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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO
POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL:
reflexões sobre o campo
CURITIBA
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO
POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL:
reflexões sobre o campo
Monografia apresentada à disciplina de OrientaçãoMonográfica II do curso de Graduação em CiênciasSociais, Departamento de Ciências Sociais, Setor deCiências Humanas, Letras e Artes, da UniversidadeFederal do Paraná, como requisito parcial para aobtenção do título de Bacharel e Licenciado emCiências Sociais.
Orientador: Pf. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes
CURITIBA
2014
2
FRANCISCO PINTO DA FONSECA FILHO
POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL:reflexões sobre o campo
Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II do curso de Graduação emCiências Sociais, Departamento de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras eArtes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título deBacharel e Licenciado em Ciências Sociais.
Orientador: Pf. Pedro Rodolfo Bodê de MoraesDepartamento de Ciências Sociais, UFPR
Pf. Pablo Ornelas Rosa
Pf. Aknaton Toczek Souza
3
AGRADECIMENTOS
Gratidão sincera e dedicada
ao professor Pedro Bodê e ao CESPDH, referências decisivas na elaboração do trabalho,
à universidade e aos colegas, pela formação e abertura de portas,
aos compas de militância, lado a lado nas lutas e nos sonhos,
às amigas e amigos, companheiros preciosos de jornada,
à companheira Julia, pela parceria única e inestimável,
aos familiares: mãe, tias e tios, irmãos, avós, primos, pelo amor e pelo cuidado,
a todas e todos que se movem por paz, justiça e liberdade,
e à vida e sua obra contínua.
4
RESUMO
Este trabalho busca traçar um panorama da constituição da política de drogas na modernidade,delimitando um campo em que se reconheçam os processos históricos e os atores sociais derelevância, bem como sua relação com as estruturas de poder e de controle social vigentes.Assumindo os usos de drogas para as mais diversas necessidades humanas como fenômenosuniversalmente presentes nas sociedades, identificamos diferentes sistemas de regulação,legislação e controle, conforme o tempo e o lugar, que expressam as consonâncias edivergências entre aqueles que fazem esses usos. Na formação da política de drogas moderna,observamos a peculiaridade evidente na extensão da economia das drogas como principalatividade comercial no planeta, ao passo da expansão da intervenção institucional e estatalnesse campo, por um lado, permitindo e incentivando certos usos das drogas, e, por outro,combatendo e declarando guerra a outros. A hegemonia mundial desse modelo - oproibicionismo - está associada com a consolidação da economia capitalista globalizada, osprojetos e discursos de poder organizados nos Estados, os conflitos entre classes e grupossociais na defesa de seus interesses e percepções sobre os problemas sociais e ofortalecimento de uma ordem baseada em instituições e mecanismos de controle socialperverso, seletivo e desigual. Contrapondo a conformação proibicionista, modeloseconômicos, políticos e culturais alternativos no tratamento aos psicoativos estão sendodebatidos e pautados por novos atores, os quais organizam a crítica aos efeitos da guerra àsdrogas no campo antiproibicionista. Interessa aqui sugerir referenciais teóricos das ciênciassociais para explorar os contornos e embates desse campo, à luz das estruturas sociais ehistóricas.
5
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 7
2 – HISTÓRICO DA POLÍTICA DE DROGAS ............................................................... 14
3 – POLÍTICAS ALTERNATIVAS ÀS DROGAS ........................................................... 24
4 – POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL .................................................. 36
5 – REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 39
6
1 – INTRODUÇÃO
Para iniciar as reflexões propostas neste trabalho, é preciso antes destacar algumas
intenções e definições iniciais a fim de preparar melhor a leitura.
Este trabalho pretende delimitar e abordar, de forma geral, o campo das políticas de
drogas a partir dos referênciais teóricos das ciências sociais, em especial da sociologia, da
antropologia e da historiografia. Traçando o contorno do debate entre proibicionismo e anti-
proibicionismo, é presente o intuito de fomentar a discussão científica e democrática sobre um
tema de tamanha relevância histórica e atual, reconhecendo o alcance dos métodos e teorias
usadas. Este trabalho é um breve esforço que se soma à grande corrente de pesquisadores, das
humanidades e de outras áreas, que constróem um debate alternativo no tratamento aos
psicoativos em conjunto com a sociedade civil e o poder público1.
Sendo ainda o tema das drogas um tabu, alvo de curiosidade e preocupação, sendo
produto de publicidade e de ocultações ideológicas, sendo objeto de interesses econômicos e
políticos (OLMO, 1990, p. 22), este trabalho tem a intenção de apresentar algumas reflexões
sobre esse campo, principalmente, sobre a construção histórica do problema das drogas, os
atores sociais influentes no processo, a atual política de drogas proibicionista e os novos
atores das políticas alternativas, em relação com a produção de controle social. Para isso, é
essencial problematizar os conceitos de “drogas” e de “política pública”, reconhecer o campo
da política pública de drogas e estabelecer seu alcance nessa discussão.
Segundo as definições adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)2,
endossadas pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID)3,
drogas correspondem ao conjunto de substâncias capazes de modificar funções dos
organismos vivos, resultando em alterações fisiológicas ou de comportamento. Dentro desse
conjunto, encontram-se os psicotrópicos, classificação que abrange as drogas de “atração pelo
psiquismo”, isto é, drogas que afetam diretamente a atividade cerebral e mental humana.
Quanto ao padrão de efeitos e funções em comum na atividade do sistema nervoso central, os
1 Este trabalho se propõe a realizar um trânsito entre clássicos das ciências sociais, como um exercício de aproximação de linhas teóricas interessantes ao estudo do tema, como a criminologia crítica e a abordagem foucaultiana. Reconhecendo o limite da proposta, não há espaço para análises detidas das categorias empregadas,embora elas estejam presentes, em alguma medida, nas discussões dos autores utilizados na bibliografia.2 Disponível em http://www.who.int/substance_abuse/terminology/psychoactive_substances/en/. Acessado em 13/12/2014.3 Livreto informativo sobre drogas psicotrópicas. Disponível em http://200.144.91.102/cebridweb/download.aspx?cd=51. Acessado em 13/12/2014.
7
psicotrópicos se dividem em três grupos: depressoras – como álcool, opiáceos, ansiolíticos,
soníferos, inalantes –, estimulantes – café, chocolate, tabaco, anfetamina, cocaína – e
perturbadores – maconha, LSD, ecstasy, cogumelos e cactos alucinógenos.
O uso de drogas para os mais diversos fins é um fenômeno generalizado pelas
sociedades de toda a história, correspondendo a uma diversidade de necessidades humanas,
tanto as do “corpo” como as do “espírito” (CARNEIRO, 2002, p. 14-19)4. Plantas, fármacos,
remédios e substratos serviram para alimentar, vestir, medicar, sentir prazer, alterar a
consciência, socializar, ganhar dinheiro e conquistar poder (CARNEIRO e VENÂNCIO,
2005, p. 17). Assim, confere-se significado às drogas de acordo com seus usos, sendo
essencial a relação humana estabelecida (OLMO, 1990, p. 25). Ao mesmo tempo, os diversos
povos criaram sistemas próprios para produzir, regular e integrar as drogas na sua experiência
e na ordem social. A definição de “droga” varia de acordo com as circunstâncias e os sujeitos
históricos, e, assim, as legislações e o controle social sobre drogas em cada momento
respondem a fatores de usos culturais e tradicionais, de interesses econômicos e de disputa
política.
Os estímulos estéticos, ou seja, dos sentidos, oferecem um programa do prazer para a vida
humana. Os estimulantes sensoriais são importantes substâncias com relevantes e múltiplos
papéis culturais. Seu uso constitui o imaginário da própria felicidade, numa conexão direta
com o prazer sexual. Por tudo isso, as drogas ão também objeto de um imenso interesse
político e econômico. Seu domínio é fonte de poder e riqueza. Sacerdores, reis, estados, a
medicina e outras instituições sempre disputaram o monopólio do seu controle e a autoridade
na determinação das formas permitidas de seu uso. (CARNEIRO e VENÂNCIO, 2005, p. 16)
Em nosso contexto, esse fato se expressa na íntima relação entre a formação do Estado
moderno e das sociedades capitalistas globalizadas e o controle social sobre as drogas
exercido oficialmente através da política de drogas, estatuto que dispõe sobre a aceitação de
certas drogas e proibição de outras (CARNEIRO, 2002, p. 2). A gestão das drogas é política
na medida em que a instituição que fundamentalmente regula sobre ela é o Estado, o qual
centraliza a elaboração e execução de suas diretrizes, através do conjunto de instituições,
agências e serviços. Assim, é possível identificar um campo de políticas públicas de drogas –
a partir de um conjunto de problemas, diretrizes, instituições e atores sociais em relação ao
tema – assim como existe a política pública de saúde e de segurança. No Brasil, por exemplo,
4 Paginação deduzida do documento disponível em http://www.neip.info/downloads/t_hen2.pdf. Acessado em 13/12/2014.
8
esse campo tem referência jurídica em mecanismos como a Política de Atenção Integral a
Usuários de Álcool e Outras Drogas, de 2003, o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (SISNAD), instituído na Lei de Drogas nº 11.343 de 2006, a Política Nacional sobre
o Álcool, válida a partir do decreto nº 6.117 de 2007, e o Plano Integrado de Enfrentamento
ao Crack e outras Drogas, decretado pela lei nº 7.179 de 2010.
Na literatura das ciências sociais o conceito de política pública é objeto de vários
debates, em que algumas definições se contrastam. Por exemplo, embora a política seja
empregada “para indicar atividade ou conjunto de atividades que têm de algum modo, como
termo de referência, a polis, isto é, o Estado” (BOBBIO, 2000, p. 160), é possível considerar
o conjunto da sociedade civil como potencial ator desse campo, já que dele “participam tanto
organizações públicas não estatais de advocacia política e de prestação de serviços, e
movimentos sociais quanto empresas e indivíduos interessados nos problemas públicos”.
