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História

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIOSA

    ANAIS

    II SEMINRIO NACIONAL PRTICAS SOCIAIS, NARRATIVAS VISUAIS, RELAES

    DE PODER: VISES CONTEMPORNEAS

    VIOSA - MG

    2012

  • Reitor da UFV: Luiz Cludio Costa

    Diretor do CCH/UFV: Walmer Faroni

    Chefe do Departamento de Histria: Jonas Maral de Queiroz

    Coord. do Curso de Histria: Maria da Conceio Francisca Pires

    Comisso Organizadora

    Maria da Conceio Francisca Pires (UFV)

    Patrcia Vargas Lopes de Araujo (UFV)

    Taiane Cristina da Silva (UFV)

    Monitores

    Adriano Braz Maximiniano

    Aline Viana Tom

    Ana Paula Sena Gomide

    Arthur Rodrigues Pinheiro

    Cilsia Lemos

    Darlan Luiz Silva Santos

    Eliane Aparecida Duarte Batista

    Emlio Gomes de Andrade

    Fernanda Generoso

    Joo Marcos Ferreira de Paiva

    Juliana de Souza Cazadei

    Luana Aparecida Almeida Paiva

    Lucilene Macedo da Costa

    Matheus Toledo de Coelho

    Marcus Vincius Reis

    Michele Aparecida Evangelista

    Micheline Carmem Evangelista

    Natlia Fraga de Oliveira

    Nbia Bastos Reis

    Rmulo Nascimento Marcolino

    Tatiana Maria Fontes da Silva

    Thiago Henrique Mota Silva

    Arte

    Thiago Araujo

    Fotografia

    Srgio Silva

    Realizao

    Departamento de Histria UFV

    Apoio

    FAPEMIG - CNPq

    ISBN: 978-85-63224-09-5

  • 3

    SIMPSIO TEMTICO 01

    DILOGOS DA HISTRIA COM O CINEMA E A LITERATURA:

    A NATUREZA DOS DISCURSOS

    COORDENADORES: LORENA LOPES E LUS FERNANDO AMNCIO

    A literatura como objeto para a nova Histria: renovao

    da Escola dos Annales e respostas da historiografia

    brasileira

    Lorena Lopes da Costa1

    Na dcada de 70, um grupo de historiadores e estudiosos das

    cincias sociais em geral, encabeados por Le Goff e Pierre Nora,

    no apenas elencou e discutiu uma lista de objetos que se acreditava

    serem pertinentes e ricos para a pesquisa histrica, indo desde a

    cozinha poltica, desde o fato propriamente festa, como, ao faz-

    lo, deixou claro o caminho que se reivindicava como aquele que seria

    o da nova histria. Marcada pelas inovaes terico-metodolgicas

    da Escola dos Annales, dirigida ento por outra gerao, diferente

    daquela de Lucien Febvre, os trs volumes que compem a Nova

    Histria calharam como um manifesto acerca da expanso do

    territrio de atuao do historiador. De forma que, por inovadoras

    que fossem as primeiras proposies dos Annales, como as

    proposies de Febvre, para se trabalhar com documentos pouco

    visitados at ento na histria da historiografia, como o caso da

    literatura, os anos 70 marcaram o esgotamento do modelo e

    1 Mestranda da linha Histria e Culturas Polticas, do Departamento de Histria da

    UFMG. Bolsista do CNPq.

  • 4

    apontaram, portanto, para a necessidade de explorar mais e melhor

    determinados objetos.

    Jean Storobinski foi quem, em Histria: Novas Abordagens2,

    dedicou-se a pensar a relao entre o texto literrio, como objeto, e

    seu intrprete, podendo ser, ele mesmo, o historiador. Storobinski

    caminha em seu manifesto por dualidades. A escolha de um objeto

    de estudo uma dupla escolha: porque ela ocorre em funo dos

    meios que se tem para explorar tal objeto, de tal maneira que eles

    determinam a escolha do objeto, mas tambm porque se escolhe os

    meios ou ferramentas em funo do objeto. O pesquisador , no

    entanto, a fonte exclusiva dessa dupla escolha. Ele se faz presente na

    escolha do objeto, impossibilitando-a de ser prensada como um ato

    ingnuo.

    O objeto literrio, segundo Starobinski, foi tratado pela tradio

    como algo que poderia ser aproveitado apenas se fosse bem

    trabalhado, a fim de que, liberto dos excessos e corrupes, tornado

    legvel e confivel em seu primitivo estado, pudesse revelar a

    verdade A verdade do objeto literrio s seria acessvel, para a

    tradio, aps esse processo de depurao, que, terminado, abria

    espao para que fossem postas as interrogaes do estudioso. Nessa

    acepo, a obra tida como acabada. O empenho do historiador por

    acessar o passado da obra, guardado por ela mesma, por mais que

    entremeado em seu vu.

    A ideia de uma obra acabada, porm, despertou e desperta ainda

    um leque de incertezas. A prpria verso final pode ser, nalguma

    medida, uma soluo que revela certas variantes, mas nega ou

    interrompe outras. Na obra, h camadas, e cada uma delas trava um

    dilogo inevitvel com a literatura predecessora. Ela porta mltiplas

    2 Ver STAROBINSKI, J. A literatura: o texto e o seu intrprete. In: NORA,

    Pierre; MESQUITA, Henrique.; LE GOFF, Jacques. Histria: novas abordagens.

    Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 200 p.

  • 5

    ligaes com um horizonte que, por isso, no se pode separar dela e

    que, portanto, integra-a tambm e, ainda, ajuda a dar o tom de sua

    singularidade.

    Avanando em relao abordagem tradicional, Starobinski diz

    de uma preocupao primeira daquele que escolheu a obra literria

    como objeto. preciso garantir a esse objeto a consolidao de sua

    existncia, sua autonomia. preciso que a obra possa afirmar todas

    as suas determinaes particulares. Elas subtrairiam o objeto a uma

    anexao ilusria. Seria necessrio, enfim, fazer um investimento

    objetivo para resgatar na obra aquilo que ela oferece de forma

    anloga quando se depara com sua subjetividade: a obra oferece

    resistncia ao leitor ou intrprete que no quer pagar o preo da

    travessia do espao interposto3. O paradoxo que o que resiste na

    obra exige tanto o investimento objetivo quanto o subjetivo por parte

    do leitor e, especialmente, do crtico. A obra revela a si prpria, na

    medida em que seu intrprete desvenda, nela mesma, suas ligaes

    com o mundo.

    Na proposta de Starobinski, a pesquisa histrica e a descrio

    estrutural da obra esto, claramente, interdependentes. Mais que isso:

    a conscincia das estruturas internas da obra deve guiar a pesquisa

    histrica, por meio da qual se busca seus antecedentes, sua

    vizinhana, seu horizonte enfim. Da mesma forma, as ideias, as

    palavras que compem sua estrutura interna nada perdem com os

    apontamentos acerca de suas caractersticas externas.

    O sucesso da empreitada crtica marcado, diz Starobinski, por

    aproximar o leitor de uma espcie de totalidade, auxiliando-o a ver

    melhor os elementos e a forma como eles se relacionam nessa

    totalidade. Nela, o crtico deve respeitar em seu objeto aquilo que lhe

    foge ao alcance. Quanto aos mtodos, evidentemente, uns se

    mostraro melhores, mais esclarecedores. Mas o intrprete mesmo

    3 STAROBINSKI; 1976; p.133.

  • 6

    que dever assumir seus riscos, que no se restringem escolha do

    mtodo, mas tambm se do com a escolha da prpria obra, seu

    gnero, se um ttulo apenas do autor eleito ou mais de um, os pontos

    de comparao, as referncias. Nem quanto ordem ou

    organizao propriamente da crtica, Starobinski pode adiantar o

    caminho.

    Embora da dcada de 70, os escritos de Starobinski dizem de

    uma tendncia acentuada at hoje por parte da crtica, qual seja a do

    estudo crtico atribuir mais importncia ao estudo do texto,

    investindo na anlise interna. Essa anlise interna, no obstante,

    pontua o autor, no empecilho para que se considerem os dados

    externos. O texto, afirma Starobinski, ao ser escolhido, aponta para

    uma regio intratextual, que o extravasa e que, assim, aponta para o

    mundo que lhe exterior, de modo que, se for insensvel aos ecos

    externos do texto, o crtico no poder buscar a lei que vigora em seu

    universo interno. Mesmo que se priorize um dos dois lados,

    Starobinski pontua que o limite entre eles provisrio, alterado

    pelo movimento de ir e vir que deve ser o movimento da crtica.

    Starobinski diz, por fim, de uma espcie de misso do intrprete,

    que opera uma passagem, como a origem mesma da palavra indica,

    do latim interpres, que denota agente entre duas partes:

    ela aparece como um deslocamento, no interior da mesma lngua, de

    uma mensagem formulada num cdigo considerado metafrico a

    uma mensagem formulada num cdigo considerado como o veculo

    do sentido prprio4.

    A literatura como fonte fecunda: um manifesto no Brasil

    Tambm no cenrio nacional dos estudos metodolgicos, a

    literatura foi pensada enquanto objeto para o historiador. Em projeto

    similar quele dos anos 70 produzido por estudiosos franceses que

    buscaram, em parte, renovar os esforos iniciais da Escola dos

    4 STAROBINSKI; 1976; p.141.

  • 7

    Annales, surgiu no Brasil uma coletnea cuja preocupao foi

    igualmente explorar diferentes objetos, em potencial, frteis para o

    trabalho do historiador5: as fotografias, as obras literrias, as cartas,

    os dirios, os discursos e os pronunciamentos, os testamentos, os

    inventrios, os registros paroquiais e civis, os processos criminais, os

    materiais produzidos por rgos de represso e o patrimnio cultural.

    Antonio Celso Ferreira, como Starobinski, foi em O historiador

    e suas fontes, o responsvel por visitar a tradio e explorar as

    possibilidades de relao epistmica que se pode estabelecer entre

    literatura e a histria. Uma delas, consolidada pela historiografia

    tradicional e mesmo por parte da crtica literria que trabalha com

    interpretaes histricas, segundo o autor seria aquela que enxerga a

    literatura enquanto fonte, num sentido geral, mas claramente

    hierarquizado. Fontes literrias, nesse sentido, podem ser canais

    promissores para a busca de respostas6.

    Ferreira afirma que a delimitao da fonte especificamente

    literria exige, a priori, uma explicao. O motivo de se estudar

    histria por meio de fontes literrias deve ser, ele prprio, um objeto

    de reflexo, de tal maneira a questionar qual a concepo de

    literatura est em jogo e como a sociedade coeva a enxerga. O autor

    pontua, ainda, que o pesquisador da histria deve, sim, estudar a

    estrutura interna das obras literrias, mas no sem compreend-las

    em seu contexto histrico e social, em afinidade com Starobinski.

