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2352%/(0$’2&21752/(-8’,&,$/’$620,66fi(6(67$7$,6 /(6,9$6$20(,2$0%,(17( Autor: Dr. Álvaro Luiz Valery Mirra* 1- Introdução O tema do controle dos atos e omissões do Poder Público em matéria ambiental é considerado assunto da maior importância no Direito Ambiental e tem provocado acesas controvérsias na doutrina e na jurisprudência dos tribunais, por ocasião dos conflitos que surgem quando os órgãos estatais agem ou deixam de agir na defesa do meio ambiente. A origem do problema, segundo nos parece, está no fato de que, conforme tem sido apontado pela doutrina especializada, o Estado, em relação ao meio ambiente, desempenha muitas vezes papéis ambíguos e contraditórios. Com efeito, se, por um lado, o Estado é o promotor por excelência da defesa do meio ambiente na sociedade, ao elaborar e executar políticas públicas ambientais e ao exercer o controle e a fiscalização das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, por outro lado, ele aparece, também, em muitas circunstâncias, como responsável direto ou indireto pela degradação da qualidade ambiental, ao elaborar e executar outras políticas públicas - notadamente aquelas relacionadas com o desenvolvimento econômico e social -, ao exercer atividades empresariais como se fosse um particular, ou, ainda, ao omitir-se no dever que tem de fiscalizar as atividades que causam danos ao ambiente e de adotar as medidas legislativas e administrativas necessárias à preservação da qualidade ambiental. Tal duplicidade de papéis desempenhados pelo Estado gera freqüentemente dificuldades na compreensão das atribuições do Poder Público na área ambiental e na aceitação da necessidade de um maior controle sobre as ações e as omissões estatais nessa matéria. Isso porque, na maioria das vezes, quando o Estado age ou se omite e com isso causa diretamente ou contribui de alguma forma para a degradação do meio ambiente, ele o faz com base no interesse público ou escudado no argumento de que persegue a satisfação de interesses ou necessidades imediatas da coletividade, dando a impressão - falsa - de não haver outra alternativa a não ser a da postergação da proteção ambiental até que exigências

O PROBLEMA DO CONTROLE JUDICIAL DAS OMISSÕES

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2�352%/(0$�'2�&21752/(�-8',&,$/�'$6�20,66®(6�(67$7$,6��/(6,9$6�$2�0(,2�$0%,(17(�� Autor: Dr. Álvaro Luiz Valery Mirra* 1- Introdução O tema do controle dos atos e omissões do Poder Público em matéria ambiental é considerado assunto da maior importância no Direito Ambiental e tem provocado acesas controvérsias na doutrina e na jurisprudência dos tribunais, por ocasião dos conflitos que surgem quando os órgãos estatais agem ou deixam de agir na defesa do meio ambiente. A origem do problema, segundo nos parece, está no fato de que, conforme tem sido apontado pela doutrina especializada, o Estado, em relação ao meio ambiente, desempenha muitas vezes papéis ambíguos e contraditórios. Com efeito, se, por um lado, o Estado é o promotor por excelência da defesa do meio ambiente na sociedade, ao elaborar e executar políticas públicas ambientais e ao exercer o controle e a fiscalização das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, por outro lado, ele aparece, também, em muitas circunstâncias, como responsável direto ou indireto pela degradação da qualidade ambiental, ao elaborar e executar outras políticas públicas - notadamente aquelas relacionadas com o desenvolvimento econômico e social -, ao exercer atividades empresariais como se fosse um particular, ou, ainda, ao omitir-se no dever que tem de fiscalizar as atividades que causam danos ao ambiente e de adotar as medidas legislativas e administrativas necessárias à preservação da qualidade ambiental. Tal duplicidade de papéis desempenhados pelo Estado gera freqüentemente dificuldades na compreensão das atribuições do Poder Público na área ambiental e na aceitação da necessidade de um maior controle sobre as ações e as omissões estatais nessa matéria. Isso porque, na maioria das vezes, quando o Estado age ou se omite e com isso causa diretamente ou contribui de alguma forma para a degradação do meio ambiente, ele o faz com base no interesse público ou escudado no argumento de que persegue a satisfação de interesses ou necessidades imediatas da coletividade, dando a impressão - falsa - de não haver outra alternativa a não ser a da postergação da proteção ambiental até que exigências

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diversas, de ordem econômica e social, sejam cumpridas. Essa orientação política, porém, desconsidera ou, pelo menos, subestima a evidência de que a proteção ambiental está relacionada com a garantia do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito humano fundamental, e que, bem por isso, a visão atual prevalecente direciona a atuação dos setores governamentais e não governamentais para a compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a preservação ambiental, sem possibilidade de estabelecimento de hierarquia entre ambos, tudo a permitir, sem dúvida, maior amplitude no controle da atividade estatal, quando esta se afasta dessas diretrizes predominantes. A proposta que aqui se apresenta é a de analisar o controle judicial sobre algumas das omissões mais freqüentes da Administração Pública que causam degradações ambientais ou contribuem para sua ocorrência, nas hipóteses em que o Poder Executivo deixa de adotar as providências administrativas indispensáveis à proteção de bens e recursos ambientais, recusando com isso o cumprimento de normas constitucionais e infra- constitucionais que lhe impõem o dever de defender e preservar o meio ambiente. Discutir-se-á, notadamente, a viabilidade da imposição coativa ao Poder Executivo, pela via judicial, da adoção de medidas administrativas necessárias à proteção do meio ambiente, confrontando, entre outros princípios e regras, o da intervenção estatal obrigatória na defesa do meio ambiente, o da discricionariedade administrativa quanto ao momento e aos meios de intervenção e o da separação dos Poderes, estes dois últimos tidos, como se sabe, como fatores que limitam, em muitos casos, a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário nos atos de governo - tudo à luz do entendimento doutrinário e jurisprudencial mais recente e atualizado sobre a matéria . 2- A intervenção estatal na esfera ambiental A Constituição Federal, no seu artigo 225, caput, dispõe que: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Essa norma encontra seu complemento no artigo 170, VI, do texto constitucional,

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que inclui a defesa do meio ambiente como um dos princípios da ordem econômica. Desses dispositivos da Constituição podem ser extraídas algumas prescrições que condicionam a ação do Estado na área do meio ambiente. Em primeiro lugar, o que se nota é que existe, expressamente consignado, o dever imposto ao Poder Público de atuar na defesa do meio ambiente, seja no âmbito legislativo, seja no âmbito executivo e até no âmbito jurisdicional. Para tanto, a Constituição atribuiu ao Estado a incumbência de adotar uma série de ações e programas, que, no seu conjunto, constituem a política ambiental do país (artigo 225, § 1º), disciplinada em norma específica, a Lei n.6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), e influenciada por documentos internacionais na matéria, especialmente as Declarações das Nações Unidas de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972, e do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. Observe-se que, se a defesa do meio ambiente é um dever do Estado, a atividade dos órgãos estatais na sua promoção é de natureza compulsória. Com isso, torna-se viável, em relação ao Poder Público, a exigência do exercício das competências ambientais, com as regras e contornos constitucionalmente previstos. Esse aspecto ganha relevância no sistema constitucional vigente, em que a Constituição de 1988 acabou dando competências ambientais administrativas e legislativas aos três entes da nossa federação: à União, aos Estados e aos Municípios. Por via de conseqüência, resulta possível exigir, coativamente até e inclusive pela via judicial, de todos os entes federados o cumprimento efetivo de suas tarefas na proteção do meio ambiente. Em segundo lugar, verifica-se que o meio ambiente teve sua qualificação jurídica especificada na Constituição como bem de uso comum do povo, o que significa lhe ter sido atribuído o regime jurídico de um bem que pertence à coletividade, como agrupamento natural não dotado de personalidade jurídica. O meio ambiente pertence indivisivelmente a todos os indivíduos da coletividade e não integra, assim, o patrimônio disponível do Estado. Para o Poder Público - e, logicamente, também para os particulares - o meio ambiente é sempre indisponível e insuscetível de apropriação individual e exclusiva. Portanto, em matéria de meio ambiente o Estado não atua jamais como proprietário desse bem, mas, diversamente,