Assim, a abordagem multicêntrica da política pública (SECCHI, 2010, p. 2) converge com o
reconhecimento da historicidade do controle social de drogas, assumindo que a atividade
política e a influência sobre as políticas públicas não são exclusividades das burocracias
estatais, na medida em que a percepção sobre a questão das drogas enquanto “problema
público” está presente no discurso e na prática de diversos atores sociais. O Estado condensa
as tendências dos atores sociais no seu discurso oficial, reproduzindo nele as estruturas de
poder da ordem social (RODRIGUES et al., 2008, p. 91).
Nesse sentido, ao buscar um panorama da política de drogas surgem os
questionamentos: “[...] quem são os atores envolvidos na produção das políticas públicas?
Quem tem poder para tomar decisões públicas?” (DIAS, 2012, p. 16). Indagar a questão das
políticas públicas dessa maneira nos abre possibilidade de tratá-las como são em comparação
com o que elas se propõem a ser. Além disso, podemos compreender, a partir daí, a política
pública como campo de atividades constituídas historicamente e orientadas por interesses
políticos e econômicos, por discursos em disputa pela visão legítima do “problema” e pela
manutenção de relações de poder entre grupos e classes.
Se “uma política pública é uma orientação à atividade ou à passividade de alguém” e
se ela “possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e resposta a um
problema público” no sentido de que ela “é o tratamento ou a resolução de um problema
entendido como coletivamente relevante” (SECCHI, 2010, p. 2), é fundamental reconhecer
quem são os atores da política e, na mesma medida, qual é a percepção construída por eles
9
sobre o “problema” em questão e qual sua intencionalidade na ação. Também é preciso
destacar os objetivos políticos da política pública como uma atividade que busca “sanar os
conflitos e estabilizar a sociedade pela ação da autoridade” em um “processo de construção de
uma ordem” (DIAS, 2012, p. 3), noções familiares à de controle social, enquanto produto dos
mecanismos de regulação da sociedade. “Controle social” aqui indica as formas de
manutenção da vida em comum – a ordem e a coesão social – fundamentada em instituições,
práticas e atributos, internalizada entre grupos e indivíduos e negociada dentro de uma
margem conflitiva inerente. Visto que as políticas públicas são instrumentos efetivos de
intervenção estatal, tratá-los como meios de controle social – normais ou perversos – coloca o
problema de identificar o que se percebe como a “ordem” e os efeitos que o controle gera para
os atores sociais (MORAES e BERLATTO, 2013a).
Assim, a política pública de drogas toma evidência a partir das definições legislativas
do Estado, criando dispositivos de ação em duas categorias: drogas lícitas, cuja economia é
permitida, regulamentada e, em grande medida, incentivada conformes os interesses
organizados no poder público – é o caso do álcool, do tabaco e dos remédios; e drogas ilíticas,
cuja economia é proibida e reprimida pelo aparelho judicial-criminal, e se estrutura em
paralelo à repressão do Estado – o narcotráfico. As organizações que o compõe são
responsáveis pela gestão de drogas como a maconha, a cocaína, a heroína, dentre outras
atualmente proibidas (CARNEIRO e VENÂNCIO, 2005, p. 22). As doutrinas jurídicas que
dispôem sobre essa classificação correspondem à demandas históricas pró e anti drogas,
refletidas nos embates da estrutura social de conhecimento, discurso e poder, configurando o
proibicionismo como
[...] uma prática moral e política que defende que o Estado deve, por meio de leis próprias,
proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo e comercialização. (RODRIGUES et
al.., 2008, p. 91)
Nesse processo, principalmente nos séculos XIX e XX, o discurso científico oficial
exerceu considerável influência sobre os critérios de classificação farmacológica de efeitos,
usos, riscos e danos à saúde e à sociedade. Definindo usos legais e ilegais – cientificamente
legítimos e ilegítimos – a autoridade médica-sanitária fortaleceu-se junto ao proibicionismo e
sua rede de interesses (Ibidem, p. 97). Assim, a comprovação cientificista da nocividade das
drogas amparou o discurso legal, privilegiando pesquisas alinhadas com os relatórios
policiais, os comunicados de imprensa e a burocracia “especialista”, em detrimento de um
10
sólido histórico de estudos indepentendes que obtiveram resultados diferentes quantos aos
reais impactos das drogas, contrariando a irracionalidade da saída criminal para lidar com a
questão (ZIMMER e MORGAN, 1997, p. 19-20).
O proibicionismo também institui-se via discursos morais e criminais sobre o
“problema da droga”, eregido no senso comum, na mídia, nas doutrinações moralistas e,
inclusive, em discursos políticos e institucionais, que ofuscam a percepção das substâncias
legais como “drogas”, e tão pouco se atentam às classificações farmacológicas dos psicoativos
– estimulantes, depressores, alucinógenos – e à diversidade de usos sociais das drogas.
Nesses discursos, “drogas” e “drogados” referem-se de forma generalizada somente a
psicoativos proibidos e aos grupos que os usam. Tal referência é feita como forma de estigma,
em que as “drogas” são vistas como substâncias extremamente viciantes e degradantes, usadas
e comercializadas tipicamente por grupos marginais e pessoas doentes, fracas, degeneradas
material e moralmente, e, enfim, criminosas (OLMO, 1990, p. 22-23). Assim, grupos em
condições marginalizadas na sociedade – seja pela segregação, pela pobreza, pela
discriminação – são vistos como propensos a “cair no mundo das drogas” e são
prioritariamente associados ao vício, ao crime, à violência, à insegurança, ao mal e à
desordem social (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 9). Segundo essa visão, a qual sustenta em
grande medida a força irracional do proibicinismo, as “drogas” e os “drogados” são
verdadeiros inimigos públicos a serem combatidos e exterminados, considerados como a fonte
de diversos problemas sociais ou, pelo menos, sérios agravantes deles (GARCIA e
ASSUMPÇÃO, 2005, p. 16).
O importante, portanto, não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua
capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas muito mais o discurso que se
constrói em torno dela. Daí o fato de se falar da droga, e não das drogas. Ao agrupá-las em
uma única categoria, pode-se confundir e separar em proibidas ou permitidas quando
conveniente. Isto permite também incluir no mesmo discurso não apenas as características das
substâncias, mas também as do ator – consumidor ou traficante –, indivíduo que se converterá,
no discurso, na expressão concreta e tangível do terror. Algumas vezes será a vítima e outras,
o algoz. Tudo depende de quem fale.Para o médico, será 'o doente', ao qual deve-se ministrar
um tratamento para reabilitá-lo; o juiz verá nele o 'perverso' que se deve castigar como dejeto.
Mas sempre será útil para a manifestação do discurso que se permita estabelecer a polaridade
entre o bem e o mal – entre Caim e Abel – que o sistema social necessita para criar consenso
em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação. Por sua vez,
11
desenvolvem-se novas formas de controle social, que ocultam outros problemas muito mais
profundos e preocupantes. (OLMO, 1990, p. 22)
Na cruzada contra psicoativos, usos e grupos criminalizados, as instituições estatais de
policiamento, repressão e punição se expandiram ao longo do século XX, tornando-se
hegemônicas na condução da política de drogas. Ao mesmo tempo, a ideologia de “um mundo
livre das drogas” consagrou-se nos foros internacionais e discursos oficiais como uma missão
civilizatória, uma panacéia dos males humanos, um programa de ações governamentais
intencionalmente orientado. O consenso e o apelo em torno dos princípios da proibição – a
repressão, a abstenção, o encarceramento – encobrem suas origens e consequências. Dado que
toda a investida policial das últimas décadas não impediu o crescimento do consumo e da
produção das drogas, e esteve cada vez mais distante de cumprir a promessa de livrar a
sociedade do vício e do crime, a lógica proibicionista manobra seu retorno de forma
perspicaz: o fracasso sugere que o investimento na proibição é insuficiente e que, para evitar o
risco do avanço da criminalidade e da dependência, é preciso ampliar o seu alcance
(RODRIGUES et al., 2008, p. 102). Por outro lado, a persistência no fracasso das políticas de
proibição sugere que, além de força ideológica, ela se apoia em estruturas políticas e
econômicas históricas em que privilégios, lucros e dominação estão em jogo, atendendo aos
interesses de uma série de atores sociais, tanto “perseguidos” como “perseguidores”
(RODRIGUES, 2003a, p. 10; CARNEIRO, 2002, p. 19).
Há, porém, um conjunto de atores sociais que despontou nas últimas duas décadas
questionando a criminalização e a repressão das drogas. Eles se baseam na crítica à ideia de
“mundo sem drogas” e na avaliação dos efeitos perversos das políticas criminais e penais, do
fortalecimento do crime organizado e da incapacidade de lidar com o abuso de substâncias.
Como alternativa, eles apontam para a regulamentação dos mercados de drogas ilegais, a
flexibilização da repressão ao varejo ilgeal e a ênfase no combate ao sistema macroeconômico
do narcotráfico (RODRIGUES, 2004, p. 16). Ademais, esta compreensão pauta o tratamento
da política pública pelo campo da saúde, da educação e da assistência social, argumentando
que a redução de danos é mais efetiva na prevenção de usos abusivos e problemáticos de
drogas (ROSA, 2013, p. 165).
A tarefa, então, é explicitar os fundamentos e os efeitos do proibicionismo,
contemplada no capítulo 2; a geração de políticas alternativas, presente no capítulo 3; e a
12
convivência delas no atual quadro das políticas públicas de drogas e sua relação com a
estrutura de controle social, no capítulo 4.
13
2 – HISTÓRICO DA POLÍTICA DE DROGAS
No mundo moderno, a feição da atual política de drogas tem raízes no colonialismo
emergente a partir do século XV, em que certas drogas em voga – açúcar, café, tabaco, álcool,
ópio, chocolate, chá e outras “especiarias” – constituíram peças fundamentais do nascente
sistema mercantilista de acumulação primitiva do capital (CARNEIRO e VENANCIO, 2005,
p. 17). Até o século XX, os Estados colonialistas empreenderam, juntamente com as
companhias comerciais, um poderoso modelo liberal de produção e gestão das drogas,
impulsionando e consolidando uma economia das drogas deveras estratégica.