    Esse esforo de compreenso exigiria, inevitavelmente, a consulta a

    fontes diversas da poca orientao recorrente em boa parte dos

    estudiosos da literatura, que, como em obra de Lucien Febvre, acaba

    por revelar uma espcie de desconfiana do historiador diante do

    objeto literrio.

    5 Ver FERREIRA, A.C. "Literatura: a fonte fecunda". In: PINSKY, C. B.; LUCA,

    T.R. de ( org.). O historiador e suas fontes. So Paulo: Contexto, 2009, p. 61-91. 6 FERREIRA; 2009; p.80.

  • 8

    No intuito de auxiliar o historiador, o estudioso brasileiro elenca

    tanto perguntas para se enfrentar a fonte quanto mtodos, amide

    oriundos de outros campos e habilitados a oferecer diferentes

    caminhos para se trabalhar o texto literrio. Haveria, segundo

    Ferreira, perguntas elementares para investigao de tal natureza.

    Elas contemplariam desde o ambiente de criao da obra, o ciclo

    intelectual e os segmentos sociais com os quais se relacionou o autor;

    as escolhas na criao da obra, como, por exemplo, no que concerne

    ao gnero narrativo, bem com a relao do texto com a realidade

    circundante, na qual se busca identificar as representaes do mundo

    social, os desejos, as angustias e frustraes compartilhadas pela

    coletividade. Em relao aos mtodos, eles, de fato, podem auxiliar o

    historiador na explorao mais perspicaz da fonte literria, mas seu

    objetivo no deve se confundir com o pesquisador das outras reas,

    como por exemplo, da crtica literria ou da teoria esttica.

    Qualquer que seja o norte do historiador que se debrua sobre

    uma fonte literria, o autor sugere que o mtodo seja sempre

    construdo a partir ou ao longo do contato do pesquisador com seu

    objeto e que, alm disso, para se lidar com textos literrios, um

    elemento se some ao mtodo. Tal elemento advm de um modo

    especial de sensibilidade que esses textos, quais sejam os literrios,

    requerem, embora a classificao possa ser til na tentativa de fugir

    dos anacronismos.

    O historiador, ademais, no pode se restringir lgica dos

    textos. Seria preciso fazer comunicarem entre si, como j reza o

    lugar-comum, texto e contexto, a fim de focar a viso nas marcas que

    a sociedade deixou no texto, por um lado, e, por outro, entrever o

    significado do mesmo texto na sociedade que o gesta. A regio

    intratextual, da qual fala Starabonski, indiretamente confirmada

    pelas orientaes metodolgicas de Ferreira.

    O autor chama ateno, em seu estudo, sobre o perigo redutor

    que o rtulo apresenta. No poucas vezes simplificada, a literatura,

  • 9

    nomeao para um conjunto de gneros, revelaria muitas variaes

    mesmo dentro de um mesmo gnero. Mais frtil que enquadrar uma

    obra em um gnero pressuposto, seria interrogar a qual pblico ela se

    destinou e qual papel ela pretendeu cumprir em uma determinada

    poca. O historiador deve, dessa forma, colocar prova tanto marcos

    periodizadores, que organizam a classificao, quanto os significados

    globais dos movimentos literrios, que do sentido a ela. No

    obstante, no apenas o desenvolvimento da literatura por meio de

    seus movimentos e reciclagens marca sua historicidade. O

    entendimento do prprio conceito de literatura seria diverso no

    tempo7. O autor, fazendo um breve resumo, pontua que se a

    formulao aristotlica de que o texto literrio representa ou imita o

    mundo diz do entendimento sobre o entendimento da literatura

    prprio da Antiguidade Clssica, explica o autor, os romnticos, de

    outra feita, incutiram ao entendimento sobre a literatura, prprio do

    sculo XIX, a ideia de que o texto literrio, alm de representar,

    tambm cria universos, de tal maneira, que se a formulao

    aristotlica resgatada, s o para ser tambm modificada. Da

    mesma forma, o engajamento poltico dos artistas do sculo seguinte

    reformulou a concepo acerca da literatura, bem como a rejeio de

    toda e qualquer definio universalista marcou a conscincia ps-

    moderna, agudizada no sculo XXI. Apreendida de formas to

    variadas, consequentemente, aquilo que seria til como substrato

    para a histria tambm variou. E, mais, afirma Ferreira, foi, por um

    tempo, rejeitado.

    A historicidade da literatura aponta de forma clara para a

    inexistncia de um caminho nico para trat-la como fonte ou para

    entend-la em seu possvel dilogo com a histria a ponto, at

    7A questo tambm trabalhada por Srgio Buarque de Holanda e estudiosos

    citados em sua obra.

  • 10

    mesmo, de desconstruir seu enquadramento enquanto fonte, embora

    tal proposio no seja feita pelo autor de maneira alguma.

    a historiografia levou algum tempo para admitir que a literatura

    pudesse contribuir para o conhecimento das experincias individuais

    e coletivas de homens e mulheres no tempo8.

    O apelo literatura teria, de fato, ocorrido, primeiramente, como

    que para suprir a falta de documentos de uma determinada cultura,

    especialmente aquelas cuja distncia temporal teria comprometido a

    disponibilidade de vestgios. As novas percepes, no entanto,

    reconhecendo o fato de a histria comportar dimenses marcadas

    pela subjetividade e pela fico, teriam aproximado historiadores e

    textos literrios provenientes tambm de culturas mais bem

    documentadas, j que as fontes tradicionais, mesmo quando

    abundantes, no registram com frequncia aquilo que a literatura

    costuma registrar, uma vez que nenhuma outra fonte diz mais sobre

    esse universo humano recndito que as fontes artsticas, dentre as

    quais a literatura sobressair-se-ia.

    Outras publicaes no Brasil

    Ainda no Brasil, h publicaes que vm privilegiando o dilogo

    da histria com a literatura e, assim, experimentando diferentes

    formas de conduzir tal dilogo. Embora parea faltar uma discusso

    conceitual mais profunda, pode ser proveitoso, cit-las.

    Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Sidney Challoub, na

    apresentao de A Histria Contada9, dizem de uma das possveis

    maneiras de se trabalhar com a literatura. Seria essa a de historicizar

    a obra literria, inserindo-a no movimento mesmo da sociedade, a

    8 FERREIRA; 2009; p.83.

    9 CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A histria

    contada: captulos de histria social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 1998. 362 p.

  • 11

    fim de perceber redes de interlocuo social. A prioridade dessa

    escolha seria a de buscar na obra a maneira pela qual ela construiu ou

    representou a relao que a obra mesma estabelece entre si e a

    realidade que a cerca, ao invs de buscar sua autonomia em relao

    sociedade.

    Os organizadores so claros em sua opo metodolgica. Para

    historiadores a literatura , enfim, testemunho histrico10

    . Da,

    tornar-se necessrio dessacraliz-la, tom-la sem reverncias e, mais,

    submetendo-a ao interrogatrio sistemtico ao qual todo objeto de

    pesquisa cado nas mos do historiador deve passar. Sendo

    testemunho histrico, a obra literria porta um carter histrico.

    Qualquer obra , portanto, evidncia histrica determinada e, antes,

    situada no processo histrico. Para os autores, literatura fonte. Mas

    a assero no deixa de trazer tona um paradoxo para o historiador.

    Apesar de no se poder negar o princpio de realidade da literatura ou

    o referencial externo do texto, preciso, ao menos, considerar

    alguma especificidade na maneira como tal princpio pode se portar

    diante de um campo, como o literrio, que, em sua noo definidora,

    nega a ideia de ser ele evidncia objetivamente determinada.

    Pereira e Challoub destacam, nesse sentido, duas

    consideraes. Em primeiro lugar, destrinchar a especificidade de um

    testemunho seria ao necessria independente do tipo de

    testemunho que o historiador tem a frente. Seria geral, portanto, o

    imperativo que diz que o historiador deve considerar a especificidade

    de sua fonte. Com a literatura, tomada enquanto testemunho

    histrico, a regra no seria outra. Ela apresentaria, certamente, a esse

    historiador atento, sua especificidade. Fosse um livro de atas, um

    depoimento em processo criminal, o historiador tambm precisaria se

    ater quilo que cada um porta de especfico. Assim, para eles:

    10

    CHALLOUB; 1998; p.7.

  • 12

    posto rudemente: a interrogao da fonte literria no , por

    natureza, nem mais nem menos complexa do que a interrogao de

    qualquer outro testemunho histrico; novamente, a literatura no

    transcende11.

    Em segundo lugar, ou a segunda considerao diria respeito

    forma de inserir os autores e suas obras em processos histricos. Para

    tanto, o historiador precisa pensar a obra e suas caractersticas, bem

    com precisa pensar o autor, a escola a que pertence e sua concepo

    de arte. Mesmo num cenrio ps-moderno, marcado pela morte do

    autor, os organizadores entendem que o historiador, porque

    historiador, deve ver o autor e sua obra como acontecimentos datados

    e condicionados pela histria, que, por isso, expressam algo a seus

    contemporneos. O mote, ao menos da coletnea, que interessaria ao

    historiador seria o de encontrar, por meio da pesquisa de um autor e

    uma obra, algo que diga sobre um pas e sobre o tempo desse pas.

    Seguindo essa linha seria possvel identificar na fico de um

    autor, por exemplo, Machado de Assis12

    , sentidos da histria

    brasileira e, mesmo, seria possvel identificar um dilogo da fico

    com correntes do pensamento historiogrfico do momento. Ou,

    ainda, tambm a literatura poderia revelar meandros de uma histria

    das formas narrativas, como poderia tambm dizer, por meio dos

    prprios personagens, sobre uma lgica de dominao social, a partir

    at da viso dos dominados. A fico permitiria, ademais13

    , ao

    historiador vislumbrar a combate coevo de ideias e de crticas

    sociais, muitas vezes, identificando um esforo por firmar

    identidades e exaltar tradies ou, ento, por registrar, no enredo,

    prticas e costumes de grupos populares, que forneam ferramentas

    de interpretao da realidade ou que sejam contrrios aos discursos

    11

    CHALLOUB; 1998; p.8. 12

    Caminhos propostos por diferentes autores, estudiosos de Machado de Assis,

    aparecem em artigos variados dessa coletnea. 13

    Nesse caso, tomando as anlises, tambm includas na coletnea, concernentes

    obra de Luiz Gama.

