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371 POLÍTICA EDUCACIONAL E REPRODUÇÃO DO RACISMO NO COTIDIANO ESCOLAR 1 Maria Valéria Barbosa Veríssimo Júlio Costa Cláudio dos Reis Neide Filgueira Marino Camila de Lima Vedovello 1. INTRODUÇÃO O trabalho apresentado é fruto de uma pesquisa desenvolvida pelo Núcleo de Ensino de Marília, por um grupo de pesquisadores (professores e alunos) da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Campus de Marília. O Núcleo de Ensino é um espaço interdisciplinar da UNESP que articula as atividades de pesquisa, ensino e extensão na Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo. Na Faculdade de Filosofia e Ciências uma grande equipe de trabalho vem implementando diversos projetos baseados nas necessidades apresentadas pelas escolas e a disponibilidade da equipe de trabalho. Esses projetos têm proporcionado um avanço significativo na compreensão dos problemas educacionais decorrentes tanto das práticas pedagógicas, quanto pela implementação das políticas públicas. A compreensão dessa realidade nos permite abordar problemáticas que consigam apreender tanto questões mais específicas como gerais, ao mesmo tempo em que proporciona vislumbrar o encaminhamento de possíveis saídas na superação dos problemas apresentados no dia-a-dia. Todavia, quanto se apreende o espaço de construção do processo de conhecimento, denominado escola, percebe-se a força que têm os desdobramentos da política educacional. Essa é uma dimensão que nem sempre é valorizado como ponto constitutivo desse universo. Nesse sentido, vê-se que a política implementada pela Secretaria Estadual de Educação, nos últimos oito anos, modificou muito a escola, pois teve como uma de suas metas prioritárias a ampliação quantitativa de crianças com a possibilidade concreta de permanência em virtude da progressão continuada. No entanto, a escola quantitativamente ampliada permanece excludente. Ao desenvolver um ensino aligeirado e em condições freqüentemente precárias, dificultou ainda mais a inserção social das crianças e dos jovens que integram os segmentos economicamente desfavorecidos, acentuando a exclusão. Parece que, a partir dos anos noventa, está se reeditando essa história: ampliar os índices de crianças e jovens que concluam a escolarização. Será isso sinônimo de inclusão? Ou um refinamento da exclusão? (FUSARI, 2002, p.4). A questão central da pesquisa foi perceber se a realidade educacional reproduz ou não o racismo, e como a prática pedagógica e apolítica educacional, presentes no processo 1. Instituição Financiadora: PROGRAD/FUNDUNESP

Política Educacional e Reprodução Do Racismo No Cotidiano Escolar

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Política Educacional

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POLÍTICA EDUCACIONAL E REPRODUÇÃO DO RACISMO NO COTIDIANO ESCOLAR1

Maria Valéria Barbosa Veríssimo Júlio Costa

Cláudio dos Reis Neide Filgueira Marino

Camila de Lima Vedovello

1. INTRODUÇÃO

O trabalho apresentado é fruto de uma pesquisa desenvolvida pelo Núcleo de

Ensino de Marília, por um grupo de pesquisadores (professores e alunos) da Faculdade de

Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Campus de Marília.

O Núcleo de Ensino é um espaço interdisciplinar da UNESP que articula as

atividades de pesquisa, ensino e extensão na Rede Pública de Ensino do Estado de São

Paulo. Na Faculdade de Filosofia e Ciências uma grande equipe de trabalho vem

implementando diversos projetos baseados nas necessidades apresentadas pelas escolas e a

disponibilidade da equipe de trabalho.

Esses projetos têm proporcionado um avanço significativo na compreensão dos

problemas educacionais decorrentes tanto das práticas pedagógicas, quanto pela

implementação das políticas públicas. A compreensão dessa realidade nos permite abordar

problemáticas que consigam apreender tanto questões mais específicas como gerais, ao

mesmo tempo em que proporciona vislumbrar o encaminhamento de possíveis saídas na

superação dos problemas apresentados no dia-a-dia. Todavia, quanto se apreende o espaço

de construção do processo de conhecimento, denominado escola, percebe-se a força que têm

os desdobramentos da política educacional. Essa é uma dimensão que nem sempre é

valorizado como ponto constitutivo desse universo.