Paralelamente ao surgimento de um mercado global de drogas, as instituições
coloniais – o Estado, a Igreja e a Ciência – por meio da dominação do discurso e da força,
ensaiaram reprimir usos de certas drogas nativas das colônias – especialmente as alucinógenas
– que eram desinteressantes ou “perigosas”. Assim, cogumelos, chás e ervas utilizados de
forma sagrada e medicinal para grupos indígenas, africanos e asiáticos foram perseguidas pela
dominação colonial, que além da exploração do trabalho, da terra e das riquezas também se
expressava enquanto dominação simbólica e moral sobre as populações autóctones (Ibidem, p.
16).
A América e o Oriente integraram-se assim no mundo moderno fornecendo suas riquezas
vegetais e sofrendo a empreitada colonizadora que buscou regulamentar o consumo das
plantas. O tabaco, traficado pelos jesuítas, após uma resistência inicial dos protestantes e dos
orientais, foi aceito e valorizado, juntando-se ao álcool, ao açúcar, ao café, ao chá e ao
chocolate para constituírem o universo das drogas oficiais da vida cotidiana moderna,
enquanto outros, como os cactos e cogumelos alucinógenos americanos foram proibidos pela
Igreja no período colonial, assim como os derivados do ópio, da coca e da maconha, a partir
do século XX, conheceram o estatuto da proscrição, nas diversas formas de proibicionismo.
(CARNEIRO, 2002, p. 2)
Assim, as primeiras políticas de drogas se manifestaram em dois sentidos: certas
drogas são estimuladas, integradas e comercializadas livremente enquanto outras têm
produção e uso perseguido ou restrito. Os fatores que condicionam o interdito ou o estímulo
variam nos casos específicos de cada droga, cada lugar e cada período, respondendo à ação de
seus atores. Na modernidade, esses fatoresse se associam primordialmente com a
consolidação do sistema colonial mundial a partir da época quinhentista, a saber, através da
exploração comercial de especiarias e gêneros exóticos das colônias, consumidas como
14
mercadorias de luxo pelas classes abastadas das metrópoles europeias (Idem); em seguida,
conectam-se com a expansão das necessidades humanas e do potencial mercadológico de
certas drogas, que, antes objeto de requinte e luxo, passaram a ser consumidas em escala
massiva pelos povos, como o açúcar e o tabaco, e representaram, assim, pilares da
constituição da modernidade capitalista e de fenômenos que a acompanham – revolução
industrial, tráfico, genocídio e escravidão (Ibidem, p. 9-10); paralelamente, associam-se
também à estrutura de poder socialmente estabelecida que estratifica a criação e a fruição das
necessidades e do consumo (Ibidem, p. 16); integram-se com as políticas de controle e
disciplinamento da vida privada das classes trabalhadoras de acordo com as demandas
produtivas e com a racionalização generalizada da experiência ocidental (Ibidem, p. 18); e,
atualmente, relacionam-se com estratégias econômicas e geopolíticas de imperialismo,
especulação e policiamento (Ibidem, p. 19-20).
A política sobre o ópio dentre os séculos XIX e XX expressa as transformações
referidas e testemunha o aparecimento dos paradigmas políticos de tratamento às drogas na
esfera do Estado moderno. Enquanto que em meados do século XIX o Império Britânico
levou a cabo duas guerras contra a China para abrir seus grandes mercados para o ópio,
produzido na Índia e traficado pelos ingleses, logo na virada do século são realizadas as
primeiras conferências internacionais com orientações restritivas ao ópio, protagonizadas
pelos EUA e seus ascendentes interesses geopolíticos entre as nações do extremo oriente.
Naquele momento, o livre mercado não estava na agenda governamental e o consenso
produzido sobre a nova política de opióides instituía os usos em duas categorias oficiais: os
legais, restritos ao uso médico, e os ilegais, agrupando todos os demais usos, como religiosos
e recreativos. Ao passo dos foros sobre drogas das duas primeiras décadas do século XX, as
nações adéquam suas legislações e mecanismos de controle às políticas restritivas do ópio,
criando modelos de proibição que logo se aplicam a outras drogas. Certamente os EUA
tiveram papel de destaque nesse avanço, cujo projeto de poder se realiza tanto externamente
quanto internamente, afinal, os povos a serem conquistados o serão primeiramente na pátria
do conquistador, através da associação direta entre negros e cocaína, hispânicos e marijuana,
irlandeses e álcool, chineses e ópio (RODRIGUES et al., 2008, p. 95).
É nesse contexto que a questão das drogas, até então majoritariamente comercial,
amplia sua dimensão como “problema”, na medida em que se acirra um conflito social entre
discursos e práticas sobre drogas de grupos e classes distintas. Nos EUA, protagonistas da
15
proibição mundial, as legislações e mecanismos de controle restritivos são articulados através
de diversos discursos de poder: o discurso médico-sanitarista, único que possui a legitimidade
científica e os recursos da saúde pública, constrói seu monopólio sobre o uso farmacêutico das
substâncias ao mesmo tempo em que combate os demais usos “perigosos” e “doentios”; o
discurso moralista-racista, representado no puritanismo e no sistema de apartheid social, que
dita quais condutas morais são legítimas (e dominantes) e criminaliza e segrega grupos
minoritários e seus usos de drogas; os industriais, que pressionam os governos conforme as
cotações das suas mercadorias; e os policialescos, que autorizam a expansão da repressão e do
controle governamental sobre as “classes perigosas”:
O despontar de associações moralistas contra psicoativos e da vinculação entre minorias e
drogas não foi exclusividade dos estadunidenses, sendo localizável em outros países da
América e da Europa (Carneiro, 1993; Escohotado, 1998; Rodrigues, 2004a). É possível
identificar o período em que o uso de drogas psicoativas deixa de ser considerado pelos
governos como um problema sanitário de menor importância para ser entendido como uma
“epidemia” e, como desdobramento quase imediato, como um “caso de polícia”: é justamente
nos anos 1910 e 1920 quando o hábito de intoxicar-se deixa de ser uma exceção em meio aos
filhos da “boa sociedade”, gracejando entre prostitutas, pequenos criminosos, nas classes
trabalhadoras urbanas etc. Para o moralismo proibicionista, significava a difusão do “Mal”;
para a classe médica e as autoridades sanitárias, o crescimento de um grave problema de saúde
pública; para os estrategistas da segurança pública, a proliferação de criminosos. A um só
tempo, um pecado e um crime de lesa sociedade. (Idem)
Logo, a confluência dos interesses e percepções sobre o “problema” das drogas nos
diversos países gerou as primeiras leis de proibição, sendo o Volstead Act, a Lei Seca de
1919, a política pública inaugural e modelar para o proibicionismo. Através dela, foram
criminalizados os circuitos da produção, circulação e comercialização das bebidas alcoólicas
no território estadunidense, lançando a economia dessas drogas na clandestinidade. Nesse
caso, a demanda e a pressão pela proibição eram pautadas por diversas associações puritanas,
as quais se compreendiam encabeçando uma luta contra as “mazelas morais” da sociedade –
como, também, os jogos de azar e a prostituição –, em nome dos “bons costumes”
(RODRIGUES, 2004, p. 4).
Enquanto política de drogas, o proibicionismo surge com o objetivo (ou o “problema”)
de não somente de acabar com uma substância, mas toda uma variedade de práticas sociais
que envolvem usos da droga específica. Sua intenção proclamada se compromete a eliminar o16
mercado da droga por meio da repressão de toda a cadeia econômica, incluindo produtores,
distribuidores e usuários. O princípio manifesto do proibicionismo é de que o combate à
oferta e demanda da droga encarece o preço e desestimula o mercado, ocasionando sua
extinção gradual. Em paralelo, um combate ideológico também é executado através dos
discursos governamentais, educacionais e midiáticos, para desencorajar subjetivamente
qualquer tipo de uso do psicoativo. Na maioria dos casos, a propaganda antidroga é composta
de pré-noções moralistas e racistas sobre usos e usuários, sem qualquer evidência científica
coerente (Ibidem, p. 9).
Em termos de políticas públicas, o proibicionismo se efetiva no incremento do
aparelho judicial-criminal, do sistema prisional e manicomial, do aparato policial de
repressão, da intervenção médico-sanitária e das campanhas ideológicas enquanto
mecanismos estratégicos para tratamento do “problema social” percebido: a existência da
droga e do usuário em si é o problema, e é um “caso de polícia” ou de “doença”. A execução
das políticas se dá mediante a seletividade do controle social, enquadrando preferencialmente
as “classes perigosas” segundo critérios de classe, raça, geração, gênero e geográficos em um
sistema de desigualdades e exclusões históricas da estrutura social.
A partir do instante em que determinados grupos são diretamente associados a um crime,
quaisquer que seja sua natureza, o aparato coercivo estatal volta-se contra ele sob a
justificativa de aplicar a lei. É interessante reparar que o 'novo crime' do tráfico e consumo de
drogas foi imediatamente conectado a camadas das crescentes populações urbanas que
representavam uma ameaça ao Estado e às classes que o controlavam: perigo de insubmissão,
de greve, de higiene, de ataques à pessoa e à propriedade. Na Europa, Estados Unidos ou
Brasil, essa massa amedrontadora era conformada por negros, imigrantes e migrantes rurais,
socialistas, anarquistas, ladrões, prostitutas, operários, mulheres, homens e crianças de 'hábitos
exóticos e não civilizados'; eram eles a antítese do progresso e das maravilhas do mundo
moderno. (Ibidem, p. 96)
Em 1930, quando a proibição do álcool foi revogada nos EUA, dois efeitos da política
repressiva já estavam claros: o primeiro é a larga expansão dos instrumentos estatais de
repressão e controle; o segundo é, em vez da neutralização da economia da droga, o
fortalecimento de um mercado ilegal para clientes ilegais, originando um ramo de atividade
extremamente lucrativo em vista do risco e da desregulamentação (e omissão) do Estado, uma
verdadeira máquina de gerar criminalização, criminalidade e violência – eis o narcotráfico e
17
sua gama de cartéis, máfias e gestores da droga alastrando suas redes de poder, inclusive entre
instituições e agentes estatais (CARNEIRO, 2002, p. 3).
