Upload
graziano-uchoa
View
130
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
História
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIOSA
ANAIS
II SEMINRIO NACIONAL PRTICAS SOCIAIS, NARRATIVAS VISUAIS, RELAES
DE PODER: VISES CONTEMPORNEAS
VIOSA - MG
2012
Reitor da UFV: Luiz Cludio Costa
Diretor do CCH/UFV: Walmer Faroni
Chefe do Departamento de Histria: Jonas Maral de Queiroz
Coord. do Curso de Histria: Maria da Conceio Francisca Pires
Comisso Organizadora
Maria da Conceio Francisca Pires (UFV)
Patrcia Vargas Lopes de Araujo (UFV)
Taiane Cristina da Silva (UFV)
Monitores
Adriano Braz Maximiniano
Aline Viana Tom
Ana Paula Sena Gomide
Arthur Rodrigues Pinheiro
Cilsia Lemos
Darlan Luiz Silva Santos
Eliane Aparecida Duarte Batista
Emlio Gomes de Andrade
Fernanda Generoso
Joo Marcos Ferreira de Paiva
Juliana de Souza Cazadei
Luana Aparecida Almeida Paiva
Lucilene Macedo da Costa
Matheus Toledo de Coelho
Marcus Vincius Reis
Michele Aparecida Evangelista
Micheline Carmem Evangelista
Natlia Fraga de Oliveira
Nbia Bastos Reis
Rmulo Nascimento Marcolino
Tatiana Maria Fontes da Silva
Thiago Henrique Mota Silva
Arte
Thiago Araujo
Fotografia
Srgio Silva
Realizao
Departamento de Histria UFV
Apoio
FAPEMIG - CNPq
ISBN: 978-85-63224-09-5
3
SIMPSIO TEMTICO 01
DILOGOS DA HISTRIA COM O CINEMA E A LITERATURA:
A NATUREZA DOS DISCURSOS
COORDENADORES: LORENA LOPES E LUS FERNANDO AMNCIO
A literatura como objeto para a nova Histria: renovao
da Escola dos Annales e respostas da historiografia
brasileira
Lorena Lopes da Costa1
Na dcada de 70, um grupo de historiadores e estudiosos das
cincias sociais em geral, encabeados por Le Goff e Pierre Nora,
no apenas elencou e discutiu uma lista de objetos que se acreditava
serem pertinentes e ricos para a pesquisa histrica, indo desde a
cozinha poltica, desde o fato propriamente festa, como, ao faz-
lo, deixou claro o caminho que se reivindicava como aquele que seria
o da nova histria. Marcada pelas inovaes terico-metodolgicas
da Escola dos Annales, dirigida ento por outra gerao, diferente
daquela de Lucien Febvre, os trs volumes que compem a Nova
Histria calharam como um manifesto acerca da expanso do
territrio de atuao do historiador. De forma que, por inovadoras
que fossem as primeiras proposies dos Annales, como as
proposies de Febvre, para se trabalhar com documentos pouco
visitados at ento na histria da historiografia, como o caso da
literatura, os anos 70 marcaram o esgotamento do modelo e
1 Mestranda da linha Histria e Culturas Polticas, do Departamento de Histria da
UFMG. Bolsista do CNPq.
4
apontaram, portanto, para a necessidade de explorar mais e melhor
determinados objetos.
Jean Storobinski foi quem, em Histria: Novas Abordagens2,
dedicou-se a pensar a relao entre o texto literrio, como objeto, e
seu intrprete, podendo ser, ele mesmo, o historiador. Storobinski
caminha em seu manifesto por dualidades. A escolha de um objeto
de estudo uma dupla escolha: porque ela ocorre em funo dos
meios que se tem para explorar tal objeto, de tal maneira que eles
determinam a escolha do objeto, mas tambm porque se escolhe os
meios ou ferramentas em funo do objeto. O pesquisador , no
entanto, a fonte exclusiva dessa dupla escolha. Ele se faz presente na
escolha do objeto, impossibilitando-a de ser prensada como um ato
ingnuo.
O objeto literrio, segundo Starobinski, foi tratado pela tradio
como algo que poderia ser aproveitado apenas se fosse bem
trabalhado, a fim de que, liberto dos excessos e corrupes, tornado
legvel e confivel em seu primitivo estado, pudesse revelar a
verdade A verdade do objeto literrio s seria acessvel, para a
tradio, aps esse processo de depurao, que, terminado, abria
espao para que fossem postas as interrogaes do estudioso. Nessa
acepo, a obra tida como acabada. O empenho do historiador por
acessar o passado da obra, guardado por ela mesma, por mais que
entremeado em seu vu.
A ideia de uma obra acabada, porm, despertou e desperta ainda
um leque de incertezas. A prpria verso final pode ser, nalguma
medida, uma soluo que revela certas variantes, mas nega ou
interrompe outras. Na obra, h camadas, e cada uma delas trava um
dilogo inevitvel com a literatura predecessora. Ela porta mltiplas
2 Ver STAROBINSKI, J. A literatura: o texto e o seu intrprete. In: NORA,
Pierre; MESQUITA, Henrique.; LE GOFF, Jacques. Histria: novas abordagens.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 200 p.
5
ligaes com um horizonte que, por isso, no se pode separar dela e
que, portanto, integra-a tambm e, ainda, ajuda a dar o tom de sua
singularidade.
Avanando em relao abordagem tradicional, Starobinski diz
de uma preocupao primeira daquele que escolheu a obra literria
como objeto. preciso garantir a esse objeto a consolidao de sua
existncia, sua autonomia. preciso que a obra possa afirmar todas
as suas determinaes particulares. Elas subtrairiam o objeto a uma
anexao ilusria. Seria necessrio, enfim, fazer um investimento
objetivo para resgatar na obra aquilo que ela oferece de forma
anloga quando se depara com sua subjetividade: a obra oferece
resistncia ao leitor ou intrprete que no quer pagar o preo da
travessia do espao interposto3. O paradoxo que o que resiste na
obra exige tanto o investimento objetivo quanto o subjetivo por parte
do leitor e, especialmente, do crtico. A obra revela a si prpria, na
medida em que seu intrprete desvenda, nela mesma, suas ligaes
com o mundo.
Na proposta de Starobinski, a pesquisa histrica e a descrio
estrutural da obra esto, claramente, interdependentes. Mais que isso:
a conscincia das estruturas internas da obra deve guiar a pesquisa
histrica, por meio da qual se busca seus antecedentes, sua
vizinhana, seu horizonte enfim. Da mesma forma, as ideias, as
palavras que compem sua estrutura interna nada perdem com os
apontamentos acerca de suas caractersticas externas.
O sucesso da empreitada crtica marcado, diz Starobinski, por
aproximar o leitor de uma espcie de totalidade, auxiliando-o a ver
melhor os elementos e a forma como eles se relacionam nessa
totalidade. Nela, o crtico deve respeitar em seu objeto aquilo que lhe
foge ao alcance. Quanto aos mtodos, evidentemente, uns se
mostraro melhores, mais esclarecedores. Mas o intrprete mesmo
3 STAROBINSKI; 1976; p.133.
6
que dever assumir seus riscos, que no se restringem escolha do
mtodo, mas tambm se do com a escolha da prpria obra, seu
gnero, se um ttulo apenas do autor eleito ou mais de um, os pontos
de comparao, as referncias. Nem quanto ordem ou
organizao propriamente da crtica, Starobinski pode adiantar o
caminho.
Embora da dcada de 70, os escritos de Starobinski dizem de
uma tendncia acentuada at hoje por parte da crtica, qual seja a do
estudo crtico atribuir mais importncia ao estudo do texto,
investindo na anlise interna. Essa anlise interna, no obstante,
pontua o autor, no empecilho para que se considerem os dados
externos. O texto, afirma Starobinski, ao ser escolhido, aponta para
uma regio intratextual, que o extravasa e que, assim, aponta para o
mundo que lhe exterior, de modo que, se for insensvel aos ecos
externos do texto, o crtico no poder buscar a lei que vigora em seu
universo interno. Mesmo que se priorize um dos dois lados,
Starobinski pontua que o limite entre eles provisrio, alterado
pelo movimento de ir e vir que deve ser o movimento da crtica.
Starobinski diz, por fim, de uma espcie de misso do intrprete,
que opera uma passagem, como a origem mesma da palavra indica,
do latim interpres, que denota agente entre duas partes:
ela aparece como um deslocamento, no interior da mesma lngua, de
uma mensagem formulada num cdigo considerado metafrico a
uma mensagem formulada num cdigo considerado como o veculo
do sentido prprio4.
A literatura como fonte fecunda: um manifesto no Brasil
Tambm no cenrio nacional dos estudos metodolgicos, a
literatura foi pensada enquanto objeto para o historiador. Em projeto
similar quele dos anos 70 produzido por estudiosos franceses que
buscaram, em parte, renovar os esforos iniciais da Escola dos
4 STAROBINSKI; 1976; p.141.
7
Annales, surgiu no Brasil uma coletnea cuja preocupao foi
igualmente explorar diferentes objetos, em potencial, frteis para o
trabalho do historiador5: as fotografias, as obras literrias, as cartas,
os dirios, os discursos e os pronunciamentos, os testamentos, os
inventrios, os registros paroquiais e civis, os processos criminais, os
materiais produzidos por rgos de represso e o patrimnio cultural.
Antonio Celso Ferreira, como Starobinski, foi em O historiador
e suas fontes, o responsvel por visitar a tradio e explorar as
possibilidades de relao epistmica que se pode estabelecer entre
literatura e a histria. Uma delas, consolidada pela historiografia
tradicional e mesmo por parte da crtica literria que trabalha com
interpretaes histricas, segundo o autor seria aquela que enxerga a
literatura enquanto fonte, num sentido geral, mas claramente
hierarquizado. Fontes literrias, nesse sentido, podem ser canais
promissores para a busca de respostas6.
Ferreira afirma que a delimitao da fonte especificamente
literria exige, a priori, uma explicao. O motivo de se estudar
histria por meio de fontes literrias deve ser, ele prprio, um objeto
de reflexo, de tal maneira a questionar qual a concepo de
literatura est em jogo e como a sociedade coeva a enxerga. O autor
pontua, ainda, que o pesquisador da histria deve, sim, estudar a
estrutura interna das obras literrias, mas no sem compreend-las
em seu contexto histrico e social, em afinidade com Starobinski.
