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Universidade Federal do Rio de Janeiro A PRESENÇA DA IMAGEM NOS CONTOS DE JOAQUIM CARDOZO Mariana Conde Moraes Arcuri 2014

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A PRESENÇA DA IMAGEM NOS CONTOS DE JOAQUIM CARDOZO

Mariana Conde Moraes Arcuri

2014

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UFRJ

A PRESENÇA DA IMAGEM NOS CONTOS DE JOAQUIM CARDOZO

Mariana Conde Moraes Arcuri

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Doutor Godofredo de Oliveira

Neto

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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A PRESENÇA DA IMAGEM NOS CONTOS DE JOAQUIM CARDOZO

Mariana Conde Moraes Arcuri

Orientador: Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

Examinada por:

__________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto

__________________________________________________

Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza – PPG Letras Vernáculas – UFRJ

__________________________________________________

Prof.ª Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – PPG Ciência da Literatura – UFRJ

__________________________________________________

Prof. Doutor Paulo Venancio Filho – PPG Artes Visuais – EBA/UFRJ

__________________________________________________

Prof. Doutor José Carlos Santos de Azeredo – PPG Letras – UERJ

__________________________________________________

Prof.ª Doutora Monica do Nascimento Figueiredo – PPG Letras Vernáculas – UFRJ,

Suplente

__________________________________________________

Prof. Doutor André Nemi Conforte – PPG Letras – UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Arcuri, Mariana Conde Moraes.

A presença da imagem nos contos de Joaquim Cardozo/

Mariana Conde Moraes Arcuri. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2014.

vi, 262f.; 31 cm.

Orientador: Godofredo de Oliveira Neto

Tese (doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação

em Letras Vernáculas, 2014.

Referências Bibliográficas: f. 183-192.

1. Letras. 2. Literatura Brasileira. 3. Contos. 4. Joaquim

Cardozo. I. Neto, Godofredo de Oliveira. II. Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas. III. Título.

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RESUMO

A PRESENÇA DA IMAGEM NOS CONTOS DE JOAQUIM CARDOZO

Mariana Conde Moraes Arcuri

Orientador: Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras

Vernáculas (Literatura Brasileira).

Medianamente conhecido como poeta, Joaquim Cardozo é quase absolutamente

desconhecido em sua pequena, porém vigorosa e única, produção ficcional. Os doze

contos escritos por Cardozo foram reunidos pelo próprio para publicação em volume, a

se chamar Água de chincho, mas permaneceram inéditos em livro por mais de 25 anos

após sua morte, em 1978. Seus contos quase todos indicam relatos de experiências

pessoais, respiram uma atmosfera de vivência particular, não apenas por apresentarem

uma narrativa de primeira pessoa, mas, sobretudo, por contarem com um narrador que

comumente embute no texto um tom de veracidade e incute a idéia de se tratar de um

episódio ocorrido de fato. O tratamento essencialmente narrativo conferido a certos

contos, além da frequência significativa de trechos assaz descritivos, por vezes os torna

semelhantes a simples crônicas sobre paisagens e acontecimentos aleatórios. No

entanto, a narrativa escapa ao clima de desenvolvimento de um relato mero – e aí

Cardozo se mostra bruxo oportuno, ajuntando sentidos, memória, sonhos, tensão e

desarranjos psíquicos em imagens reiteradas. São exatamente seus contos e suas

imagens, profundamente vinculados ao sonho, ao fantástico e ao sobrenatural, que

buscamos analisar neste trabalho, bem como a forma pela qual esse mesmo elemento

maravilhoso se insere na prosa cardoziana.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Contos; Joaquim Cardozo.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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ABSTRACT

THE PRESENCE OF IMAGE IN JOAQUIM CARDOZO’S SHORT STORIES

Mariana Conde Moraes Arcuri

Orientador: Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras

Vernáculas (Literatura Brasileira).

Commonly known as a poet, Joaquim Cardozo is almost completely unknown

for his short, yet powerful and unique, fictional production. The twelve short stories

written by Cardozo have been put together by the author himself for a volume which

would be called Água de chincho. However, the texts have remained unpublished for

more than 25 years after Cardozo’s death, in 1978. Almost all his short stories indicate

descriptions of personal experiences, breathing from a private atmosphere, not only for

presenting a first-person narrative, but mainly for having a narrator who often gives the

text a truthful tone and the idea that an episode comes from a fact. The essentially

narrative treatment given to certain short stories, as well as the significantly frequency

of rather descriptive passages, sometimes makes them similar to simple chronicles

about landscapes and random events. However, the narrative escapes the atmosphere of

developing a simple picture – and this is when Cardozo shows himself as an opportune

wizard, gathering senses, memory, dreams, tension and mental disorders in reinforced

images. It’s exactly his short stories and its images, deeply connected to dreams, to the

fantastic and supernatural, that we try to analyze in this project, as well as how this

element emerges in Cardozo’s writing.

Key words: Brazilian Literature; Short Stories; Joaquim Cardozo.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Sumário

1.Introdução.....................................................................................................................1

2.Bachelard e as noções de imagem e imaginação......................................................30

3.Voltando de Marcação...............................................................................................50

4.Perdidos nos tabuleiros..............................................................................................64

5.Tramataia....................................................................................................................76

6.O rugido.......................................................................................................................91

7.De novo em Cabedelo...............................................................................................101

8.Minha tia Dondon.....................................................................................................117

9.Na estação..................................................................................................................127

10.Brassávola................................................................................................................135

11.O caminho...............................................................................................................144

12.A pesca de lagostim.................................................................................................156

13.Variações sobre uma vida......................................................................................164

14.Em busca do Marco das Balanças.........................................................................172

15.Conclusões...............................................................................................................180

16.Referências bibliográficas......................................................................................183

17.Apêndice..................................................................................................................193

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1.Introdução

Joaquim Cardozo, nascido em 26 de agosto de 1897, no bairro do Zumbi, Recife,

Pernambuco, era o nono de doze filhos do guarda-livros José Antônio Cardoso e de

Elvira Moreira Cardoso. Conta-nos o crítico e poeta Everardo Norões que o garoto

Cardozo assombrou-se com a aparição do cometa Halley, que “lhe causou o mesmo

‘impulso íntimo, configuração da poesia’ que tocou o poeta mineiro Murilo Mendes”

(NORÕES 2008), ainda no sobrado do Zumbi. Pouco depois, a família mudou-se para a

cidade de Jaboatão, nos arredores, e Cardozo começou a estudar no Ginásio

Pernambucano do Recife, um dos mais afamados à época.

Suas viagens de trem entre o Recife e Jaboatão serviram de pano de fundo para o

encontro com futuros amigos e parceiros de trajetória literária, como os irmãos Honório

e Benedito Monteiro, de Tejipió. A gare, cenário privilegiado nesse pedaço de vida, e o

trem, personagem companheiro da mocidade, tornaram-se, em anos vindouros, algumas

das imagens mais marcantes e recorrentes na literatura cardoziana, como o conto “Na

estação”, estudado mais adiante.

Foi com os irmãos Benedito e Honório Monteiro que fundou o periódico O

Arrabalde, no qual publicou em 1913 (nas datas de 15 e 30 de novembro) seu primeiro

texto conhecido, “Astronomia alegre”, que, no entanto, permaneceu inacabado devido

ao fechamento do jornal. Nesse período Joaquim fazia o curso preparatório do dr.

Joaquim Pimenta, o que o retinha durante o dia no Recife. Somente à noite, após as

costumeiras visitas à Biblioteca Pública da capital pernambucana, regressava a

Jaboatão.

Deixou a cidade de vez no ano seguinte, 1914, em função da morte do pai, que o

levou, junto com o restante da família, a retornar ao Recife. O falecimento prematuro do

pai obrigou o jovem Cardozo, então com 17 anos, a trabalhar como caricaturista na

imprensa local, como o Diário de Pernambuco, a fim de amenizar as dificuldades

financeiras por que passava a família. Apesar de ter ingressado em 1915 na Escola Livre

de Engenharia, a precariedade financeira forçou-o, várias vezes, a interromper o curso.

Na condição de estudante, passou a prestar serviços de topografia para uma Comissão

que realizava pesquisas geodésicas no município do Recife.

As atividades na Comissão Geodésica estenderam-se ao longo de anos, com idas

e vindas, viagens e interrupções. A primeira delas aconteceu em 1919, em decorrência

do sorteio e ulterior serviço militar, que o manteve acampado durante seis meses; o

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curso de engenharia também foi paralisado. Um ano depois, já liberado do Exército,

volta a ser contratado da Comissão, e passa a fazer levantamentos topográficos nas

vizinhanças do Recife. A segunda interrupção nas atividades vinculadas à Comissão

Geodésica ocorreu em maio de 1922, quando Cardozo se licenciou temporariamente da

mesma a fim de realizar trabalhos de demarcação de terras na Baía da Traição, na

Paraíba, serviço que lhe consumiu quatro meses.

Foi na Paraíba que entrou em contato com manifestações folclóricas típicas da

cultura popular nordestina, como os festejos juninos, e impressionou-se vivamente com

tais acontecimentos. As marcas que essas manifestações causaram em Cardozo e em sua

obra literária foram fundas, indeléveis. A passagem pela Baía da Traição, embora

relativamente curta, teve um peso fundamental nos contos cardozianos, como bem

atestam “Voltando de Marcação”, “Perdidos nos tabuleiros”, “Tramataia”, “O rugido”,

“De novo em Cabedelo” e “Em busca do Marco das Balanças” – seis do total de doze

que formam seu pequeno, mas denso, corpus. Não só como cenário, mas como imagem

mesma de um Nordeste maior, profundo e enigmático, surge a Baía da Traição nos

contos de Cardozo.

À semelhança de João Cabral de Melo Neto, o autor alça a posição privilegiada

– não só como tema, mas conformadora mesmo de sua produção literária – o caldo do

imaginário regional, cujo substrato muito se funda sobre aspectos da cultura popular,

sem, todavia, resvalar em limitações autocentradas. É nesse sentido que reflete Manuel

Bandeira: “Cardozo e Ascenso [Ferreira], tão eles mesmos e tão diversos, são ambos

deliciosamente provincianos, no melhor sentido da palavra (no sentido em que o

entende Gilberto Freyre), deliciosamente pernambucanos e, no entanto, sem nenhum

ranço regionalista” (BANDEIRA 1951).

A terceira suspensão na atuação junto à Comissão Geodésica deu-se em maio de

1923, um ano depois da estada na Baía da Traição. O motivo dessa vez foi uma viagem

ao Rio de Janeiro, onde ficou até o final do mês de agosto, testemunha privilegiada dos

desdobramentos do movimento modernista. Cardozo teve como prêmios assistir à

primeira exposição de Di Cavalcanti e impregnar-se da boêmia carioca, flanando pela

noite da cidade e absorvendo o clima belle époque que então a distinguia sobremaneira.

Marcado pela atmosfera festiva do Rio, voltou ao Recife, à Comissão Geodésica e ao

burburinho dos cafés e bares noturnos, como relatado no conto “Brassávola” (seu único

conto publicado em vida, em 1975):

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Logo após o jantar, ia à procura de um grupo de amigos que se reunia todas as noites no

Café Continental, na Rua do Imperador; em companhia desses amigos, ficava eu

conversando até tarde da noite. Como a maior parte deles voltava cedo para casa,

costumava eu, quase sempre, em companhia dos mais retardatários, atravessar a ponte

para o Recife velho – aonde íamos beber num bar na Rua da Guia – ou procurávamos o

Bar Alemão, que existia ao lado do Diário de Pernambuco; ali ceávamos, bebíamos

chope e comíamos frios sortidos. Às vezes, andávamos até um outro bar, o Pergentino, à

Rua de Santo Amaro, onde também ceávamos; depois íamos visitar as pensões de

mulheres: Pensão Bohemia, Pensão Monte Carlo ou Pensão Mimi. Não era, entretanto,

todos os dias que demorava por tanto tempo nessas excursões noctívagas

(CARDOZO 2008).

Em suas andanças, reviu seu velho amigo Benedito Monteiro, que o apresentou

ao poeta Ascenso Ferreira e, em 1924, a José Maria de Albuquerque Melo, criador da

Revista do Norte, a notável revista literária difusora do Modernismo em Pernambuco

nos anos 1920, que contou com a colaboração de um time de intelectuais e artistas de

peso, como Gilberto Freyre, que se referiu a Cardozo na nota prévia ao ensaio literário

deste intitulado “Um poeta pernambucano: Manuel Bandeira” como “um dos poetas

jovens mais interessantes de Pernambuco” (FREYRE 1979). Ascenso assim definiu o

momento de fundação da Revista do Norte e do núcleo que se estabeleceu em torno

dela:

Formara-se o grupo da Revista do Norte. Aproximara-me eu de seus componentes mais

como boêmio do que como poeta... Benedito Monteiro foi quem maior influência

exerceu na minha transformação. Contudo, é preciso não esquecer José Maria de

Albuquerque e Melo e Joaquim Cardozo. Do grupo fazia parte também Gilberto Freyre,

recentemente chegado dos Estados Unidos, cujos artigos, despertando o amor pelas

coisas da nossa tradição rural, tão vivas no subconsciente, calaram fundo no meu

espírito. Outra personalidade marcante a quem muito devo é Luís da Câmara Cascudo.

Foi ele quem me aproximou de Mário de Andrade e Manuel Bandeira (FERREIRA

apud BANDEIRA 1951).

Cardozo desde cedo integrou a direção da Revista do Norte, na qual publicou

ilustrações, vinhetas e seus primeiros poemas. Esse Cardozo da década de 1920 é aquele

ainda apegado à cultura pernambucana, membro da agitada patota que, tendo o Recife

como pano de fundo, frequentava o Café Lafayette e colaborava na Revista do Norte e

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no Diário de Pernambuco. É nesse instante que o Cardozo escritor começa a sobrepujar

o desenhista e o caricaturista. Tal tendência intensificou-se com a publicação, no

volume da segunda quinzena de outubro de 1924 da Revista do Norte, de “As

alvarengas”, o primeiro poema da lavra cardoziana a vir a lume. Foi nesse momento que

Cardozo adotou o z para assinar seu nome em desenhos e poemas, em vez do habitual –

e mais previsível – s. Seu belíssimo ensaio “Um poeta pernambucano: Manuel

Bandeira”, o primeiro esforço de Cardozo no sentido de analisar criticamente uma

determinada produção literária, foi editado no ano seguinte, 1925, no Livro do Nordeste,

concebido como homenagem ao centenário do Diário de Pernambuco.

Iniciando-se nos anos 1920 – e consolidando-se na década seguinte – a produção

intelectual cardoziana, desdobrada em crítica de arte & literatura e de arquitetura &

urbanismo, literatura e ensaística, foi maturando nos periódicos locais e aos poucos

ganhando espaço num cenário cultural mais amplo, nacional. É o que comprova a

correspondência entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade datada de outubro de 1926:

“O Joaquim Cardozo (cujo endereço é Rua da União, 47, Recife) mandou-me três

números da Revista do Norte, isto é, 3 exs. do 2º número, um deles destinado a você”

(BANDEIRA apud LIMA 2008); “Recebi a Revista do Norte que veio pelo versos de

você. [...] Você quando escrever pro Joaquim Cardozo agradeça por mim o número que

ele mandou. [...] e diga que a revista me interessa deveras, o que te juro que não é

mentira” (ANDRADE apud LIMA 2008).

O ano de 1926 trouxe para Cardozo uma viagem ao lado de Ascenso Ferreira,

seu anfitrião em Palmares, na zona da mata pernambucana. Na cidade foi espectador de

uma apresentação de bumba meu boi – tema de sua futura peça teatral O coronel de

Macambira,–, que o levou a declarar: “nesse espetáculo [...] a cerimônia de

ornamentação do boi, sugerindo ritual pagão da Grécia Antiga, deixa mais uma vez

patentes as origens religiosas primitivas que caracterizam quase todas as nossas danças

populares – origens, convém que se assinale, que são as de quase todos os teatros do

mundo” (CARDOZO apud NORÕES 2008).

Como se pode depreender pela força dramatúrgica de O coronel de Macambira

– publicada em 1963 pela Civilização Brasileira e encenada pelo TUCA em 1967, em

São Paulo, pelas mãos de Amir Haddad –, o impacto do imaginário específico das

manifestações folclóricas tradicionais do Nordeste atingiu em cheio a obra de

pernambucanos integrantes do núcleo modernista local, como Ascenso, Cardozo,

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Gilberto Freyre e Vicente do Rego Monteiro – sem esquecer a coexistência com

reverberações estéticas dos movimentos de vanguarda que então sacudiam a Europa.

A intensa amizade com Ascenso Ferreira traduziu-se, entre outras formas, pela

devota admiração demonstrada pelas ilustrações e pelo desenho de capa executados por

Cardozo para Catimbó, primeiro livro do poeta. Ascenso foi o responsável indireto pela

criação de O coronel de Macambira, posto que seus estudos sobre o bumba meu boi,

publicados em 1944 nos números 1 e 2 do periódico Arquivos, revista da Prefeitura do

Recife, serviram de base à peça de Cardozo.

Algum tempo mais tarde, em 1929, Cardozo atuou como assistente de um

engenheiro alemão, Von Tilling, na elaboração de projetos para instalação de poços.

Nessa função, mais uma vez foi levado a embrenhar-se nos interiores do Nordeste, desta

feita na área limítrofe entre Alagoas e Pernambuco. O engenheiro alemão surge como

personagem no conto “O caminho”, cujo leitmotiv sustenta-se na densidade de um

cenário nordestino confundido com imagens ancestrais, arraigadas, como veremos mais

detidamente à frente:

Araçu, velho engenho que ainda possuía o açude e a levada do tempo em que era

engenho d’água, que possuía ainda restos da calha da roda do velho engenho banhado

pelo rio Persinunga: limite entre Pernambuco e Alagoas; Araçu atingíamos todos os

dias, indo de automóvel, em boa estrada, até o Engenho Queimadas, do Dr. Júlio Belo,

e, de lá, a cavalo, até a casa-grande do engenho para onde nos dirigiríamos e que ficava

a pouca distância da igreja, pois era uma igreja e não uma simples capela, uma igreja

com torre e com sinos, e não com sineira, como aparece nas capelas dos antigos

engenhos. Tomávamos o automóvel muito cedo, percorríamos uma boa parte da estrada

que vai da praia até a cidade de Barreiros, depois entrávamos à esquerda, em estrada

mais estreita, para chegarmos a um ponto onde havia uma encruzilhada de três

caminhos; tomávamos um deles e chegávamos ao cercado do Engenho Queimadas; ali

já estavam nos esperando os cavalos que iam nos levar a Araçu (CARDOZO 2008).

São essas imagens pisadas e repisadas de um Nordeste lendário, imenso e um

tanto arquetípico que João Cabral de Melo Neto, ao comentar a reverência do amigo

Cardozo diante de vento e mar – a própria natureza indômita que logo irromperá,

incontível, em seus contos, dando a eles origem, esteio e motivo –, salpica ele mesmo

em “Cenas da vida de Joaquim Cardozo”, de Crime na calle Relator, no trecho

sintomaticamente denominado A tragédia grega e o mar do Nordeste:

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Chega o Nordeste de Setembro:

O Inverno se foi, com seus ventos.

Tinham voz própria, me dizia:

com as ondas logo discutiam.

Com o Inverno, acaba a temporada

de teatro, a que ele não faltava,

quando ainda engenheiro de campo

arma, à noite, a tenda de pano.

Dizia ouvir, marés inteiras,

Diálogo de tragédia grega:

o vento e o mar se apostrofavam

com vozes aos berros, de raiva,

e com tal raiva, com tal nervo,

que dispensava ler o texto.

Dizia sentir o tremendo

da tragédia, seu argumento,

a que o murmurar dos coqueiros

faria o coro lastimeiro.

Na maré-alta, o pleito sobe,

na maré-baixa, baixa e morre.

O teatro desses personagens

que entoavam vozes sem face

pensava algum dia escrever,

dando ao som um texto que ler.

Seguiria seu ritmo, enchendo-o,

subindo e caindo no silêncio.

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Não é essa a curva das estórias?

Não é esse o trajeto da História?

(Não soube se escreveu tais peças,

Talvez, pensando melhor nelas,

Achasse ocioso pôr palavras

em formas vazias tão claras)

(MELO NETO 1987).

Apenas em 1930 – 15 anos após o ingresso na Escola Livre de Engenharia – e já

um homem feito de 33 anos, Joaquim Cardozo logrou concluir o curso de engenharia,

inúmeras vezes paralisado. Quatro anos depois, em 1934, foi chamado a participar da

equipe comandada por Luiz Nunes, arquiteto do Rio de Janeiro, para criar a Diretoria de

Arquitetura e Construção (DAC), concebida pelo governo de Pernambuco para ser a

primeira instituição pública desse tipo no Brasil. Renomeada DAU (Diretoria de

Arquitetura e Urbanismo) em 1936, funcionou até 1937, quando foi quase integralmente

abolida por ocasião da instalação do Estado Novo. Na Diretoria, integrou um time que

contribuiu de forma essencial para o estabelecimento de novas bases, modernas,

originais e ousadas, para a arquitetura brasileira. Entre os membros da equipe, além de

Cardozo, contava-se também Roberto Burle Marx, de ascendência pernambucana, que

planejou inúmeras praças e jardins recifenses.

A preocupação com os rumos a serem tomados pela arquitetura brasileira, que

ele preferia arrojados e inventivos, levou-o a Porto Alegre, em 1935, mais precisamente

ao Pavilhão do Estado de Pernambuco, como representante do governo estadual,

durante a Exposição Comemorativa do Centenário da Revolução Farroupilha, encarada

como a primeira exposição de arquitetura moderna no Brasil. Na capital gaúcha,

conheceu o poeta Augusto Meyer, que se tornou um de seus grandes amigos.

A arquitetura e a engenharia foram sempre nortes na vida e no espírito de

Cardozo: professor universitário de ambos os cursos, lecionou geometria analítica,

economia e finanças, cálculo infinitesimal, materiais de construção, teoria e filosofia da

arquitetura. Para ele, arquitetura e engenharia deveriam estar solidamente fincadas em

uma técnica aprimorada, além de contemplarem soluções que abraçassem a

especificidade do contexto brasileiro.

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Em 1939, como paraninfo da classe de formandos da Escola de Engenharia, fez

um discurso contra o governo de Pernambuco, controlado à época por Agamenon

Magalhães, o que acarretou sua demissão, assinada por Gercino Pontes, secretário de

Viação e Obras Públicas. Desempregado e acossado pela falta de escolhas, Cardozo

deixou o Recife pelo Rio de Janeiro. A respeito de tal “transferência forçada” afirmou

Rodrigo Melo Franco de Andrade: “A solicitude dos amigos e discípulos promoveu a

viagem, na suposição de que fosse breve, não excedendo a vigência de um regime de

estupidez discricionária em Pernambuco. Mas as circunstâncias ulteriores fizeram falhar

a previsão e o meio pernambucano perdeu, em proveito do Brasil, um de seus valores

mais genuínos e puros” (ANDRADE 1961). Ou, na versão de João Cabral de Melo

Neto, em “Cenas da vida de Joaquim Cardozo”, de Crime na calle Relator:

O exilado indiferente

A esse recifense de praias

obrigam-no a deixar seu mapa:

outro pernambucano, truão,

(nada é do grego Agamenão)

disse que o não queria mais

no espaço de que é capataz.

Sequestram-no amizades boas,

às carreiras, para Alagoas

e, dos Maceiós, num navio

vem viver federal, no exílio

(que ele habitaria sem queixa,

nunca de camarinha e mesa).

De calça e paletó de amianto,

ei-lo entre os cantados encantos,

sem sentir que esse mar que o cerne

é o Atlântico do Nordeste:

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de Guarabira, Pirangi,

Carne de Vaca, Serrambi.

Recifense, a um cria de engenho,

ditou as canas de seu tempo,

[...]

(MELO NETO 1987)

Chefiado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) contratou Cardozo pouco após sua chegada ao

Rio. Como um de seus importantes trabalhos no SPHAN, participou de restauros de

construções barrocas mineiras e fluminenses.

Foi assim, nos primeiros anos da década de 1940, que Joaquim Cardozo ligou-se

fortemente ao “grupo do Patrimônio”, ao lado de nomes como Rodrigo Melo Franco de

Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Evaldo Coutinho. Colaborador

do SPHAN até 1945, data em que o serviço passou a ocupar o novo edifício do

Ministério da Educação, Cardozo travou amizade com Oscar Niemeyer nessa fase.

Além de amigos, foram companheiros profissionais por décadas a fio; a parceria

iniciou-se em 1941, como testemunhou o célebre jurista Evandro Lins e Silva, muito

próximo de ambos:

Joaquim Cardozo e Oscar Niemeyer encontraram-se e formaram uma simbiose perfeita.

Cardozo entendeu, sentiu, pensou e respondeu aos desafios estéticos dos projetos que a

arrojada e genial capacidade inventiva de Niemeyer elaborava. Foi assim como o

“encontro das águas”, o Negro e o Solimões juntaram-se para formar o Amazonas... A

arquitetura de Brasília, na sua beleza extraordinária, multiforme e variada, deve-se ao

traço de gênio de Niemeyer, e a execução desse traço, leve e tênue, motivo de

admiração e de êxtase de todos nós, tem a marca da cerebração do matemático e poeta

Joaquim Cardozo. Cardozo encarnou o espírito dos projetos de Oscar Niemeyer (LINS

E SILVA 1979).

O feliz encontro entre engenheiro calculista e arquiteto logo frutificou sob a

forma de ideações – e realizações – magníficas: os edifícios do Iate Clube, da Igreja de

São Francisco de Assis, do Cassino da Pampulha (atual Museu de Arte) e do Teatro de

Belo Horizonte, todos na capital mineira, obras da década de 1940. Participante ativo da

primeira geração à frente da moderna arquitetura brasileira, no Recife, Joaquim Cardozo

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também integrou o grupo que marcou época como a segunda geração, cujo ponto de

partida deu-se com as soluções obtidas na Pampulha. Vinte anos mais tarde essa geração

impulsionadora da moderna arquitetura brasileira encontraria seu auge na criação

paroxística de Brasília.

Dono de raciocínio agilíssimo, memória capaz – que guardava alguns de seus

bastantes poemas, quase nunca passados para o papel por Cardozo –, erudição

esmagadora – incluindo-se aí o conhecimento de cerca de quinze idiomas – e larga

capacidade contemplativa, Cardozo foi sempre o calculista de eleição do amigo

Niemeyer. De acordo com o calculista Victor Fadoul, “Joaquim Cardozo realizava

cálculos em tudo: jornal, caixas de fósforos. Era um estudioso da matemática, tinha

trabalhos inéditos de matemática. No cálculo integrava equações novas. Por isso não

podia ter sócios; ninguém conseguiria acompanhá-lo” (FADOUL apud DANTAS

1985).

A amizade firme e duradoura com João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira

assentou-se também nos anos 1940. Os primeiros contatos com Cardozo inspiraram a

seguinte declaração de Cabral:

Quem também teve influência sobre mim foi Joaquim Cardozo, calculista de Brasília e

de outros projetos de Niemeyer. Ele era poeta também. Fomos grandes amigos. Quando

eu estava no Rio me encontrava com ele diariamente. É curioso isso, nós nos

conhecemos no Recife, mas só nos aproximamos mais quando eu vim para o Rio, nos

anos 40 (MELO NETO 1996).

Resumo impecável da amizade de vida inteira entre Cabral e Cardozo, das trocas

intelectuais e do ambiente de camaradagem que os envolvia traça-o o pesquisador Fábio

Freixieiro:

Quando o poeta [Cabral] veio para o Rio em 1942, o papel que Willy [Lewin]

representara no Recife veio a ser representado por Joaquim Cardozo, a quem já

conhecera no Recife – ele também tinha uma grande biblioteca e não fazia outra coisa

senão ler: J. C. passou a frequentar diariamente a sua casa, donde trazia braçadas de

livros, frequentando também o seu escritório de arquitetura: J. Cardozo tinha grande

interesse em Pintura e Arquitetura. Tal é a fase 42-47. A conversa entre os dois chegava

a tal ponto de especulação gratuita que ambos começavam a rir; conversas até altas

horas... Em 47, já em Barcelona, acabará de escrever Psicologia da composição. Nessa

altura, 42-47, já lia inglês, mas continuou enfeudado na Literatura Francesa. Cardozo

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era interessado na literatura espanhola, mas o poeta só veio a descobrir a Literatura

Espanhola na Espanha (FREIXIEIRO 1971).

Já Manuel Bandeira citou Joaquim em carta datada de 03 de fevereiro de 1926 e

remetida a Carlos Drummond de Andrade, referindo-se à atividade cultural da época no

Nordeste, e incluiu uma apreciação crítica bastante incisiva a respeito dos

autoproclamados modernistas locais:

Gilberto Freyre é um rapaz de 24 anos, creio. Informaram-me que já esteve quatro anos

nos Estados Unidos. É inteligentíssimo. Não é modernista mas gosta muito de nós. Está

fazendo no Norte uma campanha em favor das boas tradições brasileiras. Parece que foi

ele quem descobriu aquele desenhista meu xará [Manoel Bandeira] e o Joaquim

Cardozo que também é pintor. Esses três passadistas me parecem muitíssimo mais

interessantes do que os “modernistas” de lá, todos muito fraquinhos (BANDEIRA

apud AZEVEDO 1984).

A observação de Manuel Bandeira mostra-se especialmente pertinente quando se

aprende que, na condição de integrante do grupo de poetas da Revista do Norte,

Cardozo não se conformava com uma mera releitura do modernismo paulista nem se

vinculava ao regionalismo adotado e apregoado por Gilberto Freyre, mas apresentava

características universais, sem deixar de espelhar aspectos locais – é o que frisa de novo

Bandeira:

O modernismo no Recife, não sei se de si próprio, pela força e originalidade de seus

poetas, um Joaquim Cardozo, um Ascenso [Ferreira], não sei se pela ação corretiva de

Gilberto Freyre, provavelmente por uma outra coisa, não caiu nos cacoetes de escola,

não aderiu tão indiscretamente quanto o mesmo movimento no sul, sobretudo o de São

Paulo, aos modelos franceses e italianos. Tirou todo o proveito da lição sem sacrifício

de suas virtudes próprias (BANDEIRA 1951).

Bandeira também incluiu Cardozo em sua Antologia dos poetas bissextos

contemporâneos, editada em 1946, que em boa medida projetou seu nome em âmbito

nacional. Ele, aliás, justificou a escolha, um tanto imprecisa, de inserir Cardozo na

Antologia em carta de 25 de novembro de 1947 endereçada ao amigo comum João

Cabral:

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Outro dia me encontrei na rua com o Joaquim Cardozo, que me disse terem os versos

dele sido mandados a você para as suas edições. Com os poemas de Cardozo e os de

Clarice Lispector a sua coleção adquire de saída uma grande classe. Estou

interessadíssimo no seu empreendimento. Sugiro para depois o Prudente [de Moraes

Neto], o [Pedro] Nava e o Aníbal Machado, enfim os grandes bissextos. Digo bissextos

bem abusivamente porque o Prudente e o Cardozo não são bissextos, senão na atitude

esquiva e se os pus na minha antologia foi porque se não o fizesse ninguém poderia ler

os poemas deles (BANDEIRA 1947).

Após ver publicada boa parte da produção literária de Cardozo – porém não seus

contos –, Bandeira espirituosamente retificou sua posição anterior, fixada na Antologia

e em Apresentação da poesia brasileira: “As retardadas edições em livro de [...]

Joaquim Cardozo vieram tornar a minha Apresentação da poesia brasileira, escrita

antes de 1945, um livro truncado. Deus me dê tempo para atualizar aquelas páginas”

(BANDEIRA 2012).

Somente em 1947, em seu 50º aniversário, Cardozo veria seus escritos tomarem

a forma de livro, com a publicação de Poemas, uma homenagem promovida por seu

círculo de amigos e editada pela Agir, com direito a desenhos de Luís Jardim e prefácio

de Carlos Drummond de Andrade. No referido texto, o poeta mineiro sentenciou: “Um

aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo o

período de renovação literária. E permitiu-lhe dedicar às coisas pernambucanas enfim

admitidas no campo da poesia uma contemplação que não se deliciava na superfície,

buscando penetrá-las no seu significado ou no seu mistério” (ANDRADE 1947).

Por ter estreado em livro tardiamente, apenas aos 50 anos, e nunca haver se

ligado de modo cabal a nenhum movimento estético específico, “[...] Joaquim Cardozo

tornou-se uma ‘descoberta’”, como argutamente assinala a crítica Luciana Stegagno-

Picchio (2004). Luciana sublinha a flagrante atualidade da obra cardoziana, perpetrada

sem vícios de escola, cacoetes de estilo ou soluções ligeiras, que lhe permite granjear a

estima do amante da literatura, sem prejuízos: “[...] os seus objetos (o relógio, o homem

que dorme, as coisas todas cristalizadas pelo tempo na sua dimensão natural) e o seu

modo de orquestrar a partitura poética, deixando o leitor livre para organizar a seu gosto

as intervenções, atraem os mais jovens poetas de hoje” (STEGAGNO-PICCHIO 2004).

Após aproximadamente 12 anos – entre 1942 e 1954 – efetuando cálculos de

edifícios Brasil afora para Oscar Niemeyer, em 1956 Cardozo passou a comandar a

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Seção de Cálculo Estrutural do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da

NOVACAP. A aventura da construção de Brasília gravou-se no espírito e na obra

literária de Joaquim Cardozo, como comprova o poema “Arquitetura nascente &

permanente”, dedicado “a Oscar Niemeyer arquiteto-poeta/ A Manuel Bandeira,// João

Cabral de Melo Neto e Thiago de Melo arquitetos da poesia”:

Planos de sombra e sol. Colmeias.

Hexágonos. Prismas de cera.

Um ovo. Um fruto. Uma semente

Que em tempo límpido plantada,

Em chão noturno se perdera,

Agora nasce, enfim se eleva

Em pedra e em ferro organizada.

Em pedra virgem da ternura

Das águas. De um granito ornado

De hornblendas e de granadas,

Penetração de chuva e vento,

A rigidez jamais poluiu;

E de um mistério extravasado

Em rio ardente e rastejante

O férreo sangue uma vez fluiu.