Nesse sentido, vê-se que a política implementada pela Secretaria Estadual de

Educação, nos últimos oito anos, modificou muito a escola, pois teve como uma de suas metas

prioritárias a ampliação quantitativa de crianças com a possibilidade concreta de permanência

em virtude da progressão continuada.

No entanto, a escola quantitativamente ampliada permanece excludente. Ao desenvolver um ensino aligeirado e em condições freqüentemente precárias, dificultou ainda mais a inserção social das crianças e dos jovens que integram os segmentos economicamente desfavorecidos, acentuando a exclusão. Parece que, a partir dos anos noventa, está se reeditando essa história: ampliar os índices de crianças e jovens que concluam a escolarização. Será isso sinônimo de inclusão? Ou um refinamento da exclusão? (FUSARI, 2002, p.4).

A questão central da pesquisa foi perceber se a realidade educacional reproduz

ou não o racismo, e como a prática pedagógica e apolítica educacional, presentes no processo

1. Instituição Financiadora: PROGRAD/FUNDUNESP

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de ensino e aprendizagem, contribuiu para a manutenção ou superação dos mecanismos

racistas. Tomamos como ponto de partida as relações sociais e pedagógicas de uma escola

estadual, localizada na cidade de Marília.

O município de Marília está localizado a oeste do estado de São Paulo; possui

cerca de 200 mil habitantes e uma rede de ensino fundamental bastante significativa no que

tange ao atendimento às crianças. Essa rede é formada por escolas estaduais, municipais e

particulares. Desde a municipalização, a prefeitura optou por estabelecer uma rede física

própria, e vem, paulatinamente, aumentando a clientela atendida nessa modalidade de ensino.

A escola escolhida para ser analisada está localizada em um distrito distante de

Marília cerca de 15 quilômetros, e que possui uma população economicamente pobre. Uma

parcela significativa dessa população está envolvida com atividade agro-pecuária e reside na

zona rural, sendo que os alunos da escola têm origem nesse ambiente.

Dentro desse contexto, os alunos avaliados pelo SARESP, de 2001, tiveram um

desempenho ruim conforme as habilidades exigidas por essa forma avaliativa. Assim,

constituíram-se turmas de aceleração, recuperação de ciclo e classe multisseriada. Dessas

crianças, 80% eram negras (pardas e pretas)2. Esse conjunto de questões explicita elementos

pertinentes para análise e revela que a pobreza e o racismo estabelecem um círculo vicioso.

As análises preliminares permitem compreender que a escola é acima de tudo

um elemento de reprodução do racismo e não de superação, mesmo utilizando-se de

mecanismos mais sutis, continuam submetendo as crianças negras à difícil tarefa de superar a

discriminação de forma individualizada. A compreensão da reprodução do racismo na

sociedade é uma luz para desvendar a sua reprodução no cotidiano escolar.

2. RACISMO E REALIDADE BRASILEIRA

Outras pesquisas têm sido desenvolvidas na busca de compreender se o

racismo é um fator que interfere no desempenho dos alunos ou não. Porém, esta não tem sido

uma temática privilegiada de estudo, por isso julgamos ser de extrema importância o seu

desenvolvimento; conhecer a realidade das escolas no que tange às relações entre negros e

brancos, permite a reflexão e compreensão da realidade educacional brasileira em uma

dimensão mais ampla.

As observações realizadas na escola constataram um grande despreparo da

comunidade escolar para enfrentar o racismo. Isso se revelou na postura dos adultos e das

crianças, pois eles enxergam o racismo como fenômeno natural das relações sociais. Essa

naturalização não permite aferir as feridas sociais dessa reprodução. Os profissionais da

educação não conseguem elaborar um conjunto de conceitos que permita às crianças

2 Denominaremos de negra a parcela da população considerada preta e parda.

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dialogarem com o senso comum diferenciadamente, inclusive na percepção de serem, muitas

vezes, vítimas do racismo, e em outras, os próprios algozes.

As crianças negras têm sofrido sistematicamente uma opressão racial muito

silenciosa, mas as conseqüências desse silêncio se expressam no mau aproveitamento, na

dificuldade de superar a desigualdade, de resgatar a auto-estima; enfim, o racismo se revela

um obstáculo no processo de ensino e aprendizagem.