Apesar de explicitamente produzir efeitos contrários aos seus objetivos nessa
experiência, a política de drogas proibicionista continuou e se expandiu para um rol cada vez
maior de drogas nos EUA e, por sua influência, na maioria dos países, impulsionados pelos
foros internacionais da Liga das Nações e, no pós-guerra, da Organização das Nações Unidas
(ONU). O proibicionismo se consagrou definitivamente como política padrão global no
tratamento aos psicoativos ilícitos nas décadas de 60, 70 e 80, tornando-se hegemônico até os
dias atuais, em um processo que tem como episódios marcantes a Convenção Única sobre
Entorpecentes de 1961, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, a Convenção
Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, realizadas pela
ONU, e a declaração de "guerra às drogas" pelo presidente estadunidense Richard Nixon, em
1972 (KARAM et al., 2008, p. 118). No compasso do avanço da geopolítica do “problema
das drogas” como questão de “segurança nacional” e intervenção militar, a economia da droga
e os efeitos nefastos e manifestos do paradigma repressivo também se mundializaram
(RODRIGUES et al., 2008, p. 99). Nas últimas décadas, diversos países adaptaram suas
legislações conforme as pressões internacionais, mesmo que as políticas proibicionistas
significassem explícitas violações às declarações universais de direitos e às constituições
democráticas nacionais (KARAM et al., 2008, p. 105).
Com a guerra às drogas, as ligações entre grupos e psicoativos se internacionalizam. Novos
“responsáveis” pela disseminação das drogas ilegais são apontados. Eles estão na América
Latina – colombianos, peruanos, bolivianos, mexicanos –, na África – nigerianos,
marroquinos, senegaleses – e na Ásia – birmaneses, afegãos, tailandeses. A lógica em
operação é a da identificação da ameaça no além-fronteiras, idéia condensada no discurso do
governo estadunidense que divide o mundo em países consumidores, as “vítimas”, e países
produtores, os “agressores”. (RODRIGUES, 2004, p. 8)
No Brasil, o processo de instituição das leis de drogas está marcado,
fundamentalmente, pelos primeiros mecanismos do Decreto-Lei de Fiscalização de
Entorpecentes n° 891/38 e do Código Penal de 1941, pela promulgação da Lei de Tóxicos, nº
6.368 de 1976, e do Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão, na década de
70, pelo Sistema Nacional Antidrogas, na década de 90, e, hoje em dia, pela Lei nº 11.343 de
2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Há um
18
evidente aprofundamento do paradigma proibicionista no percurso da mudança legislativa, em
consonância com o endurecimento da aplicação da política pública criminal e a legitimação
dos argumentos da proibição no imaginário social, ao passo que uma margem estreita de
políticas alternativas é permitida (GARCIA, LEAL e ABREU, 2008).
Juridicamente, o aumento da criminalização se expressa nas disposições da lei mais
recente sobre os mecanismos: 1) de aumento das penas, alterando o tempo mínimo de 3 para 5
anos de reclusão, e agravando as circunstâncias qualificadoras (por exemplo, comércio ilegal
com porte de armas); 2) de criminalização antecipada, ignorando as fronteiras entre tentativa e
consumação do crime (por exemplo, combatendo produtos considerados matéria-prima de
fabricação de drogas ilícitas); 3) de equiparação do fornecimento gratuito com o tráfico; 4) de
tipificação de crime por associação ao tráfico de drogas (por exemplo, o financiamento das
atividades ilegais); 5) de aplicação de penas privativas de liberdade, impedindo a execução de
penas alternativas (como penas restritivas de direitos); 6) de grande aumento nos valores de
aplicação de multa; 7) de negação dos pedidos de liberdade provisória, equiparando o crime
de tráfico aos crimes hediondos (como homicídio e estupro); 8) de restrição ao recurso contra
a sentença condenatória para reincidentes criminais; 9) de legitimação de meios invasivos e
abusivos na obtenção de provas, executados principalemente por agentes policiais antes e
durante o processo; 10) de necessidade de comprovação da origem de patrimônio do
incriminado; e 11) de manter a criminalização da posse de psicoativos para consumo pessoal,
através de penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a
cursos educativos, repreensão, multa e, em certa medida, prisão. À custa de direitos humanos
e constitucionais, o proibicionismo viola uma míriade de princípios jurídicos, como o
princípio da lesividade da conduta proibida, que caracteriza a conduta criminal quando ela
afeta direta ou indiretamente bens jurídicos relacionados a direitos individuais; o princípio da
proporcionalidade, que estabele que o Estado não pode cometer excessos em sua atuação; o
princípio da individualização da pena, que impede a generalização abstrata das condutas
criminais; o princípio da culpabilidade, o qual garante que “ninguém pode ser punido pelo que
é, mas apenas pelo que fez”; o princípio da isonomia, o qual prevê que todas as pessoas em
igualdade de situação têm de ser tratadas de forma igual; a garantia do estado de inocência e
da possibilidade de recurso no processo; a garantia do direito a não se auto-incriminar; e o
princípio da liberdade individual (KARAM et al., 2008, p. 106-117).
19
Mantendo a criminalização da posse para uso pessoal, a Lei 11.343/06 repete as violações ao
princípio da lesividade e às normas que, assegurando a liberdade individual e o respeito à vida
privada, estão ligadas ao próprio princípio da legalidade, que, base do Estado de direito
democrático, assegura a liberdade individual como regra geral, situando proibições e restrições
no campo da exceção e condicionando-as à garantia do livre exercício de direitos de terceiros.
(Ibidem, p. 116)
Assim, o aparelho judicial-criminal do Direito Penal, teoricamente instituído para lidar
com os conflitos somente quando outros meios de controle social falham – segundo o
princípio da “ultima ratio” –, tornou-se a principal via de execução da política de drogas
(MORAES e KULAITIS, 2013, p. 7). Como um instrumento de guerra ao “inimigo”, o
aparelho escamoteia percepções estruturais e integradoras dos problemas sociais, gerando em
larga escala os efeitos perversos do controle social, como violência, medo, insegurança,
segregação e ódio. À medida que o fracasso da política de drogas fica mais evidente, os
interesses na sua manutenção propagandeiam que há, na realidade, uma “crise da segurança
pública” em vista de uma situação emergencial e incontrolável da criminalidade, e que a
solução para o quadro é intensificar a repressão e a criminalização (KARAM et al., 2008, p.
117).
Teoricamente, “segurança pública” é efeito de mecanismos de controle social com
finalidade de integração e interação sociais, gerando sensação de segurança e ausência de
medo. A nível prático, o termo designa mecanismos de manutenção da ordem, a exemplo
brasileiro, representados no conjunto do sistema de justiça criminal e penal (instituições do
judiciário, ministério público, defensoria pública, secretarias estaduais e federais de segurança
pública, polícias, sistema penitenciário). Deve-se observar a definição de ordem tomada na
orientação da ação dessas instituições. Geralmente, a noção de “ordem” se remete a interesses
de estruturas de poder, as quais orientam a ação de manutenção da ordem como manutenção
de privilégios minoritários em detrimento de direitos da maioria. Os mecanismos da
segurança pública presentes no Brasil são herdeiros de estruturas sociais e políticas marcadas
pela desigualdade e repressão, como a ditadura militar. Essas características são determinantes
na seletividade com que opera o sistema de justiça criminal. Assim, o escopo da segurança
pública restringe-se a segmentos sociais despossuídos ou em conflito com a “ordem”, como as
populações periféricas, reproduzindo o fenômeno de criminalização da marginalidade e da
pobreza (MORAES e BERLATTO, 2013c). A seletividade baseia-se na concepção de que os
20
excluídos da sociedade de bem-estar são pontenciais criminosos, verdadeiras ameaças a
seguridade da civilização, associando diretamente as condições de pobreza material com a
degradação moral. Daí que o discurso da segurança pública se constitui como fundamento
prioritário da intervenção estatal, tomando referência na elaboração e execução das políticas
públicas. Em nome da “pacificação social”, a militarização das polícias, o patrulhamento e a
repressão ostensiva, e a ocupação de territórios demarcados como locus do crime tornam-se
regras e condicionantes para qualquer abordagem de políticas sociais. Em se tratando de
políticas de drogas proibicionista, essa é a regra. O fenômeno da policialização das políticas
públicas e dos conflitos sociais está na raiz da manutenção dos efeitos perversos sentidos pela
sociedade em geral (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 7-9).
De forma muito resumida, mas suficiente para iniciar a reflexão, o que estamos definindo
como a policialização das políticas publicas é o processo por intermédio do qual os discursos
sobre a produção da segurança pública tomam a centralidade na elaboração de uma política
pública se constituindo pela prevalência ou priorização da utilização das polícias na
implementação da política. (Ibidem, p.6)
[...] Sendo assim, talvez fosse mais preciso para tratar da policialização das políticas públicas,
a observação de que isto ocorre quando o sistema de justiça criminal é acionado pela
utilização das polícias na elaboração das políticas ou, pior ainda, quando as polícias são as
proponentes das políticas públicas de cunho social, cujos exemplos, pelo menos no caso do
Paraná, seriam a Patrulha Escolar e o PROERD, nos quais a polícia se faz presente no
cotidiano escolar. (Ibidem, p.7)
[…] Talvez fosse melhor dizer uma policialização militarizada das políticas públicas. Que
teria sua base no que dissemos logo que iniciamos a elaboração desta análise, a saber, a
associação entre criminalidade e marginalidade social parece estar presente na concepção de
políticas públicas voltadas a esta população “marginal” dado que as ações propostas, sejam na
área de assistência social ou de segurança pública, identificam a pobreza como premissa para
entrada no mundo da criminalidade e buscam manter os jovens pobres ocupados e isolados do
seu próprio grupo. Estas políticas acabam por reforçar a dinâmica de marginalização que
pretendem combater e lançam sobre essa população um estigma de grupo e de território, ou
seja, de uma área supostamente marcada pela violência e habitada por criminosos e ou futuros
criminosos. (Ibidem, p. 9)
No caso do narcotráfico, a seletividade classista e racista do combate policialesco cria
um estigma sobre a figura do “traficante”, ocultando toda a rede de organizações, legais e
21
ilegais, que operam a economia das drogas em simbiose com o Estado ao longo dos séculos.