  • 13

    em voga, modismos, nadando, assim, contracorrente e elucidando

    novos caminhos para a mesma realidade. A obra literria poderia por

    fim, finalizando os caminhos propostos pelos autores participantes da

    coletnea, testemunhar movimentos sociais mais amplos14

    , dizendo

    da forma do autor e do movimento que o abarca, se for o caso,

    enxergarem determinado povo, bem como enxergarem ou se

    imburem de determinada misso.

    A julgar pelo que essas possibilidades de explorao do objeto

    literrio oferecem, fica claro que reside, de fundo, uma opo

    metodolgica que as agrupa. O que de melhor a literatura teria para

    fornecer histria, segundo a obra organizada por Pereira e

    Challoub, seriam aquelas marcas que ela, inevitavelmente, porta de

    testemunho histrico, aquilo que ela carrega em si como

    determinao de um tempo, crivos de uma cultura e de uma

    realidade.

    Para Sandra Pesavento, organizadora de outra publicao 15

    ,

    tambm marcada pelo interesse na literatura como objeto da histria,

    intitulada Leituras Cruzadas16

    ,as duas narrativas, a histria e a

    literatura tm, em comum, o empenho em tentar capturar a vida,

    apresentando novamente o real. As estratgias de cada uma podem,

    por certo, diferir, mas todas duas criam aquilo que narram, no sentido

    de que so formas de fazer a realidade. Partilham a capacidade de

    representar e, portanto, recriam, por meio de palavras e, por

    conseguinte, de imagens. Todas duas lanam mo de um esforo por

    perceber e conhecer o mundo.

    14

    Por fim, trata-se dos artigos que tm como objeto os autores modernistas da

    dcada de 20. 15

    O livro resultado de um projeto maior nomeado Clope, o qual, como se v, j

    no nome homenageia as musas Clio e Calope e dedica-se, como de se esperar,

    analise das possveis relaes entre literatura e histria. 16

    Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Leituras cruzadas: dilogos da

    histria com a literatura. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000.

  • 14

    Na busca da construo desse conhecimento do mundo, os

    mtodos, as exigncias e mesmo as metas podem ser diferentes ao se

    comparar os dois discursos. E a, ento, segundo Pesavento, que

    uma musa pode ensinar outra. O texto literrio, eminentemente,

    trabalha com sentimentos, emoes, maneiras de falar, cdigos de

    conduta, gestualidade e aes sociais prprias de uma poca. Ao

    preocupar-se com essa poca especfica e buscar acessar suas

    sensibilidades, bem como a maneira dessa poca representar a si

    prpria, seus homens, sua realidade, o historiador pode, com

    proveito, recorrer ao texto literrio.

    A julgar pelos trabalhos observados, nota-se na forma como a

    historiografia brasileira vem trabalhando o tema, algumas diferentes

    formas de estabelecer o dilogo entre literatura e histria so

    vislumbradas, muito embora a demarcao entre os dois campos, nos

    trabalhos avaliados, permanea clara.

  • 15

    Quase um Davi e Golias: Braslia, Contradies de uma

    Cidade Nova e o embate entre o poder simblico dos

    intelectuais e a coero do Estado

    Lus Fernando Amncio Santos

    Mestrando em Histria pela UFMG/ Bolsista Capes

    [email protected]

    A presente comunicao pretende partir do caso de Braslia,

    Contradies de uma Cidade Nova (1967, de Joaquim Pedro de

    Andrade), para pensar o choque que houve, durante a Ditadura

    Militar no Brasil, entre intelectuais e o Estado. Pensamos que esse

    filme, que sequer foi lanado, nos serve para refletir acerca da ao

    dos artistas no perodo, que apareciam na esfera pblica, atravs do

    poder simblico do grupo que pertenciam, para contestar a poltica

    de ento. Todavia, essas reivindicaes contavam com represarias do

    Estado, cujo poder policial anulava, em muitos aspectos, a liberdade

    de expresso.

    Palavras-chave: Cinema Novo, Ditadura Militar, poder

    O sculo XX viu a categorizao de um grupo que viria a ter

    importante atuao na esfera pblica: os intelectuais. O caso

    Dreyfus, na Frana, o marco de seu surgimento. Esse episdio

    data de 1898, quando Emile Zola escreve um texto intitulado

    Jaccuse, publicado no jornal Aurore, acusando injustia e compl

    militar no julgamento do capito Alfred Dreyfus. Apiam-no, em

    manifesto, vrios escritores, artistas e professores universitrios,

    entre outros.

    Esse evento tem grande importncia por deixar marcada uma

    postura dos intelectuais de impor sua autoridade na busca pela

  • 16

    verdade e pela justia. Os produtores de cultura, nesse momento,

    tratam de impor a legitimidade que sua posio de pensadores

    encerra em si, e opinam sobre assunto de poltica. Surge, ento, uma

    categoria simblica:

    O neologismo intelectual designa, originalmente, uma vanguarda

    cultural e poltica que ousa, no final do sculo XIX, desafiar a razo

    de Estado. No entanto, essa palavra, que poderia ter desaparecido

    aps a resoluo dessa crise poltica, integra-se lngua francesa.

    Se, por um lado, ela designa um grupo social, por outro, ela qualifica

    uma maneira de se conceber o mundo social, pressupondo,

    notadamente, uma oposio s hierarquias estabelecidas17

    .

    Assim, esse personagem, o intelectual, no fica restrito a esse

    contexto, tendo destacada importncia no sculo XX. Depois da

    Segunda Guerra, ele tem uma funo social cada vez mais

    delimitada. Ele vai ao espao pblico se pronunciar sobre o que

    considera certo, sendo que ter um posicionamento poltico se torna

    obrigatrio. Ento, mais do que um representante da razo, o

    intelectual passa a ser um engajado18. Para Edgard Morin, a

    qualidade do intelectual no est necessariamente ligada sua

    participao junto intelligentsia, mas ao uso da profisso por e

    pelas idias (Apud: RODRIGUES, op. cit.: 402-403). At em reao

    s atrocidades cometidas durante as duas guerras, o intelectual

    17

    RODRIGUES, Helenice. O intelectual no campo cultural francs: do caso Dreyfus aos tempos atuais. Revista Varia Histria, Belo Horizonte, vol. 21, n 34, julho de 2005, p. 400. 18

    Nesse trabalho, utilizamos a noo de engajamento dada por Marilena Chau:

    Tomada de posio no interior da luta de classes, como negao interna das formas de explorao e dominao vigentes em nome da emancipao ou da

    autonomia em todas as esferas da vida econmica, social, poltica e cultural.

    Diferente do idelogo, inserido no mercado, falando a favor do mercado. (CHAU, Marilena. O intelectual engajado: uma figura em extino?. In: NOVAES, Adauto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Companhia das Letras,

    2006.)

  • 17

    entendia que era seu dever a ao, no se podia deixar que tais

    eventos se repetissem.

    Naqueles anos de ps guerra, principalmente nas dcadas

    seguintes, o intelectual tornou-se quase um sinnimo de simpatia por

    ideologias de esquerda. Na Frana e na maior parte dos pases

    ocidentais, eles se tornavam membros de partidos comunistas,

    pronunciavam-se a favor da Unio Sovitica (em conseqncia,

    tentavam ignorar as ms notcias que vinham do governo de Stlin) e

    mostravam-se esperanosos pelas revolues que se anunciavam no

    Terceiro Mundo. Jean-Paul Sartre tornou-se uma espcie de

    intelectual total. Sua militncia ideolgica, escrevendo livros sobre

    poltica e pronunciando-se a respeito de conflitos, como a

    independncia da Arglia, fez dele o maior exemplo de intelectual

    nesse contexto.

    Em nosso entendimento, ao vir a pblico pronunciar-se sobre

    algum assunto de interesse geral, o intelectual exerce um poder

    simblico, oriundo da legitimao de estar inserido

    privilegiadamente em algum campo do conhecimento, ou das artes.

    O que implica formar uma categoria dentre as diversas divises que

    imprimimos ao mundo. Segundo Pierre Bourdieu, um poder

    simblico seria

    um poder de construo da realidade que tende a estabelecer uma

    ordem gnoseolgica: o sentido imediato do mundo (e em particular,

    do mundo social) supe aquilo a que Durkheim chama o

    conformismo lgico, quer dizer, uma concepo homognea do

    tempo, do espao, do nmero, da causa, que torna possvel a

    concordncia entre as inteligncias 19

    No Brasil, durante a ditadura estabelecida com o Golpe Civil-

    Militar de 1964, diversas personalidades utilizaram dessa legitimao

    na oposio ao governo. Na academia, esse embate foi ferrenho, mas

    19

    BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand

    Brasil, 1989, p. 09.

  • 18

    mais conhecida essa luta nos meios artsticos, musicais e no prprio

    cinema. Questionou-se, principalmente, o desrespeito s instituies

    democrticas, ao tirar da presidncia Joo Goulart, oriundo de uma

    chapa eleita pelo voto popular. E, depois do Ato Institucional N 5, a

    oposio clamou pela liberdade de expresso, violentada pelo

    governo militar.

    Porm, o Estado tinha um efetivo instrumento de proteo contra

    os protestos: a fora policial. Com ela, perseguiu opositores, sejam

    polticos ou da sociedade civil. Reprimiu manifestaes de repdio

    s suas prticas. E silenciou vozes que destoassem de seu discurso.

    o que ocorreu com Joaquim Pedro de Andrade e o documentrio

    Braslia, Contradies de uma Cidade Nova20

    .

    Em 1967, o diretor Joaquim Pedro de Andrade foi convidado

    pela Olivetti, empresa italiana especializada em artigos eletrnicos,

    para realizar um curta-metragem sobre Braslia, a jovem capital

    nacional. Tal iniciativa fazia parte de um novo direcionamento do

    departamento de publicidade da multinacional, investindo no

    financiamento de cultura. Foi dada equipe cinematogrfica total

    liberdade de criao21

    .

    O diretor convidou o crtico de cinema Jean-Claude Bernadet

    para colaborar no projeto, dado que ele j havia atuado na capital

    federal como professor da UnB. Juntos com o arquiteto Lus Saia,

    eles escreveram o roteiro para o documentrio. Lcio Costa e Oscar

    Niemeyer foram entrevistados no Rio de Janeiro e, ento, a equipe

    seguiu para Braslia, para as primeiras filmagens.

