos partidos polticos, a informao insinua-se nas

    clssicas

    estruturas socioculturais e permeia as relaes intersubjetivas; trata-se aqui

    do que tambm se vem chamando de realidade virtual.

    Na contemporaneidade, d-se progressivamente primazia ao quarto modelo, em que a

    rede tecnolgica praticamente confunde-se com o processo comunicacional e em que

    o resultado do processo, no mbito da grande mdia, a imagem-mercadoria. Mas

    no se recusam os modelos anteriores. Podem todos coexistir sincronicamente, num

    mesmo

    espao social, desde que se integrem num mesmo plano tecnolgico e econmico.

    Assim, a convergncia do computador

    4. Cf. Mige, Bemard. O Espao pblico: Perpetuado, ampliado e fragmentado. In'.

    Novos Olhares, nmero 3, l" semestre de 1999 - ECA/USP, p. 4-11.

    19

    com a televiso pode ascender, mas no interior do modelo neoliberal para o setor

    da mdia e das telecomunicaes. isto mesmo a dita "sociedade da informao":

    um slogan tecnicista, manejado por industriais e polticos.

    Nada h aqui do que antes se chamaria de "revolucionrio". H to-s

    hibridizao dos meios, acompanhada da reciclagem acelerada dos contedos

    (sampling, no jargo

    da tecnocultura), com novos efeitos sociais. Uma frmula j antiga, como o

    noticirio jornalstico, quando transmitida em tempo real, torna-se estratgica

    nos termos

    globalistas do mercado financeiro: um pequeno boato pode repercutir como

    terremoto em regies do planeta fisicamente distantes.Uma enciclopdia

    temporalmente acelerada

    torna-se "hipertexto".

    Apoiadas no computador, as redes e as neotecnologias do virtual deixam intacto,

    todavia, o conceito de mdium, entendido como canalizao - em vez de inerte

    "canal"

    ou "veculo" - e ambincia estruturados com cdigos prprios. inadequada, por

    isto, a designao de "ps-miditicas" - baseada na considerao de que a nova

    mdia

    no implica apenas uma extenso linear da tradicional - para as novas

    tecnologias.

    Mdium, entenda-se bem, no o dispositivo tcnico. Um exemplo comparativo: o

    gnero musical conhecido como "rock'n roll" , na verdade, o negro rythm'n

    blues,

    acoplado ento novidade tcnica do disco de vinil em 33 rotaes por minuto e

    socialmente produzido por rdio (disc-jockey) e mercado. Da mesma maneira,

    mdium

    o fluxo comunicacional, acoplado a um dispositivo tcnico ( base de tinta e

    papel, espectro hertziano, cabo, computao, etc.) e socialmente produzido pelo

    mercado

  • capitalista, em tal extenso que o cdigo produtivo pode tornar-se "ambincia"

    existencial. Assim, a Internet, no o computador, mdium.

    O mdium televisivo (com possibilidades de mutao tcnica, a exemplo das

    previses de especialistas sobre o "telecomputador") permanece ainda hoje como

    fulcro da

    mdia tradicional, enquanto que o virtual e as redes (Internet), at agora

    isentos do regime de concesses estatais, apontam para caminhos ainda no

    totalmente

    discernveis.

    Indiscutvel a evidncia de que tempo real e espao virtual operam

    midiaticamente o redimensionamento da relao espcio-temporal clssica.

    20

    1. Um quarto bios

    Tudo isto, associado a um tipo de poder designvel como "ciberocracia", confirma

    a hiptese, j no to nova, de que a sociedade contempornea (dita "ps-

    industrial")

    rege-se pela midiatizao, quer dizer, pela tendncia "virtualizao" ou

    telerrealizao das relaes humanas, presente na articulao do mltiplo

    funcionamento

    institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias

    da comunicao. A estas se deve a multiplicao das tecnointeraes setoriais.

    preciso esclarecer o alcance do termo "midiatizao", devido sua diferena

    com "mediao" que, por sua vez, distingue-se sutilmente de "interao", um dos

    nveis

    operativos do processo mediador. com efeito, toda e qualquer cultura implica

    mediaes simblicas, que so linguagem, trabalho, leis, artes, etc. Est

    presente na

    palavra mediao o significado da ao de fazer ponte ou fazer comunicarem-se

    duas partes (o que implica diferentes tipos de interao), mas isto na verdade

    decorrncia

    de um poder originrio de descriminar, de fazer distines, portanto de um lugar

    simblico, fundador de todo o conhecimento. A linguagem por isto considerada

    mediao

    universal.

    Para inscrever-se na ordem social, a mediao precisa de bases materiais, que se

    consubstanciam em instituies ou formas reguladoras do relacionamento em

    sociedade.

    As variadas formas da linguagem e as muitas instituies mediadoras (famlia,

    escola, sindicato, partido, etc.) investem-se de valores (orientaes prticas

    de conduta)

    mobilizadores da conscincia individual e coletiva. Valores e normas

    institucionalizados legitimam e outorgam sentido social s mediaes.

    J midiatizao uma ordem de mediaes socialmente realizadas no sentido da

    comunicao entendida como processo informacional, a reboque de organizaes

    empresariais

    e com nfase num tipo particular de interao - a que poderamos chamar de

    "tecnointerao" -, caracterizada por uma espcie de prtese tecnolgica e

    mercadolgica

    da realidade sensvel, denominada mdium?. Trata-se de dispositivo

    5.O espelho , na Histria humana, a prtese primitiva que mais se assemelha ao

    mdium contemporneo, guardadas as devidas diferenas. que o espelho -

    superfcie

    capaz de refletir a radiao luminosa - traduz reflexivamente o mundo sensvel,

    fechando em sua rasa superfcie tudo aquilo que reflete. O mdium, por sua vez,

    simula

    o espelho, mas no jamais puro reflexo, por

    ser tambm um condicionador ativo daquilo que diz refletir.

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    VtorHighlightCondicionador: conjunto de regras intituidas pelo medium

  • 21

    cultural historicamente emergente no momento em que o processo da comunicao

    tcnica e industrialmente redefinido pela informao, isto , por um regime

    posto

    quase que exclusivamente a servio da lei estrutural do valor, o capital, e que

    constitui propriamente uma nova tecnologia societal (e no uma neutra

    "tecnologia

    da inteligncia") empenhada num outro tipo de hegemonia tico-poltica.

    A astcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentativa de deixar

    visvel apenas o aspecto tcnico do dispositivo miditico, da "prtese",

    ocultando

    a sua dimenso societal comprometida com uma forma especfica de hegemonia, onde

    a articulao entre democracia e mercadoria parte vital de estratgias

    corporativas.

    Essas ideologias costumam permear discursos e aes de conglomerados

    transnacionais e de idelogos dos novos formatos de Estado.

    Aplicado a mdium, o termo "prtese" (do grego prosthenos, extenso),

    entretanto, no designa algo separado do sujeito, maneira de um instrumento

    manipulvel,

    e sim aforma tecnointeracional resultante de uma extenso especular ou espectral

    que se habita, como um novo mundo, com nova ambincia, cdigo prprio e

    sugestes

    de condutas. Isto eqivale a dizer que essa forma que no se pode

    instrumentalizar por inteiro, isto , objetiv-la socialmente como um

    dispositivo submetido a

    um sujeito, por ser uma entidade capaz de uma retroao expropriativa de

    faculdades tradicionalmente atinentes soberania do sujeito, como saberes e

    memria.

    J existe, alis, algo de especular em toda e qualquer conduta, como bem viu

    Goethe, ao dizer que "a conduta o espelho em que todos exibem a sua imagem".