Esse esforo de compreenso exigiria, inevitavelmente, a consulta a
fontes diversas da poca orientao recorrente em boa parte dos
estudiosos da literatura, que, como em obra de Lucien Febvre, acaba
por revelar uma espcie de desconfiana do historiador diante do
objeto literrio.
5 Ver FERREIRA, A.C. "Literatura: a fonte fecunda". In: PINSKY, C. B.; LUCA,
T.R. de ( org.). O historiador e suas fontes. So Paulo: Contexto, 2009, p. 61-91. 6 FERREIRA; 2009; p.80.
8
No intuito de auxiliar o historiador, o estudioso brasileiro elenca
tanto perguntas para se enfrentar a fonte quanto mtodos, amide
oriundos de outros campos e habilitados a oferecer diferentes
caminhos para se trabalhar o texto literrio. Haveria, segundo
Ferreira, perguntas elementares para investigao de tal natureza.
Elas contemplariam desde o ambiente de criao da obra, o ciclo
intelectual e os segmentos sociais com os quais se relacionou o autor;
as escolhas na criao da obra, como, por exemplo, no que concerne
ao gnero narrativo, bem com a relao do texto com a realidade
circundante, na qual se busca identificar as representaes do mundo
social, os desejos, as angustias e frustraes compartilhadas pela
coletividade. Em relao aos mtodos, eles, de fato, podem auxiliar o
historiador na explorao mais perspicaz da fonte literria, mas seu
objetivo no deve se confundir com o pesquisador das outras reas,
como por exemplo, da crtica literria ou da teoria esttica.
Qualquer que seja o norte do historiador que se debrua sobre
uma fonte literria, o autor sugere que o mtodo seja sempre
construdo a partir ou ao longo do contato do pesquisador com seu
objeto e que, alm disso, para se lidar com textos literrios, um
elemento se some ao mtodo. Tal elemento advm de um modo
especial de sensibilidade que esses textos, quais sejam os literrios,
requerem, embora a classificao possa ser til na tentativa de fugir
dos anacronismos.
O historiador, ademais, no pode se restringir lgica dos
textos. Seria preciso fazer comunicarem entre si, como j reza o
lugar-comum, texto e contexto, a fim de focar a viso nas marcas que
a sociedade deixou no texto, por um lado, e, por outro, entrever o
significado do mesmo texto na sociedade que o gesta. A regio
intratextual, da qual fala Starabonski, indiretamente confirmada
pelas orientaes metodolgicas de Ferreira.
O autor chama ateno, em seu estudo, sobre o perigo redutor
que o rtulo apresenta. No poucas vezes simplificada, a literatura,
9
nomeao para um conjunto de gneros, revelaria muitas variaes
mesmo dentro de um mesmo gnero. Mais frtil que enquadrar uma
obra em um gnero pressuposto, seria interrogar a qual pblico ela se
destinou e qual papel ela pretendeu cumprir em uma determinada
poca. O historiador deve, dessa forma, colocar prova tanto marcos
periodizadores, que organizam a classificao, quanto os significados
globais dos movimentos literrios, que do sentido a ela. No
obstante, no apenas o desenvolvimento da literatura por meio de
seus movimentos e reciclagens marca sua historicidade. O
entendimento do prprio conceito de literatura seria diverso no
tempo7. O autor, fazendo um breve resumo, pontua que se a
formulao aristotlica de que o texto literrio representa ou imita o
mundo diz do entendimento sobre o entendimento da literatura
prprio da Antiguidade Clssica, explica o autor, os romnticos, de
outra feita, incutiram ao entendimento sobre a literatura, prprio do
sculo XIX, a ideia de que o texto literrio, alm de representar,
tambm cria universos, de tal maneira, que se a formulao
aristotlica resgatada, s o para ser tambm modificada. Da
mesma forma, o engajamento poltico dos artistas do sculo seguinte
reformulou a concepo acerca da literatura, bem como a rejeio de
toda e qualquer definio universalista marcou a conscincia ps-
moderna, agudizada no sculo XXI. Apreendida de formas to
variadas, consequentemente, aquilo que seria til como substrato
para a histria tambm variou. E, mais, afirma Ferreira, foi, por um
tempo, rejeitado.
A historicidade da literatura aponta de forma clara para a
inexistncia de um caminho nico para trat-la como fonte ou para
entend-la em seu possvel dilogo com a histria a ponto, at
7A questo tambm trabalhada por Srgio Buarque de Holanda e estudiosos
citados em sua obra.
10
mesmo, de desconstruir seu enquadramento enquanto fonte, embora
tal proposio no seja feita pelo autor de maneira alguma.
a historiografia levou algum tempo para admitir que a literatura
pudesse contribuir para o conhecimento das experincias individuais
e coletivas de homens e mulheres no tempo8.
O apelo literatura teria, de fato, ocorrido, primeiramente, como
que para suprir a falta de documentos de uma determinada cultura,
especialmente aquelas cuja distncia temporal teria comprometido a
disponibilidade de vestgios. As novas percepes, no entanto,
reconhecendo o fato de a histria comportar dimenses marcadas
pela subjetividade e pela fico, teriam aproximado historiadores e
textos literrios provenientes tambm de culturas mais bem
documentadas, j que as fontes tradicionais, mesmo quando
abundantes, no registram com frequncia aquilo que a literatura
costuma registrar, uma vez que nenhuma outra fonte diz mais sobre
esse universo humano recndito que as fontes artsticas, dentre as
quais a literatura sobressair-se-ia.
Outras publicaes no Brasil
Ainda no Brasil, h publicaes que vm privilegiando o dilogo
da histria com a literatura e, assim, experimentando diferentes
formas de conduzir tal dilogo. Embora parea faltar uma discusso
conceitual mais profunda, pode ser proveitoso, cit-las.
Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Sidney Challoub, na
apresentao de A Histria Contada9, dizem de uma das possveis
maneiras de se trabalhar com a literatura. Seria essa a de historicizar
a obra literria, inserindo-a no movimento mesmo da sociedade, a
8 FERREIRA; 2009; p.83.
9 CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A histria
contada: captulos de histria social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998. 362 p.
11
fim de perceber redes de interlocuo social. A prioridade dessa
escolha seria a de buscar na obra a maneira pela qual ela construiu ou
representou a relao que a obra mesma estabelece entre si e a
realidade que a cerca, ao invs de buscar sua autonomia em relao
sociedade.
Os organizadores so claros em sua opo metodolgica. Para
historiadores a literatura , enfim, testemunho histrico10
. Da,
tornar-se necessrio dessacraliz-la, tom-la sem reverncias e, mais,
submetendo-a ao interrogatrio sistemtico ao qual todo objeto de
pesquisa cado nas mos do historiador deve passar. Sendo
testemunho histrico, a obra literria porta um carter histrico.
Qualquer obra , portanto, evidncia histrica determinada e, antes,
situada no processo histrico. Para os autores, literatura fonte. Mas
a assero no deixa de trazer tona um paradoxo para o historiador.
Apesar de no se poder negar o princpio de realidade da literatura ou
o referencial externo do texto, preciso, ao menos, considerar
alguma especificidade na maneira como tal princpio pode se portar
diante de um campo, como o literrio, que, em sua noo definidora,
nega a ideia de ser ele evidncia objetivamente determinada.
Pereira e Challoub destacam, nesse sentido, duas
consideraes. Em primeiro lugar, destrinchar a especificidade de um
testemunho seria ao necessria independente do tipo de
testemunho que o historiador tem a frente. Seria geral, portanto, o
imperativo que diz que o historiador deve considerar a especificidade
de sua fonte. Com a literatura, tomada enquanto testemunho
histrico, a regra no seria outra. Ela apresentaria, certamente, a esse
historiador atento, sua especificidade. Fosse um livro de atas, um
depoimento em processo criminal, o historiador tambm precisaria se
ater quilo que cada um porta de especfico. Assim, para eles:
10
CHALLOUB; 1998; p.7.
12
posto rudemente: a interrogao da fonte literria no , por
natureza, nem mais nem menos complexa do que a interrogao de
qualquer outro testemunho histrico; novamente, a literatura no
transcende11.
Em segundo lugar, ou a segunda considerao diria respeito
forma de inserir os autores e suas obras em processos histricos. Para
tanto, o historiador precisa pensar a obra e suas caractersticas, bem
com precisa pensar o autor, a escola a que pertence e sua concepo
de arte. Mesmo num cenrio ps-moderno, marcado pela morte do
autor, os organizadores entendem que o historiador, porque
historiador, deve ver o autor e sua obra como acontecimentos datados
e condicionados pela histria, que, por isso, expressam algo a seus
contemporneos. O mote, ao menos da coletnea, que interessaria ao
historiador seria o de encontrar, por meio da pesquisa de um autor e
uma obra, algo que diga sobre um pas e sobre o tempo desse pas.
Seguindo essa linha seria possvel identificar na fico de um
autor, por exemplo, Machado de Assis12
, sentidos da histria
brasileira e, mesmo, seria possvel identificar um dilogo da fico
com correntes do pensamento historiogrfico do momento. Ou,
ainda, tambm a literatura poderia revelar meandros de uma histria
das formas narrativas, como poderia tambm dizer, por meio dos
prprios personagens, sobre uma lgica de dominao social, a partir
at da viso dos dominados. A fico permitiria, ademais13
, ao
historiador vislumbrar a combate coevo de ideias e de crticas
sociais, muitas vezes, identificando um esforo por firmar
identidades e exaltar tradies ou, ento, por registrar, no enredo,
prticas e costumes de grupos populares, que forneam ferramentas
de interpretao da realidade ou que sejam contrrios aos discursos
11
CHALLOUB; 1998; p.8. 12
Caminhos propostos por diferentes autores, estudiosos de Machado de Assis,
aparecem em artigos variados dessa coletnea. 13
Nesse caso, tomando as anlises, tambm includas na coletnea, concernentes
obra de Luiz Gama.