Percebeu-se que nas salas de aceleração, recuperação de ciclo e multisseriada

a grande maioria das crianças é negra, e com muita dificuldade de se apropriar do conjunto de

códigos da sociedade letrada. Elas são crianças que introjetaram o elemento da incapacidade

como uma barreira intransponível e natural dos negros e pobres. Essa constatação, já

registrada em pesquisas empíricas, demonstra ser necessária a análise das relações

estabelecidas nas escolas a partir de um prisma muito mais complexo e amplo.

Portanto, se queremos aprender a realidade educacional desse prisma, temos

de adequar a discussão específica à realidade geral de reprodução do racismo na sociedade

brasileira. Um país formado por grande contingente populacional de negros tem na discussão e

superação do racismo um dos seus tabus. No entanto, é nos índices socioeconômicos que se

registram a desigualdade racial, que muitas vezes é velada, mas presente no cotidiano dos

brasileiros e se revela nos mais estreitos espaços da convivência social, política e econômica.

O imaginário coletivo, de democracia racial, presente nesses espaços sociais,

não consegue ser desmascarado, nem mesmo dentro da escola, onde as pesquisas têm

constatado uma reprodução, com muita freqüência, das estruturas do racismo. O modelo de

sociedade brasileira vem favorecendo a construção de uma forma muito peculiar de olhar as

desigualdades, tornando-as elementos intrínsecos e naturais das condições de vida.

Os últimos debates sobre a questão racial têm sido pontuados por questões

importantes, tendo destaque o melhor entendimento das políticas segregacionistas em curso

na sociedade contemporânea brasileiro. Alguns autores chegam a classificar esta nova fase de

neo-racismo, em que está sendo possível rearticular sofisticadamente, e com a marca da

democracia, as bases da exclusão e da dominação.

A sofisticação pode ser percebida pela readequação de dois elementos: “(1) a

manutenção dos privilégios dos segmentos brancos com uma profunda exclusão dos afro-

brasileiros,3 fundada na crença da inexistência do racismo e da desigualdade racial e (2) a

consolidação externa da imagem de um paraíso racial democrático e estável.” (ALBERTO,

3Os termos afro-brasileiro e afro-descendente têm sido utilizados pelos diferentes intelectuais brasileiros e estrangeiros para designar a população brasileira de origem racial negra. As citações colocadas nos textos ficaram com os termos originalmente escritos pelos pesquisadores, porém estou ainda utilizando o termo negro para designar o mesmo conjunto da população. Entendo não ser o momento oportuno para substituir o termo, tendo em vista a construção político-ideológica que envolveu sua elaboração e a falta de discussão que tem envolvido essa substituição.

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2000, p.123). Estes dois elementos, a cada tempo histórico, têm sido revisitados e

reorganizados na consolidação e manutenção dos mecanismos de dominação.

Porém, o desenvolvimento global da sociedade capitalista tem interposto ao

racismo dois grandes desafios; ao mesmo tempo em que sofística seu controle vem,

contraditoriamente, desorganizando este mesmo controle, a partir do aumento dos conflitos em

nível local.

O racismo, como fenômeno social, passa por adaptações teóricas e políticas a fim de cumprir a sua função de instrumento de dominação e exclusão. Atualmente, pode-se afirmar que há o ascenso de um ‘neo-racismo’, que conserva as bases teóricas da supremacia branca formulada por teorias dos séculos XVII e XVIII, recriando-as em discurso e estratégias de exclusão étnico-racial na perspectiva de adaptá-lo às demandas de uma sociedade globalizada como a atual. Este ‘neo-racismo’ se expressa no recrudescimento das discriminações contra os estrangeiros na França, Alemanha, Espanha, na reorganização dos neonazistas na Europa na década de 1990, nas lutas de povos por reconhecimento étnico e autonomia cultural e por território: palestinos, curdos, dos tuaregs na África, o povo do Timor Leste, os chiapas no México, os remanescentes de quilombos e índios no Brasil. O neo-racismo está expresso nos protestos dos negros americanos em Los Angeles de 1994, no crescimento das discriminações contra os latinos nos EUA, na reorganização da direita branca sul-africana, na exclusão dos afro-brasileiros da igualdade de oportunidade à educação, à saúde, ao emprego e na reorganização produtiva mundial, (na qual os desempregados, no caso do Brasil, a maioria não-branca - pretos e pardos -, passam a ser estrangeiros em seu próprio país). (ALBERTO, 2000, p.124).