Em rocha ígnea – rude matéria –

Enfim se eleva e o espaço altera,

Ou numa pedra mais recente

Que um jardineiro descobriu

Quando regava os gerânios,

Certa manhã de primavera.

[...]

Mansão. Castelo. Catedral.

Marmórea manhã subindo

Arbórea ascensão votiva

Cingindo a cidade imortal.

Volume a se conter bem perto,

Espaço a se expandir tão longe,

Mar aberto a proa de navio,

Trens coleando rampas nos montes...

Ponte pênsil: raiz aérea

Transpondo a beleza abissal,

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Avião a jato projetando

O abismo em voo monumental

[...]

(CARDOZO 2008).

Sua paixão por arquitetura e urbanismo, artes e literatura levou-o a colaborar

periodicamente no quinzenal Para Todos, dos irmãos James e Jorge Amado, e a fundar,

junto com os parceiros de longa data Oscar Niemeyer e Rodrigo Melo Franco de

Andrade, entre outros, a revista Módulo – um marco para a arquitetura brasileira.

Membro da direção e do conselho editorial da revista, Cardozo contribuiu assiduamente

na publicação com artigos e ensaios.

Os anos 1960 viram a multiplicação de elogios e críticas positivas provenientes

de alguns dos mais respeitados críticos literários nacionais, como Fausto Cunha, em A

luta literária (no artigo “Joaquim Cardozo: um exercício de admiração”), e José

Guilherme Merquior, em Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. Foi também

na década de 60 que Cardozo recebeu uma reverente homenagem da revista Módulo,

que o elegeu como tema de número especial, apresentando textos de uma genial turma

composta por Jorge Amado, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Samuel Rawet, Mário

Barata, o supracitado Fausto Cunha e Oscar Niemeyer.

Notável engenheiro calculista de Oscar Niemeyer, topógrafo, brilhante

matemático, foi capaz de pensar e viabilizar as até então impossíveis e incogitadas

proezas arquitetônicas da Nova Capital numa concreção de sua extensamente inquieta e

ousada chama intelectual. Dele disse o amigo e parceiro profissional Niemeyer:

Em minha vida profissional, tive o privilégio de encontrar na colaboração amiga e

superior de Joaquim Cardozo esse complemento essencial. [...] Sua atuação se mantém,

invariavelmente, num alto nível de compreensão e otimismo, interessado em fixar para

cada problema a solução justa, a solução que preserve a forma plástica em seus mínimos

aspectos, indiferente às dificuldades que poderão advir; certo, como eu, de que a

arquitetura, para constituir obra de arte, deve antes de tudo ser bela e criadora. Se lhe

proponho solução difícil de realizar, ele a estuda com redobrado carinho, desejoso de

não lhe reduzir outros detalhes que acentuem essas características. E a tudo isso acresce

o trato ameno e simples do homem inteligente – Cardozo é o brasileiro mais culto que

conheço – incapaz de impor uma opinião com a intransigência das coisas irrefutáveis,

apresentando-as sempre como sugestões pessoais, que julga justas e convenientes

(NIEMEYER 1961).

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No final da vida foi profundamente chagado pelo acidente do desabamento do

Pavilhão da Gameleira, obra do governo mineiro, em 1971, projetado por Oscar

Niemeyer e calculado por ele, causando a morte de dezenas de operários. Consternado

pelas ameaças de culpabilização pela tragédia, Cardozo viu-se encurralado pela injustiça

e calúnias multiplicadas. Defendido juridicamente por Evandro Lins e Silva, ao final do

julgamento foi inocentado de qualquer responsabilidade pelo desastre. Contudo, seu

temperamento doce e sensível sofreu irreparável abalo com a pressão insuportável

gerada pelo episódio; desolado, abandonou definitivamente a profissão em 1972 e

recolheu-se, abatido. Recorda tal momento delicado Evandro Lins e Silva, que não se

cansava de enfatizar a qualidade do caráter de Cardozo:

O destino me uniu a Cardozo numa hora de ansiedade e expectativas, de tormentos e

aflições. Aquele homem sem malícia, frágil e ameno, não fora feito, não estava

preparado para enfrentar a perfídia e a astúcia de adversários sem escrúpulos, nos

embates desgastantes de um procedimento legal. Passamos a sofrer juntos, assumi com

ele as suas dores. E foi assim que conheci melhor a grandeza desse extraordinário

exemplar humano que se chamou Joaquim Cardozo (LINS E SILVA 1979).

O difícil ano de 1971 viu também um momento mais sereno, quando da

publicação de Poesias completas pela Civilização Brasileira, que compilou toda a obra

poética de Cardozo. Dois anos depois, em 1973, embora tenha sido agraciado com

homenagens importantes como o recebimento do grau de Sócio Benemérito do Instituto

de Arquitetos do Brasil, a Menção Honrosa da União Internacional de Arquitetos e a

lembrança de seu nome para uma das salas da I Bienal de Arquitetura de São Paulo,

regressou, após décadas, ao Recife, fragilizado e envelhecido. Na capital pernambucana

passou a viver com as irmãs.

No ano de seu 80º aniversário, 1977, doou sua biblioteca completa, avaliada em

cerca de 7.500 volumes, à Universidade Federal de Pernambuco. Ainda que seu corpo

lentamente se consumisse, seu pensamento continuava alerta, fascinante e fascinado.

Sempre um amante da matemática e da contemplação, afirmou nesse ano em entrevista

concedida ao Jornal do Commercio do Recife:

A matemática já foi considerada uma poesia, pelo menos houve quem dissesse que

Weierstrass, como matemático, era um poeta; Weierstrass, que foi professor e amigo da

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grande e bela Sonia Kovalevski, uma das primeiras mulheres que se formaram em

matemática no mundo. Maria Caetana Agnesi, que ensinou esta ciência em Bolonha,

teve um gesto de alta poesia; depois do seu sucesso como cientista descobridora de uma

curva unicrusal, entrou como freira no convento das celestes; mais recentemente, a judia

Ann Nother, que foi professora de Artin e Van der Weiden, descobriu, num dia de

inspiração, a álgebra moderna (CARDOZO 1977).

Após o agravamento de seu quadro de saúde ao longo do biênio 1977-1978,

morreu aos 81 anos, em 04 de novembro de 1978, em Olinda, Pernambuco, Joaquim

Cardozo, homem de impactante e larguíssima erudição, capaz de discorrer sobre

assuntos os mais variados, poliglota conhecedor de quinze idiomas, estudioso

incansável da literatura mundial.

Enlutado pela perda do adorado amigo, João Cabral de Melo Neto refletiu em

verso ácido (“Na morte de Joaquim Cardozo”, de A escola das facas) a respeito da

injustiça difamante que atingiu Cardozo em seus últimos anos, reservando-lhe certo

infame ocaso: “Creio que Joyce é que dizia/ que a Irlanda dele se comia// comendo os

filhos, como a porca/ que as crias melhores devora.// Estamos tão desenvolvidos/ que já

podemos esse estilo// de fazer Dublin, Irlanda, Europa?/ e um novo imitá-las, em

porca?” (MELO NETO 1980).

Para João, Cardozo merecia veneração irrestrita por sua qualidade humana

inexcedível e seu pioneirismo – poder-se-ia dizer modernismo – em termos de imagens,

forma e conteúdo literários:

Joaquim Cardozo foi um dos maiores poetas que conheci. No Recife, não tive

oportunidade de conviver com ele, que havia sido expulso de lá pelo governo do estado.

Mas, quando me mudei para o Rio, em fins de 42, passamos a conviver diariamente. Foi

o homem mais culto que conheci na minha vida. Sabia até chinês. E isso dentro da

modéstia que lhe foi sempre característica.

Cardozo não procurou os ambientes literários, não procurava ninguém. Só procurava

quem o procurasse. Uma das honras que tenho na vida é que ele, já de volta ao Recife,

disse a um jornalista que os três maiores amigos de sua vida eram Rodrigo Melo Franco

de Andrade, Oscar Niemeyer e João Cabral de Melo Neto. Sua obra é extraordinária,

embora não tenha sido suficientemente estudada. Cardozo encontrou o verdadeiro estilo

moderno no Brasil, sem ser modernista.

Estava sempre compondo um poema. Se alguém pedisse, ele dava. Se não, esquecia [...]

É o maior pernambucano que conheci. Encorajei-me a escrever poesia pernambucana

por causa do Cardozo (MELO NETO 1997).

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João Cabral, aliás, foi um dos pioneiros em publicar a obra de Cardozo, ao editar

o volume Pequena antologia pernambucana (1948) em sua tipografia manual –

intitulada O Livro Inconsútil –, em Barcelona, onde ocupava o posto de vice-cônsul na

representação diplomática brasileira. O livro trazia dez poemas de autoria cardoziana:

“Imagens do Nordeste”, “Recordações de Tramataia”, “Terra do mangue”, “Canção”,

“Cajueiros de setembro”, “Dezembro”, “Chuva de caju”, “As alvarengas”, “1930” e

“Olinda”. A seu respeito, cunhou o diário recifense Praieiro em setembro de 1949: “O

volume é um encanto, verdadeiro tesouro para os bibliófilos, pois o senhor João Cabral

de Melo Neto tirou apenas cem exemplares, magnificamente impressos, em papel tão

alvo como as praias do Nordeste [...]” – na verdade, foram tirados 101 exemplares da

Pequena antologia pernambucana.

Dono de percurso editorial no mínimo tortuoso, por assim dizer, Cardozo,

sempre circunspeto, teve sua obra publicada graças ao esforço contínuo de um grupo de

amigos leais, empenhados em divulgar sua produção literária tanto quanto possível.

“Ele é um daqueles tantos exemplos de ‘poeta para poetas’. Em Pernambuco, figurou

sempre, de maneira quase esotérica, como uma espécie de guia ou sábio. Nas letras

brasileiras, a descoberta foi lenta” (LIMA 2008). O próprio Cardozo não se dedicava de

bom grado a “propagandear” sua obra, furtando-se a procurar editores que pudessem

viabilizar sua publicação. Cardozo descuidava-se até mesmo de pôr em papel seus

poemas: “Escreveu três poemas na Europa:/ dois se apagaram na memória.// Compõe

alguns poemas, ainda,/ mas quase todos viram cinza,// porque, completados, ninguém/

colhe-os da memória onde os tem” (MELO NETO 1987).

Daí a insistência de João Cabral em dar forma adequada aos escritos

cardozianos, compatível com seu alto grau de inovação e tessitura literária. Daí a busca

incansável de Cabral por esparsos, com indicações de localização fornecidas muitas

vezes pelo próprio Joaquim Cardozo. “José Maria [de Albuquerque Melo] tinha sempre

a ideia de fazer uma edição de Cardozo, e nunca fazia, o Cardozo pediu a ele para

mandar coisas inéditas, e o José Maria egoisticamente não mandou. Tinha sempre essa

ideia de fazer uma edição de Cardozo, que nunca fez” (MELO NETO apud LIMA

2008).

A longa amizade entre Cardozo e Cabral frutificou em vários poemas do

segundo acerca do primeiro, como “A Joaquim Cardozo”, incluído em O engenheiro

(1945), uma de suas obras de juventude:

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Com teus sapatos de borracha

seguramente

é que os seres pisam

no fundo das águas.

Encontraste algum dia

sobre a terra

o fundo do mar,

o tempo marinho e calmo?

Tuas refeições de peixe;

teus nomes

femininos: Mariana; teu verso

medido pelas ondas;

a cidade que não consegues

esquecer

aflorada no mar: Recife,

arrecifes, marés, maresias;

e marinha ainda a arquitetura

que calculaste:

tantos sinais da marítima nostalgia

que te fez lento e longo

(MELO NETO 1975).

O caráter “marinho” de Cardozo ressaltado no poema, sua fluidez e aquosa

opacidade, sereno na superfície, redemoinhado nas profundezas, aplica-se à perfeição a

sua produção literária, toda ela simples nas pequenas vagas que rebentam ao tocar o

leitor, densa e inesperada em suas imagens abissais.

As referências a Cardozo não pararam aí. O cão sem plumas (1950) é dedicado

“a Joaquim Cardozo, poeta do Capibaribe”; outro poema relativo ao Capibaribe (“O

rio”) traz Cardozo como figura essencial, significativa: “No cais, Joaquim Cardozo/

morou e aprendeu a luz/ das costas do Nordeste,/ mineral de tanto azul” (MELO NETO

1954).

A imagem da luz nordestina, ampla, oceânica – implacável em sua abertura de

facho irradiado e irradiante – é também aquela encontrada em “A luz em Joaquim

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Cardozo”, constante do volume Museu de tudo, um apanhado de poemas cabralinos

redigidos entre 1966 e 1974. No poema aponta Cabral: “Escrever de Joaquim Cardozo/

só pode quem conhece/ aquela luz Velázquez/ de onde nasceu e de que escreve.// A luz

que das várzeas da Várzea/ onde nasceu, redonda,/ vem até o ex-Cais de Santa Rita/ que

viveu: luz redoma,// luz espaço, luz que se veste,/ leve como uma rede,/ e clara, até

quando preside/ o cemitério e a sede” (MELO NETO 1975). É a imagem da luz natural,

na verdade natal, que sempre acompanhará o poeta em sua terra e nas alheias, seu

Recife em outros recifes, antigo Cais de Santa Rita transladado para margens além, seja

ele Cabral ou Cardozo, como se lê em “Joaquim Cardozo na Europa”, de A escola das

facas:

Ele foi dos recifenses

de menos ondes e onde mais,

que em lisboas, madrids, paris,

andou no Recife, seu cais.

Como elas todas já sabia

não foi turista ou visitante;

não caminhou guias, programas:

viveu-as de dentro, habitante.

A guerra não o deixou andar

outras que também lhe eram íntimas,

que conhecera no Recife,

habitando-as no espaço-língua.

Confiou-me que se anda igualmente

no Cais do Apolo ou nos do Sena,

que foi na Europa (não à Europa)

como na Várzea ou Madalena.

(MELO NETO 1980)

Mais que o Recife e sua herança de memórias, luzes e recantos, um imaginário

solidamente armado ao longo de séculos e cultivado em palavra por ambos, a dupla

compartilhava o apego ao fazer literário, ao versejar tamanho. É assim que se lê em

“Cenas da vida de Joaquim Cardozo”, de Crime na Calle Relator (1987):

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[...]

Um poema sempre se fazendo

Muito embora sua obra pequena,

vivia escrevendo-se um poema:

não no papel, mas na memória,

um papel de pouca demora.

Na memória, é fácil compor

todo dia, seja onde for:

sentado, escritor, numa mesa,

ou andando, entre a hora e a pressa

de uma cidade que abalroa,

que exige de quem anda proa,

onde quem anda é entre choques

ou se esgueira como quem foge.

Cardozo levava seu poema:

a poesia, não leva a pena

de fazê-la, a pena é abstrata,

é o fazer, re-fazer, guardá-la.

E nele vai sem romantismos:

nem o de vir de paroxismos

nem o mais de moda e moderno,

de escalar fingidos internos.

Ele vivia com seu poema

como outros vivem com sua crença:

a dele é o poema do momento,

que leva sem mudar de gênio.

No Recife, em todas as horas,

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no Rio (quem melhor o ignora?)

eis como escrevia, me disse,

o poeta que fez o Recife.

Assim, não deu trabalhos aos prelos:

se sequer cuida de escrevê-los!

Se só se alguém lhe pede um poema

reescreve algum que ainda lembra.

(MELO NETO 1987)

Poeta, contista, dramaturgo, ensaísta, crítico literário, de arte, arquitetura e

urbanismo, talentoso desenhista, Cardozo era um humanista supremamente dedicado, de

inteligência fulgurante, personagem emblemático da buliçosa boêmia literária recifense

nos anos 20 e 30. Pernambucano do Recife, nunca chegou a trilhar o caminho do

modernismo que então se espraiava em terras brasileiras; palmilhou, contudo, a seara do

“modernismo independente”, “mais ausente do que participante” (ANDRADE 1947),

entrando em contato com as novidades literárias dos grandes centros culturais e

absorvendo-as com parcimônia a partir da leitura de livros e revistas estrangeiros e da

amizade com intelectuais e artistas como Vicente do Rego Monteiro, Gilberto Freyre,

Ascenso Ferreira, Cícero Dias, entre outros. A recuperação da obra literária de Cardozo

é também, portanto, certa reconstrução de uma como que parcela da história do

modernismo brasileiro.

Pouco a pouco, o homem tímido de inesgotável erudição, introspectivo e dono

de curiosidade sempre vasta, ainda que involuntariamente firmou-se na constelação das

letras brasileiras, passando a se constituir em nome respeitado, consolidado. Uma

estrela coadjuvante, cujo brilho intermitente despejava-se apesar da distância. Cardozo

desde cedo pareceu estrangeiro dentro do painel de autores nacionais pela índole

recatada e um tanto relapsa na divulgação da obra, estrangeiro também pela não adesão

a movimentos, ondas. Uma não adesão que se deu, não pela recusa – como, aliás, pouco

conviria à sua condição de homem manso, enluarado –, mas por um simples postar-se

autônomo, quase intuitivo. Um criador sem pátria, sem rótulos, sem raízes – pelo menos

não identificáveis. Alheio a ambições vanguardistas. Um marginal à margem, que nunca

se quis outsider, transgressor, rebelde – jamais o protótipo do escritor flamejante,

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original à beira do abismo, que se constrói por oposição direta ao que ambiciona refutar,

depredar. Uma literatura que não quer se caracterizar como de manifesto, de entradas e

bandeiras, de escola: abarca apenas suas palavras medidas, precisas – matemáticas –,

um pensar possível.

Criação de um dos mais instigantes e multifacetados autores brasileiros do

século XX, a obra cardoziana, límpida, intriga com sua profundidade e complexidade,

desdobrada em poesia, contos, dramaturgia, crítica de arte, de arquitetura e urbanismo,

além dos projetos matemáticos e de engenharia.

Cardozo traz sempre uma intensa carga de preocupações metafísicas em sua obra

e uma manifestação constante do elemento sobrenatural, além de conjurar uma

atmosfera onírica que traspassa toda a trama textual, numa conjugação equilibrada de

fantasmático e real perfeita e poeticamente equacionados: “Na sua múltipla visão, ele

ousou ir a fundo no seu conhecimento das coisas, não apenas através da lógica da

ciência, mas seguindo o itinerário de uma metafísica sentida e pressentida” (NORÕES

2008). As questões metafísicas, a compreensão da força da natureza e a assiduidade do

fantástico, pontos amplamente explorados por Cardozo em todos os recantos de sua

obra, se acordaram no autor quando de sua infância, no bairro do Zumbi, de cajazeiras,

cajueiros, nuvens e terra – num “recorte lírico, que parte de sua cidade, de sua região e

que se abre para os mistérios do Cosmos” (LUCCHESI 2008) –, como declara ele

mesmo: “Sempre tive visões longínquas. Via as coisas lá longe, não sabia o que eram”

(CARDOZO 1977). É o seu Recife, “mágico e real”, “centro de sua terra” (LUCCHESI

2008), lúcido e formoso, orgulhoso e teluricamente fabular, o ponto de partida para sua

divagação acerca das coisas do mundo, sua fatura-fagulha.

Ao partir das suas coisas mesmas – seu quinhão de terra solar e catedral, chão de

argila preta, antiga e açucareira, a colorida flora local, cajazeiras, mangueiras, cajueiros,

nuvens as mais diversas e fascinantes, os costumes das gentes do lugar, seu Recife

maravilhoso, alvamente caiado, mítico, alinhavado às mais vivas memórias de infância

e juventude – Cardozo conversa com elementos que o moldaram e o fizeram homem e,

assim, privilegia um enfoque enraizado, mas não por isso restrito a regionalismos

marcados; pelo contrário, ele faz de seu cantão um portal de acesso ao grande segredo –

humano, cósmico. Ele “[...] saberá partir do regional (o Recife natal, o Nordeste seco e

preciso de Graciliano Ramos e de João Cabral) para chegar ao universal. Apenas

‘paisagem, profundamente’” (STEGAGNO-PICCHIO 2004). É no seu Recife, cidade

ancestral, “princípio das coisas poéticas” (LUCCHESI 2008), que Cardozo busca seu

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recorte, construído à base de sonho, afeto, lirismo e lembrança. A claridade do Recife,

derramada em praias e relevos exatos, ostensiva em mar, céu e brancuras areníticas,

alumia também a memória do autor e incandesce o pensamento. Saindo do Recife, seu

cenário particular e entranhado, cidade que abriga sua recordação, seu devaneio e sua

vivência, Cardozo ruma para o universal, o aberto, circular e infinito. Nas palavras do

poeta Marcus Accioly:

Procurem-no no leite das mangabas, no látex das resinas, na água dos cocos verdes, nos

coquinhos redondos da macaíba e compridos do catolé, no hálito das folhas úmidas, no

cheiro das plantas, nos pendões de cana. Procurem-no nas flores dos cajus

vermelhamarelos, nos cabelos lisos e crespos da chuva-de-vento e da chuva-de-sol, nos

pífanos de bambu soprados por cigarras, no pavão de cores líquidas, nos ninhos das

cajazeiras sem cajás, nas gaiolas sem pássaros, nos covos sem peixes, no inverno seco e

no verão molhado. Procurem-no na primeira mulher com mar no nome. Procurem-no,

procurem-no, procurem-no.

Quando for noite, abram uma janela ou um postigo para que entre a sua sombra e – mal-

assombrada ou bem-assombrada – baile até a luz. Deixem pelo menos a claraboia

vazada de lua, que ele se estreita longo, se inclina pelo raio obliquo, esgueirando-se

feito um morcego branco – com asas de anjo – que chupa o sangue das frutas e abana o

sono das crianças (ACCIOLY apud LIMA 2008).

No conto “Minha tia Dondon”, por exemplo, temos a irrupção de um clima

onírico – também encontrado no belo relato memorial de “Na estação” – ao se narrar o

fenômeno da premonição da morte da tia-avó Dondon. Em “Variações sobre uma vida”,

Cardozo indaga a respeito da existência, dos motivos de nossa presença nesta terra:

Nós estamos aqui, neste mundo, de passagem; pode ser que tenhamos vindo do nada ou

da eternidade, isto é, no espaço onde estivemos antes de nascer nada exista ou tudo

exista para sempre; entre o nada e a eternidade não há transição ou passagem; entre o

que nada existe e a existência total o que existe é uma sequência de nada, uma travessia

consciente, homo-existente. Essa voz que me persegue, o que será dessa consciência? A

sua verdade? A sua abstração? Que parte dela revela esse monólogo sonoro que me

atormenta? Monólogo ou diálogo (se é diálogo) é uma conversa, através de mim, entre

dois mundos – o anterior e o posterior a nós? E Deus, que parte tem nessa entonação

que extrapola de mim mesmo para o Antes e o Depois? A vida é um não ser perene?

Isso pode ser uma prova de um não ser divino? (CARDOZO 2008)

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Classificado inadequadamente por Manuel Bandeira como “poeta bissexto”,

Joaquim Cardozo sobrepuja deveras como mago do entrançamento

num raro equilíbrio de forças – [de] tradição e inovação, ciência e poesia, metafísica e

matemática, aspecto quântico e fronteiras do Universo. E não obstante essa noosfera, de

temas e proposições, deparamo-nos com um lirismo delicado, longe de propostas

cientificistas redutoras, ou de presumidas lições [...] Trata-se de [...] um atento seguidor

de Leonardo da Vinci, usando outros métodos, mas não abandonando, em momento

algum, esse olhar plural, essa intuição das coisas, de sua clareza e complexidade

(LUCCHESI 2008).

Na interessante visão de Carlos Drummond de Andrade, um altíssimo e dos mais

célebres admiradores:

De fato, pode dizer-se de qualquer verdadeiro poeta que a vida inteira ele desenvolverá

um tema único, que é o seu próprio, e que se confunde com a sua natureza e o seu

entendimento pessoal das coisas humanas. Esse tema sofrerá um sem número de

variações, e exposto sob formas diferentes parecerá diverso, tão diverso quanto os

sucessivos objetos a que se aplique a visão poética do autor. Tais objetos, é sabido, não

interessam em si, senão pelo fundo de valores jacentes que façam subir à tona [...] ou

como ponto de referência para a meditação poética que o autor tentará infindavelmente,

embora a saiba sincopada, fugitiva, descontínua, evanescente e, quase sempre,

irredutível ao vocábulo. [...] é possível, talvez, chegar à concepção de um só tema,

identificado com a pessoa mesma do poeta, ou seja, a própria visão física e metafísica

do mundo, que cada poeta leva consigo. [...] é o próprio espírito que oferece a Joaquim

Cardozo situações de poesia, com o seu exercício cada vez mais desembaraçado sobre o

universo das formas. E essa poesia se constitui menos das coisas poetizadas do que da

própria ótica poetizadora de Cardozo (ANDRADE 1947).

Medianamente conhecido como poeta – autor dos volumes Poemas, Signo

estrelado, Trivium, Mundos paralelos, O interior da matéria, Um livro aceso e nove

canções sombrias, este póstumo –, Joaquim Cardozo é quase absolutamente

desconhecido em sua pequena, porém vigorosa e única, produção ficcional. Os doze

contos escritos por Cardozo – “Voltando de Marcação”, “Perdidos nos tabuleiros”,

“Tramataia”, “O rugido”, “De novo em Cabedelo”, “Minha tia Dondon”, “Na estação”,

“Brassávola”, “O caminho”, “A pesca de lagostim”, “Variações sobre uma vida”, “Em

busca do Marco das Balanças” –, embora componham um corpus pequeno, possuem

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significativo valor literário, sobretudo se levarmos em consideração a riqueza de sua

composição e das imagens ali presentes e seu quase ineditismo. Foram reunidos pelo

próprio – sem muita diligência, todavia, como convinha a seu temperamento modesto,

solitário e reservado, o já mencionado “aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica”

(ANDRADE 1947), conforme afirmou Drummond – para publicação em volume, a se

chamar Água de chincho, mas permaneceram inéditos em livro por quase 30 anos após

sua morte, em 1978.

Chinchos são gravatás, aparentados das bromélias, de pequeno tamanho,

abundantes à margem de trilhas e caminhos nos tabuleiros paraibanos. Com seis contos

– entre doze – centrados no imaginário que envolve e caracteriza a Baía da Traição, não

é fato a ser estranhado que o nome cogitado por Cardozo aluda diretamente àquelas

terras e àquela experiência. “Ali, segundo ele, o sol era tremendo, ‘não se podia levar

água e a seca terrível obrigava-nos a beber água de chincho’” (AMARAL apud

NORÕES 2008). Não à toa, “água de chincho” é aquela da chuva empoçada – “água de

chuva contida dentro das folhas de pequenos gravatás”, no dizer do narrador cardoziano

em “Tramataia”, integrante do volume de contos. Trata-se da coisa contida, a corrente

abrigada, a diafanidade aquosa que, ao se fixar e avolumar, se faz espelho do que está

fora e de si mesma. Explicação do próprio Cardozo pode ser observada em depoimento

manuscrito, parte do acervo da pesquisadora Maria do Carmo Pontes Lyra,

posteriormente transcrito por Maria da Paz Ribeiro Dantas em Joaquim Cardozo:

contemporâneo do futuro, fruto de suas pesquisas devotadas ao universo cardoziano.

Também empreendemos uma longa pesquisa, ao fim da qual logramos encontrar

autores e obras, ensaios e artigos, todos relacionados aos contos cardozianos e à

presença, neles absoluta, de um imaginário peculiar, vertido em recorrentes imagens de

grande apelo, imagens que evocam a tensão entre palpável e quimérico, tema este

igualmente abordado neste trabalho.

Este estudo não contou com trabalho de campo nem de laboratório, apoiando-se

sobretudo na pesquisa teórica e bibliográfica. Sendo a pesquisa não-quantitativa,

baseamo-nos na coleta de dados bibliográficos em bibliotecas universitárias reais e

virtuais, na análise desses mesmos dados e em sua interpretação, na leitura/releitura e

exegese dos textos literários, teóricos e acadêmicos citados na seção dedicada a

referências bibliográficas, com elaboração de resenhas críticas e interpretativas e notas

sobre os documentos lidos. A partir do recolhimento de todo este material buscamos

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fazer uma apreciação adequada dos documentos amealhados, elaborando um plano

esquemático sucinto e preciso seguido na redação da tese.

No círculo cardoziano, cabe ressaltar a leitura de alguns expoentes de sua cada

vez mais sólida e plural fortuna crítica: o jornalista, antropólogo, professor da UFPE,

crítico de arte e literatura e editor pernambucano Mário Hélio Gomes de Lima, autor de

um vigoroso e extenso ensaio sobre a criação cardoziana recentemente publicado; o

poeta e crítico literário Everardo Norões, organizador da Poesia completa e prosa do

escritor, autor de um belo e acurado texto concernente à produção literária de Cardozo,

além de sua cronologia de vida e obra; Sergio Gesteira, autor da pioneira dissertação

“De ventos e números: sobre a poesia de Joaquim Cardozo” (Letras/UFRJ); Evaldo

Coutinho, dono de estudos vários sobre o desdobramento da arquitetura na prosa e

poesia de Cardozo, Carlos Drummond de Andrade e seu lírico “Prefácio” a Poemas;

Jorge Amado e as homenagens surgidas na revista Módulo; Félix de Athayde e artigos

na imprensa; Antonio Houaiss e seu clássico Drummond mais seis poetas e um

problema; Fernando Py e os artigos e estudos críticos dos capítulos consagrados a

Cardozo em Poetas do modernismo e Chão da crítica; Audálio Alves e sua visão

precisa da participação de Cardozo no movimento modernista; os textos de Felipe

Fortuna, poeta, crítico literário, ensaísta e professor do King’s College.

Lemos ainda artigos, ensaios e prefácio do jornalista, professor da UFPE, crítico

literário e poeta César Leal; Maria da Paz Ribeiro Dantas, poeta, ensaísta e crítica

literária, autora de variados artigos e ensaios e da dissertação (UFPE) “O mito e a

ciência na poesia de Joaquim Cardozo: uma leitura barthesiana”, principal responsável

pelo trabalho de organização e compilação da obra cardoziana, além da concepção e

criação de um site integralmente dedicado ao escritor. Não devemos tampouco esquecer

a leitura dos textos de José Guilherme Merquior, Gilberto Freyre, Oscar Niemeyer,

Rodrigo Melo Franco de Andrade, os depoimentos e homenagens poéticas de João

Cabral de Melo Neto, entre outros, além do erudito ensaio do poeta, ensaísta, crítico

literário e professor Marco Lucchesi.

Fora do meio cardoziano propriamente dito, seria impossível não mencionarmos

o nome de Gaston Bachelard, com seus aprofundados ensaios sobre o problema das

imagens e da imaginação. Em um momento à parte, trataremos dessas questões no

pensamento do filósofo, seguindo o percurso de tais noções em sua produção filosófica.

Tentamos destacar os aspectos de três fases principais de sua obra e quais as discussões

suscitadas a partir das posturas adotadas diante da imagem em seus diferentes matizes.

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Partindo de uma imagem marginalizada para outra, uma imagem que aponta a

profundeza do psiquismo, buscamos atingir uma tentativa de vislumbrar a imagem

como evento libertário, jamais gestado por causalidades prévias, tomando e

revolucionando aquele que imagina.

Não podemos, sobretudo, deixar de mencionar o próprio Joaquim Cardozo. Toda

a sua poesia e parte significativa do restante de sua obra – incluindo-se todos os doze

contos aqui analisados – encontram-se no volume Poesia completa e prosa, que traz,

além da produção poética integral, os contos e a crítica de arte e literatura e de

arquitetura e urbanismo, um selecionado aparato crítico contendo estudos feitos por

intelectuais e acadêmicos sobre o escritor e aspectos de sua criação literária.

Pouco se tentou – talvez por conta da complexidade incontornável e inerente à

tarefa – trazer à luz a obra literária de Joaquim Cardozo – sobretudo seu lado contista –,

caracterizada por uma admirável, irrequieta e riquíssima multiplicidade de imagens,

interesses e temáticas, em que, numa quase inédita e extremamente bem-sucedida

fórmula, se combinam elementos frequentemente vistos como incompatíveis (metafísica

e matemática, ciência e poesia, consciente e inconsciente, real e onírico, macrocosmo e

quantum) num belo arranjo composicional de vistoso equilíbrio e inúmeras camadas. É

essa lacuna que este estudo, de modo original, pretende preencher – posto não haver

trabalho acadêmico dedicado a tema similar. Nunca os contos cardozianos e suas

imagens – ignorados por pesquisas sistemáticas e teóricas – foram analisados por meios

universitários. A obra cardoziana pede justiça, pede para ser lida, escutada, e este

trabalho tenta, singelamente, torná-la mais difundida, ponte para sua acessibilidade.

Como bem atestou o crítico Mário Hélio Gomes de Lima: “Nesta Poesia

completa e prosa também está quase todo o contista Cardozo. Alguém ainda precisa

escrever um estudo sistemático sobre essa faceta menos conhecida [...] de sua produção,

que, como nas seminovelas de Gilberto Freyre, mescla memorialismo, ficção” (LIMA

2008).

Muito afastado de visões limitadas e limitantes, de segregações vazias e

reducionistas do conhecimento, Cardozo engendra uma trama que se afigura como

essencialmente lírica, contempladora da grande e universal experiência do humano; nele

convivem delicadeza, precisão, ousadia e vigor. O uno é o seu mistério, o sortilégio que

o bruxo Cardozo conjura em sua fatura literária. Ao se devotar às coisas todas, plenas,

justas na sua inteireza, à variedade do fulgor do homem, claro e concêntrico, Cardozo

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elege um olhar que se espraia dentro de um fazer literário exemplarmente resolvido e

envolvente.