    20

    Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Ficha Tcnica: Direo: Joaquim

    Pedro de Andrade Produo: Filmes do Serro Rio de Janeiro Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Lus Saia e Jean-Claude Bernardet Produtor delegado / Texto /

    Narrao: K.M. Eckstein Montagem: Brbara Riedel Imagem: Affonso Beato 21

    Muitas das informaes aqui presente sobre Braslia, Contradies de uma

    Cidade Nova foram retiradas do texto homnimo, de Jean-Claude Bernadet,

    presente no DVD de Macunama (1969, de Joaquim Pedro de Andrade), e

    disponvel no site

  • 19

    O perodo era de efervescncia poltica, com o governo golpista

    militar, e conseqente efervescncia cultural, em oposio aos anos

    de chumbo que se apresentavam. O Cinema Novo, que no ano

    anterior ao golpe ganhara fora com o lanamento e a repercusso

    internacional de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e

    o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, viu-se diante de uma

    situao que no tardaria a ser problematizada em seus filmes. de

    1967 Terra em Transe, tambm de Glauber Rocha, que talvez seja o

    filme que tratou do ps 1964 de forma mais evidente (apesar de

    deslocar a narrativa para a fictcia Repblica de Eldorado).

    Jean-Claude Bernadet, importante crtico e historiador do

    Cinema Novo, e Joaquim Pedro, membro do movimento, no

    estavam alheios a esse contexto. A situao, no caso do

    documentrio encomendado pela Olivetti, era atpica dentre as

    propostas cinemanovistas, em geral, dedicavam-se a filmes autorais,

    negando-se a produzir pelculas comerciais ou, nesse caso, filmes

    encomendados. Porm, a total liberdade dada pela empresa italiana

    fez com que Joaquim Pedro e Jean-Claude Bernadet dessem ao filme

    contornos que o fazem reconhecvel dentro do movimento. Diferente

    de um filme institucional, elogioso do modernismo que impregnava

    Braslia, o documentrio tem um tom questionador. Apesar de seus

    apenas sete anos de inaugurao, a Novacap j demonstrava os

    problemas que se agravaram com os anos.

    Podemos dividir Braslia, Contradies de uma Cidade Nova em

    duas partes. A primeira ocupa-se de apresentar a cidade,

    principalmente o Plano Piloto. Ao espectador explicada as divises

    racionais presentes na concepo da cidade, sua organizao, alm

    dos contornos imponentes de suas construes. Com algumas

    construes no terminadas, a Braslia de 1967 apresenta, junto ao

    cinza peculiar de seus monumentos de concreto, a predominncia do

    vermelho da terra. A cidade ainda estava em processo de formao.

  • 20

    Na segunda parte do documentrio, o foco se distancia do Plano

    Piloto rumo s cidades satlites. Abre-se a narrativa para entrevistar

    os trabalhadores que levantaram a capital federal e, sem espao

    adequado projetado para eles, formaram ao seu redor grandes

    periferias. A equipe de filmagem entra nas casas, nas numerosas

    famlias, conversam com imigrantes ainda nos nibus que os levam

    para o novo desafio. Em comum, a esperana de encontrar algo

    melhor do que a aridez do Nordeste que se deixa, ainda que em uma

    situao de marginalizao, em uma cidade que no os esperava l.

    De certa forma, o documentrio aborda relaes violentas cujo

    tratamento artstico era incmodo aos dirigentes do pas. Pois no

    deixa de ser uma relao de violncia a estabelecida entre os

    trabalhadores que erguem a cidade, deixando suas terras de origem

    para um territrio at ento desbravado, e o projeto de Braslia, que

    no os inclua. Nas entrevistas, nota-se um ressentimento com essa

    expulso, alm de relatos de violncia fsica, mesmo, nesse processo.

    Braslia era para poucos.

    Ou deveria ser. Pois esses trabalhadores, sem espao no Plano

    Piloto, montam uma periferia inesperada, favelas verticais. E

    continuaram chegando. Famlias de imigrantes nordestinos, mesmo

    que as oportunidades de trabalho no Planalto Central no fossem

    mais tantas quanto na fase de erguer Braslia, preferiam optar pelas

    condies econmicas. Elas ainda eram melhores do que as deixadas

    para trs.

    Assim, outra violncia era estabelecida, dessa vez contra o

    projeto de Braslia. O plano modernista do trio Juscelino Kubitschek,

    Lcio Costa e Oscar Niemeyer, de construir uma cidade racional,

    organizada, que levasse o desenvolvimento para o centro do Brasil,

    acabou ganhando contornos indesejados. A utopia sofre uma

    violncia: trazida para a realidade. O subdesenvolvimento devora a

    cidade modelo, na forma de uma periferia quase to imponente

    quanto seus belos prdios. Braslia, com toda sua racionalidade

  • 21

    urbana, rapidamente degenerou enquanto territrio social,

    reproduzindo a irracionalidade poltica e os desajustes do resto do

    pas22. E isso j se mostrava em 1967.

    Nessa segunda parte, o filme encomendado torna-se Cinema

    Novo: crtico, une o poltico ao social, no se deslumbra com a arte

    arquitetnica ao questionar sua insero contraditria no plano da

    ao. E, conscientemente ou no, a crtica atinge os prprios

    cineastas, afinal, ao pontuar que a Novacap funciona como a arte

    em geral, isolando-se das massas, no podemos deixar de pensar no

    paradoxo do prprio Cinema Novo. Este, apesar de se propor um

    cinema popular, viu-se restrito a poucos. Joaquim Pedro, bem

    verdade, conseguiu quebrar essa barreira em seu filme seguinte,

    Macunama. Mas, ainda assim, impossvel no constar que dentro

    prprio cinema existem barreiras, uma espcie de dificuldade de

    comunicao com determinados pblicos.

    No que diz respeito inacessibilidade, esse foi o caso de

    Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Mudanas no

    departamento de publicidade da Olivetti geraram uma recepo

    desencontrada com a postura inicial, de incentivar a liberdade de seus

    realizadores. Ao exibir uma cpia quase finalizada do documentrio

    aos novos responsveis desse setor, Jean-Claude Bernadet e Joaquim

    Pedro viram uma reao contrariada. Sabiamente, a Olivetti preferia

    no ter problemas com o governo brasileiro. Sequer a possibilidade

    de verses diferentes para Itlia e Brasil agradou. O apoio da

    multinacional ao filme acabou ali.

    O curta-metragem foi exibido no Festival de Braslia de 1968,

    em sesso no anunciada. Joaquim Pedro foi aconselhado a no

    submeter o filme censura, pois, alm de uma liberao de

    possibilidades mnimas, um mal estar com o governo militar era

    22

    BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade (Perfis do Rio, n11). Rio de

    Janeiro: Relume Dumar, 1996, p.73.

  • 22

    perigoso. Alm das crticas ao projeto de Braslia, motivo de orgulho

    cvico, o documentrio faz insinuaes sobre problemas com o

    governo militar. o caso do trecho a respeito da UnB, projeto de ser

    centro de excelncia intelectual, mas que teve dezenas de professores

    deixando a cidade por falta de autonomia para desempenhar suas

    funes.

    Sem ser lanado comercialmente, o filme teve uma cpia

    depositada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de

    Janeiro. Braslia reapareceria nos anos 2000, restaurado, como extra

    do DVD de Macunama.

    No embate entre poderes em torno dessa pelcula, o do Estado,

    ento dirigido por uma ditadura militar, silencia o dos intelectuais.

    Era um governo que j comea desdenhando do sistema democrtico

    ao dar o golpe em 1964. E essa lgica, a de que contra as armas no

    h argumentao, seria levada ao limite durante os anos sombrios

    que se seguiram. Liberdades individuais eram restringidas e

    expressar-se s era permitido com o aval de censores. Pensar

    politicamente diferente do direcionamento do pas era crime.

    Desse mal, Joaquim Pedro de Andrade provou. Em 1966, junto

    de Glauber Rocha, Mrio Carneiro, Antonio Callado, Flvio Rangel,

    Mrcio Moreira Alves, Carlos Heitor Conny e Jaime Rodrigues, ele

    participou de um protesto de ampla repercusso. Trajados de terno e

    gravata, eles estenderam a faixa Abaixo a Ditadura diante de

    autoridades que participariam do encontro da Organizao dos

    Estados Americanos (OEA), que aconteceria no Hotel Glria, no Rio

    de Janeiro. Foram presos, o ato poltico que planejavam. Desejar o

    fim da ditadura lhes rendeu dez dias de recluso.

    Em 1969, portanto aps o lanamento do documentrio tratado

    aqui, o cineasta teve nova experincia carcerria. Ele, assim como

    outros tantos intelectuais, estava sob vigia constante do DOPS. Nessa

    ocasio, ele foi liberado rapidamente, pois a priso coincidiu com a

    abertura do Festival Internacional de Cinema do Rio e o cineasta

  • 23

    Claude Lelouch protestou, negando-se a exibir seu filme sem a

    liberao de Joaquim Pedro.

    O governo militar imps-se com campanhas ufanistas,

    celebrando o futebol, o civismo, o milagre econmico e uma

    modernidade constituda de obras faranicas23

    (ver: FICO, 1998).

    Mas, para aqueles que no eram atingidos por essa estratgia, restava

    a imposio da fora. Dessa histria, so inmeros os desaparecidos

    que, por sua ausncia, acabam por cont-la.

    Em Braslia, a atuao desse poder coeror se d de maneira

    prvia, anterior ao. o temor de sofrer represarias do Estado que

    faz a Olivetti retirar seu apoio ao filme. Da mesma forma, seus

    realizadores no levam em frente a idia de lanar a pelcula e

    contentam-se em arquiv-la. Dessa forma, o filme no cumpre sua

    misso de comunicar ao pblico o pessimismo de seus realizadores

    sobre a capital federal. A autocensura do documentrio evita que esse

    poder simblico dos intelectuais atue. Uma opo por evitar o

    confronto que, sem dvida, seria desigual. Nesse confronto com

    Golias, Davi preferiu bater em retirada para evitar maiores danos.24

    23

    FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginrio

    social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1997. 24

    Esse texto uma verso da comunicao O intelectual, a censura prvia e as vrias formas de poder, apresentado no VIII Simpsio de Histria da Universo- Campus So Gonalo.

  • 24

    Heris em Crise: Guerra Fria e Crtica Social em Watchmen

    Michele Aparecida Evangelista Graduanda em Histria UFV [email protected]

    Micheline Carmem Evangelista Graduanda em Histria UFV [email protected]

    Cientes da importncia da imagem e dos meios de comunicao

    para a sociedade contempornea e da relevncia do cinema como

    fonte histrica para a compreenso do imaginrio e das relaes

    scio-culturais de um dado momento histrico e sociedade, o intuito

    desta comunicao analisar criticamente as representaes sobre a

    Guerra Fria (1945-1989) e a concepo de heri presentes no filme

    Watchmen (2009) dirigido por Zack Snyder, produzido por Lawrence

    Gordon, Lloyd Levin e Deborah Snyder e o roteiro ficou a cargo de

    David Hayter e Alex Tse.25

    O filme Watchmen lanado em 2009 pela Worner Bros

    baseado na Graphic Novel, escrita pelo roteirista Allan Moore e

    ilustrada por Dave Gibbons sendo publicada em 1986 no formato de

    12 edies pela DComics que revolucionou o conceito de

    quadrinhos.

