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MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre entorpecentes na região metropolitana de Belo Horizonte Paulo César de Campos Morais* *Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Criminalidade e Controle Social da Fundação João Pinheiro Tel. 0055 31 448 9449, 448 97 21 Fax 0055 31 448 94 41, 448 9696 Email: [email protected]

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MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre entorpecentesna região metropolitana de Belo Hor izonte

Paulo César de Campos Morais*

*Pesquisador doGrupo de Estudos sobre Criminalidade e Controle Social

da Fundação João Pinheiro Tel. 0055 31 448 9449, 448 97 21 Fax 0055 31 448 94 41, 448 9696

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INTRODUÇÃO

Este trabalho representa o primeiro passo do Grupo de Estudos sobre

Criminalidade e Controle Social do Centro de Estudos Econômicos e Sociais da

Fundação João Pinheiro para inclusão das drogas no seu rol de pesquisas. Trata-se de

uma pesquisa de cunho mais exploratório que procura entender a ideologia, a

consolidação e as conseqüências relativas ao tratamento jurídico criminal oferecido ao

uso e ao tráfico de drogas.

A primeira parte deste estudo visa o levantamento do ideário e dos principais

atores envolvidos na criminalização das drogas na sociedade brasileira. A segunda parte

analisa a atual Lei brasileira sobre entorpecentes (Lei 6.368 de 1976) de modo a se captar

os principais pressupostos sociais e a operacionalização do enquadramento jurídico

criminal dos envolvidos em ocorrências policiais relativas a drogas, tendo-se como dados

empíricos: 20 entrevistas com autoridades do sistema jurídico criminal (delegados, juizes,

policiais e peritos criminais) e o estudo de 596 ocorrências policiais relativas a drogas na

Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na terceira parte expõe-se o que se denomina

mitos e omissões relativas à cultura que inspira a criminalização das drogas. A quarta

parte constitui-se de conclusões sobre o ideário inspirador da criminalização e a política

pública deste derivada.

OUTUBRO DE 1997

O SURGIMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO

A origem do uso social e da criminalização do uso de drogas no ocidente moderno

está diretamente relacionada à consolidação da atividade médica profissionalizada, no

âmbito técnico, no comercial e no social. No âmbito técnico, destaca-se a utilização de

substâncias entorpecentes/psicoativas como anestésico em cirurgias e no tratamento de

ex-combatentes de guerra. O éter e a cocaína foram (entre outras) as primeiras

substâncias anestésicas usadas em cirurgias pela medicina moderna. As experiências

cirúrgicas iniciais com o éter foram realizadas por Will iam Morton e Charles Jackson em

1846 (ADIALA,1986,p.62). Will iam Stewart Halsted (1852-1922) foi o primeiro a

aplicar a cocaína como anestésico local. Sobre este cirurgião, descendente de uma

tradicional família de New York, tem-se algumas informações interessantes. Halsted foi

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um dos “quatro” grandes cirurgiões do Johns Hopkins Hospital, era viciado em morfina

desde jovem e o responsável por sua contratação sabia disto. Durante o seu período no

Johns Hopkins ele consumia três gramas de morfina diariamente e tornou-se conhecido

como “o pai da cirurgia moderna” (BRECHER,1972,pp.01-02). Após a Guerra Civil

norte-americana (1861-1865), os hospitais empregaram o ópio e a morfina livremente e

muitos veteranos de guerra se tornaram viciados (BONNIE e WHITEBREAD II ,p.04).

No Brasil , Roberto Haddock Lobo realizou a primeira experiência cirúrgica com éter em

1847, um ano após à de Morton em Massachussetts. Em 1848, Rodrigo Bivar (também

no Rio de Janeiro) administrou o clorofórmio em um trabalho de parto

(ADIALA,1986,p.62).

No âmbito comercial, as substâncias psicoativas compuseram produtos médicos,

geralmente rotulados de elixires/tônicos, que eram comercializados livremente, sem

qualquer descrição de sua composição química no rótulo ou contra-indicação, exceto os

altos preços cobrados por tais produtos. Estes compostos continham de trinta a quarenta

porcento de morfina ou outros opiáceos e seus fabricantes prometiam curar desde picadas

de cobras até melancolia. Para se ter uma dimensão da difusão de tais compostos, em

1900, os Estados Unidos importaram 628,177 libras de ópio, ou seja, 284.934kg

(BONNIE e WHITEBREAD II,p.04). A cocaína também era utilizada nesses produtos, o

Papa Leão XIII premiou com medalha de ouro o Sr.Mariani, um peruano que fabricava

um tônico a base de coca. Esse tônico, era consumido por vários reis e ministros da saúde

europeus. Em 1910, uma revista médica paulistana divulgava o uso terapêutico da

cocaína, recomendando-a contra a tosse e acrescentando: “ ‘comprando o vidro, você

ganha uma caixinha de algibeira para colocar os comprimidos’ “(CARLINI,1992,p.105).

Dessas prescrições, vendas e usos medicinais inadvertidos de drogas com alta capacidade

de vício fisiológico (principalmente opiáceos) emergiu o primeiro contingente

significativo de viciados. Esta rota de inserção no uso e vício em drogas não se restringe

a meados do século passado e início do XX. Em 1973, Murad e Costa Filho constataram

que entre 536 alunos em graduação na UFMG, 25% usavam drogas, desta percentagem,

23% tornou-se usuária através de prescrição médica1.

1 Nesse levantamento, as anfetaminas eram as drogas mais utilizadas (39,6%), em seguida a maconha com30,6%, seguida pelos tranqüil izantes com 12,6%. Os principais motivos do uso, em ordem decrescente,

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O âmbito social da relação da medicina com o uso e a criminalização de drogas se

refere principalmente ao ideário técnico produzido pela medicina para implementação e

exclusividade do manejo de políticas públicas da chamada saúde pública. Os médicos

legistas e os psiquiatras foram atores centrais na formulação de tal ideário em relação às

drogas. Logo após a inserção das drogas nos procedimentos cirúrgicos, os médicos

legistas despertaram interesse no aspecto tóxico (do latim toxicum, veneno) dessas

drogas, sendo a característica principal deste veneno o entorpecimento; possuir o efeito

narcótico (do grego narkatikós, entorpecer). Estes médicos similarizaram os efeitos

dessas drogas ao da embriaguez alcoólica/alcoolismo (na época, era o motivo mais

freqüentemente utilizado para se justificar internações em sanatórios) e os consideraram

causadores da loucura e do crime. Médicos legistas e psiquiatras acreditavam que o

alcoolismo e os narcóticos seriam causas do atraso social do país e ameaçadores da

ordem pública. Portanto, deveriam ser controlados médica e criminalmente em prol da

eugenia. A resposta estatal para tais pressupostos foi o Decreto-Lei 4.294 de 1921 que

estabelece penas aos que comercializam cocaína, ópio, morfina e seus derivados, cria um

estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substâncias

venenosas e estabelece as formas de processo e julgamento dessas infrações

(ADIALA,1986,pp.63-70). No início deste século o uso hedonista de drogas

(principalmente ópio e cocaína) era praticado por integrantes da elite intelectual e da

social nas chamadas fumeries e em ambientes privados. Boa parte destes usuários

adquiriram tal hábito (por vezes vício) na Europa. O consumo de maconha durante esse

período era quase restrito ao norte do país e às camadas sociais baixas (Ibid.,pp.83-85).

Semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos, no Brasil, a criminalização do uso e

do comércio de drogas emergiu como uma ação preventiva promovida por grupos

específicos; médicos legistas e psiquiatras no Brasil, juristas e políticos nos Estados

Unidos. Na verdade, tanto lá como aqui, as drogas não representavam um problema

socialmente definido como o alcoolismo. Neste caso, as tentativas norte-americanas de

proibição das bebidas alcoólicas consistiam em um movimento social amplamente

eram os seguintes: curiosidade (52,2%), prescrição médica (23,42%), outros motivos (13,5%), problemaspessoais (9,0%), imitação (1,8%).(Apud.GRECO FILHO,1987,p.71)

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discutido e centralizado no Movimento pela Temperança (Temperance Movement)2, havia

um processo político respondendo à opinião pública. A primeira medida legislativa norte-

americana contra as drogas surgiu em 1909 inspirada pela intenção governamental em se

alinhar a outros países em convenções internacionais proibidoras do uso de drogas. Esta

medida se resumia à proibição da importação e do uso do ópio que não fosse com fins

médicos ou não especificados. A partir deste ato, houve uma certa pressão para que o

governo federal regulasse a importação do ópio para fins médicos e as transações de

cocaína, morfina e heroína inter-estados norte-americanos. Resultou desta pressão a lei de

1914 (Harr ison Act) que previa como pena uma multa de dois mil dólares e/ou prisão de

cinco anos para os distribuidores que não registrassem suas transações ou fornecessem

drogas para usos não médicos. Estabelecida a ilegalidade do uso, a área médica passou a

ser fiscalizada. Boa parte dos usuários e dos viciados obtinha a droga através de médicos

e de farmacêuticos. Anteriormente à lei de Harrison, os usuários de ópio eram vistos

como idiotas degenerados, após a sua implementação, foram vistos como imorais por

natureza. Proibido o fornecimento a indivíduos não registrados (uso médico), os viciados

acidentalmente e os usuários hedonistas perderam a fonte de fornecimento legal. Com

isto, os preços no mercado ilegal ficaram inflacionados, levando vários usuários a

práticas criminosas para obterem drogas, o que por sua vez evocou no público uma

resposta moral que cristalizava a relação entre perversidade e uso de drogas (BONNIE e

WHITEBREAD II ,pp.05-06).

No Brasil , tendo-se como referência o Rio de Janeiro (então Distrito Federal), em

seguida à efetivação do decreto 4.294 de 1921, os psiquiatras intensificaram a campanha

contra os entorpecentes, exigindo fiscalização das farmácias e atuação policial sobre os

vendedores e os toxicômanos. A partir de 1926, com a nomeação do delegado Antônio

Augusto de Matos Mendes para chefiar a repressão contra as drogas e da criação de uma

delegacia especializada no comércio ilícito de entorpecentes, na repressão à embriaguez,

2 Houve três tentativas de proibição das bebidas alcoólicas; a primeira entre 1851-1869, a segunda entre1880-1890. Parte do fracasso da primeira se deve ao enfraquecimento moral do movimento devido àescravidão. A segunda tentativa não foi poli ticamente competente para enfrentar o crescente interesse dosfabricantes e comerciantes de bebidas inserido no Estado e nos governos locais. Somente a partir de 1906 omovimento obtém apoio significativo através da campanha anti-saloon. Em 1913, quando se legitimaconstitucionalmente a possibili dade de se restringir/proibir atos/comportamentos privados (NationalConstitucional Prohibition) é que a o movimento ganha força. A legitimação efetiva e geral da Lei Seca se

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à cartomancia e ao falso espiritismo, os vendedores e toxicômanos passam a freqüentar os

tribunais de justiça. Nesses tribunais, os psiquiatras afirmavam seu ideário eugênico e

exigiam novas capturas. Em 1927, um relatório oficial sobre internação de toxicômanos

apresenta o seguinte quadro: alcoólatras, 346; cocainômanos, 28; opiômanos, 14;

morfinômanos, 8; eterômanos, 5; heroinômanos, 4. Totalizando 405 indivíduos, sendo

381 homens e 24 mulheres. Policiais e psiquiatras passam então a trabalhar em conjunto,

punindo o crime, internando os doentes e pressionando o governo para a construção de

um sanatório para toxicômanos que “nunca” foi construído.3 A reforma do sistema

policial de 1930 implementou a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações e a

toxicomania tornou-se disciplina da Escola de Polícia (ADIALA,1986,pp.74-82).

O Decreto-Lei 24.505 de 1934 que substituiu o de 1921 consolidou a

criminalização do uso e tráfico de drogas em termos semelhantes aos atuais. As principais

inovações desta lei consistem no artigo 1o, onde há uma lista de substâncias consideradas

entorpecentes (introduzindo-se a maconha), no artigo 25, onde o ato de induzir ao uso é

inserido no mesmo patamar de gravidade penal da venda (1 a 5 anos de prisão e multa); e

no artigo 26, que criminaliza o porte de drogas (em dose superior à terapêutica e sem

prescrição médica). Apesar dos psiquiatras terem pretendido acrescentar a

obrigatoriedade da delação (notificação compulsória) da toxicomania, tal item não foi

incluído nessa lei (Ibid.,pp.82-83). Não dispomos de espaço para uma ilustração, mas

cabe citar a similaridade dos termos e da abrangência repressiva dessa lei em relação à

6.368 de 1976.

Estabelecido o caráter criminal do uso e da comercialização de drogas não

ministradas pela medicina tradicional, fundado em argumentos eugênicos formulados por

indivíduos da área psiquiátrica, que neste período almejava status de ocupação

concretiza em 1919 com a aprovação do Volstead Act de 28 de outubro (BONNIE e WHITEBREADII ,p.02).3 O único presídio hospital para toxicômanos da América do Sul está situado em Juiz de Fora. Foi fundadoem 1984 com recursos do Ministério da Justiça e incorporado à Secretaria de Estado da Justiça de MinasGerais em 1987. O objetivo organizacional do Hospital de Toxicômanos Padre Wilson Vale da Costa épropiciar internamento e tratamento a toxicômanos condenados a penas privativas e realizar exames desanidade mental e de dependência toxicológica, “afim de que, a justiça possa diferenciar entre o traficante eo viciado em drogas ilícitas.” (SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA, 1997,p.11) A sua capacidadecarcerária é de 98 vagas, atualmente, encontram-se encarcerados 48 “pacientes” , destes, 63% estãocondenados por crimes contra a pessoa, 19% por crimes contra o patrimônio, 15% por tráfico de drogas e4% por uso de drogas. Ou seja, 19% dos internos estão condenados por envolvimento com drogas.

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profissionalizada, os envolvidos com drogas sem o aval da medicina passaram a ser

vistos como doentes (usuários) ou criminosos (traficantes). Aos primeiros se definiu

moralmente a necessidade de tratamento médico, aos demais, as penas da lei. No entanto,

a lei brasileira estabeleceu penas privativas de liberdade para estas duas categorias de

envolvidos. Estas, permanecem até a atualidade como referencial central do sistema

jurídico criminal para que este enquadre os indivíduos flagrados ou delatados por lidarem

com drogas ilegais. Estas contradições e outros dilemas como a distinção moral entre o

usuário e o viciado, o viciado e o traficante, serão abordadas no transcorrer da análise da

atual lei de entorpecentes.

