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O Falcao Maltes

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Dashiell Hammett

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  • DASHIELL HAMMETT

    O falco malts

  • Edio integral Ttulo do original: "The maltese falcon"Copyright 1929,1930, Alfred A. Knopf, Inc., renovado em 1957 por DashiellHammettTraduo: Cndida Villalva

  • 1. SPADE & ARCHER

    O maxilar de Samuel Spade era longo e ossudo, e seu queixo, um Vproeminente sob o V mais flexvel da boca. As narinas curvavam-se para trs,formando um outro V menor. Os olhos, amarelo-pardos, eram horizontais. Omotivo V era retomado por espessas sobrancelhas, que saam de duas rugasgmeas sobre o nariz adunco e se erguiam na parte externa, e o cabelo,castanho-claro, descia das tmporas altas e achatadas, em ponta sobre a testa.Dava a impresso um tanto divertida de um demnio loiro.

    Ento, meu bem? disse ele, dirigindo-se a Effie Perine.Effie Perine era uma moa esbelta, morena de sol, cujo vestido de l escura

    e leve a envolvia produzindo um efeito melanclico. Tinha olhos castanhos etravessos, num rosto vivo e juvenil.

    Acabou de fechar a porta, encostou-se a ela, e disse: Est a uma moa sua procura. Chama-se Wonderly . Uma cliente? Acho que sim. De todo jeito, ter que v-la: ela uma graa. Faa-a entrar, meu bem disse Spade. Faa-a entrar.Effie Perine abriu de novo a porta, recuando para a sala externa sem tirar a

    mo do trinco, enquanto dizia: Faa o favor de entrar, srta. Wonderly .Uma voz respondeu "Muito obrigada", to suavemente que apenas a clara

    pronncia tornava as palavras inteligveis, e uma jovem transps a porta.Caminhava devagar, com passos hesitantes, fixando em Spade uns olhos azul-cobalto que se mostravam ao mesmo tempo tmidos e perscrutadores. Era alta ede uma esbeltez flexvel, sem angulosidades. Tinha o talhe ereto e o colo alteado,pernas longas, mos e ps estreitos. Usava dois tons de azul, escolhidos de acordocom os olhos. O cabelo, caindo em anis sob o chapu azul, era de um vermelhosombrio, e os lbios cheios, de um vermelho mais vivo. Dentes alvos brilhavamna meia-lua formada pelo seu sorriso tmido.

    Spade levantou-se, cumprimentando-a e indicando com a mo de dedosgrossos a cadeira de braos feita de carvalho, ao lado da sua secretria. Ele tinhabem um metro e noventa de altura. A pronunciada curvatura dos ombros faziaseu corpo, de largura igual tanto na frente como dos lados, parecer quase cmicoe impedia o palet cinzento, bem passado, de cair direito.

    A srta. Wonderly murmurou suavemente: Muito obrigada e sentou-sena beirada do assento de madeira. Spade afundou na cadeira giratria, deu umavolta para colocar-se frente moa e sorriu com polidez, quase sem abrir oslbios. Todos os VV do seu rosto se alongaram. Atravs da porta fechada, veio otip-tap das teclas e o leve som da campainha, acompanhando o rudo abafado damquina de Effie Perine. Num escritrio prximo, um motor eltrico vibrousurdamente. Na secretria de Spade, um cigarro amassado fumegava numcinzeiro de lato, cheio de pontas de cigarros. Montculos de cinza salpicavam asuperfcie amarela da secretria, o mata-borro verde e os papis ali existentes.

  • Uma janela de cortinas amarelo-claras, aberta uns trinta centmetros, deixavapenetrar, vinda do ptio, uma corrente de ar que recendia levemente aamonaco. Sobre a secretria, as cinzas se agitaram e foram arrastadas pelacorrente.

    A srta. Wonderly observava as partculas de cinza se agitarem e seremlevadas pelo vento. Seus olhos mostravam-se inquietos. Ela estava sentada bemna beirada da cadeira, com os ps apoiados no cho, como se estivesse prestes ase levantar. As mos, caladas com luvas escuras, apertavam sobre o colo umabolsa em formato de carteira, tambm escura. Spade recostou-se na cadeira, eperguntou: Em que lhe posso ser til, srta. Wonderly ? Ela reteve a respiraoe dirigiu-lhe o olhar. Depois tomou flego e disse precipitadamente: O senhorpoderia . . . ? Eu pensei... eu... isto . . . Mordeu ento o lbio inferior com osdentes brilhantes, e ficou calada. Apenas os olhos escuros falavam agora,suplicando.

    Spade sorriu e fez um gesto de aquiescncia com a cabea, como se ativesse compreendido, mas com ar satisfeito, como se no fosse nada deimportante, e disse:

    Se a senhora me contar o que h, desde o comeo,saberemos o que preciso fazer. melhor comear. Bem do incio. Foi em Nova York. Sim. No sei onde ela o encontrou. Quero dizer, no sei em que lugar de Nova

    York. Ela cinco anos mais moa que eu tem apenas dezessete anos , enossas amizades no eram as mesmas. Como irms acho que nunca fomosunidas como devamos ser. Mame e papai esto na Europa. Isso os matar. preciso que eu a faa voltar, antes que eles venham.

    Sim disse ele. Eles voltam dia 1. do prximo ms.Os olhos de Spade brilharam. Temos ento duas semanas. Eu no sabia o que ela tinha feito, at chegar a sua carta. Fiquei louca.

    Seus lbios tremeram. As mos amassavam a bolsa sobre o colo. Receavamuito que ela tivesse feito qualquer coisa assim, para procurar a polcia, mas omedo de que lhe tivesse sucedido algum mal me impedia de ir dar parte. Nohavia ningum a quem eu pudesse recorrer, para pedir conselho. No sabia o quefazer. O que eu podia fazer?

    Nada, realmente disse Spade. Mas ento chegou a carta dela? Chegou, e eu lhe mandei um telegrama pedindo-lhe que voltasse. Enviei-

    o para a posta restante daqui. Foi o nico endereo que ela me deu. Esperei umasemana inteira, mas no veio resposta, nem outra notcia. E a volta de mame epapai cada vez mais prxima. Ento vim a San Francisco para busc-la. Escrevi-lhe dizendo que vinha. No devia ter feito isso, no?

    Talvez no. Nem sempre fcil saber como proceder. E encontrou-a? No. Escrevi-lhe dizendo que iria para o St. Mark, e pedi-lhe que viesse

    falar comigo, mesmo que no tivesse a inteno de voltar em minha companhia.Mas ela no veio. Esperei trs dias, e ela nem veio nem me mandou nenhumrecado.

  • Spade inclinou a loira cabea satnica em sinal de assentimento, franziu assobrancelhas, demonstrando simpatia, e apertou os lbios.

    Era horrvel disse a srta. Wonderly, tentando sorrir. Eu no podiaficar parada assim, esperando, sem saber o que lhe tinha acontecido, o que podiaestar lhe acontecendo. Abandonou o esforo de sorrir. Depois teve umestremecimento. O nico endereo que tinha era o da posta restante. Escrevi-lhe outra carta, e ontem tarde fui ao correio. Esperei l at depois de escurecer,mas no a vi. Voltei esta manh e tambm no vi Corina, mas vi Floy d Thursby .

    Spade aquiesceu de novo. Suas sobrancelhas se descerraram, dando lugar aum olhar atento e penetrante.

    Ele no quis me dizer onde Corina estava continuou ela, desanimada. No quis me contar nada, exceto que ela estava bem, e se sentia feliz. Mascomo posso acreditar nele? Ele me diria isso de qualquer jeito, no verdade?

    Decerto concordou Spade. Mas podia ser verdade. Espero que seja. Espero que assim seja! exclamou. Mas no posso

    voltar para casa desse jeito, sem t-la visto, sem ter-lhe falado, nem mesmo pelotelefone. Ele no quis me levar aonde Corina est. Disse que ela no quer mever. No posso acreditar nisso. Prometeu contar-lhe que tinha me visto, e traz-lapara encontrar-se comigo (se ela quiser vir) esta noite, no hotel. Disse que sabiaque ela no havia de querer. Prometeu vir ele mesmo, se ela no quisesse. Ele...

    Interrompeu-se, levando, assustada, a mo boca, ao se abrir a porta.O homem que abrira a porta deu um passo para dentro e disse: Oh,

    desculpe-me! Tirou apressadamente o chapu da cabea e retrocedeu. No faz mal, Miles disse Spade. Entre. Srta. Wonderly, este o

    meu scio, sr. Archer.Miles Archer entrou de novo no escritrio, fechando a porta atrs de si.

    Inclinou a cabea e sorriu para a srta. Wonderly, fazendo um vago gesto depolidez com o chapu na mo. Era um homem de estatura mediana, de slidacompleio, ombros largos, pescoo grosso, com um rosto jovial e vermelho, dequeixo forte, e alguns fios brancos no cabelo cortado rente. Aparentemente,havia passado tanto dos quarenta quanto Spade dos trinta.

    Spade informou: A irm da srta. Wonderly fugiu de Nova York com umrapaz chamado Floyd Thursby. Eles esto aqui. A srta. Wonderly viu Thursby etem uma entrevista marcada com ele para esta noite. Talvez ele traga a irmdela. As probabilidades so em contrrio. A srta. Wonderly quer queencontremos sua irm e a afastemos dele, e que a levemos para casa. Olhoupara a srta. Wonderly .

    isso? disse ela com voz indistinta. Seu embarao, que fora gradualmente

    afastado pelos insinuantes sorrisos, acenos de cabea e encorajamento de Spade,deixava-a vermelha de novo. Tinha os olhos fixos na bolsa sobre o colo, eespetava nela, nervosamente, o dedo enluvado.

    Spade piscou para o scio. Miles Archer adiantou-se e ficou de p a umcanto da secretria. Enquanto a moa fitava a bolsa, ele a observava. Seusolhinhos castanhos correram sobre ela o olhar audacioso e avaliador, desde orosto inclinado at os ps, e voltaram de novo ao rosto. Ele olhou ento para

  • Spade e fez com a boca um trejeito de quem d um silencioso assobio deapreciao.

    Spade levantou dois dedos do brao da cadeira num breve gesto deadvertncia e disse: No teramos com isso nenhum aborrecimento. simplesmente questo de ter um homem no hotel esta noite para segui-lo quandoele sair, e continuar seguindo-o at que ele nos conduza a sua irm. Se ela viercom ele, e a senhorita conseguir convenc-la a voltar para casa, tanto melhor.Caso contrrio, se ela no quiser deix-lo depois de a termos encontrado, bem,acharemos um jeito de o conseguir.

    Archer disse: . Sua voz era pesada, rude.A srta. Wonderly levantou rapidamente o olhar para Spade, enrugando a

    testa, entre as sobrancelhas. Oh, mas precisam ter cuidado! Sua voz tremiaum pouco, e os lbios formulavam as palavras em arrancos nervosos. Tenhoum medo horrvel dele, do que ele poderia fazer. Ela to moa, e t-la trazidode Nova York para c to grave... Ele no poderia. . . No poderia fazer. ..fazer-lhe qualquer coisa?

    Spade sorriu, dando palmadinhas nos braos da cadeira. Deixe isso conosco. Ns saberemos lidar com ele. Mas poderia? insistiu ela. H sempre alguma probabilidade concordou Spade judiciosamente.

    Mas pode ter confiana em ns: tomaremos conta desse assunto. Eu confio nos senhores disse ela com veemncia , mas quero que

    saibam que ele um homem perigoso. Acredito seriamente que nada o fariaretroceder. No creio que hesitasse... em matar Corina, se achasse que isso podiasalv-lo. No acha?

    A senhorita no o ameaou, no? Disse-lhe que s queria t-la de novo em casa antes que mame e papai

    voltassem, a fim de que no soubessem o que ela tinha feito. Prometi nuncadizer-lhes uma palavra sobre isso se ele me ajudasse; mas, se ele no o fizesse,papai sem dvida providenciaria para que fosse punido. Eu... acho, entretanto,que ele no acreditou em mim.

    Ele poderia remediar o mal casando-se com ela? perguntou Archer.A moa corou, e respondeu com voz confusa: Ele tem mulher e trs filhos na Inglaterra. Corina escreveu-me dizendo

    isso, para explicar por que fugira em sua companhia. Eles costumam ter mesmo disse Spade , s que nem sempre na

    Inglaterra. Inclinou-se para a frente, a fim de alcanar o lpis e o bloco depapel. Qual a aparncia dele?