A imagem do “criminoso” é definida de acordo com discursos condicionados pelas estruturas
de poder e dominação, em que os papéis das elites econômicas e políticas e das instituições
estatais na conformação das economias e organizações ilegais é invisibilizado pelas
ideologizações das “classes perigosas” e do “inimigo” (MORAES e BERLATTO, 2013b). O
crime organizado se estrutura em relação íntima com a lógica das instituições, da burocracia e
das elites, da mesma forma que setores de mercados legais e ilegais combinam-se na gestão
das drogas. Empresas narcotraficantes estão inseridas em posições centrais em mercados
financeiros globais e políticas econômicas nacionais, setores de alta rentabilidade e menor
violência. A guerra às drogas e o narcotráfico no proibicionismo mundial tornaram-se fontes
de estratégias geopolíticas e militares. Essa característica simbiótica é reconhecível no
contexto brasileiro em fenômenos como a influência dos grupos do varejo em São Paulo e Rio
de Janeiro, o poderio das milícias, os casos de comprovação ou suspeita de envolvimento de
profissionais políticos, operadores do judiciário e oficiais da polícia com o tráfico, e a
ampliação das rotas e centros de produção e consumo de drogas, principalmente maconha e
cocaína, articuladas, em alguma medida, ao poder público (RODRIGUES, 2003a, p. 10)5.
A permanência da “face oculta da droga”, das estigmatizações convenientes e das
generalizações que impedem a percepção e o conhecimento sobre as questões econômicas e
políticas das drogas é alimentada fundamentalmente pelos discursos midiáticos. Meios de
comunicação de massa são portadores de uma legitimidade informativa determinante na
formação do imaginário a respeito dos problemas sociais, muitas vezes se assumindo como
porta-vozes da agenda pública. As construções simbólicas midiáticas perpassam arranjos de
discursos propagandistas, morais, científicos e didáticos que informam as percepções e ações
individuais e coletivas, dentro de um campo de lutas simbólicas e produção de representações
sociais a respeito dos conflitos e fenômenos. Em grande medida, elas tem cumprido um papel
relevante na percepção sobre o medo, a violência, os problemas e as saídas para eles,
constituindo-se, assim, como fontes de controle social e mecanismos de manipulação de
interesses diversos. O uso do medo como mercadoria estimula uma indústria de consumo
renovável de produtos de segurança, e, como relação com o “outro”, canaliza a culpabilização
dos problemas sociais sobre aqueles que não compõem a normatividade social (MORAES e
ALMENDRA, 2012, p. 268-269). Assim, o discuro proibicionista se atualiza constantemente
5 Paginação deduzida a partir da versão encontrada em http://www.neip.info/downloads/artigo2.pdf. Acessado em 13/12/2014.
22
mobilizando o imaginário social em torno de informações parciais, ocultamentos ideológicos
e sentimentos de ordem bastante sensível.
Porém, tão logo notam-se os seus efeitos, críticas e reações ao proibicionismo crescem
em variados grupos sociais, em vários países, expressando-se inclusive em projetos
alternativos de políticas públicas para as drogas e movimentos pró-legalização
(SILVESTRIN, 2013, p. 119).
23
3 – POLÍTICAS ALTERNATIVAS ÀS DROGAS
Nas últimas décadas, discursos inovadores na abordagem às drogas vem galgando
espaço, tanto entre os grupos de usuários e suas redes, como nas regulações oficiais das
políticas de segurança pública, saúde, educação e assistência social. No Brasil, esse
movimento ganha força após a reabertura democrática, atravessando as décadas de 90 e de
2000, chegando aos dias atuais com inserção concreta na agenda pública e no imaginário
social. Suas várias tendências tomaram forma no que se chamou de antiprobicionismo,
agrupando diversos atores num consenso a respeito do fracasso da proibição e da necessidade
de alternativas.
Esses atores – principalmente usuários, operadores da segurança, profissionais da
saúde, pesquisadores, movimentos sociais, micro e grandes empresários – destacam-se na
pequena abertura dentro do proibicismo, a qual se traduz em mudanças na percepção sobre as
drogas e na efetivação de algumas políticas públicas alternativas à guerra e à repressão,
baseadas na regulação dos usos e mercados na educação sobre as drogas. Dentre a miríade de
influências no campo antiproibicionista, destacam-se, a seguir, a Redução de Danos (RD), a
justiça restaurativa e o abolicionismo penal, a Marcha da Maconha e a cultura canábica.
O movimento de Redução de Danos tornou-se um marco nesse campo, constituindo-se
formalmente a partir de meados da década de 1980, em países como Holanda, Reino Unido e
Suíça, com projetos focados na prevenção de HIV e outras doenças entre usuários de heroína
e cocaína injetáveis, distribuindo seringas descartáveis para evitar o compartilhamento do
instrumento, criando ambientes para uso controlado e admitindo a prescrição de metadona
para o tratamento de depententes. As políticas de redução de danos inovaram na abordagem
da questão, reconhecendo a impossibilidade de extinguir os hábitos de intoxicação da
sociedade, mas atentando-se às chances de previnir e minimizar os impactos colaterais dos
usos de drogas entre os indivíduos, os grupos e a sociedade em geral (RODRIGUES, 2004, p.
10). Elas surgiram como iniciativas para tratamento de usuários de drogas lícitas e ilícitas, em
risco ou dependentes, colocando-se como alternativa ao modelo preventivo da medicina
sanitarista e ao modelo compulsório e manicomial das comunidades terapêuticas. Ora,
rejeitam a abstinência como regra terapêutica e integram a gestão dos usos com a liberdade
individual, abandonam a estigmatização patológica dos usuários e os reconhecem como
sujeitos de direito (ROSA, 2013, p. 164).
24
No Brasil, as primeiras iniciativas de redução de danos despontam a partir de 1989,
vinculadas a estratégias de prevenção de AIDS e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis
(DSTs), enfrentando, porém, processos e retaliações judiciais pelo Estado. A resistência à RD
parte do paradigma da abstinência, composto por uma rede de instituições que dispõem sobre
os controles sociais das drogas, almejando a hegemonia das formas de tratamento e da
submissão do campo da saúde ao poder jurídico, psiquiátrico e religioso (PASSOS e SOUZA,
2011, p. 157-158). Em 1994, com o Programa Nacional de DST/AIDS, em 2003, por meio da
Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas,
e na instituição de outros Programas de Redução de Danos (PRDs) é que as alternativas são
sistematizadas e efetivadas como orientações da política pública nacional, entretanto, ainda
bastante limitadas perante a margem da burocracia institucional e o escopo dos princípios da
guerra às drogas.
Por isso, a militância dos redutores de danos fundou a Associação Brasileira dos
Redutores de Danos (ABORDA), em 1996, organizando-se políticamente e difundindo a rede
de entidades e Organizações Não Governamentais (ONGs) parceiras pelo país. A emergência
do movimento de redução de danos permitiu a expansão de uma abordagem mais autônoma,
crítica e propositiva sobre os PRDs instituicionais e os próprios métodos. Pouco a pouco,
usuários de drogas, travestis, profissionais da saúde, pesquisadores e portadores de DSTs
foram apropriando-se dos princípios e práticas da RD, endossando as mobilizações nacionais
por mudanças na política de drogas, como a descriminalização dos usuários, a sua inclusão
democrática na gestão terapêutica e o fim dos tratamentos punitivos. Enfrentando as
contradições de financiamento e vinculação estatais das ONGs, o movimento da redução de
danos articulou-se com diversos outros movimentos de minorias, como o antiproibicionismo,
a comunidade LGBT, a organização das prostitutas e a luta antimanicomial. O fortalecimento
da rede de articulação, cogestão e cuidado é fundamental para a efetividade das alternativas de
redução de danos (Ibidem, p. 159-160).
Não podemos esquecer, e certamente isto é o mais essencial, que a RD é um método
construído pelos próprios usuários de drogas e que restitui, na contemporaneidade, um
cuidado de si subversivo às regras de conduta coercitivas. Os usuários de drogas são
corresponsáveis pela produção de saúde à medida que tomam para si a tarefa de cuidado.
reduzir danos é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um cenário democrático e
participativo. […] A RD se torna uma estratégia ampliada de clínica que tem ofertas concretas
25
de acolhimento e cuidado para pessoas que usam drogas, dentro de arranjos de cogestão do
cuidado, tendo como um dos principais desafios a construção de redes de produção de saúde
que incluam os serviços de atenção do próprio Sistema Único de Saúde, Emergências
Hospitalares e internações breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da Família, Caps-ad.
(Ibidem, p. 161)
Apesar da efetividade demonstrada mesmo em um limitado conjunto de ações de RD,
as abordagens alternativas ao modelos preventivo e manicomial ainda encontram sérios
entraves para ganhar espaço em instituições e políticas públicas voltadas às drogas e aos
usuários, como nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-AD),
organizados na Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Drogas, de 2003 (Idem;
GARCIA, LEAL e ABREU, 2008, p. 271).
Se a redução de danos pretende superar os estigmas patologizantes imputados aos
usuários, as propostas da justiça restaurativa e do abolicionismo penal têm como meta a
flexibilização dos sistemas punitivos e criminais, inclusive na sua incidência sobre usuários e
comerciantes de drogas, e a busca de alternativas jurídicas para a resolução de conflitos.
A crença moderna de que há no corpo social uma parcela de grupos e pessoas tão
desviantes e degenerados, incapazes de adequarem-se plenamente ao convívio social, está na
base da construção de sistemas punitivos, incumbidos de fazer valer a normatividade, o
castigo e o sofrimento como maneiras de lidar com os agentes considerados corruptores. O
exercício desses sistemas compreende o rol de instituições policialescas e criminais do Estado
– como as polícias e a prisão – e também um grande número de microrrelações políticas e
organizações do cotidiano – como as da escola, da indústria, do lar – as quais reproduzem
seletivamente os mecanismos de controle social sobre as “classes perigosas”, sejam povos e
Estados externos sejam os “inimigos internos”. Desse modo, a justiça retributiva e seu
conjunto de dispositivos judiciais e penais tornaram-se a via de regra na lida com aqueles que
representam a origem dos conflitos e da instabilidade social, como, no curso do
proibicionismo, os usuários e pequenos varejistas de drogas (RODRIGUES, 2004, p. 2-3).