13
em voga, modismos, nadando, assim, contracorrente e elucidando
novos caminhos para a mesma realidade. A obra literria poderia por
fim, finalizando os caminhos propostos pelos autores participantes da
coletnea, testemunhar movimentos sociais mais amplos14
, dizendo
da forma do autor e do movimento que o abarca, se for o caso,
enxergarem determinado povo, bem como enxergarem ou se
imburem de determinada misso.
A julgar pelo que essas possibilidades de explorao do objeto
literrio oferecem, fica claro que reside, de fundo, uma opo
metodolgica que as agrupa. O que de melhor a literatura teria para
fornecer histria, segundo a obra organizada por Pereira e
Challoub, seriam aquelas marcas que ela, inevitavelmente, porta de
testemunho histrico, aquilo que ela carrega em si como
determinao de um tempo, crivos de uma cultura e de uma
realidade.
Para Sandra Pesavento, organizadora de outra publicao 15
,
tambm marcada pelo interesse na literatura como objeto da histria,
intitulada Leituras Cruzadas16
,as duas narrativas, a histria e a
literatura tm, em comum, o empenho em tentar capturar a vida,
apresentando novamente o real. As estratgias de cada uma podem,
por certo, diferir, mas todas duas criam aquilo que narram, no sentido
de que so formas de fazer a realidade. Partilham a capacidade de
representar e, portanto, recriam, por meio de palavras e, por
conseguinte, de imagens. Todas duas lanam mo de um esforo por
perceber e conhecer o mundo.
14
Por fim, trata-se dos artigos que tm como objeto os autores modernistas da
dcada de 20. 15
O livro resultado de um projeto maior nomeado Clope, o qual, como se v, j
no nome homenageia as musas Clio e Calope e dedica-se, como de se esperar,
analise das possveis relaes entre literatura e histria. 16
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Leituras cruzadas: dilogos da
histria com a literatura. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000.
14
Na busca da construo desse conhecimento do mundo, os
mtodos, as exigncias e mesmo as metas podem ser diferentes ao se
comparar os dois discursos. E a, ento, segundo Pesavento, que
uma musa pode ensinar outra. O texto literrio, eminentemente,
trabalha com sentimentos, emoes, maneiras de falar, cdigos de
conduta, gestualidade e aes sociais prprias de uma poca. Ao
preocupar-se com essa poca especfica e buscar acessar suas
sensibilidades, bem como a maneira dessa poca representar a si
prpria, seus homens, sua realidade, o historiador pode, com
proveito, recorrer ao texto literrio.
A julgar pelos trabalhos observados, nota-se na forma como a
historiografia brasileira vem trabalhando o tema, algumas diferentes
formas de estabelecer o dilogo entre literatura e histria so
vislumbradas, muito embora a demarcao entre os dois campos, nos
trabalhos avaliados, permanea clara.
15
Quase um Davi e Golias: Braslia, Contradies de uma
Cidade Nova e o embate entre o poder simblico dos
intelectuais e a coero do Estado
Lus Fernando Amncio Santos
Mestrando em Histria pela UFMG/ Bolsista Capes
A presente comunicao pretende partir do caso de Braslia,
Contradies de uma Cidade Nova (1967, de Joaquim Pedro de
Andrade), para pensar o choque que houve, durante a Ditadura
Militar no Brasil, entre intelectuais e o Estado. Pensamos que esse
filme, que sequer foi lanado, nos serve para refletir acerca da ao
dos artistas no perodo, que apareciam na esfera pblica, atravs do
poder simblico do grupo que pertenciam, para contestar a poltica
de ento. Todavia, essas reivindicaes contavam com represarias do
Estado, cujo poder policial anulava, em muitos aspectos, a liberdade
de expresso.
Palavras-chave: Cinema Novo, Ditadura Militar, poder
O sculo XX viu a categorizao de um grupo que viria a ter
importante atuao na esfera pblica: os intelectuais. O caso
Dreyfus, na Frana, o marco de seu surgimento. Esse episdio
data de 1898, quando Emile Zola escreve um texto intitulado
Jaccuse, publicado no jornal Aurore, acusando injustia e compl
militar no julgamento do capito Alfred Dreyfus. Apiam-no, em
manifesto, vrios escritores, artistas e professores universitrios,
entre outros.
Esse evento tem grande importncia por deixar marcada uma
postura dos intelectuais de impor sua autoridade na busca pela
16
verdade e pela justia. Os produtores de cultura, nesse momento,
tratam de impor a legitimidade que sua posio de pensadores
encerra em si, e opinam sobre assunto de poltica. Surge, ento, uma
categoria simblica:
O neologismo intelectual designa, originalmente, uma vanguarda
cultural e poltica que ousa, no final do sculo XIX, desafiar a razo
de Estado. No entanto, essa palavra, que poderia ter desaparecido
aps a resoluo dessa crise poltica, integra-se lngua francesa.
Se, por um lado, ela designa um grupo social, por outro, ela qualifica
uma maneira de se conceber o mundo social, pressupondo,
notadamente, uma oposio s hierarquias estabelecidas17
.
Assim, esse personagem, o intelectual, no fica restrito a esse
contexto, tendo destacada importncia no sculo XX. Depois da
Segunda Guerra, ele tem uma funo social cada vez mais
delimitada. Ele vai ao espao pblico se pronunciar sobre o que
considera certo, sendo que ter um posicionamento poltico se torna
obrigatrio. Ento, mais do que um representante da razo, o
intelectual passa a ser um engajado18. Para Edgard Morin, a
qualidade do intelectual no est necessariamente ligada sua
participao junto intelligentsia, mas ao uso da profisso por e
pelas idias (Apud: RODRIGUES, op. cit.: 402-403). At em reao
s atrocidades cometidas durante as duas guerras, o intelectual
17
RODRIGUES, Helenice. O intelectual no campo cultural francs: do caso Dreyfus aos tempos atuais. Revista Varia Histria, Belo Horizonte, vol. 21, n 34, julho de 2005, p. 400. 18
Nesse trabalho, utilizamos a noo de engajamento dada por Marilena Chau:
Tomada de posio no interior da luta de classes, como negao interna das formas de explorao e dominao vigentes em nome da emancipao ou da
autonomia em todas as esferas da vida econmica, social, poltica e cultural.
Diferente do idelogo, inserido no mercado, falando a favor do mercado. (CHAU, Marilena. O intelectual engajado: uma figura em extino?. In: NOVAES, Adauto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Companhia das Letras,
2006.)
17
entendia que era seu dever a ao, no se podia deixar que tais
eventos se repetissem.
Naqueles anos de ps guerra, principalmente nas dcadas
seguintes, o intelectual tornou-se quase um sinnimo de simpatia por
ideologias de esquerda. Na Frana e na maior parte dos pases
ocidentais, eles se tornavam membros de partidos comunistas,
pronunciavam-se a favor da Unio Sovitica (em conseqncia,
tentavam ignorar as ms notcias que vinham do governo de Stlin) e
mostravam-se esperanosos pelas revolues que se anunciavam no
Terceiro Mundo. Jean-Paul Sartre tornou-se uma espcie de
intelectual total. Sua militncia ideolgica, escrevendo livros sobre
poltica e pronunciando-se a respeito de conflitos, como a
independncia da Arglia, fez dele o maior exemplo de intelectual
nesse contexto.
Em nosso entendimento, ao vir a pblico pronunciar-se sobre
algum assunto de interesse geral, o intelectual exerce um poder
simblico, oriundo da legitimao de estar inserido
privilegiadamente em algum campo do conhecimento, ou das artes.
O que implica formar uma categoria dentre as diversas divises que
imprimimos ao mundo. Segundo Pierre Bourdieu, um poder
simblico seria
um poder de construo da realidade que tende a estabelecer uma
ordem gnoseolgica: o sentido imediato do mundo (e em particular,
do mundo social) supe aquilo a que Durkheim chama o
conformismo lgico, quer dizer, uma concepo homognea do
tempo, do espao, do nmero, da causa, que torna possvel a
concordncia entre as inteligncias 19
No Brasil, durante a ditadura estabelecida com o Golpe Civil-
Militar de 1964, diversas personalidades utilizaram dessa legitimao
na oposio ao governo. Na academia, esse embate foi ferrenho, mas
19
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1989, p. 09.
18
mais conhecida essa luta nos meios artsticos, musicais e no prprio
cinema. Questionou-se, principalmente, o desrespeito s instituies
democrticas, ao tirar da presidncia Joo Goulart, oriundo de uma
chapa eleita pelo voto popular. E, depois do Ato Institucional N 5, a
oposio clamou pela liberdade de expresso, violentada pelo
governo militar.
Porm, o Estado tinha um efetivo instrumento de proteo contra
os protestos: a fora policial. Com ela, perseguiu opositores, sejam
polticos ou da sociedade civil. Reprimiu manifestaes de repdio
s suas prticas. E silenciou vozes que destoassem de seu discurso.
o que ocorreu com Joaquim Pedro de Andrade e o documentrio
Braslia, Contradies de uma Cidade Nova20
.
Em 1967, o diretor Joaquim Pedro de Andrade foi convidado
pela Olivetti, empresa italiana especializada em artigos eletrnicos,
para realizar um curta-metragem sobre Braslia, a jovem capital
nacional. Tal iniciativa fazia parte de um novo direcionamento do
departamento de publicidade da multinacional, investindo no
financiamento de cultura. Foi dada equipe cinematogrfica total
liberdade de criao21
.
O diretor convidou o crtico de cinema Jean-Claude Bernadet
para colaborar no projeto, dado que ele j havia atuado na capital
federal como professor da UnB. Juntos com o arquiteto Lus Saia,
eles escreveram o roteiro para o documentrio. Lcio Costa e Oscar
Niemeyer foram entrevistados no Rio de Janeiro e, ento, a equipe
seguiu para Braslia, para as primeiras filmagens.