Na realidade brasileira, percebe-se que os indicadores sociais apresentados pelo

IBGE, do final da década passada demonstram uma certa eficiência na manutenção da

bipolarização e hierarquização entre branco/negro. Podemos, assim, constatar que, pelo

menos, até agora, o “neo-racismo” conseguiu manter os controles de dominação e exclusão.

3. EXCLUSÃO E ESCOLARIDADE

O debate em torno da inclusão e exclusão na escola pública tem oportunizado

inserir como questão central a possibilidade de ultrapassar os limites da defesa da escola

pública para todos, como bandeira e letra morta da lei, que projetam direitos sociais de

cidadania, para indagar o papel e os limites do processo pedagógico de ensino e

aprendizagem.

No Brasil, este debate, carregado de ideologia, tem aflorado como disputa de

projetos políticos, mas tem possibilitado a apresentação de propostas educacionais

preocupadas com a superação do fracasso escolar. Esta preocupação já estava presente em

1918, quando Dirigentes do Ensino do Estado de São Paulo, apresentavam como solução para

o fim da repetência “a promoção em massa” devido aos problemas do fracasso escolar aliado à

falta de vagas para todos.

Os dirigentes Oscar Thompson e Sampaio Dória enfatizavam que era melhor

“dar um pouco de educação a muitos do que reservar muita educação a poucos”. Naquele

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momento, em que a sociedade brasileira buscava constituir-se como sociedade capitalista e

republicana, vislumbrar um patamar de desenvolvimento educacional para um espectro maior

da sociedade, saindo do âmbito da elite, se colocava como condição necessária e fundamental

de construção da nova ordem econômica e social.

De outra forma, essa proposta não teve o eco necessário para implementar

grandes mudanças; no entanto, o problema da repetência persistiu e, na década de 1950,

surge, pela primeira vez, a expressão promoção automática, como alternativa às denúncias dos

educadores que comprovavam que a repetência não exercia nenhum aspecto positivo nos

educandos, resultando, muitas vezes, em abandono da escola e expulsão pura e simples do

processo formal de aprendizado.

O debate tinha como pano de fundo a constatação de que não bastava apenas

eliminar a repetência; era necessário, também, implementar uma série de mudanças na

organização escolar, na concepção de avaliação, no material didático, e, principalmente, na

concepção e papel da escola no processo formativo dos alunos.

Dante Moreira Leite, professor da USP na área de psicologia escolar, afirmava “a

introdução da promoção automática implica uma transformação radical da escola, na medida

em que se transformam os seus objetivos básicos, vez que professores e alunos passarão a

viver em torno de outros valores e aspirações” (LEITE, 19 p.29).

Do ponto de vista da legislação, essas discussões se apresentaram desde a Lei

nº 4.024, de 1961, quando, no artigo 104, era prevista a possibilidade de “organização de

cursos ou escolas experimentais, com currículos, métodos e períodos escolares próprios”.

No que tange às experiências concretas, em 1968, no Estado de São Paulo, foi

instituído o primário de quatro anos, subdividido em dois níveis. O primeiro denominado de

Nível I, correspondia às duas primeiras séries e, o Nível II equivalente aos terceiro e quarto

anos. Os alunos eram retidos apenas nos últimos anos de cada nível. Várias outras

experiências foram implementadas, mas como as mudanças não ocorreram de forma ampla,

quase sempre as propostas fracassaram e foram substituídas pelo modelo tradicional de

seriação. Um outro aspecto a ser considerado é a limitação imposta pelo período da gestão

administrativa de um governo e a descontinuidade das propostas identificadas com outra

perspectiva política.

Essa situação foi vivenciada na administração municipal, no período de 1989-

1992, na cidade de São Paulo, quando foi possível introduzir mudanças significativas na

organização escolar e na concepção pedagógica em que a progressão continuada se

encaixava como peça de uma outra forma de conceber o processo de ensino aprendizagem.

Infelizmente, todas as mudanças implementadas tiveram a efêmera existência de apenas uma

administração.

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Nos anos 80, em alguns estados, como Minas Gerais, São Paulo e Paraná,

foram instituídos o Ciclo Básico de Alfabetização com o objetivo de diminuir os índices de

reprovação das séries iniciais do ensino fundamental e assegurar a permanência das crianças

na escola. Essa iniciativa eliminava a avaliação para efeito de aprovação da 1ª para a 2ª série

e previa uma maior flexibilização no conteúdo ministrado para os alunos na fase da

alfabetização em consonância com o grau de desenvolvimento de cada turma.