    O longa-metragem que acompanha as inovaes da Graphic

    Novel traz uma nova abordagem sobre os filmes de super-heris,

    buscando reflexes no apenas artsticas, mas tambm e acima de

    tudo discute questes polticas, ticas e sociais que ainda

    permanecem na contemporaneidade.

    Atravs da fico, os produtores apresentam uma verso acerca

    de um contexto histrico marcado pelas transformaes sociais e pela

    tenso: o conflito entre Estados Unidos e Unio Sovitica e seus

    respectivos sistemas econmicos (Capitalismo e Socialismo),

    25

    Watchmen - o filme (Oficial web site). Disponvel em:

    http://www.watchmenmovie.co.uk/intl/br/

  • 25

    conhecido como Guerra Fria (1945-1989). Este, assim como na

    Histria em quadrinhos, representado no somente pelos

    personagens e dilogos, mas tambm pelos elementos visuais e

    objetos que muito mais do que comporem a cena e o cenrio em que

    a trama se desenrola, possuem significaes que vo alm do

    aparente, tendo funo preponderante na composio da narrativa.

    No filme, no ano de 1985, numa realidade em que os super-

    heris fazem parte do cotidiano das pessoas, um membro do grupo

    de mascarados denominado Watchmen (os vigilantes) assassinado.

    Rorscharch em busca do algoz de seu companheiro de equipe, diante

    da possibilidade de se tratar de um assassino de mascarados,

    consegue restabelecer a reunio dos demais vigilantes - um confuso

    grupo de heris aposentados, dos quais somente um possui poderes

    verdadeiros. Porm, ao longo da investigao mais ex-vigilantes so

    envolvidos e Rorscharch percebe uma conspirao abrangente e

    perturbadora com ligaes com o passado que eles dividiram e

    catastrficas conseqncias para o futuro. 26

    Os personagens principais so: Rorscharch (Walter Kovacs),

    Comediante (Edward Morgan Blake), Dr. Manhattan (Jon

    Osterman), Coruja II (Daniel Dreiberg), Espectro II (Laurie

    Juspezyck) e Ozymandias Adrian Veidt.

    A Guerra Fria (1945-1989) se constituiu como um dos

    momentos mais importantes na histria contempornea e trouxe

    transformaes polticas, econmicas e scio-culturais, o que

    repercutiu nas produes literrias e artsticas deste momento.

    Segundo Vicentini, trata-se de um conflito de vrios lados,

    26

    Watchmen - o filme (site oficial). Disponvel em:

    http://www.watchmenmovie.co.uk/intl/br/

  • 26

    condizentes com as transformaes ocorridas no intenso sculo

    XX.27

    Entre 1979 e 1985, verificou-se o contra-ataque dos Estados

    Unidos atravs das polticas neoliberais, de um maior investimento

    militar, apoio a Guerra do Afeganisto, a criao da Fora de

    Deslocamento rpida, o aumento da produo de bombas atmicas e

    o desacato aos Acordos SALT II que exigia a reduo de armas

    nucleares, gerando a intensificao da corrida espacial-armamentista

    e da poltica de confrontao, com a instalao de msseis na

    Europa.28

    Com a crise na Unio Sovitica, no perodo que vai de 1985 a

    1989, a Guerra caminha para o fim, e verifica-se um perodo de

    retomada do dilogo. Porm, o clima de tenso e medo na sociedade,

    mediante a probabilidade de uma guerra nuclear ainda permanecia.

    Segundo Nncia Teixeira e Wyllian Correa, embora a Graphic

    Novel Watchmen se insira numa fase mais amena da Guerra Fria, o

    pessimismo e as incertezas ainda se fazem presentes:

    A dcada de 80 assistiu falncia de ideologias, ao medo paranico

    de uma guerra atmica, ao individualismo consumista, mistura de

    conceitos nas teorias e de estilos na arte, disseminao de doenas

    fatais, queda de regimes polticos autoritrios, emergncia de

    novas potncias econmicas, preocupao com a destruio do

    meio ambiente e volta do conservadorismo poltico e moral. 29

    Este ambiente resgatado na adaptao para o Cinema, no qual,

    assim como na HQ, a Guerra Fria muito mais do que um mero pano

    27

    VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A Guerra Fria. In: FILHO, Daniel Aaro Reis

    e ZENHA, Celeste (orgs.). O Sculo XX: O tempo das crises, Revolues,

    fascismos e guerras. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. p. 198. 28

    Ibidem. p.221. 29

    ARON, Raymond apud. TEIXEIRA, Nncia Ceclia Ribas Borges e CORREA,

    Wyllian Eduardo de Souza. Watchmen e o discurso distpico do bem maior. In: Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais. Abril/maio/junho de 2009, vol.6, ano VI, n.2. p. 5. Disponvel em: http://www.revistafenix.pro.br/vol19nicea.php.

    Obtido em: 30/10/2010.

  • 27

    de fundo, pelo contrrio, ela um dos principais fatores que levam os

    vigilantes a retomarem suas atividades e influenciam de forma

    preponderante na postura em que estes vo seguir e os valores a

    serem defendidos por eles durante a trama. Mas se a guerra intervm

    no modo de pensar e agir dos heris, por outro lado, eles tambm

    conseguem intervir nos acontecimentos e no prprio decorrer da

    guerra: com a ajuda do Comediante e do Dr. Manhattan os Estados

    Unidos vence a guerra no Vietn e a presena ou ausncia do

    segundo interfere na reao dos soviticos e no andamento do

    conflito.

    Vale ressaltar, que de acordo com Hobsbawn, a Guerra do

    Vietn - bem como a do Oriente Mdio, provocaria o

    enfraquecimento dos EUA, embora no alterasse o equilbrio global

    das superpotncias, ou a natureza do confronto nos vrios teatros

    regionais da Guerra Fria, esta:

    Desmoralizou e dividiu a nao, em meio a cenas televisionadas de

    motins e manifestaes contra a guerra; destruiu um presidente

    americano; levou a uma derrota e retirada universalmente previstas

    aps dez anos (1965-75); e, [...], demonstrou o isolamento dos

    EUA.30

    A insegurana e a tenso so ressaltadas em todo o longa-

    metragem e vrios fatos referentes ao conflito so mostrados, sejam

    atravs dos flashbacks referentes ao passado dos personagens, pela

    trilha sonora ou pelas discusses sobre o assunto nos meios de

    comunicao.

    Numa cena faz-se um panorama histrico do contexto retratado e

    a trajetria dos super-heris desde os anos 40 com os Minuttemen at

    os anos 70 que corresponde emergncia dos Watchmen, tendo

    como trilha sonora a msica de Bob Dylan The Times They Are A-

    30

    HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: O breve sculo XX /1914 1991. Traduo Marcus Santarrita: Reviso tcnica Maria Clia Paoli. - So Paulo:

    Companhia das Letras, 1995p. 241

  • 28

    Changin' produzida neste contexto e que faz referncia direta ao

    conflito. As cenas que so mostradas representam fatos do final da

    Segunda Guerra Mundial, o assassinato do presidente Kennedy, a

    Guerra do Vietn, o movimento hippie, a eleio de Nixon, a corrida

    espacial-armamentista tanto americana quanto sovitica, onde

    aparece Fidel Castro, presidente de Cuba, primeiro pas americano

    socialista.

    Um dos elementos fundamentais na narrativa dos quadrinhos e

    que foi apropriada no Cinema, a utilizao de objetos como forma

    de linguagem, ganhando um atributo simblico. o caso da carinha

    sorridente Smiley manchada de sangue (apresentada nas capas da

    HQ), o relgio do Juzo Final que est sempre marcando cinco

    minutos para meia-noite e simboliza o quo prximo humanidade

    est de sua destruio e os jornais que trazem as informaes sobre o

    andamento do conflito.

    Estes elementos visuais se constituem como meio de referncia

    para o desenvolvimento da histria na qual so representados o

    contexto e traduzem a sensao predominante na sociedade daquele

    perodo: o pessimismo, a imprevisibilidade, j que a qualquer

    momento poderia haver uma guerra nuclear que acabaria com o ser

    humano e a presena constante da mdia e a influencia dos meios de

    comunicao na disseminao do medo na populao sobre um

    possvel ataque nuclear.

    De acordo com Hobsbawn, geraes inteiras se formaram em

    meio sombra de uma possvel guerra nuclear que poderia ocorrer a

    qualquer momento e devastar a humanidade:

    medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar

    errado, poltica e tecnologicamente, num confronto nuclear

    permanente baseado na suposio de que s o medo da 'destruio

    inevitvel' [] impediria um lado ou outro de dar sempre o pronto

  • 29

    sinal para o planejamento do suicdio da civilizao. No aconteceu,

    mas por quarenta anos apareceu uma possibilidade diria.31

    Esta angstia quanto ao futuro presente, por exemplo, quando

    a ex-Espectro I fala sobre o Comediante, e ao referir-se aos erros

    deste, ela desabafa que todos os dias o presente parece mais confuso,

    enquanto que os fatos do passado, mesmo os piores momentos, se

    tornam cada vez mais cintilantes, demonstrando o quo saturno e

    obscuro o futuro poderia ser, devido instabilidade do tempo

    presente.

    Segundo Carlos Andr Krakhecke, o conflito real no seria

    possvel uma vez que, as potencias envolvidas tinham um arsenal

    blico que poderia destruir uma e outra. Para o autor, a parania de

    uma guerra nuclear se alimenta na simples possibilidade de alguns

    dos plos pensar que possvel a vitria, ou ento, uma falha

    humana ou tecnolgica iniciar a catstrofe. Isso no uma novidade

    desse perodo da guerra fria. 32

    Esta concepo pode ser percebida na fala de Adrian Veidt

    (codinome Ozymandias), no qual, em uma entrevista a um canal de

    televiso, o personagem justificando a necessidade de produo de

    novos recursos de energia renovvel, argumenta que no seria

    preciso ser cientista poltico para observar que a Guerra Fria no

    seria ideolgica, mas sim baseada no medo de no ter o bastante,

    mas se os recursos fossem inesgotveis, a guerra se tornaria obsoleta.

    Tal percepo endossada por Hobsbawn argumentando que,

    logo a obteno por parte da Unio Sovitica de armas nucleares,

    ambas abandaram a idia de um ataque mtuo pois isso equivalia a

    31

    HOBSBAWN, Eric.Op.Cit.p.224 32

    KRAKHECKE, Carlos Andr. A Guerra Fria da dcada de 1980 nas Histrias

    em Quadrinhos Batman - O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. In: Histria,

    imagens e narrativas. No. 5, ano 3, setembro/2007. Disponvel em:

    http://www.historiaimagem.com.br. Obtido em: 30/10/2010.