Questionando os resultados de uma ordem vingativa e desigual, o abolicionismo penal
e a justiça restaurativa partem de premissas distintas na abordagem e resolução dos conflitos,
compreendendo as limitações e os efeitos perversos que o uso amplo e universal de métodos
punitivos apresentam nesses casos. Em vez de generalizar os contextos criminais e as
penalidades retributivas, as diretrizes abolicionistas tratam a conflitividade como uma26
situação-problema, em que o acompanhamento das especificidades do fenômeno buscam uma
solução local e conciliatória entre as partes, na qual toma centralidade a reparação dos atos
danosos envolvendo algoz e vítima. Para a política de drogas, especificamente, a localidade e
a singularidade das práticas a serem reguladas encontram-se nos modos e padrões de consumo
dos usuários, interessantes delineadores de métodos individuais e coletivos para autocontrolar
e integrar as experiências com psicoativos (Ibidem, p. 14-15).
Enquanto na justiça retributiva o Estado se coloca no lugar da vítima, que deixa de ser
protagonista do processo, tornando-se mero coadjuvante, e o acusado deixa de ser sujeito,
tornando-se objeto das determinações do poder judiciário, na justiça restaurativa tanto as
vítimas quanto os seus infratores são reconhecidos como sujeitos, tendo o Estado apenas como
mediador do conflito, no intuito de reparar o dano causado por uma das partes. Com a redução
de danos ocorre de forma análoga, pois enquanto se tem no modelo médico-sanitário a
presença do poder do médico em prescrever e muitas vezes obrigar o usuário a um tratamento
pautado na abstinência, considerando-o mero objeto em relação às suas determinações, o
modelo alternativo surge no intuito de dar voz a esses sujeitos e reconhecê-los como cidadãos.
(ROSA, 2013, p. 175)
Tais linhas apontam para um tratamento às drogas alternativo, questionando em certa
medida os parâmetros políticos binários de políticas públicas para drogas legais e ilegais. A
constatação da defasagem entre o conhecimento e a legislação nasce da percepção do
complexo campo das drogas, e da necessidade de reconhecer e tratar cada um de seus usos a
seu modo (RODRIGUES, 2003b, p. 4-5). Embora na academia venha se consolidando um
consenso em torno do fracasso da proibição das drogas como política de Estado, na sociedade
em geral, a visão de que a economia de certos psicoativos deve ser criminalizada ainda é
hegemônica, generalizando a via criminal para combater os usos, a produção, o comércio. Por
outro lado, compreendendo as limitações das propostas alternativas no cenário da proibição e
da repressão, atores e movimentos que encabeçam as proposições de políticas radicais para a
superação do proibicionismo se apropriam das práticas e discursos da RD e do abolicionismo,
considerando-as como medidas importantes num quadro mais vasto de reformas.
A crítica ao proibicionismo presente nos discursos de redução de danos não implica
necessariamente numa defesa de posturas mais radicais no que se refere à situação legal das
drogas. Conforme apontam Weingardt & Marlatt, “a abordagem de redução de danos é
compatível com uma grande variedade de opções políticas que se situam em um espectro entre
a legalização total e a proibição total”. Por “legalização total” poder-se-ia supor uma situação
27
na qual não houvesse controles governamentais sobre a produção, circulação, venda e
consumo de psicoativos compondo um cenário de desregulamentação ultra-liberal. Os autores,
no entanto, fazem questão de salientar que tal grau de liberalização não seria prudente devido
à ausência de controles públicos efetivos sobre o circuito comercial das drogas psicoativas.
Em todo caso, “as intervenções de redução de danos são compatíveis com todas as opções de
políticas de drogas, inclusive a proibição”. Em um ambiente proibicionista alguns movimentos
são possíveis, como a troca de seringas, mas as chances de ampliação do auxílio aos
consumidores de psicoativos aumentam com a flexibilização das políticas antidrogas. Assim, o
terreno para a redução de danos é mais fértil num país como a Holanda, em que há
descriminalização de facto do uso de psicoativos, do que nos Estados Unidos ou Brasil.
(Ibidem, p. 8-9)
Está em curso o fortalecimento de uma frente em prol da legalização das drogas, que
faz a conexão dos debates acadêmicos, culturais, jurídicos e políticos com a sociedade civil e
o mercado. Destaca-se nesse processo a discussão sobre a legalização da planta Cannabis sp.,
a droga ilícita mais consumida mundialmente, e seus derivados alimentares, medicinais e
industriais, como primeiro passo na flexibilização das proibições e da repressão. No contexto
brasileiro, o movimento “Marcha da Maconha” e a “cultura canábica” congregam esses atores
sociais e suas bandeiras, e se constituem como contrapontos da hegemonia proibicionista
(SILVESTRIN, 2013, p. 11-12).
Inicialmente, a militância pela legalização da maconha enfrenta os discursos morais,
sanitários e criminais sofrendo uma estigmatização de face dupla: a primeira recai sobre a
planta em si e a segunda atinge aqueles que colocam-se publicamente em defesa de
transformações legislativas e políticas no tratamento dela (Ibidem, p. 7). Desse modo, o
movimento se incumbe das tarefas de disseminar informações históricas, culturais e
ecológicas a respeito da canábis entre os usuários e suas redes, e de pautar os debates políticos
sobre os fundamentos e as consequências da proibição, os projetos de mudança nos países do
mundo e no Brasil e os próprios rumos do movimento antiproibicionista entre apoiadores e
não apoiadores de suas demandas. Iniciando a década de 70, com breves iniciativas de
discussão, e atravessando as décadas de 80, com os primeiros manifestos públicos pela
legalização da canábis e os primeiros encontros organizados de estudiosos e militantes no
tema a ter certa expressão, e 90, quando alguns profissionais políticos defensores da
legalização foram eleitos e a cultura canábica recebeu grande impulso, contorou-se um
28
movimento germinal de defesa da legalização da maconha, mas de pouca inserção e
relevância no cenário político nacional (Ibidem, p. 122-123).
Internacionalmente, os movimentos pela legalização despontaram com a realização da
Million Marijuana March, a qual teve sua primeira edição brasileira em 2002, na cidade do
Rio de Janeiro. Nos anos seguintes, usuários, personalidades políticas e organizações, como a
Psicotrópicus – ONG antiproibicionista –, o fórum de internet Growroom – dedicado a
cultivadores da planta – e o Movimento Nacional pela Legalização das Drogas (MNLD),
reuniram forças para consolidar a marcha na cidade e, aliados a diversos outros coletivos
regionais, associações de redução de danos e de usuários de drogas, partidos políticos,
entidades estudantis, ONGs e movimentos pró liberdades individuais, buscaram articulá-la no
Brasil todo:
[…] As edições locais da marcha são organizadas por coletivos regionais, autônomos em suas
decisões, mas com acesso às discussões nacionais que ocorrem, em sua maioria, na lista de
emails da marcha e no fórum do site do evento. Estas discussões não tem caráter decisório, em
sua maioria, mas são antes troca de experiências e de escopo gerencial, como acerto de datas,
postagens nos blogs, etc., sendo que a única regra que percebi estar bem estabelecida e valer
para todos os coletivos diz respeito às datas do evento, que, em obediência ao calendário
mundial da GMM6, deve ocorrer no mês de maio. Nos últimos dois anos, no entanto, por conta
do elevado número de cidades que realizaram manifestações, algumas acabaram por ocorrer
no começo do mês de junho. Esta preferência pelo mês de maio sofreu a mesma adaptação ao
contexto nacional, o mesmo 'abrasileiramento' que o nome do evento – de Global Marijuana
March para Marcha da Maconha – e ganhou a alcunha de “Maio Verde”, em alusão ao “Abril
Vermelho”, mês de protestos e invasões de terras como meio de pressão do Movimento Sem
Terra e outros congêneres da luta no campo. (Ibidem, p. 124)
Para além de pautar as discussões políticas sobre a canábis e a proibição, o evento da
Marcha da Maconha, realizado, a partir de 2007, foi assumindo o caráter de manifestação
catártica, comemorativa e afirmativa entre seus participantes, cada vez mais influenciada pelo
universo da cultura canábica. Progressivamente com mais adeptos e organizadas em mais
cidades – como Curitiba, São Paulo, Recife e outras –, as marchas passaram a chamar a
atenção da sociedade, da mídia e da ação judicial e policial, sendo várias vezes proibidas e
perseguidas nos anos seguintes, em especial no ano de 2008, principalmente sob o argumento
de que o movimento fazia apologia às drogas. Entretanto, o conjunto de fatos, notícias,
6 Global Marijuana Marcha foi uma denominação da Million Marijuana March adotada nacionalmente.29
prisões e violências trouxe, em certa medida, uma publicidade positiva para movimento,
extendendo o alcance do debate sobre a legalização da maconha no país (Ibidem, p. 129).
Ademais, a interdição das marchas por autoridades do judiciário propiciou a
mobilização do movimento para pressionar o poder público e garantir a realização do evento
com respaldos constitucionais e jurídicos, alegando o direito à liberdade de expressão e à
discussão sobre a mudança na política de drogas. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal,
pressionado pelo movimento, pela sociedade civil e pela péssima repercussão da repressão
policial à manifestação em São Paulo, julgou inconstitucional a criminalização da Marcha da
Maconha por acusação de apologia ao crime, fato que legalizou incontestavelmente a
realização do evento e que representou um considerável recuo proibicionista no país (Ibidem,
p. 131).
De lá para cá, as marchas e outros diversos eventos culturais e políticos no âmbito do
movimento pró legalização da maconha vem sendo realizados, aumentando sua força social e
sua importância na arena política. Percebendo esse avanço, atores do meio reconheceram a
profusão de uma cultura canábica, relacionada a estilos de vida em torno dos usos da planta,
com plenos potenciais para desenvolver um mercado próprio. Assim, uma parte da atividade
militante integrou-se a modestos empreendimentos e negócios no ramo cultural, procurando
atender a demandas localizadas de produtos e serviços relacionados ao universo da canábis,
ao mesmo tempo mantendo-se no cenário do movimento social (Ibidem, p. 161). Um exemplo
que ilustra bem esse fenômeno é a criação da revista “semSemente”7, em 2012, a qual
converge tendências empresarias, culturais e políticas do campo em uma publicação
periódica.
Os movimentos políticos e culturais em defesa dos psicoativos e seus usos, como a
cultura canábica, são expoentes num contexto de mudanças no tratamento às drogas.
Integrando o antiproibicionismo, eles tornaram-se atores sociais destacados nas proposições
de legalização das drogas.