Seus contos quase todos indicam relatos de experiências pessoais, respiram uma

atmosfera de vivência particular, não apenas por apresentarem uma narrativa de

primeira pessoa, mas, sobretudo, por contarem com um narrador que comumente

embute no texto um tom de veracidade e incute a ideia de se tratar de um episódio

ocorrido de fato. O tratamento essencialmente narrativo conferido a certos contos, além

da frequência significativa de trechos assaz descritivos, por vezes os torna semelhantes

a simples crônicas sobre paisagens e acontecimentos aleatórios. No entanto, a narrativa

escapa ao clima de desenvolvimento de um relato mero – e aí Cardozo se mostra mestre

da criação de atmosferas, mago oportuno, ajuntando sentidos, memória, sonhos, tensão

e desarranjos psíquicos em imagens que lhe são caras. Assim é que ele dedica às coisas

“uma contemplação que não se deliciava na superfície, buscando penetrá-las no seu

significado ou no seu mistério” (ANDRADE 1947).

São exatamente seus contos e suas imagens, profundamente vinculados a um

fundo devaneio, ao fantástico, que buscamos trazer à tona neste trabalho. Aqui,

propomos um passeio pela imagética de Cardozo, uma abordagem afetiva – e não

teorizante – das imagens que o autor distribui em seus contos. Empreendemos uma

viagem pelos contos de Cardozo, um por um, numa tentativa de aproximação do

imaginário do autor. Escolhemos um desfiar de imagens, um folhear, numa leitura que

não se põe como definitiva, última – pelo contrário, o olhar aqui lançado é apenas um

entre tantos possíveis. A visão eleita foi a de uma ledora amante – para usar o termo

bachelardiano –, prolongando o devaneio de Cardozo, participando ativamente das

imagens cardozianas, sonhando-as, seguindo as sendas que elas anunciam – permitindo

que elas se imaginem, arrastando a imaginação. À maneira bachelardiana, para que as

imagens se falem, nada melhor que dar voz aos “mestres da expressão”, daí a presença

de trechos de criadores vários, diletos, apaixonados da palavra: Borges, Rimbaud,

Conrad e alguns outros.

Em Cardozo, a rotina de enraizamento do sujeito, a “raiz firme das coisas”, do

desenrolar do universo que lhe é peculiar, é quebrada por um momento intervalar, pela

vacância funcional, em que o homem, jogado na soltura de si e do tempo-espaço, se

encontra à mercê do fortuito, da violência arrebatadora do mundo, que o convoca e

cheia de ímpetos pasma-o completamente, o faz querê-la profundamente, vivamente.

Engolido pela beleza pulsante da coisa que o circunda, o homem deixa-se levar, curva-

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se ao vigor do imponderável, do puro impacto, puro som, pura imagem. O mundo

convida-o muito, e ele anula uma cisão antes pensada e estabelecida ao se entregar,

devoto, ao paganismo do desmesurado, do furioso, que não permite neutralidades, e

assim espedaça o olhar complacente, exato e limpo sobre si e fratura distâncias que o

insulam da unidade fundamental.

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2.Bachelard e as noções de imagem e imaginação

Gaston Bachelard exaltou uma descontinuidade nas ciências, na filosofia e na

arte. No alvorecer do século XX, testemunhou a ruptura no domínio da física perpetrada

pela comunidade científica, a partir do estabelecimento da teoria da relatividade, do

florescimento da mecânica quântica e do surgimento da geometria não euclidiana.

Intenso partidário do diálogo interdisciplinar e opositor da supremacia de pontos

específicos do saber – no que grandemente se assemelha a Joaquim Cardozo –,

Bachelard é autor de vários ensaios em que apresenta trocas viáveis entre as

contribuições tornadas possíveis por uma ciência que refuta conceitos prévios e uma

filosofia mais generosa, acolhedora. Tal postura caracteriza-se como digna de nota

numa era em que ideias-base, tidas como infalíveis, caíam por terra, acarretando uma

aceitação de novas visões do homem e seu meio perante o mundo.

A produção bachelardiana desdobra-se em duas vertentes, muitas vezes vistas

como incompatíveis: a epistemologia e a estética (na terminologia do autor, uma

poética). Esses dois lados denotam uma aparente divisão entre faces diferentes, opostas,

ao se filiarem a momentos filosóficos separados: o Bachelard devotado à cogitação da

questão científica e o Bachelard do acordar poético; o filósofo da objetivação e o ser

devaneante; o racionalista estimulado pelo burburinho científico e o amante da literatura

que desenterra à exaustão as potências das imagens e da imaginação.

A imaginação – considerada em um primeiro momento como entrave à ciência,

porém essencial ao fazer literário – é o fator a partir do qual Bachelard engendra a

noção de que a razão vive sob tensão constante e de que o pensamento sempre se erige

numa dinâmica do contra. Esse movimento sustenta que o pensamento, ao nascer, situa-

se apesar de um conhecimento prévio.

O problema inicial de Bachelard em relação às imagens configura-se como uma

crítica a todo conhecimento que se pretenda científico e que se paute por certezas

primeiras, visando verdades definitivas – tais certezas representam estagnações de

conhecimento e hábitos intelectuais. O itinerário percorrido pelo filósofo, que parte da

interferência imagética nas construções científicas, mostra que a apreensão do impacto

da imagem não pertence à esfera racional. De acordo com a teoria do conhecimento

moderna e a psicologia do século XX, a imaginação reduzia-se a uma realidade

“inferior” no que concerne à percepção e à ideia, devendo, portanto, ser afastada das

construções racionais.

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Entretanto, ao longo da obra bachelardiana, a imaginação ganha uma nova

abordagem: a psicanálise dos elementos, que busca captar a dinâmica inerente à

imagem, por meio da qual Bachelard dará um salto – ainda comprometido com um certo

projeto de classificação dos diversos temperamentos poéticos e em débito com a

psicanálise. Na imagem é reconhecida uma fluidez e iniciam-se os esboços para uma

pesquisa voltada às imagens em si: nunca desconsiderando a literatura, a poesia,

Bachelard sublinha a necessidade de contemplá-las buscando captar os instantes

criadores – as imagens poéticas. E é isso que, de fato, vemos concretizar-se na fase de

sua obra intitulada fenomenologia da imaginação.

De modo geral, podemos afirmar que, na obra bachelardiana, as noções de

imagem e imaginação percorrem a seguinte trajetória: num primeiro momento, estas são

encaradas em relação a algumas noções centrais de sua epistemologia, instante base a

partir do qual a imagem será tratada pelo autor; depois, há uma mudança de postura

diante das imagens, quando Bachelard encontra-se marcado pela psicanálise como meio

de esclarecimento do processo imagético, formulando a noção de imaginação material e

dinâmica; e, finalmente, ocorre um certo distanciamento do método anterior e a

tentativa última de outorgar à imagem uma autonomia radical.

***

Considerada pela tradição racionalista como fonte de conhecimento falso, a

imaginação constitui um obstáculo na história e no desenvolvimento do conhecimento

científico, algo inconciliável com a conceituação; a imaginação é, aqui, perturbadora de

toda atitude que se pretenda verdadeira e correspondente ao real. A imaginação e a

problemática da imagem são temas clássicos na história da filosofia, de modo que

constituem tópicos importantes para a teoria do conhecimento e para a estética

filosófica. Ao ser encarada como entrave ao conhecimento científico, a imagem torna-se

objeto de um estudo que a considera uma realidade psicológica a ser ultrapassada pela

ciência e pela lógica. A imagem assim julgada insere-se numa abordagem clássica,

segundo a qual ela é produto da imaginação e subjetividade humanas – barreiras que

devem ser superadas pelo conhecimento objetivo.

Nesta fase, a imagem é tomada de acordo com paradigmas racionalistas

tradicionais. Sob este aspecto, ela é marcada pela contradição: diante da impossibilidade

de uma total conceituação da imagem – e de uma consequente compatibilização entre

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imagem e conceito –, há a constatação da resistência que ela oferece a qualquer

tentativa de objetivação. Tal resistência imagética denuncia o cunho fugidio – próprio

da imagem – que levaria a uma adesão primordial, num movimento de sedução que

macularia o lavor racional.

Aqui, Bachelard examina as ideias de que o conhecimento científico constitui-se

contra as adesões imediatas e que a imagem é nociva a toda postura que se pretenda

objetiva. Rebater uma conduta ingênua é, pois, algo imprescindível ao espírito

científico, que, ao se postar contra imagens habituais, busca evitar o simplismo de

atitudes absolutas, cerradas.

Ao ser percorrido o eixo de superação dessas imagens, chega-se à conclusão de

que o objeto é algo a ser conquistado – nunca algo previamente dado, estabelecido. O

objeto é a anti-inércia: um acontecimento que demanda fundas alterações. Esse

(des)montar vai contra qualquer estagnação, qualquer ilusão: só apreendemos a nitidez e

o sentido do objeto apagando-o – só nos assimilamos ao nos desconstruirmos. O sujeito,

como o objeto, mantém-se ativo. Logo, a constituição do objeto dá-se na troca com a

construção do sujeito: ao pensarmos um objeto aberto, plural, elaboramos um sujeito

plural, aberto: “O pensamento começa por um diálogo impreciso em que sujeito e

objeto se comunicam mal, porque ambos são diversidades desencontradas. É tão difícil

reconhecer-se como sujeito puro e distinto como isolar centros absolutos de objetivação.

Nada nos é plena e definitivamente dado, nem nós a nós mesmos” (BACHELARD

2012).

A novidade trazida por Bachelard é o deslocamento da psicanálise para a área da

epistemologia. A psicanálise do fogo desponta como o livro pioneiro em que o filósofo

cultivará a temática da imaginação – instante crucial para estudos ulteriores, devotados

ao esmiuçamento direto da imaginação em sua totalidade. A obra insere-se no projeto de

uma psicanálise do conhecimento, quando, partindo do instrumental oferecido pela

psicanálise, interpreta as imagens. A psicanálise do conhecimento não visa agir sobre

um sonho noturno, mas sobre um “sonho diurno”, em que o homem é ativo e projeta sua

vontade e forças. Tal sonhar é o devaneio, não totalmente submerso em nosso

inconsciente (conquanto lá tenha suas raízes), sendo fruto de uma zona intermediária. É

preciso frisar que Bachelard, em A psicanálise do fogo, ainda se aproxima das ideias

freudianas; mais tarde, porém, seu foco será mais voltado para a linha junguiana, ao

eleger temas como o arquétipo. O devaneio bachelardiano sobressai por sua atividade,

seu movimento:

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Em nossa opinião, esse devaneio é extremamente diferente do sonho pelo próprio fato

de se achar sempre mais ou menos centrado num objeto. O sonho avança linearmente,

esquecendo seu caminho à medida que avança. O devaneio opera como estrela. Retorna

a seu centro para emitir novos raios. E, precisamente, o devaneio diante do fogo, o doce

devaneio consciente de seu bem-estar, é o mais naturalmente centrado

(BACHELARD 2012).

Bachelard escolhe um elemento para ilustrar as teses acima apresentadas: o fogo,

portador de um princípio que, para muitos pensadores ao longo dos tempos, estaria em

todos os fenômenos. A “idolatria” ígnea, assim, teria sufocado o trabalho científico por

séculos a fio:

O que nos parece interessante é apenas constatar a secreta permanência dessa idolatria

[...] Na história, é esse documento permanente, vestígio de uma resistência à evolução

psicológica, que perseguimos: o homem velho na criança, a criança no homem velho, o

alquimista sob o engenheiro. Mas como, para nós, o passado é ignorância, como o

devaneio é impotência, eis nosso objetivo: curar o espírito de suas felicidades, arrancá-

lo do narcisismo que a evidência primeira proporciona, dar-lhe outras seguranças que

não a posse, outras forças de convicção que não o calor e o entusiasmo; em suma,

provas que não seriam em absoluto chamas! (BACHELARD 2012).

Ressalta Bachelard que “o fogo é, talvez, o fenômeno que mais preocupou os

químicos. Por muito tempo, acreditou-se que resolver o enigma do fogo era resolver o

enigma central do Universo” (BACHELARD 2012). Perpetuado nos corações e

intuições, o fogo não pôde encontrar sua ciência, permanecendo, por muito tempo, um

mistério: “serão precisos grandes esforços de objetividade para separar o calor das

substâncias em que ele se manifesta” (BACHELARD 2012). Esses esforços concernem

a um reconhecimento dos erros e a uma reviravolta psicológica que exclui verdades

consolidadas.

As imagens engendradas pela matéria, portanto, seriam ilusões: porém, neste

ponto Bachelard refere-se a um enfoque em que o espírito busca explicações

mecanicistas em vez do deslumbramento poético. Assim, o químico deve lutar contra o

alquimista, pois este buscaria – num processo como a destilação, por exemplo – adequar

a matéria a um ideal de purificação, em vez de simplesmente destilá-la: “[...] muitas

vezes a mentalidade alquímica foi dominada pela tarefa de abrir as substâncias. [...]

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Sempre se está em busca de uma chave para abrir as substâncias” (BACHELARD

2007). Numa fusão de aspectos materiais e cosmológicos, o fogo animou a passagem de

simples fenômenos para as mais complexas sondagens metafísicas.

Contudo, em sua tentativa de superar as imagens que travam o trabalho

científico, a razão não conhece – não imagina – a imagem em sua totalidade. Ao

intelectualizá-la, a razão pretende sufocá-la. De fato, acrescenta Bachelard: “A

imaginação continua a funcionar a despeito das objeções da experiência. É difícil a

pessoa libertar-se do maravilhoso quando já lhe entregou sua confiança”

(BACHELARD 2007).

***

Considerada como obstáculo para o conhecimento objetivo, a imaginação é

analisada em comparação com a percepção, a memória e o conceito, sendo vista como

algo impuro a ser superado em prol de um saber verdadeiro. A epistemologia

bachelardiana, que parte do erro, busca verdades não definitivas. A imagem revelou-se

um importante alicerce de sua epistemologia:

Imagens e símbolos são, para o Bachelard diurno desse momento, o que justamente

caracteriza um pensamento pré-científico. Só que ele reconhece também que as

metáforas são muito mais que supérflua e extrínseca vestimenta do pensamento que se

quereria rigoroso e límpido: na verdade, a encantação das metáforas atua na intimidade

mesma do pensamento, envolve e compromete a própria fonte racional (PESSANHA

1985).

A imagem descortina para o epistemólogo um novo horizonte, antes encoberto

pelo intelectualismo – o da imensidão poética, de criação de novas realidades

(“irrealidades” para a ciência):

As imagens que o cientista tem de afastar representam uma força permanente, senão

irresistível. Na medida em que Bachelard deve esclarecer, para as libertar, as

cosmologias aberrantes da pré-ciência, penetra no falacioso. Acontece, porém, que o

negativo e o nocivo no mundo do saber se tornam o positivo e o benéfico no irreal dos

sonhos (DAGOGNET 1980).

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A força bruta da imagem não pode ser apreendida por um viés intelectualista,

posto que é sempre a imagem que deforma o pensamento. O enfoque que a submete à

conceituação asfixia-a em termos poéticos: tentando sabotar a pujança da “irrealidade”

da imagem, perdemos, deste modo, sua real concretude. A partir daí há duas

possibilidades de compreensão do processo imagético: uma o desabona e o enxerga

como sombra de algo mais real, nos moldes racionalistas; e a outra o vê como passagem

para um mundo onírico fundador de uma nova realidade. Em A poética do devaneio,

livro em que a questão da imagem encontra-se mais amadurecida, diz Bachelard:

Sem a ajuda dos poetas, que poderia fazer um filósofo já entrado em anos, que se

obstina em falar da imaginação? Não tem ninguém para testar. Ele se perderia

imediatamente no labirinto dos testes e contratestes em que se debate o sujeito

examinado pelo psicólogo. Aliás, existirão mesmo, no arsenal do psicólogo, testes de

imaginação? Haverá psicólogos suficientemente exaltados para renovar

permanentemente os meios objetivos de um estudo da imaginação exaltada? Os poetas

sempre imaginarão mais rápido que aqueles que os observam imaginar

(BACHELARD 2006).

Nesse mundo que se desvela, o homem intui o próprio interior da matéria, o

coração das coisas:

[...] o poeta, depois o sonhador, por fim o leitor, todos os que imaginam, entregam-se a

uma física ingênua e reatualizam as esperanças alquímicas. Através das suas delicadas

manutenções, das suas pesagens e das suas transmutações, com efeito, o alquimista,

diante do seu forno e das suas terras, conhece o dinamismo das imagens, vive o drama

da matéria. Não há dúvida possível: já que a alquimia das metamorfoses não define a

origem da ciência (e até o impede), ela inaugura e assegura o reino do onirismo

(DAGOGNET 1980).

Para Bachelard, a imaginação deve ser diferenciada da percepção e da memória:

a imagem é o além da realidade. Opondo-se ao racionalismo, que qualifica a imaginação

como uma organização de dados percebidos, o filósofo afirma que este é o mero ato de

perceber – muito diferente de imaginar. Na mesma linha bachelardiana, a memória não

é sinônimo de imaginação. A imagem somente existe quando há criação. Imaginar é

uma atividade instauradora, que fornece uma nova realidade, um novo ser:

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A imaginação, não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da

realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a

realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. Um homem é um homem na

proporção em que é um super-homem. Deve-se definir um homem pelo conjunto de

tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição. [...] A imaginação inventa

mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm

novos tipos de visão (BACHELARD 2002).

Contra a noção adotada pela tradição racionalista segundo a qual a imaginação

era caracterizada por uma passividade, aqui ela é ato; não se deve, portanto, confundir

sonho noturno com devaneio. Neste, as forças agem sobre o real, criam uma nova

realidade. Imaginar é criar. Nesse sentido, a imaginação nunca padece, sofre; ela excede

a passividade, firma-se além.

Com um percurso iniciado em A psicanálise do fogo, Bachelard regressa ao

elemento em sua obra final – A chama de uma vela – e em seu volume póstumo,

Fragmentos de uma poética do fogo. Nestes livros, a atitude esboçada em A psicanálise

do fogo é agudizada. Somente o mergulho na imagem mesma, sem o ofuscamento

levantado pela busca de uma causalidade, pode outorgar seu ser total – efêmero e

impactante. Nessa abordagem, Bachelard mostrará que a imagem, fundadora, atua no

próprio domínio da linguagem – as imagens ramificam-se em palavras, clímax da

literatura. A criação aqui está no limiar da expressão:

[...] A renovação da fantasia recebe um sonhador na contemplação de uma chama

solitária. A chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores

operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o

que se percebe não é nada, comparado com o que se imagina. Ela traz consigo um valor

seu, de metáforas e imagens, nos domínios das mais diversas meditações. Tomem-na

como sujeito de um dos verbos que exprimem a vida e verão que ela dá a esses verbos

um complemento de animação (BACHELARD 1989).

Criadora, a imaginação caracteriza-se pela busca da diferença: as nuanças que

separam o imaginar do lembrar e do perceber robustecem a condição autônoma da

imagem – independente, ela goza de vida própria:

As imagens da linguagem inflamada inflamam o psiquismo, dão um tom de excitação

que a filosofia da poética necessita. As mais frias metáforas transformam-se realmente

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em imagens, através da chama, tomada como objeto da fantasia. Ainda que muitas

vezes as metáforas nada mais sejam do que transmutações do pensamento numa

vontade de dizer melhor, de dizer de maneira diferente, a imagem, a verdadeira imagem,

quando é vivida primeiro na imaginação, deixa o mundo real e passa para o mundo

imaginado, imaginário (BACHELARD 1989).

Em A água e os sonhos e O ar e os sonhos Bachelard formula questões que

tencionam criticar a atitude intelectualista frente à imaginação: na primeira obra, destaca

o caráter material da imaginação; na segunda, aborda a imaginação dinâmica. Destes

estudos irrompe a noção bachelardiana de imaginação material e dinâmica, que procura

rejeitar abordagens que deslocam o foco da imaginação para causas que a diminuem,

tratando-a apenas como produto tardio da percepção. Pelo viés de uma imaginação

material e dinâmica, tal conduta redundaria em um achatamento de perspectiva, ao

descartar a pluralidade de imagens embutidas no ato de imaginar.

O empreendimento de Bachelard tenta, sim, esquematizar as imagens para uma

vivência mais profunda e profícua, mas a meta dessa sistematização não é uma

generalização: a partir de uma densa e esmerada leitura, o filósofo procura experimentar

a imagem em sua materialidade, religando a forma – o imediatamente visível, a

superfície – à matéria, a seu núcleo dinâmico, fonte de possibilidades. A busca, aqui, é

pela vinculação da forma da imagem a sua carne essencial.

Na introdução a A água e os sonhos, Bachelard menciona “duas imaginações”: a

imaginação formal e a imaginação material:

[...] uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa

material [...]. Estes últimos conceitos, expressos de forma abreviada, parecem-nos

efetivamente indispensáveis a um estudo filosófico completo da criação poética [...].

Além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há

– conforme mostraremos – imagens da matéria, imagens diretas da matéria [...]. Sem

dúvida, há obras em que as duas forças imaginantes atuam juntas. É mesmo impossível

separá-las completamente (BACHELARD 2002).

Traçada essa consideração inicial acerca das imagens da matéria, indica-se a

impossibilidade de divisão entre matéria e forma, ambas constituintes da imagem: a

forma ligada à superfície; e a matéria vinculada à raiz do imaginar. A noção de

“imagem direta da matéria” demonstra um esforço bachelardiano contra a tendência que

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valoriza o aspecto formal da imagem em detrimento da dimensão material – o olho

aprecia primeiro o contorno e as linhas. Ao associar as imagens a um determinado

elemento, o filósofo não tenta tomá-las pela visão clássica de uma subjetividade afetada

por objetos externos, que, por conseguinte, elabora imagens com o concurso da

memória. Bachelard tenta, sim, expor que as imagens não se permitem reduzir a um

único princípio interpretativo e que “uma doutrina filosófica da imaginação deve antes

de tudo estudar as relações da causalidade material com a causalidade formal”

(BACHELARD 2002). Para isso, empenha-se em alcançar a materialidade das imagens,

que se mostra apenas no ato do imaginar.

O resgate da matéria proposto por Bachelard seria fundamental para a retomada

de uma imaginação aberta e autônoma em relação à percepção e à memória:

Meditada em sua perspectiva de profundidade, uma matéria é precisamente o princípio

que pode se desinteressar das formas. [...] Continua sendo ela mesma, a despeito de

qualquer deformação, de qualquer fragmentação. A matéria, aliás, se deixa valorizar em

dois sentidos: no sentido do aprofundamento e no sentido do impulso. No sentido do

aprofundamento, ela aparece como insondável, como um mistério. No sentido do

impulso, surge como uma força inexaurível, como um milagre. Em ambos os casos, a

meditação de uma matéria educa uma imaginação aberta (BACHELARD 2002).

Embora possa se alimentar de conteúdos percebidos e recordados, a imaginação

extrapola as fronteiras da metáfora, rumando para a “metáfora de metáfora”. As

imagens filiam-se não a uma “imaginação-percepção”, mas a uma imaginação associada

à realidade intensa e material das coisas: aquele que imagina é provocado pela matéria,

que o defronta com sua condição primária, inescapável. A resistência implica

materialidade, afinal, segundo Bachelard, toda matéria impõe uma resiliência.

Os quatro elementos sustentáculos da filosofia pré-socrática e da concepção

alquímica do mundo – que marcam os títulos dos volumes nos quais Bachelard

desenrola sua psicanálise das imagens – desdobram-se, não como conceitos, mas como

arquétipos originais, que assediam aquele que imagina.

A noção de imaginação material remete a uma tentativa de se captar o elemento

– a matéria – que direciona os devaneios; neste caso, a água. Água essencial, composta

por arraigada ambiguidade, imaginável apenas como motor para essa ambivalência, que

cinge as profundezas do ser imaginante. Assim, o elemento educa a imaginação: “É que

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às matérias originais em que se instrui a imaginação material ligam-se ambivalências

profundas e duradouras” (BACHELARD 2002).

Para o filósofo, quando uma expressão se revela como poética (criadora) ela

encontra-se em relação direta com a materialidade da língua: assim, ao meditar a

imagem de um rio, Bachelard afirma que “a liquidez é o próprio desejo da linguagem. A

linguagem quer fluir. Ela flui naturalmente” (BACHELARD 2002). É aí que Bachelard

trata da “imaginação pela palavra, a imaginação pelo falar, a imaginação que desfruta

muscularmente do falar, que fala com volubilidade e que aumenta o volume psíquico do

ser” (BACHELARD 2002), e finaliza: “essa imaginação sabe que o rio é uma palavra

sem pontuação” (BACHELARD 2002).

A tentativa bachelardiana de interpretar as imagens a partir de sua materialidade

busca restituir o caráter radical da imaginação material face ao primado da forma, da

psicanálise clássica – visto que esta se apodera das imagens como sintomas. As imagens

literárias são marcadas por uma materialidade irredutível, que vivem a própria vontade

da expressão.

Em O ar e os sonhos, Bachelard complementa a noção prévia de imaginação

material sublinhando o fator dinâmico em suas análises sobre a imaginação, elaborando

a noção de imaginação material e dinâmica. O ar e os sonhos serve de veículo às

imagens que aludem instantaneamente ao movimento da matéria: há, aqui, a fugacidade

das imagens da verticalidade. Reforça-se, logo, o caráter ativo e plástico da imaginação:

Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é

antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a

faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há

mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação

imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma

imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma

explosão de imagens, não há imaginação (BACHELARD 2001).

Nesse ponto, é significativo que Bachelard se apodere de um poeta, William

Blake, ao citar: “A imaginação não é um estado: é a própria existência humana”

(BLAKE apud BACHELARD 2001). Se a existência humana fundamenta-se na

imaginação e sua pujança criadora, essa existência não é fixa, estável. Assim, mostra-se

ao homem uma nova possibilidade segundo a qual a novidade da imaginação é “a

própria experiência da abertura” (BACHELARD 2001).

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Ao enxergar a imaginação como uma espécie de mobilidade, Bachelard crê ser

possível restituir as imagens a seus movimentos próprios com base em uma psicologia

da imaginação do movimento, um método que se corrige e alimenta ao acompanhá-las.

Tal empresa é factível se a contemplarmos como uma viagem imaginária, guiada pelos

devaneios do poeta e do ledor – termo utilizado pelo filósofo para salientar a diferença

entre um mero leitor e aquele que participa ativamente das imagens do poeta, tornando-

se um prolongador de seus devaneios. O poeta é compreendido como aquele que lança

novas luzes sobre as coisas, desvelando novas tonalidades, colorações efêmeras que se

descobrem nas inversões imagéticas, quando o homem é alçado a uma imaginação pura

– estado possível de ser atingido somente ao se vivenciar a novidade da imagem:

No reino do imaginário, o infinito é a região em que a imaginação se afirma como

imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa, orgulhosa e trêmula.

Então as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se em sua própria

altura. [...] A palavra é uma profecia. (BACHELARD 2001).

Bachelard frisa o cunho fundador da imaginação ao sustentar que à imagem e à

imaginação cabe a extrapolação da obviedade do universo da percepção e da memória.

Para chegar a essa ultrapassagem, a realidade corriqueira das imagens puídas – das

metáforas – deve ser descartada, restituindo ao mundo sua marca de assombro –

impacto dizível (cantável) pela poesia.

Em O ar e os sonhos, estamos novamente diante do elogio à imagem: a exemplo

de A água e os sonhos, em que as imagens materiais – da água – conduziram o debate,

mais amplamente, sobre a imagem literária, aqui Bachelard seguirá a mesma trilha, em

meio à busca de apreensão dos instantes fugidios e dinâmicos típicos das imagens do ar:

Para merecer o título de uma imagem literária, é necessário um mérito de originalidade.

Uma imagem literária é um sentido em estado nascente; a palavra – a velha palavra –

recebe aqui um novo significado. Mas isso ainda não basta: a imagem literária deve se

enriquecer de um onirismo novo. Significar outra coisa e fazer sonhar diferentemente,

tal é a dupla função da imagem literária. [...] Não existe poesia anterior ao ato do verbo

poético. Não existe realidade anterior à imagem literária. [...] A literatura não é, pois, o

sucedâneo de nenhuma outra atividade [...] Para quem conhece o devaneio escrito, para

quem sabe viver, plenamente viver, ao correr da pena, o real está tão longe!

(BACHELARD 2001).

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Além disso, Bachelard procura enfatizar o caráter cósmico da literatura, a

pressão que a imagem faz sobre o psiquismo humano, uma inclinação vertical,

ascensional. A imagem nunca é neutra: instauradora, material e dinâmica, indica uma

profundidade ou uma altura, não uma horizontalidade.

***

A poética do espaço insere-se na etapa da produção bachelardiana denominada

fenomenologia da imaginação, fase que intenta enxergar a imagem como fenômeno

autônomo. Aqui, busca-se a elucidação da virtude poética própria à imagem, ou seja,

seguir os espaços e memórias abertos por ela. Portanto, A poética do espaço situa-se

como obra fundamental no pensamento bachelardiano ao trazer a descoberta da

fenomenologia como campo de apreensão do processo imagético visto como

acontecimento da liberdade da palavra. Vasculhar o caráter fenomenológico das

imagens opõe-se à postura teórica e intelectualista diante da imagem.

Ao se eleger a fenomenologia como vereda de aclaração de uma poética, deve-se

ter em mente que a imagem a ser captada não é preparada pelo passado, mas uma

imagem efêmera. Sabedor da carga que o nome “fenomenologia” poderia pressupor,

Bachelard elabora sua “fenomenologia poética”, cujo objeto são as imagens implicadas

na imaginação como ato – como ato de imaginar. A partir do descobrimento e escolha

da fenomenologia, Bachelard parece sugerir que esta é a melhor alternativa para se

alcançar a imagem poética, dada a possibilidade que o pensar fenomenológico fornece à

imagem, entendendo-a do modo mais livre (desamarrada de severas determinações

subjetivas, ao exibir a debilidade da categoria de sujeito), concedendo à imagem um

caráter universal – apesar de ela se oferecer a um imaginante específico, ela o faz como

adesão absoluta, instantânea.

Para Bachelard, urge “estar presente à imagem no minuto da imagem”

(BACHELARD 2012), num movimento que procura apreender a imagem poética em

sua dinâmica. Para isso, é imprescindível olvidar o passado cultural – a fim de se evitar

uma imposição à imagem de determinações teóricas –, conduta necessária para que a

imagem surja como criação, com as estruturas de sujeito e objeto vistas como instáveis

e intercambiáveis. Nessa linha, o empreendimento de uma fenomenologia da

imaginação poética tenta mostrar possibilidades para o entendimento dos paradoxos

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encontrados: “Como uma imagem por vezes muito singular pode revelar-se como uma

concentração de todo o psiquismo? Como esse acontecimento singular e efêmero que é

o aparecimento de uma imagem poética singular pode reagir – sem nenhuma preparação

– em outras almas, em outros corações, apesar de todas as barreiras do senso comum

[...]?” (BACHELARD 2012). Tais paradoxos exibem inversões da compreensão

habitual das noções de imagem e imaginação.

Também as cisões que entregam a imagem a um campo simplesmente

reprodutor bloqueiam a aproximação devastadora e direta desse evento fugaz. Bachelard

finaliza: “Só a fenomenologia – isto é, a consideração do início da imagem numa

consciência individual – pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a

medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem” (BACHELARD

2012). Deste modo, recompor a “subjetividade das imagens” não significa buscar

encarar a imagem como produto da subjetividade, mas dimensionar a força que a

imagem exerce sobre ela. Significa igualmente tentar compreender como, embora seja

originária de uma consciência individual, ela é elemento de adesão de outras

consciências imaginantes.

Para Bachelard, o estar presente à imagem – considerada “um súbito realce do

psiquismo” (BACHELARD 2012), novidade máxima – reinaugura o sujeito imaginante.

A imagem, aqui, é instauradora: a fonte mesma do psiquismo, na qual a expressão cria o

ser. A fenomenologia da imaginação proposta por Bachelard busca captar a imagem em

seu próprio instante, além das causalidades psicológicas que a tornam tributária da

percepção e da memória:

[...] a imagem poética é um súbito realce do psiquismo, realce mal estudado em

causalidades psicológicas subalternas. Além disso, nada há de geral e de coordenado

que possa servir de base para uma filosofia da poesia. A noção de princípio, a noção de

“base” seria desastrosa neste caso. Bloquearia a atualidade essencial, a essencial

novidade psíquica do poema. [...] A filosofia da poesia, ao contrário, deve reconhecer

que o ato poético não tem passado, pelo menos um passado próximo ao longo do qual

pudéssemos acompanhar sua preparação e advento (BACHELARD 2012).

É preciso salientar, entretanto, que se trata de uma fenomenologia da imaginação

poética para a qual a leitura cuidadosa de documentos da consciência sonhadora –

poesia, literatura – é fundamental. Neste sentido, Bachelard define a sua fenomenologia

da imaginação nos termos “de um estudo do fenômeno da imagem poética no momento

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em que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser

do homem apreendido em sua atualidade” (BACHELARD 2012): esse homem é aquele

pelo qual a imagem se imaginou. A tentativa agora é pensar a imagem poética como

autônoma em relação à consciência particular (ao poeta, por exemplo) – pois a

consciência é apenas um momento no qual a imagem imagina-se a si própria. A

imagem poética, como fenômeno autônomo, não pode ser submetida a nenhuma

determinação causal: o biografismo, portanto, é insuficiente, uma vez que a imagem

ultrapassa a vida de quem a imaginou.

A inversão que aqui se tenta vislumbrar poderia ser expressa na seguinte

questão: “como uma imagem que surge para a consciência não é, por sua vez, produzida

e determinada por ela?” Este estranho estatuto da imagem, porém, é o motor das

investigações bachelardianas, pois o filósofo pretende escapar de um subjetivismo e

objetivismo extremados. As imagens do espaço – espaços adorados, invertidos, as

miniaturas e as imensidões – são os guias por meio dos quais Bachelard defende suas

formulações, descrevendo os espaços abertos – em imagens – pelo devaneio e pela

meditação delicada de excertos literários e poéticos. Em seu estágio culminante, o apelo

bachelardiano é no sentido de prestar a máxima atenção à imagem poética quando ela

acontece. Ela é um evento que alimenta a imaginação.