ANÁLISE DA LEI 6.368

A Lei 6.368 de 1976 foi concebida por um médico psiquiatra, um juiz de direito,

um professor de direito penal e por um delegado de polícia. Sob a influência de

congressos e conferências internacionais que desde 1909 formulam convenções sobre

substâncias nocivas aos indivíduos e à sociedade e estratégias de combate ao uso e ao

tráfico de tais substâncias4, em um regime governamental supressor de direitos humanos

e mantendo a tradição criminalizadora do uso de entorpecentes sem prescrição da

medicina tradicional, a Lei 6.368 foi estabelecida. Os pressupostos fundamentais desta lei

são os seguintes: a) o uso e o tráfico de substâncias entorpecentes/psicoativas devem ser

combatidos preventiva e repressivamente por representam perigo abstrato para a saúde

pública (ROCHA,1988,p.139)5; b) o combate às drogas é calcado ideologicamente em

um apelo eugênico-moral à luta do bem contra o mal, do sagrado contra o demoníaco:

“essa verdadeira guerra santa que é o combate aos tóxicos” (GRECO FILHO,1978,p.50);

“Pior...é a dependência da humanidade a opiáceos demoníacos a atuarem na

degenerescência da raça”... (SILVA,1979, p.II).

4 A primeira destas conferências foi a de Shangai em 1909 que contou com a participação de 13 países etratava sobretudo da inserção do ópio indiano na China. As diretrizes dessas convenções são geralmenteconduzidas por profissionais da área médica e da poli cial integrantes de setores da Organização Mundial deSaúde e da INTERPOL (GRECO FILHO,1987,pp25-37; ROCHA,1988,pp.01-05).5 Os dados levantados nesta pesquisa se referem a maconha, cocaína, crack, inalantes (Cola,Thinner -quelegalmente não são consideradas drogas psicoativas) e medicamentos legais com efeito psicoativo.

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Os juristas defensores da criminalização do uso e do tráfico de drogas atribuem

aspecto preventivo e educacional avançado à Lei 6.368 em relação às vigentes no período

de sua formulação:

...”o diploma procura ressaltar a importância da educação e da conscientizaçãogeral na luta contra os tóxicos, único instrumento realmente válido para se obterresultado no combate ao vício, e por isso talvez seja o diploma legal maiscompleto e avançado sobre o assunto, dentre as legislações modernas.” (GRECOFILHO,1987,p.47)6

No capítulo I da lei, que trata da prevenção, o que se lê no artigo 1o é uma

imposição à participação no combate ao uso e ao tráfico de drogas: “É dever de toda

pessoa física ou jurídica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso

indevido de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”

Apesar da afirmação desse dever, a lei não prevê penas propriamente ditas para pessoas

físicas ou jurídicas que não colaborarem à prevenção e repressão. A única sanção prevista

neste artigo refere-se às pessoas jurídicas que perderiam auxílios e subvenções que

estariam recebendo do Estado. No capítulo I, o que efetivamente se refere à prevenção se

encontra no artigo 5o que estabelece a inclusão de “ensinamentos” científicos sobre

substâncias entorpecentes na formação de professores e nas disciplinas de ciências

naturais do 1o grau. Os demais artigos e parágrafos são predominantemente de caráter

repressivo -como a obrigatoriedade de dirigentes de estabelecimentos de ensino,

hospitalar, esportivos etc., adotarem medidas preventivas e repressivas sobre uso e tráfico

de drogas- ou de caráter organizacional/burocrático -como a atribuição do controle

(produção, proibição, etc.) de substâncias entorpecentes ao Ministério da Saúde. Apesar

do capítulo ser destinado à prevenção, a maioria dos artigos possuem caráter

normativo/repressivo e não preventivo. Aliás, seria pertinente a uma lei, que afinal é uma

norma social, voltar-se para a prevenção do ato que ela própria combate? Esta seria uma

atribuição de uma legislação criminal?

O capítulo II diz respeito ao tratamento e à recuperação de viciados/dependentes.

O artigo 9o afirma que os serviços de saúde estatais do país deverão (sempre que

necessário e possível) dispor de tratamento aos dependentes. O artigo 10o considera a

6 Greco Filho é (na data da publicação de seus Comentários) Professor de Direito (USP, UniversidadeMackenzie, Faculdade de Direito de Sorocaba) e Procurador de Justiça do Estado de São Paulo.

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internação hospitalar obrigatória quando o quadro clínico do dependente ou suas

manifestações psicopatológicas exigirem. Estes são os principais itens do capítulo II . O

pressuposto deste capítulo parece coerente, consiste em uma contrapartida do Estado à

sua proibição às drogas. Ou seja, o Estado proíbe, mas deve propiciar meios médicos para

que o indivíduo abandone o vício/dependência. Carvalho Rangel7 elogia tal

procedimento: “De nada adiantaria a repressão pelo Estado se este não lhes oferecesse a

oportunidade de se curarem e não voltarem a procurar as drogas.” (1978,p.19) A

Organização Mundial de Saúde, através do Comitê de Peritos postulou como princípio o

tratamento compulsório (ou a quarentena) dos portadores ou expostos a moléstia

contagiosa e incluiu a toxocomania nesta categoria (GRECO FILHO,1987,p.65).

As determinações deste capítulo se apresentam problemáticas em relação a dois

pontos interligados: primeiro, passados 21 anos da edição da lei, tem-se somente um

hospital penitenciário para toxicômanos em toda a América do Sul, que esta utilizando

aproximadamente 50% de sua capacidade, tendo 81% de presos não condenados por

drogas. Existem clínicas particulares para tratamento de toxicômanos. No entanto, nas

596 ocorrências policiais estudadas em nosso trabalho, 80,9% dos envolvidos eram

ocupados em atividades com baixa remuneração. Ou seja, certamente estes não têm

condição financeira para se internarem em clínicas particulares. Se fossemos

internar/tratar esses 80% dos envolvidos em ocorrências policiais relativas a drogas no

Estado (8.500/ano, média 1991-1996) com baixa remuneração ocupacional, deveríamos

despender tratamento a 6.800 pessoas/ano. O segundo ponto é o aspecto d’O Alienista

machadiano deste capítulo. Coincidentemente, o discurso eugênico dos psiquiatras foi

fundamental para criminalização das drogas em questão. Um Estado que não consegue

garantir saúde básica a seus cidadãos teria o direito de obrigar os indivíduos a um estilo

de vida por ele definido como mais ou menos saudável? Lembremos antecipadamente

que a Lei 6.368 tem como pressuposto que a vítima do crime de uso ou tráfico de drogas

é o Estado e/ou a saúde pública (por vezes é o menor de 21 anos de idade). Digamos que

sim, o Estado teria este direito. Mas, se consideramos um levantamento feito em

Campinas por Karniol em 50 amostras de maconha apreendidas pela polícia, poderemos

estar correndo alto risco de mobilizar recursos de várias ordens inutilmente. 80% da

7 Carvalho Rangel é Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.

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amostra analisada por Karniol não possuía princípio ativo suficiente “para explicar

qualquer ação farmacológica psicodisléptica”.(1992,p.72) Nas ocorrências policiais

estudadas, 60% se referia a maconha. Considerando estes referenciais, poderíamos estar

levando em Minas Gerais 4.080 pessoas à justiça/tratamento pelo uso de substâncias

inativas. Se os toxicômanos são doentes, por que considerá-los criminosos? Algum

defensor convicto da criminalização argumentaria respondendo: porque estes possuem

saúde e a colocam em risco abusando de drogas, onerando o Estado por sua

improdutividade e necessidade de tratamento médico. Ora, se os toxicômanos fossem

improdutivos eles não teriam meios de consumir drogas, consequentemente o tráfico não

seria lucrativo e portanto não seria ameaçador. Além do mais, o Estado não propicia

tratamento médico-psiquiátrico significativo ao toxicômano, a não ser o criminal.