20
Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Ficha Tcnica: Direo: Joaquim
Pedro de Andrade Produo: Filmes do Serro Rio de Janeiro Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Lus Saia e Jean-Claude Bernardet Produtor delegado / Texto /
Narrao: K.M. Eckstein Montagem: Brbara Riedel Imagem: Affonso Beato 21
Muitas das informaes aqui presente sobre Braslia, Contradies de uma
Cidade Nova foram retiradas do texto homnimo, de Jean-Claude Bernadet,
presente no DVD de Macunama (1969, de Joaquim Pedro de Andrade), e
disponvel no site
19
O perodo era de efervescncia poltica, com o governo golpista
militar, e conseqente efervescncia cultural, em oposio aos anos
de chumbo que se apresentavam. O Cinema Novo, que no ano
anterior ao golpe ganhara fora com o lanamento e a repercusso
internacional de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e
o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, viu-se diante de uma
situao que no tardaria a ser problematizada em seus filmes. de
1967 Terra em Transe, tambm de Glauber Rocha, que talvez seja o
filme que tratou do ps 1964 de forma mais evidente (apesar de
deslocar a narrativa para a fictcia Repblica de Eldorado).
Jean-Claude Bernadet, importante crtico e historiador do
Cinema Novo, e Joaquim Pedro, membro do movimento, no
estavam alheios a esse contexto. A situao, no caso do
documentrio encomendado pela Olivetti, era atpica dentre as
propostas cinemanovistas, em geral, dedicavam-se a filmes autorais,
negando-se a produzir pelculas comerciais ou, nesse caso, filmes
encomendados. Porm, a total liberdade dada pela empresa italiana
fez com que Joaquim Pedro e Jean-Claude Bernadet dessem ao filme
contornos que o fazem reconhecvel dentro do movimento. Diferente
de um filme institucional, elogioso do modernismo que impregnava
Braslia, o documentrio tem um tom questionador. Apesar de seus
apenas sete anos de inaugurao, a Novacap j demonstrava os
problemas que se agravaram com os anos.
Podemos dividir Braslia, Contradies de uma Cidade Nova em
duas partes. A primeira ocupa-se de apresentar a cidade,
principalmente o Plano Piloto. Ao espectador explicada as divises
racionais presentes na concepo da cidade, sua organizao, alm
dos contornos imponentes de suas construes. Com algumas
construes no terminadas, a Braslia de 1967 apresenta, junto ao
cinza peculiar de seus monumentos de concreto, a predominncia do
vermelho da terra. A cidade ainda estava em processo de formao.
20
Na segunda parte do documentrio, o foco se distancia do Plano
Piloto rumo s cidades satlites. Abre-se a narrativa para entrevistar
os trabalhadores que levantaram a capital federal e, sem espao
adequado projetado para eles, formaram ao seu redor grandes
periferias. A equipe de filmagem entra nas casas, nas numerosas
famlias, conversam com imigrantes ainda nos nibus que os levam
para o novo desafio. Em comum, a esperana de encontrar algo
melhor do que a aridez do Nordeste que se deixa, ainda que em uma
situao de marginalizao, em uma cidade que no os esperava l.
De certa forma, o documentrio aborda relaes violentas cujo
tratamento artstico era incmodo aos dirigentes do pas. Pois no
deixa de ser uma relao de violncia a estabelecida entre os
trabalhadores que erguem a cidade, deixando suas terras de origem
para um territrio at ento desbravado, e o projeto de Braslia, que
no os inclua. Nas entrevistas, nota-se um ressentimento com essa
expulso, alm de relatos de violncia fsica, mesmo, nesse processo.
Braslia era para poucos.
Ou deveria ser. Pois esses trabalhadores, sem espao no Plano
Piloto, montam uma periferia inesperada, favelas verticais. E
continuaram chegando. Famlias de imigrantes nordestinos, mesmo
que as oportunidades de trabalho no Planalto Central no fossem
mais tantas quanto na fase de erguer Braslia, preferiam optar pelas
condies econmicas. Elas ainda eram melhores do que as deixadas
para trs.
Assim, outra violncia era estabelecida, dessa vez contra o
projeto de Braslia. O plano modernista do trio Juscelino Kubitschek,
Lcio Costa e Oscar Niemeyer, de construir uma cidade racional,
organizada, que levasse o desenvolvimento para o centro do Brasil,
acabou ganhando contornos indesejados. A utopia sofre uma
violncia: trazida para a realidade. O subdesenvolvimento devora a
cidade modelo, na forma de uma periferia quase to imponente
quanto seus belos prdios. Braslia, com toda sua racionalidade
21
urbana, rapidamente degenerou enquanto territrio social,
reproduzindo a irracionalidade poltica e os desajustes do resto do
pas22. E isso j se mostrava em 1967.
Nessa segunda parte, o filme encomendado torna-se Cinema
Novo: crtico, une o poltico ao social, no se deslumbra com a arte
arquitetnica ao questionar sua insero contraditria no plano da
ao. E, conscientemente ou no, a crtica atinge os prprios
cineastas, afinal, ao pontuar que a Novacap funciona como a arte
em geral, isolando-se das massas, no podemos deixar de pensar no
paradoxo do prprio Cinema Novo. Este, apesar de se propor um
cinema popular, viu-se restrito a poucos. Joaquim Pedro, bem
verdade, conseguiu quebrar essa barreira em seu filme seguinte,
Macunama. Mas, ainda assim, impossvel no constar que dentro
prprio cinema existem barreiras, uma espcie de dificuldade de
comunicao com determinados pblicos.
No que diz respeito inacessibilidade, esse foi o caso de
Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Mudanas no
departamento de publicidade da Olivetti geraram uma recepo
desencontrada com a postura inicial, de incentivar a liberdade de seus
realizadores. Ao exibir uma cpia quase finalizada do documentrio
aos novos responsveis desse setor, Jean-Claude Bernadet e Joaquim
Pedro viram uma reao contrariada. Sabiamente, a Olivetti preferia
no ter problemas com o governo brasileiro. Sequer a possibilidade
de verses diferentes para Itlia e Brasil agradou. O apoio da
multinacional ao filme acabou ali.
O curta-metragem foi exibido no Festival de Braslia de 1968,
em sesso no anunciada. Joaquim Pedro foi aconselhado a no
submeter o filme censura, pois, alm de uma liberao de
possibilidades mnimas, um mal estar com o governo militar era
22
BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade (Perfis do Rio, n11). Rio de
Janeiro: Relume Dumar, 1996, p.73.
22
perigoso. Alm das crticas ao projeto de Braslia, motivo de orgulho
cvico, o documentrio faz insinuaes sobre problemas com o
governo militar. o caso do trecho a respeito da UnB, projeto de ser
centro de excelncia intelectual, mas que teve dezenas de professores
deixando a cidade por falta de autonomia para desempenhar suas
funes.
Sem ser lanado comercialmente, o filme teve uma cpia
depositada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro. Braslia reapareceria nos anos 2000, restaurado, como extra
do DVD de Macunama.
No embate entre poderes em torno dessa pelcula, o do Estado,
ento dirigido por uma ditadura militar, silencia o dos intelectuais.
Era um governo que j comea desdenhando do sistema democrtico
ao dar o golpe em 1964. E essa lgica, a de que contra as armas no
h argumentao, seria levada ao limite durante os anos sombrios
que se seguiram. Liberdades individuais eram restringidas e
expressar-se s era permitido com o aval de censores. Pensar
politicamente diferente do direcionamento do pas era crime.
Desse mal, Joaquim Pedro de Andrade provou. Em 1966, junto
de Glauber Rocha, Mrio Carneiro, Antonio Callado, Flvio Rangel,
Mrcio Moreira Alves, Carlos Heitor Conny e Jaime Rodrigues, ele
participou de um protesto de ampla repercusso. Trajados de terno e
gravata, eles estenderam a faixa Abaixo a Ditadura diante de
autoridades que participariam do encontro da Organizao dos
Estados Americanos (OEA), que aconteceria no Hotel Glria, no Rio
de Janeiro. Foram presos, o ato poltico que planejavam. Desejar o
fim da ditadura lhes rendeu dez dias de recluso.
Em 1969, portanto aps o lanamento do documentrio tratado
aqui, o cineasta teve nova experincia carcerria. Ele, assim como
outros tantos intelectuais, estava sob vigia constante do DOPS. Nessa
ocasio, ele foi liberado rapidamente, pois a priso coincidiu com a
abertura do Festival Internacional de Cinema do Rio e o cineasta
23
Claude Lelouch protestou, negando-se a exibir seu filme sem a
liberao de Joaquim Pedro.
O governo militar imps-se com campanhas ufanistas,
celebrando o futebol, o civismo, o milagre econmico e uma
modernidade constituda de obras faranicas23
(ver: FICO, 1998).
Mas, para aqueles que no eram atingidos por essa estratgia, restava
a imposio da fora. Dessa histria, so inmeros os desaparecidos
que, por sua ausncia, acabam por cont-la.
Em Braslia, a atuao desse poder coeror se d de maneira
prvia, anterior ao. o temor de sofrer represarias do Estado que
faz a Olivetti retirar seu apoio ao filme. Da mesma forma, seus
realizadores no levam em frente a idia de lanar a pelcula e
contentam-se em arquiv-la. Dessa forma, o filme no cumpre sua
misso de comunicar ao pblico o pessimismo de seus realizadores
sobre a capital federal. A autocensura do documentrio evita que esse
poder simblico dos intelectuais atue. Uma opo por evitar o
confronto que, sem dvida, seria desigual. Nesse confronto com
Golias, Davi preferiu bater em retirada para evitar maiores danos.24
23
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginrio
social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1997. 24
Esse texto uma verso da comunicao O intelectual, a censura prvia e as vrias formas de poder, apresentado no VIII Simpsio de Histria da Universo- Campus So Gonalo.
24
Heris em Crise: Guerra Fria e Crtica Social em Watchmen
Michele Aparecida Evangelista Graduanda em Histria UFV [email protected]
Micheline Carmem Evangelista Graduanda em Histria UFV [email protected]
Cientes da importncia da imagem e dos meios de comunicao
para a sociedade contempornea e da relevncia do cinema como
fonte histrica para a compreenso do imaginrio e das relaes
scio-culturais de um dado momento histrico e sociedade, o intuito
desta comunicao analisar criticamente as representaes sobre a
Guerra Fria (1945-1989) e a concepo de heri presentes no filme
Watchmen (2009) dirigido por Zack Snyder, produzido por Lawrence
Gordon, Lloyd Levin e Deborah Snyder e o roteiro ficou a cargo de
David Hayter e Alex Tse.25
O filme Watchmen lanado em 2009 pela Worner Bros
baseado na Graphic Novel, escrita pelo roteirista Allan Moore e
ilustrada por Dave Gibbons sendo publicada em 1986 no formato de
12 edies pela DComics que revolucionou o conceito de
quadrinhos.