Para a fenomenologia da imaginação, continuar adotando os preceitos da

psicanálise dos elementos é ainda uma postura demasiado objetiva face às imagens, pois

esta busca acondicionar o processo imagético a quatro princípios interpretativos: quatro

temperamentos poéticos, calcados na cosmogonia dos quatro elementos, que cedem

instrumentos para a constituição de diagramas poéticos a partir dos quais é possível

analisar a dinâmica das imagens de um poeta. Tal empresa não exclui um minucioso

acompanhamento das imagens e sua apreensão a partir das imagens mesmas. Todavia,

frente à perspectiva de uma fenomenologia, a psicanálise não logra abarcar o cunho

fundador próprio da imagem: agora – de modo mais robusto –, as imagens não se

deixam analisar, somente devanear. A fim de se estabelecer uma filosofia da poesia, a

imagem poética deve ser aplaudida como criação total, fonte do imprevisto. E este é o

alvo de A poética do espaço: rever tudo pelo calor da imaginação.

Em obras ulteriores, como Fragmentos de uma poética do fogo – livro póstumo

em que Bachelard aspirava a voltar ao elemento ígneo por um novo viés –, podemos ler

vários trechos críticos à postura da psicanálise da obra de arte, mais detidamente à

psicanálise dos elementos. Na citação abaixo, Bachelard resume – sarcasticamente – a

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atitude do psicanalista diante da imagem poética e sua incapacidade de assimilá-la em

sua totalidade, olvidando, desse modo, seu tom ascensional:

Há imagens absolutas, isto é, imagens aliviadas de suas sobrecargas passionais. Elas não

sublimam nada. A destilação poética está terminada; a pureza poética foi atingida. A

quintessência poética foi desembaraçada de todos os resíduos sensíveis. É esse

estabelecimento da linguagem nas alturas, na sua própria altura, que o psicanalista nem

pensa em considerar. Para ele, todas as imagens permanecem impregnadas de matérias

psíquicas mal elaboradas, na verdade de materiais que recusam elaboração.

Para o psicanalista há sempre uma resistência a um movimento, uma profundidade sob

uma superfície. O psicanalista olha em profundidade e olha bem. Ele enxerga

claramente no subsolo do ser. Mas arrisca-se a perder o sentido da altura, a

sensibilidade aos impulsos de uma verticalidade psíquica. Para o psicanalista, profundo

é o estável, o sólido, o permanente. Para o psicanalista, nada de vestimentas enfeitadas

sem um grosso forro (BACHELARD 1990).

Tal postura põe a expressão poética sobre um pensamento, encobrindo uma

profundidade, emprestando à imagem uma tonalidade de substituição. Contemplando as

profundezas do ser talvez se esqueça o sentido da altura. Neste caso, a dificuldade

central está em cogitar a possibilidade de uma sublimação absoluta, que fuja aos

ditames da sublimação de uma psicanálise que não vê no fenômeno da imagem poética

uma sublimação específica – uma sublimação que nada sublima, posto que liberta de

todas as causas que a precedem. Em busca de causalidades mais profundas, psicólogos e

psicanalistas perdem a amplitude dos benefícios que um psiquismo recebe quando está

aberto para o espanto essencial da imagem poética.

Voltando à Poética do espaço, Bachelard sustenta que a imagem não tem causa.

Se ela é novidade e só acontece no ato de imaginar, logo, não é explicável por

comportamentos diferentes daquele imaginativo. Isso é de grande importância quando,

de maneira mais ampla, pensamos o todo de sua obra e o binômio ciência/poesia que de

imediato atingimos a partir de seus escritos: o ato científico não logra abarcar a imagem

poética e o ato poético não pretende explicar o objeto da ciência. Bachelard, no entanto,

de certo modo estabelece uma primazia ao afirmar que, para o homem, o primeiro

contato com o mundo é poético, num ato que dispõe as coisas que o saber científico

depois irá recortar. Com base nessa posição de Bachelard, corre-se o risco de se encarar

o ato poético como algo semelhante a uma sensação, mas aqui o que se sublinha é a

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abertura fundamental para o espanto inerente à poesia: o maravilhamento perante o

mundo é o primeiro contato com as coisas. O resgate da dimensão criadora da imagem é

a recuperação do que já nos moveu e ainda move, mas que se encontra asfixiado por um

arremedo de “imaginação”, origem de imagens rotas:

Nada prepara uma imagem poética: nem a cultura, no modo literário, nem a percepção,

no modo psicológico. [...] A novidade essencial da imagem poética coloca o problema

da criatividade do ser falante. Por essa criatividade, a consciência imaginante se revela,

muito simplesmente, mas muito puramente, como uma origem. Isolar esse valor de

origem de diversas imagens poéticas deve ser o objetivo, num estudo da imaginação, de

uma fenomenologia da imaginação poética (BACHELARD 2012).

Assim, a chave para se compreender a imagem está na meditação dos eventos

nos quais todas as inversões são possíveis e floresce o imponderável – o que nenhum

pensamento causal poderia supor. Aí reside, por sua vez, uma grande dificuldade, visto

que, nesse contexto, as imagens escasseiam; com Bachelard, estar presente à imagem é

raro. Captar esse breve instante e articulá-lo numa composição organizada são tarefas

destinadas aos “mestres da expressão” – sobretudo poetas.

Para tanto, Bachelard traz à tona o par ressonância-repercussão, noções que

buscam dar conta de uma imagem não devedora de causalidades. Vale, logo, esclarecer

o tom que a imagem adquire ao ser compreendida por meio desta dupla.

Em A poética do espaço, direcionam-se certas críticas à psicologia e à

psicanálise da obra de arte, pois estas contribuiriam para certo obscurecimento da

primazia da imagem sobre a percepção e a memória. Acompanhando a mobilidade

inerente à imagem, os espaços descritos nesta obra comportam inversões constantes,

que ressaltam o caráter ambivalente e instituidor das imagens poéticas. São as imagens

que comandam a imaginação, e não o contrário: a imaginação, apresentando-se como

potência criadora, apenas acompanha esse movimento, que pertence não àquele que

imagina, mas às próprias imagens imaginantes. Para a consolidação da imaginação

como um domínio autônomo torna-se necessário reavaliar a função que o sujeito

desempenha nesse evento fugaz: as noções de ressonância e repercussão (sobretudo a

repercussão) não apartam a imagem daquele ao qual a imagem se apresenta no ato de

imaginar. Pelo contrário, o ser da imagem e o do sujeito imaginante confundem-se num

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acontecimento que – a partir de uma imagem – tem como desdobramento imediato a

proliferação incessante de lembranças.

Ao enfocar o par ressonância-repercussão no seio do debate a respeito das

questões da imagem poética, Bachelard inspira-se no fenomenólogo e psiquiatra Eugène

Minkowski, para o qual o retentissement, relacionado ao eco, seria um fenômeno

essencial da vida. Assim, ao pensar o som, o ressoar e o eco, Minkowski nota que

somos envolvidos por estes fenômenos, que nos situam mais primitivamente e aquém da

divisão psicológica entre o eu e o mundo: o som se propaga de um centro para múltiplos

cantos do espaço, rebate, ressoa, atravessa-se, e nós somos envolvidos de tal modo que

também ressoamos, vamos de nosso centro à superfície e da superfície a nosso centro.

As metáforas do som apenas ilustram a repercussão, pois a sonoridade seria apenas um

sinal secundário, uma forma particular deste impacto que é a repercussão – o

retentissement, sincronia com a atmosfera envolvente.

Para Bachelard, a imagem poética possui relação direta com o que exposto aqui

como repercussão:

É quase sempre no inverso da causalidade, na repercussão, tão agudamente estudada

por Minkowski, que acreditamos encontrar as verdadeiras medidas do ser de uma

imagem poética. Nessa repercussão, a imagem poética terá uma sonoridade de ser. O

poeta fala no limiar do ser. Assim sendo, para determinarmos o ser de uma imagem

teremos de sentir sua repercussão, no estilo da fenomenologia de Minkowski

(BACHELARD 2012).

Entretanto, a imagem sempre aparece no par ressonância-repercussão, pelo fato

de ela ser este impacto, que ressoa quase de imediato em lembranças. Ultrapassar as

ressonâncias sentimentais captando a imagem em seu impacto direto, assimilando que a

alegria da poesia é de outra ordem que não a ordinária, sendo um modo de compreender

o acontecimento imagético que busca fugir de uma determinação: eis a tarefa primordial

de uma fenomenologia da imaginação poética que busca manter a abertura que

possibilita a “invasão do ser pela poesia”:

Já que pretende ir tão longe, descer tão fundo, uma pesquisa fenomenológica sobre a

poesia deve ultrapassar, por imposição de métodos, as ressonâncias sentimentais com

que, menos ou mais ricamente – quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema –,

recebemos a obra de arte. [...] As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos de

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nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria

existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A

repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser. A

multiplicidade das ressonâncias sai então da unidade de ser da repercussão. Dito de

maneira mais simples, trata-se aqui de uma impressão bastante conhecida de todo leitor

apaixonado por poemas: o poema nos toma por inteiro. Essa invasão do ser pela poesia

tem uma marca fenomenológica que não engana. A exuberância e a profundidade de um

poema são sempre fenômenos do par ressonância-repercussão. É como se, com sua

exuberância, o poema reanimasse profundezas em nosso ser. (BACHELARD

2012).

O caráter inaugural de A poética do espaço é inegável: partindo da imagem

poética, Bachelard pontua uma série de questões concernentes à linguagem poética e à

linguagem sob um aspecto geral – de maneira dispersa, porém lúcida, e em meio a

descrições imagéticas, oscilando entre as lembranças e o devaneio criador. Para isso,

explora e sonha as imagens da literatura e da poesia, seguindo os espaços que elas

abrem ao ledor – deixando, por fim, que elas se imaginem, livres de determinações

teóricas, porque na verdade são elas que arrastam a imaginação: deixar-se levar pela

imagem poética significa, também, deixar-se levar pela imprevisibilidade da palavra,

pois, citando Jan Hendrik van den Berg, “as coisas nos falam” (BERG apud

BACHELARD 2012). Não é o sujeito que proclama a palavra poética, mas estas falam

por meio daquele que se dispõe a imaginar.

Um dos aspectos mais realçados na fenomenologia da imaginação é a dualidade,

suscetível de constantes trocas: em termos mais específicos, as inversões entre sujeito e

objeto são ativas – o que significa que ambos os polos não podem ser dados de antemão

quando se pretende acompanhar o devaneio poético. É aqui, ademais, que se reforça o

caráter ambivalente da imagem. É essencial que se resgate uma “ingenuidade” de

consciência que deixe a imagem falar por si só, constituindo o ponto de partida de

qualquer discurso a seu respeito – a imagem, assim, mostra-se como evento de

linguagem. A abordagem fenomenológica almeja alcançar a imagem por meio de

descrições imagéticas, e não por um arcabouço conceitual, embora certas noções guiem

a análise. O esforço aqui, porém, direciona-se rumo a uma tentativa de “instalar a

imaginação criadora nos seus próprios domínios” (BACHELARD 2012). Trata-se,

como ressalta o filósofo, de viver o não vivido e de expor-se a uma abertura de

linguagem.

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Ser guiado pelas imagens significa seguir seu eixo de orientação. Para isso, é

indispensável aproximar-se da consciência sonhadora, em que a poesia é tida como

fenomenologia da alma, não como fenomenologia do espírito – distinção esta delineada

na obra A poética do devaneio, na qual se delega ao espírito o esforço construtivo e

reflexivo, característico do pensamento científico, em contraposição à alma, adesão

imediata às coisas. A ressonância da palavra alma não remete, contudo, a um

sentimentalismo que sufoque a imagem, pois a repercussão resguarda a unidade entre

imagem e consciência imaginante na tentativa de captar sua realidade específica. A

alma é a própria imagem poética, posto que habita essa imagem instauradora que

ultrapassa ressonâncias sentimentais. Estas se dispersam nos planos da vida, ao passo

que a repercussão é um aprofundamento existencial, uma inversão de ser: na

repercussão, “dizemos” a imagem porque ela é nossa. Entramos numa imagem que nada

sublima: “Sem a região da sublimação absoluta, por mais restrita e elevada que seja,

ainda que pareça fora do alcance dos psicólogos ou dos psicanalistas – que não têm, em

definitivo, a obrigação de analisar a poesia pura –, não se pode revelar a polaridade

exata da poesia” (BACHELARD 2012).

A noção de sublimação absoluta é estabelecida em tom de crítica a posturas

psicanalisantes, uma vez que traz consigo a própria origem do ser falante. A imagem

não é um acontecimento tributário de ressonâncias sentimentais – ela não é a

sublimação de um desejo irrealizável. A imagem é criação: a novidade da imagem, que

se põe como uma ruptura com a linguagem e sentido comuns, traz o inesperado,

abruptamente, para o campo da linguagem. Muito da liberdade da linguagem nutre-se

dessa fonte dinâmica e fundadora que é a imagem.

O imaginar, portanto, é um acontecimento estranho: envolve rupturas, descerra

uma nova vida – uma vida não escape –, faz emergir a alegria da palavra, descola-nos

do passado, da realidade. Pelo imaginar, Bachelard estimula-nos a habitar a palavra e a

recuperar nossos impactos primordiais.

***

Bachelard transitou por campos do saber que tendem a se excluir, num tortuoso

e arrojado percurso, que, entretanto, fornece a possibilidade de uma abordagem

multifacetada da imaginação, das imagens e do imaginar. Contemplar as imagens com

as ferramentas da psicanálise e da fenomenologia – com as sutilezas inerentes ao estilo

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do autor – descobriu uma rica variedade de trilhas possíveis, sem eleger respostas

definitivas.

Urge acentuar, na obra bachelardiana, que a questão da imaginação não se insere

em uma trajetória linear. Apenas tentamos aqui trazer à tona alguns poucos pontos

centrais, buscando partir de um momento em que a imaginação se vê à margem para

prosseguir rumo a outro instante, consagrador de uma imaginação independente. Nesta

simples explanação desenrolamos, ainda que com idas e vindas, reiterações, as posições

assumidas por Bachelard em sua obra diante dos problemas da imaginação e das

imagens.

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3.Voltando de Marcação

Assim como os posteriores “Tramataia” e “Perdidos nos tabuleiros” (estudados a

seguir), “Voltando de Marcação” mais se aproxima de um relato de acontecimentos

sucedidos ao próprio Cardozo, sugestão algo reforçada pela abordagem do tema eleita

pelo autor, que privilegia o tratamento narrativo, esmerando-se em passagens descritivas

pormenorizadas e muito bem-acabadas. Portanto, como nos dois supracitados contos,

“Voltando de Marcação” estabelece uma similitude com o aspecto de crônica, isto é, um

contar a respeito de eventos e costumes das gentes do lugar, remota região que Cardozo

busca fixar e resguardar do olvido ao escolhê-la como personagem última do conto.

Trata-se de uma narrativa que retoma a geografia e histórias locais, erigindo-se na

primeira pessoa, sem recorrer a toques estilísticos virtuosísticos. A grande eloquência,

aqui, passa ao largo.

É interessante ressaltar em “Voltando de Marcação”, à semelhança do ocorrido

em “Tramataia” e “Perdidos nos tabuleiros”, a forma como Cardozo recupera eventos

acontecidos na década de 1920, mais especificamente ao longo de quatro meses do ano

de 1922, época em que atuava como topógrafo e engenheiro demarcador de terras e

sítios distantes dos rincões pernambucanos e mesmo os agrestes da Paraíba. Perfazendo

tal trabalho na Baía da Traição, Cardozo amealha elementos locais a partir do contato

com os habitantes e as regiões mais pobres desses estados, e assim adquire experiências

únicas, que serão desenvolvidas em seus contos e demais relatos, bem como em

poemas.

Como salientado anteriormente, em terras paraibanas Joaquim Cardozo

conheceu de perto expressões genuínas e ainda vivamente presentes do folclore

nordestino, como os festejos do mês de junho. Fortemente marcado pelo vigor de tais

manifestações populares, Cardozo transferiu a sua literatura – e, neste caso, a seus

contos – a impressão nele deixada por esses eventos. A estada na Baía da Traição,

apesar de breve, é o ponto de partida para sua imaginação inflamar-se; daí vêm

“Voltando de Marcação”, “Perdidos nos tabuleiros”, “Tramataia”, “O rugido”, “De

novo em Cabedelo” e “Em busca do Marco das Balanças”. A Baía surge nos contos de

Cardozo como imagem por excelência da aventura humana, desdobrada em pensar e

criar, ir, permanecer, morrer, (re)viver. São micro-histórias, com microacontecimentos,

que, contudo, reverberam a angústia sempiterna do homem em descompasso consigo e

com o que o rodeia.

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Essa parecença de condição também pode esclarecer algumas marcadas

aproximações de tema e estilo entre “Tramataia”, “Perdidos nos tabuleiros” e “Voltando

de Marcação”. Neste conto, como em “Tramataia” e “Perdidos nos tabuleiros”, apesar

da aparente simplicidade do enredo e da singeleza desfiada na construção do estilo, o

elemento insólito, imponderável, misterioso e algo fantasmagórico (quase sobrenatural)

volta a irromper na narrativa, por meio da insinuação de climas lúgubres, fechados,

enigmáticos e um tanto perturbadores. Aqui, como aliás em boa parte dos contos de

Cardozo, o homem cardoziano (como o leitor) encontra-se na encruzilhada razão-

devaneio, ciência-poesia. Alerta-nos Bachelard: “Os eixos da poesia e da ciência são a

princípio inversos” (BACHELARD 2012).

Vejamos como se dá a criação de tais climas sombrios. No início do relato, logo

no primeiro parágrafo, o narrador menciona que “a manhã daquele dia nasceu como as

dos outros dias: um vento sulão soprando sobre os coqueiros da Baía”. Em seguida,

comenta que partira para a vila de Marcação, contrariando o hábito adquirido de sair

extremamente cedo para o local de trabalho, onde desempenharia as tarefas do dia.

Frequentemente, antes mesmo do alvorecer o narrador parte, mas naquela manhã, no

entanto, como um prenúncio dos eventos fantásticos e incomuns que iriam se

desenrolar, o narrador põe-se a caminho apenas com o sol já a pino. A vila de Marcação

seria seu destino, perto de Mamanguape, e, para alcançar o local, montaria um velho e

magro cavalo, que só possuía as “‘pistas naturais’, isto é, passo, trote e galope”. A

imagem do cavalo, normalmente associada a um quê de força, aqui se mostra pelo

avesso: incapaz de superar os obstáculos naturais de um caminho acidentado, o animal é

débil, e provoca no leitor a sensação de que o narrador não está bem servido e protegido

para enfrentar o percurso adiante. Num movimento de extrapolação, a imagem evoca o

homem só e vulnerável aos perigos em sua trajetória. Não à toa, Jung lembra-nos que:

“[...] as crianças de toda a a Grã-Bretanha (e também de outros lugares) acreditam que

dá sorte encontrar um cavalo branco, um notório símbolo de vida” (JUNG 2008).

Seguindo a vereda junguiana, por oposição, um cavalo magro e velho, e não um

fulgurante aninal branco, vigoroso, assinala um tangível perigo de morte.

Um cavalo confiável, musculoso e célere, pode ser a diferença entre vida e

morte, triunfo e debacle. O audaz delfim da França, em Henrique V, assim proclama sua

fé em seu companheiro, para ele sinônimo de louros, de energia vital:

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Que noite longa é esta! Não troco o meu corcel por qualquer outra coisa de quatro patas.

Ça, ha! Ele salta do solo como se suas entranhas fossem cabelos: le cheval volant, o

Pégaso, qui a les narines de feu! Quando o cavalgo eu pairo, eu sou um falcão; ele trota

no ar; a terra canta quando ele a toca; o mais rude tropel de suas patas é mais musical do

que a flauta de Hermes (SHAKESPEARE 2006).

No terceiro parágrafo, o narrador descreve as condições e características de cada

uma das pistas, “maneiras de andar de um cavalo que não fora forçado a aprender

marchas menos ásperas”. Logo, a partir desse ponto começa a se desenvolver um clima

de desconforto, mal-estar e profunda aflição para o narrador, que será agudizada no

decorrer da narrativa.

Nos parágrafos a seguir, o narrador esmiuça a forma de chegar à vila de

Marcação, abordando a técnica encontrada para viajar no velho alazão sem se

“molestar”. Cavalgando dessa forma, chega no mesmo dia ao povoado em que iria

realizar o trabalho de demarcação de sítios. Já não era cedo, aproximadamente dez horas

da manhã, horário pouco comum, visto que muitas vezes, conforme mencionado, o

narrador chegava pelo início da manhã para poder retornar antes do cair da noite.

Apeando-se à porta da venda, “a principal casa de negócio da povoação, e, ao

mesmo tempo, hospedaria de forasteiros que por lá transitavam”, o narrador logo busca

falar com o dono da venda para que este possa lhe dar o contato do proprietário do sítio

que devia demarcar e estudar.

Traz o narrador um ajudante “para transportar o instrumento com que iria

cumprir a empreitada” e, além disso, lembra-se de que talvez precise de mais alguns

operários locais para efetuar a demarcação do sítio. Logo, faz uma primeira análise

visual das terras para cujo levantamento topográfico fora contratado; percebe que deve

começar imediatamente o trabalho, com apenas dois assistentes e o trabalhador que

levara para fazer as medições. Naquele mesmo dia seria iniciada a tarefa, com o auxílio

do proprietário, que poderia fornecer-lhe dois operários. No entanto, um acontecimento

algo inesperado faz com que o narrador mude rapidamente de planos, pois ao ouvir,

com surpresa, que o proprietário não tinha condições financeiras de arcar com os custos

da demarcação topográfica, resolve, logo em seguida, retirar-se da vila de Marcação.

Apesar do projeto anterior de permanecer no vilarejo durante duas noites para

poder realizar o trabalho, acaba declinando de tais planos e decide, rapidamente,

retornar à Baía da Traição ainda naquela noite. Tenta, pois, “obter transporte para a

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viagem de volta” o mais urgentemente possível, para evitar a noite escura no caminho.

A noite é a imagem primária aqui. Ela é o medo, o desconhecido. A escuridão e as

sombras trazidas pela noite são território do quase invisível, do mais profundo. No

folclore e nas histórias de terror, a noite é associada ao perigo, à morte. Vampiros só

despertam à noite, homens transformam-se em lobisomens, espíritos caminham a esmo;

na cultura popular brasileira, a noite é domínio de personagens como a mula sem

cabeça, mulher amaldiçoada em vida por suas relações licenciosas com padres, homens

interditos.

Para evitar o mal, é imprescindível fugir do período noturno, de uma noite

original: “Não tínhamos como compreender porque havíamos ido longe demais, e não

havíamos como recordar porque atravessamos a noite das primeiras eras, as eras que

não nos deixaram sinal algum – e nenhuma memória” (CONRAD 2008). Numa época

em que o indeterminado e o mistério tornam-se importantes mesmo para a ciência, o

obscuro é a fronteira fascinante. Não basta apenas resvalar na superfície das coisas; urge

mergulhar fundo, inexoravelmente, na matéria, em seus segredos. O homem quer

experimentar o fundamento da matéria, e nisso vai se deparar com muitos fantasmas:

“No fundo da matéria cresce uma vegetação obscura; na noite da matéria florescem

flores negras. Elas já têm seu veludo e a fórmula de seu perfume” (BACHELARD

2002). Ao abandonar a solaridade e fazer seu narrador encarar a noite mais pesada,

Cardozo elege um mergulho no coração das trevas, uma aproximação quase medieval –

angustiada, crítica e efusiva – da matéria – ou antimatéria, pois a noite aqui é inverso,

limite além do limite. É na loucura de uma criatividade plena que os sentidos se

libertam e se inclinam para o além do estabelecido. Nesse momento, ao refugar o

previamente dado, o narrador aventura-se pelo terreno do obscuro – ou do maravilhoso,

fantástico.

Exalta-se a própria negatividade, o próprio nada reconstitutivo da realidade

humana. O medo do erro, o medo do negativo, do obscuro, tudo é retomado, buscado. A

partir da negatividade das trevas – vista em um primeiro momento em tom pejorativo –,

a imagem finda por resgatar sua essencialidade: não é boa, não é ruim, é apenas. É-se. O

viés negativo – à primeira vista depreciativo – abre portas para um adentrar mais fundo,

mais recôndito, onde camadas e camadas de possibilidades, de olhares, de significações

afloram. Cardozo joga a imagem da noite – num contexto, é claro –, que se erige

autônoma. Nós fazemos a leitura dessa imagem, e em nós ela reverbera de um modo

particular, mas em seu âmago ela é imagem, somente. Ambivalência. Simples choque.

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As trevas cardozianas cedem espaço para que pensemos até que ponto são

trevas, até que ponto estamos condicionados por um pensamento racional, claro,

herança da supremacia das luzes. E a angústia inerente ao homem desencaixado da

civilização – o mal-estar freudiano – agudiza-se com o descarte de fórmulas mágicas,

encaradas como naturais e acreditáveis, entranhadas em épocas ditas sombrias como a

Idade Média. Um tempo de crenças é também tempo de incertezas. Estas são apenas

parte de um todo, maior, conflituado, mas que contempla questões mais amplas, posto

que delas não se exige verossimilhança. O requisito da coerência e da plausibilidade não

cabe aqui. A crise de um pensamento autossuficiente é detonada pelo uso de mera

imagem. Assediado pelas luzes, o homem cardoziano é ultrapassado por incertezas. A

noite – o colapso – vem resgatar seu íntimo ignorado, o primordial, e obriga-o a

elaborar escapes mais criativos.

Permanecera com o narrador o cavalo que viera com o acompanhante, o

instrumento e as balizas, mas aquele que sabia apenas passo, trote e galope, como

mencionado no início do conto, retornara à Baía da Traição. Era necessário, logo, que se

conseguisse montaria para o narrador. Daí a pouco logram arrumar um animal e partem,

“quase às sete horas da noite com o dia já escuro”, conforme explicitado no início do

décimo quarto parágrafo. Saem um tanto receosos, como se pode perceber pelo seguinte

trecho: “[...] partimos ao longo daquele caminho deserto.” Deserto é o caminho e

tortuosas são as trilhas que os levarão de volta à Baía da Traição. Sentem-se um tanto

contrariados ao terem de enfrentar tabuleiros e capoeirões de mato alto, com cavalos

não muito bem treinados e cansados pelo árduo trabalho que enfrentaram durante a

tarde, mas resolvem prosseguir a viagem.

Vão em marcha lentíssima, pois os cavalos, exaustos, extremamente exigidos ao

longo do dia, não conseguem render o suficiente para que cheguem em hora não tão

avançada à Baía: o narrador calcula que somente por volta das onze horas, meia-noite,

conseguirão atingir seu destino.

O ponto principal da viagem é alcançado logo após, num determinado lugar

repleto de grandes declives. A descida é realizada sem maiores obstáculos, ao passo que

a trilha de subida se torna praticamente intransponível para sua montaria, fatigada pelo

trabalho executado no dia. Rapidamente o narrador percebe que não pode continuar

montado, e prefere, por conseguinte, adotar uma solução mista. Chama o auxiliar, que

vai um pouco adiante, e pede-lhe que abandone o animal em que ia montado, que, a

partir daí, passará a ser do narrador. O animal que viajava com o assistente e os

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instrumentos é deixado num tabuleiro, junto com as balizas e o material; o auxiliar

segue a pé ao encontro do narrador. Certa demora transcorre ao se fazer a mudança de

instrumentos de animal para animal e deixar-se a primeira montaria do narrador no

tabuleiro.

No décimo oitavo parágrafo, tem-se a primeira nota de que a noite era assaz

hostil: “A noite estava um pouco enfarruscada, via-se mal o caminho.” Essa noite, que

já desvenda uma série de perigos, irá se tornar portadora de percalços vários no restante

da narrativa. Aqui, todavia, não existe ainda nenhum perigo significativo, como o

narrador enfatiza ao relatar: “[...] não havendo, entretanto, nenhum perigo em deixar o

cavalo e a cangalha dentro de um tabuleiro por onde, mesmo durante o dia, raramente se

via passar alguém.”

Depois de realizada a troca de montaria, o narrador retoma o trajeto, montado

em outro cavalo. A travessia por tabuleiros múltiplos, capões de mato diversos, “com

picadas abertas onde bem se distinguia a folhagem derrubada dos pereiros, que fazia no

chão, com a sua cor esbranquiçada, lembrar um lençol estendido”, fazendo o cavalo

muitas vezes recuar. Vale ressaltar que a folhagem espalhada instigantemente lembra,

nas próprias palavras do narrador, “um lençol estendido”, imagem tradicionalmente

associada à clássica imagem de fantasmas, seres de outros planetas, ou mesmo

monstruosos, quiméricos, mistura entre real e imaginado que vem inflamar a fantasia,

assombrar a mente e a realidade dos vivos. O cavalo retrocede, portanto, diante daquele

“branco fantástico”, súbito e amedrontador, “na semiescuridão da noite”. O retrocesso

do cavalo e a teimosia do homem em seguir adiante estabelecem um embate: sucumbir à

fantasia ou ao desejo de agarrar-se à realidade. O fato de o narrador utilizar-se da

imagem do lençol estendido revela ainda o princípio deste mesmo embate, desta feita

interior. Embora não haja maiores elucubrações sobre a cor e a forma da folhagem, a

comparação indica seu medo.

A noite inóspita, juntamente com brancos fantasmagóricos e trilhas incertas e

perturbadoras, traz um “pressentimento maligno e nefasto”, pressentimento feito ainda

mais soturno ao se dar “num animal irracional”, como diz o próprio narrador, um

pressentimento “[...] de morte naquele branco de mortalha”. O animal irracional, ele

próprio elemento integrante da natureza afiada, hesita e se assusta, se apavora, diante de

indícios fantasmagóricos com que a sinistra noite e os ermos caminhos confrontam o

narrador e sua montaria.

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As “frondes caídas dos pereiros” insinuam aparições extraordinárias e

aterradoras; consequentemente, frente a elas, o animal tenta recuar, fugir, e repugna o

cenário que ali se constrói.

Novo obstáculo surge em breve, quando o narrador vê-se obrigado a atravessar a

lagoa, por ele cruzada tranquilamente, só, todas as manhãs e tardes “seguindo o

caminho para o [...] serviço cotidiano”. Agora, porém, a situação é inteiramente

contrária ao esquema habitual. O narrador terá de transpô-la “sozinho, em plena noite

densa”, ela própria uma noite aquosa, que tudo desfaz num adensamento de seu

intrínseco negrume, numa dissolução absoluta de limites e fronteiras, confusão total dos

sentidos e do racional do homem. A lagoa parada, nos sonhos, evoca justamente um

mal-entendido, dúvidas em relação ao que se fala e ao que se sente, conflitos.

Depois de atravessar “o último túnel aberto dentro de um capoeirão” e passar por

uma “pequena ponte, na extremidade da lagoa”, o narrador, enfim, entra

[...] nas águas mortas da lagoa [...] entrei realmente na lagoa, procurando os caminhos,

cobertos de água, fazendo o cavalo tatear dentro daquelas trilhas inundadas; a vegetação

aquática tinha àquela hora da noite um aspecto sinistro. Reinava um silêncio de túmulo

e os grupos de folhagens distantes faziam vultoso conjunto de formas negras dando a

impressão de nuvens escuras ali pousadas (CARDOZO 2008).

Os caminhos, que mais cedo, à luz do sol, mostravam-se fáceis de serem

palmeados, dessa feita estão cobertos de água, e o cavalo, já amedrontado pelas

“frondes caídas dos pereiros”, tende a assombrar-se e retroceder ainda mais ao ter de

sondar aquelas sendas alagadas. A flora aquática, pouco perceptível à meia-luz ou quase

pretume cerrado da noite, encorpa-se, naquele momento, de aspecto funesto,

petrificante. O silêncio é íntegro, pesado, tétrico. As longes folhagens também se

revelam um tanto medonhas ao uivarem lentamente e tomarem contornos de “formas

negras”, assemelhando-se a nuvens vastas, trevosas, descansadas sobre a paisagem.

A impressão de escuridão intransigente, morte, sombras malignas é sublinhada

nas seguintes palavras do narrador: “Era lúgubre. Toda a paisagem dava a impressão de

estar inteiramente coberta de nuvens tempestuosas.” As pretas “nuvens espaçadas”, que

se parecem crescentemente com uma “vegetação ultraterrestre”, desnudam-se aos olhos

do narrador pela primeira vez, pois é apenas naquele momento que este trilha – solitário,

durante a noite – a lagoa de água morta. É relevante observar que as “nuvens

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espaçadas”, ao não mais se assimilharem a elementos reconhecíveis e integrantes do

cotidiano – solar – do narrador, adquirem a forma de uma “vegetação ultraterrestre”, ou

melhor, recebem tal qualificação, como se o sobrenatural – o que não se encaixa na

lógica predeterminada do narrador, em seu vocabulário visual preexistente e constatado

– forçosamente tivesse de assumir um cunho fantasmagórico, sombroso.

Mais adiante, no vigésimo quarto parágrafo, o narrador prossegue, “com muita

precaução, olhando todo o ambiente, mas, sobretudo, cuidadosamente observando por

onde pisava o cavalo”. Naquela hora, não havia sinal da vida positiva e animadora de

saracuras, jaburus, narcejas, jacutingas, galinhas d’água, jacumins, jaçaranas, aves que

traziam, com seu voo luminoso, vigor e sensação de tranquilidade e calma ao local –

agora soando radicalmente inimigo. O seu “bater de asas frequente e tumultuoso” dava-

se sempre no horário da segunda ida do narrador pelas águas, no momento em que

atravessava o lugar para chegar a seu destino na Baía, sua casa, pelo crepúsculo

vespertino, instante em que as aves tornavam a seus ninhos nas árvores e arbustos

circundantes da lagoa.

Em “dias normais”, eram aquelas árvores que saudavam o narrador quando se

retirava para sua casa na Baía, que lhe davam boa-noite. Naquele momento, contudo, o

tom amistoso presente no encontro com a fauna da região mostra-se impossível, posto

que não há ninguém trilhando o caminho a não ser o narrador e seu cavalo cansado. É

ainda mais uma quebra do padrão, do lógico, da rotina, substituídos pelo imponderável,

pelo assustador. As vozes da natureza calam-se e reina o silêncio: “Não escuta esse

terrível pranto ao seu redor? Esse pranto que os homens chamam silêncio?” (HERZOG

1974). Será isto real ou fantasia? Se nos perdemos entre sonho e vigília, fantasia e

realidade, racional e irracional, como os diferenciar? É fundamental diferenciá-los?