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como simples administrador de um patrimônio que pertence à coletividade, no presente, e que deve ser transferido às demais gerações, no futuro. Do mesmo modo, os particulares tampouco podem se apropriar do meio ambiente, entendido como conjunto de condições, relações e interdependências que condicionam, abrigam e regem a vida (art. 3º, I, da Lei n.6.938/81), bem incorpóreo e imaterial. O que pode eventualmente ser apropriado, o que pode eventualmente ser utilizado pelos particulares, sobretudo para fins econômicos, são determinados elementos corpóreos que compõem o meio ambiente e os bens ambientais (como as florestas, os solos, as águas, em certos casos os exemplares da fauna e da flora, determinados bens móveis e imóveis integrantes do patrimônio cultural), e, mesmo assim, de acordo com condicionamentos, limitações e critérios previstos em lei e desde que essa apropriação ou utilização dos bens materiais não leve à apropriação individual (exclusiva) do meio ambiente como bem imaterial. Por essa razão, o "uso comum" previsto na Constituição para o meio ambiente deve ser entendido não no sentido de utilização econômica individual, de consumo individual e partilhado entre todos, mas no sentido de fruição coletiva, de gozo coletivo, sob a ótica da preservação da qualidade ambiental propícia à vida no presente e no futuro. Em termos atuais, não se admite mais a visão clássica e tradicional que tolera e permite a utilização dos bens de uso comum do povo por quem quer que seja indiscriminadamente, de forma livre e competitiva, orientando-se, ao contrário, o ordenamento jurídico para o gozo coletivo do meio ambiente pelas gerações atuais, de maneira solidária com as gerações futuras. A conseqüência dessa orientação mais atualizada a respeito do "uso comum" pelo povo no tocante ao meio ambiente é que a intervenção do Estado, como gestor e administrador do meio ambiente, não se dá mais apenas por intermédio de medidas de polícia negativas, para limitar as formas de uso individual e exclusivo em vista da garantia da livre utilização individual e compartilhada por todos, mas, como estabelecido no mencionado § 1º do artigo 225 da Constituição Federal, pela imposição de medidas positivas que assegurem amplamente a todos a fruição coletiva e em caráter indivisível do meio ambiente ecologicamente equilibrado, agora e sempre.

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Em terceiro lugar, cumpre salientar que o texto constitucional reconheceu o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito humano fundamental. Essa consagração do direito fundamental ao meio ambiente é de extrema importância, porque reconhecer um determinado valor como um direito fundamental significa considerar a sua proteção indispensável à vida e à dignidade das pessoas - núcleo essencial dos direitos fundamentais. E ninguém contesta hoje em dia que o atual quadro de destruição ambiental no mundo compromete a possibilidade de existência digna para a humanidade e põe em risco a própria vida humana. O texto constitucional, como visto, diz enfaticamente que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é "essencial à sadia qualidade de vida" de todos. Além disso, é importante lembrar que proclamar um direito fundamental, qualquer que seja, implica em erigir o valor por ele abrangido em elemento básico e primordial do modelo democrático que se pretende seja instaurado no país, já que, na lição de Fábio Konder Comparato, a construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito - aspiração incontestável do constituinte de 1988 e de toda a sociedade - não se pode dar sem o respeito aos atributos essenciais da pessoa humana expressos nos direitos fundamentais. Nesses termos, não se pode falar em verdadeira democracia no Brasil, sem que se garanta a preservação desse direito de todos ao meio ambiente sadio e equilibrado. Em conformidade com a doutrina autorizada, o direito ao meio ambiente é um direito fundamental de terceira geração, incluído entre os chamados "direitos da solidariedade" ou "direitos dos povos". Trata-se de um direito ao mesmo tempo individual e coletivo, de interesse de toda a humanidade, que exige, para ser garantido, o esforço conjunto do Estado, dos indivíduos, dos diversos setores da sociedade e das diversas Nações. Na tipologia apresentada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, com base no objeto dos direitos fundamentais, o direito ao meio ambiente é, ademais, um direito de situação. "Os direitos de situação são poderes de exigir um status. Seu objeto é uma situação a ser preservada ou restabelecida (...)". O direito ao meio ambiente abrange, nesse sentido, simultaneamente, um não fazer (a não degradação da qualidade ambiental) e um fazer (a recuperação da qualidade ambiental degradada), para a

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manutenção de um status: o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A consagração desse direito ao meio ambiente, é inegável, trouxe para o Poder Público a exigência de uma ação estatal ótima na gestão ambiental, não bastando que a tutela do Estado se desenvolva apenas formalmente dentro dos critérios legais. Os órgãos e agentes públicos, nessa matéria, têm um compromisso indeclinável com a eficiência de sua atuação, em consonância com os propósitos e objetivos visados pelas políticas ambientais, para a garantia de um direito humano fundamental. E eficiência na preservação e conservação do meio ambiente é tema umbilicalmente ligado à idéia de prevenção de danos e agressões ambientais. De fato, é voz corrente na doutrina que as agressões ao meio ambiente são em regra de difícil ou impossível reparação. Ou seja: uma vez consumada a degradação do meio ambiente, a sua reparação é sempre incerta e, quando possível, excessivamente custosa. Daí a necessidade de o Poder Público atuar preventivamente. E a tal ponto a idéia de prevenção se tornou importante que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, adotou em sua declaração de princípios, o chamado princípio da precaução (princípio n.15). De acordo com esse princípio, sempre que houver perigo de ocorrência de um dano grave ou irreversível a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para adiar a adoção de medidas eficazes para impedir a degradação do meio ambiente, sobretudo em função dos custos dessas medidas. Por outras palavras, mesmo que haja controvérsias no plano científico com relação aos efeitos nocivos de determinadas atividades sobre o meio ambiente, em atenção princípio da precaução essas atividades deverão ser evitadas ou rigorosamente controladas pelo Poder Público. Do regime jurídico específico do meio ambiente como bem de uso comum do povo e da consagração do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito coletivo ou difuso, resulta, ainda, que a proteção da qualidade ambiental, por ser de interesse público, sobrepõe-se à tutela de interesses individuais, de índole privada, e que a gestão do meio ambiente não é monopólio do Estado, o qual deve administrá-lo com a participação direta da sociedade e em sintonia com as expectativas desta.