    Ah, tem uns trinta e cinco anos, talvez, to alto como o senhor, e, oumoreno de natureza, ou queimado de sol. Seu cabelo tambm escuro e assobrancelhas, espessas. Tem um modo de falar mais ou menos alto, agressivo, eum gnio nervoso, irritvel. D a impresso de ser. . . violento.

    Spade, rabiscando sobre o bloco, perguntou, sem levantar a vista: E a cordos olhos?

    So azul-cinzentos e midos, mas cruis. E. . . ah, sim, tem uma profundacicatriz no queixo.

  • Magro, regular, ou corpulento? Muito forte. Tem ombros largos e conserva-se ereto, no que se poderia

    chamar um porte decididamente militar. Usava um terno cinzento e chapu damesma cor, quando o vi esta manh.

    Qual o seu meio de vida? perguntou Spade, enquanto descansava olpis.

    No sei. No tenho a mnima idia. A que horas ele deve ir v-la? Depois das oito. Muito bem, srta. Wonderly , teremos um homeml. Facilitaria se Sr. Spade, poderia ser o senhor ou o sr. Archer? Fez um gesto de splica com ambas as mos. Um dos senhores poderia

    cuidar desse assunto pessoalmente? No quero dizer que o homem que ossenhores mandassem no fosse capaz, mas... oh! Tenho tanto medo do quepoderia acontecer a Corina! Tenho medo dele. Seria possvel? Eu estaria... Eu mesentiria mais em segurana, realmente. Abriu a bolsa com dedos nervosos eps duas notas de cem dlares sobre a secretria de Spade. Isto chega?

    Sim disse Archer , e eu mesmo me encarregarei disso.A srta. Wonderly ps-se em p, estendendo impulsivamente a mo.

    Muito obrigada! Muito obrigada! exclamou, e ento deu a mo a Spade,repetindo: Obrigada!

    No por isso disse Spade. Tambm estou satisfeito. A senhoritapode nos ajudar, se puder se encontrar com Thursby embaixo, ou ento se semostrar no saguo em sua companhia por algum tempo.

    Farei isso prometeu ela, e agradeceu-lhe de novo. E no me procure advertiu Archer. Eu a estarei vendo.Spade acompanhou a srta. Wonderly at a porta do corredor. Quando voltou

    secretria, Archer inclinou a cabea em direo s notas de cem dlares erosnou, complacentemente: Elas so bem boas. Pegou uma, dobrou-a eenfiou-a num dos bolsos. E tm irms naquela bolsa.

    Spade embolsou a outra nota antes de se sentar. Ento disse: Bem, no dem cima. O que pensa dela?

    Deliciosa! E logo voc vem me dizer para no dar em cima dela? Archer deu uma gargalhada forada. Talvez voc a tenha visto antes, Sam,mas eu falei primeiro. Ps as mos nos bolsos das calas e balanou-se noscalcanhares.

    Voc vai fazer o diabo com ela, sem dvida sorriu Spade comarrogncia, mostrando a extremidade dos dentes posteriores. Voc esperto,sim, se . E comeou a fazer um cigarro.

  • 2. MORTE NO NEVOEIRO

    A campainha do telefone tocou na escurido. Depois de tocar trs vezes, as

    molas da cama rangeram, uns dedos tatearam na madeira, alguma coisapequena e dura caiu no cho atapetado, as molas rangeram de novo, e uma vozde homem disse: Al. . . Sim, ele mesmo. . . Morto? . .. Sim. . . Quinzeminutos. Obrigado.

    Ouviu-se o estalido de uma chave, e um lustre branco, pendurado ao centrodo teto por trs correntes douradas, encheu de luz o quarto. Spade, descalo,vestido com um pijama listado de verde e branco, sentou-se na borda da cama.Olhou, carrancudo, o telefone sobre a mesa, enquanto pegava ao lado dele ummao de papel pardo e uma bolsa de Buli Durham. Um vento frio e midosoprou atravs das duas janelas abertas, trazendo consigo uma meia dzia devezes por minuto o lamento melanclico da sereia de Alcatraz. Os ponteiros deum despertador de metal, mal equilibrado sobre um canto dos Clebres casoscriminais da Amrica, de Duke, marcavam duas horas e cinco minutos.

    Os dedos grossos de Spade fizeram um cigarro com deliberado cuidado,peneirando uma quantidade certa de flocos escuros sobre o papel curvo eespalhando-os, para que ficassem iguais nas pontas, fazendo uma pequenapresso no meio. Com os polegares, enrolou a margem interna para baixo e paracima, levantou-a sob a margem externa, enquanto os indicadores a prendiam porcima, e fez os polegares e os outros dedos escorregarem para as pontascilndricas do papel a fim de mant-lo plano. Enquanto lambia a extremidadecom a lngua, apertou a ponta com o indicador e o polegar esquerdo e alisou abeira mida com o polegar e indicador direitos. Depois, ainda com a mo direita,torceu uma ponta e levou a outra at a boca. Apanhou o isqueiro niquelado eforrado de couro de porco que tinha cado no cho, acendeu-o e, com o cigarroaceso no canto da boca, levantou-se. Tirou o pijama. A lisa espessura dos braos,das pernas e do corpo, e a curvatura dos seus grandes ombros arredondados,tornaram seu corpo semelhante ao de um urso. Parecia um urso sem plo: opeito no tinha plos, e a pele era macia e rosada como a de uma criana. Cocoua nuca e comeou a se vestir. Ps uma camiseta branca, meias cinza, ligas pretase sapatos marrom-escuros. Quando acabou de amarrar os sapatos, pegou otelefone, chamou Graystone 4500 e pediu um txi. Vestiu ento uma camisabranca de listas verdes, ps um colarinho branco, mole, gravata verde, o ternocinzento que usara nesse dia, um sobretudo folgado de tweed e chapu cinza-escuro. A campainha da porta tocou quando ele punha o fumo, as chaves e odinheiro nos bolsos.

    Onde a Bush Street atravessa a Stockton, antes de descer em ladeira para oChinatown, Spade pagou a corrida e deixou o txi.' O nevoeiro de San Francisco,fino, pegajoso e penetrante, nublava a rua. Alguns metros alm do ponto em queSpade despachou o txi, um pequeno grupo de homens olhava em direo a umbeco. Duas mulheres e um homem estavam do lado oposto da Bush Street,

  • olhando tambm para a viela. Viam-se rostos nas janelas.Spade atravessou o passeio entre balaustradas guarnecidas de grades de

    ferro que abriam sobre horrveis degraus vazios, chegou ao parapeito e,descansando as mos na muralha mida, olhou para a Stockton Street, embaixo.Um automvel irrompeu do tnel abaixo dele com um ronco sibilante, como setivesse sido impelido para fora, e desapareceu. Prximo boca do tnel, umhomem estava acocorado sobre os calcanhares, diante de um cartaz comanncios de um filme e de uma marca de gasolina que cobria o espao entreduas casas de negcios. A cabea do homem estava inclinada quase at opasseio, de maneira a permitir que ele olhasse por baixo do cartaz. Uma dasmos aberta sobre a calada, a outra, agarrada moldura verde do cartaz,mantinham-no nessa grotesca posio. Outros dois homens conservavam-se aum canto do cartaz, espreitando desajeitadamente atravs dos poucoscentmetros de espao entre este e o prdio dessa ponta. O edifcio do lado opostotinha uma parede cinza-clara que dominava de cima todo o conjunto atrs docartaz. Tremulavam clares na parede lateral, e sombras de homens moviam-seentre o piscar das luzes.

    Spade deixou o parapeito e subiu a Bush Street em direo ao beco onde oshomens estavam agrupados. Um guarda uniformizado, mascando chiclete, sobuma placa esmaltada que ostentava a inscrio "Burritt St." em branco sobreazul-escuro, avanou um brao e perguntou:

    Que quer aqui? Sou Sam Spade. Tom Polhaus me telefonou. Ah, sim. O brao do policial foi baixado. No o reconheci, a princpio. Bem, eles esto ali atrs. Apontou um

    polegar por sobre o ombro. Que droga, hem? concordou Spade, e subiu o beco. A meio caminho, no longe da

    entrada, estava postada uma ambulncia escura. Atrs da ambulncia, do ladoesquerdo, o beco estava impedido por uma cerca que dava pela cintura, restos deum soalho rstico pregado em sentido horizontal. Da cerca, o solo escuro caanuma descida ngreme at o cartaz da Stockton Street, embaixo. A travessasuperior da cerca, numa extenso de trs metros, tinha sido arrancada do mouroem uma das extremidades, e balanava-se, pendente, da outra. Uns cinco metrosladeira abaixo, estava fincada uma pedra chata. Na depresso entre a pedra e aladeira, Miles Archer jazia de costas. Dois homens estavam junto dele. Ummantinha sobre o morto a luz de uma lanterna eltrica. Outros homens, munidosde lanternas, subiam desciam a ladeira.

    Um deles saudou Spade: Ol, Sam! e subiu para o beco, e sua sombraia percorrendo a ladeira sua frente. Era alto e barrigudo, de olhos pequenos eargutos, lbios grossos e faces morenas e mal barbeadas. Seus sapatos, joelhos,mos e queixo estavam sujos de lama escura. Achei que voc havia de quererv-lo antes de o levarmos disse,.. enquanto pulava a cerca.

    Obrigado, Tom respondeu Spade. Que foi que aconteceu? Psum cotovelo num mouro da cerca e olhou para os homens, embaixo,respondendo aos cumprimentos que lhe dirigiam.

    Tom Polhaus apontou para o lado esquerdo do peito com o dedo sujo. Foi

  • acertado. . . com isto. Tirou um revlver grosso do bolso do palet e estendeu-o a Spade. Havia lama entranhada nas depresses da superfcie. Um Webley.Ingls, no ?

    Spade tirou o cotovelo do mouro da cerca e inclinou-;e para olhar a arma,mas sem toc-la. Sim, revlver automtico Webley -Fosbery. isso. Um 38,de oito tiros. No os fabricam mais. Quantos tiros foram deflagrados?

    Uma bala. Tom apontou de novo para o peito. Deve ter morridoquando quebrou a cerca. Levantou o revlver enlameado. J viu isto antes?

    Spade fez que sim. Tenho visto alguns Webley -Fosbery s disse, seminteresse, e em seguida falou rapidamente: Ele foi alvejado aqui, no foi? Emp, onde voc est, de costas para a cerca. O homem que atirou nele estava aqui. Deu a volta em frente de Tom e levantou a mo altura do peito, com oindicador estendido. Ele atira e Miles cai para trs, arrancando o alto da cerca,passando e rolando at ficar preso pela pedra. isso?

    replicou Tom vagarosamente, cerrando as sobrancelhas. Adetonao queimou-lhe o palet.

    Quem o achou? O ronda, Shilling. Vinha descendo a Bush, e, exatamente quando chegou

    aqui, um carro que dava a volta virou a luz dos faris para c e ele viu a cercaquebrada. Veio ento examin-la e achou-o.

    E quanto ao carro que estava dando a volta? Absolutamente nada, Sam. Shilling no lhe deu ateno, pois ainda no

    sabia de nenhuma irregularidade. Diz que ningum saiu daqui enquanto eledesceu da Powell, seno ele teria visto. O nico caminho afora esse seria sob ocartaz, na Stockton. Ningum veio por l. O nevoeiro deixou o cho mido, e asnicas marcas esto onde Miles escorregou e onde esta arma rolou.

    Ningum ouviu o tiro? Pelo amor de Deus, Sam, ns acabamos de chegar h pouco! Algum

    deve t-lo ouvido, mas ainda no encontramos esse algum. Voltou-se e psuma perna sobre a cerca. Quer vir dar-lhe uma olhada, antes que ele sejaremovido?

    No respondeu Spade.Tom parou com uma perna de cada lado da cerca e olhou para trs, para

    Spade, com os olhos pequenos cheios de surpresa.Spade: Voc o viu. Voc viu tudo o que eu poderia ter visto.Tom, olhando ainda para Spade, assentiu com a cabea como se estivesse

    em dvida, e recolheu a perna de sobre a cerca. A arma estava oculta noquadril disse. No fora usada. O palet estava abotoado. Tinha cento esessenta e tantos mangos nos bolsos. Ele estava trabalhando,

    Spade, aps um momento de hesitao, concordou.Tom perguntou: Que mais? Ele devia estar seguindo um homem chamado Floy dThursby disse Spade, e descreveu Thursby de acordo com o que ouvira

    da srta. Wonderly . Para qu?