Cardozo parece buscar imagens de ânsia, aflição, não para nos devolver à tranquilidade

de uma vida solar, mas enfatizar nossa vulnerabilidade. Para ele, a toca do Coelho

nunca termina:

E lá se foi Alice, descendo atrás do Coelho, sem jamais considerar como faria para sair

dali.

A toca seguia reta como um túnel, porém afundava de repente, tão de repente, que

Alice, sem perceber, acabou mergulhando num poço muito profundo.

Ou o poço era realmente muito profundo, ou ela caía muito devagar, aproveitando para

olhar em volta e perguntar o que haveria de acontecer em seguida. Como o fundo do

poço era muito escuro, ela passou a observar com mais atenção as paredes [...]

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“Puxa, que bela queda!”, Alice pensou consigo. [...]

Caía, caía, caía. Será que a queda não terminaria nunca? [...] Caía, caía, caía. [...]

Adormecendo aos poucos, [...] Alice começou a sonhar que passeava de mãos dadas

com Diná [sua gata] quando, de repente, tchibum! Caiu sobre um monte de gravetos e

folhas secas e a queda terminou (CARROLL 2009).

O mergulho de Alice no mundo fantasioso do País das Maravilhas a faz sonhar,

e o sonho desperta-a para o fim do mergulho. Poderia ela, de outro modo, ser uma

menina com sua gata, sonhando que despencava infinitamente num túnel? Poderia o

narrador estar sonhando essa experiência silenciosa? Ou poderia ter ele adormecido e

sonhado o barulho da fauna? Planos embaralhados, superpostos, trazem uma riqueza

confusa que nos chacoalha.

O “pequeno curso d’água corrente que ficava na outra extremidade da lagoa”,

sinal de que se devia subir um pequeno barranco rumo ao coqueiral, sinônimo de que a

trilha pela água acabara, não pode ser encontrado no breu: o narrador percebe que se

enganara. A “vereda onde a água morta atingia os pés do cavalo em pontos mais altos”

não poderia ser o bom caminho, aquele sempre buscado, em que a água não

ultrapassasse certo nível nas patas do cavalo. Ao se deixar entusiasmar pela visão

ilusória – “fantástica noturna” – das árvores na água enegrecida, o narrador perde-se

mais uma vez e perturba-se com o som emitido por uma ave, o “mugido de um socó-boi

que passou no escuro”. As miragens impedem-no de reconhecer a trilha justa,

palmilhada de forma lógica, rota racional – racional é a regra de se atravessar a lagoa

pelo “caminho molhado mais alto”, que menos inunda e cuja água menos atinge as patas

do animal. Consequentemente, decide voltar atrás, fazendo-o com extremo cuidado,

para melhor verificar “a situação da água em relação aos pés da [...] montaria”.

No parágrafo seguinte, após “pequenas vacilações”, o narrador afirma haver

encontrado o riacho que julga ser um afluente do Mirici, que será cruzado para que

possa subir o barranco fronteiro e, mais adiante, atravessar uma seara de “coqueiros

novos, coqueiros de pouca altura”. Com os sentidos acesos pela lenta, penosa e terrível

travessia da lagoa, o coqueiral parece-lhe “deserto”, pouco convidativo, assombrado:

decide embrenhar-se, entretanto, nas “alamedas de coqueiros plantados num campo

coberto de capim”.

A exemplo do quadro da lagoa à noite – esvaziada da vida buliçosa e colorida da

fauna que a povoa durante o dia –, ali o ar é “soturno”, parado, o silêncio é “rígido”, e a

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impressão geral é de frieza, aridez, negrume e tristeza. A chuva que logo se precipita,

“muito fina”, traz maior sensação de mal-estar, desconsolo e inércia. A chuva tudo

embaça à frente do personagem; o cavalo exaurido e temeroso também paralisa a

travessia do coqueiral. O medo que se entranha naquelas terras, aquela calada amarrada,

compacta, a chuva “miúda e mesquinha”, que impede de enxergar adiante, fazem do

percorrer o coqueiral – em comparação com a travessia da lagoa – tarefa igualmente

árdua.

Com a chuva encobrindo a visão e o céu, é praticamente impossível adivinhar a

hora. O narrador avança sem noção de tempo, espaço, de caminho feito, de quanto ainda

resta percorrer pelo coqueiral triste, sendo seguido, por vezes, pelo “canto aziago da

coruja”. Os seres que ali se adivinham têm “asas invisíveis e diabólicas”, farfalhantes,

abalam a compreensão do narrador e sua relação antes previsível, amansada, com a

natureza – a mesma natureza que se mostra traiçoeira e escorregadia, muitas vezes

“ultraterrestre”, que pulsa diante dele, desloca-o do caminho previsto e lhe traz

surpresas desagradáveis e um brutal desarranjo psíquico. O atemporal e aespacial do

estar perdido deslocam o homem de seu eixo e o reposicionam em outro ponto, cara a

cara com uma natureza que o impacta e faz com que ele se perceba, se leia – frágil, só.

– Você poderia me dizer, por gentileza, como é que eu faço para sair daqui?

– Isso depende muito de para onde você pretende ir – disse o Gato.

– Para mim tanto faz para onde quer que seja... – respondeu Alice.

– Então, pouco importa o caminho que você tome – disse o Gato.

– ...contanto que eu chegue em algum lugar... – acrescentou Alice, explicando-se

melhor.

– Ah, então certamente você chegará lá se continuar andando bastante... – respondeu o

Gato.

Alice achou que não se podia negar isso; tentou, portanto, uma outra pergunta:

– Que tipo de gente vive por aqui?

– Naquela direção – disse o Gato, apontando com a pata direita – mora um Chapeleiro e

naquela direção – fez ele, apontando com a outra pata – vive uma Lebre Aloprada.

Visite qualquer um deles, tanto faz. Ambos são loucos.

– Mas eu não quero ir parar no meio de gente maluca – observou Alice.

– Ah, mas não adianta nada você querer ou não – disse o Gato. – Nós somos todos

loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.

– E como é que você sabe que eu sou louca? – perguntou Alice.

– Bem, deve ser – disse o Gato – ou então você não teria vindo parar aqui

(CARROLL 2009).

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À semelhança de Alice, que busca chegar a “algum lugar”, melhor que lugar

nenhum (ou nenhures, no dizer de Cardozo), o narrador procura, tão-somente, chegar.

Intransitivamente. O chegar irá salvá-lo do vagar, à deriva, por espaços nenhuns, à

mercê de uma psique também desgarrada. Aliás, numa terra do palmilhar, todos são

loucos, caso contrário, não estariam ali, presas de um quase, de uma vacância que não

se define nem permite que o outro se defina. As imagens de Cardozo introduzem uma

zona de talvez que parece não (querer) se resolver. Purgatório da mente entregue ao

livre pensar.

Apesar dos embaraços e da inquietação que se impõe, o narrador segue e chega

ao nicho do Divino Amor. Em tal nicho, nota-se que se encontra um crucifixo,

acompanhado por luz, “luz eterna que ali ficava queimando por dias e noites”. O

crucifixo é aqui sobretudo sinônimo de luz, tremulante, ofuscante, que afasta qualquer

possibilidade espectral e soturna, que triunfa sobre a noite. Em seguida, como

continuação simbólica dada a partir do crucifixo – o Divino Amor, que recebe o

narrador depois da errância por veredas agressivas –, avista-se a igreja do povoado,

templo síntese do processo civilizatório humano, o primeiro edifício que lhe dá as boas-

vindas ao finalmente chegar ao vilarejo da Baía, imagem que faz eco a Gregório de

Matos:

A vós correndo vou, braços sagrados,

Nessa cruz sacrossanta descobertos

Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados

De tanto sangue e lágrimas abertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,

E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,

A vós, sangue vertido, para ungir-me,

A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,

A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

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Para ficar unido, atado e firme (MATOS 1968).

A imagem do crucifixo de Gregório, aliás, é ela mesma cheia de ambiguidades: é

redenção, abrigo; é também sangue, lágrimas, pregados pés, cabeça baixa. Mesmo a

salvação encerra angústia, mal-estar. O narrador cardoziano também parece perambular

à procura de uma sublimação que nunca virá.

Entra, afinal, em sua “única rua [...] ao longo do seu areal e do seu coqueiral de

altos e velhos coqueiros sempre bem carregados de frutos”. Após longamente vagar por

caminhos pouco atravessados, insólitos e causadores de extremo transtorno, o narrador

consegue alcançar a vila, a civilização, o local por excelência da vitória da lógica, da

construção e do ordenamento mental humano. A porta de casa encontra-se aberta. Não à

toa o horário é meia-noite, tempo de transição, habitualmente vinculado a fantasmas, a

cruzamentos entre mundos, como uma espécie de portal cósmico entre dimensões

diferentes. Cardozo continua a oferecer a pílula vermelha de um subtexto mais vigoroso,

bifurcado, talvez até rizomático, por meio de pequenas sugestões, como uma espécie de

profeta da imaginação: “You take the blue pill, the story ends, you wake up in your bed

and believe whatever you want to believe. You take the red pill, you stay in

Wonderland, and I show you how deep the rabbit hole goes”1 (WACHOWSKI 1999).

Por fim, à meia-noite, com o casario “fechado e silencioso”, todo ele encoberto por um

aspecto de cidade plácida e encerrada, o narrador entra pela porta aberta para se

proteger da chuva e da aspereza do trajeto há pouco percorrido.

Esgotado mental e fisicamente pelo trajeto que dele cobrou um preço tão alto,

que lhe exigiu o dispêndio de todas as forças, com os nervos ainda bastante

descompostos, senta-se numa cadeira e aguarda o assistente, que em breve deveria

chegar com os utensílios empregados no trabalho. Mantém nas mãos as rédeas do

cavalo, mas, como de praxe acontece nos contos mais elaborados de Cardozo, em que o

sobrenatural irrompe por meio do imponderável, adormece. O narrador parece fazer eco

ao Rei Vermelho, e Cardozo parece não desejar precisar se é o sonhador ou a coisa

sonhada; nele, o percurso impõe-se sobre a chegada e a partida. Categorias imbricadas

que apenas se acumulam, sem dissolução:

1 “Se tomar o comprimido azul, a história termina, você acorda em sua cama e acredita no que quiser

acreditar. Se tomar o comprimido vermelho, você fica no País das Maravilhas e eu lhe mostro até onde

vai a toca do coelho.” (tradução minha)

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– É só o Rei Vermelho roncando – disse Tweedledee.

– Venha ver! – gritaram os irmãos. Cada um pegou uma das mãos de Alice e a levaram

até onde o Rei dormia.

[...]

– Agora está sonhando – observou Tweedledee. – Com que acha que ele sonha?

Alice disse: Isso ninguém pode saber.

– Ora, com você! - Tweedledee exclamou, batendo palmas, triunfante. – E se parasse de

sonhar com você, onde acha que você estaria?

– Onde estou agora, é claro – respondeu Alice.

– Não, não! – Tweedledee retrucou, desdenhoso. – Não estaria em lugar algum. Ora,

você é só uma espécie de coisa no sonho dele!

– Se o Rei acordasse – acrescentou Tweedledum – você sumiria... puf!... exatamente

como uma vela!

– Não sumiria! – Alice exclamou indignada [...]

[...]

– Bem, não adianta você falar sobre acordá-lo – disse Tweedledum – quando não passa

de uma das coisas do sonho dele (CARROLL 2009).

Revisitando um de seus temas favoritos, Cardozo faz do sono um fator de

desequilíbrio, de entrada em um universo antes só vislumbrado, fugazmente percebido

por meio do misterioso. Adormece segurando as rédeas do cavalo, sem mesmo sentir o

barulho do vento – elemento que também se reveste de notável carga, visto que o vento,

piando, é condutor dos uivos e vozes dos mortos, num “denso rumor convulsionado”.

Ao acordar, compreende que o assistente chegara e que o cavalo que trouxera e

cujas rédeas retinha fugira. Entontecido de sono – sono que, em vez de lhe recompor as

forças, aguça sobremaneira sua perturbação –, não logra explicar como o cavalo

desaparecera, animal, entretanto, encontrado a alguns metros da casa comendo “capim

ralo ao pé dos coqueiros”.

Assim o narrador fecha seu contar, sua história de ida e volta a Marcação, o

relato de uma aparentemente simples e linear trajetória, mas que, em seus meandros,

guarda desarranjos, nauseante mal-estar e um confronto com o sombrio. Para que possa

se proteger da chuva e das sombras do lado de fora, fecha-se em casa – a imagem do

abrigo por excelência. Espaço de proximidade, de convivência e reconhecimento, do

familiar e não do outro, do fora, o que desafia parâmetros e convenções impostas pela

razão do homem.

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Tal casa convida o homem a um heroísmo cósmico. É um instrumento para afrontar o

cosmos. As metafísicas “do homem atirado no mundo” poderiam meditar

concretamente sobre a casa atirada na borrasca, desafiando a cólera do céu. Contra tudo

e contra todos, a casa nos ajuda a dizer: serei um habitante do mundo, apesar do mundo.

O problema não é somente um problema do ser, é um problema de energia e,

consequentemente, de contra-energia (BACHELARD 2012).

Casa bachelardiana, “casa universo”, metonímia protetora e segura do absoluto.

E, nessa dialética do dentro e fora, “Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, ela [a

casa] fala de uma intimidade” (BACHELARD 2012). A casa é entendida aqui como

imagem, Casa e não casa, eixo primordial. Não à toa, ao tratar da casa, Bachelard guia-

nos para a questão do espaço imagético que excede as “imagens rememoradas”, a

lembrança; a casa, para ele, erige-se como imagem autônoma, a partir da qual casas

recordadas são apenas ressonâncias, desdobramentos. Enclausurar-se em casa é, pois,

resguardar-se do alheio: somente nesse território a chuva não mais ameaça, o vento

amaina, a luz do candeeiro crepita, amiga, e pode finalmente o narrador descansar, não

num sono agitado e desconcertante, mas acolhedor, que o protege das vicissitudes

fantasmáticas que a natureza apresenta.

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4.Perdidos nos tabuleiros

Assim como em “Tramataia”, no conto “Perdidos nos tabuleiros” Cardozo

relembra, por meio de seu narrador, um episódio ocorrido por volta do início da década

de 20, quando trabalhava como engenheiro e topógrafo nas zonas mais agrestes e rurais

de Pernambuco e da Paraíba, na Comissão Geodésica de Topografia. Desbravando tais

terras ao se empenhar nessa tarefa específica, Cardozo entrou em contato com locais

extremamente pobres da região, desses territórios, e seus humildes habitantes,

conectando-se ao dia a dia assaz castigado das pessoas que ali se haviam fixado, numa

experiência sumamente especial e essencial à construção de seus contos e à criação de

uma forma narrativa peculiar, muitas vezes assemelhada a um breve relato, como já

mencionado na análise do conto “Tramataia”.

Também aqui a narrativa revela-se de primeira pessoa, e o conto emana um

clima de profunda experiência pessoal, como se fosse apenas um relato simples. No

entanto, há igualmente a execução de uma atmosfera bastante fantasmagórica, quase

fantástica, que confere um sentido peculiar, pitoresco, a “Perdidos nos tabuleiros”. A

presença do fator onírico emerge no final do conto, quando o narrador cardoziano, já

quase adormecido e exausto pelos desarranjos psíquico, emocional e sensorial

experimentados ao longo do relato, acaba por recordar seus momentos mais juvenis no

Zumbi, sua infância, os festejos locais de juventude e, assim, num misto irresolvível de

sonho e sono, entrega-se deliberadamente ao puro devaneio.

Logo no início do conto, no primeiro parágrafo, o narrador menciona a atividade

topográfica exercida no engenho Cumaru, atividade essa que claramente se confunde de

maneira intensa com a própria tarefa de engenharia e topografia exercida por Cardozo

na década de 1920. É à noite, no engenho Cumaru, que Cardozo e seu ajudante acabam

por se despedir dos habitantes locais. Apenas os caseiros (marido, mulher e dois filhos)

ocupavam a casa-grande, e todos sofrem de maleitas, doenças outras – traço bastante

característico da prosa de Cardozo, em que o desconforto físico tende a ocasionar

desregramentos psíquicos.

A noite – imagem sempre tão presente, sempre tão evocativa de mistério,

enigmas, desenredo – surge mais uma vez forte e carregada em “Perdidos nos

tabuleiros”. No início do segundo parágrafo, o narrador menciona de modo significativo

que “era noite fechada” quando, acompanhado por seu assistente, se despede do casal

que habitava a casa-grande, prestes a empreender a viagem de retorno à Baía da

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Traição. A noite, além de fechada, é também “bastante escura”, muito embora pudessem

ser vistos uma série de astros, “as constelações e o arco enorme da Via-Láctea”.

O assistente e o narrador saem por fim, sem conhecer os tabuleiros paraibanos,

tortuosos, muitas vezes traiçoeiros – uma espécie de planície, de solo tendendo para o

arenoso, muitas vezes guarnecido por uma vegetação pouco mais rasteira, ou, como diz

o narrador, “arbustiva: muricis, cajueiros brabos, batiputás e mangabeiras”. Os

caminhos escondidos pelos tabuleiros são incertos, desorientados (e desorientadores),

caminhos que causam angústia, trazem preocupações e grande temor àqueles que os

palmilham.

É importante notar sobretudo em “Perdidos nos tabuleiros” a extrema força

emprestada à noite, que sobressai radicalmente entre várias outras imagens

tradicionalmente vinculadas à natureza, pois a noite – como de praxe na prosa

cardoziana, e aqui em particular – assume caráter de significado e representação, é

emblema do retorno ao indeterminado. A noite é tudo aquilo que escapa ao domínio do

sol. A noite é pura imaginação, força impalpável, vontade incontrolável. A noite no

imaginário coletivo é aquela que fatalmente se liga ao sono e à morte (e mesmo os

engendra), a sonhos e angústias, ao engano, desengano, desarranjo. Na noite, momento-

chave sinônimo de perturbações, habitam pesadelos e monstros, ideias sombrias, pois é

no sono noturno, durante o sonho, que a pujança do inconsciente, com seu caos criativo,

se libera – assim, a noite é associada frequentemente ao inconsciente. Nesse momento

de inconsciente, somem amarras socioculturais, solapadas por desejos e pulsões mais

íntimos, mais recônditos, inconfessáveis. Aqui, o id freudiano pode finalmente romper

as barreiras da censura do superego e da adequação do ego e exprimir sua potência

dormente. Freud define o id como

[...] a parte obscura, a parte inacessível de nossa personalidade; o pouco que sabemos a

seu respeito, aprendemo-lo de nosso estudo da elaboração onírica e da formação dos

sintomas neuróticos, e a maior parte disso é de caráter negativo e pode ser descrita

somente como um contraste com o ego. Abordamos o id com analogias; denominamo-lo

caos, caldeirão cheio de agitação fervilhante. Descrevemo-lo como estando aberto, no

seu extremo, a influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades

instintuais que nele encontram expressão psíquica; não sabemos dizer, contudo, em que

substrato. Está repleto de energias que a ele chegam dos instintos, porém não possui

organização, não expressa uma vontade coletiva, mas somente uma luta pela

consecução da satisfação das necessidades instintuais, sujeita à observância do princípio

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de prazer. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao id, e isto é verdadeiro,

acima de tudo, quanto à lei da contradição. Impulsos contrários existem lado a lado, sem

que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito, podem convergir

para formar conciliações, sob a pressão econômica dominante, com vistas à descarga da

energia. No id não há nada que se possa comparar à negativa e é com surpresa que

percebemos uma exceção ao teorema filosófico segundo o qual espaço e tempo são

formas necessárias de nossos atos mentais. No id, não existe nada que corresponda à

ideia de tempo (FREUD 1976).

O conhecimento distinto, analítico, quantificado, palpável desaparece na

violência natural e instintiva da noite, que evoca diretamente o universo extrema e

violentamente psíquico. Na noite, resta o sonho, que se confunde com a realidade, que

se confunde com o sonho, limites borrados, engano triunfal. As imagens propostas por

Cardozo frequentemente não parecem desejar explicações, fronteiras, lugares

predeterminados – não importa:

[...] vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e

minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto

esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum

homem olhou: o inconcebível universo (BORGES 2005).

O propósito que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um

homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade.

[...] No começo, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética.

[...] Não obstante, a catástrofe sobreveio. O homem, um dia, emergiu do sonho como de

um deserto viscoso, olhou a vã luz da tarde que, à primeira vista, confundiu com a

aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, a intolerável

lucidez da insônia se abateu contra ele.

[...] Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que

se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um varão, ainda que

penetre em todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que

tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem rosto.

Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie [...] Esse

múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo [...] e que magicamente

animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo

e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. [...] No sonho do homem que

sonhava, o sonhado despertou.

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[...] Gradualmente, foi acostumando-o à realidade. [...] Antes (para que nunca soubesse

que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o

esquecimento total de seus anos de aprendizagem.

[...] O mago lembrou-se bruscamente das palavras do deus. Recordou que de todas as

criaturas que compõe o orbe, o fogo era a única que sabia ser seu filho um fantasma.

Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu

filho meditasse nesse privilégio anormal [ser capaz de andar sobre o fogo sem se

queimar] e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um

homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que

vertigem!

[...] O final de suas cavilações foi brusco [...] As ruínas do santuário do deus do fogo

foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra

os muros o incêndio concêntrico. [...] Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não

morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão.

Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma

aparência, que outro o estava sonhando (BORGES 2003).

Essa noite assaz inóspita está concomitantemente cheia de mistério e fascinação.

Cardozo insere aqui uma imagem feiticeira, noite repleta de sortilégios, encantos e

lendas, que sopra “um vento leve e arisco”, um vento também ele muitas vezes maroto e

traiçoeiro, um vento que se mostra “molhado e indeciso”, tortuoso, “destroçado e

incerto”, que, embora “contido pelos capoeirões”, pelo mato alto, acaba por perturbar

aqueles que andam pelos tabuleiros, dificultando a travessia do narrador e de seu

acompanhante.

Depois de muito caminhar dentro da “noite negra e estrelada, escura e

iluminada” – trecho contido no quarto parágrafo do conto –, o narrador suspeita que ele

e seu ajudante possam estar perdidos. Faz-se essencial ressaltar o fato de que a noite,

elemento de perturbação e assédio dos sentidos, é descrita como “negra e estrelada,

escura e iluminada”, num par de antíteses absolutamente significativo. Como afirma

Bachelard:

Formar imagens verdadeiramente mútuas nas quais se intercambiem os valores

imaginários da terra e do céu, as luzes do diamente e da estrela [...] A imaginação

transpõe extraordinárias diferenças. Unindo a pedra preciosa à estrela, ela prepara “as

correspondências” daquilo que tocamos e daquilo que vemos, e assim o sonhador leva

as mãos aos magotes de estrelas para acariciar-lhes as pedrarias (BACHELARD

2012).

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No conto de Cardozo, exatamente no momento em que o narrador e seu

acompanhante se encontram perdidos nos tabuleiros – instante sobremaneira angustiante

e recheado de ansioso suspense –, a imagem da noite parece convocar medo, desespero

e aflitivo acossamento, ao passo que no desfecho da narrativa, quando, dentro do

negrume, se dão os festejos de Santana, ela traz dentro de si uma sugestão de dia,

celebração, alegria, de entusiasmo, podendo, pois, carregar e fecundar um profundo

desabrochar, plenitude confundida com a força amarela e generosa do sol e do dia. É

uma noite replicada em várias, capaz de abraçar seus filhos ao mesmo tempo em que os

engole, alimentando-os e por eles sendo alimentada. Uma noite que se confunde, ela

mesma, com as paredes da casa de Astérion:

[...] É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo

número é infinito) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que

entre quem quiser. [...] Outra afirmação ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro.

Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura?

[...] Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há

uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os

pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o

mundo. Todavia, à força de andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias

de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso

até que uma visão da noite me revelou que também são catorze (são infinitos) os mares

e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo

que parecem existir uma única vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Astérion.

Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.

Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal.

Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para

procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro, caem, sem que eu

ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma

galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da

morte, que um dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me

magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meu

ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me

leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me

pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou

será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de

sangue.

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– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu (BORGES

2005).

É na noite “negra e estrelada, escura e iluminada” que o narrador olha para o

céu, à procura de respostas – tão ansiadas em meio ao desespero experimentado nos

tabuleiros. A orientação dada pelas estrelas para os caminhos pelos quais seguem, cujo

ponto de chegada é o mar, o porto final, é dificultada pela solidez impermeável da noite

fechada; as estrelas parecem diluir-se dentro dessa noite completa e apagada, que tudo

absorve, tudo dissolve. Prosseguindo na senda mitológica, a imagem da noite surge

como labirinto de Creta sem paredes, caminhos ou ecos, espiralada e infinitamente

possível, infestada de nossos doidos minotauros: “Esse é o labirinto de Creta. Esse é o

labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi

o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja

trama de pedra se perderam tantas gerações” (BORGES 2010).

E ainda, como o mesmo Borges nos mostra, uma noite deserto, noite túnica

inconsútil, cheia de dádivas e castigos:

Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve

um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção

de labirinto [...] Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da

Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no

labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde. Implorou então o

socorro divino e deu com a porta. [...] Depois regressou à Arábia, juntou seus capitães e

alcaides e arrasou os reinos da Babilônia [...] e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o

sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: “Oh,

rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse

num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou

por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem

cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos”.

Em seguida, desatou-lhe as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de

fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre (BORGES 2005).

Já não é mais noite, é, mesmo, “meia-noite”, conforme afirma o narrador no

oitavo parágrafo, “tempo de estarmos na Baía”. Não à toa, a noite configura-se como

ainda mais noite, pretume potencializado, à meia-noite, hora-chave, entendida como

sinônimo de desarranjos de ordem sobrenatural. A meia-noite indica o âmago difuso do

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oculto, tudo aquilo que perturba e encerra mistérios inteiramente alheios à explicação. A

(meia)noite é, logo, o que se situa fora, enigma que escapa a cânones.

Intensamente desgastado pela situação alarmante em que se encontra, do nono

ao décimo terceiro parágrafo do conto, o narrador elabora longa e minuciosa descrição

do penoso processo de descida dos tabuleiros até a praia. Assim:

Precisávamos descer cerca de quinze metros; em todos os lugares em que tentávamos

descer víamos a queda abrupta e íngreme da barreira. Depois de várias tentativas,

encontramos finalmente, na região do Tambiá, uns sulcos profundos que mergulhavam,

de maneira menos abrupta, para a praia; no entanto, ainda era muito difícil a descida,

mas tentamos. Precisamos descer dos cavalos e puxá-los pelas rédeas com muito

cuidado [...] Fomos assim, pouco a pouco, descendo entre aqueles sulcos profundos, de

uma terra pegajosa e escorregadia; fomos indo, pouco a pouco (CARDOZO 2008).

A natureza, bem como a noite, revela-se inóspita, hostil, vitimando,

encarcerando o homem que desesperadamente se pega à sua racionalidade como forma

de tentar manter-se intacto, ileso, e ter a sanidade preservada da violência endoidecida

dessa mesma natureza – dessa mesma noite.

Descendo por sulcos profundos com seus cavalos e prestando atenção a fim de

evitar algum grave acidente, depois de muito penar e árduo caminhar, chegam, com

cuidado, à praia, trilhando um caminho aberto, sem grandes obstáculos, que permite ao

narrador e seu ajudante tornarem a montar.

Agora sem maiores dificuldades, findam por chegar à Baía da Traição. Há que se

sublinhar que, na passagem do triunfo final da viagem, chegando ao ponto que sempre

pretendeu alcançar, o narrador se utiliza de um campo semântico fortemente vinculado à

questão da serenidade: “felizmente”, “vazante”, “tranquilos”. Em tal momento de alívio,

as palavras mostram-se encadeadas, quase sadiamente escolhidas, demonstrando o

sucesso de tão complexa e perigosa empreitada.

O caminho aberto, sem dificuldade, sem obstáculo, leva à civilização, ao

conhecido, ao já experimentado, palpável, real, verdadeiro, ao que pode ser

contemplado pela racionalidade exata e sempre lógica do homem – que se encontra no

ambiente daquilo que lhe é familiar, e não no estranho, alheio ao entendimento e que

por isso o perturba e o leva a confrontar-se.

O “grande coqueiral” anuncia a chegada à Baía da Traição. É ali, “com

segurança sobre o chão batido da praia de areia endurecida pela água do mar”, que o

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narrador e seu companheiro se aproximam do povoado. No décimo quinto parágrafo, é

sugestivo que os vocábulos empregados por Cardozo construam sempre imagens

ligadas à questão da segurança, do que não pode de forma alguma ser chacoalhado pelo

imponderável: “chão”, “batido”, “endurecida”. Quando da chegada à praia – à

civilização –, irrompe na narrativa o elemento monolítico, constituído, sedimentado.

Assim, a praia é de “areia endurecida” – imagem que transmite, de novo, a ideia de

firmeza, de solidez, de potência contida.

Como no momento em que, durante a noite, procuravam a direção das águas

marítimas pelas estrelas, o mar é encarado como desabotoar, um sair do cerne da

natureza sombria. O mar é renovação, amplidão, exatidão. Um fluxo poderoso de

energia, que cura e se impõe, não uma água tranquila, passiva; água colérica, santa e

pura e benfazeja – “A água violenta é um esquema de coragem” (BACHELARD 2002).

Ao se aproximarem do povoado, percebem que há uma festa. À vista das

primeiras choupanas, os sentidos são acordados para a música, o batuque, a

comemoração: há sons múltiplos, completamente inebriantes, de palmas, tambores, na

festa do coco. Rapidamente, o empregado que acompanhava o narrador logo lembra se

tratar dos folguedos de Santana, dia como o de Santo Antônio, São João e São Pedro,

largamente celebrado na Baía da Traição, com danças tradicionais e cantos rítmicos já

tão usuais naquele povoado: “coco-de-roda, para as mulheres, coco isolado para os

homens.” Em meio ao festejo grande, cheio de alegria, de homens e mulheres que, ao

cantar, se desfazem do lavor e das dificuldades cotidianas, o narrador e seu ajudante são

recebidos. Entram ambos no povoado e ouvem, “nítido, o canto do coco, tirado pelos

homens”. O som das palmas e ganzás, o batuque dos tambores, homens e mulheres

afogueando-se em umbigadas remetem diretamente a um sincero e irreprimível

entusiasmo – dia nascedouro das sinuosidades da noite escura, que, embora guarde

dentro de si a angústia profunda do invisível, embala consigo a semente de um clarão

vivificado, pressagia ela mesma seu término e a chegada de um novo momento, mais

solar e exato.

Após escutar tantos múltiplos cantos, o narrador anuncia que a noite está “quase

no fim, o céu, de um azul profundo, cobria os coqueiros, que [...] recortavam silhuetas

sombrias”. O azul profundo e a noite finalmente despedem-se, evanescem sombras,

trevas, momentos não tão enternecidos – enervantes, causadores de grande mal-estar.

A folgança de Santana, enchida de louvores, santos, fogueiras, busca-pés, fogos,

limalhas, desperta memórias do narrador, que a partir daí recorda sua infância no

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Zumbi, com festas coloridas, tempo bom, associado ao dia de Santana, assim como aos

já mencionados e juninos Antônio, João e Pedro. É na Baía da Traição, com gentes

simples e sem grandes esperanças, que se realiza a festa redentora, reminiscente de

fogueiras e foguetes da infância do narrador, muito embora na Baía não houvesse

condições financeiras para celebrar de maneira tão luxuosa, tão basta e dispendiosa.

Na véspera de Santana, o narrador dá-se conta do quase milagre que lhe ocorreu:

ter conseguido achar a saída dos tabuleiros intoxicantes, a praia clara, “de maré alta”, o

percurso mais tranquilo até a Baía da Traição. É Santana, na véspera de seu tão

aguardado dia, sempre vinculado na lembrança do narrador a instantes de felicidade,

contentamento, festejos e celebrações, é Santana quem propicia tal milagre. Mais uma

vez, Cardozo insere em sua prosa a questão do mágico, isolado do convencionalmente

posto em palavras e explicações concatenadas. Por meio de um enigma, do enveredar

pelo caminho da crença, de aceitação natural do espírito de devoção completa a uma

santificada figura, Cardozo engendra uma situação que carrega em sua essência o

robustecimento de seu narrador-protagonista. Não é, de forma alguma, a lógica

usualmente construída, sedimentada, impermeável que traz para o narrador a libertação

do momento de angústia e de confrontação consigo mesmo, e sim o êxtase em sua força

indomável – que pode tanto desorientar quanto proporcionar um encontro mais direto

com o intrínseco, visceral, da natureza humana.

É absolutamente inescapável ler o conto de forma quase bachelardiana, pela

perspectiva de uma vontade de verticalidade ctônico-aérea, e observar que, para além

desta ambivalência terra-ar, há uma dubiedade própria a cada elemento, que pode tornar

a terra doce e terrível, e transformar o ar, simultaneamente, em epítome de incerteza e

única via de redenção.

Um dos quatro elementos de acordo com as cosmogonias tradicionalmente

estabelecidas, o ar é, a exemplo do fogo, aquele que se destaca pela atividade, pelo

caráter masculino, enquanto água e terra são tidas como símbolos de passividade,

vinculadas ao aspecto feminino, materializante – ao contrário do ar, que em culturas

variadas surge como sinônimo de espiritualização. Intimamente ligado ao vento, o ar

muitas vezes com ele se confunde; no caso do vento especificamente, sua força errática

alude diretamente a características como agitação, violência e labilidade. “Com o ar

violento poderemos compreender a fúria elementar, aquela que é só movimento e nada

mais que movimento [...] O vento, em seu excesso, é a cólera que está em toda parte e

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em nenhum lugar, que nasce e renasce de si mesma, que gira e se volta sobre si mesma”

(BACHELARD 2001).