    Mas a

    canalizao em que implica a prtese miditica no se confunde com a prtese

    clssica de um espelho, ainda que possa, a exemplo da imagem especular, ser

    chamada

    de "extensiva e intrusiva", por nos permitir olhar onde o olho no alcana (o

    rosto, as costas, etc.). A palavra deve ser agora tomada como metfora

    intelectiva,

    para um ordenamento cultural da sociedade em que as imagens deixam de ser

    reflexos e mscaras de uma realidade referencial para se tornarem simulacros

    tecnicamente

    auto-referentes, embora poltico-economicamente a servio de um novo tipo de

    gesto da vida social.

    22

    No espelhamento de parte da mdia tradicional ou "linear" (cinema, televiso),

    ainda se mostra ou se aponta com imagens "paraespeculares", para um espao

    externo

    (como na figura retrica da hipotipose), que se busca representar

    realisticamente. Ou seja, ainda h na representao um efeito irradiado do

    referente externo. J

    nos ambientes digitais da nova mdia, porm, o usurio pode "entrar" e mover-se,

    graas interface grfica, trocando a representao clssica pela vivncia

    apresentativa.

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  • O "espelho" miditico no simples cpia, reproduo ou reflexo, porque implica

    uma forma nova de vida, com um novo espao e modo de interpelao coletiva dos

    indivduos,

    portanto, outros parmetros para a constituio das identidades pessoais.

    Dispe, conseqentemente, de um potencial de transformao da realidade vivida,

    que no

    se confunde com manipulao de contedos ideolgicos (como se pode s vezes

    descrever a comunicao em sua forma tradicional). forma condicionante da

    experincia

    vivida, com caractersticas particulares de temporalidade e espacializao, mas

    certamente distinta do que Kant chamaria, a propsito de tempo e espao, de

    forma

    a priori.

    A forma miditica condiciona apenas na medida em que se abre a permeabilizaes

    ou permite hibridizaes com outras formas vigentes no real-histrico. Trata-se

    de

    fato da afetao de formas de vida tradicionais por uma qualificao de natureza

    informacional uma tecnologia societal, como j frisamos - cuja inclinao no

    sentido

    de configurar discursivamente o funcionamento social em funo dos vetores

    mercadolgicos e tecnolgicos caracterizada por uma prevalncia da forma (que

    alguns

    autores preferem chamar de "cdigo"; outros, de "meio") sobre os contedos

    semnticos.

    So os aspectos de hipertrofia e de um certo vampirismo dessa forma codificante

    e tecnointeracional que suscitam as desconfianas de crticos da cultura tardo-

    moderna

    (como Baudrillard), mas que tambm atraem as alvssaras de outros, a exemplo de

    McLuhan, para quem nessa forma-meio est a prpria mensagem, isto , o contedo.

    Nela se pem em primeiro plano o envolvimento sensorial, a pura relao, a

    "mensagem".

    23

    Todo este processo uma expanso do que Giddens chama de "reflexividade

    institucional" - um dos motores da modernidade -, ou seja, o uso sistemtico da

    informao

    ou do saber com vistas reproduo de um sistema social6. Na modernidade

    clssica, a reflexividade histrica uma pletora de recursos racionais

    (filosofia, cincias

    sociais, publicismo, etc.) aplicada vida caracterizava-se por uma competncia

    analtica voltada para a compreenso dos fenmenos humanos e sociais: a auto-

    reflexividade,

    exaltada como uma demonstrao da soberania do esprito.

    Hoje, o processo redunda numa "mediao" social tecnologicamente exacerbada, a

    midiatizao, com espao prprio e relativamente autnomo em face das formas

    interativas

    presentes nas mediaes tradicionais. A reflexividade institucional agora o

    reflexo tornado real pelas tecnointeraes, o que implica um grau elevado de

    indiferenciao

    entre o homem e a sua imagem - o indivduo solicitado a viver, muito pouco

    auto-reflexivamente, no interior das tecnointeraes, cujo horizonte

    comunicacional

    a interatividade absoluta ou a conectividade permanente.

    Desde o imediato ps-guerra, esse processo vem alterando costumes, crenas,

    afetos, a prpria estruturao das percepes e agora se perfaz com a integrao

    entre

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  • os mecanismos clssicos da representao e os dispositivos do virtual. Mas o

    conceito de midiatizao ao contrrio do de mediao - no recobre a totalidade

    do campo

    social, e sim, como j frisamos, o da articulao hibridizante das mltiplas

    instituies (formas relativamente estveis de relaes sociais comprometidas

    com finalidades

    humanas globais) com as vrias organizaes de mdia, isto , com atividades

    regidas por estritas finalidades tecnolgicas e mercadolgicas, alm de

    culturalmente

    afinadas com uma forma ou um cdigo semitico especfico.

    Implica a midiatizao, por conseguinte, uma qualificao particular da vida, um

    novo modo de presena do sujeito no mundo ou, pensando-se na classificao

    aristotlica

    das formas de vida, um bios especfico. Logo nas primeiras pginas de sua tica

    a Nicmaco,

    6. Cf. Giddens, A. Une Thore Critique de Ia Modemit Avance. In:

    Structuration du Social et ModemitAvance. Org.: Michel Audet et Hamid

    Bouchikhi, PUL, Quebec.

    Aristteles distingue, a exemplo do que j fizera Plato no Filebo, trs gneros

    de existncia (bios) na Polis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios

    politikos

    (vida poltica) e bios apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo)7.

    Cada bios , assim, um gnero qualificativo, um mbito onde se desenrola a

    existncia humana, determinado por Aristteles a partir do Bem (to agathori) e

    da felicidade

    (eudaimonia) aspirados pela comunidade. A "vida de negcios", a que o filsofo

    faz breve referncia no mesmo texto, no constitui nenhum bios especfico, por

    ser

    motivada por "alguma coisa mais" (entenda-se: mais do que o Bem e a felicidade),

    apontada como "algo violento".

    Partindo-se da classificao aristotlica, a midiatizao ser pensada como

    tecnologia de sociabilidade ou um novo bios, uma espcie de quarto mbito

    existencial,

    onde predomina (muito pouco aristotelicamente) a esfera dos negcios, com uma

    qualificao cultural prpria (a "tecnocultura"). O que j se fazia presente,

    por meio

    da mdia tradicional e do mercado, no ethos abrangente do consumo, consolida-se

    hoje com novas propriedades por meio da tcnica digital.

    De fato, as descries correntes de ambientes interativos e imersivos

    digitalmente criados apontam para traos anlogos as formas de vida. Murray, por

    exemplo, relaciona

    propriedades processuais, que consistem em programar e definir aptides para a

    execuo de Kgrzs;participatrias, ou seja, programam-se comportamentos e

    respostas;

    espaciais ou possibilidades de movimentar-se, de "navegar" topologicamente e

    enciclopdicas, devido gigantesca capacidade de conservao de dados pelo

    computador8.

    Nossa idia de um quarto bios ou uma nova forma de vida no meramente

    acadmica, uma vez que j se acha inscrita no imaginrio contemporneo sob forma

    de fices

    escritas e cinematogrficas. Tal , por exemplo, a base narrativa do filme

    norte-americano O show de Truman, em que o personagem principal vive numa

    comunidade

    7. Cf. Aristteles. tica a Nicmaco, livro I, parte 5. Referimo-nos aqui a duas

    edies: l)tica Nicomaqueay tica Eudemia. Biblioteca Clssica Credos, 1988; 2)

    Nicomachean Ethics. The Univesity of Chicago (traduo de David Ross).

    8. Cf. Murray, Janet H. Hamalet on the holodeck: The future ofnarrative in

    VtorHighlight

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  • cybenpace. The Free Press, 1977, p. 71-89.