  • Spade ps as mos nos bolsos do sobretudo e piscou os olhos sonolentos paraTom, que repetiu, impaciente:

    Para qu? Talvez fosse um ingls. No sei ao certo qual o seu jogo. Estvamos

    tentando descobrir-lhe a moradia. Spade sorriu vagamente, com ironia, eretirou a mo do bolso para bater de leve no ombro de Tom. No me aperte

    disse, e ps de novo a mo no bolso. Vou andando, para levar a notcia mulher de Miles. Voltou-se.

    Tom franziu a testa, abriu a boca, fechou-a sem dizer nada, pigarreou,desmanchou a carranca e comentou com uma seca delicadeza: duro, sermorto assim. Miles tinha seus defeitos, como todos ns, mas suponho que devesseter tambm suas qualidades.

    Acho que sim concordou Spade num tom totalmente inexpressivo, esaiu do beco.

    Em uma farmcia que ficava aberta durante a noite, na esquina da BushStreet com a Tay lor, Spade telefonou. Meu bem disse, um pouco depois deter dado o nmero , Miles recebeu um tiro. . . Sim, est morto. .. No, nofique nervosa. . . Sim. . . Voc ter de comunicar a Iva . . . No, de jeito nenhum.Voc que tem que ir. . . Voc boazinha. . . E faa com que ela no v aoescritrio. Diga-lhe que irei v-la.. . hum.. . a qualquer hora. . . Sim, mas no medeixe amarrado a nenhuma promessa. . . isso a. Voc um anjo. At logo.

    O despertador de metal marcava trs e quarenta quando Spade acendeu de

    novo a luz do lustre. Deixou cair o chapu e o sobretudo no leito e dirigiu-se cozinha, voltando ao quarto com um copo e uma garrafa alta de Bacardi.Despejou uma dose e bebeu-a de p. Ps a garrafa e o copo sobre a mesa,sentou-se na beirada da cama, de frente para eles, e enrolou um cigarro. Tinhabebido o terceiro copo de Bacardi e estava acendendo o quinto cigarro, quando acampainha da porta tocou. Os ponteiros do despertador marcavam quatro emeia. Spade suspirou, levantou-se e dirigiu-se ao telefone, junto porta dobanheiro, onde apertou o boto que soltava o fecho da porta da rua. Entoresmungou: Diabos a levem e conservou-se carrancudo junto ao telefone,com a respirao desigual, enquanto uma vermelhido opaca lhe subia s faces.

    Veio do corredor o rudo raspante da porta do elevador, abrindo-se efechando-se. Spade suspirou de novo e dirigiu-se porta. Passos silenciosos epesados fizeram-se ouvir fora, no cho atapetado, passos de dois homens. Afisionomia de Spade iluminou-se. Seus olhos perderam o aspecto cansado. Abriua porta rapidamente. Al, Tom disse ao detetive alto e barrigudo, comquem estivera conversando na Burritt Street, e Al, tenente ao homem queestava ao lado de Tom. Entrem.

    Eles o cumprimentaram ao mesmo tempo, sem dizer nada, e entraram.Spade fechou a porta e introduziu-os no quarto. Tom sentou-se num canto dosof, junto s janelas. O tenente sentou-se em uma cadeira, ao lado da mesa. Otenente era um homem de compleio slida, com uma cabea redonda sob ocabelo grisalho, cortado curto, e um rosto quadrado atrs de um bigode tambm

  • grisalho e curto. Tinha pregado na gravata um alfinete feito de uma moeda deouro de cinco dlares, e, na lapela, o emblema de uma sociedade secreta, umpequeno naipe de ouros trabalhado. Spade trouxe dois copos da cozinha e encheu-os, assim como o seu, de Bacardi, deu um a cada um dos visitantes, e sentou-secom o seu ao lado da cama. Sua fisionomia estava serena e indiferente. Levantouo copo e disse: Ao crime e bebeu-o.

    Tom esvaziou o copo, colocou-o no cho, ao lado dos ps, e limpou a bocacom o indicador sujo de lama. Depois ficou de olhos fixos no p da cama, comose esta lhe recordasse vagamente alguma coisa de que estivesse tentando selembrar. O tenente olhou para o copo durante uns doze segundos, tomou um goleinsignificante do seu contedo, e o ps sobre a mesa, junto ao cotovelo.Examinou o quarto com o olhar muito atento e voltou depois os olhos para Tom.Tom mexeu-se, indisposto, no sof, e perguntou sem levantar os olhos: Voccomunicou o que aconteceu mulher de Miles, Sam?

    Spade fez: Hum-hum. Como ela recebeu a notcia?Spade sacudiu a cabea: No entendo de mulheres.Tom disse a meia voz: Aposto que no entende . . .O tenente ps as mos sobre os joelhos e inclinou-se a a frente. Seus olhos

    esverdeados estavam cravados em Spade com uma fixidez particular, como se oseu foco fosse uma questo de mecnica, que pudesse ser mudado somentepuxando uma alavanca ou apertando um boto. Que espcie de arma voccarrega? perguntou.

    Nenhuma. No gosto de armas. Naturalmente, tenho algumas noescritrio.

    Gostaria de ver uma delas disse o tenente. Voc no ter por acaso alguma aqui? No. Tem certeza disso? Procure. Spade sorriu e fez um pequeno aceno com o copo vazio.

    Vire este negcio de cima para baixo, se quiser. No me importo... se tiveremuma ordem de busca.

    Tom protestou: Ora, v merda, Sam!Spade colocou o copo sobre a mesa e ficou em p, fitando o tenente. O

    que quer voc, Dundy? perguntou, numa voz dura e fria como o seu olhar.Os olhos do tenente Dundy tinham se movido de forma a conservar o seu

    foco sobre os de Spade. Apenas seus olhos tinham se movido. Tom mudou deposio outra vez no sof, deu um profundo suspiro e resmungou em tom dequeixa: Ns no estamos procurando encrenca, Sam.

    Spade, ignorando Tom, disse a Dundy : Bem, que quer voc? Fale claro.Quem voc pensa que , para vir aqui tentar me espionar?

    Muito bem disse Dundy em tom grave , sente-se e oua. Eu me sento, ou fico de p, como me der na telha retrucou Spade sem

    se mover. Pelo amor de Deus, seja razovel pediu Tom. Qual a vantagem de

  • termos uma rixa? Se voc quer saber por que no falamos claro, porque,quando lhe perguntei quem era esse Thursby, voc quase me disse que no erada minha conta. Voc no pode nos tratar dessa forma, Sam. No direito, e issono lhe trar nenhuma vantagem. Ns temos que fazer a nossa obrigao.

    O tenente Dundy ps-se em p, chegou bem perto de Spade e aproximou orosto quadrado do rosto do seu interlocutor: Eu o preveni de que vocescorregaria qualquer dia destes disse.

    Spade fez um muxoxo de pouco-caso, erguendo as sobrancelhas. Todomundo escorrega um dia replicou, com amabilidade zombeteira.

    E esse o seu caso.Spade sorriu e sacudiu a cabea. No, eu me sairei bem, obrigado.

    Parou de sorrir. Seu lbio superior, do lado direito, contraiu-se sobre o canino. Osolhos continuaram apertados e injetados. A voz saiu profunda como a do tenente. No estou gostando disto. O que que vocs esto xeretando? Digam-me, ousaiam e me deixem ir para a cama.

    Quem Thursby? perguntou Dundy . Eu disse a Tom o que sabia a respeito dele. Voc disse muito pouco a Tom. Eu sabia muito pouco. Por que vocs o estavam seguindo? Eu no estava. Miles que estava, pela tima razo de termos um cliente

    que estava pagando bom dinheiro para que ele fosse seguido. Quem o cliente?A calma voltou de novo ao rosto e voz de Spade. Ele disse, em tom de

    censura: Vocs sabem que no posso lhes contar isso antes de ter falado a esserespeito com o cliente.

    Ou voc conta agora, ou vai contar no tribunal disse Dundy comviolncia. No se esquea de que isso um assassinato.

    Talvez. E aqui est uma coisa que voc no deve esquecer, meu amor.Contarei ou no, como me agradar. J vai longe o tempo em que eu choravaporque os policiais no gostavam de mim.

    Tom deixou o sof e sentou-se no p da cama. Seu rosto mal barbeado ebesuntado de lama mostrava-se cansado e enrugado. Seja razovel, Sam implorou. D-nos uma colher de ch. Como podemos ter qualquer indciosobre o assassinato de Miles se voc se recusa a dizer o que descobriu ?

    No precisa torturar os miolos a esse respeito disse Spade. Euenterrarei os meus mortos:

    O tenente Dundy sentou-se e ps de novo as mos nos joelhos. Seus olhoseram ardentes discos verdes. Pensei isso disse, e sorriu com satisfaomaldosa.

    Foi exatamente por isso que viemos v-lo, no verdade, Tom?Tom gemeu, mas no articulou nenhuma palavra. Spade observava Dundy

    cautelosamente. Foi exatamente o que eu disse a Tom continuou o tenente. Eu disse:

    "Tom, tenho um palpite de que Sam Spade um homem que lava a roupa sujaem casa". Foi isso exatamente o que eu lhe disse.

  • A expresso de cautela abandonou os olhos de Spade, que se tornarampesados de tdio. Ele voltou o rosto para Tom e perguntou, com ar de pouco-caso: Que bicho mordeu o seu amigo agora?

    Dundy ps-se em p e bateu no peito de Spade com a ponta de dois dedoscurvos: Apenas isto disse, esforando-se para tornar distintas todas aspalavras, sublinhando-as com as pancadinhas dos dedos: Thursby foi alvejadoem frente ao seu hotel, trinta e cinco minutos depois que voc deixou a BurrittStreet.

    Spade falou, empregando o mesmo esforo nas palavras: Tire as suasmalditas patas de cima de mim.

    Dundy recolheu os dedos, mas no mudou o tom de voz: Tom disse que voc estava com tanta pressa que nem pde se demorar

    para dar uma vista d'olhos no seu companheiro.Tom rosnou, desculpando-se: Bem, com os diabos, Sam, foi assim que

    voc escapuliu. E no foi casa de Archer comunicar esposa disse o tenente. Ns

    a procuramos, e encontramos l aquela moa do seu escritrio, que disse quevoc a tinha mandado em seu lugar.

    Spade inclinou a cabea, assentindo. Seu rosto parecia apatetado, na suaimobilidade.

    O tenente Dundy levantou os dois dedos curvos em direo ao peito deSpade, baixou-os de novo com rapidez e disse: Voc teve dez minutos paraarranjar um telefone e falar com a moa. Teve dez minutos para alcanar oesconderijo de Thursby, em Geary, perto de Leavenworth; voc poderia fazerisso facilmente nesse tempo, ou em quinze minutos no mximo. E isso lhe d dezou quinze minutos de folga, antes de ele aparecer.

    Por acaso eu sabia onde ele morava? perguntou Spade. E sabia queele no tinha ido direto para casa depois de matar Miles?

    Sabia o que sabia replicou Dundy , teimoso. A que horas chegou emcasa?

    s vinte para as quatro. Estive andando por a, meditando.O tenente meneou a cabea redonda, de cima para baixo. Sabamos que

    voc no estava em casa s trs e meia. Tentamos ligar para c. Por onde esteveandando?

    Sa da Bush Street a certa altura e depois voltei. Viu algum que.. . No, sem testemunhas disse Spade, e riu jovialmente. Sente-se,

    Dundy . Voc no acabou de beber. Pegue o seu copo, Tom.Tom disse: No, obrigado, Sam. Dundy sentou-se, mas no olhou para

    o copo de rum.Spade encheu o seu copo, bebeu, ps o copo vazio na mesa e voltou a sentar-

    se na beira da cama. Agora sei onde estou disse, olhando com olhosamistosos de um detetive para o outro. Sinto ter ficado bravo, mas isso de unscaras como vocs virem aqui querendo me acusar me deixou nervoso. Eu jestava aborrecido com o fato de Miles estar fora de combate, e ainda por cimavm vocs, bancando os sabidos para o meu lado. Mas agora est bem, agora

  • que sei o que vocs esto querendo.Tom disse: Esquea-se disso. O tenente ficou calado. Spade perguntou:

    Thursby morreu?Enquanto o tenente hesitava, Tom respondeu: Sim.Ento o tenente disse, raivoso: E voc bem pode ficar sabendo tambm,

    se j no sabe, que ele morreu antes de poder contar qualquer coisa a algum.Spade estava enrolando um cigarro. Sem levantar os olhos, perguntou:

    Que quer dizer com isso? Pensa que eu sabia? Quis dizer o que disse replicou rudemente Dundy .Spade ergueu os olhos para ele e sorriu, segurando o cigarro enrolado em

    uma das mos e o isqueiro na outra. Voc ainda no est em condies de meprender, est, Dundy? Dundy volveu um olhar duro para Spade, e norespondeu.