Buscava com isso proporcionar um ensino adequado a clientelas grandemente diversificadas do ponto de vista social, cultural e econômico. Ela questionava a segmentação artificial do currículo em séries, tratadas de modo estanque, e procurava assegurar a progressão dos alunos que, tendo avançado no processo de alfabetização ao longo da 1ª série, eram, até então, obrigados a retornar à estaca zero, com a repetência. O ciclo básico não previa uma redução dos conteúdos trabalhados nos dois primeiros anos de escolarização. Possibilitava uma maior flexibilização na organização curricular quanto ao agrupamento dos alunos, à revisão dos conteúdos programáticos e à utilização de estratégias de ensino-aprendizagem mais condizentes com a heterogeneidade da clientela, bem como quanto à adoção de critérios de avaliação. A proposta do ciclo básico por vezes acompanhada de atendimento paralelo – em grupos menores – dos alunos com maiores dificuldades, de incentivo à permanência dos professores mais experientes nas séries iniciais e de suprimento de material pedagógico específico, muito embora tais medidas nem sempre tivessem perdurado nas redes de ensino (BARRETO, 1995 p. 15).

Para além dessas iniciativas, durante os anos 1990, outras foram sendo

implantadas e se destacam: o Projeto da Escola Plural desenvolvido em Belo Horizonte, em

1994, com a organização dos ciclos adequados a estágios de desenvolvimento psicossocial

das crianças e adolescentes, em três etapas de aprendizagem e de forma contínua. A primeira

fase abrangia a etapa da infância – crianças na faixa etária de seis a oito anos. A segunda, na

fase da pré-adolescência entre nove e onze anos. A última fase correspondia à adolescência

na faixa etária de 12 a 14 anos.

No Rio de Janeiro foi implementada, no período de 1993 a 1995, uma

reorganização curricular denominada de Bloco Único, inserida na proposta de Multieducação.

Era prevista também uma etapa única para o ensino fundamental de cinco anos ininterruptos,

abrangendo dos seis aos 12 anos. Nessa proposta, a alfabetização ocorria com as crianças de

seis anos, acrescida das quatro séries iniciais compondo um conjunto com progressão da 1ª a

5ª série. Posteriormente, os alunos concluíam a formação do Ensino Fundamental da 6ª a 9ª

série.

Atualmente, a LDB, ao tratar dos ciclos, inclui nos seus dispositivos diferentes

possibilidades de organização da educação básica podendo ser em ciclos ou outras formas

alternativas. “A educação poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos,

alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na

competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização sempre que o

interesse do processo de aprendizagem assim recomendar” (Art. 23, da Lei 9.394/96).

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Considerando as várias opções apresentadas pela legislação, mesmo assim

ainda é possível constatar que a grande maioria dos sistemas de ensino está ancorada na

forma tradicional de seriação. Todavia, mais recentemente, sob a égide da concepção

neoliberal, foi sendo reintroduzida a necessidade de reter as crianças no interior das escolas.

Porém, nessa nova conjuntura, a proposta assumiu um caráter, prioritariamente, quantitativista,

sendo que o fundamental é equacionar economia de investimento em políticas públicas com

aumento dos números de matrículas na educação básica. O próprio Conselho Estadual de

Educação – CEE considerava a retenção dos alunos um grande desperdício de recurso

financeiro.

A repetência constitui um pernicioso “ralo” por onde são desperdiçados preciosos recursos financeiros da educação. O custo correspondente a um ano de escolaridade de um aluno reprovado é simplesmente dinheiro perdido. Desperdício financeiro que, sem dúvida, afeta os investimentos em educação, seja na base física (prédios, salas de aula e equipamentos), seja, principalmente, nos salários dos trabalhadores do ensino. Sem falar do custo material e psicológico por parte do próprio aluno e de sua família. (Indicação CEE/SP nº 08/97).