A defesa da necessidade de legalização das drogas sistematiza uma série de propostas
para a reorientação do discurso e da prática das instituições e políticas públicas, de acordo
com os princípios da liberdade individual, da redução de danos e do abolicionismo penal, e
com objetivo de regulamentar a economia dos ilícitos, dispôr sobre os potenciais usos e
7 “A revista semSemente é a primeira publicação sobre cultura canábica do Brasil, e a primeira revista em línguaportuguesa do mundo dedicada ao tema.” http://www.semsemente.com/. Acessado em 13/12/2014.
30
minimizar os riscos e impactos sociais de usos problemáticos. Compreendendo o imperativo
de regulamentar todas as drogas, os atores antiproibicionistas organizam um movimento de
influência na agenda pública, visando um conjunto de reformas que se contraponham aos
ditames da proibição. Embora haja setores heterogêneos no mesmo campo e conflitos internos
quanto à condução das estratégias políticas visando mudanças na lei e na sociedade à longo
prazo, alguns acordos básicos sobre a pauta da legalização são identificáveis.
Em primeiro lugar, é um consenso antiproibicionista que a descriminalização do uso
das drogas significa um passo progressista no caminho das mudanças. Através dela, usuários
de qualquer substância proscrita deixam de ser tratados através do Direito Penal para serem
amparados pelo Direito Civil e Administativo (GARCIA e ASSUMPÇÃO, 2005, p. 4). Como
passo inicial, algumas iniciativas se restringem a propor descriminalizar apenas “drogas
leves”, especialmente a maconha. Enfrentando o argumento de que a descriminalização
incentivaria o consumo de todas as drogas, as pesquisas não indicam correlação entre as
políticas flexibilizadoras e o aumento exponencial do consumo, permanecendo o índice
abaixo ou na média do crescimento nas últimas décadas de proibição (Ibidem, p. 14).
Ademais, ao mudar o estatuto proibido de uma substância e, consequentemente, poder criar
compreensão sobre seus usos e desconstruir os atributos de “fruto proibido”, objeto de
transgressão das normas e prática desmoralizante, a descriminalização é uma forma possível
de previnir e reduzir a incidência de usos de drogas sob essas influências e outros
preconceitos ideológicos.
A proibição e o estigma também impedem o tratamento terapêutico e assistencial
adequado a usuários em risco e dependentes. Visto que todos os usos são impedidos pela lei, o
usuário encontra resistências para buscar tratamento quando necessário, temendo sofrer as
consequências da criminalização e da segregação (KARAM et al., 2008, p. 118). Por outro
lado, o investimento na estrutura de saúde pública dedicada a tratamentos de redução de danos
fica muito aquém dos gastos com a segurança pública, que financiam as demandas penais de
policiamento, prisões e burocracia. Eis que a descriminalização pauta a exoneração dos custos
com a perseguição militar e criminal aos usos de drogas, como forma de poupar recursos
financeiros e vidas humanas disperdiçadas na guerra, os quais podem ser investidos no
sistemas de saúde, prevenção, educação e redução de danos, como políticas públicas
realmente eficazes na mitigação dos impactos e na educação sobre drogas.
31
Por outro lado, mesmo em alguns países em que a política de drogas foi flexibilizada
através da descriminalização e da RD, o estatuto do proibicionismo permanece com vigor,
realocando a força dos sistemas punitivos para os acusados de tráfico e para as penas
alternativas a usuários, como serviços comunitários, cursos obrigatórios e internamentos
compulsórios (RODRIGUES, 2004, p. 10-11).
Assim, o antiproibicionismo argumenta que a efetividade da descriminalização na
redução de danos ainda é limitada, e nula como alternativa frente ao narcotráfico. Ela é
compreendida como um mecanismo emergencial, dentro de uma perspectiva de reformas
estruturais em direção à legalização das drogas. De fato, os modelos de legalização estão
apenas germinando atualmente, de maneira que as proposições políticas em relação aos
contextos sociais exigirão atenção do conjunto da sociedade para identificar as diversas
influências e interesses dos atores envolvidos. Ora, duas vertentes de proposições reformistas
se destacam, a saber, as legalizações estatizante e liberal:
Em ambos os casos, o circuito da produção, venda e consumo de drogas psicoativas deixaria
de ser ilegal, encontrando meios de regulação pela nova legislação específica. Para a
legalização estatizante, prefigurar-se-ia uma situação na qual o mercado de drogas estaria sob
o controle total do Estado, que comandaria desde o cultivo e/ou síntese de substâncias
psicoativas até a comercialização final do produto. No caso de uma legalização liberal, o
Estado atuaria apenas como regulador de um mercado livre de produtores privados de
psicoativos que disputariam seus consumidores com os mesmos recursos utilizados nas atuais
campanhas publicitárias das drogas legais (medicamentos, álcool e tabaco). Os defensores da
legalização estatizante tendem a elencar as vantagens em termos de prevenção ao uso e às
mortes por overdose provenientes do fim do proibicionismo, ao passo que os liberais,
preferem investir nos argumentos que giram em torno da autonomia que os indivíduos devem
ter para dispor de seu corpo na vida privada (Rodrigues, 2003). (RODRIGUES, 2004, p. 11)
De maneira geral, a legalização implica a regulamentação e taxação do mercado dos
psicoativos ilícitos, envolvendo a produção, a distribuição e a comercialização, a disposição
sobre os usos das substâncias – medicinal, recreativo, religioso etc. –, a estruturação de um
sistema de redução de danos para tratamento e prevenção dos usos problemáticos, alimentado
pelos impostos sobre as drogas, da permissão da pesquisa científica sobre o campo, a criação
de agências estatais de fiscalização e a instituição de canais de interlocução com a sociedade
civil e a comunidade acadêmica para avaliação e formulação de políticas públicas sobre
drogas.32
Compreendendo que os usos de quaisquer drogas oferecem certas margens de risco, os
antiproibicionistas defendem que o estatuto da proibição, ao contrário do que alega, contribui
em grande medida para ampliar a nocividade dos usos problemáticos, da dependência e dos
efeitos perversos, e, por isso, pautam a necessidade de tratá-los no campo das políticas
públicas de saúde, educação e assistência social.
Enquanto a produção, a distribuição e a venda ainda forem exercidas pelo narcotráfico,
através de métodos que não oferecem qualquer segurança ou controle de qualidade sobre as
substâncias, os usuários estarão expostos a riscos de saúde e experiências comprometidas
(KARAM et al., 2008, p. 118). Na cadeia produtiva ilícita, as substâncias estão sujeitas à
diversas adulterações, comprometidas prioritariamente com a maximização da exploração
comercial dessas mercadorias. Dentro de uma economia regulamentada, o controle sobre
todas as etapas de produção e fornecimento podem garantir uma margem de fiscalização sobre
a qualidade, bem como o cerceamento da propaganda comercial e do uso por crianças e
adolescentes, tendo em vista a necessidade de redução das prejudicialidades e aproveitamento
das potencialidades das drogas (GARCIA e ASSUMPÇÃO, 2005, p. 15).
Os defensores da legalização afirmam que ela pode ser feita de forma gradativa: criar-se-ia
uma escala de legalização, iniciando a experiência de controle da produção e de venda com
drogas mais fracas como a maconha, depois se pesquisaria sobre os custos sociais ocasionados
com tal abertura e se calcularia a possibilidade de continuar o processo com outros tipos de
drogas. Já o comércio se daria por órgãos estatais e/ou por empresas privadas regulamentadas
para evitar a indução ao consumo através das propagandas. (Ibidem, p. 3)
Além de apresentar saídas mais abrangentes para a execução integral da redução de
danos, o antiproibicionismo aposta na legalização das drogas como política central de
combate ao narcotráfico, ao inchaço do Estado penal e aos índices de violência da guerra que
assola o cotidiano dos centros urbanos, das periferias e do campo. Distinta da ênfase
policialesca e militarizada do proibicionismo no ataque ao crime organizado, que, aliás, incide
seletivamente sobre o pequeno varejo, os usuários e os territórios controlados por facções do
tráfico, a abordagem da legalização pretende afetar o ciclo econômico do mercado ilegal ao
viabilizar alternativas de gestão regulamentada das drogas, as quais devem enfraquecer a
monopolização, a dependência comercial, as influências corruptoras sobre as instituições e a
simbiose entre economias legais e ilegais (Ibidem, p. 15-16). O “combate ao narcotráfico”,
dessa maneira, dá primazia a instrumentos econômicos e políticas sociais para lidar com os
33
conflitos estabelecidos. Se medidas como o controle da demanda e da oferta de substâncias
com critérios de qualidade, a pesquisa de usos medicinais, o fortalecimento da redução de
danos na saúde e na educação e a ampliação da rede de assistência a usuários dependentes ou
em situações de risco se apresentam como alternativas eficazes para amenizar os impactos
individuais e sociais dos usos de drogas, a proposta antiproibicionista de fim a guerra às
drogas também almeja interromper o círculo vicioso da violência e da simbiose entre Estado e
facções do crime organizado, que intensifica danos e conflitos sociais em uma escala
incomparavelmente maior que os usos das drogas em si.
O antiproibicionismo avança no contexto político nacional e global, mesmo que
lentamente. Algumas mudanças estão sendo concretizadas aqui e mundo afora nos últimos
anos, representando maiores ou menores conquistas tendo em vista o objetivo de findar a
guerra às drogas. O Brasil avançou timidamente em termos de redução de danos e de
discussão sobre legalização, ao passo que aprofundou a lógica criminalizadora e suas
consequências perversas. A Holanda enquadrou o uso da maconha na categoria jurídica de
condutas “toleradas” e viu surgir uma rede de estabelecimentos para comercializar a erva em
pequenas quantidades – os coffe shops –, embora tenha mantido a criminalização da cadeia
econômica. Nos EUA, vários estados vêm regulamentando usos medicinais e recreativos da
droga, como a Califórnia, o Washington e o Colorado, empreendendo modelos liberais em
distonância com a política federal de guerra. O modelo associativista espanhol inovou na
gestão, apresentando uma “terceira via” para a legalização ao criar os cannabis social clubs,
onde cultivadores são registrados para atender suas próprias demandas pela planta, sem
influências diretas dos mercados legal e ilgeal. Sendo o primeiro país no mundo a, de fato,
legalizar a maconha, o Uruguai está na vanguarda das políticas de drogas alternativas à
proibição, regulamentando a produção, a distribuição, a venda e os usos da planta
(BURGIERMAN, 2011).