    Ento, no h nenhuma razo especial para que eu d a mnimaimportncia ao que voc pensa, no , Dundy?

    Ora, seja razovel, Sam! pediu Tom.Spade ps o cigarro na boca, acendeu-o e soltou a fumaa por entre uma

    risada. Serei razovel, Tom prometeu. Como foi que matei esseThursby? J me esqueci. Tom grunhiu, descontente. O tenente Dundy disse:

    Ele foi alvejado quatro vezes pelas costas, com um44 ou 45, do lado oposto da rua, quando ia entrar no hotel. Ningum viu, mas

    parece ter sido assim. E trazia uma Luger num coldre a tiracolo, que nofoi usada acrescentou Tom. O que que o pessoal do hotel sabe a respeito dele perguntou Spade. Nada, a no ser que estava l havia uma semana. Sozinho? Sozinho. O que vocs acharam com ele? Ou no quarto? Dundy apertou os lbios e

    perguntou: O que voc imagina que deveramos ter achado?Spade descreveu um crculo negligente com o cigarro. Alguma coisa que

    nos dissesse quem era ele, e o que fazia. Achou? Pensvamos que voc nos pudesse informar quanto a isso.Spade olhou para o tenente com os olhos amarelo-pardos cheios de

    exagerada candura. Nunca vi Thursby , nem morto nem vivo.O tenente Dundy ps-se em p com ar descontente. Tom levantou-se,

    bocejando e espreguiando-se. J perguntamos o que tnhamos a perguntar disse Dundy, franzindo as sobrancelhas sobre os olhos verdes, duros comopedras. Mordeu o lbio superior, coberto pelo bigode, deixando o lbio inferiorexpelir as palavras. Ns lhe contamos mais do que voc nos contou. Fomosleais. Voc me conhece, Spade. Seja voc ou no, serei legal com voc, e vocter todas as chances. No posso censur-lo pelo que est fazendo... mas isso nome impedir de prend-lo.

    justo replicou Spade da mesma forma. Mas eu ficaria maissossegado se voc tivesse bebido o rum.

    O tenente Dundy voltou-se para a mesa, pegou o copo e esvaziou-o

  • lentamente. Em seguida disse: Boa noite e estendeu a mo. Apertaram-seas mos cerimoniosamente. Tom e Spade despediram-se tambmcerimoniosamente, e Spade conduziu-os at a porta. Ento se despiu, apagou asluzes e deitou-se.

  • 3. TRS MULHERES

    Quando Spade chegou ao escritrio, na manh seguinte, s dez horas, Effie

    Perine estava abrindo a correspondncia na sua escrivaninha. Seu rosto infantilmostrava-se plido sob o queimado do sol. Ps sobre a mesa o punhado deenvelopes e a esptula de lato, e preveniu-o em voz baixa: Ela est a dentro.

    Pedi-lhe que a conservasse afastada protestou Spade, tambm em vozbaixa.

    Os olhos de Effie Perine arregalaram-se, e sua voz tornou-se to irritadaquanto a dele: Sim, mas no me disse como fazer isso. Suas sobrancelhasse apertaram um pouco, e os ombros descaram. No seja rabugento, Sam disse, com ar abatido. Aturei-a a noite inteira.

    Spade aproximou-se da moa, ps-lhe uma das mos sobre a cabea ealisou-lhe o cabelo. Sinto muito, meu anjo. Eu no. . . interrompeu-se, aoabrir-se a porta interna. Al, Iva disse mulher que a abrira.

    Oh, Sam! fez ela. Era uma mulher loura, de pouco mais de trinta anos.Sua beleza devia ter atingido o auge uns cinco anos antes. O corpo, apesar darobustez, era bem-modelado e elegante. Estava vestida de preto, desde o chapuat os sapatos, o que lhe dava um ar de luto improvisado. Tendo falado,retrocedeu um passo e ficou esperando Spade.

    Ele retirou a mo da cabea de Effie Perine e entrou na sala interna,fechando a porta. Iva aproximou-se rapidamente, levantando o rosto triste para oseu beijo. Seus braos envolveram-no, antes que os dele a estreitassem. Depoisde se beijarem, ele fez um pequeno movimento para libertar-se, mas ela apertouo rosto de encontro ao seu peito e comeou a soluar.

    Ele bateu-lhe de leve nas costas, dizendo: Pobrezinha. Sua voz eraterna. Seus olhos, dirigindo-se de lado para a escrivaninha que pertencera aoscio, adiante da sua, estavam irritados. Apertou os lbios nos dentes, numtrejeito de impacincia, e virou o queixo para evitar o contato da copa do chapudela. Voc mandou chamar o irmo de Miles? perguntou.

    Mandei; chegou esta manh. As palavras saam indistintas por causados soluos e do casaco que lhe tapava a boca.

    Ele fez novo trejeito e curvou a cabea para olhar furtivamente o relgio, nopulso. Seu brao esquerdo envolvia-a, descansando a mo sobre o ombro dela. Opunho estava afastado o suficiente para deixar descoberto o relgio. Estemarcava dez horas e dez minutos.

    A mulher estremeceu nos seus braos e levantou novamente o rosto. Tinhaos olhos azuis molhados, redondos, e orlados de branco. A boca estava mida. Oh, Sam gemeu , voc o matou?

    Spade olhou-a com os olhos arregalados, e seu queixo ossudo caiu. Retiroudepois os braos que o prendiam e afastou-se dela. Franziu ento as sobrancelhase limpou a garganta. Ela conservou os braos levantados, como ele os tinhadeixado. A angstia ensombrava-lhe os olhos, semicerrados sob as sobrancelhaserguidas. Seus lbios vermelhos e midos estavam trmulos.

  • Spade riu uma slaba spera Ah! e dirigiu-se janela de cortinasamarelo-claras. Conservou-se a, de costas para ela, olhando para o ptio atravsda cortina, at que ela se encaminhou para ele. Ento voltou-se rapidamente edirigiu-se sua escrivaninha. Sentou-se, apoiou os cotovelos na mesa, com oqueixo entre os punhos, e olhou para a mulher. Seus olhos amarelados faiscarampor entre as pestanas semicerradas. Quem ps essa brilhante idia na suacabea? perguntou friamente.

    Eu pensei. . . Ela levou a mo boca, e novas lgrimas lhe vieram aosolhos. Veio colocar-se ao lado da escrivaninha, movendo-se com uma graafcil e segura, sobre os sapatinhos minsculos e de salto muito alto. Tenhapacincia comigo, Sam disse com humildade.

    Ele sorriu-lhe, com os olhos ainda em chispas. Voc matou meu marido,Sam, tenha pacincia comigo.

    Puta que o pariu disse ele, batendo as palmas das mos.Ela comeou a chorar alto, escondendo o rosto num leno branco. Spade

    ergueu-se e aproximou-se dela; ps-lhe os braos em volta e beijou-lhe opescoo, entre a orelha e a gola do casaco. No, Iva, no chore assim. Seurosto estava inexpressivo. Quando ela parou de chorar, ele aproximou-lhe a bocado ouvido e murmurou: Voc no devia ter vindo aqui hoje, amor. Foiimprudncia. Voc no pode continuar aqui. Devia estar em sua casa.

    Ela voltou-se nos seus braos para olh-lo de frente, e perguntou: Vocvem hoje noite?

    Ele sacudiu a cabea com brandura: Hoje, no. Logo? Sim. Quando? Logo que puder.Ento beijou-lhe a boca, conduziu-a at a porta, abriu-a e disse: At logo,

    Iva. Inclinou-se, fazendo-a sair, fechou a porta e voltou sua escrivaninha.Tirou fumo e papis de cigarro do bolso, mas no enrolou nenhum cigarro.Conservou-se sentado, segurando os papis numa das mos e o fumo na outra, eficou olhando, absorto, para a escrivaninha do seu companheiro assassinado.

    Effie Perine abriu a porta e entrou. Seus olhos castanhos mostravam-seinquietos, mas ela perguntou, em tom despreocupado: Ento? Spade norespondeu. O olhar absorto no se afastou da escrivaninha do scio. A moafranziu as sobrancelhas, e, dando a volta, aproximou-se dele. Ento? perguntou em voz mais alta como se entenderam, voc e a viva?

    Ela pensa que eu matei Miles disse ele, movendo apenas os lbios. A fim de poder se casar com ela?Spade no respondeu. A moa tirou-lhe o chapu da cabea, colocando-o

    sobre a sua escrivaninha. Depois inclinou-se e tirou-lhe de entre os dedos inertesa bolsa de fumo e os papis. A polcia pensa que eu matei Thursby disseele.

    Quem ele? perguntou ela, separando do mao um papel de cigarro ederramando fumo nele.

    Quem voc pensa que eu matei? perguntou. Vendo que ela desprezava

  • a pergunta, disse: Thursby o sujeito que Miles devia estar seguindo paraaquela moa chamada Wonderly .

    Seus dedos delgados acabaram de dar forma ao cigarro. Lambeu-o, alisou-o, dobrou-lhe as pontas e colocou-o entre os lbios de Spade. Obrigado, meubem disse ele; ps um brao em volta da cintura delgada da moa e, numgesto cansado, encostou o rosto contra o seu quadril, fechando os olhos.

    Voc vai se casar com Iva? perguntou a moa, baixando o olhar parao cabelo castanho-claro.

    No seja boba resmungou ele. O cigarro, apagado, balanava paracima e para baixo, com o movimento dos seus lbios.

    Ela no acha que seja bobagem. Como poderia achar. . . uma vez quevoc a assedia daquela forma?

    Ele suspirou: Queria no t-la visto nunca. Talvez voc queira isso, agora. Um trao de rancor transpareceu na

    voz da moa. Mas j houve tempo... No sei o que fazer ou dizer s mulheres, a no ser dessa forma

    resmungou , e depois, eu no gostava de Miles. Isso mentira, Sam disse a moa. Voc sabe que eu a acho uma

    sem-vergonha, mas eu tambm o seria, se isso me desse um corpo igual ao dela.Spade esfregou o rosto com impacincia contra ela, mas no disse nada.

    Effie Perine mordeu os lbios, enrugou a testa e, curvando-se para ver-lhemelhor o rosto, perguntou: Voc acha que ela poderia t-lo assassinado?

    Spade endireitou-se e tirou o brao da cintura da moa. Depois sorriu-lhe,com um sorriso divertido. Tirou o isqueiro, acendeu-o e chegou-o ponta docigarro. Voc um anjo disse com ternura, por entre a fumaa , umanjo bem bobinho.

    Ela deu um sorriso um pouco forado. Ah, sou? E se eu lhe contar queno fazia muitos minutos que a sua Iva tinha chegado em casa quando eu chegueitambm para lhe comunicar a notcia, s trs horas desta madrugada?

    Que que voc est me contando? Seu olhar tinha se tornado atento,apesar de a boca continuar a sorrir.

    Ela me deixou esperando na porta enquanto se despia, ou acabava de sedespir. Eu vi as roupas em uma cadeira, para onde as tinha atirado. O chapu e ocasaco estavam por baixo. Sua combinao, em cima, ainda estava quente. Eladisse que estava dormindo, mas no estava. As roupas da cama estavamsimplesmente enrugadas, mas no amassadas.

    Spade pegou a mo da moa e acariciou-a, batendo-lhe de leve: Voc um detetive, meu bem, mas sacudiu a cabea ela no o matou.

    Effie Perine puxou a mo com fora. Essa sem-vergonha quer se casarcom voc, Sam disse com amargura. Ele fez um gesto de impacincia com acabea e com uma das mos. Ela franziu os sobrolhos e perguntou: Voc a viua noite passada?

    No. Sinceramente? Sinceramente. No imite Dundy , meu amor. No lhe fica bem.