O ar transmutado em vento carrega-se de energia elementar, titânica e

implacável; por outro lado, o vento é sinônimo do sopro, do influxo espiritual de origem

celeste – não à toa, na letra bíblica, o sopro de Deus, que organiza o caos original e

move o homem primordial, configura-se no vento. Assim, o vento é o exercício por

excelência da irrefreável vontade divina. Portador de uma verdade – a celestial –, serve

como manifestação dessa força cósmica que, por meio dele, transmite suas oscilações,

placidez e fúria, silêncio e som. O sopro, por sua vez, anuncia o princípio da vida:

emitido por Deus, é imperecível, animando o homem e abandonando-o, de retorno à

unidade original divina, quando este se fana.

O ar-céu pode ecoar para este homem cardoziano uma (ausência de) liberdade

por ser tão distante, inalcançável, intocável. Numa vida em que o narrador vê-se

subitamente despido de controle, também o céu há de escapar-lhe às vontades.

Por outro lado, a terra surge como um elemento notavelmente mais humanizado,

que reverbera os sentimentos do narrador, identificando-se com ele. Ela opõe-se

tradicionalmente ao céu, tal qual a escuridão à luminosidade, a concentração,

estabilidade, calma e firmeza à dispersão, inconstância, agitação e volatilidade. A terra é

instância geradora, sustentante, ao passo que o céu se apresenta como debruçado,

encobridor. Substância universal, a prima matéria arrancada da água, a terra é, ela

própria, matriz: dá e tira a vida. Terra-mãe, traz em si o germe da fecundidade e

regeneração: pelo vínculo com essa pujança telúrica morre-se para uma vida a fim de

que se renasça para outra. Privilegiado palco simbólico de embates, a terra, sempre dual,

representa o conflito perene do homem, que, dono de seu desejo, está situado

irremediavelmente a meio caminho entre corrupção e sublimação.

Também é preciso atentar para o choque corporal, o encontro íntimo com a terra:

ela oferece resistência, hostil, ao mesmo tempo em que se configura como “massa”,

num convite para um devaneio ativo e transformador. Na terra, encontramos igualmente

grutas, cavernas, espaços de recolhimento – o porão uterino. Nesse caso, o embate

conforma-se contra o “corpo do mundo”.

A experiência vivida terrenamente surge perpassada por limites tranquilizadores.

Por conseguinte, somente à beira do abismo, na falta de norte, é possível despregar-se

da carapaça da terra. Com suas esperanças desfeitas e refeitas, o narrador oscila entre

estas duas posições, que permanecem em aberto na inconclusividade do conto. Ao

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mesmo tempo em que o narrador é, em sua vida cotidiana, um homem apegado à

firmeza severa da terra (não à toa a menção à consistência da areia da praia salvadora) e

por ela sustentado, ele almeja alçar voo em direção a altitudes celestiais, ascendendo em

busca de um paraíso, céu salvador, que o faça renascer altaneiro, cumpridor das

potências sacras do ar.

Do conto emana um clima de dicotomia entre os elementos aéreo e terrestre,

cada qual se desvelando e firmando em instantes alternados da vida e lembrança do

narrador. Ar e terra não se anulam, mas, sim, impõem-se um ao outro conforme se

desenovelam ao longo da narrativa binômios complementares, como noite/dia, atuando,

portanto, como instrumentos que possibilitam a entrevisão do estado de espírito e das

emoções internas do narrador.

A análise comparativa dos aspectos de ar e terra que permeiam o conto permite

igualmente vislumbrar a dualidade que marcará o trajeto do narrador. Num primeiro

momento, deparamo-nos com um personagem sabedor de suas ações, conscientemente

detentor de seus pensamentos, que se assenhoreia amplamente de seu ir e vir,

responsável pelas escolhas que passarão a orientar seu percurso. Alguns parágrafos

adiante, entretanto, confrontamo-nos com um narrador cujos rumos não mais lhe

pertencem.

Há quase que uma quase sugestão de que, ao longo desse breve hiato-percurso,

as partes do ser como que se houvessem descolado. O homem é aqui como um animal

criado em cativeiro, que, solto na plana liberdade natural, recua, amedrontado, com

poucos instintos que o guiem na direção certeira e lhe garantam a sobrevivência.

A oração a Santana, aliás, parece ecoar tanto o milagre ocorrido ao narrador,

quanto suas reminiscências de juventude, exaltando o lar, a família e a infância, com

forte cunho de súplica, pedido de proteção celestial:

Senhor, Deus de nossos pais, que concedestes a santa Ana a graça de dar a vida à mãe

de vosso filho Jesus, olhais por todas as famílias que lutam para sobreviver e que se

encontram em grandes dificuldades de relacionamento. Que os lares sejam lugares

abençoados e plenos de acolhimento e de compreensão. Santa Ana, nossa padroeira,

olhai para as crianças, acompanhai os adolescentes e jovens, amparai os idosos e

doentes de nossa sociedade. Que todas as pessoas possam contar sempre com as

bênçãos de vossa proteção. Santa Ana, eu ainda vos peço [pedido]; neste dia dai-me a

graça que tanto necessito. Santa Ana, rogai por nós! Amém!

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Chegando à sua casa, exausto, o narrador prepara-se para dormir. Ouve o som de

ganzás e tambores, trechos da embolada cantada, distante, no povoado. Lembra-se ele,

mais adiante:

Aquela música e a emoção por que passei durante aquela viagem noturna me tiravam o

sono; olhei, entre as palmas dos coqueiros, a primeira luz da manhã [...]

Parecia que estava mesmo tudo terminado; voltei para o interior da casa.

Deitei-me na rede para dormir, certo que estava tudo acabado; deitei-me e sentia-me

satisfeito por ter conseguido vencer as irregularidades e incertezas dos tabuleiros, com

os seus caminhos divergentes (CARDOZO 2008).

Assim, a música, a emoção revivida de épocas pretéritas, justas, cheias de

alegria e regozijo, folguedos e cantos levam o narrador a se afastar definitivamente do

que lhe pareceu ser um pesadelo dentro da noite fechada, sombria e hostil.

Recolhido ao interior da casa, deitado na rede, sem sono, expectante e com as

forças distendidas, ouve zabumbas, partes de embolada. Abraçado ao dia de Santana

pela luz que lhe chega entre os coqueiros da Baía, o narrador finalmente adormece.

Num puro átimo, abandona-se ao sono, momento de placidez e quietude. No dia de

Santana, por meio do milagre místico de sua santa, adorada por um pio narrador – santa

tão amada, que lhe lembra os pedaços mais felizes e graciosos de sua infância –, o

personagem pode enfim entregar-se, esquecer a noite escura. O desarranjo causado pela

noite é dissipado pela luz solar e pelas lembranças cálidas de uma infância guardada. A

memória, a emoção e o sonho, potenciais geradores de extremo desconforto, podem

outrossim recuperar instantes de grande beleza e poesia – é o que parece afirmar

Cardozo em “Perdidos nos tabuleiros”.

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5.Tramataia

Com “Tramataia”, Cardozo mais uma vez se aproxima de um universo – tão

presente em seus contos – em que a realidade roça incessantemente o fantasmático.

Trata-se de um ambiente em que não mais se divisam fronteiras. Em “Tramataia”,

Cardozo desfia uma narrativa em primeira pessoa, que principia com a abordagem

realizada pelo narrador, logo no início do conto, da questão geográfica e econômica da

vila de Tramataia – o que produzia o lugarejo, como se mantinha financeiramente –,

além dos costumes da população local, para, muito depois, já pelo final da narrativa,

mencionar o grande mistério que acompanha a localidade.

Portanto, também aqui Cardozo retorna a seu motivo dileto: a conjugação do

aqui – mundo tangível – com o fator quimérico, do que se espraia além da compreensão

simples, exata, estrita do homem. Interessa sobretudo a Cardozo observar como o

imaginado, ou mesmo o imponderável, irrompe na narrativa, e desloca o foco da vida

trivial do homem.

O conto de fato divide-se em quatro etapas. Primeiro, há uma introdução

(descrição, mais plana e centrada, do universo e do povoado de Tramataia, vinculada ao

que se poderia chamar de “realidade”); em seguida, configura-se o sonho com

Tramataia, em que o narrador se permite fazer uma longa alegoria a respeito de sua

fantasia com o povoado, do vislumbrado no sonho, das figuras verificadas nos cantos do

lugarejo, e durante tal momento o povoado parece retornar à vida. No terceiro trecho, o

leitor depara-se com o segredo de Tramataia, mistério que perturba o narrador: por que

Tramataia foi abandonada, por que se tornou uma vila fantasma. Na última parte,

significativamente denominada “Tramataia” (assim como o conto de que faz parte), o

narrador questiona-se justamente acerca desse nome, de onde terá vindo, qual sua

origem e seu significado, o que pode haver de oculto em tal título. Nesse sentido, é

revelador que a última frase do conto, contida no trecho homônimo, explicite:

“Tramataia! Seu nome é também objeto de seu mistério.”

Podemos tentar aproximar-nos das três primeiras partes pelo prisma do modelo

estrutural freudiano clássico. Num primeiro momento (a “introdução” do conto), de

escrita minuciosa e direta, teríamos uma espécie de hegemonia do superego do texto. O

superego refletiria a internalização de normas culturais, ensinadas primordialmente

pelos pais, ou por aqueles que assumirem o lugar da instituição familiar, pessoas eleitas

pelo sujeito como modelos ideais. Ao almejar a perfeição, o superego consistiria na

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porção organizada e majoritariamente consciente da personalidade, incluindo os ideais

egoicos do sujeito, suas metas espirituais e sua consciência. Trata-se de uma instância

censora por excelência, que critica e proíbe impulsos, fantasias, sentimentos e ações.

Em contraposição ao id, que desejaria uma autogratificação instantânea, o

superego trabalharia lutando por agir de maneira socialmente adequada. Ao controlar

nosso senso moral e, como consequência, a elaboração e manutenção de um sentimento

de culpa, o superego possibilitaria ao sujeito um ajuste à sociedade a partir de ações

coletivamente aceitas e amparadas. O pensamento freudiano aponta o superego como

uma internalização simbólica da figura paterna castradora, capaz de preservar o senso

de moralidade e sublinhar a rejeição a tabus:

O superego retém o caráter do pai, enquanto que, quanto mais poderoso o complexo de

Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do

ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a

dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência ou, talvez, de um

sentimento inconsciente de culpa (FREUD 1976).

O segundo trecho do conto, “Sonho com Tramataia”, centrado no sonho do

narrador com o que poderia ter sido Tramataia e lá havido, avizinha-se da dimensão do

ego freudiano. Freud assim o enxerga:

Como criatura fronteiriça, o ego tenta efetuar a mediação entre o mundo e o id, tornar o

id dócil ao mundo e, por meio de sua atividade muscular, fazer o mundo coincidir com

os desejos do id. [...] Sempre que possível, tenta permanecer em bons termos com o id;

veste as ordens inconscientes do id com suas racionalizações pré-conscientes; finge que

o id está mostrando obediência às admonições da realidade, mesmo quando, de fato,

aquele permanece obstinado e inflexível; disfarça os conflitos do id com a realidade e,

se possível, também os seus conflitos com o superego (FREUD 1976).

O ego operaria de acordo com o princípio da realidade, mecanismo regulador

que postergaria a necessidade de prazer imediato do sujeito para que este pudesse

efetivamente atuar no mundo. O ego engendraria a parcela da estrutura da personalidade

responsável pelas funções executivas, perceptivas, defensivas e intelecto-cognitivas.

Logo, a percepção consciente residiria no ego – embora nem todas as operações do

mesmo sejam conscientes. O ego encerraria um senso de próprio, e delimitaria, mais

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especificamente, funções como o julgamento, a tolerância, o controle, o planejamento, a

síntese de informações, o funcionamento intelectual e a memória. Ajudando o sujeito a

organizar pensamentos e emprestar sentido a eles e ao mundo circundante, o ego

revestir-se-ia de razão, ao passo que o id representaria as paixões.

Freud assinala o ego como responsável por mediar os embates e tentar balancear

as potências do mundo externo, do superego e do id, o que muitas vezes o levaria a

partir-se em crises agudas de ansiedade: ansiedade realista em relação ao mundo

externo; ansiedade moral acerca do superego; e ansiedade neurótica quanto às forças das

paixões no id. Embora o ego tenda a ceder aos impulsos do id, este movimento

normalmente viria acompanhado por um sentimento de culpa, ansiedade e inferioridade,

provenientes do superego, como forma de punição. Para superar este obstáculo, a

instância do ego faria uso de mecanismos de defesa, não utilizados de maneira direta ou

consciente, mas como solução para o conflito entre o comportamento ditado pelo id e

aquele assentado por normas sociais, morais e tabus.

O terceiro fragmento do conto, em que o narrador revela que a vila foi

abandonada e se tornou uma cidade fantasma, vincular-se-ia ao conceito freudiano de

id, porção desorganizada da estrutura da personalidade que contém os impulsos básicos

e instintivos do ser humano. Único componente da personalidade presente desde o

nascimento, responsável por formular os desejos presentes desde este momento, o id

seria a fonte de nossas necessidades corporais, vontades e impulsos, particularmente os

de cunho sexual e/ou agressivo. Operaria de acordo com o princípio do prazer, força

psíquica que motivaria a tendência de procurar gratificação imediata, buscando evitar a

dor e o não prazer. Nesta dimensão encontrar-se-ia a libido, fonte primária de força

instintiva que não responde às demandas da realidade. Em matéria de desenvolvimento

individual, o id precederia o ego, ignorando julgamentos de valor, princípios morais, e

instituindo-se como origem de uma motivação de criação/destruição. Além de trazer

instintos de vida, o id também seria a morada dos desejos mórbidos, do instinto de

destruição que agiria contra o mundo externo por meio da agressividade.

Logo, a vila de Tramataia finca-se na narrativa como portadora de uma série de

enigmas, encerrando possibilidades e delírios vários, o que a leva a constituir-se como

espécie de portal para outra dimensão, terra prometida em que o real esbarra no

imaginário, o palpável, perfeitamente cabível dentro da razão humana, expande-se,

metamorfoseia-se e, nesse novo estado, logra atingir o sobrenatural.

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O nome Tramataia provoca a grande dúvida, conforme atesta o primeiro

parágrafo do último trecho, em que o narrador pergunta: “De onde teria vindo esse

nome? O que significa? Perguntei a muita gente entendida – que não me soube

responder – que relação tem essa palavra com a linguagem dos índios que ocupam, há

tantos anos, várias localidades da Baía: Mataracá, São Miguel, São Francisco.” O nome,

como já nos mostra Saramago em Memorial do convento, Todos os nomes e Ensaio

sobre a cegueira,2 por oposição, é parte relevante da identidade. Tramataia, vale dizer, é

2 Vale destacar, aliás, em relação a Ensaio sobre a cegueira, que a ausência de nomes denota uma pré-

verbalidade associada a um primitivismo feroz, característica que parece permear o livro. O romance de

Saramago subverte a ordem medieval do inferno lendário, da ordem do desconhecido, ao trazer o caos e

as trevas para o ambiente citadino, urbano, conhecido e próximo de todos. Em última análise, ele afirma

que o inferno é aqui e agora; o inferno somos nós.

Elaborado como livro sujo, que sublinha a cada momento a força irreprimível do odor, sensorial, da

animalidade do homem, Ensaio sobre a cegueira explicita a vinculação entre a ideia de civilização e o

sentido da visão. A mudança de condição antropológica imposta pela passagem dos homens de seres

quadrúpedes a bípedes – uma alteração da ordem natural – confunde-se com o início da civilização. Nos

quadrúpedes, rastejantes, guiados pelos cheiros, o sentido privilegiado é o olfato; nos bípedes, eretos,

orientados pelo olhar, é a visão o sentido proeminente. O triunfo da visão, pois, reflete a entrada na

civilização. O homem bípede elimina as excreções como busca pela limpeza – não a limpeza como

conceito tal como conhecemos hoje –, passando a segregar, pela civilização, o excretado do limpo,

estruturado. A limpeza constitui-se, pois, como processo de separação civilizatória. É dessa limpeza –

vista como último código de civilidade – que Saramago se afasta ao trilhar um processo de reversão, em

certo grau naturalista. O banho, nos episódios do banho na cega e do banho de chuva, é lustral, quase

batismal, e atua como renovação do conceito civilizatório. Saramago traz um outro naturalismo ao

esmiuçar o feio que não faz distinção de classe social, é próprio ao homem, que, afinal, não está sob o

código de civilidade.

Segundo Márcio Seligmann-Silva (2005), a hospitalidade, ao se exacerbar, gera seu inverso, a hostilidade

(não à toa as palavras partilham a mesma raiz etimológica), na qual tudo que se rejeita, que se põe fora, é

abjeto. Assim, abjeto é o recusado, o ejetado, expelido – vomitado, conforme Julia Kristeva (1982). Se o

sublime deriva da autopreservação, o abjeto ilumina o humano fragmentado; é ele que expõe os estados

frágeis pelos quais o homem transita, numa espécie de território animal. Como elemento originário, o

abjeto representa a margem do sujeito pré-verbal, pré-civilização. Nesse sentido, abjeto e sublime são

conceitos complementares: enquanto o primeiro refere-se a uma originalidade radical, o segundo erige-se

como maquiagem, continuação, superposição ao primeiro. Para que um dos conceitos possa emergir

plenamente, é indispensável que o outro lhe ofereça resistência, fazendo-lhe face e servindo-lhe como

contraponto. Sendo assim, o abjeto está sempre prestes a irromper no sublime e espedaçar o equilíbrio

que este proporciona.

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um pequeno povoado, muito próximo à Baía da Traição, na Paraíba, terras

contempladas pelas pesquisas empreendidas pelo autor na época de sua participação na

Comissão Geodésica do Recife. Nos anos 1920, Cardozo – engenheiro-calculista,

topógrafo – foi nomeado pela Comissão para elaborar uma série de levantamentos

topográficos na região, fato que o levou a conhecer muitas áreas do interior de

Pernambuco, Alagoas e Paraíba, mais especificamente o Nordeste deste estado, onde se

localizam a Baía da Traição e a aldeia de Tramataia.

O abjeto ganhou considerável espaço na contemporaneidade a partir do advento do

naturalismo/positivismo do século XIX, ideologia intimamente vinculada às revoluções industriais do

período; foi no bojo dessas transformações que nasceu tal corrente de pensamento, separando sublime e

abjeto – e geralmente reservando este aos pobres, desviantes. Num mundo industrial, não havia mais a

possibilidade de belezas clássicas, o que fomenta o surgimento de tais correntes de pensamento a fim de

dar conta dos fenômenos que não mais se encaixavam em definições e padrões tradicionais, clássicos.

A partir da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX, o conceito de feio vincula-se

frequentemente à representação citadina, burguesa por excelência. O conceito de civilização nasce com a

supremacia do ethos burguês, embora já com a burguesia consolidada houvesse extrema pobreza e laivos

de “não civilidade”. O ultraburguês século XIX comporta, pois, uma série de regras e manuais de modos

e civilidade e, simultaneamente, inúmeras representações do horror, do feio – vide os freak shows, tão

populares nessa época. Em oposição à “depravação” característica dos costumes da aristocracia, a

burguesia parece alimentar-se de um regime de contenção, reprimindo a nostalgia desse tom aristocrático,

libertino, das cortes e dos nobres – algo que Freud trabalhará adiante, desmascarando o conceito de

civilidade como uma criação da sociedade burguesa. Os manuais de civilidade apenas mostram que a

civilização não é o estado natural das coisas (ideia que perpassa toda a narrativa de Ensaio sobre a

cegueira, que aposta na animalidade inata do humano), sendo a civilidade, consequentemente, um

conceito forjado.

No romance de Saramago a imbricação entre sublime e abjeto dá-se por completo, visto que o primeiro

continuamente se opõe ao segundo, num jogo especular em que se confrontam esperança e horror,

humanidade e caos. A reflexão, em Ensaio sobre a cegueira, abarca o sublime e o abjeto, contemplando a

totalidade do homem; desse modo, não deve ser caracterizada – como tantas vezes ocorre – como

pessimista, mas simplesmente como humanista. A mecânica da epígrafe (“Se podes olhar, vê. Se podes

ver, repara”, SARAMAGO, 1995) estende-se a toda a narrativa: a contemplação deve ser realizada com

perturbação, senão corre-se o risco de incorrer em passividade. Saramago constrói sua narrativa e seu

narrador de modo a evitar que esta se torne objeto apenas de contemplação e que o narrador seja

meramente enunciativo; longe disso, a enunciação é participativa e a narrativa não tenta ser estética –

afinal, quando se estetiza somente se contempla. Ensaio sobre a cegueira destaca-se como obra de arte,

sublime, na qual o autor injeta o fator abjeto.

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Voltando à narrativa, no primeiro trecho – que serve de introdução ao relato

proposto pelo narrador – o conto inicia-se de modo marcante: “Enfim cheguei a

Tramataia, pequeno e antigo povoado hoje deserto, esquecido à margem esquerda do

Mamanguape, precisamente na curva que este rio faz se dirigindo para a sua foz na praia

de Coqueirinhos.” “Enfim cheguei a Tramataia”; o “enfim” tão maliciosamente

empregado introduz a ideia de uma trajetória anterior, desgastante, como se o narrador

viesse de um longo percurso prévio, cansativo, e pudesse finalmente se encontrar com o

agora que tanto ansiava, posto que Tramataia se delineia como nó que une

indelevelmente presente e passado. Tramataia é portal entre dois mundos, conjuga o ido

e o vindouro, como o narrador, ele próprio oriundo de um antes, testemunha ao chegar à

vila após exaustivo percorrer de caminhos: “Era região por mim conhecida de

passagem, já a tinha visto, com seus sete ou oito mocambos vazios, e inteiramente

inútil, abandonada a sua casa de farinha. Vários coqueiros, sempre carregados,

permaneciam ainda entre os casebres, dando ao conjunto um ar de tempo saudoso e

longínquo.” É o encontro do narrador com o Outro borgiano – Outro que é,

simultaneamente, o próprio eu –, em um ponto que concentra em si sonho e não sonho,

passado e presente, tempo-espaço condensados neste nervo cósmico – à semelhança de

Tramataia, que parece desdobrar-se em dimensões variadas, cada qual real e corpórea à

sua maneira. Trata-se de um outro-estrela, cuja sombra projeta-se muito além da fonte

emissora de luminosidade, muito além do finamento de seu feixe irradiante, e que atinge

o sujeito e se faz observar como dobra na costura espaço-temporal. Ele é a própria mina

de luz, carrega em si uma herança transmitida por alguém que já não pode estar, mas

que continua estando em uma projeção infinitamente multiplicável. Como se

percorrendo trajetórias insondáveis tudo se pudesse transformar, noções pudessem ser

deformadas, tempos encurtados, distâncias anuladas:

Tive, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de

fadiga) de já ter vivenciado aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se

sentara. [...]

Aproximei-me e disse-lhe:

– O senhor é uruguaio ou argentino?

– Argentino, mas desde o ano de catorze vivo em Genebra – foi a resposta.

Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe:

– No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?

Respondeu-me que sim.

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– Nesse caso – disse-lhe resolutamente –, o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu

também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.

– Não – respondeu-me com minha própria voz um pouco distante.

Depois de um tempo, insistiu:

– Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é

que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.

[...] Meditei muito sobre esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto

a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim

que pôde esquecer-me; eu conversei com ele na vigília e ainda me atormenta a

lembrança (BORGES 2004).

Há, reforçada, a noção de tempo transcorrido, da reminiscência das coisas: a casa

de farinha como imagem potente, energia viva de Tramataia, seus coqueiros, sua

topografia, sua geografia muito particular, desdobrada na descrição em inúmeros

trechos desenovelados pelo narrador. Os “sete ou oito mocambos vazios” reavivam a

lembrança de um vilarejo outrora senhor de um corpo, volume, ritmo, som, agora

relegado a ser uma aldeia fantasma, âncora de um passado-apagamento e um presente-

chave para apreender o total abandono desse mesmo passado e, concomitantemente,

sugerir motivos, recriações e possibilidades para a vila.

Adiante, no segundo parágrafo, lemos: “Tramataia. Esse povoado pequeno e

morto me surpreendeu vivamente; pelas imagens de vida que revelava; pelas paisagens

esquecidas, extintas muito antes de prosperar.” Temos aqui, posta de maneira instigante,

a dualidade vida / morte: o povoado pequeno e morto cuja vida pretérita descortina-se

por meio de imagens vigorosas, coloridas, atraentes, que sugerem ao narrador a ideia de

uma descarga antes constante de energia, de efusão, presente nos mocambos, na casa de

farinha, na paisagem, nos coqueiros sempre carregados. Simultaneamente, porém, tal

robustez parece esmaecer – está impressa em um passado ainda muito próximo, que, no

entanto, assume “um ar de tempo saudoso e longínquo”, olvida-se e, nesse

esquecimento, esfalece, distancia-se de um prosperar para o presente.

A natureza local, possante, bela, sinônimo de vida forte, de um girar contínuo e

irreprimível, reflete-se no “rio para pescar”, nos “mocambos para habitar”, nos

coqueiros, com sua presença que alivia e consola. Naquela povoação, a presença de tais

elementos faz da vida algo possível e necessário. O comércio, representado pela casa de

farinha – que abrigava o trabalho dos praieiros, habitantes locais – e sua produção,

sustentava o dia a dia dos simples aldeões. Logo, a vida, em seu fluxo constante,

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contaminava Tramataia, animava-a, vila cheia de movimento criativo, incansável.

Todavia, pouco a seguir, o narrador relata: “Quando a vi, já estava morta; nascida e

morta.” Temos, recuperada neste trecho, a tensão vida / morte, entidades que numa

relação simbiótica se complementam. A vida – nascida, soberana, ativa, capaz de, pela

fertilidade da terra, garantir aos locais o sumo mesmo de sua existência – é logo à frente

vista como morta pelo narrador, quando ele, a caminho do sítio do velho Gersino, anda

sobre a planície, alagada pelo rio nas grandes marés, e não mais reconhece a paisagem

anterior; ali há somente abandono e desconsolo.

Numa perspectiva bachelardiana – e aqui em referência específica a A

psicanálise do fogo –, chegaríamos ao extremo de supor que Cardozo talvez seja um

sonhador do fogo, tal o embate/acoplamento proposto entre vida e morte. Muito afeito a

conjugar, em seus contos, tensões permanentes entre forças diametralmente opostas,

mas intimamente complementares, Cardozo parece afeiçoar-se ao fogo como imagem

dileta de um devir contínuo, marca, a propósito, fundadora de sua escritura, aliada,

como ele, à fractalidade.

Fogo que fere, aquece, conforta, agrega, arrasa, que nutre – tantos e tão distintos

são os papéis a que o fogo se presta e as possibilidades que oferece. O elemento que

exige mais cautela e habilidade para ser controlado e utilizado fecundamente é também

o mais volúvel. Apesar de sua robustez avassaladora, com extrema facilidade se

extingue, impulso de megaproporções que passa, num rastro de transformação profunda

e irreversível, e acaba – quase como se nunca fora. O único dos elementos dependente

de alimento e combustível externos, o fogo é, pois, detentor da negação de si mesmo.

Encerra potencialidades de bem e mal em intensidade equivalente, num estender-se

quase humano, senhor e agente das virtudes mais belas e dos vícios mais torpes.

O sonhador do fogo é adepto de alterações radicais, categóricas, ansiando uma

transcendência ao mesmo tempo em que rejeita abandonar a humanidade de sua volúpia

– a dialética básica do fogo remete precisamente a um ponto de confluência de

valorações opostas em permanente tensão equilibrada. “[...] o fogo, verdadeiro proteu da

valorização, passa dos mais altos valores metafísicos aos mais manifestamente

utilitários. É, de fato, o princípio ativo fundamental que resume todas as ações da

natureza [...] em certos sonhos cosmológicos, um átomo de fogo é suficiente para

incendiar um mundo” (BACHELARD 2012). Ele deixa-se à mutabilidade das coisas,

num incessante gerar-se/regenerar-se; almeja a transcendência enquanto se nega a

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descartar a veemência de sua natureza humana. A alma é humana e, por isso, encontra-

se atada ao desejo terreno do corpo, à sua inclinação – cambiante.

Enquanto exerce sua força o sonhador do fogo conserva a imperfeição. Assim é

que a imaginação do fogo é também a mais íntima do subterrâneo do homem, travando

sob a forma de representação artística seus embates mais ásperos, abraçando luz e

sombra com o mesmo ardor ao percebê-los igualmente indispensáveis à arte e

existência. Tal movimento de autoconhecimento e aceitação é melhor traduzido pelo

princípio da poética do fogo, segundo o qual somente por meio da completa

desintegração pelas chamas é possível alcançar o renascimento, a ressurreição – fênix

que retorna e retorna.

O princípio da poética do fogo traria a interação entre dois complexos: o de

Empédocles e o de Novalis. O primeiro configuraria um aspecto cósmico, geral, de

transmutação do fogo, enxergando vida e morte como momentos especulares. Apenas a

aniquilação total pelo fogo poderia gerar a certeza de uma vida plena despida de

circunstâncias mundanas. Para Empédocles, a morte seria a única maneira de exercer-se

totalmente e de unir-se de modo absoluto à inteligência maior do cosmos, acionando o

que houver de poético em si. Por outro lado, a vida terrena estaria sempre carregada de

amarras e imposições, restrição última que não permitiria ao homem desdobrar-se por

completo. A experiência vivida terrenamente surgiria perpassada por limites, imbuída

de interdições – a vida habitual, tão terra a terra, emerge como cárcere que restringiria

ao homem a possibilidade de ser – inteiramente.

Por conseguinte, unicamente pela coragem de entregar-se à morte poder-se-ia

atingir a plenitude da vida. Para tudo ganhar é imprescindível que tudo se arrisque – e,

numa mão triunfante e zombeteira, por vezes perder.

Assim trabalha nosso devaneio, sábio e filosófico: acentua todas as forças, procura o

absoluto tanto na vida quanto na morte. Já que é preciso desaparecer, já que o instinto

da morte se impõe um dia à vida mais exuberante, desapareçamos e morramos por

completo. Destruamos o fogo de nossa vida por um superfogo, um superfogo sobre-

humano, sem chamas nem cinzas, que levará o nada ao próprio coração do ser

(BACHELARD 2012).

Contempla-se o abandono, pois, como robustecimento – ou, no sentido contrário, a

renovação como renúncia – do ímpeto vital. Descarta-se parte de si porque este “si”

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transmutou-se, abriu-se para uma nova vida. Urge transcender-se terrenamente,

extinguindo-se voluntariamente – consumindo-se – para renascer.

O segundo, o complexo de Novalis, conteria um aspecto mais antropocêntrico,

particular, explorando diretamente a dimensão do homem e suas relações com seus

semelhantes. Sintetizaria a necessidade de dominar o fogo e produzi-lo a partir da

fricção, e a atração pela luz – domável, partilhável. A conquista pré-histórica do fogo

pela fricção estaria fundamentada, de acordo com Bachelard, no exemplo outorgado

pelas relações íntimas humanas. Desta forma, o fogo se sexualiza e, consequentemente,

se humaniza. O complexo de Novalis caracterizar-se-ia ainda por uma percepção

intimista da luz e do fogo, para além de princípios e limites estabelecidos pelo cânone

científico tradicional. Baseando-se na satisfação e felicidade causadas pela luz e pelo

calor, confere a este o caráter de uma posse que deve ser cuidadosamente preservada e

repartida apenas com um ser eleito merecedor desta doação, comunhão. A luz atinge

superfícies, mas somente o calor íntimo (calidum innatum) é capaz de alcançar o fundo

dos seres, desejo contínuo do sonhador do fogo.

Da interação entres ambos os complexos depreende-se não poder haver

transcendência e brilho da alma (luz) sem materialidade e calor do corpo (fogo). Aqui, a

luz deixa de ser notada como algo celestial (alheia ao que há de mais humano), à parte,

para transformar-se no agente dinâmico e passional de purificação. A alma é humana e

está sujeita aos desejos terrenos do corpo, enquanto este se purifica pelo anseio

flamejante de elevação da alma. Luz e fogo são, portanto, interdependentes e

formadores do mesmo ser, no sentido mesmo em que Novalis, citado por Bachelard,

diz: “Licht macht Feuer”, “É a luz que faz o fogo” (NOVALIS apud BACHELARD

1989).

Presente no nicho do Divino Amor de “Voltando de Marcação” e “O rugido” e

também em “Brassávola” e “Minha tia Dondon”, como veremos adiante, a imagem

primordial da chama da vela traduz por excelência os princípios do fogo: em sua

verticalidade viva encerra de um só fôlego o brilho luminoso da alma (aspecto

espiritual) e o renascer incandescente do corpo (aspecto material), ao queimar a cera que

se transforma e ressurge sob nova aparência. A chama da vela, que bruxuleia e

persevera, é ainda a eterna luta entre luz e escuridão, presença e ausência, vida e morte,

indissolúveis e intercambiantes.

Dessa forma, o maior desafio do sonhador do fogo consistiria na recusa em

sujeitar-se à banalidade de itinerários horizontais e imutáveis, rechaçando

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medrosamente possibilidade de regeneração e mudança, preferindo o conforto do

contentamento mesquinho. O sonhador há de lutar contra rotinas eficazes que repelem,

paralisadas, qualquer vislumbre de transformação. A conformidade é confortável e

pasmada. O homem cardoziano deve, pelo contrário, atirar-se às chamas das

possibilidades ígneas, reacender a vontade de surpreender-se, explorar, perder-se e

achar-se em experiências novas, vivências múltiplas.

No sexto parágrafo, o narrador retoma o mote que abre o conto: “Enfim cheguei

a Tramataia.” Vindo de um longo passado, de uma trajetória fatigante, de uma vida que

não mais existe, o narrador finalmente chega a Tramataia, “pequeno e antigo povoado

hoje deserto”. Chega a Tramataia não de passagem, não para apreciar a vida que ali se

tinha esvaído, mas para se demorar, para trabalhar na fenecida povoação, efetuar o

levantamento topográfico “de uma grande ilha fluvial limitada pela margem do rio e um

seu afluente”, para conhecer os entornos, para se inteirar da geografia local e, a partir

dela, formular sua análise técnica.