O capítulo III da Lei 6.368 determina os crimes e as penas. Os artigos 12, 14, 15,

16 e 19 e suas respectivas penas se apresentam como os mais polêmicos. O artigo 12 é

conhecido como o do tráfico, apesar de seu texto não incluir o termo. São 18 verbos no

infinitivo (produzir, adquirir, remeter, oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, etc.)

que certamente abrangem todos os atos possíveis envolvidos nas diversas formas de uma

substância ser manipulada e transferida de um indivíduo a outro, independentemente de

ser vendida ou não. A reclusão prevista para tal crime varia de 3 a 15 anos e multa. As

chamadas leis especiais tratam de crimes considerados hediondos. O tráfico e o seqüestro

são exemplos destes. Essas leis são geralmente elaboradas em circunstâncias sociais e

históricas críticas, quando há certa convulsão/revolta social contra certas condutas

desviantes. As penas estabelecidas são muito rigorosas, o que acaba inibindo os

responsáveis pelo seu cumprimento. Pois, estes possuem referenciais empíricos sobre a

efetivação de procedimentos judiciais. Por outro lado, os que têm tendência à atividade

criminosa ou que nela estão, tornam-se mais reticentes ao partilhamento de valores

sociais mais populares. Na máxima popular, este segundo aspecto das leis especiais seria

o seguinte: “criança que apanha muito perde a vergonha”. Apesar da circunstância social

(não a política propriamente dita) na qual a Lei 6.368 surgiu não justificar a

caracterização de tal lei como especial, assim ocorreu.

Encontra-se críticos do artigo 12 até entre os mais convictos criminalizadores de

tais drogas. Carvalho Rangel não somente afirma a incompatibil idade da pena, mas

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também a imprecisão do artigo, o que possibil ita o enquadramento de usuários em uma

pena mínima igual à relativa ao estupro (3 anos):

“As penas estabelecidas no texto epigrafado fogem inteiramente damoderna tendência do Direito Penal, que é manter o indivíduo preso por maiortempo apenas nos delitos de maior gravidade. ...para os que infringem a lei deentorpecentes estabeleceu-se uma pena mínima muito elevada... Vale dizer queuma pessoa encontrada com uma quantidade pequena de maconha não sendoviciada ou dependente de droga está sujeita a uma condenação mínima de trêsanos de reclusão” ...(1978,p.28)

Nélio Machado8, que repudia a aplicação do nosso código penal (segundo ele, virulento e

violento) aos usuários de drogas, entre suas críticas à Lei 6.368, afirma: ...”a definição da

Lei do que seja tráfico de entorpecentes é um rematado absurdo. Considera-se, como se

tráfico fosse, a cessão gratuita, entre usuários.” (1992,p.96) Talvez, este detalhe da Lei

6.368 seja o indicador mais explícito do caráter repressivo e aterrorizante desta lei. Ou

seja, o envolvido na ocorrência policial pode ser acusado de um crime hediondo através

do jogo de palavras implícito na interpretação policial. Caso típico deste encontramos na

Vara Criminal onde estudou-se processos relativos a drogas. Uma jovem foi passar o

final de semana em um sítio e trazia consigo certa quantidade de maconha. Em uma

batida policial na estrada um policial encontrou a droga. Assustada, a jovem disse que

aquela substância não pertencia a ela. A interpretação do policial -que na verdade não era

equivocada em relação à lei- consistiu em enquadrar a moça como traficante. Se a droga

não era dela, ela a estava transportando para outro(s), portanto, era uma traficante.

Exemplo mais complexo do efeito especial desta lei pode ser visto em Rocha9 .

Rocha nos apresenta um manual de repressão a usuários e traficantes de tamanha

competência que nos lembra o tempo do combate aos chamados subversivos. Sempre

argumentando fundamentado na lei, Rocha nos instrui (entre outras ações) sobre as

buscas pessoal e domicil iar, sobre a necessidade de se prender o indivíduo como

traficante por possuir um pé de maconha e sobre a pertinência de se expor à imprensa os

indivíduos presos pela lei de entorpecentes. Através das instruções de Rocha, aspectos no

mínimo problemáticos dos efeitos “especiais” da Lei 6.368 podem ser, em parte,

entendidos empiricamente.

8 Advogado e Professor de Direito Penal.

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A busca pessoal pode ser realizada sem mandado, tanto em traficantes quanto em

“farmacodependentes” quando houver suspeita “fundada” de que a pessoa porte arma,

objetos, drogas ou papéis que constituam corpo de delito. Preso o “suspeito” , a conduta

aconselhada pelo delegado é a seguinte:

“A pessoa suspeita deve ser conduzida para uma sala ou dependênciaisolada. O policial e mais um companheiro mandam-na tirar a roupa e colocá-la aolado. Os policiais examinam primeiro o corpo: mandam que a pessoa retire aperuca ou esfregue os cabelos; estique os braços para a frente e abra as mãos e osdedos, virando as palmas para cima e para baixo; abra os braços, mantendo-se naposição horizontal, o que permite o exame das axilas; abra as pernas e vire decostas - uma ligeira pressão no ventre permite a expulsão de corpo estranhopresente nos orifícios genitais; voltando à posição de frente, deve virar os pés,para o exame de suas solas; deve abrir a boca, para possibilitar o exame interno.”(ROCHA,1988,p.105)

Segundo o citado autor, a lei processual penal brasileira permite que um policial efetue

busca em mulheres quando não houver uma policial para fazer tal busca e esta ausência

implique em “retardamento ou prejuízo da dili gência”(Ibid.,pp.105-06).

A busca domicil iar pode ser feita sem mandado judicial, desde que efetuada por

autoridade policial (delegado) ou judicial, segundo Rocha, com base na legislação

processual penal. Ele afirma não ser conveniente o delegado de polícia expedir mandado

em branco, “ isto é, assine o impresso do mandado sem que estejam preenchidos os claros

referentes ao endereço da casa onde será realizada a diligência e ao nome do seu

portador” . O seu conselho é baseado em precedentes, em seguida, escreve: “É comum

também, em determinados casos, esquentar (itálico do citado) o mandado, isto é,

formalizá-lo nos autos do inquérito, posteriormente à diligência, o que é irregular.” Mas

Rocha não se coloca entre os irrepreensíveis:

...”a busca domiciliar sem as convenientes formalidades prévias é de ser admitidaexcepcionalmente, quando o local esteja desvirtuado pela infração, retirando-lhe aproteção constitucional, tal como no caso de cassinos ocultos, de casas deprostituição, de casas de tavolagem ou em situações semelhantes.” (Ibid.,pp.112-13)

O delegado Rocha entende que se deve enquadrar aqueles que possuem um ou

poucos pés de maconha como traficantes. Os argumentos considerados por ele são o de

9 Professor da Academia de Polícia do Estado de São Paulo e da PUC-SP e Delegado de Polícia.

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13

que o artigo 16 (do usuário) não prevê o plantio para uso próprio e a ampliação das

determinações do artigo 16 beneficiaria o traficante disfarçado de “farmacodependente”.