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Realmente, a participação popular na proteção do meio ambiente está prevista expressamente em documentos internacionais (princípio n.10 da Declaração Internacional do Rio de 1992) e, entre nós, no Brasil, genericamente, no artigo 1º, p.u., da CF - que instituiu no país o regime de democracia semidireta - e, mais especificamente, no referido artigo 225, caput, da CF. Anote-se que a Constituição de 1988, além de autorizar a atuação da coletividade na defesa do meio ambiente, como uma faculdade, foi mais longe ainda, impondo-lhe o dever de preservar a qualidade ambiental. Entre os mecanismos de participação popular direta na defesa do meio ambiente, previram-se, no ordenamento jurídico nacional, a participação nos processos de criação do Direito Ambiental, a participação na formulação e na execução de políticas públicas ambientais e a participação por intermédio do Poder Judiciário - que é o que aqui interessa mais de perto - com a utilização de instrumentos processuais que permitem a obtenção da prestação jurisdicional na área ambiental, sendo o mais famoso deles, como sabido, a ação civil pública ambiental da Lei n.7.347/85. Por fim, há que se salientar que, no mundo atual, não podendo ser diferente no Brasil, indiscutivelmente a defesa do meio ambiente se tornou parte integrante do processo de desenvolvimento dos países, estando no mesmo plano, em importância, de outros valores econômicos e sociais constitucionalmente protegidos, já que, como estes, é também imprescindível à vida. Daí, inclusive, a necessidade de buscar-se a conciliação entre o exercício das atividades produtivas e do direito de propriedade, o crescimento econômico, a garantia do pleno emprego e a qualidade ambiental, sem que se possa relegar a proteção do meio ambiente a questão de importância secundária. Assim, nem mesmo sob o argumento de que se pretende a satisfação de necessidades outras, de igual relevo, porém mais imediatas, se pode admitir o abandono, ainda que temporário, da proteção do meio ambiente. A opção fundamental da sociedade dirigiu-se à preservação do meio ambiente desde logo, tendo em vista as necessidades das gerações atuais e futuras. A ação estatal nesse setor deve igualmente orientar-se nessa direção, não podendo se contrapor a essa escolha. Estas são, em linhas gerais, as diretrizes básicas e os contornos da atuação do Poder Público na tutela do meio ambiente. Como já tivemos a oportunidade de ressaltar,

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não se trata de formulações românticas ou utópicas, mas de prescrições que decorrem de normas expressas do ordenamento jurídico, de observância obrigatória. 3- As freqüentes omissões do Estado na proteção do meio ambiente No entanto, a prática tem revelado inúmeras situações em que o Poder Público, notadamente a Administração, deixa de agir, se omite no cumprimento do seu dever de adotar as medidas necessárias à proteção ambiental, causando com isso diretamente danos ao meio ambiente ou permitindo que degradações ambientais se concretizem. Inúmeros são os exemplos que, pela sua gravidade, acarretam conflitos importantes, os quais, com freqüência cada vez maior, chegam aos tribunais. Ilustram bem essa realidade os seguintes: a) A poluição de rios e corpos d'água pelo lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais sem o devido tratamento. A Lei Federal n.6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) estabelece como princípios da PNMA o controle das atividades poluidoras e a racionalização do uso da água (art. 2º, caput, e II) e como um dos objetivos da PNMA a preservação e a restauração das águas, na condição de recurso ambiental (art. 3º, V), com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, indispensável à manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida (art. 4º, VI). A Constituição do Estado de São Paulo, por sua vez, proíbe, expressamente, o lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais, sem o devido tratamento, em qualquer corpo d'água (art. 208), reafirmando o que já constava da Lei estadual n.997/76, que vedava, também expressamente, o lançamento ou a liberação de poluentes nas águas (art. 3º). Todavia, como se sabe, vários Municípios no Estado de São Paulo, e em todo o país, continuam lançando efluentes e esgotos nos rios de seus territórios sem qualquer tipo de tratamento prévio, causando poluição e prejuízos à saúde da população. b) A degradação de ecossistemas e áreas naturais de relevância ecológica A Constituição de 1988 prescreve como incumbência do Poder Público a preservação e a restauração de processos ecológicos essenciais, de ecossistemas e da diversidade e integridade do patrimônio genético e a definição, nas

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unidades da Federação, de espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, § 1º, I, II e III), o que já estava previsto, também, na Lei n.6.938/81, quanto à proteção de ecossistemas, com preservação de áreas representativas e ameaçadas de degradação (art. 2º, IV e IX), notadamente por meio da criação e manutenção de Parques Nacionais e Estaduais (art. 5º, "a", da Lei n.4.771/65), Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental (Lei n.6.902/81). No entanto, inúmeras áreas que comportam ecossistemas importantes para a diversidade genética e para o equilíbrio ecológico permanecem sem qualquer proteção específica, sujeitas à ação predatória de extratores de recursos naturais ou de empreendedores imobiliários, contrariando as normas da política ambiental nacional. Mesmo quando o Estado, por fim, cria essas unidades de conservação - Parques, Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental -, como medidas para a preservação e a conservação da natureza, o que se vê no decorrer do tempo é que os anos passam sem que os governos que se sucedem cuidem de implantar definitivamente essas áreas naturais protegidas, pela demarcação dos seus limites e perímetros, pela realização de zoneamentos ecológico- econômicos no seu interior, pela instalação dos equipamentos necessários, pela fiscalização das atividades que possam comprometer a preservação dos atributos ecológicos que justificaram a sua proteção etc. São os denominados "parques de papel", como dizem os ambientalistas, pois que existem apenas formalmente, no ato administrativo instituidor ("no papel"), e não na realidade. c) O depósito e a destinação final inadequados de lixo urbano Outra situação que se repete com freqüência é a da destinação final de lixo urbano, sem a adoção de medidas adequadas de proteção do solo onde os resíduos são depositados, muitas vezes com graves conseqüências para as águas superficiais e subterrâneas utilizadas pela população. A preservação do solo, na condição de recurso ambiental (art. 3º, V, da Lei n.6.938/81), é princípio e objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 2º, II e III, e art. 4º, VI, da Lei n.6.938/81), vedada a liberação sobre ele de substâncias poluentes (art. 2º da Lei estadual n.997/76). A utilização do solo para