4. POLÍTICA EDUCACIONAL NO ESTADO DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 1990

No estado de São Paulo, através da Secretaria Estadual de Educação, a

experiência de progressão continuada e a de organização curricular em ciclos se articulam a

um conjunto mais amplo de reorganização da Rede Estadual de Ensino. Em Comunicado SE,

de 22.03.1995, foram apresentadas as diretrizes educacionais para a Rede no período de

janeiro de 95 a dezembro de 98. Nesse documento já era possível antever o conjunto de

reformas que seria imposto à educação pública estadual. Cabe ressaltar que as diretrizes não

embasaram apenas a primeira gestão administrativa do governo Covas/Alckmin, mas também

o segundo período, possibilitando assegurar continuidade e solidez ao conjunto de reformas

implementado.

Nesse comunicado, é elaborada uma análise minuciosa da situação educacional

no estado com a qual se justificaram todas as medidas. Um novo papel para o Estado é

delineado, visto, a partir de então, como articulador e integrador de um projeto de educação

para São Paulo, deixando de ser mero gestor de uma máquina administrativa gigantesca e

inoperante. “À Secretaria da Educação cabe, nesse processo, um papel de liderança: deverá

formular uma política de educação que integre os mais diferentes aspectos aí envolvidos,

desde os recursos humanos, físicos e materiais, até o estabelecimento de parcerias profícuas

para o Estado, em sua função de formar de maneira adequada a geração de amanhã” (SEE,

1995 p. 298).

No bojo dessa mesma discussão é possível, ainda, perceber que a repetência se

torna pedra angular na superação da ineficácia do sistema.

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Os índices de desempenho do sistema mostram claramente o quanto ele é ineficaz. Em 1992, no ensino fundamental e médio, as perdas por evasão e repetência alcançaram 1.476.000 alunos, o que representa cerca de 25% do total de alunos matriculados na rede. Se lembrarmos que cada aluno custa em média US$ 220 para o Estado, o número acima representa um desperdício da ordem de US$ 324.720.000. Por detrás da repetência e mais grave do que o desperdício material de recursos advindos do trabalho duro da população, está a desilusão de milhares de famílias que valorizam uma escola que expulsa seus filhos, a destruição do sentimento de competência de um sem número de crianças e adolescentes, a formação de gerações e gerações que incorporam, com sofrimento e sem necessidade, a certeza de que são incompetentes. Este é o preço que pagamos pela ineficácia do ensino: deixamos de formar, para este Estado, uma população bem informada e apta intelectualmente a analisar criticamente sua situação de vida e buscar soluções para seus problemas. Mas a ineficiência do sistema não se manifesta apenas nas elevadas taxas de repetência e evasão. Há de se considerar, ainda, a precária qualidade do ensino recebido por aqueles que conseguem permanecer no sistema de ensino público (SEE, 1995, p. 301).

Após essas considerações, foram apresentadas duas diretrizes complementares

e fundamentais para nortear o novo papel do Estado: reforma e racionalização da estrutura

administrativa e mudanças nos padrões de gestão. Na reforma e racionalização da estrutura

administrativa se objetivava a instituição de um sistema eficaz de informatização dos dados

educacionais e a desconcentração e descentralização de recursos e competências. Todo esse

empenho era para construir na “Secretaria uma máquina leve, ágil, flexível, eficiente e

moderna, capaz de ser um instrumento eficaz na implantação de nova política educacional”

(SEE, 1995, p. 301).

Na mudança dos padrões de gestão almejava-se a “racionalização do fluxo

escolar, instituição de mecanismos de avaliação dos resultados, aumento da autonomia

administrativa, financeira e pedagógica das escolas”. Nesse sentido, era imprescindível que na

“proposta de abertura institucional de parcerias com outros setores, dentro e fora do Estado, a

flexibilidade para adotar soluções alternativas e diferenciadas para ampliar as oportunidades de

escolarização e melhorar a qualidade de aprendizagem, a capacidade de coordenar a iniciativa

e a atuação de diversos parceiros em torno de determinadas prioridades” torna-se uma

realidade (SEE, 1995, p. 301).

A partir de 1996, visando reorganizar toda a rede pública estadual de ensino, a

Secretaria implementou um conjunto de medidas, tais como: “enxugamento” do quadro

funcional e da estrutura física das escolas, fim da retenção de alunos, constituição de classes

de aceleração e salas ambientes, aumento do número de alunos por turma e separação das

escolas, de acordo com a faixa etária dos alunos. Assim, se instituiu a criação do regime de

progressão continuada no ensino fundamental, a criação dos ciclos e a flexibilização curricular.