Deste modo, a campanha das “pessoas de bem” contra “o mal” seria prejudicada

(Ibid.,pp.151-52). Ignorando o apelo moral, esta interpretação, apesar de estar claramente

fundamentada no texto da lei, torna-se descabida ou contraditória quando atentamos para

uma outra peculiaridade da aplicação da Lei 6.368. Para que o ato ilícito do usuário, por

exemplo, se concretize, ele deve estar portando de alguma forma a droga que deve

apresentar princípio ativo psicoativo ou como aparece na lei, que cause dependência

física ou psíquica (GRECO FILHO,1987,p.93). Esta exigência gera problemas como o

levantado feito por Karniol (pp.06-07) e outro talvez mais grave. Trata-se do porte de

sementes de maconha. Apesar de ser um objeto fundamental para a plantação da qual se

extrai a substância proibida e portanto para o tráfico, esta situação não consubstancia

crime. Porque a semente não apresenta o princípio ativo da substância entorpecente.

Frente a isto, seria sensato o Dr.Rocha enquadrar como traficante o indivíduo que possui

dois pés de maconha por que há a possibilidade do traficante se disfarçar de usuário?

Caso hajam outros elementos/informações que levem à conclusão de que o indivíduo “X”

que tem um pé de maconha seja traficante, seria juridicamente sensato ter no pé de

maconha a prova material do tráfico. Mas, um traficante minimamente profissional iria se

arriscar por alguns pés de maconha?

O artigo 26 proíbe a divulgação de documentos, inquéritos, autos de prisão até a

instauração da ação penal. Após esta, fica a critério do juiz manter ou não o sigilo. Ou

seja, depois de se julgar o indivíduo, divulga-se ou não o fato. O delegado Rocha acredita

que a não divulgação da prisão de “traficantes e farmacodependentes” favorece os

interesses destes, eles deveriam ser “desmascarados publicamente, com a notícia de sua

prisão” . Ora, este procedimento parece inadequado, seria pertinente defender a execração

pública de um indivíduo que nem sequer foi julgado?

Procedimentos e instruções como estas justificadas legalmente nos propiciam

certo esclarecimento sobre a violência e o desvario dos conflitos entre policiais e

traficantes, sobre o recrutamento de crianças e adolescentes para combater pelo tráfico,

sobre possíveis efeitos de uma lei especial. Se a vexação de indivíduos (de ambos os

sexos), a perda de direitos constitucionais, a condenação de um indivíduo pode ser

Page 14: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

14

fundada na possibil idade de se evitar privilegiar um criminoso abstrato e a execração

pública do preso sem julgamento são efetuadas ou aconselhadas por uma autoridade

jurídica e policial em prol da saúde pública, esta lei especial possui muito mais o sentido

de uma declaração de “estado de natureza” hobbesiano do que uma norma voltada para a

civil ização.

O artigo 14 estabelece pena de 3 a 10 anos e multa para quando duas pessoas ou

mais se associam para traficar (art.12) e lidar com instrumentos diversos voltados à

produção de drogas (art.13, pena de 3 a 10 anos). Este artigo atende a exigência da

Convenção Única sobre Entorpecentes realizada em New York em 1961. Segundo

Rangel, este artigo procura enquadrar as quadrilhas e traficantes, ignorando a sistemática

da legislação penal. A associação de duas pessoas para se cometer crime consistiria em

co-autoria, não em formação de quadrilha (1978,pp.33-34). Este artigo considera a

associação relativa aos artigos 12 e 13. Porém, se houver associação ou se visar menores

de 21 anos (situação em que aparece uma vítima concreta) para se praticar qualquer dos

crimes previstos, as penas serão elevadas de 1/3 a 2/3 (art.18, inciso III ). Ou seja, o uso

de drogas em conjunto (duas pessoas ou mais) ou com menores de 21 anos, por exemplo,

eleva a pena relativa ao uso. Sem nos alongarmos no exagero da pena do art.14, o ponto

problemático deste artigo (em conexão com o 18) é também aparentemente sensato.

Considerar que um jovem de pelo menos 18 anos não seja responsável pelos seus atos, ou

que não tenha consciência destes é algo no mínimo paternalista. Por outro lado,

considerando que os jovens são mais propensos a aventuras e dentre essas temos o uso de

drogas, parece razoável pensarmos em certa atenuação para com o jovem. Mas não

quando isto signifique a elevação da culpa dos demais envolvidos no fato ilícito. Na

verdade, a única atenuação da lei em relação ao jovem encontra-se no artigo 24, que

dispensa o menor de 21 anos do pagamento de fiança (nos casos em que seja aplicável)

quando este não tiver condições de pagá-la. Neste caso, a autoridade policial “poderá

determinar o seu recolhimento domicil iar na residência dos pais, parentes ou de pessoas

idôneas, que assinaram termos de responsabil idade”(art.24).

O artigo 15 é direcionado aos profissionais da área médica, que podem ser

condenados por receitarem entorpecentes em dosagem acima da necessária (pena de 6

meses a 2 anos). Este artigo parece propiciar certo privilégio às ocupações da área

Page 15: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

15

médica. Na interpretação de juristas, consta que a prática freqüente de alguns crimes

previstos na lei não implica em um acúmulo de punição. Ou seja, se o indivíduo já

traficou 10 vezes e foi capturado, ele não terá uma condenação proporcional ao número

de vezes que traficou. Desta forma, um profissional da área médica que receita

entorpecentes freqüentemente com dosagem acima da indicada, na verdade, estará

traficando. No entanto, sua pena poderá ser a mesma prevista para o usuário.

Mesmo não utilizando o termo usuário, o artigo 16 é conhecido por este,

estabelece pena de 6 meses a 2 anos para quem for apanhado com drogas ilegais. Porém,

se o indivíduo for dependente de droga ou por estar drogado e não ser considerado capaz

de ter consciência do seu ato, ele estará isento de pena, conforme o art.19. No ambiente

social do sistema jurídico criminal estes artigos são instrumentalizados moralmente

através de 3 tipos de discursos estigmatizantes concernentes à classificação da relação do

indivíduo com a droga. O indivíduo classificado como dependente ou viciado é percebido

como um doente que necessita de tratamento médico, é um “fraco” , um ser digno de dó.