  • Dundy procurou-o? Hum-hum. Ele e Tom Polhaus foram tomar um trago, s quatro da

    manh. Pensam realmente que voc assassinou esse . . . como mesmo o nome? Thursby . Ps o resto do cigarro no cinzeiro e comeou a enrolar outro. Pensam? insistiu ela. S Deus sabe. Seus olhos estavam fixos no cigarro que estava fazendo.

    Eles tinham uma idia parecida. No sei at que ponto consegui afast-losdela.

    Olhe para mim, Sam. Ele olhou-a e riu, pois uma expresso de alegriamisturava-se ansiedade, no rosto da moa. Voc me assusta disse ela,tornando-se sria de novo. ' Sempre acha que sabe o que est fazendo, mas prejudicado pela sua prpria esperteza, e um dia descobrir isso.

    Ele soltou um suspiro zombeteiro e esfregou o rosto no brao da moa. Isso o que Dundy diz, mas conserve Iva afastada de mim, meu bem, e agireide forma a vencer o resto das minhas dificuldades. Ergueu-se e ps o chapu. Tire da porta o "Spade & Archer" e ponha "Samuel Spade". Estarei de voltadentro de uma hora, ou ento telefonarei.

    Spade atravessou o longo saguo violeta do St. Mark em direo recepoe perguntou a um almofadinha de cabelo vermelho se a srta. Wonderly estava. Oalmofadinha de cabelo vermelho afastou-se, depois voltou, sacudindo a cabea.

    Ela foi embora esta manh, sr. Spade. Obrigado.Spade passou pela recepo em direo a um compartimento fora do hall,

    onde um homem gordo, de meia-idade, vestido de escuro, estava sentado emfrente a uma escrivaninha de mogno, de superfcie lisa. Na beira daescrivaninha, de frente para o saguo, havia uma prisma triangular, de mogno elato, com a inscrio: "Sr. Freed".

    O homem gordo levantou-se e deu a volta escrivaninha, com a moestendida. Senti imensamente o que aconteceu com Archer, Spade disse,no tom de uma pessoa acostumada a mostrar-se solidria na tristeza, sem serindiscreta. Acabei de ler no Call. Ele esteve aqui na noite passada, voc sabe.

    Obrigado, Freed. Voc falou com ele? No. Ele estava sentado no saguo quando eu cheguei, noite, cedo

    ainda. No o procurei. Pensei que estivesse trabalhando, e sei que vocs gostamde ficar ss quando esto ocupados. Isso tem alguma relao com o seu...?

    Acho que no, mas ainda no sabemos. De qualquer forma, noenvolveremos nisso o hotel, se pudermos evit-lo.

    Obrigado. Est bem. Pode me dar algumas informaes a respeito de um ex-

    hspede e, depois, esquecer que as pedi? Sem dvida. Uma certa srta. Wonderly foi embora esta manh. Gostaria de conhecer

    os detalhes. Venha comigo disse Freed , e vejamos o que podemos descobrir.

  • Spade conservou-se imvel, sacudindo a cabea. No quero aparecer nisso.Freed meneou a cabea, aquiescendo, e saiu do compartimento. No saguo,

    parou de repente e voltou at Spade. Harriman era o detetive do hotel queestava de servio na noite passada disse. Ele viu Archer, sem dvida. Devopreveni-lo de que silencie sobre isso?

    Spade olhou de soslaio para Freed. melhor no dizer nada. Isso no temimportncia, desde que no haja relao aparente com essa tal de Wonderly.Harriman muito bom, mas gosta de falar, e prefiro que ele no pense que halguma coisa a ocultar.

    Freed meneou de novo a cabea e afastou-se, voltando quinze minutos maistarde. Ela chegou na ltima tera-feira, registrando-se como tendo vindo deNova York. No tinha malas, apenas algumas maletas. No houve chamadastelefnicas debitadas na sua conta, e parece que ela no recebeu muitas cartas,talvez nenhuma. A nica pessoa vista em sua companhia foi um homem alto,moreno, de uns trinta e seis anos. Ela saiu s nove e meia esta manh, voltou umahora mais tarde, pagou a conta e mandou levar as maletas para um carro. Orapaz que as levou diz que era um Nash de turismo, provavelmente alugado. Eladeixou este endereo: "Ambassador", Los Angeles.

    Obrigado, Freed disse Spade, e deixou o St.Quando o detetive voltou ao seu escritrio, Effie Perine parou de escrever

    uma carta mquina para dizer-lhe: Seu amigo Dundy esteve aqui. Queria veras suas armas.

    _ E...? Disse-lhe que voltasse quando voc estivesse presente. Boa menina. Se ele voltar, deixe-o v-las. E a srta. Wonderly telefonou. No era sem tempo. O que ela disse? Quer v-lo. A moa pegou uma folha de papel de cima da

    escrivaninha e leu o memorando escrito a lpis: Ela est no Coronet, na Califrnia Street, apartamento 1001. Deve

    perguntar por srta. Leblanc. D-me isso a disse Spade, e estendeu a mo. Quando a moa lhe deu

    o memorando, tirou o isqueiro, acendeu-o, chegou-o folha de papel e ficousegurando-o at que todo ele, exceto um canto, no fosse mais do que um rolo decinza preta; deixou-o cair no cho de linleo e amassou-o sob a sola do sapato. Amoa observava-o com um olhar de censura. Ele sorriu: isso mesmo,querida

    e saiu de novo.

  • 4. O PSSARO PRETO

    A srta. Wonderly, num vestido justo de crepe de seda verde, abriu a porta

    do apartamento 1001 do Coronet. Seu rosto estava corado. O cabelo vermelho-escuro, dividido do lado esquerdo, penteado para trs em ondas suaves sobre afronte, do lado direito, estava um pouco desarrumado. Spade tirou o chapu,dizendo: Bom dia.

    O sorriso dele trouxe ao rosto da moa um reflexo de sorriso, mas os olhosdela, de um azul quase violeta, no perderam a expresso perturbada. Elaabaixou a cabea e disse, numa voz tmida, sussurrante: Entre, sr. Spade.

    A moa conduziu-o a uma sala de estar vermelha e creme, passando pelasportas abertas da cozinha, do banheiro e do quarto, e pedindo desculpas peladesordem: Est tudo remexido. Nem acabei de desarrumar as malas.

    Ps o chapu dele sobre uma mesa e sentou-se em um grande sof denogueira. Ele sentou-se numa cadeira de brocado de encosto oval, na sua frente.A moa olhou para os dedos, tranando-os, e disse: Sr. Spade, tenho umaterrvel confisso a lhe fazer. Spade sorriu de modo educado (ela no levantouos olhos para ele) e no disse nada.

    Essa. . . essa histria que lhe contei ontem era s. .. uma histria gaguejou, e ento levantou o olhar para ele com uma expresso angustiada,amedrontada.

    Oh, quanto a isso. . . disse Spade, despreocupado. Ns noacreditamos muito na sua histria.

    Ento. . . ? A perplexidade juntava-se agora angstia e ao receio nosseus olhos.

    Ns acreditamos nos seus duzentos dlares. O senhor quer dizer. . . ? Ela parecia no saber o que ele queria

    exprimir. Quero dizer que a senhora nos pagou mais do que pagaria se estivesse

    dizendo a verdade explicou com brandura e o suficiente para nos fazeraceitar tudo.

    Seus olhos subitamente se iluminaram. Ela se ergueu alguns centmetrossobre o sof, sentou-se de novo, alisou a saia, inclinou-se para a frente e falouimpetuosamente: E mesmo agora, o senhor querer. . . ?

    Spade interrompeu-a, levantando a palma da mo. A parte superior de seurosto mostrava-se carrancuda. A parte inferior sorria. Isso depende disseele. O diabo , srta. . . Seu nome Wonderly ou Leblanc?

    Ela corou e murmurou: O verdadeiro O'Shaughnessy... BrigidO'Shaughnessy .

    O diabo, srta. O'Shaughnessy, que dois assassinatos ela estremeceu de uma vez, como estes, deixam todo mundo excitado, fazem a polcia pensarque pode ultrapassar os limites, tornam todos difceis de tratar, e isso sai caro.No .. . ele parou de falar porque ela tinha parado de ouvir, e estava apenasesperando que ele terminasse.

  • Sr. Spade, diga-me a verdade. Sua voz tremia, quase histrica. O rostotomara uma expresso perturbada, emoldurando os olhos angustiados. Sereiculpada pelo que... pelo que aconteceu a noite passada?

    Spade sacudiu a cabea. No, a no ser que existam coisas das quais euno tenha conhecimento. A senhorita nos preveniu de que Thursby era perigoso. verdade que nos mentiu a respeito da sua irm e do resto, mas isso noimporta: ns no acreditamos nisso. Encolheu os ombros curvos. Eu no ajulgaria culpada.

    Obrigada disse ela suavemente, e depois moveu a cabea de um ladopara o outro. Mas sempre me censurarei por isso. Ento ps a mo sobre opeito. O sr. Archer estava to. . . cheio de vida ontem, to robusto e tovigoroso, e...

    Pare ordenou Spade. Ele sabia o que estava fazendo. Temos quecorrer os riscos.

    Ele era... era casado? Sim, com dez mil dlares de seguro, sem filhos, e uma mulher que no o

    amava. Oh, por favor, no fale! murmurou ela. Spade sacudiu de novo os

    ombros. Essa a verdade. Olhou o relgio e mudou da cadeira para o sof, ao lado da moa.

    No h tempo para nos afligirmos agora com essas coisas. Sua voz, emboraafvel, mostrava-se firme.

    A fora, h um bando de policiais, auxiliares de comissrios e reprteresem agitao, farejando uma pista. Que pretende fazer?

    Quero que o senhor me salve de... disso tudo replicou numa voztrmula e dbil, pondo-lhe a mo tmida sobre a manga. Sr. Spade, eles sabemalguma coisa a meu respeito?

    Ainda no. Eu quis v-la primeiro. O que. . . o que pensariam se soubessem a forma como o procurei. . .

    com aquelas mentiras? Ficariam desconfiados. por isso que eu os estive despistando at poder

    v-la. Pensei que talvez no precisssemos deix-los tomar conhecimento detudo. Devemos estar aptos a forjar uma histria que dissipe as desconfianasdeles, se for necessrio.

    O senhor no est pensando que eu tive alguma coisa a ver com os. . .assassinatos, no?

    Spade sorriu, dizendo: Esqueci-me de lhe perguntar isso. Teve? No. timo. Agora, o que contaremos polcia?Ela se remexeu no canto do sof, e seus olhos vacilaram por entre as

    pesadas pestanas, como se tentassem se desprender do olhar dele, sem oconseguir. Parecia menor, e muito jovem e abatida. Eles precisam mesmosaber que eu existo? perguntou. Acho que eu preferiria morrer, sr. Spade.No posso lhe explicar ainda, mas o senhor no poderia proceder de forma a meesconder deles, para que eu no tenha de responder a perguntas? Acho que euno suportaria ser interrogada agora. Preferiria morrer. O senhor no pode, sr.

  • Spade? Talvez, mas terei que saber do que se trata.Ela se ajoelhou na sua frente e ergueu para ele o rosto plido, tenso e

    atemorizado, sobre as mos apertadas. A minha vida no tem sido nadairrepreensvel! exclamou. Tenho sido m. . . pior do que o senhor possaimaginar. . . mas no sou de todo ruim. Olhe para mim, sr. Spade. O senhor sabeque no sou de todo ruim, no verdade? Pode ver isso, no pode? No podeento confiar um pouco em mim? Oh, estou to sozinha e tenho tanto medo, eno tenho ningum, se o senhor no quiser me ajudar! Sei que no tenho o direitode lhe pedir que confie em mim, se eu no confiar no senhor. Eu confio nosenhor, no posso lhe contar nada. No agora. Mais tarde contarei, quandopuder. Tenho medo, sr. Spade. Tenho medo de confiar no senhor. No isso oque quero dizer. Eu confio no senhor, mas. . . confiei em Floy d e. .. no tenhoningum mais, ningum mais, sr. Spade. O senhor pode me ajudar. O senhordisse que podia me ajudar. Se eu no tivesse acreditado que o senhor poderia mesalvar, teria fugido hoje, em vez de mandar procur-lo. Se julgasse que algummais poderia me salvar, estaria assim de joelhos? Sei que no estou sendocorreta. Mas seja generoso, sr. Spade, no me pea para ser correta. O senhor forte, tem recursos, corajoso. Pode me conceder um pouco dessa fora, dessesrecursos e dessa coragem, sem dvida. Ajude-me, sr. Spade. Ajude-me, porquepreciso muito de ajuda, e porque, se no quiser faz-lo, onde encontrarei algumque possa fazer alguma coisa, mesmo que queira? Ajude-me. No tenho direitode lhe pedir que me ajude assim s cegas, mas peo. Seja generoso, sr. Spade. Osenhor pode me ajudar. Ajude-me.