  • 30

    um pacto suicida 33, desse modo, o que estimularia a continuidade

    da Guerra Fria, seria portanto, a manuteno, principalmente por

    parte dos EUA da supremacia mundial:

    [] enquanto os EUA se preocupavam com o perigo de uma

    possvel supremacia mundial sovitica num dado momento futuro,

    Moscou se preocupava com a hegemonia de fato dos EUA, ento

    exercida sobre todas as partes do mundo no ocupadas pelo Exercito

    Vermelho. 34

    Desde os primrdios da humanidade, o mito se constitui como

    elemento fundamental de uma cultura e sociedade, pois, de acordo

    com Marcos Fbio Vieira, atravs dos smbolos, os mitos

    representam elementos de uma cultura alm de ser fator de

    constituio de identidades coletivas por representarem os valores e

    crenas de uma sociedade. Assim, como afirma Vieira, na

    perspectiva de Eco: o homem, atravs de seus mitos, capaz de

    representar todos os seus conceitos de grandeza, fora, bem e mal,

    projetando-os em imagens simblicas que passam a encarn-los.35

    Os mitos, assim como a arte, no se tratam de categorias

    estticas, ao contrrio, so mutveis conforme o tempo e sociedade.

    Ao longo das transformaes scio-culturais so reconfigurados,

    ganhando novas significaes dadas s demandas e intencionalidades

    de cada momento histrico.

    Dentro do conceito de mitos, tem-se o heri, no qual,

    independente da mdia ou produo artstica, o responsvel por

    33

    HOBSBAWN, Eric. Op.Cit. p. 227 34

    Ibidem.p.231 35

    VIEIRA, Marcos Fbio. Mito e heri na contemporaneidade: as histrias em

    quadrinhos como instrumento de crtica social. In: Contempornea, no. 8, vol.1,

    2007. Disponvel em:

    http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_08/07MARCOS.pdf. Obtido em:

    30/10/2010.

  • 31

    resguardar e transmitir os valores mais nobres e justos de uma

    sociedade.36

    Desse modo,

    [...] cabe ao heri proteger e servir ao povo, a quem se apresenta

    como depositrio de todas as esperanas e aspiraes. Assim, a

    funo primordial do heri, seja qual for sua origem ou poca, seria

    servir, velar, defender, vigiar. Ele , portanto, aquele que pe o

    interesse coletivo acima de seus prprios, que se sacrifica por uma

    causa, um ideal, por um mundo justo onde o bem-comum est acima

    de tudo.37

    No filme, ao longo da sequncia relativo ao surgimento dos

    Minuttemen e Watchmen so mostradas o perodo apogeu dos heris

    e a queda, com o trgico fim da maioria dos integrantes do primeiro

    grupo e o surgimento do segundo. Percebe-se que atravs do

    figurino, os criadores trazem a representao visual clssica e

    moderna tanto do heri quanto do vilo. Os Minuttemen (1940)

    trajam uniformes simples como fantasias feitas em casa e os viles

    aparecem nas fotos trajando roupas listradas de preto-e-branco,

    utilizando mscaras remetendo a sua condio de ladro assim como

    explicita, por meio de sua expresso facial, a maldade esteretipos

    muito presentes nos antigos quadrinhos e desenhos animados.

    J no final desta seqncia em que os Watchmen aparecem, e

    que predominar em todo o longa-metragem, esta representao se

    modifica: os viles usam roupas normais e no utilizam mscaras,

    enquanto os heris trazem um figurino moderno, de alta tecnologia,

    correspondente no representao dos heris anteriores ou dos anos

    80, mas uma verso atual (2009) sobre eles, como pode ser

    observado nas roupas de Ozymandias, Coruja e Espectro II em que

    36

    Ibidem. p.82. 37

    Ibidem. Loc.cit.

  • 32

    alguns dos materiais utilizados no existiam naquela poca, como

    por exemplo, o ltex38

    usado pela herona.

    Deste modo, embora o diretor e roteiristas buscassem manter-se

    o mais prximo possvel da histria apresentada na Graphic Novel,

    introduziram novos elementos conforme a realidade e sociedade

    vivida por eles verso original, o que refora a viso que concebe

    estas obras como produes distintas, considerando as

    especificidades de cada uma, ao mesmo tempo em que demonstra a

    influncia do momento na sua produo.

    Por meio desta apresentao os produtores do indcios sobre o

    processo de redefinio do heri proposta na HQ que influenciou

    tanto os quadrinhos posteriores quanto o Cinema contemporneo,

    sendo explorado na verso cinematogrfica aqui analisada.

    O diretor apresenta ao telespectador um novo tipo de heri,

    distinto da verso idealizada dos filmes de super-heris clssicos, na

    qual estes so pessoas comuns (exceo de Dr. Manhattan que possui

    poderes), ambguos, solitrios e que possuem uma viso negativa a

    respeito da sociedade e dos valores pregados por ela, explicitando um

    profundo descrdito em relao humanidade. Comungam desta

    viso, Rorscharch, Comediante e Dr. Manhattan, como pode ser

    percebidas em suas falas:

    A cidade tem medo de mim. Vi sua verdadeira face. As ruas so

    sarjetas. Com esgotos cheios de sangue. E quando os canos

    finalmente transbordarem... Todos iro se afogar. [...] E todas as

    prostitutas e polticos voltaro os olhos para cima implorando: salve-

    nos! E do alto, vou sussurrar: no! (Rorscharch. Watchmen, 2009)

    Blake entendia, humanos so violentos por natureza. No importa o

    quanto tente se fantasiar para disfarar. Blake viu a verdadeira face

    da sociedade e optou por ser uma pardia disso, uma piada.

    (Rorscharch. Watchmen, 2009).

    38

    Sobre o figurino dos personagens do filme Watchmen, ver entrevista com o

    figurinista. Especial Watchmen. Disponvel em:

    http://omelete.com.br/cinema/especial-Watchmen-o-filme/

  • 33

    A humanidade tenta se destruir desde os primrdios. Agora [com a

    Guerra Fria e a possibilidade de uma guerra nuclear] tem o poder

    para terminar o trabalho. (Comediante. Watchmen, 2009)

    Estou cansado da Terra, dessas pessoas; cansado de me envolver na

    complicao de suas vidas. Eles afirmam lutar para construir o

    paraso, mas o paraso deles povoado por horrores.

    [Porque salvaria este mundo] se no espero nada dele? (Dr.

    Manhattan. Watchmen, 2009)

    Como pode ser observado, estas falas vo contra um dos

    principais pressupostos que caracterizam um heri na concepo

    clssica de defensor dos seres humanos e de seus valores: eles negam

    ajuda ao ser humano por acreditarem que eles no meream sua

    proteo e desconstri a viso que os concebe como modelos de

    perfeio a quem todos devem se espelhar, destituindo a urea

    divinizada a que antes lhes eram atribudos. Agora estes convivem

    com os problemas mundanos como qualquer outro mortal que possui

    seus medos, traumas e angstias e que no caso dos Watchmen

    tambm so afetados pelo contexto de instabilidade provocado pela

    Guerra Fria.

    Segundo Vieira, nas HQs o respeito pela vida e a justia sempre

    foram uma obrigao moral irrevogvel para seus protagonistas,

    agir contra estes princpios representaria negar tudo o que sua luta

    representava.39 Em Watchmen, como podemos observar nas atitudes

    dos personagens no seguem esta caracterizao, j que no hesitam

    em matar e ferir em prol de seus objetivos.

    Utilizando-se da perspectiva de Durkheimer, para o autor, este

    seria um sintoma de anomia, j que em momentos de instabilidade, a

    sociedade deixaria de agir regulada pelas leis e condutas

    consideradas morais institudas por um determinado grupo.

    O final da trama marca uma das diferenas cruciais entre a

    Histria em quadrinhos e o longa-metragem e ressalta a mudana de

    39

    VIEIRA, Marcos Fbio. Op.cit. p.84.

  • 34

    significao no filme em relao obra original: Ozymandias o

    responsvel pela morte de milhares de pessoas, porm enquanto na

    graphic novel a catstrofe foi provocada por um monstro, na

    adaptao para o cinema se deu pelo acionamento de bombas

    nucleares.

    Ambos foram criados pelo personagem que buscou se justificar

    com o argumento de a morte de milhes salvou o fim de bilhes de

    pessoas, j que devido destruio, as duas superpotncias

    antagnicas se unem em solidariedade s vitimas, para combaterem

    um inimigo comum: na HQ, o monstro, e no filme o Dr. Manhattan

    (j que as pessoas acreditaram que fora este o causador). Percebe-se

    na atitude do personagem a crena na concepo do quais os fins

    justificariam os meios, levantando a questo sobre at que ponto um

    heri pode intervir nos acontecimentos.

    Segundo o diretor, a manuteno do monstro obrigaria a criao

    de seqncias paralelas para criar uma conexo com o que o filme

    quer passar, o que demandaria a reduo das cenas referentes aos

    personagens, prejudicando a obra final. Alm disso, de acordo com

    ele:

    O 11 de Setembro aconteceu um dia depois de eu ter assinado o

    contrato para escrever o filme. Ento senti que havia uma diferena

    enorme entre ver a Times Square devastada com corpos mutilados

    em 1985 e ver a mesma cena, com atores reais, em um filme, em

    2000 e pouco.40

    Dave Gibbons concorda com esta assertiva, em sua concepo:

    O 11/9 foi um evento catastrfico real, sim, e uniu temporariamente

    pessoas de raas e religies distintas. O problema que a

    abordagem oficial foi to equivocada que acabou tornando as coisas

    muito piores. Claro, a analogia no exatamente perfeita - na HQ

    40

    SNYDER, Zack. Em entrevista concedida ao site Omelete. Especial Watchmen.

    Disponvel em: http://omelete.com.br/cinema/especial-watchmen-o-filme/. Obtido

    em: 29-10-2010.

  • 35

    so duas faces opostas e uma terceira atacante -, mas aquelas cenas

    de destruio foram estranhamente parecidas com as de Watchmen,41

    Portanto, atualmente, numa sociedade em que o terrorismo um

    fenmeno que preocupa o mundo inteiro, a substituio do monstro

    pela bomba causa um impacto muito mais forte por estar mais

    prximo realidade atual.

    Deste modo, se para os criadores da Histria em quadrinhos, o

    conflito no se constituiu em apenas um pano de fundo fictcio para o

    desenvolvimento da histria, uma vez que se tratava de uma

    realidade vivida por eles, para os responsveis pelo filme objeto de

    nossa anlise, ele ganha um novo significado: atravs da retomada de

    um contexto no passado, a pelcula busca discutir questes referentes

    ao presente.