O longa-metragem que acompanha as inovaes da Graphic
Novel traz uma nova abordagem sobre os filmes de super-heris,
buscando reflexes no apenas artsticas, mas tambm e acima de
tudo discute questes polticas, ticas e sociais que ainda
permanecem na contemporaneidade.
Atravs da fico, os produtores apresentam uma verso acerca
de um contexto histrico marcado pelas transformaes sociais e pela
tenso: o conflito entre Estados Unidos e Unio Sovitica e seus
respectivos sistemas econmicos (Capitalismo e Socialismo),
25
Watchmen - o filme (Oficial web site). Disponvel em:
http://www.watchmenmovie.co.uk/intl/br/
25
conhecido como Guerra Fria (1945-1989). Este, assim como na
Histria em quadrinhos, representado no somente pelos
personagens e dilogos, mas tambm pelos elementos visuais e
objetos que muito mais do que comporem a cena e o cenrio em que
a trama se desenrola, possuem significaes que vo alm do
aparente, tendo funo preponderante na composio da narrativa.
No filme, no ano de 1985, numa realidade em que os super-
heris fazem parte do cotidiano das pessoas, um membro do grupo
de mascarados denominado Watchmen (os vigilantes) assassinado.
Rorscharch em busca do algoz de seu companheiro de equipe, diante
da possibilidade de se tratar de um assassino de mascarados,
consegue restabelecer a reunio dos demais vigilantes - um confuso
grupo de heris aposentados, dos quais somente um possui poderes
verdadeiros. Porm, ao longo da investigao mais ex-vigilantes so
envolvidos e Rorscharch percebe uma conspirao abrangente e
perturbadora com ligaes com o passado que eles dividiram e
catastrficas conseqncias para o futuro. 26
Os personagens principais so: Rorscharch (Walter Kovacs),
Comediante (Edward Morgan Blake), Dr. Manhattan (Jon
Osterman), Coruja II (Daniel Dreiberg), Espectro II (Laurie
Juspezyck) e Ozymandias Adrian Veidt.
A Guerra Fria (1945-1989) se constituiu como um dos
momentos mais importantes na histria contempornea e trouxe
transformaes polticas, econmicas e scio-culturais, o que
repercutiu nas produes literrias e artsticas deste momento.
Segundo Vicentini, trata-se de um conflito de vrios lados,
26
Watchmen - o filme (site oficial). Disponvel em:
http://www.watchmenmovie.co.uk/intl/br/
26
condizentes com as transformaes ocorridas no intenso sculo
XX.27
Entre 1979 e 1985, verificou-se o contra-ataque dos Estados
Unidos atravs das polticas neoliberais, de um maior investimento
militar, apoio a Guerra do Afeganisto, a criao da Fora de
Deslocamento rpida, o aumento da produo de bombas atmicas e
o desacato aos Acordos SALT II que exigia a reduo de armas
nucleares, gerando a intensificao da corrida espacial-armamentista
e da poltica de confrontao, com a instalao de msseis na
Europa.28
Com a crise na Unio Sovitica, no perodo que vai de 1985 a
1989, a Guerra caminha para o fim, e verifica-se um perodo de
retomada do dilogo. Porm, o clima de tenso e medo na sociedade,
mediante a probabilidade de uma guerra nuclear ainda permanecia.
Segundo Nncia Teixeira e Wyllian Correa, embora a Graphic
Novel Watchmen se insira numa fase mais amena da Guerra Fria, o
pessimismo e as incertezas ainda se fazem presentes:
A dcada de 80 assistiu falncia de ideologias, ao medo paranico
de uma guerra atmica, ao individualismo consumista, mistura de
conceitos nas teorias e de estilos na arte, disseminao de doenas
fatais, queda de regimes polticos autoritrios, emergncia de
novas potncias econmicas, preocupao com a destruio do
meio ambiente e volta do conservadorismo poltico e moral. 29
Este ambiente resgatado na adaptao para o Cinema, no qual,
assim como na HQ, a Guerra Fria muito mais do que um mero pano
27
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A Guerra Fria. In: FILHO, Daniel Aaro Reis
e ZENHA, Celeste (orgs.). O Sculo XX: O tempo das crises, Revolues,
fascismos e guerras. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. p. 198. 28
Ibidem. p.221. 29
ARON, Raymond apud. TEIXEIRA, Nncia Ceclia Ribas Borges e CORREA,
Wyllian Eduardo de Souza. Watchmen e o discurso distpico do bem maior. In: Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais. Abril/maio/junho de 2009, vol.6, ano VI, n.2. p. 5. Disponvel em: http://www.revistafenix.pro.br/vol19nicea.php.
Obtido em: 30/10/2010.
27
de fundo, pelo contrrio, ela um dos principais fatores que levam os
vigilantes a retomarem suas atividades e influenciam de forma
preponderante na postura em que estes vo seguir e os valores a
serem defendidos por eles durante a trama. Mas se a guerra intervm
no modo de pensar e agir dos heris, por outro lado, eles tambm
conseguem intervir nos acontecimentos e no prprio decorrer da
guerra: com a ajuda do Comediante e do Dr. Manhattan os Estados
Unidos vence a guerra no Vietn e a presena ou ausncia do
segundo interfere na reao dos soviticos e no andamento do
conflito.
Vale ressaltar, que de acordo com Hobsbawn, a Guerra do
Vietn - bem como a do Oriente Mdio, provocaria o
enfraquecimento dos EUA, embora no alterasse o equilbrio global
das superpotncias, ou a natureza do confronto nos vrios teatros
regionais da Guerra Fria, esta:
Desmoralizou e dividiu a nao, em meio a cenas televisionadas de
motins e manifestaes contra a guerra; destruiu um presidente
americano; levou a uma derrota e retirada universalmente previstas
aps dez anos (1965-75); e, [...], demonstrou o isolamento dos
EUA.30
A insegurana e a tenso so ressaltadas em todo o longa-
metragem e vrios fatos referentes ao conflito so mostrados, sejam
atravs dos flashbacks referentes ao passado dos personagens, pela
trilha sonora ou pelas discusses sobre o assunto nos meios de
comunicao.
Numa cena faz-se um panorama histrico do contexto retratado e
a trajetria dos super-heris desde os anos 40 com os Minuttemen at
os anos 70 que corresponde emergncia dos Watchmen, tendo
como trilha sonora a msica de Bob Dylan The Times They Are A-
30
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: O breve sculo XX /1914 1991. Traduo Marcus Santarrita: Reviso tcnica Maria Clia Paoli. - So Paulo:
Companhia das Letras, 1995p. 241
28
Changin' produzida neste contexto e que faz referncia direta ao
conflito. As cenas que so mostradas representam fatos do final da
Segunda Guerra Mundial, o assassinato do presidente Kennedy, a
Guerra do Vietn, o movimento hippie, a eleio de Nixon, a corrida
espacial-armamentista tanto americana quanto sovitica, onde
aparece Fidel Castro, presidente de Cuba, primeiro pas americano
socialista.
Um dos elementos fundamentais na narrativa dos quadrinhos e
que foi apropriada no Cinema, a utilizao de objetos como forma
de linguagem, ganhando um atributo simblico. o caso da carinha
sorridente Smiley manchada de sangue (apresentada nas capas da
HQ), o relgio do Juzo Final que est sempre marcando cinco
minutos para meia-noite e simboliza o quo prximo humanidade
est de sua destruio e os jornais que trazem as informaes sobre o
andamento do conflito.
Estes elementos visuais se constituem como meio de referncia
para o desenvolvimento da histria na qual so representados o
contexto e traduzem a sensao predominante na sociedade daquele
perodo: o pessimismo, a imprevisibilidade, j que a qualquer
momento poderia haver uma guerra nuclear que acabaria com o ser
humano e a presena constante da mdia e a influencia dos meios de
comunicao na disseminao do medo na populao sobre um
possvel ataque nuclear.
De acordo com Hobsbawn, geraes inteiras se formaram em
meio sombra de uma possvel guerra nuclear que poderia ocorrer a
qualquer momento e devastar a humanidade:
medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar
errado, poltica e tecnologicamente, num confronto nuclear
permanente baseado na suposio de que s o medo da 'destruio
inevitvel' [] impediria um lado ou outro de dar sempre o pronto
29
sinal para o planejamento do suicdio da civilizao. No aconteceu,
mas por quarenta anos apareceu uma possibilidade diria.31
Esta angstia quanto ao futuro presente, por exemplo, quando
a ex-Espectro I fala sobre o Comediante, e ao referir-se aos erros
deste, ela desabafa que todos os dias o presente parece mais confuso,
enquanto que os fatos do passado, mesmo os piores momentos, se
tornam cada vez mais cintilantes, demonstrando o quo saturno e
obscuro o futuro poderia ser, devido instabilidade do tempo
presente.
Segundo Carlos Andr Krakhecke, o conflito real no seria
possvel uma vez que, as potencias envolvidas tinham um arsenal
blico que poderia destruir uma e outra. Para o autor, a parania de
uma guerra nuclear se alimenta na simples possibilidade de alguns
dos plos pensar que possvel a vitria, ou ento, uma falha
humana ou tecnolgica iniciar a catstrofe. Isso no uma novidade
desse perodo da guerra fria. 32
Esta concepo pode ser percebida na fala de Adrian Veidt
(codinome Ozymandias), no qual, em uma entrevista a um canal de
televiso, o personagem justificando a necessidade de produo de
novos recursos de energia renovvel, argumenta que no seria
preciso ser cientista poltico para observar que a Guerra Fria no
seria ideolgica, mas sim baseada no medo de no ter o bastante,
mas se os recursos fossem inesgotveis, a guerra se tornaria obsoleta.
Tal percepo endossada por Hobsbawn argumentando que,
logo a obteno por parte da Unio Sovitica de armas nucleares,
ambas abandaram a idia de um ataque mtuo pois isso equivalia a
31
HOBSBAWN, Eric.Op.Cit.p.224 32
KRAKHECKE, Carlos Andr. A Guerra Fria da dcada de 1980 nas Histrias
em Quadrinhos Batman - O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. In: Histria,
imagens e narrativas. No. 5, ano 3, setembro/2007. Disponvel em:
http://www.historiaimagem.com.br. Obtido em: 30/10/2010.