Este, não teria consciência dos seus atos, não precisaria de punição. O usuário esporádico

e outros não classificados como viciados ou traficantes seriam mais propensos a sentirem

as penas da lei. Estes teriam consciência de seus atos, em parte, por usarem relativamente

pouca droga. O estigma dispensado a estes é o do indivíduo imoral, que cultiva um hábito

mesmo sabendo do seu aspecto ilegal. Um indivíduo propenso ao crime que ao comprar

drogas financia a atividade criminosa visando o uso hedonista de drogas, havendo uma

profunda depressão após o cessar dos efeitos psicoativos provenientes de tal uso. Este

indivíduo colocaria em risco sua saúde, a harmonia familiar e os bons costumes, seria um

indivíduo mau. Portanto, não seria um doente, mas sim, um mau-caráter, um traficante

em potencial. O estigma relativo ao traficante pode ser inferido pelos procedimentos

considerados legais utilizados no combate aos mesmos. O traficante seria o diabo, a

espécie “humana” mais desprezível da vida terrena. Sem negar a existência de traficantes

da pior índole possível, não devemos esquecer que tal índole não é comumente construída

independentemente do tratamento criminal especial dado ao tráfico. O mito criado em

torno das drogas e as ações descomedidas subsequentes para se reprimí-las é também um

fator responsável pelos conflitos instaurados entre setores do sistema jurídico criminal e

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16

traficantes e entre os próprios traficantes10. Estes conflitos parecem assumir a dimensão

violenta e perene de uma guerra étnico-religiosa sem doutrinas e fronts definidos. Como

afirma Zaluar:

“O tecido social, montado na reciprocidade positiva ou no contrato garantido pordireitos de ambas as partes, foi cedendo lugar à reciprocidade negativa davingança de sangue e da cobrança de quaisquer perdas e prejuízos por meio demais uma vida humana, ou descolando-se dessa lógica dos interesses mercantis, deuma simples e gratuita maldade qualquer.” (1994,p.118)

MITOS E OMISSÕES11

Os dados levantados e parte da bibliografia consultada nos levam a contestar os

dois pressupostos da Lei 6.368 citados, os quais denominamos de mitos. Um deles se

refere ao combate às drogas através da ideologia eugênica moral, o outro, à

periculosidade social das drogas.

O conflito moral sobre a legalidade ou criminalização das drogas é norteado pela

dificuldade em se determinar a tênue fronteira entre direito privado e direito público. Na

cultura ocidental moderna é inquestionável o direito privado do indivíduo decidir seu

estilo de vida, consumir a droga que quiser, desde que isto não implique perda do direito

de outros. Ou seja, o cidadão tem autonomia para arriscar sua saúde com drogas desde

que isto não represente riscos ao demais ou onere o erário público com os possíveis males

advindos do uso de drogas. Por outro lado, esta autonomia para determinar seu estilo de

vida é ameaçada pelo uso abusivo, vício, dependência à droga. A sua autonomia gera

uma situação ameaçadora ao que lhe dá direito a usar drogas (PAIXÃO,1994,p.135). Este

impasse impede maiores tentativas de se lidar com o problema das drogas a partir da

lógica moral. A saída para se analisar o problema encontra-se na consideração do

mecanismo de efetivação da presença da droga na sociedade, qual seja, o mercado. Nas

palavras do professor:

10 Entre 1982-88 na Colômbia, 17 jornali stas, 108 políticos, 157 juízes e mais de 5.000 policiais forammortos em confrontos (MISHAN,1990,p.460). Em 13 anos, 722 jovens foram mortos na guerra entrequadrilhas no conjunto habitacional da CEHAB no Rio de Janeiro (ZALUAR,1994,p.115).11 O significado aqui explorado da expressão mito é o de uma narrativa que não corresponde à realidade,apesar de ser percebida como verdadeira. Omissão, seria a ausência de um ato moral ou juridicamentedevido.

Page 17: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

17

“O tóxico é mercadoria e o equacionamento adequado do problema por elerepresentado pressupõe o conhecimento do mercado de produção, distribuição ecirculação de drogas. O mercado é a ‘ instrumentalidade institucional’ que monta oproblema e, portanto, objeto a ser alterado pela legislação e pelas políticaspúblicas, quaisquer que sejam as justificações morais mobil izadas.”(PAIXÃO,1994,p.136)

No entanto, todas as tentativas vultosas para se controlar o mercado e

consequentemente o uso de drogas através da lei, das armas e outros meios, além de não

resultarem em redução significativa do acesso às drogas, por vezes levaram a efeitos

perversos. A Guerra às Drogas do governo Reagan é o exemplo mais destacado das

grandes campanhas contra as drogas. Com relação à maconha, o resultado foi o

estabelecimento de uma reserva de mercado para os grandes “empresários” que se

mantiveram no mercado apesar da repressão e a introdução no mercado de uma maconha

produzida através da engenharia genética com aproximadamente 20% a mais de THC

(princípio ativo da maconha). (Ibid.,p.140) Com relação à cocaína, o preço em 1980 no

atacado em Miami era de $60.000/kg, em 1990 era de $16.000/kg e a pureza da droga se

manteve elevada (MISHAN,1990,p.442). 20 milhões de norte-americanos continuaram

gastando de 20 a 35 bilhões de dólares por ano com drogas (estimativa mais baixa).

Portanto, tentativas de controle de uma mercado através de apelos eugênico

morais, da lei e da força não alcançaram resultados minimamente satisfatórios. No Brasil,

o resultado desta estratégia de controle foi certamente mais desastroso. Como descreve

Zaluar:

“Sem conseguir implementar a proibição, o efeito foi liberar as forças destrutivasdo mercado que, na ilegalidade, tornou-se imune a qualquer controle exterior (deordem jurídica ou política) e foi facilmente dominado por oligopólios eorganizações poderosas e clandestinas, que impuseram suas próprias regrasbaseadas na força bruta das armas de fogo, único instrumento disponível, além dodinheiro que tudo compra, para resolver conflitos e disputas comerciais oupessoais.” (1994,p.117)

A estratégia adotada pelas autoridades holandesas, que em nosso senso comum ou

desinformação parece ter sido fracassada, “ legalizar” as drogas, apresenta-se mais

eficiente ou menos desastrosa. Na verdade, a Holanda não legalizou as drogas, houve o

que as autoridades holandesas denominam de semi-legalização, que seria somente uma

Page 18: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

18

descriminalização e permissão de venda e consumo de maconha nas chamadas

coffeeshops. Para eles, ainda não há legalização, por não haver controle sistemático da

qualidade e do volume da maconha distribuída e interferência no seu preço, e, por as

demais drogas não possuírem distribuição estabelecida explícita e minimamente

controlada. Atualmente planeja-se a legalização efetiva, tanto das drogas leves (maconha

e haxixe) quanto das chamadas pesadas, cocaína, heroína, etc. O ponto central da

estratégia holandesa de controle das drogas e de seus aspectos sociais nocivos consiste na

descapitalização do narcotráfico local através da concorrência. Ou seja, fornecer drogas

em quantidade e qualidades controladas aos cidadãos holandeses registrados como

usuários com preço aproximadamente 40% abaixo do atualmente praticado pelo mercado

negro. Com isto, pretende-se concentrar recursos no combate ao crime violento e reduzi-

los em 50%, praticamente extinguir os crimes cometidos para obtenção de drogas (junkie

crimes), destruir a aura romântica do proibido relacionada às drogas e outros efeitos

perversos relacionados às drogas e à sua criminalização. A estratégia holandesa parece

estar sendo eficiente. Em uma lista de dezesseis países europeus, a Holanda possui a

quinta menor relação número de viciados por 1.000 habitantes (1,6); Áustria, 1,3;

Alemanha, 1,2 a 1,5; Noruega, 1,0; Irlanda, 0,6.(DUFOUR,1996,p.21)

Os adeptos da ideologia eugênica moral de criminalização das drogas ignoram o

risco potencial de outras substâncias e estilos de vida tão ou mais perigosos do que os

relativos às drogas, assim como efeitos nocivos de suas campanhas, como a pulverização

da resolução de conflitos comerciais e pessoais através das armas de fogo e outras formas

de violência nos ambientes onde os traficantes se instalam e são combatidos pela polícia.