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destino final de resíduos de qualquer natureza somente pode se dar mediante adequado tratamento, inclusive quanto ao transporte dos materiais, proibidos simples descarga ou depósito em áreas públicas ou particulares (art. 51 do Decreto estadual n.8.468/76). Tais cuidados, contudo, raramente são observados e, no mais das vezes, o que se vê é o depósito de lixo a céu aberto, sobretudo nas pequenas municipalidades. d) O abandono de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro A Constituição Federal (arts. 215 e 216) e a legislação infra-constitucional específica (Dec.-lei n.25/37) impõem ao Poder Público a proteção do patrimônio cultural, com a preservação de bens e valores de relevância histórica, artística, estética, turística, paisagística ou arquitetônica. Entretanto, sabe-se que os Estados e, sobretudo, os Municípios resistem muito em utilizar o tombamento para a proteção desses bens, que, não raras vezes, pertencem aos particulares. Ainda assim, nas hipóteses em que a proteção administrativa sobrevém e o bem acaba por ser tombado, em boa parte dos casos, após a efetivação formal do processo na esfera administrativa, o resultado prático, notadamente quando se trata de imóveis, é o abandono do bem até a sua deterioração, sem providências concretas de conservação. Em todos esses exemplos, em que se constata a omissão de providências administrativas protetivas do meio ambiente e de bens ambientais específicos, surge a questão da superação da inércia da Administração Pública pela via jurisdicional. Com efeito, diante de omissões dos órgãos administrativos na proteção do meio ambiente, como as acima relatadas, pergunta-se: a) Pode o Ministério Público ou uma associação ambientalista obter junto ao Poder Judiciário, por intermédio de ação civil pública, a condenação de um Município em obrigação de fazer consistente na implantação de sistema de tratamento de esgotos ou na adequação da instalação de um aterro sanitário ou de um depósito qualquer de lixo urbano? b) É viável ao Ministério Público ou a uma associação de defesa do meio ambiente, por intermédio de ação civil pública, obter junto ao Judiciário a condenação do Estado em obrigação de fazer consistente na adoção de

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todas as medidas que se fizerem necessárias para a efetiva implantação de um Parque Estadual ou Estação Ecológica ou para a efetiva conservação e restauração de um imóvel considerado de valor histórico-cultural, tenha sido ele tombado ou não e mesmo na hipótese de ter havido pronunciamento expresso da Administração no sentido de não reconhecer o valor cultural do bem? 4- A superação pela via judicial das omissões estatais lesivas à qualidade ambiental 4.1- A resistência tradicional à extensão do controle jurisdicional para suprir a inércia administrativa A resposta freqüentemente dada às indagações acima formuladas é a de que a adoção de medidas e iniciativas de tal natureza é tarefa privativa da Administração, a qual, melhor do que ninguém, tem condições de apreciar a oportunidade e a conveniência de determinadas escolhas, de natureza eminentemente política e discricionária, e o momento adequado para fazê-lo, ante a realidade administrativa e financeira própria de cada ente federado, de cada esfera de governo, num dado momento. Ao Poder Judiciário, conseqüentemente, seria vedado interferir nessas opções de ordem política e técnica inerentes ao poder de administração, sob pena de invadir competência própria do Poder Executivo e violar o princípio constitucional da separação dos Poderes. De interesse lembrar, nesta passagem, a lição de Seabra Fagundes, o qual, depois de enfatizar que todas as atividades da Administração Pública estão subordinadas à ordem jurídica, à legalidade, sendo exercidas segundo a orientação da lei e dentro dos limites nela traçados, acrescenta que, em determinados casos, os limites legais da atuação administrativa ganham certa flexibilidade até mesmo para autorizar a abstenção da Administração de executar a lei. Como explica o autor: "(...) se, por vezes, a atividade administrativa está sempre condicionada a estreitos limites preestabelecidos na lei, há casos em que tais limites perdem parcialmente a rigidez, para se reconhecer ao Poder Executivo uma certa liberdade de movimentos. A variedade e multiplicidade das situações, que lhe são presentes, excluem, em muitos casos, disciplinação uniforme e precisa. O seu exercício é condicionado por uma série de circunstâncias ocasionais e com respeito a elas não é possível tudo prever. Nem seria útil descer a rigorosa minuciosidade, o que resultaria em nocivo entrave à realização das finalidades visadas pela atividade

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administrativa. Para atender a isso, se permite em muitos casos ao Poder Executivo que seja discricionário em relação à conveniência, oportunidade e modo de agir. Ele age, então, no uso de competência discricionária ou livre, a que já aludimos. A Administração Pública pode, assim, sem contrariar o 'regime de legalidade', sem ir positivamente de encontro a determinações legislativas abster-se de executar a lei. Quando não exista uma peremptória fixação de prazo para a aplicação da regra, fica-lhe a faculdade de conciliar a execução com as conveniências de tempo e utilidade indicadas por circunstâncias que só ela pode aferir. Em certos casos, o próprio interesse público pode aconselhar a não pôr em movimento o texto legal. Também é indispensável permitir à Administração Pública resolver, por mais de um modo, determinadas situações, segundo entenda diante dos fatos concretos. Não há, porém, nessas diversas hipóteses, uma quebra da submissão à ordem jurídica. Trata-se apenas duma submissão adstrita a limites diversos dos comuns, mas regulada e admitida pelo próprio direito escrito. Aliás é ainda de notar que a própria competência discricionária pode ser ora mais, ora menos extensa. Vezes há em que diz respeito à utilidade e oportunidade (motivos do ato administrativo). Algumas vezes refere-se ao modo de agir (objeto ou conteúdo do ato administrativo). Outras vezes, ainda, alcança ambos simultaneamente (...)". E prossegue o jurista ao analisar as restrições à apreciação jurisdicional das opções administrativas, como imperativo necessário para não submeter a Administração Pública à prevalência do Poder Judiciário, capaz de diminuí-la ou até anulá-la em sua atividade peculiar: "Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à extensão. O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas da boa administração, ou, noutras palavras, é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta. Por isso, exprime um juízo comparativo. Compreende os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, eqüidade,

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razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo. Esses aspectos, muitos autores os resumem no binômio: oportunidade e conveniência. Envolvem eles interesses e não direitos. Ao Judiciário não se submetem os interesses que o ato administrativo contrarie, mas apenas os direitos individuais, acaso feridos por ele. O mérito é de atribuição exclusiva do Poder Executivo, e o Poder Judiciário, nele penetrando, 'faria obra de administrador, violando, dessarte, o princípio de separação e independência dos poderes'. Os elementos que o constituem são dependentes de critério político e meios técnicos peculiares ao exercício do Poder Administrativo, estranhos ao âmbito, estritamente jurídico, da apreciação jurisdicional. A análise da legalidade (legitimidade dos autores italianos) tem um sentido puramente jurídico. Cinge-se a verificar se os atos da Administração obedeceram às prescrições legais, expressamente determinadas, quanto à competência e manifestação da vontade do agente, quanto ao motivo, ao objeto, à finalidade e à forma." É, sem dúvida, com base nessa orientação doutrinária que, na matéria ora em exame, se formou forte corrente jurisprudencial que não admite possa ser obtida, junto ao Judiciário, a condenação da Administração em obrigações de fazer, consistentes na adoção de medidas positivas de proteção do meio ambiente. Particularmente em tema de tratamento de esgotos domésticos, antes do lançamento de detritos em cursos d'água, e de realização de obras de saneamento de via fluvial, para evitar a ocorrência de poluição, o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu, em diversos julgados, não ser possível ao Judiciário, por intermédio de ação civil pública, determinar à Administração Pública que efetue o tratamento prévio de resíduos lançados em rios e cursos d'água, porque tal decisão envolve aspectos de conveniência e oportunidade relacionados até com circunstâncias técnicas e financeiras da realidade administrativa. E uma determinação nesse sentido pelo Poder Judiciário implicaria em violação do princípio da separação dos Poderes. Nos expressos termos de um desses julgados, da 5ª Câmara Civil do TJSP, que teve voto condutor da lavra do eminente Desembargador Marcus Andrade:

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"É pacífico que ao Poder Judiciário cabe o controle da legalidade do agir administrativo, mas não de sua conveniência ou oportunidade. A perquirição sobre a legalidade abrange a própria legitimidade dos atos, no sentido da capacidade e competência para exercê-los. No caso, o que se pretende é compelir três Municipalidades a efetivarem obras para saneamento de via fluvial, à qual despejados esgotos. Para tanto, são apontadas violações da Lei Federal n.6.938, de 31.8.81, dos arts. 191, 197 e 208 da Constituição do Estado e dos artigos 23, inciso VI, e 225 da Constituição da República. Do exame de tais normas, constata-se que o artigo 23 da Constituição da República diz respeito, unicamente, à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios à proteção ao meio ambiente e ao combate à poluição. As demais, artigos 225 da Carta Magna, 191 e 197 da Constituição Estadual são normas programáticas, de eficácia contida, o mesmo se podendo dizer dos dispositivos da Lei Federal n.6.938, de 31.8.81, ao dispor, em geral, sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. Somente o artigo 208 da Constituição de São Paulo traz regra de caráter proibitivo e bem específica ao estatuir: 'fica vedado o lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais, sem o devido tratamento, em qualquer corpo de água'. Ante esse texto, a questão que se coloca é a seguinte: o Poder Público pode ser compelido a executar obras para impedir esse tipo de poluição? A resposta é que há impossibilidade jurídica à pretensão à obrigação de fazer, positiva, porque ocorrerá, necessariamente, invasão das atribuições próprias dos Executivos municipais, quanto à oportunidade e conveniência das obras. Ser-lhes-ia imposta uma obrigação que se subordina a critérios seletivos da Administração, sob o enfoque da existência de outras obras a serem realizadas, implicando, também, na existência de recursos orçamentários suficientes. Tal resultaria na intromissão do Judiciário na esfera específica dos Executivos municipais. Esta ação civil pública, com o objetivo que lhe foi conferido, extravasa seu próprio âmbito, que, à evidência, inadmite que um Poder se imiscua em outro, comandando-o naquilo que é sua atividade exclusiva. Descabe argumentar, nessa ótica, com o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Esse controle não pode ser de molde a sujeitar as programações, planejamentos e atividades próprias dos outros Poderes ao Judiciário. Inviável a

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ordem jurisdicional direcionada à Administração direta para realizar certas obras, em determinado prazo e impondo-lhe ônus, apesar do total desconhecimento sobre se possui os recursos suficientes. O artigo 208 da Constituição do Estado, já referido, não dá suporte à pretensão do Ministério Público, como formulada, ou seja, na perspectiva da obrigação de fazer. Este dispositivo veda e, portanto, a obrigação dele resultante é de não fazer. Proíbe o lançamento de efluentes e esgotos, sem tratamento, em qualquer corpo d'água. Quem o fizer pode ter obstada essa conduta. Não deve fazê-lo. Mas, dessa norma da Constituição do Estado não decorre, nem a contrário sensu, que o Poder Público possa ser compelido, judicialmente, a realizar obras de saneamento, para evitar a degradação e a deterioração de curso d'água. A hipótese consubstancia, na verdade, pedido juridicamente impossível, por descaber ao Judiciário condenar a Administração (direta ou indireta) a executar obra pública. Não há lei nesse sentido e o ordenamento constitucional, estruturado na divisão de Poderes, não permite a ingerência, o que proporcionaria a questão da inconstitucionalidade de tal legislação, se existente. Não se trata, em suma, de controle de legalidade, mesmo porque é sistematicamente incompatível uma lei ou a interpretação de uma lei, com o significado que lhe quer emprestar o Ministério Público (...)". No mesmo sentido, cumpre registrar, posicionaram-se a 3ª e a 8ª Câmaras Civis da mesma Corte de Justiça, ao julgar casos análogos: "Ação civil pública - Esgoto doméstico - Ação visando o tratamento prévio de detritos lançados nas águas de rios - Ato administrativo que necessita de exame de conveniência e oportunidade pelo Poder Executivo - Impossibilidade de invasão de tal esfera pelo Poder Judiciário - Recurso provido. Não podem os Juízes e Tribunais assomar para si a deliberação de atos de administração, que resultam sempre e necessariamente de exame de conveniência e oportunidade daqueles escolhidos pelo meio constitucional competente para exercê-los." "Ação civil pública ambiental promovida pelo Ministério Público objetivando obrigação de não lançar esgoto 'in natura' em águas fluviais que cortam o Município induz, necessariamente, à edificação de obras públicas e estas, além de circunscreverem-se à competência do Poder

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Executivo local, quanto à sua exigüidade, dependem de autorização legislativa para a edição de normas programáticas e orçamentárias, além de terem de subsumir- se às normas licitatórias. Indevida ingerência jurisdicional quando dispõe que o Poder Executivo local deva não mais lançar os dejetos do esgoto 'in natura' em águas fluviais. Precedente anterior, envolvendo as mesmas partes, com pedido de fazer as obras públicas, julgado extinto, sem apreciação do mérito, ante a impossibilidade jurídica do pedido. Fazer e não fazer constituem-se em verso e reverso da mesma realidade jurídica. Recursos providos. Sentença reformada, com julgamento de extinção do feito, sem apreciação do mérito." 4.2- A visão inovadora e mais atualizada sobre a matéria que prestigia a ampliação do controle judicial tendente à supressão da omissão administrativa lesiva ao meio ambiente Entretanto, pesem embora a seriedade dos fundamentos acima reproduzidos e o respeito que se presta à corrente doutrinária e jurisprudencial que os adota, tal posicionamento, segundo pensamos, deve ser revisto. Com efeito, em termos atuais, impõe-se que se admita a extensão do controle jurisdicional sobre as omissões da Administração Pública na defesa do meio ambiente, entre outros mecanismos, pela imposição de medidas positivas de preservação ambiental, em ações judiciais que visem ao cumprimento de obrigações de fazer. Deve-se ter em vista, por primeiro, que, de acordo com o ordenamento jurídico vigente, a realização de escolhas ou opções em matéria de meio ambiente e a tomada de iniciativas na utilização dos instrumentos legais de preservação ambiental não é mais incumbência privativa da Administração. Diversamente, a partir do momento em que se consagrou o direito fundamental de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e se reconheceu o meio ambiente como um bem de uso comum do povo, não se pode mais conceber que decisões unilaterais do Poder Executivo sejam tomadas em desconformidade com as preocupações preservacionistas da sociedade. Assim, toda vez que a Administração não atuar de modo satisfatório na defesa do meio ambiente, omitindo-se no seu dever de agir para relegar a proteção da qualidade ambiental a questão de importância secundária e violando as normas constitucionais e infra-constitucionais que lhe impuseram a obrigatoriedade de atuar, sobretudo em