Os parágrafos seguintes trilham exatamente o percurso palmilhado pelo

narrador, em que comenta, com funda precisão e tom absolutamente desafetado, como

se deu o processo de levantamento do contorno da ilha, o trabalho específico por ele

desempenhado. Intercala tais observações com descrições da geografia e da flora da

região, mencionando salinas, marés, margens, afluentes, manguezais, grossos troncos,

árvores, baías, rios: as palavras vestem-se, elas mesmas, da natureza local e erigem

diante dos olhos do leitor vistoso cenário. Sobrepuja deveras a incontida beleza da

vegetação ao redor de Tramataia, verde irrefreável em tempos idos e mesmo hoje,

conquanto bruto, entranhado de força vital – natureza que é capaz de, num átimo,

romper e destruir o meticulosamente planejado. Como de hábito nos contos

cardozianos, a natureza sobressai, triunfa sobre a lógica normativa estabelecida pelo

homem. Com suas ilhas, argilas, areias e pedras, como bem nos conta o narrador de

Cardozo, a natureza sempre há de imperar; ela é início e fim (não à toa, é por causa

dessa mesma natureza que o narrador é levado a Tramataia).

Depois de labutar arduamente, cruzar com “estranhas jazidas”, se aplicar num

trabalho braçal, mecânico e duro, o narrador bebe “água de chuva contida dentro das

folhas de pequenos gravatás” (a tal água de chincho que Cardozo pretendia ser o nome

do apanhado de seus doze contos); como uma espécie de poção encantada, a água o faz

relaxar, o embala e o introduz a um momento de descanso. Enquanto aguarda, bebe

também alguns cocos, doces portadores de alívio e entrega; nesse momento de

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autoabandono, de vacância funcional, de interrupção no trabalho topográfico, a vastidão

do cenário local engolfa-o completamente. Ali, naquele exato instante, os mistérios do

meio circundante acabam por vir à tona, pois o narrador, já repousado e não mais em

alerta, decide entrar na casa de farinha e percebe que a mesma, um pouco desolada, está

abandonada, sem contudo conservar nenhum sinal de incêndio nem destruição por parte

de bandidos ou de qualquer outro tipo de agressão externa. A casa de farinha, que

durante tanto tempo sustentara os praieiros e representara a vitória da civilização, agora

permanece inteiramente deserta, arruinada, o que leva o narrador a se perguntar o

porquê de tal solidão, de o tempo ali parecer tão solene, parado, insulado da vida

anterior.

No final do primeiro trecho de Tramataia, introdutório, povoado pelas

impressões do narrador a respeito do povoado e do trabalho técnico, o mesmo discorre

sobre como, após beber a água de coco, descansar e pedir a um ajudante para procurar o

cavalo para o regresso à Baía, ao percorrer a casa de farinha abandonada e os casebres

da aldeia – os “sete ou oito mocambos vazios” aludidos no primeiro parágrafo –,

verifica que o tempo ali se sedimentara e que a vida, antes tão pulsante, desbotara.

Somente pesados utensílios, difíceis de serem transportados, continuam – e é nessa

absoluta imobilidade de objetos que a vida perdura, visto que, embora os casebres

estejam há muito desocupados, tais utensílios guardam últimas marcas de uso,

atividade, cicatrizes testemunhas dessa vida.

Como em outros contos do autor, o homem depara-se com o insólito, o

inexplicável. A vida, antes sinônimo da certeza da razão, do previsível, rende-se

irremediavelmente ao fortuito, aleatório, e a grande levada do tempo, que não obedece

ao ritmo do homem, impõe-se em recônditos.

O trecho subsequente, “Sonho com Tramataia”, inaugura-se com o relato do

narrador acerca do sonho com o vilarejo, percorrido e mais estreitamente conhecido

naquele dia pela manhã e pela tarde, ao levar a cabo a tarefa de levantamento

topográfico. Na mesma noite o narrador sonha com a vida de outrora em Tramataia,

pintando um rico quadro: a vila estava animada de gente, os praieiros moravam nos

mocambos e casebres, e havia grande agitação e beleza no plantar mandioca, fazer

farinha, impulsionar a economia do lugar. A casa de farinha, visitada abandonada, inerte

no tempo, funcionava de novo, gerando grande afã, e todas as mulheres, atarefadas,

cantando, descascavam mandioca; a casa de farinha produzia sem cessar, a partir da

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parte branca das raízes da mandioca, riqueza maior do vilarejo. Ali, na azáfama

colossal, laborando intensamente, a cidade renascia.

No sonho, o trabalho é bom, abrange empenho, interesse, devoção. A vida

reconstituída na fantasia do narrador é recriada por meio do trabalho dos homens, que

desse modo a revigoram. Em “Tramataia” (a exemplo do que ocorre em outros contos

de Cardozo, como “Na estação”, “Perdidos nos tabuleiros” e “Minha tia Dondon”), o

sono e o inerente elemento onírico resgatam a força vital primitiva, retiram-na de um

ritmo cotidiano, “natural”, e realçam seu verdadeiro alcance. É a violência da natureza

em estado bruto que se mostra afinal no sonho, sem peias. Conforme afirma o próprio

narrador: “Enleado naquela visão ilusória, ouvia também um canto que vinha das vozes

das mulheres, ocupadas em tirar a casca da mandioca.” Trata-se, portanto, de mulheres

quase sirenas, que cantam e chamam o narrador para seu mundo de beleza – talvez

ilusório de acordo com lógica mais ortodoxa –, mas, naquele contexto, arrebatador,

fascinante, desamarrado.

A vida tal qual imaginada pelo narrador aparece, nítida, no sonho: vida de

labuta, dura, da gente que se empenha na casa de farinha, na pesca, nos manguezais,

tentando assim garantir seu sustento, mas também querida e forte, matizada de danças,

cantos, cocos-de-roda (como em “Perdidos nos tabuleiros”), do sapateado dos homens,

grandes emboladas. Aqui, a vida é sadia, farta; manifesta-se completamente

desvinculada do atual, alarga-se e enfim adere ao sonho, revestindo-o de potência e

imbuindo-o do caráter de (re)criador de um passado.

Na penúltima parcela do conto, “O segredo de Tramataia”, o narrador se inquire

a respeito do grande mistério do povoado. O que acontecera àquela “pequena

civilização”, àquele vilarejo perdido nos confins da Paraíba, perto das margens do

Mamanguape? Como tanta vida – a casa de farinha, os mocambos, casebres, as ruelas –

se desfez num piscar de olhos? O tempo passara e praticamente não deixara vestígios de

permanência humana, o que leva o narrador cardoziano a se questionar acerca do tempo

de morte do vilarejo: como a rotina da aldeia, agitada pela atividade econômica que a

mantinha, “assim tão de súbito” evanescera, “desde que não houve incêndio, nem

destruição por assalto de forasteiros”, nenhum tipo de violência externa, roubo, nada

que justificasse o presente estado de triste devastação da vila de Tramataia? Não

obstante, “os mocambos, cobertos de palhas de coqueiro, mantinham-se quase intactos,

sem indícios de destruição pelo fogo ou pela violência”. Não há respostas para as

perguntas.

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Aparentemente, a vida ali se desenrolara da forma mais ou menos usual para um

aldeamento de indígenas no interior do Brasil. No entanto, permanecem ignorados pelo

narrador os motivos pelos quais os habitantes do vilarejo deixaram seus casebres,

mocambos, forçados ou não por circunstâncias misteriosas. É justamente o fator

enigmático – a ausência de respostas “cabíveis” – que faz com que, num vislumbre, o

narrador perceba algo de influência sobrenatural, sorte de intervenção divina, como

explicita no quarto parágrafo do trecho: “Seria como se uma voz viesse do alto, uma

ordem divina, à maneira dos antigos avisos aos homens e às cidades atingidas pela

maldição de Deus.”

Numa espécie de emulação tropical das pragas do Egito, o narrador depara-se

com um quadro perturbador de abandono, de uma natureza enraivecida – posto que

desprezada – que engole, ela própria, a civilização antes elaborada, premeditada, pelo

homem. Mais uma vez na prosa de Cardozo, a natureza estilhaça a ordem lógica,

parâmetros já pensados, calculados, equilibrados e postos em prática pelo homem. Ao

ser confrontada, rompe os limites que lhe são convencionalmente estabelecidos, para,

endoidecida, pôr abaixo tudo aquilo que o homem construiu. Não é sem perplexidade

que o narrador encara o abandono ao tempo de uma cidadela antes tão bem

encaminhada e vivaz.

Como o mesmo aventa no último parágrafo do segmento, o “segredo de

Tramataia talvez estivesse contido nas grandes mangueiras distantes e altas, onde

voavam bandos de garças brancas, pescando peixes do rio para devorar”; a natureza

local, testemunha ela própria da razão pela qual a vila foi esvaziada, guarda o mistério

de Tramataia. Vilarejo abandonado de forma totalmente ininteligível para o narrador,

Tramataia é uma quase lenda, conectando-se a uma origem sobrenatural, que

comandaria o lugar e sua história, como se os habitantes tivessem tudo largado em um

único momento – Pompeia encerrada no interior da Paraíba –, deixando seus afazeres de

lado, tarefas, prendas domésticas, para repentinamente comparecerem a uma procissão e

serem levados num rito absolutamente mágico, inebriante, do qual retornariam dali a

anos. Fixa no tempo, a aldeia preserva resquícios de suas vidas, resgatadas por vontade

superior – divina – para regressarem lá adiante.

No trecho derradeiro do conto, o nome Tramataia surge como “também objeto

de seu mistério”, título que nada significa, tudo significa, cala um grande mistério

indecifrável para o narrador, que, diante da vila, não encontra motivos para seu nome,

seu desconsolo. Nas mesmas áreas da Baía existem Mataracá, São Miguel, São

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Francisco, localidades todas com nome palpável, compreensível pelo raciocínio

humano, mas não Tramataia, que conserva, no nome, a chave de um enigma que

persiste e perturba. Todavia, a especulação permanece, pois, assim como o nome, a vida

em Tramataia parece fugir a qualquer tipo de classificação, de ordenamento e de

apreensão.

Em “Tramataia”, Cardozo esquadrinha a profunda tensão entre vivido e sonhado

– mas ambos experimentados, vivências intensas. Tal oposição surge igualmente num

célebre poema de Cardozo, não coincidentemente dedicado ao vilarejo, “Recordações

de Tramataia”, em que relembra os momentos passados no lugar, garças brancas,

bandos de jandaias, o desejo de gente na casa de farinha e nos mocambos vazios.

Eu vi nascer as luas fictícias

Que fazem surgir no espaço a curva das marés.

Garças brancas voavam sobre os altos mangues de Tramataia.

Bandos de jandaias passavam sobre coqueiros doidos

De Tramataia.

E havia um desejo de gente na casa de farinha e nos mocambos vazios de Tramataia

Todavia, todavia!

Eu gostava de olhar as nuvens grandes, brancas e sólidas.

Eu tinha o encanto esportivo de nadar e de dormir.

Se eu morresse agora,

Se eu morresse precisamente

Neste momento,

Duas boas lembranças levaria:

A visão do mar do alto da Misericórdia de Olinda ao nascer do verão.

E a saudade de Josefa,

A pequena namorada do meu amigo de Tramataia (CARDOZO 2008).

Tramataia: a paisagem célere e infinita a se desdobrar diante de seus olhos,

como, se morresse naquele exato instante, a boa lembrança que levaria, a grande

lembrança.

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6.O rugido

Como em grande parte dos contos de Cardozo, em “O rugido” sobeja o clima de

vivência pessoal, muito dado pela narrativa construída em primeira pessoa, como

também pelo estabelecimento de uma atmosfera formal e de conteúdo em que avulta a

sugestão de se tratar de um acontecimento ocorrido ao autor Cardozo. Na maioria dos

doze contos predomina o tom de relato, de simples e direto contar, que, no entanto,

tende a ser quebrado pela irrupção do elemento estranho, beirando o inverossímil, que

desarruma o fluxo ordeiro e mais ou menos calculável da narrativa até então tecida em

bases muito ligadas à crônica e que lhe emprestam um caráter peculiar.

“O rugido” é composto pela sequência de três fragmentos narrados ao longo de

uma conversa mera, que se desenrola de forma fluente e previsível, mas que traz algo de

desconforto ao apresentar, a partir do canto insólito de um galo, fragmentos recheados

do fator lúgubre, desconcertante.

No primeiro parágrafo o narrador comenta se tratar conversa corriqueira e

despretensiosa. O próprio “Estávamos”, primeira palavra do conto, já confere um

sentido de continuidade, como se houvesse um preâmbulo, como se aquele falar

desafetado e rotineiro entre amigos na sala de jantar já se desenrolasse há bastante

tempo. Elemento-chave no conto, a sala de jantar é onde se dão as conversas, com uso

privilegiado para refeições.

No terceiro parágrafo, a quebra no tom ordinário ocorre com a menção a

ameaças por parte dos ocupantes das terras nas quais trabalham o narrador e seus

camaradas, Holanda e Alencar, a que estavam sujeitos pelo fato de adentrarem terrenos

devolutos e ocupados por antigos índios que temiam, com a demarcação do território,

que aquelas terras fossem devolvidas a famílias influentes da região. O assédio já

estabelece um ambiente de desconfiança e desarranjo.

A ameaça é aqui tratada de forma bastante direta: sob o rótulo de “novidade para

contar”, veicula-se a questão de que os habitantes da aldeia, ciosos de suas terras e

temendo que fazendeiros próximos pudessem invadi-las, findam por acossar os colegas

do narrador, que, em seguida, lhe anunciam que daí em diante trabalhariam “sob a

proteção de guarda-costas”. A revelação é feita na “pequena calçada do Divino Amor,

onde ardia uma luz contínua, de dia e de noite”. A impressão de dia e de noite gera de

antemão uma extrema perturbação e rompe o clima de sobriedade e tranquilidade, pois

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engendra um “ar de preocupação e mistério”. A sensação de perigo iminente prepara o

terreno para o surpreendente que virá em sequência.

Na velha sala de jantar cria-se um lugar de reunião, conversa – e também de

cumplicidade, partilha de confidências, suspeitas. Holanda e Alencar, os “dois

companheiros de casa e de trabalho” do narrador, ali contam as notícias, abordam fatos

cotidianos e trocam ideias. A sala de jantar é vista, por conseguinte, como espaço de

troca, quase místico, como as reuniões ao redor das antigas e lendárias fogueiras em que

se contata o outro mundo ao se contar histórias, em que vêm à tona segredos, dúvidas e

sobressaltos. Não à toa, no quarto parágrafo, o campo semântico prima pelo negativo, o

incerto: há “dúvidas e suspeitas”.

A conversa desenvolve-se na sala, à noite, povoada de segredos e de

questionamentos sobre as ameaças, e engendra um ambiente instável, propício à

germinação do espanto, do medo. O silêncio reinante, pausado pela troca de falas e

ideias, é também quebrado pelos “rumores do mar próximo e o ramalhar dos

coqueiros”. Como um ruído desestabilizador, os sons da natureza, assim como o vento

uivante, provocam temores, parecem mau agouro. Também o silêncio evoca o som do

além, dos mortos, forma de comunicação com o outro, o misterioso.

Proseavam na sala, portanto, o narrador e seus dois assistentes, como de hábito

de modo casual, quando são perturbados pelo cantar do galo, que o narrador diz ouvir

muito longe. O som estilhaça o negrume compacto da noite, reforça-lhe o caráter

sombrio e chacoalha a evolução natural do silêncio. O que causa espanto não é o canto

em si, mas o incomum do horário, ainda muito cedo para que o galo cante. Notável é a

adjetivação especialmente eleita para o canto: “estranho e misterioso”, “isolado e único”

– a essência do canto, por suas características mesmas – marcante, realçada – prende a

atenção, desperta os sentidos, provoca o raciocínio de quem o ouve, e desordena o andar

espontâneo de uma conversa trivial. O canto parte o silêncio da noite fechada e, ao

mesmo tempo, gera outro silêncio – do grupo, da conversa, do desenvolvimento

corrente e inócuo do pensamento, da articulação verbal. Estabelece-se aqui a nauseante

sensação do pesadelo, o medo de elementos irracionais e inescapáveis, traduzida com

maestria por Jorge Luis Borges:

Fechei a porta de meu apartamento e avancei para o elevador. Ia chamá-lo quando um

personagem estranhíssimo ocupou toda a minha atenção. Era tão alto que eu devia ter

entendido que o sonhava. Um gorro cônico aumentava sua estatura. Seu rosto (que não

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cheguei a ver de perfil) tinha um toque de tártaro, ou do que imagino que seja tártaro, e

terminava numa barba negra, que também era cônica. Os olhos me olhavam

provocadores. Vestia um longo sobretudo negro e lustroso cheio de grandes rodelas

brancas. Ia quase até o chão. Talvez desconfiado de que sonhava, ousei perguntar-lhe

não sei em que língua por que estava vestido daquele jeito. Com um sorriso malicioso,

ele desabotoou o sobretudo. Vi que por baixo estava com uma roupa comprida inteiriça

do mesmo material e com as mesmas rodelas brancas, e soube (como se sabem as coisas

nos sonhos) que por baixo havia outra.

Naquele exato momento senti o inconfundível sabor do pesadelo e acordei (BORGES

2010).

O canto, entretanto, dá-se em momento de vigília, o que compete para um

caráter ainda mais assustador. Tal canto os faz “silenciar de repente”. O tom misterioso

e transtornado destaca-se nas palavras selecionadas pelo narrador para demonstrar o

desconforto perante aquele canto tão pouco usual; temos, pois, “surpresa”, “almas”,

“coisas fantásticas”, “ilusão”, “magia”. A exemplo da supracitada fogueira em torno da

qual se contam histórias fantásticas, muitas vezes lúgubres, que açulam a imaginação

dos presentes, os três participantes da conversa decidem relatar, cada um a seu turno,

uma história, incitada pelo maligno e inesperado canto do galo.

Com o mental incendiado pelas múltiplas sugestões evocadas naquele canto de

galo, começam seus relatos. Como na Antiguidade, o esquisito canto é encarado como

um mau presságio, anúncio de morte, arauto das trevas, do sinistro. É preciso ressaltar

que tais indícios são constantemente vinculados a animais, pela leitura de suas vísceras

ou por comportamentos extraordinários. O canto do galo “antes da meia-noite” torna-se

forçosamente “sinal de morte”, ensejando a lembrança de evento anterior, em que,

“anunciada pelo canto de um galo”, sucede uma morte bastante misteriosa.

A retomada constante da questão do horário, neste conto em particular, e a

importância que o tempo adquire, mais genericamente, nos contos de Cardozo remetem-

nos ainda à aflição e à relevância que a dimensão adquire para o homem cardoziano. O

pai de Quentin, patriarca dos Compson, parece muito bem pressagiar a fulcralidade do

tema no célebre parágrafo de O som e a fúria, escrito na mesma década em que os

contos paraibanos de Cardozo se passam:

Quando a sombra do caixilho apareceu na cortina era entre sete e oito horas, e portanto

eu estava no tempo de novo, ouvindo o relógio. Era o relógio do meu avô, e quando o

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ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo

desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de

toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais

quanto foi às dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas

para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo

seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse.

Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria

loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios (FAULKNER

2004).

O relógio aqui se reveste de caráter (con)sanguíneo, quase feminino: ao ser

tomado pelo homem, enlaça-o na sua grande roda e passa, ele mesmo, a possuí-lo. Logo

no princípio desse magnífico trecho, Quentin regressa à esfera do tempo ao notar o

relógio, seu labor sonoro incrustando-o numa consciência do mundo, que o abraça e o

devolve à sua condição de homem – finito, mas infinitamente reproduzível. O relógio

acende a chama de seu pesar. Como se o mundo entrasse pelo ouvido, e pelo ouvido se

chegasse a alcançar a inevitabilidade de sua limitação: o som do relógio evoca o

monólogo do pai, que, por sua vez, repassa o que testemunhou do avô. Das mãos do avô

para as mãos do pai e das mãos do pai para as mãos do filho, o relógio relembra ao

homem seu espaço-tempo, uma posição condensada que poderá ser revivida, a cada vez,

na memória. Ele devolve ao homem sua humanidade, o faz simplesmente perceber-se.

Ao ouvir o relógio, o homem passa a estar no tempo, e se percebe peça de uma

engrenagem maior, que o abarca e dele independe para lançar-se adiante. Estar no

tempo, integrar-se ao cosmo, que no seu movimento inelutável irá sempre ultrapassá-lo

– e continuá-lo.

No décimo segundo parágrafo um dos integrantes da conversa manifesta-se e

principia a contar seu episódio fantástico, associado ao canto do galo, ruído perturbador.

Era noite no aldeamento de São Francisco. Na casa do chefe indígena, o caboclo

Caetano, o narrador dessa história e tantos outros se sentam e conversam, como no

momento atual expresso em “O rugido”. Estão longe da praia e se ouve, muito antes da

meia-noite, como agora, o cantar do galo, um canto “único e isolado”, muito antes do

costumeiro. Ao comportar o elemento fantástico, desestabilizador, o cantar do galo

aproxima-se, por conseguinte, de “revelação de algum acontecimento triste ou

milagroso ou macabro”.

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Repetindo um motivo bastante frequente em sua prosa, Cardozo torna o que foge

ao ordenamento lógico, ao estabelecimento de um rumo efetivo e linear, fator de

desequilíbrio, pois é justamente no tropeço do corriqueiro que se embaralham as

fronteiras entre habitual e extraordinário.

De fato, o canto prenunciara um episódio trágico, fatal, em que dois homens, ao

passarem a noite “completamente embriagados, por uma praia de areia movediça”, ali

pegam no sono. A areia movediça vai de um lugar a outro, sem deixar a mínima pista.

Os homens “deitaram-se naquela areia e adormeceram curtindo a carraspana”. Ao raiar

do dia, somente um dos dois é encontrado, tendo o outro sumido, o que leva a polícia a

rapidamente agir: prende o que permanecera e interroga-o duramente, torturando-o, na

tentativa de fazê-lo confessar que matara o colega.

Apesar das buscas e da severa investigação, não se encontra cadáver ou qualquer

prova de que o homem estivesse morto. Entretanto, no dia seguinte, com a mudança de

vento, a duna finalmente move-se, muda de lugar, e revela o corpo do homem

“soterrado na noite anterior”.

Em meio à proeminência do elemento terra, o solo encontra-se terrivelmente

perto, sendo o homem morto do primeiro relato incapaz de modificá-lo, dele se livrar de

acordo com sua vontade, embutindo-se, desta maneira, a ideia de ausência de livre-

arbítrio. A embriaguez debilitante e a falta de reação do morto sugerem que ele tendeu a

encolher-se, isolado e indefeso, na passividade do álcool. Não se trata, aqui de um

homem forte, robusto, dono de sua (uma) vontade, mas de um ser que se deixa apagar,

joguete tragado pela natureza, boa ou má, da terra, sublinhada em seu inegável vigor

ativo.

É no chão tão próximo que se pisa que se dá a morte, e a profundeza e traição da

terra engolem as ações mundanas do homem. O morto confunde-se com a terra,

mistura-se a ela até ambos se tornarem um ente de origens similares. Há como um quase

desejo de descer, enterrar-se na frouxidão da areia pelo descontrole paralisante da

embriaguez. A insistente presença de múltiplas imagens terrestres leva o leitor a rastrear

e recuperar, relembrar, tais imagens, como se ele mesmo fosse um ser rastejante,

farejador, capaz de encontrar no espaço semeado das palavras imagens que nele

acendam a fagulha de um sentir, imergir, afundar. Em todo o trecho verificam-se ecos

desse desejo de terrenalidade: a terra chama para seu seio o corpo vivo do homem; ele

se deixa amolecer pela potência telúrica, não logra resistir ao apelo fúnebre dessa

mesma terra, que, àquele que se abandona, nega qualquer possibilidade de fuga. O

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personagem vai ao encontro do confinamento das camadas da terra, entregando seu

corpo à extinção dos subterrâneos. Em suas entranhas ariscas, a terra devora o corpo do

forasteiro, processa-o e dele se nutre para seguir pulsando, todo energia. “Assim a

imaginação minuciosa quer insinuar-se em toda parte, convida-nos não só a voltarmos à

nossa concha, mas a nos insinuarmos em toda casca para nela viver o verdadeiro retiro,

a vida enrolada, a vida ensimesmada, todos os valores do repouso” (BACHELARD

2003).

A descrição do acontecimento é feita de maneira particularmente detalhada e

visual, impactante:

A terra tinha enterrado, ela própria, o corpo vivo de um homem. O homem, o bêbado

que faltava, que tinha desaparecido e o próprio companheiro não soube responder pelo

seu destino. O soterramento feito pela duna deve ter começado pelos pés e depois, aos

poucos, prosseguido pela cabeça. Embriagado, sem forças para se libertar da prisão da

grande massa que passava sobre ele, o outro bêbado acabara sendo asfixiado pela areia,

sem que o amigo nem mesmo suspeitasse (CARDOZO 2008).

Com força brutal, ilimitada e visceral, a terra ignora qualquer andamento lógico

e suga as energias do homem embriagado, que abre mão de sua exatidão e, entregue ao

torpor sensorial provocado pelo álcool, é engolido em suas entranhas.

O amigo nem mesmo suspeita que seu companheiro fora asfixiado pela areia, a

começar pelos pés, depois a cabeça. Nesse momento profundamente angustiante criado

por Cardozo, imaginamos a agonia do homem que, bêbado, se vê acordar pouco a pouco

sem ar, esmagado pelo peso da massa de areia.

Dá-se a ligação com o canto funesto do galo pelo fato de o corpo ter sido notado

por pescadores da região que passavam pelo local “por volta de onze horas da noite”,

antes da meia-noite, antes da madrugada que antecipa o dia, hora em que o galo

costuma cantar. Por esse motivo – pelo estranho daquele canto tão prematuro – um dos

participantes da conversa retratada em “O rugido” recorda o evento do homem ébrio

afogado pela massa da duna. Aqui, o canto mortífero do galo serve para avivar a

memória de um episódio soturno.

Morte enigmática parecida com a do sujeito engolfado pela areia movediça

acontece no relato subsequente, história “pelo menos tão misteriosa [...] tão imprevista e

quase tão inexplicável” quanto aquela.

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A morte logo atiça a curiosidade de todos os membros do grupo e é, em seguida,

descrita em pormenores. Assim, é o narrador que agora fala: afirma que quem trabalha

no campo sabe quando um dia é de fato “surpreendente”. E é o que ocorre: o dia por ele

relatado é deveras “surpreendente”.

Durante dias e meses, tudo se passa no campo sem que haja nada de novo; não

se vê “cobra, não encontramos um camaleão, nem mesmo um nambu ou teju”. A vida

segue seu rumo, o campo segue sua tranquilidade – organizado e familiar. No entanto,

ao surgir o elemento anormal, o homem é pego de surpresa pela violência da natureza,

que o subjuga e o faz arrepender-se de ter acreditado que a domava. De súbito, “dentro

das matas, dos canaviais, dos capinzais, surgem pequenas cobras inofensivas, ou

cascavéis e urutus, pelo meio das picadas e dos caminhos”. O narrador comenta que,

pelas veredas trilhadas, havia jararacas repousadas na água, o que, no entanto, era

considerado incomum, não sendo o habitual dos dias de trabalho pelo campo. Um

desses momentos é especialmente “raro”, ou mesmo “surpreendente”, “para quem

trabalha no mato”. Como não poderia deixar de ser, o “trágico acontecimento” dá-se

“num dia assim, muito raro”. A exceção é território por excelência do misterioso, do

que escapa à ordem, e é a partir dela que a natureza brota, pujante, e mostra-se soberana

e alheia a convenções.

Ao alcançar o Engenho Curado, o narrador, que ali efetuava para a Comissão

Geodésica do Recife um levantamento hipsométrico, verifica nos pés de imbaúba haver

vários camaleões, muitos deles capturados pelos moradores para serem comidos. Tal

cena causa-lhe surpresa, por não ser exatamente comum. No mesmo dia, outro evento

pouco usual chama-lhe a atenção: encontra “uma cobra coral de cauda rombuda, quer

dizer, das mais venenosas; e, além disso, deitada dentro de uma levada, uma jararaca

com as suas malhas, pretas e brancas”. A jararaca, enraivecida com a chegada do

narrador, aproxima-se e quase o atinge com seu bote. Além disso, depois de tantos fatos

marcantes e “surpreendentes”, também o narrador vê pelo chão ninhos de nambu e de

jaó, numa altaneira exibição da natureza de que, naquele dia, “toda a vida do campo e

das matas tinha surgido de repente”.

Até então pacificada, letárgica, resguardada dentro de seus confins, a energia da

natureza de repente abre-se com vigor, desvela-se diante dos olhos do homem e o pasma

com seu desmesurado, sua quase tirania e sua capacidade mortífera. O homem, que

imagina controlá-la, encontra-se, pois, surpreendido e encurralado por essa natureza, na

qual se insere e que se lhe revela como avesso, lado que ele pensa guardar e ocultar –

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um tanto adormecido –, mas que muitas vezes emerge com impetuosidade e

inclemência, bem como a fauna e a flora daquele dia sobretudo “surpreendente”.

No vigésimo primeiro parágrafo, o narrador utiliza uma classificação bastante

sugestiva para realçar tal dia, “verdadeiramente espetacular [...] com tantas aparições”

que quase deixar de exercer seu ofício. Após trabalhar no campo por algumas horas, o

narrador aproxima-se da estação de regresso, a pé, “dentro de um areal frouxo, o que

tornava a marcha difícil”. Tendo completado “uma certa distância”, ouve um grito

penetrante na planície arenosa, vazia. As sendas do terreno areento eram cheias de

sulcos e escassos trechos de grama pouca espessa e verde. O grito era “agudo,

doloroso”, feria os ouvidos e aguçava a curiosidade – o narrador, em consequência, se

pergunta o que ocorrera. “Depois de quase dez minutos de caminho e já bem perto da

estação de estrada de ferro onde deveria tomar o trem para o Recife”, finalmente

encontra um homem lívido, esvaindo-se, sem qualquer tipo de fôlego, voz ou energia,

deitado na faixa de areia. Sobre as pernas descobertas havia pequeníssimas cobras, “seis

ou sete [...] jararacas” mínimas, filhotes. As pernas, mordidas em inúmeros lugares,

sangravam e mostravam as veias já intumescidas, putrefatas, assemelhando-se a “outras

pequenas cobras”. O homem, “quase morto”, causa desespero ao narrador, que em vão

procura na planície deserta alguém que possa ajudá-lo. Não há condições de levar o

homem caído à estação de trem por conta do peso, da distância e do pouco tempo

disponível. O narrador resolve, portanto, apressar-se e velozmente alcançar a estação,

onde poderia comunicar o ocorrido. Lá chegando, pelo telefone chama a polícia, que,

contudo, apanha o homem já morto.

O canto do galo que se associa à história e que engendra o contar do episódio

não está de fato presente no caso, mas se avizinha da agonia de um ruído fatal que

quebra o silêncio, do desespero do grito absoluto do homem atormentado pelas cobras

que se vê acordado apenas para morrer; que, desperto, tem o horror frente a seus olhos e

encara a morte certa.

Como o morto embriagado do trecho anterior, o homem desse segmento estava

bêbado; inconsciente, entrara na planície durante a madrugada avançada. Sob o efeito

entorpecente do álcool, caíra naquelas paragens e ali adormecera. Inebriado, não

acordara ao chegarem as pequenas cobras. O terror de acordar e se ver mordido e

envenenado causara-lhe o grito derradeiro, ansioso e impotente.

Holanda observa que esse “alarmante e imprevisto [grito], assim dentro de uma

charneca deserta” não está relacionado diretamente à morte por asfixia na duna

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movediça. No entanto, os três trechos – do canto soturno do galo que interrompe a

conversa na sala de jantar; do outro canto, que anuncia a morte do bêbado quando da

descoberta de seu corpo inerte embaixo do peso esmagador do monte de areia; do uivo

de pavor do homem condenado, envenenado e mordido por jararacas – ligam-se

intimamente por meio da presença, em todos, de algum ruído perturbador, prenúncio de

morte sofrida.

O comentário de Holanda introduz o último trecho de “O rugido”, contado por

Alencar – também o relato de um som surpreendente, tenebroso, fugidio. Segundo

Alencar, sua história lhe fora narrada por um viajante oriundo de Mamanguape.

Montado num burrinho, o viajante percorre a trilha de forma tranquila e

previsível, quando, a certa altura do trajeto, adentra a mata, num “curso d’água

volumoso, e que somente caçadores sabem onde nasce e em que direção [...] corre”.

Todos os viajantes, mesmo os habituados ao caminho, suspeitam do traiçoeiro lugar,

sinônimo de perigo.

Com os sentidos aflorados, a imaginação excitada pelo cenário hostil e pelas

condições agressivas da natureza, e o psíquico brutalmente descomposto pelo medo

irrefreável que dele se apoderara, ao passar pelo sítio Alencar afirma ouvir “um rugido

do alto, sem explicação nenhuma”, aterrador, “agudo e prolongado”, sufocante, sem

origem, impossível de se rastrear. Um “grito terrível” e lancinante, vindo do fundo da

natureza, que surge de forma espontânea sem se vincular a nenhum tipo de causa

perceptível, capaz, por seu poder paralisante, de contagiar até mesmo o burro, que logo

começa todo a “tremer e a suar em bica”.

Alencar questiona-se: como pode um rugido alcançar um animal, causar-lhe

tanto mal, fazer com que seu corpo mesmo produza uma série de sintomas e

perturbações? Chega, por fim, à conclusão de que o rugido deveria ser de “outro

mundo”, com algo de “um poder mágico”. Atônito, busca entre os ramos a origem do

rugido, espera que se manifeste de novo dentro da “mata misteriosa; porém, nada mais

se ouviu; o rugido foi único e retumbante, ganhando todo o espaço deserto daquela

região”. O caráter surpreendente do rugido, sua unicidade e potência tornam-no ímpar,

destacado; é essa qualidade específica que gera a suspeita de se tratar de fenômeno

sobrenatural, inexplicável.