O pressuposto da Lei 6.368 de que as drogas representam perigo abstrato para a saúde

pública não é ilusório. Porém, não é condizente com o perigo efetivo representado, por

exemplo, pelos pesticidas. Nos 545 exames toxicológicos positivos realizados em

necropsias do Instituto de Medicina Legal de Minas Gerais relativas à morte violenta

(homicídio, suicídio e acidente de trânsito) em 1996, a ordem decrescente da presença de

substâncias toxicas é a seguinte: teor alcoólico (alto e baixo somados), 79,8%; pesticidas,

9,0%; medicamentos legais (benzodiazepínicos, anfetaminas e outros) 5,5%; maconha,

cocaína, maconha e cocaína (simultaneamente), 4,6%; química industrial, 1,1%.

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19

Um dos autores da Lei 6.368, Dr.Oswald Morais Andrade (psiquiatra), afirma que

o problema das drogas tem implicações para a segurança nacional. Relata uma “pesquisa”

feita nos Estados Unidos:

...”em uma situação de combate simulado em dia de muito calor, fez-se com quetodos os participantes tomassem um copo de água que continha uma doseinfinitesimal de uma substância alucinógena. Vinte minutos depois, unsabraçavam os outros, outros brincavam, não havia nenhumaluta.” (ANDRADE,1992,p.79)

Ora, existem substâncias que impedem os mil itares de lutar, mas não os deixam se

abraçando, brincando, matam-nos. Uma destas são os pesticidas. Conforme relato da

responsável pelos exames do IML-MG (há 18 anos na instituição) a maioria das

necropsias nas quais se detecta intoxicação por pesticidas não são acidentais, são

intoxicações intencionais (homicídios ou suicídios). Estes sim, são autênticos venenos,

apresentam riscos efetivos, perigo concreto. No entanto, qual controle se tem sobre sua

venda, sobre seu uso, sobre os seus usuários e “traficantes”? Distintamente do usuário e

do viciado em drogas que a aplica em si mesmo; o usuário do pesticida o aplica

indiretamente em outras pessoas, e, por vezes, diretamente em si próprio. Seja para lucrar

ou para melhorar a produtividade de sua plantação, utilizados indevidamente -como as

drogas- estas substâncias são efetivamente letais de modo lento, contaminando

plantações, organismos (humanos, bovinos, etc.) e recursos hídricos, ou rapidamente,

como nos homicídios e suicídios. Cabe observar que na bibliografia consultada, nem

autores favoráveis nem autores contra a criminalização se referiram a situações de

sabotagem através de drogas psicotrópicas. Surpreendentemente, o único exemplo de

sabotagem encontrado, mesmo assim “experimental” , foi fornecido por uma instituição

legal. Ou seja, em geral, é necessário uma volição pessoal para que a droga seja ingerida,

o que não ocorre no caso dos pesticidas, que podem estar em nossos corpos sem que

saibamos de sua presença, quantidade e periculosidade. Portanto, a periculosidade das

drogas psicotrópicas existe, porém, segundo os dados do IML, os pesticidas são quase

duas vezes mais relacionados às mortes violentas.

Como omissões, destaca-se aspectos do sistema jurídico criminal que obstruem a

aplicação efetiva da Lei 6.368 e a desgastam moralmente e/ou juridicamente.

Comparando o Boletim Estatístico da Polícia Civil de Minas Gerais (PC) com o da

Page 20: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

20

Polícia Militar de Minas Gerais (PM), constata-se forte discrepância entre registros

relativos às drogas. Sendo tal discrepância um indicador da baixa possibil idade de

controle das drogas por meios penais. Entre 1991 e 1996 a PM registrou 31.38412

ocorrências policiais relativas a drogas, enquanto a PC, no mesmo período, 14.557. Ou

seja, Somente 46,38% das ocorrências policiais possivelmente tornaram-se inquéritos

policiais. Em três cidades de porte médio do Estado, a percentagem de ocorrências que

“se tornaram inquéritos” foi de 10%, 20% e 30% (números arredondados). Na cidade

onde somente 10% das ocorrências viraram inquérito, afirma-se estar (segundo fontes

policiais) a grande porta de entrada do narcotráfico do Estado. Ora, não se tem como

negar que a corrupção na política de repressão às drogas é responsável por parte desta

diferença entre o número de ocorrências e o número de inquéritos. Contudo, não se deve

atribuir somente à corrupção a diferença entre os registros da PM e da PC. Supõem-se a

existência de 3 outros fatores influindo nesta diferença: o modo como cada polícia define

e registra os fatos no âmbito técnico; a sobreposição de relações pessoais às jurídico

criminais, sem que haja corrupção propriamente dita; e, a transformação da visão das

autoridades sobre o fenômeno do uso e do tráfico de drogas, ou seja, sobre a (im)

pertinência da criminalização de drogas. Mas, e se todas estas 50.214 pessoas envolvidas

em ocorrências policiais (conforme a nota 12) devessem prestar contas à justiça? Seria

possível analisar fidedignamente as substâncias com elas encontradas?13 Seria possível

um tratamento jurídico correto a todos esses suspeitos? Seria possível tratamento médico

e prisão legais a estes indivíduos? Se somente 10% dos crimes cometidos são punidos

(MACHADO,1992,p.95), então, o que fazer com os possíveis 5.000 condenados (1991-

1996) por drogas no Estado, se, em 1995, sua capacidade penitenciária era de 3.426

vagas, nas delegacias existiam 10.480 presos (7.039 condenados) e nas penitenciárias

2.155 presos? Certamente, a população carcerária de condenados por drogas seria pelo

menos 10 vezes maior do que os 2,4% levantados no Censo Penitenciário do Ministério

da Justiça de 1995. E aqueles que por azar, falta de dinheiro ou perseguição estão

12 Como o número de pessoas envolvidas nas ocorrências poli ciais estudadas é aproximadamente 60%maior do que o número de ocorrências, nestas 31.384 ocorrências estariam envolvidas 50.214 pessoas.13 Constatou-se outro fato representativo da situação de fadiga da política de tratamento criminal dasdrogas. No período da pesquisa, o responsável pela análise das substâncias apreendidas no Estado estavasendo processado por um juiz por não ter enviado a análise da substância apreendida em tempo hábil para o

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amontoados nas delegacias? Na cadeia da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes, em maio

deste ano havia 139 presos em celas onde legalmente deveriam estar 31 presos. 90%

destes presos eram ocupados em atividades com baixa remuneração e escolaridade. Que

noção de justiça esses indivíduos terão em mente?

CONCLUSÃO

Distintamente do processo de proibição das bebidas alcoólicas nos Estados

Unidos e da determinação do alcoolismo como fator responsável pelo atraso social

brasileiro no início deste século, as campanhas contra as drogas surgiram antes da

manifestação da opinião pública sobre as mesmas. Até se chegar ao estabelecimento da

Lei Seca, houve um movimento social de quase um século voltado para sensibil ização

das autoridades públicas para com sua reivindicação. O público se manifestou, haviam

freqüentes e intensos debates até a chegada das circunstâncias políticas e constitucionais

propícias à aceitação e efetivação da proibição legislativa das bebidas. No Brasil , apesar

de não se ter registro de nenhum movimento semelhante ao da Temperança, o uso

abusivo de bebidas alcoólicas (como nos Estados Unidos) era um fato constatado. Ou

seja, as campanhas condenatórias às bebidas se estabeleceram baseadas em fatos

empíricos, enquanto as campanhas criminalizadoras das drogas partiram de grupos

restritos de indivíduos que poderíamos denominar de “empreendedores morais”

(BECKER,1963,cap.8), com o intuito de se precaver contra mais um fator (além do

alcoolismo) considerado responsável pelo atraso social do país.