Diante da pressão de uma miríade de atores sociais, cresce o número de nações que
estão flexibilizando sua agenda policialesca e criminal sobre usos e usuários de psicoativos e
ensaiando regulamentar o mercado das substâncias ilícitas, principalmente no que concerne à
canábis, apesar de um quadro institucional e internacional tão antagonista. Assim, para os que
usam, estudam e gestionam as drogas, bem como para os que militam no seu campo, é
necessário ter consciência sobre os alcances dessas mudanças, entendendo as reformas
antiproibicionistas segundo as condicionantes que as estruturas sociais apresentam:
34
À exceção das políticas de redução de danos, ainda pouco consolidadas em lei, muito variadas
e que guardam importante potencial como formas locais de abordagem dos usos de
psicoativos, as diretrizes de abrandamento legal em certos casos (descriminalização) e as
propostas de legalização investem na Lei como fator global para o ordenamento social. A
Proibição, medida cristalizada em lei, deveria, assim, ser combatida e superada por um novo
corpo legal. Uma universalidade por outra, uma busca de solução total e totalizadora por
outra. A lógica da abrangência completa da lei permanece inalterada, ainda que os conteúdos
possam ser cambiados. Permanecendo a amplitude da norma, resta intacto, devemos lembrar,
a baliza da prevenção geral. As situações criminalizadas subsistem transfiguradas. Em um
Estado que reforma seu proibicionismo no sentido da descriminalização, novas condutas
assumem o posto de perigos à segurança pública e à saúde social. As drogas antes proibidas
não deixam de sê-lo, mas ganham um novo status; seus negociantes mantêm-se como
criminosos e devem, como tais, ser presos, punidos, apartados do convívio social. Num
hipotético caso de legalização, liberal ou estatizante, os indivíduos não são libertados em suas
conexões e amarras com os dispositivos punitivos do Estado pelo simples fato de que esses
instrumentos continuam vistos como meios fundamentais para a manutenção da ordem e da
regulação das relações entre as pessoas. Sem eles, impera o caos. Os estatutos legais
universais e progressistas não superam a noção de que a norma homogeneamente aplicada é o
pilar da sociabilidade. As verdades produzidas para a sustentação dessa sociabilidade aposta,
assim, “no princípio universal da lei [como] o dispositivo mais eficaz para a manutenção da
ordem” (Passetti, 2003, p. 211). (RODRIGUES, 2004, p. 12)
35
4 – POLÍTICA DE DROGAS E CONTROLE SOCIAL
Como se explica a permanência e a ampliação de uma política tão fracassada quanto a
proibicionista? Por que as concepções e projetos alternativos, apesar de comprovadamente
mais efetivos que os punitivos em termos de redução de danos, encontram resistência no
campo das políticas públicas? Qual o contexto gerado pelos mecanismos de controle social na
seara das drogas?
Seria possível falar em fracasso do proibicionismo se se supõe que seu objetivo é a
resolução de um conflito para assegurar a integração e o bem-estar social – o controle social,
como entendido na tradição sociológica (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 2). Porém, o
problema de fundo elaborado pelas políticas proibicionistas é insolucionável: quanto mais
distante do objetivo, mais se argumenta para intensificar o tratamento repressivo e
policialesco. Dessa maneira, as políticas públicas, longe de “sanar” o conflito, reproduzem
indefinidamente um “problema” que escamoteia a percepção e a resolução de conflitos sociais
baseados em relações de poder desiguais. À política de drogas não interessa integrar e
equilibrar os fenômenos conflitivos, mas usá-los para segregar e dominar seletivamente. Ela,
assim, conforma-se como “uma estratégia plena de potencialidades em termos de controle
social e criminalização de parcelas da população que já deveriam ser (e eram) controladas
pelo 'bem comum' e em nome 'da paz civil'” (RODRIGUES et al., 2008, p. 94). Legitimando
o controle social formal, os discursos de poder sobre o “problema da droga” – nas suas
dimensões midiática, moral, médica e criminal – podem ser entendidos como expressões de
controle social informal, encarregados de conformar estereótipos, ocultações e ideologias
manipuláveis conforme os interesses sobre o “problema” (OLMO, 1990, p. 23).
Para além do potencial de selecionar os “inimigos” da sociedade e transformá-los nos
principais motivadores das crises e conflitos, o proibicionismo carrega a capacidade de
desresponsabilizar o Estado de suas atribuições sociais e, também, de escamotear seus papéis
simbióticos com o crime organizado na perpetuação de um sistema altamente vantajoso de
exploração comercial e ideológica das drogas:
A imagem da simbiose procura ilustrar quanto o narcotráfico e Estado se completam, ainda
que com interesses de ordens distintas. Para as organizações da droga, a manutenção da
proibição e da repressão ineficientes de um largo leque de drogas psicoativas amplamente
desejadas e consumidas, maximiza os lucros do negócio, ao tempo em que a facilidade com
36
que conseguem influência nas instituições públicas garante que os canais estatais se abram aos
objetivos do crime organizado. Por outro lado, a Proibição às drogas fornece ao Estado uma
importante justificativa para a intervenção na sociedade, através da repressão à produção e
consumo ilegais que, na realidade, insidem diretamente sobre o usuário e sobre o traficante
varejista (geralmente proveniente das classes sociais baixas). A guerra às drogas é ineficiente
para desbaratar os setores oligopólicos, mas é extremamente operacional como uma estratégia
política de controle social. A simbiose se dá, portanto, não só na penetração do aparelho
estatal por envolvidos com tráfico de drogas, como na perpetuação de um modelo repressivo
vantajoso para “perseguidor” (Estado) e “perseguido” (narcotráfico). (RODRIGUES, 2003a,
p. 10)
É possível, assim, questionar a caracterização do proibicionismo como viés de política
pública nos modelos tradicionais. Realmente, mostra-se menos rentável a sua leitura conforme
a tipologia sociológica corrente (SECHI, 2010) do que compreender as políticas de drogas
proibicionistas enquanto diretrizes e mecanismos de regulação social produtores de "controle
social perverso" (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 4), em oposição a um controle social
normal. A perversidade se expressa em um tipo de controle sobre a sociedade, que opera de
modo a produzir a policialização dos conflitos e das políticas públicas, a criminalização da
marginalidade e da pobreza, a segregação social, a cultura e a ordem do medo, da insegurança
e da irracionalidade, a dominação de classe e o cerceamento de liberdades e direitos sociais. A
perversidade da guerra às drogas pode ser assim entendida à luz da queda do Estado de bem-
estar social e da ascensão de um Estado penal no tratamento dos conflitos sociais
(WACQUANT, 2001a apud RODRIGUES et al., 2008, p. 101), enquanto dimensões
coexistentes da instituição política ou como "as duas mãos do Estado", a esquerda que protege
e a direita que reprime (BOURDIEU, 2001 e 2003 apud MORAES e KULAITIS, 2013, p. 5).
Em outro contexto, a análise do que Loïc Wacquant (2001) denomina de política estatal de
criminalização das consequências da miséria aponta que, nos Estados Unidos, os serviços
sociais vão sendo transformados em instrumentos de vigilância e controle das novas “classes
perigosas”, em especial da juventude. […] Por fim, a prisão estabelece-se como uma espécie
de continuum destino da população negra e jovem proveniente dos guetos. Constitui-se o que
o autor identifica como ditadura sobre os pobres caracterizada pela deslegitimação das
instituições legais e judiciárias; a escalada da criminalidade violenta, dos abusos policiais
(dirigidos à população jovem, negra e pobre), a criminalização dos pobres, a utilização de
práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a
37
distribuição desigual e não equitativa dos direitos de cidadania. O Estado convertido à
ideologia do mercado total diminui suas prerrogativas nas frentes social e econômica e reforça
sua atuação na área de segurança e na justiça criminal. (MORAES e KULAITIS, 2013, p. 17)
O enfraquecimento das prerrogativas sociais do Estado se reflete no sucateamento dos
serviços públicos de saúde, educação e assistência social, levando em conta a pequena parcela
de interferência que assumem na questão das drogas, dividida entre uma concepção
majoritária que se baseia no “mundo sem drogas”, na patologização dos usuários e na
criminalização dos pobres, e uma concepção minoritária, fundamentada na redução de danos,
no abolicionismo e nos direitos e liberdades constitucionais. Na realidade, as linhas
hegemônicas nesses serviços estão devidamente alinhadas ao viés repressor do proibicionismo
e seu conjunto de mecanismos de ideologização, vigilância, policiamento, encarceramento e
genocídio.
Eis que no processo de embates da formulação e da implementação das políticas de
drogas há interesses, valores e ideologias conflitantes em jogo, os quais representam, em
último caso, visões de sociedade distintas. É notório que prevalescem nas regulamentações,
ou nas omissões delas, demandas e influências de elites políticas, corporações midiáticas,
oligopólios narcotraficantes, burocracias estatais e de instituições do sistema financeiro, que
remetem a projetos de dominação e perpetuação de estruturas desiguais de poder econômico,
político e cultural. Dessa maneira, a percepção sobre o “problema da droga” no contexto
neoliberal está esvaziada de princípios democráticos e responsabilidades sociais, oferecendo
seletivamente a saída penal para os conflitos (GARCIA, LEAL e ABREU, 2008, p. 273).
Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando um Estado
policial em seu interior, vão sendo afastadas a universalidade, a superioridade e a efetividade
dos direitos fundamentais e de suas garantias, acabando por fazer com que, no campo do
controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados
totalitários vá se tornando sempre mais tênue. (KARAM et al., 2006, p. 118)
Em disputa pela definição do problema e do seu tratamento, o conjunto da sociedade
civil, da academia, dos movimentos sociais democráticos e do antiproibicionismo
permanecem pautando princípios, debates e caminhos alternativos para lidar com as drogas.
Entramos no século XXI com a marca pesada da mão direita na política de drogas, embora a
hegemonia do paradigma proibicionista não seja mais inquestionável.
38
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