Junto às grandes propostas foram articulados vários mecanismos para possibilitar o sucesso

das medidas. No âmbito dessa reorganização, teve-se, ainda, a implementação da

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municipalização do Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries, antes mesmo da institucionalização

do FUNDEF.

Além de todas essas medidas, a Secretaria estabeleceu diretrizes para a

organização curricular dos cursos de Ensino Fundamental e Médio da rede estadual de ensino,

instituindo-se novos percentuais na composição da grade curricular, para as disciplinas dos

períodos diurno e noturno, enquanto as diretrizes estabelecidas na LDB n. 9.394/96 não

estivessem regulamentadas. Reforçou-se a formação em Português e Matemática, reduzindo-

se a carga horária de Biologia, História, Geografia, Educação Artística e Educação Física, o

que, além de comprometer a formação geral dos alunos, gerou um clima de disputa entre os

professores, agravando a tensão existente nas escolas.

A Secretaria buscou, também, estabelecer mecanismos de superação da

repetência e evasão, resolução dos problemas de aprendizagem dos alunos e regularização da

defasagem idade/série.

A atual administração considera a perda, por repetência e evasão, de 30% de todos os alunos que cada ano freqüentam a escola estadual de primeiro e segundo graus, inexplicável do ponto de vista pedagógico, inaceitável do ponto de vista social e improdutivo do ponto de vista econômico. Assim várias estratégias serão estimuladas visando à diminuição dos índices de perda do sistema. Estas estratégias estimularão, entre outras ações, a organização das séries em ciclos, a composição das classes basicamente por faixas etárias e a instrumentalização do professor da escola, para trabalhar com grupos heterogêneos (SEE, 1995, p. 309).

Através da Deliberação do CEE nº 09/97, aprovada em 30.07.97, implementou-

se na rede estadual de ensino o regime de progressão continuada no ensino fundamental, com

duração de oito anos, podendo ser organizado em um ou mais ciclos.

No caso da opção por mais de um ciclo, devem ser adotadas providências para que a transição de um ciclo para o outro se faça de forma a garantir a progressão continuada. O regime de progressão continuada deve garantir a avaliação de processo de ensino-aprendizagem, o qual deve ser objeto de recuperação continuada e paralela a partir de resultados periódicos parciais e, se necessário, no final de cada período letivo (CEE 09/97, p. 148).

Nessa Deliberação, os ciclos devem garantir a realização da avaliação institucional

interna e externa.

(...) os resultados do desempenho das escolas deverão ser amplamente divulgados, de forma que tanto a equipe escolar como a comunidade usuária seja capaz de identificar a posição da sua escola no conjunto das escolas de sua Delegacia, de seu bairro e de seu município. Isso possibilitará à escola a busca de forma diversificadas de atuação, com o objetivo de implementar a melhoria dos resultados escolares. Por outro lado, permitirá também à população acesso às informações, de modo que possa fiscalizar, participar e cobrar a qualidade do serviço que lhe deve ser prestado (SEE, 1995, p.310).

Contraditoriamente, na concepção presente na progressão continuada, o

processo avaliativo, visto por esse viés, tem primado por conceber que bom desempenho é

sinônimo de bons resultados no rendimento escolar. É dentro dessa lógica que opera a

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avaliação externa, pois não se considera a aprendizagem enquanto processo e sim como

resultados terminais. Os exames realizados pelo SARESP operam dentro dessa lógica.

Nessa perspectiva, a Secretaria ainda criou um sistema de gratificação, através

de bônus, para premiar individualmente os educadores e coletivamente as escolas, instaurando

definitivamente, no sistema escolar, a competitividade como mola mestra do processo

avaliativo.

Foi previsto, ainda, na Deliberação CEE 9/97, um conjunto de medidas que

delineia a preocupação com o desenvolvimento educacional, porém a realidade vem trazendo

elementos que questionam se a implantação da progressão continuada não tem atendido muito

mais interesses políticos e econômicos que pedagógicos. Parte dos alunos que antes estava

fora da escola agora está dentro, no entanto, os professores continuam utilizando os mesmos

métodos no processo de ensino e aprendizagem sem levarem em consideração as mudanças

ocorridas no perfil desses novos alunos que, insistem em permanecer nas escolas. A

modificação necessária no aspecto pedagógico também não foi privilegiada, muito menos a

formação dos professores para que pudessem entender a aprendizagem como a incorporação

de novos conhecimentos, que articula a continuidade e o sentido no processo educativo,

deixando de concebê-lo apenas como o esforço de tirar notas e passar de ano.