30
um pacto suicida 33, desse modo, o que estimularia a continuidade
da Guerra Fria, seria portanto, a manuteno, principalmente por
parte dos EUA da supremacia mundial:
[] enquanto os EUA se preocupavam com o perigo de uma
possvel supremacia mundial sovitica num dado momento futuro,
Moscou se preocupava com a hegemonia de fato dos EUA, ento
exercida sobre todas as partes do mundo no ocupadas pelo Exercito
Vermelho. 34
Desde os primrdios da humanidade, o mito se constitui como
elemento fundamental de uma cultura e sociedade, pois, de acordo
com Marcos Fbio Vieira, atravs dos smbolos, os mitos
representam elementos de uma cultura alm de ser fator de
constituio de identidades coletivas por representarem os valores e
crenas de uma sociedade. Assim, como afirma Vieira, na
perspectiva de Eco: o homem, atravs de seus mitos, capaz de
representar todos os seus conceitos de grandeza, fora, bem e mal,
projetando-os em imagens simblicas que passam a encarn-los.35
Os mitos, assim como a arte, no se tratam de categorias
estticas, ao contrrio, so mutveis conforme o tempo e sociedade.
Ao longo das transformaes scio-culturais so reconfigurados,
ganhando novas significaes dadas s demandas e intencionalidades
de cada momento histrico.
Dentro do conceito de mitos, tem-se o heri, no qual,
independente da mdia ou produo artstica, o responsvel por
33
HOBSBAWN, Eric. Op.Cit. p. 227 34
Ibidem.p.231 35
VIEIRA, Marcos Fbio. Mito e heri na contemporaneidade: as histrias em
quadrinhos como instrumento de crtica social. In: Contempornea, no. 8, vol.1,
2007. Disponvel em:
http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_08/07MARCOS.pdf. Obtido em:
30/10/2010.
31
resguardar e transmitir os valores mais nobres e justos de uma
sociedade.36
Desse modo,
[...] cabe ao heri proteger e servir ao povo, a quem se apresenta
como depositrio de todas as esperanas e aspiraes. Assim, a
funo primordial do heri, seja qual for sua origem ou poca, seria
servir, velar, defender, vigiar. Ele , portanto, aquele que pe o
interesse coletivo acima de seus prprios, que se sacrifica por uma
causa, um ideal, por um mundo justo onde o bem-comum est acima
de tudo.37
No filme, ao longo da sequncia relativo ao surgimento dos
Minuttemen e Watchmen so mostradas o perodo apogeu dos heris
e a queda, com o trgico fim da maioria dos integrantes do primeiro
grupo e o surgimento do segundo. Percebe-se que atravs do
figurino, os criadores trazem a representao visual clssica e
moderna tanto do heri quanto do vilo. Os Minuttemen (1940)
trajam uniformes simples como fantasias feitas em casa e os viles
aparecem nas fotos trajando roupas listradas de preto-e-branco,
utilizando mscaras remetendo a sua condio de ladro assim como
explicita, por meio de sua expresso facial, a maldade esteretipos
muito presentes nos antigos quadrinhos e desenhos animados.
J no final desta seqncia em que os Watchmen aparecem, e
que predominar em todo o longa-metragem, esta representao se
modifica: os viles usam roupas normais e no utilizam mscaras,
enquanto os heris trazem um figurino moderno, de alta tecnologia,
correspondente no representao dos heris anteriores ou dos anos
80, mas uma verso atual (2009) sobre eles, como pode ser
observado nas roupas de Ozymandias, Coruja e Espectro II em que
36
Ibidem. p.82. 37
Ibidem. Loc.cit.
32
alguns dos materiais utilizados no existiam naquela poca, como
por exemplo, o ltex38
usado pela herona.
Deste modo, embora o diretor e roteiristas buscassem manter-se
o mais prximo possvel da histria apresentada na Graphic Novel,
introduziram novos elementos conforme a realidade e sociedade
vivida por eles verso original, o que refora a viso que concebe
estas obras como produes distintas, considerando as
especificidades de cada uma, ao mesmo tempo em que demonstra a
influncia do momento na sua produo.
Por meio desta apresentao os produtores do indcios sobre o
processo de redefinio do heri proposta na HQ que influenciou
tanto os quadrinhos posteriores quanto o Cinema contemporneo,
sendo explorado na verso cinematogrfica aqui analisada.
O diretor apresenta ao telespectador um novo tipo de heri,
distinto da verso idealizada dos filmes de super-heris clssicos, na
qual estes so pessoas comuns (exceo de Dr. Manhattan que possui
poderes), ambguos, solitrios e que possuem uma viso negativa a
respeito da sociedade e dos valores pregados por ela, explicitando um
profundo descrdito em relao humanidade. Comungam desta
viso, Rorscharch, Comediante e Dr. Manhattan, como pode ser
percebidas em suas falas:
A cidade tem medo de mim. Vi sua verdadeira face. As ruas so
sarjetas. Com esgotos cheios de sangue. E quando os canos
finalmente transbordarem... Todos iro se afogar. [...] E todas as
prostitutas e polticos voltaro os olhos para cima implorando: salve-
nos! E do alto, vou sussurrar: no! (Rorscharch. Watchmen, 2009)
Blake entendia, humanos so violentos por natureza. No importa o
quanto tente se fantasiar para disfarar. Blake viu a verdadeira face
da sociedade e optou por ser uma pardia disso, uma piada.
(Rorscharch. Watchmen, 2009).
38
Sobre o figurino dos personagens do filme Watchmen, ver entrevista com o
figurinista. Especial Watchmen. Disponvel em:
http://omelete.com.br/cinema/especial-Watchmen-o-filme/
33
A humanidade tenta se destruir desde os primrdios. Agora [com a
Guerra Fria e a possibilidade de uma guerra nuclear] tem o poder
para terminar o trabalho. (Comediante. Watchmen, 2009)
Estou cansado da Terra, dessas pessoas; cansado de me envolver na
complicao de suas vidas. Eles afirmam lutar para construir o
paraso, mas o paraso deles povoado por horrores.
[Porque salvaria este mundo] se no espero nada dele? (Dr.
Manhattan. Watchmen, 2009)
Como pode ser observado, estas falas vo contra um dos
principais pressupostos que caracterizam um heri na concepo
clssica de defensor dos seres humanos e de seus valores: eles negam
ajuda ao ser humano por acreditarem que eles no meream sua
proteo e desconstri a viso que os concebe como modelos de
perfeio a quem todos devem se espelhar, destituindo a urea
divinizada a que antes lhes eram atribudos. Agora estes convivem
com os problemas mundanos como qualquer outro mortal que possui
seus medos, traumas e angstias e que no caso dos Watchmen
tambm so afetados pelo contexto de instabilidade provocado pela
Guerra Fria.
Segundo Vieira, nas HQs o respeito pela vida e a justia sempre
foram uma obrigao moral irrevogvel para seus protagonistas,
agir contra estes princpios representaria negar tudo o que sua luta
representava.39 Em Watchmen, como podemos observar nas atitudes
dos personagens no seguem esta caracterizao, j que no hesitam
em matar e ferir em prol de seus objetivos.
Utilizando-se da perspectiva de Durkheimer, para o autor, este
seria um sintoma de anomia, j que em momentos de instabilidade, a
sociedade deixaria de agir regulada pelas leis e condutas
consideradas morais institudas por um determinado grupo.
O final da trama marca uma das diferenas cruciais entre a
Histria em quadrinhos e o longa-metragem e ressalta a mudana de
39
VIEIRA, Marcos Fbio. Op.cit. p.84.
34
significao no filme em relao obra original: Ozymandias o
responsvel pela morte de milhares de pessoas, porm enquanto na
graphic novel a catstrofe foi provocada por um monstro, na
adaptao para o cinema se deu pelo acionamento de bombas
nucleares.
Ambos foram criados pelo personagem que buscou se justificar
com o argumento de a morte de milhes salvou o fim de bilhes de
pessoas, j que devido destruio, as duas superpotncias
antagnicas se unem em solidariedade s vitimas, para combaterem
um inimigo comum: na HQ, o monstro, e no filme o Dr. Manhattan
(j que as pessoas acreditaram que fora este o causador). Percebe-se
na atitude do personagem a crena na concepo do quais os fins
justificariam os meios, levantando a questo sobre at que ponto um
heri pode intervir nos acontecimentos.
Segundo o diretor, a manuteno do monstro obrigaria a criao
de seqncias paralelas para criar uma conexo com o que o filme
quer passar, o que demandaria a reduo das cenas referentes aos
personagens, prejudicando a obra final. Alm disso, de acordo com
ele:
O 11 de Setembro aconteceu um dia depois de eu ter assinado o
contrato para escrever o filme. Ento senti que havia uma diferena
enorme entre ver a Times Square devastada com corpos mutilados
em 1985 e ver a mesma cena, com atores reais, em um filme, em
2000 e pouco.40
Dave Gibbons concorda com esta assertiva, em sua concepo:
O 11/9 foi um evento catastrfico real, sim, e uniu temporariamente
pessoas de raas e religies distintas. O problema que a
abordagem oficial foi to equivocada que acabou tornando as coisas
muito piores. Claro, a analogia no exatamente perfeita - na HQ
40
SNYDER, Zack. Em entrevista concedida ao site Omelete. Especial Watchmen.
Disponvel em: http://omelete.com.br/cinema/especial-watchmen-o-filme/. Obtido
em: 29-10-2010.
35
so duas faces opostas e uma terceira atacante -, mas aquelas cenas
de destruio foram estranhamente parecidas com as de Watchmen,41
Portanto, atualmente, numa sociedade em que o terrorismo um
fenmeno que preocupa o mundo inteiro, a substituio do monstro
pela bomba causa um impacto muito mais forte por estar mais
prximo realidade atual.