    25

    sem saber que todas as suas aes cotidianas, de trabalho, vizinhana, amizade,

    amor, etc. so cenarizadas e transmitidas a um pblico mundial, em tempo real,

    por

    ubquas cmaras de televiso, controladas por tcnicos e um diretor de

    programao. A cidade imaginria de Truman de fato uma metfora do quarto

    bios, um arremedo

    da forma social miditica.

    O mesmo princpio imaginrio, embora com diferentes hipteses tecnolgicas, tem

    sido trabalhado em filmes como Matrix, O 12 andar, A cidade das sombras e

    outros.

    Nestes, no se trata mais de um espetculo para a indstria cultural, nem de

    mdia tradicional (a televiso), mas de "realidade virtual" produzida por

    computao.

    Diferentemente de O show de Truman, aqui j se joga com a hesitao coletiva na

    determinao do que original (substncia) ou simulado (linguagem, discurso,

    informao

    numrica) em matria de vida.

    Na verdade, h muito tempo se sabe que a linguagem no apenas designativa, mas

    principalmente produtora de realidade. A mdia , como a velha retrica, uma

    tcnica

    poltica de linguagem, apenas potencializada ao modo de uma antropotcnica

    poltica - quer dizer, de uma tcnica formadora ou interventora na conscincia

    humana

    para requalificar a vida social, desde costumes e atitudes at crenas

    religiosas, em funo da tecnologia e do mercado.

    A questo inicial a de se saber como essa qualificao - historicamente

    justificada pelo imperativo de redefinio do espao pblico burgus em face das

    mudanas

    estruturais, que vm deslocando o Estado liberal clssico e desestruturando a

    sociedade de classes tradicional - atua em termos de influncia ou poder na

    construo

    da realidade social (moldagem de percepes, afetos, significaes, costumes e

    produo de efeitos polticos) desde a mdia tradicional at a novssima,

    baseada

    na interao em tempo real e na possibilidade de criao de espaos artificiais

    ou virtuais.

    Esta , na verdade, a questo central de toda sociologia ou toda antropologia da

    comunicao contempornea. E a maior parte das pesquisas at agora realizadas

    sobre

    influncia e efeitos, especialmente os polticos, tem levado convico de que

    a mdia estruturadora ou reestruturadora de percepes e cognies,

    funcionando

    como uma espcie de agenda coletiva.

    26

    Ancora-se nessa convico a hiptese (acadmica) norte-americana da agenda-

    setting9, em especial no que diz respeito ao impresso. A palavra agenda , em

    latim, um

    particpio futuro passivo: "(as coisas que) devem ser feitas". Agendar

    organizar a pauta de assuntos suscetveis de serem levados em conta individual

    ou coletivamente.

    VtorHighlight

  • No se trata de mera preocupao da Academia. A pergunta freqente sobre as

    possibilidades de democracia participativa na mdia ou sobre seus poderes de

    transformao

    social exige um esclarecimento preliminar quanto natureza do poder da

    informao, quanto sua especificidade.

    Evidente j se fez que a democratizao (ou qualquer ponto-de-fuga para o status

    quo monopolista) no nada que se obtenha pela multiplicidade tcnica de

    canais,

    nem por uma legislao liberal aplicada s telecomunicaes, nem mesmo pela

    concentrao de espaos promovida pelas redes cibernticas, que faz os "grandes"

    eqivalerem

    virtualmente aos "pequenos".

    E que a tecnocultura - essa constituda por mercado e meios de comunicao, a do

    quarto bios implica uma transformao das formas tradicionais de

    sociabilizao,

    alm de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Implica, portanto, um novo tipo

    de relacionamento do indivduo com referncias concretas ou com o que se tem

    convencionado

    designar como verdade, ou seja, uma outra condio antropolgica.

    Do ponto de vista da mdia tradicional - televiso e entretenimento, basicamente

    -, o poder da tecnocultura homlogo (e a homologia no se d por acaso, passa

    pelo vetor globalizante do chamado "turbocapitalismo" e do mercado) hegemonia

    norte-americana no Ocidente, que reside em sua capacidade de formar a agenda

    poltica

    e noticiosa internacional, de produzir em seus laboratrios e indstrias a maior

    parte dos objetos da economia miditica e de atrair as conscincias para uma

    forma

    de vida sempre modernizadora, por vias do liberalismo democrtico e do consumo.

    Na verdade, a lgica dos processos de mdia associa-se, desde fins do sculo

    XIX, dinmica da vida norte-americana, assim definida

    9. Cf. Mac Comb, M. & Shaw, Donald. The Agenda-Setting Function ofMass-Media.

    Public Opinion Quarterly, 36, 72, p. 176/187.

    27

    pelo presidente Calvin Coolidge: "O negcio dos Estados Unidos so os negcios".

    Mas sob o feitio neoliberal assumido pela globalizao no final do milnio,

    desde

    quando comeou a extraordinria expanso da economia dos Estados Unidos,

    exacerbou-se a dimenso imperial (em detrimento da dimenso republicana), do

    poder desse

    pas sobre o mundo, sobrecarregando o agendamento miditico com as molduras

    neoliberais da homogeneizao.

    Por mais despolitizado que pretenda parecer, o bios miditico implica de fato

    uma refigurao do mundo pela ideologia norte-americana (portanto, uma espcie

    de narrativa

    poltica), caucionada pelo fascnio da tecnologia e do mercado. Nele, esto

    presentes as marcas essenciais de uma "universalidade" americana. Se o Imprio

    Romano

    dominou o mundo pela espada e pelos ritos, o Imprio Americano controla pelo

    capital e pela agenda miditica do democratismo comercial (informao,

    difusionismo

    cultural, entretenimento). No h nada de verdadeiramente "libertrio" nos ritos

    do rock'n roll e do consumo, h to-s coerncia liberal.

    2. Efeitos polticos

    Agenda no significa, porm, doutrinao ou inculcao de idias em conscincias

    dispostas como tabula rasa. Induz s vezes a esta crena o tipo de crtica

    dirigido

  • mdia por militantes polticos ou ento autores como Noam Chomsky e Hans

    Magnus Enzensberger, quando a caracterizam como "indstria de manipulao das

    conscincias".

    Embora seja pondervel o diagnstico de que a mdia restringe, ao invs de

    ampliar a liberdade de expresso, esses autores deixam passar despercebida a

    dificuldade

    da categoria "manipulao", que implica pura linearidade ou instrumentalidade

    absoluta do mdium e a hegemonia de uma conscincia sobre a outra. Como j

    vimos, inexiste

    esse tipo de linearidade, e a prpria mdia, especialmente em sua nova

    configurao de plena realidade virtual, j uma nova forma de conscincia

    coletiva, com

    um modo especfico de produzir efeitos.

    Por exemplo, os efeitos polticos: ningum vota num poltico "televisivo" porque

    a tev manda, maneira manipulativa do Grande Irmo orwelliano, e sim porque

    fez

    sua escolha a partir de um

    cenrio - que a tev cria por notcias convenientemente editadas, dramas,

    espetculos, entrevistas, comentrios -, na verdade, uma "agenda" sub-reptcia

    do que deve

    ser o poltico ou do que deve fazer o eleitor para tornar-se compatvel com a

    modernidade apregoada pela economia de mercado, que por sua vez sustenta a

    televiso.