O apelo moral à proibição das drogas ultrapassa referenciais empíricos sobre os

efeitos fisiológicos das drogas. O nosso senso comum tem como garantido: que cocaína,

LSD e maconha viciam fisiologicamente; droga causa agressividade naquele que a usa e

que, em geral, os usuários de drogas são casos psicopatológicos. A comissão

multidisciplinar de autoridades holandesa que pesquisa sistematicamente o problema e

elabora políticas sobre este, há mais de 20 anos, contradiz o nosso senso comum. Nos

relata que cocaína, LSD e maconha não viciam fisiologicamente (DUFOUR,1996,pp.17-

18). Jeffrey Roth, em pesquisa para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos,

julgamento de um possível traficante, que teve de ser libertado. Até a data do fato, este funcionário (pós-graduado em química) era responsável pela análise química de todas as substâncias apreendidas no Estado.

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22

afirma, que a única correlação constatada entre elevação de consumo e elevação de

violência se refere ao consumo de bebidas alcoólicas. Apesar das drogas estarem

freqüentemente associadas a atos violentos e a alguns crimes, não se provou haver

relação de causalidade entre drogas e violência. A relação efetiva entre drogas ilegais e

violência se refere ao âmbito do mercado das drogas: disputas entre distribuidores, atritos

verbais e brigas entre compradores e vendedores, crimes contra a propriedade para se

comprar drogas e atritos entre traficantes e as comunidades das áreas em que atuam. Ou

seja, Roth não constatou relação objetiva entre o efeito fisiológico de drogas ilegais e

violência (1994,pp.01-02)14. A Canadian Government Comission of Inquery do

Ministério da Saúde e do Bem-Estar do Canada concluiu em um relatório de 1969 (p.08),

período crítico da “contracultura”, após levantamentos quantitativos e entrevistas em

profundidade relativas a autoridades, pais, e usuários que a maioria dos usuários de

drogas não as usavam por motivações patológicas. Apesar de haverem fatores

psicológicos e psiquiátricos que parecem contribuir para o uso. Nessa pesquisa, os

usuários classificados como problemáticos usavam drogas legais, anfetaminas, os

chamados methedrine user ou speed freaks.

Mas nem todas as autoridades do país estão estagnadas em apelos morais.

Dr.Adib Jatene, ex-ministro da saúde, em junho de 1996, em seu discurso no Dia

Mundial contra ao Abuso de Drogas começa o mesmo citando um memorandum das

Nações Unidas de 1993:

“ ‘Os problemas das drogas psicotrópicas são subestimados pelo público em geralenquanto que a atenção é focalizada nos aspectos mais espetaculares visíveis eportanto de maior sensacionalismo sobre a cocaína e a heroína.’ ” (grifos da fonte,Boletim CEBRID, No. 25,1996,p.02)

Jatene afirmava que enquanto o Ministério da justiça voltava-se para as chamadas drogas

il ícitas, o Ministério da Saúde estava preocupado em diagnosticar o consumo das

chamadas drogas lícitas mas indutoras de dependência (benzodiazepínicos e

anfetaminóides). Segundo ele, consumia-se 3.140.000 doses diariamente de

benzodiazepínicos, 20 toneladas/ano de anfetaminóides para emagrecer eram consumidas

por 1.747.000 pessoas, geralmente mulheres. Entre os estudantes de 1o e 2o graus de dez

14 Mishan apresenta a mesma relação encontrada por Roth.

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23

capitais brasileiras, 5,3% dos estudantes haviam consumido ansiolíticos e 3,1% usado

anfetamínicos sem prescrição médica, 4,5% havia usado maconha. Das 8 drogas mais

consumidas na vida dos estudantes, somente a maconha (4a mais utilizada), era do grupo

das consideradas ilegais.

Ora, por que então tanto alarde sobre o tráfico de maconha e cocaína se os jovens

têm no mercado legal o maior fornecer de drogas? Por que as campanhas publicitárias

oficiais se referem somente às drogas criminalizadas?

Teoricamente, esta contradição afirma o estado permanente de reconstrução das

normas sociais conforme o interesse, conveniência e posição social dos atores envolvidos

na definição de um ato/comportamento como desviante/ilegal ou não

(BECKER,1963,p.192). Ou seja, a vigilância e a punição para traficantes inseridos nos

mercados ocupacional e comercial legais são menos efetivas e rigorosas do que aquelas

dirigidas aos traficantes de maconha e cocaína.

No que se refere ao sentido propriamente social do problema, a criminalização das

drogas apresenta-se preocupante em três aspectos: o primeiro se refere à violência (ou

desrespeito à vida privada) originária da imprecisão entre as fronteiras do direito privado

e do direito público. Ou seja, não é tarefa do Estado determinar se o indivíduo deva ou

não se arriscar ingerindo drogas ou gorduras em excesso. Sobre este aspecto, veja-se por

exemplo os artigos de Neal Sonnet, presidente da Associação Nacional de Advogados

Criminais de Defesa dos Estados Unidos, “War on Drugs - or the Constitution?” (1990),

de Scheerer (1992) e de Baratta (1992).

O segundo consiste na pressuposição da violência e do vício como conseqüências

fisiológicas necessárias do uso de drogas ilegais. Privilegiando-se tal pressuposição,

ignora-se ou não se despende a devida atenção ao fato de quase totalidade da violência

relacionada às drogas proceder dos conflitos inerentes ao caráter ilegal do mercado de

drogas, e, aos mitos formulados sobre a capacidade de vício fisiológico de certas drogas

(ROTH,op.cit.; MISHAN,op.cit.; DUFOUR,op.cit.).

O terceiro compreende a falta de previsão da capacidade de processamento (da

ocorrência policial ao cumprimento da pena) do sistema jurídico criminal e o

descompasso entre a Lei 6.368 e o direito penal moderno que vê necessidade de prisão

apenas nos casos de delitos graves (CARVALHO RANGEL,op.cit.; MACHADO,op.cit.).

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24

Enfim, o tratamento ideologicamente moral e criminal ao uso e comércio de

drogas como único instrumento de controle do problema certamente o agravará. Este

tratamento, associado às campanhas publicitárias contra as drogas e não propriamente

esclarecedoras nos levam a expectativas pessimistas quanto a um controle minimamente

efetivo do problema. Ainda mais se atentarmos para uma hipótese de Linus Pauling (duas

vezes Prêmio Nobel, estudioso do problema das drogas por mais de 22 anos). Segundo

ele, provavelmente a maconha, a cocaína e talvez o peyote estejam disponíveis ao homem

deste os tempos primitivos e este já estaria evolutivamente adaptado a dosagens

moderadas de tais substâncias (1992,p.xvii i).

Page 25: MITOS E OMISSÕES: repercussões da legislação sobre

25

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