Deste modo, se para os criadores da Histria em quadrinhos, o
conflito no se constituiu em apenas um pano de fundo fictcio para o
desenvolvimento da histria, uma vez que se tratava de uma
realidade vivida por eles, para os responsveis pelo filme objeto de
nossa anlise, ele ganha um novo significado: atravs da retomada de
um contexto no passado, a pelcula busca discutir questes referentes
ao presente.
Nessa perspectiva, ressalta-se a importncia da imagem como
fonte histrica, j que a partir delas, trazem subsdios para a
compreenso sobre um momento histrico, bem como as demandas e
intencionalidades de quem as produziu.
41
GIBBONS, Dave. Em entrevista concedida ao site Omelete. Especial
Watchmen. Disponvel em: Ibidem. Obtido em: 29-10-2010.
36
Fazer cincia e viajar: Os relatos de viagem e sua
contribuio para uma histria das cincias no Brasil do
sculo XIX
Rayner da Silva Lacerda
Graduando em Histria - UFV
O presente trabalho prope a discusso do relato de viagem
como gnero literrio e de sua contribuio para a histria das
cincias no Brasil. Um dos objetivos do artigo, alm de uma anlise
dos relatos, o de demonstrar a importncia da narrativa de viagem
como veculo para a construo de uma histria da cincia, analisada
por meio de narrativas escritas por viajantes ingleses que estiveram
no Brasil durante o sculo XIX.
O prprio conceito de literatura de viagens complexo, visto
que se trata de uma classificao recente. Tal conceito procura
incorporar de forma independente um universo literrio, e tambm
cartogrfico e iconogrfico, todos constitudos por um corpus de
textos de natureza interdisciplinar42
.
Ilka Boaventura Leite considera os relatos de viagem como
fontes inesgotveis de informao, verdadeiras jazidas contento
grande variedades de pedras preciosas43
, podendo-se assim extrair
deles uma grande variedade de impresses, pois, cada viagem
constri um relato, de modo a sistematizar fragmentos do vivido, das
experincias, vivncias scio-culturais, expectativas e frustraes dos
viajantes.
42
SILVA, Wilton Carlos Silva da. As terras inventadas: discurso e natureza em
Jean de Lry, Andr Joo Antonil e Richard Francis Burton. So Paulo: Editora
UNESP, 2003. 43
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem : escravos e libertos em Minas
Gerais no sculo XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 13.
37
Embora se constituam como construes do vivido, os relatos de
viagem no apresentam somente a descrio de lugares fantsticos ou
costumes incomuns, mas representam uma fuso entre dois
mundos44
, onde a linguagem se alia ao vivido na construo de novos
alicerces simblicos. Ele fruto de uma experincia pessoal que
deseja ser compartilhada, estabelecendo conexes entre o vivido pelo
autor e o imaginado pelo leitor.
At por volta da dcada de 80, como reitera Miriam L. Moreira
Leite45
, os relatos de viagem vinham sendo aceitos sem maiores
anlises crticas e interpretativas, localizando-se fora de uma
perspectiva histrica. Como qualquer documento, os relatos de
viagem devem passar por um minucioso processo analtico, que torne
vlida a sua contribuio.
Em muitas anlises historiogrficas, o que vemos uma relao
mecanicista entre as narrativas e os contextos dos relatos produzidos
pelos viajantes e cronistas. Devido a simplificaes ou mesmo a no-
historicizao desses relatos, em muitos casos eles so reduzidos a
simples documentos descritivos. Essa uma preocupao constante
ao se utilizar os relatos de viagem como forma de se pensar uma
histria do conhecimento cientfico, pois, preciso que se interprete
as particularidades discursivas e a multiplicidade de questes
culturais presentes nas narrativas de viagem.
O mais interessante e instigante, ao lidar com este tipo de fonte,
se d justamente pelo fato de que os relatos de viagem constituem-se
em poderes capazes de atuar na mentalidade e na viso de mundo de
uma sociedade, transformando e influenciando o processo histrico.
por isso que o uso desses relatos na historiografia estabelece uma
proposta de reflexo, comparao e crtica, sobre as prticas,
costumes e valores vigentes.
44
SILVA, Wilton Carlos Silva da op. cit. p. 56. 45
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem: 1803/1900. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997. p.9.
38
As narrativas de viagem devem sofrer crtica rigorosa dos
historiadores, visto que esses viajantes partilhavam de vises
evolucionistas e civilizadoras que norteavam suas observaes.
Assim como devem ser levados em conta as condies em que os
prprios relatos eram escritos, visto que, muitas vezes eram feitos
posteriormente viagem e com a ajuda de outros escritores que no
necessariamente acompanharam o viajante em seu percurso.
Ressalta-se ainda o carter comercial de muitos relatos, onde
paisagens eram modificadas e percepes eram revistas com o intuito
de atender a demandas editoriais.
Ainda sobre as questes editoriais, em The Rhetoric of Empire,
David Spurr aponta que o narrar comea com o ato de olhar46
. Aquilo
que o viajante v est condicionado por sua prpria estrutura
ideolgica. O viajante, enquanto tradutor e intrprete de uma cultura
alheia e ao sistematizar suas impresses no texto, est ciente da
audincia qual sua narrativa dirigida, adaptando dessa forma o
seu discurso realidade. Desse modo, cada viajante, ao escrever seus
relatos, seleciona as imagens que quer transmitir ao leitor, atitude
tomada intencionalmente47
, e justamente essa escolha que nos
permite analisar sua viso de mundo.
Por meio da anlise de Marie Louise Pratt48
, o historiador reflete
sobre alguns aspectos da literatura de viagem, abordada por meio de
uma analogia entre a acumulao de capital e a sistematizao da
natureza. A literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de
cultura, educao e lazer das classes mdias europias e norte-
americanas, construindo, entre outras coisas, um repertrio comum a
respeito dos povos estudados e um consenso sobre a necessidade da
46
SPURR, David. The Rhetoric of Empire. Durham & London: Duke University
Press, 1993. p. 13. 47
LEITE, Ilka Boaventura. op. cit. 48
PRATT, Mary Louise. Os olhos do imprio: relatos de viagem e
transculturao. So Paulo: EDUSC, 1999.
39
interveno do europeu em um mundo que ento se esboava. No
nenhuma novidade que esses relatos passam a circular livremente
pelo Velho Mundo, seja com o surgimento de instituies que os
popularizavam ou mesmo como forma de literatura, penetrando em
todas as camadas sociais49
.
Uma abordagem interessante ao trabalhar com os relatos de
viagem o fato de descobrir, assim como demonstra Campos50
, que
muitas vezes esses esboos imaginrios feitos pelos viajantes de certa
forma condicionavam a forma em que a Europa pensava e agia em
relao ao Brasil. Portanto, as descries de viajantes so como
imagens que estabelecem representaes do real. Produzidas a partir
de componentes ideolgicos de sujeitos dotados de arcabouos
culturais prprios e que trazem um patrimnio anterior que
condiciona o modo de observar e entender o emprico.
Para que os relatos de viajantes sejam utilizados como fonte
histrica, necessrio que o historiador decifre e interprete os seus
significados, articulando o texto ao seu contexto especfico.
Corroborando com os ideais de Roger Chartier51
, as representaes
como produto de vivncias sociais, so as quais geram o contexto em
que as imagens so produzidas. Sua anlise nos leva a pensar o
caminho para decifrar a construo de um sentido em um
determinado processo.
O falar sobre tornar real, de modo que os discursos dos
viajantes constituem-se como um esforo de dar realidade e
inteligibilidade ao que se v por meio das representaes. So essas
narrativas as responsveis por servirem de elo entre o mundo
49
DIAS, J.S. da S. Os descobrimentos a problemtica cultural do sculo XVI.
Lisboa: Editorial Presena, 1988.) 50
CAMPOS, Pedro Moacyr. Imagens do Brasil no Velho Mundo. In: HOLANDA,
Srgio Buarque de (Org). Histria geral da civilizao brasileira. Rio de Janeiro:
Difel, 1972. V.1, t.2. 51
CHARTIER, Roger. A histria cultural. Entre prticas e representaes.
Lisboa, Difel, 1990.
40
vivenciado e um outro no conhecido, dando assim familiaridade ao
no familiar, promovendo uma espcie de interseo entre aquilo que
vivenciado e aquilo que idealizado.
Por meio de uma perspectiva cultural, os relatos de viagem
situam-se como uma rica fonte para a compreenso do passado, das
permanncias e das transformaes discursivas52
, em que se
misturam o carter subjetivo do narrador e as bagagens culturais que
condicionam sua percepo da realidade. Permitindo assim, perceber
quais as suas prticas sociais e polticas, assim como o contexto em
que ele se insere.
Desse modo, o relato de viagem, longe de ser uma narrativa
inocente, uma das formas de conquista em que o viajante, a partir
de sua prpria estrutura conceitual, integra os novos territrios e, por
extenso, o colonizado, ao seu mundo, projetando geogrfica e
textualmente um universo de saberes e poderes sobre eles.
Pratt argumenta que tais prticas de estabelecimento de
significado codificam e legitimam as aspiraes de expanso
econmica do imprio53. Dessa forma, esses relatos so vistos como
construes coloniais de significado, procurando compreender como
o escritor ocidental representava e se apropriava de uma forma
coerente para o ocidente, daquelas realidades incompreensveis com
as quais se confrontava no mundo no ocidental.
O principal ponto a ser percebido que os relatos, aliados as
crnicas e a cincia, possuem a capacidade de dar inteligibilidade ao
mundo. Os naturalistas viajantes faziam parte de um corpo de
conhecimento que buscava interpretar o mundo, seja por meio da
classificao e catalogao das diversas espcies ou mesmo o estudo
das diferentes sociedades humanas.
52
SILVA, Wilton Carlos Silva da op. cit. 53
PRATT, Mary Louise. op. cit.
41
Aquele que pratica as cincias algum provido de uma
determinada cultura, que foi moldado por uma determinada
conjuntura social, ou seja, aquele que produz cincia no a produz
sozinho, visto que dialoga com seus pares, compartilhando idias e
atividades. Aculturado num conjunto de prticas, de tcnicas, de
habilidades manuais, de conhecimentos materiais e sociais, ele
parte intrnseca de uma comunidade, de um grupo, de uma escola, de
uma tradio, de um pas, de uma poca.