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caráter preventivo, caberá à coletividade, por intermédio de seus representantes legitimados, buscar perante o Poder Judiciário o estabelecimento da boa gestão ambiental. Esse entendimento, como se nota, está perfeitamente adequado àquela regra, antes referida, da imprescindibilidade da participação popular direta na defesa do meio ambiente, simultaneamente direito e dever de todos os membros da coletividade. Além disso, cumpre ressaltar também que na maioria das questões relacionadas com a proteção ambiental não há mais, propriamente, liberdade efetiva do administrador na escolha do momento mais conveniente e oportuno para a adoção de medidas específicas de preservação. Observe-se que, nos exemplos acima mencionados, a obrigatoriedade do tratamento adequado de efluentes domésticos e industriais, antes do seu despejo em cursos d'água, e do lixo urbano, na sua disposição final, decorre de expressas disposições legais federais e estaduais; a preservação de bens e valores históricos e culturais consta de normas específicas na Constituição Federal e na legislação infra-constitucional; e, no caso dos Parques e Estações Ecológicas, tais áreas naturais protegidas já foram criadas por atos do próprio Poder Executivo, que fica, então, obrigado a concretizá-los. Nunca é demais repetir que existe, na matéria ora em exame, o dever imposto ao Poder Público de agir para alcançar o fim previsto nessas normas constitucionais e infra-constitucionais, ações estas precipuamente preventivas. E tais atividades não podem ser postergadas por razões de oportunidade e conveniência nem mesmo sob a alegação de contingências de ordem financeira e orçamentária. A opção prévia de priorizar o tratamento de esgotos e do lixo urbano e a preservação do patrimônio cultural e natural já foi feita pela sociedade, por intermédio de seus representantes eleitos nos parlamentos, e a de implantar os Parques ou as Estações Ecológicas, pelo próprio Poder Executivo. Como analisado por Wallace Paiva Martins Júnior, em estudo sobre a despoluição das águas: "Compelir o Município a obrigação de não fazer consistente na cessação da atividade nociva à qualidade de vida, de despejo de efluentes ou esgotos domésticos in natura nas águas, ou de obrigação de fazer consistente na prestação de atividade devida, de efetuar

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o lançamento desses esgotos submetidos ao prévio tratamento e na conformidade dos padrões ambientais estabelecidos é, em última análise, impor-lhe o dever de cumprimento da lei, de preservação do ambiente e de combate e prevenção à poluição para cessar a atividade nociva ao meio ambiente e prestar atividade devida decorrente de lei. Depara-se a questão diante do poder vinculado, não de uma opção administrativa discricionária porque o ordenamento jurídico é enfático ao exigir da administração pública a realização de um dado ato, de conteúdo (objeto) explícito na norma, seja por prestação negativa (abster-se de poluir), seja por prestação positiva (submeter a prévio tratamento), que, em resumo, fundem-se numa única e prioritária preocupação material de evitar a poluição das águas. (...) não há lugar para invocar-se a discricionariedade administrativa porque a atividade devida é decorrente de lei que exige o prévio tratamento de esgotos domésticos e a sua conformidade com os padrões ambientais estabelecidos como condição para lançamento nas águas com o fito de impedir poluição." E, de fato, sob essa ótica, o próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgados recentes, relacionados ao tratamento e despejo final de resíduos e efluentes líquidos e sólidos, domésticos e industriais, tem entendido ser viável a imposição judicial de obrigações de fazer diretamente ao Poder Executivo, afastada a discricionariedade da Administração nessa matéria, pouco importando, ainda, as disponibilidades financeiras imediatas do poder público considerado. Na orientação adotada pela 2ª Câmara Civil dessa Corte de Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Desembargador Cezar Peluso: "Ação Civil Pública - Meio idôneo para compelir o Poder Público a tratamento de esgoto - Arbitramento de prazo para cumprimento da obrigação determinado na sentença à luz da prova técnica - Providência sensata, tendo em vista a força orçamentária do Município - Recurso não provido. Se até agora, na condição de sujeitos passivos de obrigação de ordem pública, as litisconsortes não contrataram sequer serviços para estudo de elaboração do projeto, ou projetos, de sistemas de tratamento de esgotos, a que tende a pretensão cominatória, é óbvio subsistir necessidade do recurso jurisdicional para obtê-

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lo de modo forçoso. E, nisso, está o interesse de agir. (...) Todas as partes convêm em que é imperiosa e inadiável a construção de sistemas de tratamento de esgotos. A saúde coletiva é, por sua natureza, prioritária e, a respeito, não há discricionariedade do Poder Público: sem água cujos padrões de pureza se encontrem dentro das classes legais de aproveitamento (cf. Anexo ao Decreto Estadual 8.468, de 8.12.76), a própria vida não é possível, como bem primeiro! Nem devem arrecear-se de que se lhes imponha ônus financeiro incompatível com sua força orçamentária. Não foi por outra razão, senão para adequar os projetos e cronogramas às disponibilidades financeiras dos orçamentos das devedoras que, com sensatez, a r. sentença submeteu a arbitramento prévio, à luz da prova técnica ampla, o prazo de cumprimento da obrigação declarada." No mesmo sentido, quanto à apreciação da questão envolvendo a discricionariedade da Administração, ainda em tema de tratamento de esgotos, decidiram a 4ª e a 7ª Câmaras de Direito Público do TJSP, em acórdãos relatados, respectivamente, pelos eminentes Desembargadores Soares Lima e Jovino de Sylos, com declaração de voto vencedor, no primeiro julgado, do eminente Desembargador Nelson Schiesari, de cujos textos se extraem as seguintes passagens: "(...) a discricionariedade do Poder Público não permanece isenta de apreciação judicial. Na precisa lição de Hely Lopes Meirelles, 'só a justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo' (Direito Administrativo Brasileiro, 14.ed., Revista dos Tribunais, p.99). Dúvida não sucede no tocante às limitações do conteúdo discricionário da Administração, a fim de harmonizá-lo com o superior princípio da moralidade e conferir-lhe a missão de servir ao bem comum do povo. Enfim, a opção que cabe ao administrador adotar é a tendente a alcançar soluções enquadradas na legalidade, com vistas postas no interesse público, mormente se difusos e correlacionados com incontornável interesse social. Assim, vale dizer: a execução do ato administrativo é vinculada à obrigação legal imposta ao Poder Público". "(...) o pedido formulado na presente ação civil pública tem por escopo compelir a Administração Municipal a implantar a chamada rede de recalque e estação elevatória para que a rede coletora de esgoto funcione, de modo que a finalidade da pretensão ministerial é, em