    Nessa perspectiva, ressalta-se a importncia da imagem como

    fonte histrica, j que a partir delas, trazem subsdios para a

    compreenso sobre um momento histrico, bem como as demandas e

    intencionalidades de quem as produziu.

    41

    GIBBONS, Dave. Em entrevista concedida ao site Omelete. Especial

    Watchmen. Disponvel em: Ibidem. Obtido em: 29-10-2010.

  • 36

    Fazer cincia e viajar: Os relatos de viagem e sua

    contribuio para uma histria das cincias no Brasil do

    sculo XIX

    Rayner da Silva Lacerda

    Graduando em Histria - UFV

    O presente trabalho prope a discusso do relato de viagem

    como gnero literrio e de sua contribuio para a histria das

    cincias no Brasil. Um dos objetivos do artigo, alm de uma anlise

    dos relatos, o de demonstrar a importncia da narrativa de viagem

    como veculo para a construo de uma histria da cincia, analisada

    por meio de narrativas escritas por viajantes ingleses que estiveram

    no Brasil durante o sculo XIX.

    O prprio conceito de literatura de viagens complexo, visto

    que se trata de uma classificao recente. Tal conceito procura

    incorporar de forma independente um universo literrio, e tambm

    cartogrfico e iconogrfico, todos constitudos por um corpus de

    textos de natureza interdisciplinar42

    .

    Ilka Boaventura Leite considera os relatos de viagem como

    fontes inesgotveis de informao, verdadeiras jazidas contento

    grande variedades de pedras preciosas43

    , podendo-se assim extrair

    deles uma grande variedade de impresses, pois, cada viagem

    constri um relato, de modo a sistematizar fragmentos do vivido, das

    experincias, vivncias scio-culturais, expectativas e frustraes dos

    viajantes.

    42

    SILVA, Wilton Carlos Silva da. As terras inventadas: discurso e natureza em

    Jean de Lry, Andr Joo Antonil e Richard Francis Burton. So Paulo: Editora

    UNESP, 2003. 43

    LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem : escravos e libertos em Minas

    Gerais no sculo XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 13.

  • 37

    Embora se constituam como construes do vivido, os relatos de

    viagem no apresentam somente a descrio de lugares fantsticos ou

    costumes incomuns, mas representam uma fuso entre dois

    mundos44

    , onde a linguagem se alia ao vivido na construo de novos

    alicerces simblicos. Ele fruto de uma experincia pessoal que

    deseja ser compartilhada, estabelecendo conexes entre o vivido pelo

    autor e o imaginado pelo leitor.

    At por volta da dcada de 80, como reitera Miriam L. Moreira

    Leite45

    , os relatos de viagem vinham sendo aceitos sem maiores

    anlises crticas e interpretativas, localizando-se fora de uma

    perspectiva histrica. Como qualquer documento, os relatos de

    viagem devem passar por um minucioso processo analtico, que torne

    vlida a sua contribuio.

    Em muitas anlises historiogrficas, o que vemos uma relao

    mecanicista entre as narrativas e os contextos dos relatos produzidos

    pelos viajantes e cronistas. Devido a simplificaes ou mesmo a no-

    historicizao desses relatos, em muitos casos eles so reduzidos a

    simples documentos descritivos. Essa uma preocupao constante

    ao se utilizar os relatos de viagem como forma de se pensar uma

    histria do conhecimento cientfico, pois, preciso que se interprete

    as particularidades discursivas e a multiplicidade de questes

    culturais presentes nas narrativas de viagem.

    O mais interessante e instigante, ao lidar com este tipo de fonte,

    se d justamente pelo fato de que os relatos de viagem constituem-se

    em poderes capazes de atuar na mentalidade e na viso de mundo de

    uma sociedade, transformando e influenciando o processo histrico.

    por isso que o uso desses relatos na historiografia estabelece uma

    proposta de reflexo, comparao e crtica, sobre as prticas,

    costumes e valores vigentes.

    44

    SILVA, Wilton Carlos Silva da op. cit. p. 56. 45

    LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem: 1803/1900. Rio de Janeiro:

    Editora UFRJ, 1997. p.9.

  • 38

    As narrativas de viagem devem sofrer crtica rigorosa dos

    historiadores, visto que esses viajantes partilhavam de vises

    evolucionistas e civilizadoras que norteavam suas observaes.

    Assim como devem ser levados em conta as condies em que os

    prprios relatos eram escritos, visto que, muitas vezes eram feitos

    posteriormente viagem e com a ajuda de outros escritores que no

    necessariamente acompanharam o viajante em seu percurso.

    Ressalta-se ainda o carter comercial de muitos relatos, onde

    paisagens eram modificadas e percepes eram revistas com o intuito

    de atender a demandas editoriais.

    Ainda sobre as questes editoriais, em The Rhetoric of Empire,

    David Spurr aponta que o narrar comea com o ato de olhar46

    . Aquilo

    que o viajante v est condicionado por sua prpria estrutura

    ideolgica. O viajante, enquanto tradutor e intrprete de uma cultura

    alheia e ao sistematizar suas impresses no texto, est ciente da

    audincia qual sua narrativa dirigida, adaptando dessa forma o

    seu discurso realidade. Desse modo, cada viajante, ao escrever seus

    relatos, seleciona as imagens que quer transmitir ao leitor, atitude

    tomada intencionalmente47

    , e justamente essa escolha que nos

    permite analisar sua viso de mundo.

    Por meio da anlise de Marie Louise Pratt48

    , o historiador reflete

    sobre alguns aspectos da literatura de viagem, abordada por meio de

    uma analogia entre a acumulao de capital e a sistematizao da

    natureza. A literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de

    cultura, educao e lazer das classes mdias europias e norte-

    americanas, construindo, entre outras coisas, um repertrio comum a

    respeito dos povos estudados e um consenso sobre a necessidade da

    46

    SPURR, David. The Rhetoric of Empire. Durham & London: Duke University

    Press, 1993. p. 13. 47

    LEITE, Ilka Boaventura. op. cit. 48

    PRATT, Mary Louise. Os olhos do imprio: relatos de viagem e

    transculturao. So Paulo: EDUSC, 1999.

  • 39

    interveno do europeu em um mundo que ento se esboava. No

    nenhuma novidade que esses relatos passam a circular livremente

    pelo Velho Mundo, seja com o surgimento de instituies que os

    popularizavam ou mesmo como forma de literatura, penetrando em

    todas as camadas sociais49

    .

    Uma abordagem interessante ao trabalhar com os relatos de

    viagem o fato de descobrir, assim como demonstra Campos50

    , que

    muitas vezes esses esboos imaginrios feitos pelos viajantes de certa

    forma condicionavam a forma em que a Europa pensava e agia em

    relao ao Brasil. Portanto, as descries de viajantes so como

    imagens que estabelecem representaes do real. Produzidas a partir

    de componentes ideolgicos de sujeitos dotados de arcabouos

    culturais prprios e que trazem um patrimnio anterior que

    condiciona o modo de observar e entender o emprico.

    Para que os relatos de viajantes sejam utilizados como fonte

    histrica, necessrio que o historiador decifre e interprete os seus

    significados, articulando o texto ao seu contexto especfico.

    Corroborando com os ideais de Roger Chartier51

    , as representaes

    como produto de vivncias sociais, so as quais geram o contexto em

    que as imagens so produzidas. Sua anlise nos leva a pensar o

    caminho para decifrar a construo de um sentido em um

    determinado processo.

    O falar sobre tornar real, de modo que os discursos dos

    viajantes constituem-se como um esforo de dar realidade e

    inteligibilidade ao que se v por meio das representaes. So essas

    narrativas as responsveis por servirem de elo entre o mundo

    49

    DIAS, J.S. da S. Os descobrimentos a problemtica cultural do sculo XVI.

    Lisboa: Editorial Presena, 1988.) 50

    CAMPOS, Pedro Moacyr. Imagens do Brasil no Velho Mundo. In: HOLANDA,

    Srgio Buarque de (Org). Histria geral da civilizao brasileira. Rio de Janeiro:

    Difel, 1972. V.1, t.2. 51

    CHARTIER, Roger. A histria cultural. Entre prticas e representaes.

    Lisboa, Difel, 1990.

  • 40

    vivenciado e um outro no conhecido, dando assim familiaridade ao

    no familiar, promovendo uma espcie de interseo entre aquilo que

    vivenciado e aquilo que idealizado.

    Por meio de uma perspectiva cultural, os relatos de viagem

    situam-se como uma rica fonte para a compreenso do passado, das

    permanncias e das transformaes discursivas52

    , em que se

    misturam o carter subjetivo do narrador e as bagagens culturais que

    condicionam sua percepo da realidade. Permitindo assim, perceber

    quais as suas prticas sociais e polticas, assim como o contexto em

    que ele se insere.

    Desse modo, o relato de viagem, longe de ser uma narrativa

    inocente, uma das formas de conquista em que o viajante, a partir

    de sua prpria estrutura conceitual, integra os novos territrios e, por

    extenso, o colonizado, ao seu mundo, projetando geogrfica e

    textualmente um universo de saberes e poderes sobre eles.

    Pratt argumenta que tais prticas de estabelecimento de

    significado codificam e legitimam as aspiraes de expanso

    econmica do imprio53. Dessa forma, esses relatos so vistos como

    construes coloniais de significado, procurando compreender como

    o escritor ocidental representava e se apropriava de uma forma

    coerente para o ocidente, daquelas realidades incompreensveis com

    as quais se confrontava no mundo no ocidental.

    O principal ponto a ser percebido que os relatos, aliados as

    crnicas e a cincia, possuem a capacidade de dar inteligibilidade ao

    mundo. Os naturalistas viajantes faziam parte de um corpo de

    conhecimento que buscava interpretar o mundo, seja por meio da

    classificao e catalogao das diversas espcies ou mesmo o estudo

    das diferentes sociedades humanas.

    52

    SILVA, Wilton Carlos Silva da op. cit. 53

    PRATT, Mary Louise. op. cit.

  • 41

    Aquele que pratica as cincias algum provido de uma

    determinada cultura, que foi moldado por uma determinada

    conjuntura social, ou seja, aquele que produz cincia no a produz

    sozinho, visto que dialoga com seus pares, compartilhando idias e

    atividades. Aculturado num conjunto de prticas, de tcnicas, de

    habilidades manuais, de conhecimentos materiais e sociais, ele

    parte intrnseca de uma comunidade, de um grupo, de uma escola, de

    uma tradio, de um pas, de uma poca.