O desafio é de superar a exclusão na progressão continuada e a organização

curricular em ciclos, antes consubstanciado na reprovação e conseqüente expulsão dos alunos

dos bancos escolares, e de que com tem-se sofisticado novas formas de exclusão que não

permitem ao aluno com problemas de aprendizagem apreender o conjunto de conhecimento

historicamente acumulado, mesmo permanecendo na escola e sendo promovido nos níveis

escolares. Portanto, se constituiu um processo de exclusão sutil e perverso, pois exclui a partir

da inclusão.

Nesse contexto, além dos problemas específicos de aprendizagem é possível

verificar que se encontra uma maioria de crianças negras que se deparam com uma nova

barreira a ser superada dentro de uma lógica de exclusão.

Na escola, então, não se tem colocado a tarefa de apresentar alternativas para

superar o racismo no interior do seu próprio espaço, muito pelo contrário, tem se tornado locus

privilegiado de sua reprodução. Por outro lado, é nesse cotidiano escolar que está a chave

para a construção de um outro patamar de percepção, onde o racismo não terá condições de

se reproduzir com tanta naturalidade: se a escola é o espaço de reprodução das relações

sociais também pode ser o de transformação, basta que se coloque a tarefa de pensar

criticamente a sociedade de forma a estabelecer uma mediação entre os homens e o mundo

que os cerca, na perspectiva da não conformidade.

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Os agentes educativos devem construir mecanismo de acesso e permanência

das crianças na escola, mas deve vir acompanhada da apropriação de um saber que deveria

permitir estabelecer um diálogo crítico com o senso comum, possibilitando estabelecer uma

mediação com a realidade social. Ter como meta a superação da incapacidade dessas

crianças de aprender a ler e compreender o mundo, com suas vicissitudes, torna-se um dos

grandes desafios da educação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que a pesquisa pretendia apreender como se desdobra, no

interior da escola, as diretrizes de uma política educacional, com um grupo de crianças

consideradas incapazes pelos parâmetros estabelecidos pela própria escola, buscou-se

perceber e aprofundar a compreensão das diversas dimensões da política educacional

desenvolvida no estado de São Paulo na gestão Mário Covas/Alckmin, e o cotidiano das

relações sociais e raciais dentro de um determinado espaço educacional.

Almejava-se, enfim, conhecer e compreender o processo de exclusão de

crianças negras, que estão nesse momento incluídas, como resultado do mecanismo da

política de progressão continuada. Porém, as análises preliminares permitem aferir que a

escola tem desempenhado muito mais a função de elemento de reprodução do racismo e não

de superação, colocando às crianças negras a difícil tarefa de superar a discriminação de

forma individualizada.

Portanto, a escola entendida como espaço de mediação com a realidade social,

desempenha papel fundamental neste processo, pois o conhecimento desenvolvido na escola

poderá servir como desestruturador ou edificador das formas de reprodução do racismo e do

processo de exclusão.

Constata-se, também, que as estruturas de reprodução do racismo já não

operam com os mesmos elementos, tendo em vista as modificações que a sociedade brasileira

vem implementado nas últimas três décadas. Também, não se descarta que a combinação

entre mito da democracia e processo de assimilação - branqueamento - ainda está presente na

manutenção das estruturas racista, mas quais são as novas articulações, como foram

incorporadas novas estratégias, quais são as eficácias desses novos e velhos mecanismos em

tempo de implementação de políticas sociais compensatórias e neoliberais.

Outro grande questionamento que se coloca para o campo educacional é, se ele

pode ser considerado elemento importante na construção do racismo brasileiro. Neste sentido,

qual o papel e o lugar que ocupa o saber crítico produzido pela escola. Se é possível modificar

a compreensão das crianças sobre as relações raciais e de poder no Brasil, como, então,

superar a exclusão colocada pela progressão continuada? Pois não se pode deixar de

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considerar que a permanência das crianças na escola já significa um avanço, mas o salto

precisa ser, sobretudo qualitativo.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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