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última análise, a preservação da saúde pública e, vale dizer, do bem primordial que é a própria vida da população (...), ou, enfim, o interesse público, que deve nortear a prática dos atos administrativos, ainda quando dotados de discricionariedade, a qual, em função de sua finalidade, pode e deve ser apreciada pelo Poder Judiciário, pois o ato discricionário concede ao administrador certa margem de atuação, com verificação dos critérios de oportunidade e conveniência, sem que avance para a esfera do arbítrio". "A discricionariedade do ato deve ser examinada sob a necessidade ou não da intervenção do Poder Público. A interpretação ultrapassada de interesse público, ou seja, interesse do Estado, é manifestamente incompleta, já que, em princípio, lhe compete, acima de tudo, concorrer, por todos os meios e modos, no sentido da preservação ecológica local. Este deve preocupar-se sobremaneira com o social, não pode estar voltado para si (...)". De igual modo, acrescente-se, posicionou-se a 7ª Câmara Civil do TJSP, em julgado relatado pelo eminente Desembargador Leite Cintra, ao reexaminar e confirmar sentença que condenou determinado Município a cessar atividade nociva ao meio ambiente, a depositar o lixo urbano em área apropriada, com observância de medidas técnicas adequadas ao destino final dos resíduos, e a reparar os danos causados por anterior aterro sanitário irregular, dentro de certo prazo e sob pena de pagamento de multa diária: "Ação civil pública - Meio Ambiente - Degradação - Comprovação - Alegação de impossibilidade financeira do Município para regular destinação final de lixo urbano - Irrelevância - Aterro instalado sem observância das medidas devidas - Art. 225, parágrafo 1º, IV, da Constituição Federal e Decreto Estadual n.8.468/76 - Prioridade social da Administração Pública - Recurso não provido. (...) (...) inviável a suscitada impossibilidade financeira, já que o problema deve ser tratado como uma das prioridades sociais da Administração Pública, sendo pertinente ressaltar que em matéria de meio ambiente, verificado o dano e seu agente, a ninguém é permitido se eximir do dever de repará-lo ou indenizá-lo, assim como de abster-se de provocá-lo. Aliás, como bem posto na r. sentença, 'do contrário, todo aquele que causasse o dano, poderia escusar-se da obrigação reparatória ou do dever de não provocá-lo, invocando dificuldades

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financeiras, o que, à evidência, é inadmissível. A ordem jurídica estaria irremediavelmente comprometida'." Não se diga que, nessas hipóteses, a admissão da imposição à Administração, pela via judicial, de medidas de preservação do meio ambiente acarretaria a invasão por parte do Poder Judiciário de competências exclusivas do Executivo, com violação do princípio da separação dos Poderes. Como salientou Fábio Konder Comparato, é necessário compreender que a transformação do Estado contemporâneo, engendrada pela Revolução Industrial, impôs a reconsideração das finalidades da organização dos poderes, calcadas até então na idéia de segurança e conservação da sociedade, para alcançar-se a necessária transformação social, com vistas ao grande ideal de igualdade de todos os homens em todos os planos. Correlatamente, no âmbito das instituições jurídicas, o que se observou foi uma mudança do eixo central das atividades estatais, da legislação para a administração, da proclamação e aplicação do Direito para a elaboração e execução de programas de ação, de políticas públicas. E os objetivos a serem atingidos por essas políticas passaram a se impor, desde então, como normas obrigatórias, ao próprio governo, organizando-se, por via de conseqüência, todo o sistema jurídico em função desses objetivos concretos das políticas públicas. Nesses termos, prossegue o jurista, "(...) se o Estado contemporâneo tem por finalidade última a transformação social, segue-se que a sociedade como um todo ou os diferentes grupos por ela beneficiados têm em conjunto o direito à aplicação dos programas de ação conducentes a esse resultado. E, se têm esse direito, devem ter também uma ação judicial que o assegure". Não há como negar, portanto, que o Poder Judiciário está, de fato, politicamente legitimado a julgar demandas dessa natureza. Como já observou Cândido Rangel Dinamarco, ao Judiciário está, indiscutivelmente, reservado papel de grande relevância, como órgão estatal capaz de dar resposta às exigências sociais, inclusive no plano da proteção ambiental. O Judiciário constitui, efetivamente, legítimo canal por meio do qual se permite ao universo axiológico da sociedade impor as suas pressões. O juiz, exercendo o poder nacional em nome do Estado, dita decisões que são providas de imperatividade e que podem influir no conteúdo da Constituição ou das leis, no significado dos textos legais, ou, mesmo, nas diretrizes políticas do próprio Estado.

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Saliente-se que ao se admitir a determinação aos governos, por intermédio de ações judiciais, da adoção de determinadas medidas destinadas à preservação do meio ambiente, como a implantação de sistema de tratamentos de esgotos ou de resíduos sólidos urbanos, a implantação definitiva e real de um certo espaço territorial protegido já instituído ou a preservação de um bem de valor cultural, não se estaria atribuindo ao Judiciário o poder de criar políticas ambientais, mas tão só o de impor a execução daquelas já estabelecidas na Constituição, nas leis ou adotadas pelo próprio governo, como já referido. A esse respeito, merece destaque a advertência de José Renato Nalini: "(...) a outorga - ao Judiciário - da tutela dos interesses difusos não representa atribuição de tarefa que não lhe caiba. Não está ele a desenvolver atividade de suplência, mas exercita sua função típica, a entrega da prestação jurisdicional a quem pleiteia. É fundamental a lucidez de consciência do Judiciário, quanto ao que lhe incumbe quando custodia interesses difusos. Tranqüilizem-se os juízes: não estão a invadir seara alheia. Apenas cumprem o papel que lhes preordenou a própria ordem constitucional e suprem a omissão do Poder Público, incapaz de satisfazer integralmente a todos. Na esteira do que já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos arestos acima invocados: "Ação civil pública visando o tratamento de detritos lançados nas águas de rio - Município de (...) - Previsão de tratamento constante na Lei Orgânica do Município - Prevalência do interesse da coletividade sobre o alegado exame de conveniência e oportunidade pela Administração - Possibilidade jurídica do pedido - Sentença de carência reformada, para o prosseguimento da ação, com vista à apreciação do mérito da causa. (...) Ressalte-se que há interesse pertinente de toda a sociedade do lugar e o órgão jurisdicional está legitimamente impulsionado a realizar tarefa consistente em dirimir controvérsia na direção e forma previstas pela ordem jurídica municipal, diversa, portanto, de pura deliberação de prática de atos da administração, onde certamente não lhe seria lícito intervir (...)". "Ação civil pública - Prefeitura - Objetivo - Implantação de rede de recalque e estação elevatória para possibilitar o funcionamento de rede de esgoto -

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Reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido - Inadmissibilidade - Preservação pelo Judiciário que não significa interferência no Executivo - Art. 129, III, da Constituição da República e Lei 7.347, de 24.07.85 - Inocorrência, ademais, de relação ilícita, vetada ou proibida em lei - Recurso provido para afastar o decreto da extinção, prosseguindo-se até a solução de mérito. (...) o pedido constante da inicial é expresso: busca compelir a Municipalidade de (...) a implantar rede de recalque e estação elevatória no bairro Jardim Dona Elvira, para possibilitar o funcionamento da rede de esgoto já instalada. Antes de mais nada, convém dizer que o direito à saúde e ao saneamento constitui garantia constitucional e sua preservação, em tese, pelo Judiciário não significa interferência no Executivo. (...) sem propósito imaginar que a atuação do Ministério Público, destinada ao cumprimento de funções contempladas no ordenamento jurídico, estivesse, porventura, às voltas em constranger a Administração Municipal." "Ação civil pública - Liminar - Concessão - Lixo do Município - Destinação de forma adequada - Preservação pelo Judiciário que não significa interferência no Executivo - Fixação de multa cominatória - Admissibilidade - Verificação dos requisitos exigidos à concessão - Decisão confirmada - Recurso não provido." Portanto, em conclusão, pode-se afirmar, com Odete Medauar, que a necessidade dessa maior amplitude de controle da Administração, acima exposta, reside e se justifica no próprio princípio da separação de poderes: "se o poder detém o poder, se ao Poder Judiciário cabe a jurisdição, é da lógica da separação de poderes o controle da Administração, sem que se possa cogitar de ingerência indevida". Não foi a outra conclusão, aliás, que chegou a 8ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, em dois acórdãos relatados pelo eminente Desembargador Jorge Almeida, a propósito da proteção do patrimônio cultural, ao decidir que a identificação de um valor social - como o artístico e o histórico - não é tarefa privativa ou exclusiva do órgão legislativo ou da Administração, tendo o Judiciário poder para se pronunciar a respeito. Segundo se entendeu "A reserva exclusiva e de forma absoluta do monopólio de identificar o Direito pelo legislador advém de desatualizada compreensão do