    Mas algum pode votar num poltico determinado simplesmente porque ele aparece,

    no modo quase-presente da imagem, ocupando o espao publicitrio que lhe foi

    reservado

    pelas disposies da legislao eleitoral. Ou seja, vota porque o outro

    simplesmente existe num espao valorizado (a mdia), o que o torna legitimado

    pelo regime

    de visibilidade pblica hegemnico. O slogan da Internet - "o que no est na

    Internet simplesmente no existe" - aplica-se igualmente mdia tradicional.

    Da,

    a disputa acirrada dos partidos - nos pases em que h um horrio eleitoral

    reservado gratuitamente a polticos - por minutos a mais na televiso.

    A anlise de processos eleitorais concretos pode contribuir para o melhor

    esclarecimento desse ponto. Por exemplo, a sintomtica eleio de

    Fernando Collor de Mello

    para a presidncia da repblica brasileira em 1989. Sabe-se que ele detinha o

    apoio de setores conservadores da sociedade (desde as elites empresariais e

    financeiras

    que desejam aumentar a flexibilidade econmica com a manuteno da organizao

    tradicional do Estado at os setores privilegiados da classe mdia) e da rede

    hegemnica

    de televiso (Rede Globo), assustados com a plataforma poltica do Partido dos

    Trabalhadores. Restava conquistar a) a massa de eleitores flutuantes ou

    indecisos,

    em geral os mais suscetveis de serem influenciados nas ltimas horas pelos

    meios de comunicao ou pelos resultados da simulao de um "turno eleitoral

    antecipado",

    em que se constituem as pesquisas de opinio; b) a massa de eleitores

    socialmente desarraigados.

    As avaliaes estritamente polticas do papel da televiso nesse processo

    eleitoral tendem a atribuir um grande peso ao vis da rede hegemnica favorvel

    a Collor,

  • assim como manipulao das imagens no debate final entre os dois candidatos

    (mais tempo e melhores momentos para Collor; menos tempo e piores momentos para

    Lula,

    o candidato do PT). Inicialmente, preciso redefinir a natureza desse "peso":

    antes das imagens televisivas favorveis, houve um fato muito importante da

    capitalizao

    de recursos e de influncias, pelo conglomerado Globo, junto a lideranas de

    empresas privadas e estatais.

    29

    eQuanto s imagens televisivas, no h dvida de que tiveram sua importncia, em

    especial nas regies mais remotas do pas (onde a tev o nico canal de acesso

    "moderna" realidade nacional), como se evidencia no relato de uma reprter:

    "Quando eu perguntava aos ndios que iam votar na penltima eleio para

    presidente

    da repblica qual era o candidato deles, eles diziam que era Fernando Collor.

    Pedia-lhes a razo de tal escolha, e eles diziam que 'todo mundo estava falando

    que

    ele era o melhor'. Quem era esse todo mundo? Claro, a Rede Globo"10.

    Mas a afirmao da influncia televisiva como causa determinante, em ltima

    instncia, absolutamente indecidvel: no possvel fazer a prova sociolgica

    do fato.

    Veja-se, por exemplo, o caso (embora situado num outro contexto) da eleio

    presidencial no Peru, em abril de 2000. A mdia dominante, controlada pelo

    presidente

    da repblica em exerccio, Alberto Fujimori, desfavorecia o principal candidato

    da oposio, Alejandro Toledo. Este, no entanto, valeu-se na campanha de sua

    origem

    indgena (quechua), mobilizando a varivel da etnicidade junto s mesmas massas

    que provavelmente elegeram Fujimori uma dcada antes.

    Toledo, como se sabe, conseguiu ir para o segundo turno (embora terminasse

    desistindo de concorrer), apesar da fraude evidente na contagem dos votos pela

    mquina

    eleitoral do governo, apoiado por movimentaes populares e presses norte-

    americanas no sentido da correo do processo democrtico. Pode-se afirmar que,

    aqui,

    apesar do resultado final que manteve formalmente Fujimori na presidncia, a

    mdia saiu derrotada11. Tempos depois, nas eleies subseqentes, Toledo

    chegaria

    presidncia da repblica.

    No caso brasileiro, entretanto, inexistia qualquer varivel independente daquela

    ou de outra natureza. A realidade era que, desde dois anos antes da eleio, a

    televiso

    vinha construindo junto a um pblico mais amplo, por telenovelas e sub-reptcias

    inflexes 10. Cf. Batista, Rosalis e Batista, Oduvaldo. Compromisso com a

    Verdade - Meio sculo de jornalismo. Ed. Universitria UFPB, 1999, p. 48.

  • 11. Curiosamente, porm, a prpria mdia, em sua forma "altemativa" (vdeo),

    terminou sendo responsvel pelo desmoronamento do governo. As escandalosas

    imagens televisivas

    do chefe do servio secreto peruano subornando um deputado

    levaram Fujimori a primeiramente convocar novas eleies e depois a fugir do

    pas, asilando-se no Japo.

    30

    doutrinrias nos noticirios e programas de entrevistas, um cenrio ou uma

    agenda do que deveria ser o chefe-da-nao12. Nessa agenda, ratificada pela

    maior parte da

    imprensa escrita (por trs da qual se desenha um longo captulo de influncias e

    dinheiro), perdia crdito a imagem do poltico tradicional - figurado ora como

    corrupto,

    ora como idelogo sectrio - e iluminava-se a imagem de um tipo-ideal afim

    mitologia do mercado: aspecto jovial, descomprometido com a classe poltica,

    investido

    das aparncias de sujeito da moral pblica e com toda a cosmtica (pose, roupa,

    expresses faciais, gestos) de apresentador de tev.

    Neste caso, a ausncia de um programa poltico definido pode concorrer para

    estimular o imaginrio popular na direo de um "eu-ideal" qualquer, no

    necessariamente

    sustentado pela suposta racionalidade do progresso democrtico. Numa populao

    constituda em quase dois teros por analfabetos e semi-alfabetizados (a eleio

    de

    89 foi a primeira a permitir o voto dos analfabetos e dos jovens entre 16 e 18

    anos), a maioria fica culturalmente excluda do jogo partidrio. Este to-s a

    necessria

    base jurdico-constitucional para a continuidade do formalismo democrtico-

    representativo.

    O modelo serve, com variaes, para Fernando Henrique Cardoso, o primeiro

    presidente eleito depois de Collor. Amparado no xito de um plano de

    estabilizao monetria,

    FHC capitalizou a fora de uma espcie de neopopulismo caracterizado por um

    "topo de pirmide" tecnocrtico, por uma base socialmente desarraigada, mas

    adulada pela

    ligeira elevao da capacidade de consumo e por uma ao governamental apoiada

    em imagens miditicas. FHC era tambm interpretante vivo de uma conjuntura

    tecnopopulista.

    Nas reeleies de 98, ficou mais definido o lugar estratgico da televiso no

    jogo poltico-eleitoral. preciso inicialmente considerar que, mesmo

    pertencendo a

    um bios especfico, a tev no um ator social isolado, est sempre inserida em

    contextualizaes de ordem scio-histrica. Colocada dentro de uma tradio

    sociocultural

    patrimonialista, como a brasileira, a tev, apesar do transnacionalismo de sua

    forma, produz efeitos especficos, regionais. Assim que,

    12. Cf. Lima, Vencio. Televiso e Poltica: Hiptese sobre a eleio

    presidencial de 1989. In: Revista Comunicao & Poltica, ano 9, n 11, 1990, p.

    29-54.

    31

    nos estados da Federao brasileira, as emissoras de tev, rdios e jornais de

    maior audincia so totalmente controlados pelas oligarquias, o que obriga as

    candidaturas

    polticas a passarem pelo crivo dos interesses dominantes e da imagem compatvel

    com a mdia13.