    A criao de sociedades cientficas, as expedies botnicas de

    Lineu e de seus discpulos pelo mundo, as descries da fauna e flora

    que se constituem como os alicerces da biologia moderna, e mesmo o

    estabelecimento da teoria da evoluo paradigma do seu tempo no

    que tange ao conhecimento cientfico foram todas realizaes de

    viajantes e seus textos cientficos fundamentados em relatos de

    viagem.

    aceito pela historiografia da cincia que ao longo dos sculos

    XVIII e XIX, as viagens cientficas foram se especializando, o que

    conseqentemente passou a ser refletido nos relatos produzidos nesse

    perodo. So essas transformaes nos discursos produzidos que

    podem ser analisadas pelo historiador que busca compreender o

    papel desempenhado pela cincia em determinado contexto.

    Os viajantes ingleses cumprem um papel de destaque nesse

    quesito, pois, desde a abertura dos portos, eles se aventuram pelas

    terras brasileiras em busca de deleite, conhecimentos e riquezas.

    Como o ingls John Mawe54

    , o primeiro a obter licena para viajar a

    Minas Gerais. Interessado pelo estudo da regio mineira (assim como

    pela possibilidade de se engajar no comrcio de pedras) Mawe

    aborda em seu relato desde aspectos culturais, aos processos de

    54

    MAWE, J. Viagens ao Interior do Brasil. So Paulo: Ed.Universidade de So

    Paulo, 1978. Coleo Reconquista do Brasil, v.33.

  • 42

    retirada do ouro, dando importantes contribuies ao conhecimento

    geolgico brasileiro.

    Charles James Fox Bunbury, nobre ingls, 8 baro de Bunbury,

    foi outro interessante viajante britnico a se aventurar pelo Brasil.

    Gelogo e naturalista, suas consideraes so remetidas

    principalmente a questes da fauna, flora, aos aspectos geolgicos

    das regies mineradoras, assim como a conformao geogrfica das

    paisagens e prpria histria da minerao. Seu relato contribui de

    forma muito interessante para a construo de uma histria da

    institucionalizao do conhecimento cientfico no Brasil.

    Enfim, o fato que muitos desses viajantes ingleses escrevem

    em seus relatos caractersticas dos costumes, culturas, condies da

    escravido, aspectos econmicos e sociais da sociedade brasileira.

    Mas nem por isso seus relatos deixam de ser importantes para a

    histria das cincias.

    Atrelados a essas observaes, esto descries tcnicas da

    minerao, da geologia das regies explotadas, assim como as

    condies e a natureza das espcies encontradas pelo caminho. So

    observaes que precisam ser garimpadas pelo historiador da

    cincia, para que o mesmo consiga informaes pertinentes ao seu

    objeto. o que podemos perceber nos relatos produzidos no s

    pelos autores citados anteriormente, mas por outros viajantes ingleses

    que estiveram no Brasil, tais como George Gardner, Richard Francis

    Burton, James W. Wells, Marianne North, Alexander Caldcleugh e

    outros que ainda esto por ser descobertos.

    por isso que a crtica a esses relatos mostra-se fulcral para que

    o historiador possa tirar proveito dessas narrativas e consolidar uma

    histria das cincias que se encontra nas entrelinhas dos discursos.

    As narrativas de viagem podem e devem ser usadas como forma de

    se pensar o conhecimento cientfico acerca do Brasil so s

    oitocentista, mas de todas as temporalidades.

  • 43

    Os diversos viajantes perfazem um sculo de presena britnica

    no Brasil, registrando, cada um ao seu modo, as vrias etapas em que

    o conhecimento cientfico se consolida. Ainda que muitos desses

    viajantes venham para o Brasil com o discurso subjacente da

    racionalidade e da misso civilizadora, com a premissa de inquirir

    acerca da possibilidade de domesticar o territrio - abrindo assim o

    caminho para que o Brasil faa parte do Greater Britain - o territrio

    informal da Inglaterra, pode-se sim pensar um discurso cientfico a

    partir das diferentes narrativas feitas em suas viagens.

    Os relatos de viagem, tomados como uma via de acesso para se

    chegar ao conhecimento cientfico, operam para produzir um Brasil

    que pudesse provar, pelas palavras dos gelogos, botnicos e

    naturalistas que aqui estiveram, sua utilidade como fonte de riquezas

    e de repercusso dos saberes cientficos que se afirmavam ao longo

    de todo o sculo XIX.

  • 44

    Das imagens cinematogrficas e audiovisuais

    s imagens da histria

    Suzana Cristina de Souza Ferreira

    Doutora em Histria UFMG Editora Crislida BH MG

    Ao estudar a relao Cinema e Audiovisual, conhecimento e

    sociedade um dos muitos aspectos interessantes com os quais se

    depara a percepo de como as propostas estticas de cada perodo

    esto no s relacionadas a questes sociais, culturais e polticas de

    seu tempo, mas tambm estabelece uma relao sutil com algo

    maior, uma espcie de guia, de orientao para como se deve

    perceber o mundo55

    . Sem dvida alguma, o cinema participa deste

    estado de coisas, e seus processos de transformaes se deram

    diretamente relacionados aos dos registros perceptivos do olhar, do

    som, da viso, do tempo e do humano. Assim, com tal perspectiva,

    no difcil supor que todos os cineastas tiveram um comeo,

    independentemente da poca ou do lugar, afinados com o seu tempo.

    Podem-se tomar como exemplo os irmos Lumirs com suas

    experimentaes em busca de um uso industrial e comercial para a

    sua inveno o que resultou j numa linguagem porque atravessados

    pelas questes do seu tempo. O mesmo raciocnio cabe para os

    primrdios do filme documentrio com realizadores como Flaherthy

    e Alberto Cavalcanti56

    . A mesmo linha de pensamento vale tambm

    55

    FERREIRA, Suzana Cristina de Souza, Cinema Carioca nos anos 30 e 40. Os

    Filmes Musicais nas Telas da Cidade. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte

    PPGH-UFMG, 2003. 56

    Robert Joseph Flaherty (1884, Iron Mountain, Michigan, EUA - 23 de Julho de

    1951, Brattleboro, Vermont, EUA), considerado como um dos pais do

    documentrio nos primrdios do cinema. o inventor da docufico Nanook of the

    North (1922).O termo documentrio foi utilizado, numa das primeiras referncias

    ao genero, no jornal New York Sun, num artigo escrito pelo realizador britnico

  • 45

    para hoje, quando se tem em mira realizadores com mais de cem

    anos de cinema s suas costas como um Wan Kar Wai, (com

    produes de uma extrema economia esttica, mas onde a narrativa

    est presente em toda a sua complexidade e exuberncia), assim

    como as produes de Jerry Bruckheimer nas suas mais celebres

    sries para a televiso (Without a Tracy, Cold Case, CSI entre outras,

    e para no ser negligente bom mencionar o maior sucesso dos

    ltimos cinco anos nas TVs do mundo, a srie Lost, que no do

    mesmo produtor), Vladimir de Carvalho e Eduardo Coutinho no

    documentrio brasileiro. Seguindo essa linha de pensamento ficam

    poucas dvidas que estudar a relao entre as diversas reas do

    conhecimento e a Teoria do Cinema e do Audiovisual sobre como

    tal investigao implica tambm repensar a maneira como o homem

    percebe o mundo, como percebe a si, como percebe a prpria

    John Grierson, tambm um dos primeiros a cultivar esse genero de cinema .

    Flaherty produziu e realizou em 1922 o primeiro filme documentrio de longa-

    metragem com sucesso internacional: Nanook, o Esquim. Este filme

    considerado como a primeira obra cinematogrfica em que implicitamente

    desenvolvido o conceito de antropologia visual. Alberto de Almeida Cavalcanti

    projetou cenrios para cineastas experimentais franceses na dcada de 20 e dirigiu

    seu primeiro filme em 1925. Mudou-se para a Inglaterra em 1934, fazendo

    documentrios e, depois, filmes influenciados por documentrios nos Estdios

    Ealing. Em 1949, retorna ao Brasil e ajuda a organizar a Companhia

    Cinematogrfica Vera Cruz (em So Bernardo do Campo, SP), sendo convidado a

    tornar-se o produtor-geral da empresa. Roteiriza e produz os dois primeiros filmes

    da empresa, "Caiara" (1950) e "Terra Sempre Terra" (1951), e produz, at o

    meio, "ngela" (1951). Fora dos estdios de So Bernardo, dedica-se elaborao

    de um anteprojeto para o Instituto Nacional de Cinema, a pedido de Getlio

    Vargas. Na Cinematogrfica Maristela (em So Paulo), o cineasta dirige "Simo, o

    Caolho" (1952). No final do ano de 1952, Alberto Cavalcanti e mais um grupo de

    capitalistas compram a Maristela, a qual muda de nome para Kino Filmes nesta

    nova empresa ele realiza as obras "O Canto do Mar" (1953) - refilmagem, no

    Recife, do europeu "En Rade" (1927) - e "Mulher de Verdade" (1954). Com o fim

    da Kino, ele vai trabalhar na TV Record e depois estria, no Brasil, como diretor

    teatral. Em 1954, Cavalcanti volta a Europa, contratado por um estdio austraco.

    BERNARDET,Jean-Claude & RAMOS, Alcides Freire. Cinema e Histria do

    Brasil. So Paulo, Contexto, 1988.

  • 46

    histria. Muitas vezes, olhar para este passado/presente de imagens

    se torna uma forma de reconhecimento do futuro.

    O cinema e o audiovisual e a sua contribuio para a construo

    do imaginrio social na histria da humanidade,

    contemporaneamente, so tambm invenes da histria. Isso

    possibilita como proposta pedaggica operar uma ampliao das

    correlaes que possam existir entre as anlises da concepo e

    realizao de um ou mais produtos (filme, sries, programas para TV

    blogs, sites etc.), com a bibliografia e o conhecimento da rea

    especifica, das outras reas envolvidas sem desconsiderar a

    percepo de mundo do realizador57

    .

    A existncia de um ntimo dilogo entre concepo,

    conhecimento, bibliografia e realizao com as ideologias, o tempo,

    a histria, a memria, a verdade est cada vez mais presente em uma

    sociedade que potencializou o suporte digital para muito alm do

    analgico e alavancou os mais variados formatos para TV, cinema,

    computadores, celulares, DVD player, em sntese, a comunicao de

    massa. Hoje, estas so ferramentas importantes para uma escritura da

    vida individual e coletiva e, fundamentalmente, so importantes

    como mediadoras para a compreenso das complexidades do mundo

    contemporneo. Alm disso, a significao e a re-significao do

    passado e do presente, nestes formatos, passam a ter importncia

    fundamental n