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princípio da separação dos poderes, reservando ao juiz o modesto papel de agente aplicador do Direito, colocando a função jurisdicional aos estreitos limites de uma máquina de silogismo". Em termos diversos, acrescentou- se, impõe-se compreender que "Não há restrição ao poder revisional dos Tribunais sobre o juízo da Administração, quando esta não reconhece os valores de vida referidos na Lei 7.347/85. É da nossa organização política a posição superposta do Judiciário em face dos outros Poderes, sempre que se trate de interpretar e aplicar um texto de lei". Nessa matéria, inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal já havia decidido, em antigo acórdão de 1943, relatado pelo eminente Ministro Castro Nunes, que cabe ao Judiciário analisar se um determinado imóvel tem ou não valor histórico ou artístico, para fins de tombamento, podendo apreciar o assunto também pelo seu merecimento, independentemente do critério administrativo. Em tal ordem de idéias, constitui equívoco supor que, ao determinar o cumprimento de obrigação de fazer a uma outra esfera de poder, o juiz estaria se transformando, ao mesmo tempo, em legislador e administrador. Como analisado por Rodolfo de Camargo Mancuso, a função jurisdicional se exerce mediante iniciativa da parte interessada - no caso da defesa do meio ambiente, por intermédio dos entes representativos legitimados para atuarem em juízo, notadamente o Ministério Público e as associações ambientalistas - e não de ofício, e, uma vez provocado, o magistrado não pode recusar a prestação jurisdicional. Dessa forma, na verdade, quem estaria "usurpando", ou melhor, suprindo o exercício da competência dos outros poderes não seria o juiz propriamente, mas sim a sociedade organizada. E tal atuação é absolutamente legítima, já que amparada no aludido princípio constitucional da participação direta no exercício do poder (art. 1º, p.u., da CF), para a garantia do direito humano fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com o fim de defender um bem de uso comum do povo. Essa orientação, é importante que se diga, encontra respaldo nas modernas exigências da efetividade do processo. Na lição de Cândido Rangel Dinamarco, o processo efetivo é precisamente aquele apto a cumprir não apenas a sua função jurídica, de realizar o direito,

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como também a sua função social, de eliminar insatisfações com justiça e servir como meio de educação para o exercício e o respeito aos direitos, e, ainda, a sua função política, de servir de canal para a participação dos indivíduos nos destinos da sociedade. 5- Conclusão Conforme se procurou demonstrar, as omissões da Administração Pública causadoras de degradação ambiental têm provocado seguidos conflitos, os quais, com freqüência cada vez maior, chegam aos tribunais, suscitando a discussão sobre o controle judicial da inércia administrativa nessa matéria. Ainda que o entendimento não seja uniforme e persista forte corrente jurisprudencial que nega a possibilidade de obter-se, em ações civis públicas, a condenação do Poder Público em obrigações de fazer tendentes, por exemplo, ao adequado tratamento dos esgotos e do lixo urbano, antes da sua disposição final nos cursos d'água ou nos solos, à efetiva implantação de espaços territoriais especialmente protegidos e à preservação de bens integrantes do patrimônio cultural sem prévio pronunciamento dos órgãos administrativos quanto ao valor desses bens, não há como negar a emergência de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais inovadores, que admitem a extensão do controle jurisdicional para suprir essa inércia dos órgãos de governo. Tal tendência se justifica, segundo o nosso juízo, se considerar que o ordenamento jurídico impôs o dever de o Poder Público agir para a preservação do meio ambiente, estabelecendo, em textos legais, obrigações específicas a serem cumpridas, sem possibilidade de invocar-se liberdade, em termos de competência discricionária, do administrador quanto às condutas dele exigidas e ao momento para o final adimplemento das prescrições constitucionais e legislativas. Ressalte-se que se está diante de obrigações indispensáveis à garantia de um direito humano fundamental, expressamente consagrado (art. 225, caput, da CF), que supõe e exige uma determinada situação, um status a ser mantido ou restabelecido: o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A proteção do meio ambiente, assim, é tão prioritária, na ordem constitucional vigente, como qualquer outro valor social protegido e deve ser perseguida pelo Poder

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Público desde logo, preferencialmente em caráter preventivo, adequando-se os planos governamentais e as disponibilidades financeiras dos entes federados para que esses fins das políticas públicas sejam alcançados. Nesses termos, a omissão da Administração Pública no cumprimento dessas obrigações autoriza a sociedade - representada, notadamente, pelo Ministério Público e pelas associações de defesa do meio ambiente - a buscar junto ao Poder Judiciário, pela via de instrumentos processuais como a ação civil pública, a imposição coativa de medidas que conduzam os agentes públicos à realização dos programas de ação previstos. Essa atuação da sociedade encontra-se legitimada, em termos políticos, por força do princípio da participação popular no exercício do poder (art. 1º, p.u., da CF), decorrente, na esfera ambiental, da norma do art. 225, caput, da CF, que reconheceu o direito de todos ao meio ambiente, este qualificado juridicamente como bem de uso comum do povo, sendo, precisamente, um dos elementos modernos da efetividade do processo judicial dar ao cidadão a possibilidade de, por intermédio do Judiciário, influir diretamente nos destinos do seu país. Não há que se falar, portanto, em ingerência indevida do Poder Judiciário na esfera de competência do Poder Executivo, comprometedora do princípio da separação dos Poderes, quando condena a Administração Pública ao cumprimento de obrigações de fazer consistentes no tratamento de esgotos e do lixo urbano, na implantação de área natural protegida já criada e na adoção de medidas para a conservação e a restauração do patrimônio cultural, pois, em verdade, quem age em iniciativas dessa natureza é a sociedade organizada e o juiz, ao ser provocado, exerce sua atribuição precípua e específica de aplicar a lei aos casos concretos. O Judiciário, nessas condições, não cria uma obrigação ou uma política pública ambiental. Diversamente, tão-só determina o cumprimento e a execução de uma obrigação pública já prevista em lei e, por vezes, reconhecida pelo próprio Executivo, mas ainda não implantada ou efetivada. Se, em algumas dessas hipóteses, o Poder Judiciário acaba por influir nas diretrizes políticas do Estado, isto se dá porque, antes, houve indevida omissão administrativa a legitimar a sua intervenção, provocada pela sociedade que dele espera o cumprimento do papel que lhe foi atribuído pela ordem constitucional. Fonte: www.ecoambiental.com.br