  • Apenas em casos desta ordem, a manipulao categoria pertinente explicao

    da influncia televisiva, uma vez que, no mbito regional ou local, o controle

    dos

    contedos miditicos por grupos polticos determinados termina produzindo um

    foco semitico, sistematicamente afim, sem disfarces, interesses e vises-de-

    mundo particulares.

    Por isto, a posse dos meios de comunicao por elites regionais ou mesmo por

    faces orientadas para fins doutrinrios especficos (religiosos, morais, etc.)

    redunda

    num novo tipo de caciquismo poltico-ideolgico. desta maneira que se mantm

    em alguns estados da Federao brasileira o velho "coronelismo" poltico e que,

    em

    grande parte do mundo, governos autoritrios, manipulando o fluxo de informao,

    preservam o controle dos aparatos repressivos de Estado.

    Reduzida, assim, a fora universalista e modernizante do mercado em favor de

    variveis conjunturais administradas por elites locais ou por sofisticados

    dispositivos

    de infovigilncia a servio do Estado, os meios de comunicao podem perder

    algumas das caractersticas predominantes na mdia mercadolgica de carter

    nacional

    e converterem-se temporariamente em mecanismos de propaganda poltica (muito bem

    descritos no clssico -violao das massas pela propaganda poltica, de Serge

    Tchakhotine,

    1939), a exemplo de qualquer imprensa partidria ou oficialista. Da, a

    importncia estratgica para as coalizes governamentais - especialmente nos

    pases ditos

    de "terceiro mundo" - do favorecimento estatal nas concesses de rdio e

    televiso.

    13. A velocidade e a plasticidade da mdia eletrnica ajudam-na a adequar-se

    mais facilmente a novas conjunturas institucionais e polticas. Sem a fixao

    por escrito

    de uma linha ideologicamente coerente, sem memria, excessivamente dependente do

    mercado e dos dispositivos legais do Estado, a televiso instrumento de fcil

    controle, identitariamente oscilante entre dirio oficial do consumo e dirio

    oficial de governo. Vale recordar a tev brasileira sob o regime militar, em

    especial

    a frase do presidente-ditador Garrastazu Medici sobre o telenoticirio da Tv

    Globo: " como tomar um calmante aps um dia de trabalho". So muitos os

    exemplos disso,

    ainda no final de milnio, em

    outros pases latino-americanos, onde os governos podem controlar as emissoras

    por meio do monoplio de verbas publicitrias.

    32

    No Brasil, aliana entre as elites tecnoburocrticas do Centro-Sul e as

    oligarquias regionais para consolidao do projeto de poder subordinado nova

    ordem mundial

    - em termos partidrios, uma coalizo de centro-direita -, correspondia, no

    plano do broadcast televisivo, uma exacerbao de contedos popularescos (a

    programao

    esteticamente grotesca), que vem aqui traduzindo uma espcie de pacto simblico

    ou "contrato de leitura" entre a tev e os estratos economicamente inferiores da

    sociedade.

    A mdia televisiva atua com mais fora de influncia onde so altas as taxas de

    analfabetismo ou ento onde ocorrem uma reduo das formas organizadas de

    mediao

  • do conflito social (sindicatos, partidos polticos e outras instituies da

    sociedade civil) e um aumento da atomizao do comportamento eleitoral, isto ,

    de eleitores

    flutuantes -partidariamente confusos ou institucionalmente indiferentes. E isto

    se d onde mais marcante a convergncia dos velhos eixos ideolgicos

    (esquerda/direita)

    para um centro poltico-gerencial (um bom exemplo disso o que no final do

    milnio os europeus chamavam de "terceira via"), mais preocupada com

    telecomunicaes,

    transportes, ecologia, etc., do que com as grandes teses desenvolvimentistas ou

    reformistas do pensamento poltico tradicional.

    Pode-se ponderar que, mesmo nessa temtica centrista-gerencial, exista uma

    ideologizao. O que certamente no existe uma polarizao antagnica de

    posies, j

    que tendem todas a convergir para um ponto comum, afinado com as novas

    exigncias da tecnologia, do mercado e do status quo societal. As coalizes e as

    tticas pragmticas

    abrem caminho para novas formas de poltica, que acabam por tornar contnua a

    eroso de identidade dos grandes partidos doutrinariamente centralizados.

    Este fenmeno generaliza-se nas sociedades contemporneas, embora em graus de

    intensidade diferentes, como parte de um processo desconstrutivo que vem

    abalando os

    modos clssicos de identificao e organizao das demandas sociais. Ao lado de

    outras mediaes, os partidos vo sendo progressivamente esvaziados de seu papel

    histrico de canalizao dos interesses coletivos e de institucionalizao

    representativa (no apenas estatal) do acesso ao poder.

    A expresso "novas formas de poltica" comporta a idia de um retrabalho

    generalizado das mediaes tradicionais, tambm com

    33

    conseqncias que apontam para uma mutao identitria em outras instncias da

    sociedade. Uma pesquisa dada a pblico no final do milnio14 mostrava o Poder

    Judicirio

    no Brasil como foco de uma sociabilizao inusitada: os magistrados so

    progressivamente convocados a julgar aes que no tm necessariamente a ver com

    as questes

    de natureza jurdica, e sim com pleitos sociais, existenciais, ticos, etc., no

    mais subsumidos nas formas habituais de acolhimento do conflito humano.

    A chamada "despolitizao" miditica ou tecnolgica resulta, por sua vez, do

    enfraquecimento tico-poltico das antigas mediaes e do fortalecimento da

    midiatizao.

    Sob a gide da produo informacional da realidade, a tecnointerao toma o

    lugar da mediao, desviando os atores polticos da prtica representativa

    concreta (norteada

    por contedos valorativos ou doutrinrios) para a performance imagstica.

    Eleitoralmente, os candidatos so como que absorvidos ou "solicitados" por uma

    conjuntura poltico-social onde predomina uma esfera de valores miditica,

    suscetvel

    de acionar a fora plebiscitaria das massas contra o formalismo burocrtico, ou

    eventualmente doutrinrio, dos partidos. A "absoro" implica, na prtica, a

    converso

    da identidade poltico-partidria do indivduo em pura imagem pblica, isto ,

    em aparncia - constituda por um ou mais traos publicitariamente convenientes

    -

    experimentada como entidade original ou "virtualizada".

    Como j enfatizamos, porm, a esfera miditica hibridizante, no atua sozinha.

    No basta, por exemplo, a visibilidade pura e simples de um indivduo na mdia -

  • a excessiva exposio de sua imagem na tev ou nos jornais. preciso que se

    apele para todo um arsenal de identificaes entre a imagem e a audincia, a fim

    de

    se obter efeitos, no mais apenas projetivos, como no caso do entretenimento

    clssico, e sim de reconhecimento narcsico de si mesmo no "espelho"

    tecnocultural.

    Por isto constam do imaginrio miditico motivaes caractersticas de modos de

    funcionamento tradicionais, como preocupaes

    14. Cf. pesquisa sobre o Poder Judicirio (1999), coordenada pelo professor Luis

    Wemeck Viana, do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro

    (IUPERJ).

    34

    com segurana existencial, religio e famlia. Estes so elementos e valores

    ressignificados pelos dispositivos tecnoculturais em funo da imagem pblica

    que se

    deseja construir.

    Tudo tende a confluir para a imagem publicitria como valor coletivo, o que pode

    tornar a interpretao cnica da realidade mais importante do que qualquer modo

    tradicional de representao. Publicamente, importa mais a capacidade pessoal de

    gerar espetculo (telegenia, histrionismo, agressividade bem dosada, etc.),

    portanto,

    a performatividade miditica, do que contedos programticos.

    um modelo tipicamente norte-americano, que nada tem de conjuntural, por ser

    estruturalmente afim forma de vida compatvel com a organizao capitalstica

    do

    mercado nos Estados Unidos. J o publicista brasileiro Joaquim Nabuco observa em

    Minha formao que, numa visita que fizera aos Estados Unidos em fins do sculo

    XIX, lhe chamara a ateno o espetculo pblico em que se convertiam as

    campanhas eleitorais.