    Spade, que prendera a respirao durante a maior parte desse discurso,esvaziou ento os pulmes com um longo suspiro, exalado por entre os lbioscerrados, e disse: Voc no tem muita necessidade de auxlio alheio. Voc auto-suficiente. Muito auto-suficiente. So principalmente os seus olhos, acho, eesse soluo que pe na voz, quando diz coisas como "Seja generoso, sr. Spade".

    Ela se ergueu de um salto. Seu rosto tornou-se cor de carmim, mas elaconservava a cabea erguida, e olhou Spade bem nos olhos. Mereo isso disse. Mereo, mas . . . oh!... eu queria tanto o seu auxlio! Quero-o, necessito-o tanto! E a mentira estava na forma como eu o disse, e no no que disse. Voltou-se, abandonando a atitude altiva. minha a culpa, se no podeacreditar em mim agora.

    O rosto de Spade tornou-se vermelho, e ele olhou para o cho, murmurando: Agora est ficando perigosa.

    Brigid O'Shaughnessy dirigiu-se mesa e pegou o chapu dele. Voltou entoe ficou na sua frente, segurando o chapu sem oferec-lo, mas segurando-o paraque ele o pegasse, se quisesse. Estava com o rosto branco e fino. Spade olhoupara o chapu e perguntou: Que aconteceu a noite passada?

    Floy d veio ao hotel s nove horas, e samos para dar um passeio. Sugeriisso, a fim de que o sr. Archer pudesse v-lo. Paramos em um restaurante naGeary Street, penso, para jantar e danar, e voltamos ao hotel mais ou menosmeia hora depois da meia-noite. Floyd deixou-me na porta, e fiquei do lado de

  • dentro, observando o sr. Archer segui-lo ao descer a rua, do outro lado. Descer? Voc quer dizer em direo MarketStreet? . . Sabe o que eles estiveram fazendo na vizinhanada Bush e da Stockton, onde Archer foi alvejado? No era perto de onde Floyd morava? No. Seriam uns doze quarteires fora do seu caminho, se ele estivesse

    indo do seu hotel para o dele. Bem, que fez depois que eles se foram? Deitei-me. E esta manh, quando sa para almoar, vi as manchetes nos

    jornais e li sobre. . . o senhor sabe. Ento dirigi-me Union Square, onde tinhavisto automveis para alugar, arranjei um e voltei ao hotel para buscar minhabagagem. Depois que descobri que meu quarto fora revistado ontem, vi que tinhade me mudar, e encontrei este apartamento ontem tarde. Assim, vim para c, eento telefonei para o seu escritrio.

    Seu quarto no St. Mark foi revistado? perguntou ele. Sim, enquanto eu estava no seu escritrio. Ela mordeu o lbio. Eu

    no tencionava contar-lhe isso. Quer dizer que no devo interrog-la a esse respeito?Ela aquiesceu, embaraada, vendo-o franzir as sobrancelhas. Mexeu um

    pouco o chapu entre as mos. Ele, rindo com impacincia, disse: Pare de meacenar o chapu na cara. J no me ofereci para fazer o que puder?

    Ela sorriu, tensa, reps o chapu na mesa e sentou-se de novo no sof, aolado dele. Spade disse: No consegui nada em troca da minha confiana cegaem voc, exceto que no estarei em condies de ajud-la muito, se no tiveralguma idia sobre o assunto. Por exemplo, preciso de algum esclarecimentosobre o seu Floyd Thursby .

    Conheci-o no Oriente. Ela falava devagar, olhando para um dedo cujaponta traava oitos no sof, entre os dois. Chegamos aqui na ltima semana,vindos de Hong Kong. Ele estava. . . ele tinha prometido ajudar-me. Aproveitou-se do meu desamparo e de eu estar na sua dependncia, para me trair.

    Tra-la, como? Ela sacudiu a cabea e no respondeu. Spade,franzindo os sobrolhos com impacincia, perguntou: Por que voc queria queele fosse seguido?

    Queria saber at onde tinha chegado. Ele no queria nem mesmo que eusoubesse onde estava hospedado. Eu queria descobrir o que ele estava fazendo,com quem estava se encontrando, coisas assim.

    Ele matou Miles Archer?Ela olhou-o, surpresa. Sim, sem dvida disse. Ele tinha uma Luger em um coldre a tiracolo. Mas Archer no foi

    alvejado com uma Luger. Ele tinha um revlver no bolso do sobretudo disse ela. Voc o viu? Ah, vi-o muitas vezes! Sei que ele sempre trazia um a. No o vi a noite

    passada, mas sei que nunca usava o sobretudo sem ele. Por que tantas armas?

  • Era o seu meio de vida. Contava-se em Hong Kong que ele fora para l,para o Oriente, como guarda-costas de um jogador profissional que foraobrigado a deixar os Estados Unidos, e que desde ento o jogador desaparecera.Diziam que Floyd sabia como ele desaparecera. No sei se verdade. S sei queandava sempre bem armado, e que nunca ia dormir sem cobrir o cho em voltada cama com um jornal amarrotado, a fim de que ningum pudesse entrar noseu quarto sem ser pressentido.

    Voc escolheu uma bela espcie de parceiro. Apenas essa espcie poderia ter-me ajudado disse ela simplesmente

    , se tivesse sido leal. Sim, se tivesse. Spade apertou o lbio inferior entre o indicador e o

    polegar, e olhou-a melancolicamente. As rugas verticais sobre o seu nariz seaprofundaram, aproximando as sobrancelhas. Em que buraco voc estmetida agora!

    No pior possvel. Perigo fsico? No sou valente. Acho que no existe nada pior que a morte. Ento isso? isso, to certo como estarmos sentados aqui ela estremeceu , a

    no ser que o senhor me auxilie.Spade tirou os dedos dos lbios e correu-os pelo cabelo. Quem voc

    pensa que eu sou? disse, irritado. No posso fabricar milagres. Olhou orelgio. : O dia est acabando, e voc,no me deu nada com que trabalhar.Quem matou Thursby?

    Ela levou boca um leno amarrotado e disse atravs dele: No sei. Foram inimigos seus ou dele? No sei. Dele, espero, mas receio. . . no sei. Como ele devia ajud-la? Por que o trouxe de Hong Kong para c?Ela o olhou assustada e sacudiu a cabea em silncio. Tinha uma expresso

    perturbada e tristemente obstinada. Spade ps-se em p, enfiou as mos nosbolsos do palet e olhou-a carrancudo. Tempo perdido disse asperamente. No posso fazer nada por voc. No sei o que voc quer. Nem mesmo sevoc sabe o que quer.

    Ela baixou a cabea e chorou. Spade fez com a garganta uma espcie degrunhido abafado e dirigiu-se mesa em busca do chapu. O senhor no ir implorou ela, em uma vozinha sufocada, sem levantar os olhos procurar apolcia?

    Procur-los! exclamou ele, quase gritando de raiva. Eles estiveramme atormentando desde as quatro da madrugada. S Deus sabe o mal que fiz amim mesmo, contemporizando. Para qu? Por uma idia tola de que podiaajud-la. Mas no posso. Nem vou tentar. Ps o chapu na cabea e enterrou-o com fora. Procur-los? Mesmo que eu fique na minha, quieto, eles cairotodos sobre mim. Ento eu lhes direi o que sei, e voc ter que correr os riscos.

    Ela levantou-se do sof e ficou frente dele, apesar de seus joelhostremerem, e manteve erguido o rosto lvido de terror, no obstante no poder

  • imobilizar os msculos trmulos da boca e do queixo. Ento disse: Voc temsido paciente e tem tentado me ajudar. intil, e sem remdio, suponho. Estendeu a mo direita. Agradeo-lhe por tudo o que fez. Eu. . . eu terei quecorrer os riscos.

    Spade deu de novo o grunhido abafado e sentou-se no sof. Quanto voctem em dinheiro? interrogou.

    A pergunta assustou-a. Ela mordeu o lbio inferior e respondeu comrelutncia: Tenho s mais uns quinhentos dlares.

    Passe-os para mim.A moa hesitou, olhando-o timidamente. Ele fez trejeitos irritados com a

    boca, as sobrancelhas, mos e ombros. Wa dirigiu-se ao quarto, voltando quaseimediatamente com

    um mao de notas na mo. Ele pegou o dinheiro, contou-o e disse: Aquiesto s quatrocentos.

    Tenho que guardar algum para minha manuteno explicouhumildemente, levando uma das mos ao peito.

    No pode arranjar mais nenhum? No. Voc deve ter alguma coisa com que possa obter dinheiro insistiu. Tenho uns anis, algumas jias. Ter que penhor-los disse ele, e estendeu a mo. O Remedial

    melhor. . . Mission e Fifth.Ela olhou-o suplicante. Os olhos amarelo-pardos mostravam-se duros e

    implacveis. Lentamente, ela ps a mo dentro do decote de vestido, retirou dalium pequeno rolo de notas e colocou-as na mo que as esperava. Spade alisou asnotas e contou-as: quatro de vinte, quatro de dez, uma de cinco, e devolveu-lheduas de dez e a de cinco, pondo as outras no bolso. Ento levantou-se e disse: Vou ver o que posso fazer por voc. Voltarei assim que puder, com as melhoresnotcias que conseguir. Tocarei quatro vezes um toque longo, um curto, umlongo, um curto , assim voc saber que sou eu. No precisa me acompanharat a porta. Posso sair sozinho.

    Ele a deixou em p no centro da sala, acompanhando-o com os olhos azuis,cheios de pasmo.

    Spade entrou numa sala de espera cuja porta exibia a inscrio, "Wise,

    Merican & Wise". A moa de cabelos vermelhos, sentada mesa telefnica,disse:

    Ah, al, sr. Spade! Al, meu bem. Sid est?Ele esperou ao lado, com a mo em seu ombro rolio, enquanto a moa

    manejava o aparelho e falava no bocal. O sr. Spade quer v-lo, sr. Wise. Olhou para Spade. Pode entrar.

    Ele apertou-lhe o ombro guisa de agradecimento, atravessou a sala emdireo a um corredor mal-iluminado e seguiu por ele at uma porta de vidrofosco, que se encontrava no fim. Abriu a porta e entrou num escritrio onde um

  • homenzinho cor de azeitona, com uma expresso cansada no rosto oval, sob ocabelo escuro e ralo, salpicado de caspa, estava sentado atrs de uma imensaescrivaninha onde se amontoavam maos de papel. O homenzinho acenou paraSpade com o toco do charuto apagado e disse: Puxe uma cadeira. Ento Milessifu a noite passada? Nem o seu rosto cansado nem a sua voz agudademonstravam qualquer emoo.

    Hum-hum, por isso que estou aqui. Spade franziu as sobrancelhas elimpou a garganta. Acho que terei de mandar um investigador s favas, Sid.Posso me abrigar atrs da inviolabilidade dos segredos e da identidade e de nosei que mais, dos meus clientes, da mesma forma que o padre ou o advogado?

    Sid Wise levantou os ombros e abaixou os cantos da boca Ppr que no?Um inqurito no um processo. De qualquer forma, pode tentar. Voc j selivrou de coisas piores. . .

    Eu sei, mas Dundy est ficando chato, e talvez esteja um pouquinhoobtuso no caso presente. Pegue o chapu, Sid, e vamos ver a quem de direito.Quero estar limpo.

    Sid Wise olhou para os papis amontoados sobre a escrivaninha e suspirou,mas levantou-se e dirigiu-se ao armrio junto janela. Voc um patife,Sammy disse, enquanto tirava o chapu do cabide.

    Spade voltou ao seu escritrio dez minutos depois das cinco, nessa tarde.

    Effie Perine estava sentada escrivaninha dele, lendo o Time. Spade sentou-sesobre a mesa e perguntou: Alguma notcia palpitante?