A criao de sociedades cientficas, as expedies botnicas de
Lineu e de seus discpulos pelo mundo, as descries da fauna e flora
que se constituem como os alicerces da biologia moderna, e mesmo o
estabelecimento da teoria da evoluo paradigma do seu tempo no
que tange ao conhecimento cientfico foram todas realizaes de
viajantes e seus textos cientficos fundamentados em relatos de
viagem.
aceito pela historiografia da cincia que ao longo dos sculos
XVIII e XIX, as viagens cientficas foram se especializando, o que
conseqentemente passou a ser refletido nos relatos produzidos nesse
perodo. So essas transformaes nos discursos produzidos que
podem ser analisadas pelo historiador que busca compreender o
papel desempenhado pela cincia em determinado contexto.
Os viajantes ingleses cumprem um papel de destaque nesse
quesito, pois, desde a abertura dos portos, eles se aventuram pelas
terras brasileiras em busca de deleite, conhecimentos e riquezas.
Como o ingls John Mawe54
, o primeiro a obter licena para viajar a
Minas Gerais. Interessado pelo estudo da regio mineira (assim como
pela possibilidade de se engajar no comrcio de pedras) Mawe
aborda em seu relato desde aspectos culturais, aos processos de
54
MAWE, J. Viagens ao Interior do Brasil. So Paulo: Ed.Universidade de So
Paulo, 1978. Coleo Reconquista do Brasil, v.33.
42
retirada do ouro, dando importantes contribuies ao conhecimento
geolgico brasileiro.
Charles James Fox Bunbury, nobre ingls, 8 baro de Bunbury,
foi outro interessante viajante britnico a se aventurar pelo Brasil.
Gelogo e naturalista, suas consideraes so remetidas
principalmente a questes da fauna, flora, aos aspectos geolgicos
das regies mineradoras, assim como a conformao geogrfica das
paisagens e prpria histria da minerao. Seu relato contribui de
forma muito interessante para a construo de uma histria da
institucionalizao do conhecimento cientfico no Brasil.
Enfim, o fato que muitos desses viajantes ingleses escrevem
em seus relatos caractersticas dos costumes, culturas, condies da
escravido, aspectos econmicos e sociais da sociedade brasileira.
Mas nem por isso seus relatos deixam de ser importantes para a
histria das cincias.
Atrelados a essas observaes, esto descries tcnicas da
minerao, da geologia das regies explotadas, assim como as
condies e a natureza das espcies encontradas pelo caminho. So
observaes que precisam ser garimpadas pelo historiador da
cincia, para que o mesmo consiga informaes pertinentes ao seu
objeto. o que podemos perceber nos relatos produzidos no s
pelos autores citados anteriormente, mas por outros viajantes ingleses
que estiveram no Brasil, tais como George Gardner, Richard Francis
Burton, James W. Wells, Marianne North, Alexander Caldcleugh e
outros que ainda esto por ser descobertos.
por isso que a crtica a esses relatos mostra-se fulcral para que
o historiador possa tirar proveito dessas narrativas e consolidar uma
histria das cincias que se encontra nas entrelinhas dos discursos.
As narrativas de viagem podem e devem ser usadas como forma de
se pensar o conhecimento cientfico acerca do Brasil so s
oitocentista, mas de todas as temporalidades.
43
Os diversos viajantes perfazem um sculo de presena britnica
no Brasil, registrando, cada um ao seu modo, as vrias etapas em que
o conhecimento cientfico se consolida. Ainda que muitos desses
viajantes venham para o Brasil com o discurso subjacente da
racionalidade e da misso civilizadora, com a premissa de inquirir
acerca da possibilidade de domesticar o territrio - abrindo assim o
caminho para que o Brasil faa parte do Greater Britain - o territrio
informal da Inglaterra, pode-se sim pensar um discurso cientfico a
partir das diferentes narrativas feitas em suas viagens.
Os relatos de viagem, tomados como uma via de acesso para se
chegar ao conhecimento cientfico, operam para produzir um Brasil
que pudesse provar, pelas palavras dos gelogos, botnicos e
naturalistas que aqui estiveram, sua utilidade como fonte de riquezas
e de repercusso dos saberes cientficos que se afirmavam ao longo
de todo o sculo XIX.
44
Das imagens cinematogrficas e audiovisuais
s imagens da histria
Suzana Cristina de Souza Ferreira
Doutora em Histria UFMG Editora Crislida BH MG
Ao estudar a relao Cinema e Audiovisual, conhecimento e
sociedade um dos muitos aspectos interessantes com os quais se
depara a percepo de como as propostas estticas de cada perodo
esto no s relacionadas a questes sociais, culturais e polticas de
seu tempo, mas tambm estabelece uma relao sutil com algo
maior, uma espcie de guia, de orientao para como se deve
perceber o mundo55
. Sem dvida alguma, o cinema participa deste
estado de coisas, e seus processos de transformaes se deram
diretamente relacionados aos dos registros perceptivos do olhar, do
som, da viso, do tempo e do humano. Assim, com tal perspectiva,
no difcil supor que todos os cineastas tiveram um comeo,
independentemente da poca ou do lugar, afinados com o seu tempo.
Podem-se tomar como exemplo os irmos Lumirs com suas
experimentaes em busca de um uso industrial e comercial para a
sua inveno o que resultou j numa linguagem porque atravessados
pelas questes do seu tempo. O mesmo raciocnio cabe para os
primrdios do filme documentrio com realizadores como Flaherthy
e Alberto Cavalcanti56
. A mesmo linha de pensamento vale tambm
55
FERREIRA, Suzana Cristina de Souza, Cinema Carioca nos anos 30 e 40. Os
Filmes Musicais nas Telas da Cidade. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte
PPGH-UFMG, 2003. 56
Robert Joseph Flaherty (1884, Iron Mountain, Michigan, EUA - 23 de Julho de
1951, Brattleboro, Vermont, EUA), considerado como um dos pais do
documentrio nos primrdios do cinema. o inventor da docufico Nanook of the
North (1922).O termo documentrio foi utilizado, numa das primeiras referncias
ao genero, no jornal New York Sun, num artigo escrito pelo realizador britnico
45
para hoje, quando se tem em mira realizadores com mais de cem
anos de cinema s suas costas como um Wan Kar Wai, (com
produes de uma extrema economia esttica, mas onde a narrativa
est presente em toda a sua complexidade e exuberncia), assim
como as produes de Jerry Bruckheimer nas suas mais celebres
sries para a televiso (Without a Tracy, Cold Case, CSI entre outras,
e para no ser negligente bom mencionar o maior sucesso dos
ltimos cinco anos nas TVs do mundo, a srie Lost, que no do
mesmo produtor), Vladimir de Carvalho e Eduardo Coutinho no
documentrio brasileiro. Seguindo essa linha de pensamento ficam
poucas dvidas que estudar a relao entre as diversas reas do
conhecimento e a Teoria do Cinema e do Audiovisual sobre como
tal investigao implica tambm repensar a maneira como o homem
percebe o mundo, como percebe a si, como percebe a prpria
John Grierson, tambm um dos primeiros a cultivar esse genero de cinema .
Flaherty produziu e realizou em 1922 o primeiro filme documentrio de longa-
metragem com sucesso internacional: Nanook, o Esquim. Este filme
considerado como a primeira obra cinematogrfica em que implicitamente
desenvolvido o conceito de antropologia visual. Alberto de Almeida Cavalcanti
projetou cenrios para cineastas experimentais franceses na dcada de 20 e dirigiu
seu primeiro filme em 1925. Mudou-se para a Inglaterra em 1934, fazendo
documentrios e, depois, filmes influenciados por documentrios nos Estdios
Ealing. Em 1949, retorna ao Brasil e ajuda a organizar a Companhia
Cinematogrfica Vera Cruz (em So Bernardo do Campo, SP), sendo convidado a
tornar-se o produtor-geral da empresa. Roteiriza e produz os dois primeiros filmes
da empresa, "Caiara" (1950) e "Terra Sempre Terra" (1951), e produz, at o
meio, "ngela" (1951). Fora dos estdios de So Bernardo, dedica-se elaborao
de um anteprojeto para o Instituto Nacional de Cinema, a pedido de Getlio
Vargas. Na Cinematogrfica Maristela (em So Paulo), o cineasta dirige "Simo, o
Caolho" (1952). No final do ano de 1952, Alberto Cavalcanti e mais um grupo de
capitalistas compram a Maristela, a qual muda de nome para Kino Filmes nesta
nova empresa ele realiza as obras "O Canto do Mar" (1953) - refilmagem, no
Recife, do europeu "En Rade" (1927) - e "Mulher de Verdade" (1954). Com o fim
da Kino, ele vai trabalhar na TV Record e depois estria, no Brasil, como diretor
teatral. Em 1954, Cavalcanti volta a Europa, contratado por um estdio austraco.
BERNARDET,Jean-Claude & RAMOS, Alcides Freire. Cinema e Histria do
Brasil. So Paulo, Contexto, 1988.
46
histria. Muitas vezes, olhar para este passado/presente de imagens
se torna uma forma de reconhecimento do futuro.
O cinema e o audiovisual e a sua contribuio para a construo
do imaginrio social na histria da humanidade,
contemporaneamente, so tambm invenes da histria. Isso
possibilita como proposta pedaggica operar uma ampliao das
correlaes que possam existir entre as anlises da concepo e
realizao de um ou mais produtos (filme, sries, programas para TV
blogs, sites etc.), com a bibliografia e o conhecimento da rea
especifica, das outras reas envolvidas sem desconsiderar a
percepo de mundo do realizador57
.
A existncia de um ntimo dilogo entre concepo,
conhecimento, bibliografia e realizao com as ideologias, o tempo,
a histria, a memria, a verdade est cada vez mais presente em uma
sociedade que potencializou o suporte digital para muito alm do
analgico e alavancou os mais variados formatos para TV, cinema,
computadores, celulares, DVD player, em sntese, a comunicao de
massa. Hoje, estas so ferramentas importantes para uma escritura da
vida individual e coletiva e, fundamentalmente, so importantes
como mediadoras para a compreenso das complexidades do mundo
contemporneo. Alm disso, a significao e a re-significao do
passado e do presente, nestes formatos, passam a ter importncia
fundamental n