    O espetculo ampliou-se ao longo de todo o sculo XX, midiatizou-se fortemente,

    culminando no fenmeno dos atores-presidentes, isto , chefes de governo que,

    mesmo

    no sendo necessariamente profissionais do ramo, seguem os padres de uma certa

    cosmtica cnica. Diante da progressiva despolitizao substantiva da democracia

    norte-americana, o modelo s tem feito intensificar-se. Na campanha eleitoral

    para senado e presidncia dos Estados Unidos, em 2000, bastava consultar

    esporadicamente

    a imprensa para dar-se conta do jogo intersimulativo entre a realidade poltico-

    eleitoral e o imaginrio holywoodiano: astros cinematogrficos assumiam

    discursos

    polticos, enquanto polticos profissionais faziam as vezes de atores.

    Bruce Newman, famoso especialista em marketing poltico e consultor do ex-

    presidente Bill Clinton, admite que "a televiso tornou-se to importante na

    poltica que

    os polticos precisam ter as mesmas habilidades dos atores". Ciente de que as

    pessoas acompanham os acontecimentos na Casa Branca como se assistissem a uma

    novela,

    ele afirma que "para muitos americanos a Casa Branca apenas mais uma estao

    de tev".

    Isto ficou muito evidente no final de 2000, aps o famoso empate eleitoral entre

    Al Gore e George Bush, na disputa pela presidncia

    dos Estados Unidos. Diante do que se passou depois, o papel anterior da

    televiso foi mesmo considerado modesto por observadores. A batalha judiciria

    entre os dois

    polticos desenrolou-se em tempo real-televisivo, maneira de uma soap-opera,

    com heris e viles, surpresas cotidianas, clmax e doses razoveis de suspense.

    O

  • embate ps-eleitoral foi tanto judicirio como televisivo.

    Todo esse processo adaptvel, pela americanizao generalizada das campanhas

    eleitorais, s peculiaridades de cada regio ou pas. Assim que, quando se

    discutia

    em meados de 1999 a viabilidade de Ciro Gomes como candidato presidncia da

    repblica, o que nele sublinhava a imprensa (supostamente interpretando o senso

    comum)

    era o fato de seu namoro com uma conhecida atriz de televiso, sua fotogenia e,

    at mesmo, como sugeriu um jornalista, sua ctis: "Pela cor da pele pode-se

    tornar

    aceitvel o que, em Lula, sofreria as reaes do preconceito da classe mdia. No

    fundo, votaro em Ciro os que no acreditam no que ele diz"15.

    Mas fingem que acreditam, vale acrescentar, porque na verdade est em jogo a

    mera adeso por simpatia a uma imagem consoladora. O que a realmente se v o

    epifenmeno

    de um padro politicamente associado e culturalmente analgico ao do broadcast

    televisivo um Centro irradiador de discursos modernizantes e moralistas

    (insero

    do pas na economia-mundo, campanhas contra bodes-expiatrios, estabilizao

    monetria) num espao de maioria populacional tendencialmente excluda da nova

    ordem

    socioeconmica.

    J no perodo pr-eleitoral de 2001, a ascenso da candidatura de Roseana

    Sarney, ento governadora do Maranho, presidncia da repblica, foi preparada

    por publicitrios

    como se costuma proceder com um produto comercial qualquer. Primeiro, dado o

    sinal verde de lideranas partidrias da coalizo de centro-direita instalada no

    Poder,

    houve a insero televisiva de filmetes que deveriam servir como bales de

    ensaio junto audincia. Em seguida, a colocao oportuna do nome da

    governadora em pesquisas

    de opinio, para se testarem os ndices de aprovao e de rejeio. Por trs de

    tudo isso, o aproveitamento miditico de uma "novidade" eleitoral, ou seja, uma

    imagem

    feminina jovem e simptica, ainda que frente de um

    15. Coelho, Marcelo. In: Folha de S. Paulo, de 29/09/1999.

    36

    governo de eficcia administrativa duvidosa. O presidente FHC resumiria o

    processo de produo dessa imagem-produto, em tom aprovativo: "O povo quer uma

    coisa de

    mulher, nova e positiva".

    Convertido em imagem-produto, o poltico investido pela lgica da circulao

    de signos no mercado, ou seja, pela moda, que sempre arbitrria em suas

    imposies:

    ora uma feio conservadora, ora inovadora, a depender do grau de desgaste da

    imagem em questo. Por esta ltima razo, nem sempre publicitariamente

    desejvel

    a excessiva visibilidade do candidato na televiso, a fim de se evitar a

    vulgarizao de sua imagem.

    Ainda que eventualmente fora do dispositivo material (a reproduo tcnica da

    mdia), o homem pblico pode definir-se pela cosmtica personalista implicada na

    performance

    miditica e deste modo tornar-se "imagem" tecno-semitica, funcionando como uma

    espcie de "signo" resultante da midiatizao. Assim como num dispositivo de

    realidade

  • virtual, onde o usurio faz do computador a sua "pele" (o chamado wearable

    computer), o sujeito humano "veste-se" semioticamente de televiso - isto ,

    incorpora

    o cdigo televisivo, passando a reger-se por suas regras quanto a aparncia,

    atitudes, opinies.

    Deve-se, desta maneira, distinguir mdium de empresa ou corporao de mdia.

    Enquanto esta ltima implica uma linha de montagem industrial e comerciais de

    produtos

    tecnoculturais (jornalismo, entretenimento, etc.), o mdium pode constituir-se a

    partir da impregnao de esferas particulares de ao da sociedade nacional e

    mundial

    (estruturas polticas, tecnoburocrticas e outras) por tecnologias da

    comunicao, hoje predominantemente eletrnicas e cibernticas.

    Por isso, o prprio indivduo suscetvel de converter-se em realidade

    miditica. Ncleo de tecnointeraes vrias, ele torna-se imagem e mdium

    (anlogo ao self-medium

    da realidade virtual) e investe-se, por uma espcie de imerso virtual na esfera

    significativa, das regras do cdigo de visibilidade pblica vigentes no momento,

    tornando-se boa "cara de vitrine". Imagem pblica, como se infere, no a

    representao tecnicamente audiovisual (retrato, filme, etc.) de um referente

    humano,

    mas um simulacro verossmil ou crvel. a realidade tecnocultural de uma

    aparncia, de uma sombra.

    37

    Esta concepo no nada estranha teoria pragmatista dos signos de Charles

    Sanders Peirce. Buscando ultrapassar a dicotomia entre signo (uma conveno

    social,

    a exemplo de uma palavra, para indicar ou analisar um referente) e pensamento,

    ele estabelece que o significado dado por um "interpretante", que atribui

    valor

    ao signo. O interpretante tambm um signo, que pode atualizar-se ou

    hipostasiar-se num indivduo.

    Ser "imagem" (signo icnico) pblica significa tornar-se interpretante vivo ou

    ncleo politpico de uma determinada conjuntura de valores, significa tornar-se

    "mdium".

    Mas significa tambm se realizar como forma acabada e abstrata da relao humana

    mediada pelo mercado, ou seja, existir como indivduo "irreal", mero suporte

    para

    signos que se dispem a representar uma realidade instituda exclusivamente como

    mercadoria.