    Nada. Parece que voc viu passarinho verde.Ele sorriu, contente. Acho que vamos ter futuro. Sempre me pareceu

    que, se Miles sumisse e morresse por a, ns teramos mais probabilidades deprosperar. Quer tomar a incumbncia de lhe mandar flores" em meu nome?

    J mandei. Voc um anjo. Como est a sua intuio feminina, hoje? Por qu? Que pensa da srta. Wonderly ? Gosto dela replicou a moa, sem hesitao. Ela arranjou nomes demais. Spade concentrou-se: Wonderly,

    Leblanc, e diz que o verdadeiro O'Shaughnessy . No me importa que ela tenha todos os nomes da lista telefnica. Essa

    moa sria, e voc sabe disso. Imagino. Spade piscou sonolentamente para Effie Perine e caoou:

    De qualquer forma, ela escorregou setecentos mangos em dois dias, e isso timo.

    Effie Perine endireitou-se na cadeira, dizendo: Sam, se essa moa estem dificuldades e voc no a auxiliar, ou tirar vantagem disso para explor-la, eununca o perdoarei, e no terei mais respeito algum por voc, enquanto viver.Spade deu um sorriso forado. Depois franziu os sobrolhos. A carranca tambmera forada. Abriu a boca para falar, mas o rudo de algum entrando pela porta

  • do corredor interrompeu-o. Effie Perine levantou-se e entrou na sala externa.Spade tirou o chapu e sentou-se na sua cadeira. A moa voltou com um cartoonde estava impresso "Sr. Joel Cairo". um sujeito estranho disse ela. Ento faa-o entrar, meu bem disse Spade. Joel Cairo era um homemmoreno, de ossos midos e estatura mediana. Tinha o cabelo escuro e liso, emuito lustroso. Seus traos eram orientais. Um rubi quadrado, ladeado por quatrobarrinhas de brilhantes, brilhavam contra o verde-escuro da sua gravata. O paletpreto, cortado de acordo com os ombros estreitos, alargava-se um pouco sobre osquadris meio desenvolvidos. As calas, mais estreitas do que mandava a moda,ajustavam-se s pernas rolias. A parte superior dos sapatos de couroenvernizado estava oculta por polainas caquis. Ele segurava um chapu preto,duro, na mo enluvada de camura, e veio ao encontro de Spade com passinhoscurtos, midos, balanceados. Um aroma de sndalo entrou com ele.

    Spade inclinou a cabea para o visitante, e em seguida em direo a umacadeira, dizendo: Sente-se, sr. Cairo. Cairo inclinou-se cerimoniosamentesobre o chapu, disse "Muito obrigado", em uma voz fina e aguda, e sentou-se.Sentou-se com afetao, cruzando as pernas, colocando o chapu sobre osjoelhos, e comeou a tirar as luvas amarelas.

    Spade recostou-se na cadeira e perguntou: Em que posso ajud-lo, sr.Cairo? A amvel displicncia da sua voz, seu movimento na cadeira,denotavam uma atitude exatamente igual que tivera quando endereara amesma pergunta a Brigid O'Shaughnessy , no dia anterior.

    Cairo virou o chapu para cima, deixando cair as luvas ali dentro, e colocou-o assim virado no canto da escrivaninha que lhe ficava prximo. Fulguravambrilhantes no segundo e no quarto dedos de sua mo esquerda, e no terceiro damo direita havia um rubi que fazia par com o da gravata, at mesmo nosbrilhantes que o circundavam. Tinha as mos macias e bem-cuidadas. Apesar deno serem grandes, sua flcida rotundidade fazia-as parecerem malconformadas. Esfregou as palmas uma na outra, e disse encobrindo o leve rudoque produziram: Permite que um estranho apresente condolncias peladesgraada morte de seu scio?

    Obrigado. Posso perguntar, sr. Spade, se havia, como os jornais deduziram, uma

    certa... h. . . relao entre esse infeliz acontecimento e a morte, um pouco maistarde, desse Thursby?

    Spade no respondeu, mantendo o rosto inexpressivo.Cairo levantou-se e se inclinou. Peo desculpas. Sentou-se de novo e

    colocou as mos lado a lado, com as palmas para baixo, no canto daescrivaninha. Mais do que simples curiosidade levou-me a perguntar-lhe isso,sr. Spade. Estou tentando recuperar um. . . h. . . ornamento que foi. . . comodiremos?. ., extraviado. Julguei, e esperava, que o senhor pudesse me auxiliar.

    Spade aquiesceu, com as sobrancelhas levantadas, para demonstrar ateno. O ornamento uma estatueta continuou Cairo, escolhendo e mastigandocuidadosamente as palavras , a figura de um pssaro preto.

    Spade aquiesceu de novo, com interesse corts. Estou pronto a pagar, em nome do legtimo proprietrio da pea, a soma

  • de cinco mil dlares para recuper-lo. Cairo levantou uma das mos de sobrea escrivaninha e tocou um ponto no ar com a ponta do indicador disforme,coberto por uma unha chata. Estou pronto a prometer que. . . como que sediz?. . . no sero feitas perguntas. Ps a mo sobre a escrivaninha de novo, aolado da outra, e sorriu afavelmente por cima delas, para o detetive particular.

    Cinco mil uma boa quantia de dinheiro comentou Spade, olhandopensativamente para Cairo. . . . Ouviu-se uma batida leve na porta.Quando Spade ordenou "Entre", a porta abriu-se o suficiente para dar passagem cabea e aos ombros de Effie Perine. Ela pusera um chapeuzinho de feltroescuro e um casaco tambm escuro, com gola de pele cinzenta.

    Precisa de mais alguma coisa? perguntou. No. Boa noite. Tranque a porta quando sair, por favor. Boa noite disse ela, e desapareceu atrs da porta, que se fechou.Spade voltou-se na cadeira para encarar Cairo de novo, dizendo: uma

    quantia interessante. O rudo da porta do corredor, fechando-se atrs de EffiePerine, chegou at eles.

    Cairo sorriu e tirou uma pistola preta, curta, chata e compacta, de dentro deum bolso interno. Faa o favor disse ele , junte as mos sobre a nuca.

  • 5. O ORIENTAL

    Spade no olhou para a pistola. Levantou os braos e, encostando-se na

    cadeira, tranou os dedos atrs da cabea. Seus olhos, imperturbveis,conservavam-se fixos no rosto moreno de Cairo. Este tossiu uma tossezinhajustificativa e sorriu nervosamente, com os lbios meio descorados. Seus olhosescuros estavam midos e humildes, e muito atentos. Pretendo revistar seuescritrio, sr. Spade. Previno-o de que, se tentar me impedir, atirarei.

    Continue. A voz de Spade estava inexpressiva como seu rosto. Levante-se, por favor ordenou o homem armado de pistola quele

    cujo peito robusto ameaava. Preciso me certificar de que no est armado.Spade levantou-se, empurrando para trs a cadeira com a barriga das

    pernas, ao se endireitar. Cairo deu a volta por trs dele, mudou a pistola da modireita para a esquerda, levantou a aba do palet de Spade e olhou por baixo dela.Conservando a pistola encostada s costas de Spade, ps a mo direita sua voltae apalpou-lhe o peito. Seu rosto ficou ento uns vinte centmetros, no mximo,abaixo e atrs do cotovelo direito de Spade.

    O cotovelo de Spade desceu enquanto ele girava para a direita. O rosto deCairo recuou violentamente, mas no para muito longe: o calcanhar direito deSpade, calcado sobre os dedos cobertos de couro envernizado de seu antagonista,manteve-o no caminho do seu cotovelo, que o atingiu por baixo do molar,abalando-o de tal forma que ele teria cado se no estivesse seguro pelo p deSpade, apoiado sobre o seu. O cotovelo de Spade passou alm do rosto moreno epasmado, e endireitou-se quando a mo de Spade se abateu sobre a pistola. Cairolargou a arma assim que os dedos de Spade a tocaram. Na mo deste, a pistolaficou pequena.

    Spade tirou o p de cima dos de Cairo, para completar a sua virada. Com amo esquerda juntou as duas lapelas do adversrio a gravata verde comalfinete de rubi formou um emaranhado sobre os ns dos seus dedos , enquantocom a mo direita guardava a arma apreendida num bolso do palet. Seus olhosamarelo-pardos estavam sombrios e o rosto, imvel, com uma expressoobstinada em torno da boca.

    O rosto de Cairo estava contrado pela dor e pela angstia. Havia lgrimasnos seus olhos escuros. Sua pele tinha a cor do chumbo polido, exceto onde ocotovelo lhe avermelhara a face. Spade, agarrando ainda as lapelas do oriental,virou-o devagar e empurrou-o at junto da cadeira onde estivera sentado. Umolhar perplexo substituiu o olhar de dor no rosto cor de chumbo. Ento Spadesorriu. Um sorriso suave, quase sonhador. Seu ombro direito levantou-se algunscentmetros, e o brao direito, dobrado, foi levado pelo ombro, ao se erguer. Opunho, o pulso, o antebrao, a curva do cotovelo e o brao pareciam uma s peargida, movida apenas pelo ombro flexvel. O punho abateu-se sobre o rosto deCairo, cobrindo por um momento um lado do seu queixo, um canto da boca, e amaior parte da face, entre o molar e o maxilar. Cairo fechou os olhos e perdeu ossentidos.

  • Spade largou ento o corpo frouxo na cadeira, onde ele ficou, com os braose as pernas esparramados, a cabea descada para trs, contra as costas dacadeira, a boca aberta. Esvaziou-lhe os bolsos um por um, procedendometodicamente, movendo o corpo flcido quando necessrio, formando umapilha de objetos sobre a escrivaninha. Depois voltou para a cadeira, enrolou eacendeu um cigarro, e comeou a examinar os despojos. Examinou-os comgrave e lenta meticulosidade.

    Havia uma grande carteira de couro escuro e macio, contendo trezentos esessenta e cinco dlares em notas dos Estados Unidos, de diversos tamanhos; trsnotas de cinco libras; um passaporte grego muito visado, contendo o nome deCairo e o seu retrato; cinco folhas dobradas de papel de seda cor-de-rosa,cobertas de uma escrita que parecia rabe; um recorte rasgado de jornal com anotcia do encontro dos corpos de Archer e Thursby ; uma fotografia em carto-postal de uma mulher morena, de olhos atrevidos e cruis, e boca arqueada eterna; um grande leno de seda, amarelado pelo tempo e um pouco rasgado nasbordas; um pequeno mao de cartes impressos do sr. Joel Cairo; e uma entradapara a platia do Geary Theatre para aquela noite. Alm da carteira e do seucontedo, havia mais trs lenos s seda de cores alegres, cheirando a sndalo; umrelgio Longines de platina com corrente de platina e ouro avermelhado, preso aum pendente em forma de pra, de metal branco; um punhado de moedasamericanas, inglesas, francesas e chinesas; uma argola com meia dzia dechaves; uma caneta-tinteiro de prata e nix; um pente de metal, num estojoimitando couro; uma lima para unhas, num estojo imitando couro; um pequenoguia das ruas de San Francisco; um registro de bagagem da Southern Pacific; umpacote de pastilhas de violeta, meio vazio; um carto comercial de um corretorde seguros de Xangai; e quatro folhas de papel de correspondncia do HotelBelvedere, numa das quais estava escrito, em letras midas e claras, o nome deSamuel Spade e os endereos do seu escritrio e do seu apartamento.

    Tendo examinado cuidadosamente esses objetos ele chegou at a abrir acapa do relgio para ver se no havia nada escondido ali , Spade inclinou-se epegou o pulso do homem entre o indicador e o polegar, para tomar-lhe apulsao. Depois largou-o, tornou a sentar-se, enrolou e acendeu outro cigarro.Enquanto fumava, seu rosto, excetuando-se leves movimentos acidentais eindeterminados do lbio inferior, estava to imvel e pensativo que pareciaapatetado; mas, quando Cairo gemeu e moveu as plpebras, ele tomou umaexpresso branda e esboou, com os olhos e a boca, um sorriso amistoso.

    Joel Cairo acordou devagar. Seus olhos se abriram, mas passou-se um longominuto antes de pararem num ponto fixo do teto. Depois fechou a boca erespirou, exalando pesadamente atravs do nariz. Encolheu um p e virou umadas mos sobre a coxa. Ento levantou a cabea das costas da cadeira, lanouum olhar confuso em volta da sala, viu Spade e sentou-se direito. Abriu a bocapara falar, comeou a dizer alguma coisa e levou a mo ao rosto, onde o punhode Spade tinha batido e havia agora uma contuso vermelha. Enfim, Cairo dissepenosamente, por entre os dentes: Eu podia t-lo alvejado, sr. Spade.