    3. Um espao evanescente

    J Schumpeter, um dos precursores das teorias sobre a racionalidade econmica no

    sistema democrtico, detectava traos analgicos entre democracia e mercado de

    livre-concorrncia.

    Sustentava a equivalncia entre eleitores e consumidores: os votos seriam a

    moeda com que se pagam os programas propostos por "empresrios polticos", isto

    , os

    candidatos a postos eletivos16. At a nada demais. Problemtica a suspeita

    levantada por Schumpeter de que os compradores (eleitores) agem irracionalmente

    por

  • no poderem avaliar de fato as mercadorias (programas propostos) que adquirem,

    enquanto os vendedores (os polticos) voltam-se apenas para a acumulao do

    prprio

    poder.

    com a entrada da mdia, exacerba-se o irracionalismo (do ponto de vista

    utilitrio) do jogo formal e competitivo das prticas democrticas. Seria um

    erro, porm,

    estabelecer relaes de causa e efeito entre a midiatizao e as transformaes

    contemporneas do campo poltico. O que efetivamente parece ocorrer, segundo

    Caletti,

    "o princpio de um crescente desligamento entre as dimenses do espao pblico

    e do poltico, e, mais ainda, o princpio de uma crescente

    16. Cf. Schumpeter, Joseph. Capitalisme, socialisme et dmocrade. Payot, 1965.

    38

    labilidade dos valores socialmente partilhados a respeito do carter necessrio

    de sua estreita associao"17. .

    Entenda-se: com as mudanas profundas nas formas clssicas de sociabilizao e

    participao social, est chegando ao fim a coincidncia entre as dimenses do

    espao

    pblico e do espao poltico (a centralidade da poltica no espao pblico),

    tpica do clssico modelo de Estado republicano (ou democrtico) no Ocidente.

    Este

    um fenmeno generalizado, como j acentuamos, porm mais agudo em regies

    (Amrica Latina, por exemplo) onde predomina o sistema partidrio que os

    politlogos chamam

    de "no-consolidado", isto , instvel e sem vnculos profundos com a vida

    social, com a estrutura indiferente ao territrio e cada vez mais

    burocraticamente voltada

    para a sua auto-reproduo. .

    Pblico, como se sabe, primeiramente a designao do controle ou do

    ordenamento estatal (direito e poltico) da vida social. Depois, o espao onde

    a sociedade

    torna visvel tudo aquilo que tem em comum, inclusive a semiose coletiva

    (etiquetas, praas, monumentos, teatros, sales, etc.) resultante da

    representao que os

    grupos sociais fazem de si mesmos. Na repblica moderna, o fenmeno poltico

    centralizou ao longo de sculos o espao pblico, por ser o modo adequado de

    acolhimento

    do conflito social.

    Poltica, por sua vez, a expresso contraditria dos mltiplos interesses em

    jogo, logo um fenmeno aberto ao debate e argumentao racional - por isto,

    podia

    Proudhom dizer que "poltica a cincia da liberdade". A imprensa escrita foi

    tcnica comunicacional ("a tipografia a arte criadora da liberdade",

    sustentava

    o iluminista Condorcet) prpria ao princpio de publicidade, prprio dessa

    dimenso poltico-democrtica. Tudo isto tinha maior importncia, por outro

    lado, no mbito

    do Estado-nao.

    Na medida em que o Estado se transnacionaliza, ou pelo menos assim se orienta, e

    a poltica torna-se uma dimenso autnoma da vida social, limitando

    progressivamente

    as decises legislativas, as comisses especializadas e as instncias

    tecnoburocrticas, assim

    17. Caletti, Srgio. Repensar ei espado de Io publico. Texto apresentado no

    Seminrio Internacional: Tendncias de Ia Investigacin en Comunicacin en

    America Latina,

  • 20/22 de julho de 1999, Lima-Peru, p. 17.

    39

    como no jogo eleitoral as coalizes burocrticas, debilita-se o princpio de

    publicidade dos assuntos de Estado e restringem-se os temas de debate geral. No

    se

    trata exatamente da "morte da poltica", anunciada pelo discurso ps-modernista,

    e sim da retirada da atividade poltica da cena pblica e de sua localizao em

    sistemas especialistas (compostos de assessores tcnicos, peritos, burocratas

    financeiros, etc.).

    Isso se faz acompanhar do fato, amplamente verificvel, de que os setores

    profissionais e sociais ligados ao que se tem chamado de "anlise simblica"

    (trabalho

    altamente qualificado de identificao e soluo de problemas) pautam-se por

    modalidades individualistas de representao, ao invs daquelas implicadas na

    associao

    a sindicatos ou partidos polticos18. Pode-se chamar a isto de "individualismo

    de grupo", epifenmeno da individualizao generalizada na sociedade

    contempornea.

    ,

    A poltica em seu sentido mais forte simplesmente deixa de compor a visibilidade

    do espao pblico ou a pluralidade da representao. Passa da linguagem

    contraditorial

    e substancialista de um sistema de delegao de poder ao campo concorrencial e

    adjetivista dos produtos oferecidos ao consumo, tal como o descrito por

    Schumpeter.

    A diferena dos valores dissolve-se na equivalncia geral da forma-produto. Em

    vez da seduo sofistica (s vezes, dialtica) da razo argumentativa, a

    fascinao

    tecnonarcsica obtida pela retrica do imaginrio.

    Por isto, o espao pblico da contemporaneidade cada vez mais construdo pelas

    dimenses variadas do entretenimento ou da esttica, em sentido amplo, cujos

    recursos

    provm do imaginrio social, do ethos sensorial e do subjetivismo privado.

    Profundamente afetada pela esfera do espetculo, a vida comum torna-se mdium

    publicitrio

    e transforma a cidadania poltica em performance tecnonarcsica.

    Disso resulta a prevalncia da mdia na cena pblica de hoje. No se pretende

    aqui afirmar que ela seja a chave explicativa de todo o processo eleitoral, uma

    vez

    que poder financeiro e apoio partidrio

    18. Em pases da periferia capitalista ou "terceiro-mundista", a poltica

    tradicional, assolada pelo elitismo e pela corrupo, tende a entrar em colapso,

    pela incapacidade

    de representar reais interesses coletivos diante da insegurana econmica. O

    caso da Venezuela, na virada do milnio, paradigmtico.

    40

    so decisivos, alm do fato de que dezenas de milhes de pessoas costumam votar

    (partidariamente, ideologicamente) na oposio ao bloco conservador. O que se

    sustenta

    a tendncia substituio do discurso objetivista, argumentativo e

    racionalista, compatvel com a imprensa clssica, pela narratividade (na forma

    de "casos")

    emocionalista da midiatizao, o que significa trocar a opinio arrazoada pela

    percepo esteticista da performance.

    Muda a subjetividade dos profissionais da poltica, assim como sua relao com a

    sociedade civil. Submetidos a uma pura lgica de mercado, avatares do

    irracionalismo

  • competitivo apontado por Schumpeter, eles convertem-se em modelos miditicos,

    meros "signos" galvanizadores de afetos, sem qualquer outra funo

    representativa alm

    de interesses prprios, forosamente coincidentes com as formas hegemnicas de

    controle social.

    Collor e FHC - tomados aqui como sujeitos de processos eleitorais paradigmticos

    de um novo tipo de controle social, portanto comutveis com os atores de outros

    processos polticos - so figuras laboratoriais da implementao forada de uma

    nova etapa do capital-mundo no Brasil. Coincidiram, por um lado, com o auge de

    duas

    dcadas neoliberais marcadas pelo aumento da concentrao da renda mundial e

    pelo conseqente alargamento do fosso das desigualdades sociais. Por outro, com

    o momento

    em que a ditadura poltico-militar havia cedido lugar a um sistema tcnico de

    organizao do consenso (tecnoburocracia decisria, burocratismo partidrio,

    mdia

    e pesquisas de opinio), que se empenha em simular a humanizao democrtica do

    exerccio do poder. .

    Esse no um fenmeno personalista. Trata-se mesmo de um processo complexo, com

    muitas variveis scio-econmicas, que afetam inclusive os partidos de oposio,

    publicamente identificados com a velha esquerda poltica. Nas eleies

    municipais de 2000, o Partido dos Trabalhadores (suspeito, durante muitos anos,

    de pretender

    uma tomada "socialista" do poder) ampliou consideravelmente a sua fora

    poltica, possivelmente porque j no era mais a mesma formao "ideolgica" de

    antes. Tinha

    passado de uma predominncia politicamente mais radical condio de uma

    organizao pragmtica, caracterizada por uma imagem pblica de compostura moral

    e de eficcia

    administrativa em nvel municipal. Assim que, no pe41

    Antropolgica do espelho

    rodo pr-eleitoral para a presidncia em 2001, o assunto da contratao de um

    grande especialista em marketing eleitoral soava mais alto dentro do partido do

    que

    a discusso de qualquer projeto poltico novo para o pas.

    Como ironizara um rgo da imprensa escrita conservadora, o PT aparentemente

    "saiu do vermelho" para o "cor-de-rosa". Leia-se sem a inflexo direitista:

    adaptou-se

    s novas regras de um jogo eleitoral, que mais no tinha como pano de fundo

    social um movimento sindical forte ou ativo, um produtivismo fordista e um

    empresariado

    nacionalista. De fato, a vitria e a ascenso eleitoral dos petistas podiam ser

    objetivamente interpretveis, no simplesmente como uma "reduo do vermelho",

    mas

    como a conseqncia de uma rejeio poltica da conscincia popular enraizada em

    seus territrios de vida real aos desgnios globalistas, neoliberais e

    antiterritoriais

    do bloco dominante.

    Seja esquerda ou direita, a adeso consciente do cidado normatividade da

    Ordem , como se sabe, decisiva para a estabilizao das formas contemporneas

    de

  • poder. E a mdia assume a um lugar estratgico. Capitaneada pela televiso,

    move-se no quadro de um "democratismo" de escolhas binrias (o sim e o no das

    sondagens

    ou pesquisas de opinio), influindo normativa e sensorialmente no que diz

    respeito a costumes, hbitos e juzos de valor circulantes num grupo social

    determinado.

    A ela se articulam as pesquisas de opinio, reforando um campo imaginrio (com

    foros de cincia poltica) denominado "opinio pblica", que tendencialmente

    substitui

    o discurso poltico-representativo tradicional por outro de natureza

    plebiscitaria, afim a uma suposta democracia direta.

    No nada novo o conceito de opinio pblica - produto ideolgico direto da

    Revoluo Francesa. Resultado totalizante das opinies individuais da cidadania,

    ele

    se legitimava como uma espcie de substrato tico e apresentava-se como uma

    entidade moral e fiscalizadora dos trs poderes institucionais da repblica. Mas

    s a

    partir dos anos 30 no sculo XX que os franceses introduzem este conceito no

    discurso da cincia poltica, dando margem ao surgimento da medida estatstica

    do

    substrato coletivo, administrado por institutos de pesquisa. A disseminao dos

    mtodos de modelagem matemtica da opinio , no entanto, um fenmeno norte-

    americano.

    42

    Essa "opinio" instrumento de um novo regime de visibilidade pblica e,

    portanto, um novo tipo de controle. Tende a no ser mais do que pura imagem ou

    objeto inexistente:

    "[...] Na realidade, o que existe no a 'opinio pblica' ou mesmo 'a opinio

    avaliada pelas sondagens de opinio', mas, de fato, um novo espao social

    dominado

    por um certo nmero de agentes - profissionais das sondagens, cientistas

    polticos, conselheiros em comunicao e marketing poltico, jornalistas, etc. -

    que utilizam

    tecnologias modernas como a pesquisa por sondagem, computadores, rdio,

    televiso, etc.; atravs destas que do existncia poltica autnoma a uma

    'opinio pblica'

    fabricada por eles prprios, limitando-se a analis-la e manipul-la e, em

    conseqncia, transformando profundamente a atividade poltica tal como

    apresentada

    na televiso e pode ser vivida pelos prprios polticos"19.

    Isso que se vem chamando de "novo" jogo poltico j existe h bastante tempo.

    H mais de 70 anos, Walter Lippmann, um importante jornalista de seu tempo, em

    seu livro Public Opinion, desconfiava das afirmaes de que os cidados baseiam

    suas

    decises polticas e sociais no estudo objetivo dos fatos pertinentes. A maioria

    das nossas decises se baseia no que ele chamou de "imagens em nossas cabeas",

    isto , percepes e preconceitos estanques. A idia de uma opinio pblica

    informada decidindo questes e aes, disse ele, , em grande parte, uma

    fantasia desejvel;

    a tarefa de dirigir o pas realizada pelas elites, comenta Dizard20.

    Isto significa que "a opinio pblica no existe", conforme tm sustentado

    socilogos como Pierre Bourdieu, Patrick Champagne e outros? O que dizer ento

    da convico

    de srios analistas da poltica norte-americana de que o impeachment do

    presidente Bill Clinton, em virtude do escndalo sexual com uma estagiria da

    Casa Branca,

  • teria sido evitado apenas pelo peso da opinio pblica? E por demais complexa e

    obscura a trama dos acontecimentos, mas pode-se levar

    19. Champagne, Patrick. Formar a opinio - O novo jogo poltico. Vozes, 1988, p.

    32.

    20. Dizard, Wilson. A nova mdia - A comunicao de massa na era da informao.

    Zahar,

    1998, p. 51-52. ....

    43

    principalmente em considerao as afirmaes de outra linha sria de analistas

    (dentre os quais a prpria primeira-dama do pas) no sentido de que a tentativa

    de

    impeachment foi de fato um quase golpe de Estado manobrado por faces

    direitistas. Assim como no caso do trmino da guerra do Vietn, as determinantes

    do resultado

    final ocorreram nos bastidores do poder, na forma dos velhos arcana imperii ou

    segredos de Estado.

    Na verdade, o controle estatstico da cidadania pelas sondagens (a organizao

    do questionrio para as entrevistas induz respostas e produz um pseudofenmeno

    poltico),

    canaliza e orienta certas disposies preexistentes ou latentes um ethos,

    portanto convertendo-as virtualmente em opinio "poltica". No h dvida de que

    a "opinio

    pblica" existe, mas como uma estratgia de buscar o que de algum modo j se

    tem. E nas campanhas polticas, o eleitoralismo resultante termina levando

    convico

    de que democracia seria pura soma de vontades individuais - a exemplo da escolha

    "democrtica" na esfera do consumo - em vez do equilbrio real de foras entre

    interesses

    de grupos divergentes.

    Hoje, de fato, a poltica - como j dissemos, progressivamente autonomizada em

    face de outras prticas sociais e dissociada da antiga esfera pblica - tende a

    ser

    vivida virtualmente ou de modo espasmdico pelos cidados, ao sabor de gostos e

    humores idiossincrticos, como fato de mentalidade e costume, sem que as causas

    ou

    as questes pblicas tenham maiores conseqncias para a sociedade como um

    todo21. O que na esfera poltica se experimenta como puro ethos absorvido por

    todas

    as tcnicas de consenso e controle que confluem para a mdia.

    Da mdia para o pblico no parte a