    Podia ter tentado admitiu este. Mas no tentei.

  • Eu sei. Ento por que me agrediu depois de eu estar desarmado? Sinto muito sorriu Spade com arrogncia, mostrando os molares

    mas imagine o meu embarao quando descobri que essa oferta de cinco mildlares era apenas um engodo...

    Est enganado, sr. Spade. Era, e , uma oferta real. Como assim? A surpresa de Spade era real. Estou pronto a pagar cinco mil dlares pela restituio da estatueta.

    Cairo tirou a mo da face contundida e sentou-se, novamente afetado eparecendo um homem de negcios. Est em seu poder?

    No. Se ela no est aqui Cairo mostrava-se polidamente ctico por que

    teria o senhor corrido um srio risco para impedir que eu a procurasse? Devia ficar quieto e deixar que entrasse gente aqui para me roubar?

    Spade indicou com o dedo os objetos pertencentes a Cairo, sobre a escrivaninha. Voc arranjou o endereo do meu apartamento. J esteve l?

    J, sr. Spade. Estou pronto a pagar cinco mil dlares pela devoluo daestatueta, mas sem dvida bastante natural que eu tentasse primeiro poupar aoseu proprietrio essa despesa, se possvel.

    Quem ele?Cairo sacudiu a cabea e sorriu. Ter que me perdoar por no responder

    a essa pergunta. Terei? Spade inclinou-se, sorrindo com os lbios cerrados. Eu o

    apanhei pelo pescoo, Cairo. Voc entrou aqui por sua prpria vontade e seenredou o suficiente para ter que se ajustar com a polcia, por causa dosassassinatos da noite passada. Bem, agora ter que se divertir comigo, ou comeles.

    O sorriso de Cairo era afetado e bastante despreocupado. Tireiinformaes mais ou menos amplas a seu respeito antes de iniciar qualquer ao disse , e asseguraram-me que bastante sensato para permitir que outrasconsideraes interfiram em lucrativas relaes comerciais.

    Spade encolheu os ombros. Onde esto elas? perguntou. Ofereci-lhe cinco mil dlares por. . .Spade bateu com as costas dos dedos na carteira de Cairo: No h nada

    parecido com cinco mil dlares aqui. Voc est apostando seus olhos. Podiachegar e dizer que me pagaria um milho por um elefante vermelho, mas, porra,que importaria isso?

    Percebo, percebo disse Cairo pensativamente, apertando os olhos. O senhor quer uma garantia da minha sinceridade. Esfregou o lbio inferiorcom a ponta do jecj0 Um adiantamento poderia servir?

    Poderia.Avanou ento a mo em direo carteira, hesitou, puxou a mo e disse:

    O senhor tira, digamos, cem dlares.Spade pegou a carteira e tirou cem dlares. Depois franziu as sobrancelhas,

    dizendo: Melhor inteirar duzentos e inteirou. Cairo no disse nada. Sua

  • primeira conjetura foi que o pssaro estava comigo disse Spadeevasivamente, depois de pr os duzentos dlares no bolso e a carteira sobre aescrivaninha. No verdade? Qual a segunda?

    Que o senhor sabe onde ele est, ou, se isso no exato, que o senhorsabe onde encontr-lo.

    Spade no negou nem confirmou: mal parecia ter ouvido. Que provaspode dar-me de que o seu homem o proprietrio? perguntou.

    Muito poucas, infelizmente. H esta, entretanto: ningum mais pode dar-lhe nenhuma prova autntica de propriedade. E se o senhor est to a par docaso, como suponho ou eu no estaria aqui , sabe que os meios pelos quaislhe foi arrebatado mostram que o seu direito a ele era maior que o de qualqueroutro, sem dvida maior que o de Thursby .

    E quanto filha dele? perguntou Spade.A excitao fez os olhos e a boca de Cairo se abrirem, avermelhou-lhe o

    rosto, tornou-lhe a voz estridente. No ele o proprietrio!Spade fez "Ah!" de um modo suave e ambguo. Ele est aqui agora, em San Francisco? perguntou Cairo numa voz

    menos estridente, mas ainda excitada.Spade piscou os olhos sonolentos e sugeriu: Seria melhor se pusssemos

    as cartas na mesa.Cairo recuperou a compostura com uma pequena contrao. No acho

    que seja melhor. Sua voz mostrava-se afvel agora. Se o senhor sabe maisdo que eu, aproveitarei os seus conhecimentos, e assim tambm o senhor, at aimportncia de cinco mil dlares. Se no sabe, ento cometi um erroprocurando-o, e proceder da forma como sugere seria simplesmente agravaresse erro.

    Spade aquiesceu com indiferena e mostrou com a mo os objetos sobre amesa, dizendo: A esto as suas coisas: , e logo, quando Cairo as repunha nosbolsos: Est entendido que deve pagar minhas despesas enquanto eu estiverreavendo o pssaro preto para o senhor, e cinco mil dlares quando o tiverconseguido?

    Sim, sr. Spade; isto , cinco mil dlares, menos o dinheiro que lhe tenhasido adiantado: cinco mil no total.

    Certo. E uma proposta legtima. O rosto de Spade mostrava-sesolene, com exceo das rugas nos cantos dos olhos. O senhor no est mecontratando para cometer assassinatos ou roubos, mas simplesmente para reavero objeto roubado, se possvel de um modo honesto e legal.

    Se possvel concordou Cairo. Seu rosto tambm estava solene, comexceo dos olhos. E, em qualquer eventualidade, com discrio. Levantou-se e pegou o chapu. Estou no Hotel Belvedere, quando quisercomunicar-se comigo: quarto 635. Espero com confiana o maior benefciomtuo da nossa associao, sr. Spade. Hesitou um pouco. Posso reaverminha pistola?

    Pois no. Tinha me esquecido dela. Spade tirou a pistola do bolso dopalet e estendeu-a a Cairo.

  • Cairo apontou a arma para o peito de Spade. Por favor, conserve as suasmos sobre a escrivaninha mandou com gravidade. Pretendo revistar seusescritrios.

    Essa no disse Spade. Depois riu. Muito bem. Continue. No ointerromperei.

  • 6. O PEQUENO ESPIO

    Durante meia hora, aps a partida de Joel Cairo; Spade se conservou sentado

    escrivaninha, imvel e carrancudo. Depois disse alto, no tom de quem afastaum problema: Bem, eles esto pagando para isso , e tirou uma garrafa decoquetel Manhattan e um copo de papel de uma gaveta do armrio. Encheu doisteros do copo, bebeu, tornou a colocar a garrafa no armrio, atirou o copo nocesto de papis, ps o chapu e o sobretudo, apagou as luzes e desceu para a ruailuminada. Um rapaz de pequena estatura, de uns vinte, vinte e um anos, comsobretudo e bon cinza, muito limpos, estava parado ociosamente na esquina,abaixo do prdio de Spade.

    Spade subiu a Sutter Street em direo Kearny, onde entrou num bar, paracomprar dois pacotes de Buli Durham. Quando saiu, o rapaz fazia parte dasquatro pessoas que estavam esperando um bonde, na esquina fronteira. Spadejantou no Grill Herbert, na Powell Street. Quando deixou o Grill, s quinze paraas oito, o rapaz estava olhando a vitrina de uma loja de armarinhos prxima.Spade dirigiu-se ao Hotel Belvedere, perguntando pelo sr. Cairo na portaria.Disseram-lhe que Cairo no estava. O rapaz sentou-se em uma cadeira numcanto afastado do saguo. Spade foi ao Geary Theatre, no viu Cairo no saguo,e postou-se na beira da calada oposta, de frente para o teatro. O rapaz misturou-se aos vadios em frente ao restaurante Marquard, mais abaixo.

    Dez minutos depois das oito, Joel Cairo apareceu, subindo a Geary Streetcom passinhos midos e cadenciados. Aparentemente, no enxergou Spadeseno quando este lhe tocou no ombro. Pareceu um pouco surpreso, por uminstante) depois disse: Ah, sim, naturalmente o senhor viu o bilhete de entrada.

    Hum-hum. Tenho uma coisa para lhe mostrar. Spade fez Cairo recuarem direo beira da calada, um pouco distante dos espectadores que estavam espera. O garoto de bon, embaixo, junto ao Marquard.

    Cairo murmurou: Vou ver , e olhou o relgio. Depois olhou para o ladode cima da Geary Street e em seguida para um cartaz na sua frente, no qualGeorge Arliss estava vestido de Shy lock, e ento seus olhos escuros deslizarampara o lado, nas rbitas, at encontrarem o garoto de bon e o seu rosto plido esereno, de sobrancelhas curvas que encobriam os olhos baixos.

    Quem ? perguntou Spade.Cairo olhou-o e sorriu. No o conheo. Anda me seguindo pela cidade.Cairo molhou o lbio inferior e perguntou: Acha que prudente deixar

    que nos veja juntos? Como posso saber? De qualquer forma, j viu. Cairo tirou o chapu e

    alisou o cabelo com a mo enluvada, colocou de novo o chapu cuidadosamente,e disse com todas as mostras de inocncia: Dou-lhe minha palavra de que noo conheo, sr. Spade. Dou-lhe minha palavra de que nada tenho a ver com ele.No pedi o auxlio de ningum a no ser o seu, sob minha palavra de honra.

    Ento ele um dos outros?

  • Pode ser. Queria apenas saber, porque, se ele se tornar um estorvo, talvez eu tenha

    de agredi-lo. Faa como achar melhor. No amigo meu. timo. O pano vai levantar. Boa noite. Dizendo isso, Spade atravessou

    a rua para tomar um bonde que ia para oeste. O rapaz de bon tomou o mesmobonde.

    Spade desceu a Hyde Street e dirigiu-se ao seu apartamento. Seus cmodosno estavam muito remexidos, mas apresentavam inequvocos sinais de teremsido revistados. Depois de se lavar e mudar de camisa e colarinho, saiu de novo,subiu em direo Sutter Street e tomou outro bonde em direo a oeste. O rapaztomou-o tambm. A uma meia dzia de quarteires do Coronet, Spade desceu eentrou no vestbulo de um alto prdio de apartamentos, de cor parda. Apertou trsbotes de campainha ao mesmo tempo. A fechadura da porta da rua zuniu.Spade entrou, passou pelo elevador e pela escada, atravessou um corredor deparedes amarelas em direo parte posterior do edifcio, encontrou uma portatraseira fechada com fechadura Yale e saiu para um ptio estreito. O ptio davapara uma escura rua traseira, pela qual Spade andou dois quarteires. Entoatravessou-a em direo Califrnia Street, e foi para o Coronet. Ainda noeram nove e meia.

    A alegria com que Brigid O'Shaughnessy o recebeu dava a entender que ela

    no tinha absoluta certeza da sua vinda. Pusera um vestido de cetim azul, de umatonalidade chamada artoise nessa estao, com alas de calcednias, meias esapatos tambm artoise. A sala de estar vermelha e creme fora arrumada ealegrada com flores, colocadas em vasos chatos de cermica, pintados de negroe prata. Trs pequenas achas de casca grossa ardiam na lareira. Spadeobservava-as queimar, enquanto ela guardava o chapu e o sobretudo.

    Boas notcias? perguntou a moa, ao voltar de novo sala. Aansiedade transparecia no seu sorriso, e ela tinha a respirao difcil.

    No precisamos tornar pblico o que ainda est oculto. A polcia no ter que ser informada a meu respeito? No.Ela suspirou, feliz, e sentou-se no sof de nogueira. Seu rosto distendeu-se,

    assim como o seu corpo, e ela sorriu para ele com admirao. Comoconseguiu isso? perguntou, mais espantada que curiosa.

    Muitssima coisa em San Francisco pode ser comprada ou conquistada. E o senhor no se ver em dificuldades? Sente-se aqui. E deu-lhe um

    lugar no sof. No me importo com uma quantidade razovel de dificuldades disse

    ele sem muita complacncia, conservando-se junto lareira, olhando-a comolhos que estudavam, pesavam, julgavam, sem esconder que a estavamestudando, pesando, julgando. Ela corou um pouco sob a franqueza do seuexame, mas parecia mais segura de si