O consolidado silêncio é despedaçado pelo rugido: “Naquele silêncio dominante,

naquele silêncio que fazia parte do universo e da natureza que ali estava implantada

como que por uma ordem divina, que envolvia todos os seres e todas as coisas, um

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rugido como aquele, tão penetrante e avassalador, só poderia vir, magicamente, do

próprio silêncio.” Como podemos perceber, o silêncio confunde-se com o universo e a

natureza, silêncio que é parte dela, todos instaurados pelo curso natural cósmico. O

silêncio que penetra “todos os seres e todas as coisas” não admitiria um rugido tão

potente, profundo e arrebatador; tal fenômeno viria, pois, como por feitiço do próprio

silêncio, que se exprime por meio de uma explosão. Sua voz, seu rumor, antes

ignorados, fazem-se presentes de forma enérgica e imensurável.

O rugido é a “materialização do silêncio”. Mesmo que não haja explosão, e sim

implosão, há ampliação da força vital, corrosão de suas entranhas; o silêncio manifesta-

se de modo opressor, desconhecendo limites. Ainda como uma última hipótese

levantada por Alencar, o silêncio, por sua presença impressionante, talvez pudesse

motivar uma “ilusão de uma voz”, que se metamorfosearia no rugido, “voz de um ser

qualquer daquela natureza misteriosa”.

Tal teoria, um tanto fantasiosa segundo Alencar, devia-se à tendência do homem

que lhe contara a história “para o devaneio”. Assim se explicariam tais palavras, tão

“divagantes, desencontradas”. Embora o rugido pudesse misturar-se à própria força

cósmica do silêncio, três dias depois vem uma explicação para a origem do rugido,

“ainda que de um modo duvidoso”, um pouco mais vinculada ao “mundo real”.

Na praia de Coqueirinhos, surge um animal marinho, não “baleia, nem tubarão,

nem espadarte”, completamente desconhecido, estranho, quiçá nunca visto no mar, um

“peixe enorme, como eram aqueles monstros marinhos”, bíblicos, como toda a lendária

fauna de épocas antediluvianas, jurássicas. Surge o animal agonizante, deitado na areia.

Ferido, lutara contra alguma força da natureza marítima, no fundo da água, e morria na

praia.

Tentando estabelecer uma ligação com o rugido, o viajante logo associa o

potente uivo a esse animal, pois tem ele certeza de que não se tratou de sonho ou delírio,

chegando mesmo a afirmar que o grito fora de fato ouvido por várias pessoas e que

casos semelhantes foram relembrados. Monstros marinhos, habitantes dos grandes

mistérios e confins oceânicos, das imensidões insondáveis e profundezas abissais,

teriam vindo àquelas paragens para ali soltar seu urro vital.

O bramido, som proveniente dos recônditos da natureza, liga as três histórias de

“O rugido” e a conversa inicial do conto. O canto do galo antes da meia-noite, que aviva

os três relatos e traz consigo presságios mortíferos, é o ruído que desfaz a aparente

serenidade calada da noite e motiva o desenrolar das três lúgubres histórias.

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7.De novo em Cabedelo

Depois do clima fantasmagórico e inquietante de “O rugido,” no conto seguinte,

“De novo em Cabedelo”, presenciamos uma espécie de volta à narrativa um pouco mais

simples, concreta, apaziguada e linear dos três primeiros contos, isto é, “Voltando de

Marcação”, “Perdidos nos tabuleiros” e “Tramataia”. “De novo em Cabedelo”

notabiliza-se por suas características de conteúdo e forma, com descrições bem-

sucedidas do vento, das marés, da luta dos marinheiros contra a força das águas do mar,

da maleita que acomete o narrador, dos trâmites da viagem de retorno a Cabedelo

partindo da Baía da Traição.

Aqui, embora a narrativa se desenrole de maneira mais ou menos corrente, sem

rupturas significativas no tempo e espaço, vemos mais uma vez o quanto Cardozo se

aproxima da temática da pujança da natureza, que dobra o homem em suas inglórias

tentativas de captá-la. A natureza cardoziana é, além de altiva, inóspita; faz do homem

mero joguete. Em “De novo em Cabedelo”, ela se mostra em seu esplendor sobretudo

na imagem do vento e do mar, aterradora, inteira.

O vento é um lobo faminto, predador que busca desarranjar os sentidos do

homem, causar-lhe mal-estar, pulverizar qualquer possibilidade de paz, conforto e

ordem. Imagem fortíssima, é um vento hostil, que não se dobra a regras, ao domínio da

razão e das forças criadoras do homem, um vento que, assim como nas narrativas

épicas, gera queda, ruptura e, muitas vezes, morte, um vento que traz consigo a força

ancestral dessa mesma natureza da qual faz parte o homem, e que, com ela confrontado,

deve deparar-se com sua fraqueza. Desamparado, o homem está pronto para abraçar seu

eu visceral, liberdade máxima de destruição de nós. A natureza é shakespeariana, dual,

impregnada de uma vitalidade apavorante:

COMANDANTE — Contramestre!

CONTRAMESTRE — Aqui, comandante! Tudo bem?

COMANDANTE — Bem. Falai com os marinheiros. Pegai firme, senão iremos dar à

costa. Mãos à obra! Mãos à obra!

(Entram marinheiros.)

CONTRAMESTRE — Vamos, corações! Coragem! Coragem, meus corações! Força!

Coragem! Amainai a mezena! Prestai atenção ao apito do comandante! — Sopra, vento,

até arrebentar, se houver espaço bastante! (SHAKESPEARE 1999).

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A imagem do mar, assim como a do vento, evoca território imenso, de infinita

força, energia, vivacidade, não abriga o entendimento premeditado, previsível do

homem. O mar é, antes de tudo, campo de batalha, luta muitas vezes perdida antes

mesmo de ser posta, luta que o homem sabe que deve enfrentar em toda a sua beleza

gloriosa e ampla, que lhe devolve o sentido do grandioso, de sua condição humana, ao

mesmo tempo tão poderosa e tão insuperavelmente frágil.

A imagem do oceano furioso instantaneia e surge, nítida, diante dos olhos, em

“O barco bêbado”, que em muitos sentidos parece dialogar com “De novo em

Cabedelo”:

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,

Senti-me libertar dos meus rebocadores.

Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis

Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,

Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.

Morta a tripulação e finda a algaravia,

Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,

No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,

Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico

viam turbilhonar marés de verde e anil.

O vento abençoou minhas manhãs marítimas.

Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis

das ondas a rolar atrás de suas vítimas,

dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,

A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu

E das manchas azulejantes dos venenos

E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

Então eu mergulhei nas águas do Poema

do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,

Devorando os azuis, onde às vezes – dilema

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Lívido – um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos

E ritmos lentos sob o rutilante albor,

Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,

fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,

Ressacas e marés: conheço o entardecer,

A Aurora em explosão como um bando de pombas,

E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,

Iluminando os longos túmulos glaciais;

Como atrizes senis em palcos cabalísticos,

Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas

Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,

Soube a circulação das seivas suculentas

E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias

Histéricas, o mar estuprando as areias,

Sem esperar que aos pés de ouro das Marias

Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas

Com olhos de jaguar florindo em epidermes

De homens! Arco-íris tensos como bridas

No horizonte do mar de glaucos paquidermes.

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas

Onde apodrecem Leviatãs distantes!

O desmoronamento da água nas bonanças

E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!

Naufrágios abissais na tumba dos negrumes,

Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes

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Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas,

Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...

– As espumas em flor ninaram minhas rondas

E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de polos e de zonas misteriosas,

O mar a soluçar cobria os meus artelhos

Com flores fantasmais de pálidas ventosas

e eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados

De gralhas tagarelas com olhar de gelo,

Eu vogava, e por minha rede os afogados

Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,

Lançado no ar sem pássaros pela torrente,

De quem os Monitores e os arpões das Hansas

Não teriam pescado o casco de água ardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,

Eu que furava o céu violáceo como um muro

Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,

Líquens de sol e vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas

E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,

Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas

O céu ultramarino e seus funis de bruma;

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,

O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,

Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,

Anseio pela Europa e os velhos peitoris!

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas

Que o delírio dos céus desvela ao viajor:

– É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,

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Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!

Toda lua é cruel e todo sol, engano:

O amargo amor opiou de ócios minhas horas.

Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco

Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,

Um menino tristonho arremesse o seu barco

trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras

Ultrapassar das naves cheias de algodões,

Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,

Nem navegar sob o olho torvo dos pontões (RIMBAUD 2013).

Em carta de 15 de maio de 1871 ao poeta Paul Demeny, Rimbaud assim

descreve seu programa poético: “Eu digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O

Poeta faz-se vidente por um longo, imenso e intencionado desregramento de todos os

sentidos” (RIMBAUD 2002). Desse modo, “ele chega ao desconhecido, e quando,

ensandecido, ele acabar perdendo a compreensão de suas visões, ele as terá visto”

(RIMBAUD 2002). “O barco bêbado”, escrito no mesmo ano, surge como a

transposição alegórica desse programa. As cinco estrofes iniciais relatam como um

barco rompe suas amarras: num primeiro impulso de esperança, o poeta abandona

padrões da poesia, convenções morais e sociais, ideologias dominantes. As estrofes 6 a

17 evocam estonteantes aventuras marítimas, do naufrágio à deriva: o poeta atinge “o

desconhecido”. Finalmente, as estrofes 18 a 25 retratam o esgotamento do narrador, o

barco bêbado, e sua nostalgia: este é o momento em que, “enlouquecido”, o “vidente”

deve resignar-se a “morrer” (“em sua agitação pelas coisas incríveis e incontáveis”,

como diz a carta), abandonar suas visões com o triunfo de tê-las visto, num momento de

lúcida magia.

A escrita do poema é ela mesma concebida como ilustração do “desregramento

de todos os sentidos” – sentimento tão presente nos contos cardozianos. Rimbaud apoia-

se em uma tela realista relativamente simples, uma série de quadros marítimos

inspirados por suas leituras (aos 17 anos ele nunca vira o mar): reflexos do sol na

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superfície da água (estrofes 6 e 7), acidentes atmosféricos (estrofe 8), pôr-do-sol (estrofe

9), a noite e a aurora sobre o oceano (estrofe 10 ). Mas este encadeamento de

“marinhas”, este diorama do mar, é alternadamente embalado e quebrado pelo desfile

precipitado dos quadros. “O barco bêbado” encerra o leitor num balé com mudanças de

cenário estupeficantes. Os deslocamentos de palavras e a surpresa dos enjambements

imprimem ao poema o ritmo titubeante que convém a seu clima. Sob o efeito do poder

das imagens, (ir)realismo brutal, o espetáculo ruma para o fantástico. O mar, como em

“De novo em Cabedelo”, é a borda última do desconhecido. O naufrágio é descrito

como mergulho voluptuoso num mundo paradisíaco, onde o poeta pode enfim habitar “a

plenitude do grande sonho” (RIMBAUD 2002). Todos os recursos são aproveitados

para arrastar o leitor para esta festa desgovernada dos sentidos e dar-lhe a impressão do

novo: ritmos, jogos de sonoridades, cores cruas, inesperadas associações de palavras,

palavras raras ou inventadas, efeitos sinestésicos, imagens inusitadas.

Esta alegoria da revolta que é “O barco bêbado” opera simultaneamente num

plano psicológico (suspensão da docilidade e ingenuidade da infância rimbaudiana),

literário (invenção de uma poesia nova) e político (afastamento do Velho Mundo,

simbolizado pela “Europa e os velhos peitoris”). À semelhança do que se dá no conto de

Cardozo, a imagem do mar quebra no leitor, flash total, revolução, iluminação de um

desejo de ruptura.

A natureza de Cardozo destaca-se por um quê rimbaudiano, iluminações

infernais, temporadas saturninas, ritmo dionisíaco. A liberdade livre do poeta

endiabrado, de acordo com a qual não existe assunto poético, ainda que bastante

alterada e não proposital, é vislumbrada aqui e ali.

Traiçoeiro e misterioso, absoluto, o mar é no conto uma imagem acabada. Evoca

a própria condição humana, rebentando em vagas de força, espalhando sua violência até

desenovelar-se em finas teias rendilhadas e brancas, capilaridade delicada de uma

vontade que pode, também ela, encontrar caminhos de exercer-se mais sutilmente:

Considere a sutileza do mar; como as suas criaturas mais temidas deslizam sob as águas,

invisíveis na maior parte, e traiçoeiramente ocultas sob os matizes mais encantadores do

azul. Considere também o brilho e a beleza diabólica de muitas de suas tribos sem

piedade, como a forma delicadamente adornada de muitas espécies de tubarões.

Considere, uma vez mais, o canibalismo universal do mar; cujas criaturas todas se

devoram umas às outras, continuando a guerra eterna desde o início do mundo.

Considere tudo isso; e então se volte para esta terra tão verde, suave e dócil; ambos

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considere, o mar e a terra; e você não acha que existe uma analogia estranha com algo

dentro de você? Pois, tal como o oceano aterrador cerca a terra verdejante, também na

alma do homem há um Taiti insular, cheio de paz e alegria, mas rodeado por todos os

horrores da metade desconhecida da vida. Deus te proteja! Não te afastes dessa ilha,

poderás não mais voltar! (MELVILLE 2008).

O mar é uma imagem liliácea, que oferece e reclama. Encapsulado em si, dono

de mares internos que conjuram vagas e vagas, num abrir-se perene, frutos rizomáticos

da água, escamas furta-cor que se despregam do seu corpo líquido para retomarem,

adiante, a sua contradança. Bulbo de mil espessuras, desfaz-se e refaz-se, à maneira do

homem, e do tempo:

Como se o Mar rompesse

Mostrando um outro Mar –

E fosse – um outro – nesse

Mar ainda pré-formar –

Mares do Mar – que invade

As Praias singulares

De outros futuros Mares –

Nestes – a Eternidade (DICKINSON 2008)

É no confronto, no atrito com a natureza, com o mar e o vento, que o homem se

apercebe de sua debilidade, de sua efemeridade e inconstância. Ao mesmo tempo, é

nessa luta com elementos poderosos, incrivelmente viscerais, que ele encontra sua

grandeza. “De novo em Cabedelo” traz, portanto, a presença de tais imagens, possantes

– vento e mar –, capazes de despertar um misto de assombro e deslumbramento nos que

as contemplam.

A doença é posta como uma espécie de consequência ou sintoma do desconforto

psíquico e sensorial causado por essa mesma natureza brutal e incontrolável,

desmesurada. Embora tente domá-la, o homem sabe que jamais logrará tal intento e,

portanto, ao ver-se diante da inocuidade de suas ações, finda por se dilacerar e sucumbir

à doença, à febre, à perda completa, entregando-se a delírios e à fraqueza do corpo.

O narrador inicia o conto comentando que, na véspera, havia subido o morro de

São Miguel para um trabalho de marcação de traçado do divisor de águas por ali. No

entanto, os índios locais se opunham a que aquele fosse o limite de seu território e, por

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isso, gera-se um confronto. Acompanhado por seu assistente, tenta realizar a tarefa, mas

percebe que está completamente ilhado, tendo, para sua própria segurança, de andar

com vinte homens armados de rifles, contratados nas cercanias para protegê-los.

Confrontado com um tipo de trabalho tão perigoso, percebe que aquilo não lhe agrada.

Assim, sua condição extrema acaba se impondo e prefere, então, abandonar o trabalho

para o qual havia sido contratado.

Depois de algum tempo no local, decide regressar à cidade natal, o Recife. Livre

do acerto que havia estabelecido, percebe que deve voltar à cidade, depois de quatro

meses na Baía da Traição; contrata, pois, dois pescadores da Baía da Traição e seu

transporte, uma espécie de lancha, até o porto de Cabedelo, onde, enfim, junto com seu

acompanhante, Holanda, tomaria o trem de regresso à capital pernambucana, Recife.

Às três da madrugada, portanto, partem, e é interessante notar que nesse trecho o

narrador comenta que o céu é ainda “apagado e noturno, selado ainda com a sombra do

mundo”, como um céu que não pudesse ter seu lacre rompido, que rejeitasse qualquer

tipo de abertura e de desbravamento, forasteiros – que repudia a participação do homem

ao se impor soberano e autônomo, distante da vontade humana e de sua presença. Uma

imagem-invólucro, refratária. Céu autônomo, imagem autônoma, autossustentada,

bastante. Uma imagem à bachelardiana.

Em Joaquim Cardozo, para além de uma representação, a imagem parece

adquirir uma consistência própria. Além de transpor, ela está, é. Para Cardozo não há

que se delinear uma causa para se chegar à imagem. A imagem passa a ser encarada de

forma mais autônoma, e Cardozo parece querer exaltar sua vida própria, frisando-lhe a

capacidade de “dizer-se” no leitor, captando-a em seu próprio instante de manifestação.

Não pretende, logo, explicar a imagem em sua completude, mas transmitir ao leitor o

momento criativo em que ela hierarquiza e conduz suas ressonâncias sentimentais.

Constitutiva de seus contos, há, no que se poderia chamar de maneira bachelardiana,

uma topoanálise da vida íntima – uma descrição dos espaços experimentados

imageticamente pelo homem: casa, cabana, praia, mar, numa fluidez de imagens

vivenciadas, no sentido de que “[...] a imagem isolada, a frase que a desenvolve, o verso

ou por vezes a estância em que a imagem poética irradia formam espaços de linguagem

que uma topoanálise deveria estudar” (BACHELARD 2012).

No meio dessa noite monolítica, o narrador e Holanda aproximam-se da lancha

dos pescadores e se lançam ao mar, sendo nela embarcados. Partem. Pensam que

rapidamente atingirão Cabedelo, pois, na viagem de ida até o porto a partir do Recife,

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haviam levado apenas três horas na viagem, com maré cheia, impelidos pelo “vento de

feição”, camarada, convidativo, mais afeito ao moderado do homem – ao que sua

natureza tem de ordenado, mensurável.

A viagem de regresso, no entanto, revela algumas surpresas não tão positivas. O

vento é contrário, “vento sulão, que soprava do sul”, vindo da imensidão preta da noite,

insondável, vindo do longe, horizonte perdido entre nuvens grossas e intransponíveis. O

vento balança e descompõe a superfície da água, erguendo onda após onda na maré

baixa, revolucionando e turbilhonando nuvens compactas, negras, que se espalham e

tudo envolvem. É um vento “contínuo, batido, meticuloso”, que brinca com as forças da

natureza, que joga, dança e hostiliza, faz das águas seu cenário de caos, de força vital.

Ele se ergue, sobe, volta, se apruma, traz vibração “de asas diluídas, desfeitas,

decompostas”, num “ritmo pesado, seguro, constante”; baila, zomba dos homens, vai do

sul a leste em variações múltiplas, perdendo-se no horizonte do mar, regressando,

enfurecendo as águas, encrespando o topo das ondas, mas sempre contra a vontade e o

caminho do homem, contra sua vela aberta, sinônimo de liberdade e altivez.

Com vento tão inimigo e malevolamente brincalhão, os pescadores decidem,

para avançar na direção de Cabedelo, bordejar, ou seja, ziguezaguear entre a costa e o

mais afastado do mar. São forçados a isso, o que fatalmente faz com que a viagem dure

ainda muito tempo, superando o limite de três horas conseguido na viagem de ida de

Cabedelo até a Baía da Traição. O bordejo desmancha, nunca cessa de se fazer, em

constantes idas e vindas, tropeços, linhas retas versus “líquidas e vacilantes”, bordados e

pespontos, vieses, costuras e rasgos, debrum marítimo, agulha a voejar no tecido mole,

grande mortalha de Penélope reinventada. A construção de Homero é trasladada para

imbricações marinhas entre fins e inícios:

A ninguém mais, Telêmaco, a mãe cara

Somente arguas, que de astúcias mestra,

Quatro anos quase, nos contrista, ilusos

De promessas, recados e esperanças,

E al tem no coração. Com novo engano,

Nos disse, ao predispor fina ampla teia:

— Amantes meus depois de morto Ulisses,

Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,

Sem que do herói Laertes a mortalha

Toda seja tecida, para quando

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No longo sono o sopitar o fado:

Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo

Manto rico não ter quem teve tanto. —

Esta desculpa ingênuos aceitamos.

Ela, um triênio, desmanchava à noite

À luz da lâmpada o lavor diurno (HOMERO 2000).

Domado pela força inevitável das águas, pelo temível e traiçoeiro vento sulão, o

barco navega, adernado, sujeito às intempéries caprichosas. Bordeja ao longo de toda a

costa da Paraíba, da Baía da Traição até o porto de Cabedelo, num ziguezague sem fim.

Com a vela inclinada, vão, rasgando o mar e nele se embrenhando, até um ponto muito

longe, como se desejassem alcançar o horizonte ou alguma brecha, algum abrigo contra

o vento cruel e atordoante. Tentam contorná-lo, nele achar uma pequena trilha, aceno de

paz, sinal de vento mais ameno. Depois de quase atingirem o horizonte, voltam

cambando, molhando a vela, chegando muito próximo da praia, num bordar e desbordar

lento, monótono e cansativo.

Entre o longe horizonte marítimo e as proximidades rasas da praia, o barco

bordeja penosamente, com muitas longas oscilações, hesitações e reforços, num

movimento pendular de avizinhação e distanciamento do vento inclemente, que sopra

sem cessar, zune sempre aguda e melancolicamente num uivo vindo da garganta de seu

próprio silêncio, que então explode em assobio. Diz o narrador: “um uivo como se

viesse de uma matilha de lobos perdidos e famintos naquele mar generoso.” Prosseguem

assim, tentando não só vencer o forte vento, como também nele achar uma saída, uma

pequena trégua naquele fim de noite, acercando-se da manhã. O barco quase vira, tenso,

com todos os tripulantes sentando-se como contrapeso e tentando manter o equilíbrio,

mas o vento, impiedoso, continua a adernar e desconcertar os homens que ali se

encontram.

Depois de passada uma hora em tal trajeto conturbado, o amanhecer ainda está

levemente distante. O narrador, portanto, para tentar se distrair e não se concentrar

demasiado na violência do vento e do mar revolto, tenta observar ao longe as praias da

costa norte da Paraíba, “com seus coqueirais, os seus pontos de luz vagos e indecisos”,

praias que o acolheram durante quatro meses e que ele conhecera de perto, ao trilhá-las.

A beleza dessas praias acompanhara seus olhos, sempre tão calmas e convidativas,

aparecendo agora dentre os coqueiros quando o barco delas se achega. Salina,

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Boqueirinhos, Tambaú: praias serenas, reconfortantes, não mais possíveis de serem

alcançadas.

Tentando ainda fixar a atenção em algum ponto palpável, o narrador procura,

quando o barco se distancia do litoral, observar os pescadores que manobram as redes,

buscando delas extrair o máximo de peixes e tirar daquela viagem algum proveito

financeiro. O balé circular do pescador é assim descrito pelo narrador: “deixar fugir a

linha, que se desenrolava do carretel para dentro d’água, atingindo grande profundidade

no mar; nunca tinha visto uma pesca deste gênero; o pescador me explicou que era com

a linha de corso que se pescavam os peixes que viviam a grandes profundidades.” A

dança, ainda que inglória, do pescador com o mar – que lhe garante o sustento – é, por

alguns minutos, contemplada pelo narrador, que acompanha as manobras, os trejeitos, o

esmero do pescador em retirar do mar algum fruto.

Porém, torna a se sentir mal, perturbado pelas idas e vindas do bordejar, pelo

mar atiçado e perigoso, pelo vento atordoante. Seus sentidos estão completamente

avassalados, sua razão esfiapou-se de todo. Com mais uma hora de viagem, começa a

vomitar em “grande agonia”; é, por conseguinte, levado ao pequeno porão na popa do

barco, mas ali seu vômito somente se intensifica, saindo “amarelo, era um vômito que,

estando em jejum, quase somente havia bílis; sentia, também, muito fortemente, doer-

me a cabeça”. Com a imaginação inflamada pela difícil viagem, não somente o

raciocínio do narrador encontra-se prejudicado, mas também seu físico, que sofre

sequelas. O vacilar contínuo leva-o a enjoar de maneira cada vez mais forte. Sentindo-se

nauseado, o narrador percebe ainda que o barco veleja, tenta encontrar uma pequena

fenda amiga, mão estendida ao longo da muralha eólica, do desespero agonizante –

portal de acesso, quiçá, a um vento mais cortês e pacífico.

Pouco depois, o dia raia, brilhante. O barco cambaleia e a vela procura o rumo

de Cabedelo. Ao contrário da viagem de ida, quando em três horas haviam percorrido o

trajeto, agora eram necessárias nove horas para que se completasse a viagem.

Chegariam a Cabedelo, como afirma o narrador, por volta do meio-dia, “em condições

deploráveis”, pois sente-se cada vez pior, com a cabeça tonta, pernas encolhidas no

porão, doloridas, o enjoo adensando-se e vômitos constantes.

O narrador compara esta à viagem anterior, quando partiram à tarde, com o mar

farto, de maré alta, enormes ondas que sobem e descem na proa do barco, iluminadas

pela boa luz da tarde nordestina. Ondas cordiais, que se desfaziam ao erguerem a

embarcação até o ponto mais elevado de sua crista, num afável pas de deux entre barco

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e mar. O fundo do abismo, se é que o havia, não engolia o barco, apenas o impulsionava

rumo ao topo da onda.

Contudo, o quadro é agora inverso. Embarcaram durante a madrugada, às três da

manhã, naquela noite de “um céu apagado e noturno, selado ainda com a sombra do

mundo”, um céu vedado, que não admite penetrações. As ondas não mais são

luminosas; fazem-se sentir somente pelo barulho forte, compacto, da água volumosa

roçando o dorso do barco e pelo ruído incessante fruto do atrito com o vento sulão.

O narrador chegara alegre, confiante e sereno a Cabedelo e, posteriormente, à

Baía da Traição, determinado a cumprir sua missão: demarcar terras em paragens

diversas. Retorna agora ao Recife após uma última tarefa frustrada, em que correu

grande perigo. Abalado, exausto, escolhe o retorno à cidade natal. Não à toa queda

doente quando do trajeto de regresso, vítima do vaivém da embarcação, presa do vento e

do mar – que, aliás, parecem decididos a não permitir sua volta, trancando-lhe os

caminhos. Num mundo à deriva, a desordem interior é reflexo da desordem do cenário,

e vice-versa. Nesse jogo especular diluem-se fronteiras, alimentam-se sem distinção

polos antes separados.

Depois da náusea, o narrador sente frio, “o conhecido frio da maleita”, em

circunstâncias tenebrosas: encolhido no fundo do barco, com acessos de vômito, mal-

estar, dores de cabeça e pelo corpo que não o abandonam. O frio – quase de dentro –

manifesta-se no corpo, à semelhança do que já ocorrera outras vezes, quando a moléstia

o aprisionara no fundo da rede, muito embora em situação contrária, numa casa

confortável na bela e misteriosa Baía da Traição, com sua esplêndida praia.

O ataque de malária vinha-lhe de novo, mas em contexto diferente, no mar.

Antes, experimentava os sintomas da doença por volta de uma da tarde, a começar pelo

frio intenso que dele se apoderava; agora, entretanto, os sintomas manifestam-se mais

cedo, cerca de dez, onze horas da manhã. Padecendo em casa, o frio completo tolhia-o,

fazendo-o recolher-se à rede, para depois virem a febre altíssima e suores profundos, e

no dia subsequente a melhora. No barco louco, no entanto, dentro de um mar

igualmente endoidecido, assediado por um vento inclemente, já “há sete horas numa

luta incessante”, a maleita irrompe mais cedo. Sua situação é no momento mais dura,

visto que está abrigado em local inóspito, deslizando de um lado para outro, agachado,

retraído, sentindo frio, enjoo, dor de cabeça, dores – antes de uma da tarde, não é

surpresa vir-lhe o frio.

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Depois de muito penar, consegue, finalmente, chegar a Cabedelo. Seu corpo e

espírito estão em frangalhos após ter viajado durante nove horas. A violência o põe

entregue, amortecido, disforme. O homem cardoziano não resiste à fúria da natureza,

sente na pele os sintomas do caos da mente e do corpo. Alcançando Cabedelo, é retirado

do porão da lancha, levado até a praia, de onde caminha até o hotel. Ali, no processo

que já conhece, sente o desenrolar dos sinais da malária: frio, febre, amanhecer

serenado.

No dia posterior, o narrador e Holanda partem, enfim, para a capital da Paraíba,

lugar de baldeação, onde pegariam outro trem em direção ao Recife. Saem nas primeiras

horas da manhã, entram no trem e vão embora, rumo à capital paraibana. Embora

protegido no calor do vagão, não demora para que o narrador de novo se sinta acossado

pelo frio da maleita, percebendo que a doença não o abandonara. Por volta do meio-dia,

encolhe-se no canto do banco e experimenta o frio profundo, quase além-corporal,

espiritual, como se ignorasse qualquer explicação.

Como o próprio narrador supõe, o frio talvez fosse uma lembrança da Baía da

Traição, despedida tristonha, a distância – para ele não mais haveria praias formosas,

linda Baía, areia clara e dias triunfantes. Havia, sim, a saudade da Baía da Traição,

causadora de frio e tonteira, ele recolhido ao canto do trem que o levaria muito em

breve a Pernambuco, sua terra natal, seu carinho, seu destino, o abrigo último, redentor.

A cidade é a única cogitável nesse mundo desejoso de abrigo: Recife. O Recife é cura,

salvação, ninho de conforto em que pode, finalmente, descansar. A cidade é a Casa-mor,

colo, calor, imagem-mãe na prosa de Cardozo, nave na qual se pode planar, nó cósmico

em que se escolhe estar. “A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e por

momentos senti seu cheiro descer maternalmente até o meu coração. Naquela noite ela

foi realmente minha mãe” (BACHELARD 2012). A cidade é a casa do corpo e dessa

mente oscilante – é apaziguamento. O Recife não chama, o Recife meigamente acolhe,

apela, dengoso:

Recife

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais

Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –

Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura

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Recife sem mais nada

Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de

[dona Aninha Viegas

Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz

Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras mexericos namoros

[risadas

A gente brincava no meio da rua

Os meninos gritavam:

Coelho sai!

Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa

Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa

Terá morrido em botão...)

De repente

nos longos da noite

um sino

Uma pessoa grande dizia:

Fogo em Santo Antônio!

Outra contrariava: São José!

Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.

Os homens punham o chapéu saíam fumando

E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União...

Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância

Rua do Sol

(Tenho medo que hoje se chame do dr. Fulano de Tal)

Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...

...onde se ia fumar escondido

Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

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...onde se ia pescar escondido

Capiberibe

– Capibaribe

Lá longe o sertãozinho de Caxangá

Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu

E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de

[bananeiras

Novenas

Cavalhadas

E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe

– Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas

Com o xale vistoso de pano da Costa

E o vendedor de roletes de cana

O de amendoim

que se chamava midubim e não era torrado era cozido

Me lembro de todos os pregões:

Ovos frescos e baratos

Dez ovos por uma pataca

Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada

A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem

Terras que não sabia onde ficavam

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Recife...

Rua da União...

A casa de meu avô...

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...

Meu avô morto.

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô (BANDEIRA

2007)

Já em Pernambuco, em sua cama sente de novo – pela última vez em sua vida –

o ataque de frio, febre, mal-estar, dores. É, sem dúvida, uma lembrança final da Baía da

Traição, um derradeiro vínculo com a localidade que durante quatro meses o acolhera,

com suas praias, coqueiros e dias radiosos. A encantadora Baía da Traição, que lhe

emprestara uma natureza benfazeja, estava agora muito longe. Como um resquício

daqueles dias memoráveis, a maleita o acompanhara até o Recife. A natureza

impiedosa, que o encurralara durante o trajeto, dá, assim, provas de sua força, prega-se

como tatuagem à sua pele; as cercanias da Baía, que tanto o embeveceram, agora

mostravam seu vigor ao se colarem a seu corpo e dele fazerem instrumento de seu bel-

prazer. É essa natureza-imagem da Baía que o entorpece, que lhe põe marcada no físico

a lembrança do tempo passado na Paraíba.

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8.Minha tia Dondon

Em “Minha tia Dondon”, o autor monta uma de suas narrativas mais líricas e

fortemente vinculadas à questão da infância, da memória, do sonho, do pensar livre e

agitado, que tanto atiça a curiosidade infantil. É nesse conto particularmente que

Cardozo se mostra também mestre do afeto e da doçura, ao trazer para a própria

atmosfera da narrativa um quê de saudade, beleza e colorido, a exemplo do poema:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

– Psiu... Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé (ANDRADE 2002).

O narrador principia contando-nos um pouco de sua rotina familiar, dos tratos da

casa, das tarefas ali desempenhadas pelos empregados, da engrenagem que diariamente

se movimenta para que tudo fique em seu devido lugar. Partindo de uma narração

bastante pormenorizada, mas realizada sempre por um viés imbuído de nostalgia e

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carinho, como pelos olhos de uma criança, Cardozo atinge a figura-chave, lendária,

fascinante, da tia-avó Dondon, velhinha que guardava ainda os faiscantes olhos azuis da

juventude. A tia Dondon, uma dessas personagens literárias que logramos gravar

intensamente na memória, é dona de hábitos incomuns, quiçá pitorescos. Sai recolhendo

uma série de tralhas, bugigangas, coisas espalhadas que os habitantes da casa não mais

querem conservar. São carretéis vazios de linha, brinquedos toscos, rotos, ou já antigos

e esquecidos, pequenos frascos vazios de perfume, objetos que, em suma, não mais

parecem preservar a chama e a utilidade de outrora. A velha Dondon afirma que, ao

mantê-los, ela os privilegia, e que em breve deles fará novos brinquedos para alegrar o

dia a dia das crianças. Na magia e no cuidado que tia Dondon consagra a esses objetos

menosprezados Cardozo enxerga uma luz de generosidade e compaixão.

Mesmo se muitas vezes esbarra no que se convenciona chamar de loucura (e

talvez por isso), tia Dondon se afasta do senso comum, pragmático; ao fazê-lo, rompe

com a lógica usual. Ao se aproximar de objetos ditos inúteis, vazios de significado, lhes

dá, pelo contrário, um novo sentido, revestindo-os da possibilidade de encantamento

futuro e do apego ao elemento lúdico.

Mantém-se a tia, conforme nos informa o narrador, fechada em seu quartinho,

que dá para a sala. Não se trata nem mesmo de um quartinho, mas de uma alcova, por

não apresentar janelas ou qualquer tipo de saída para o exterior da casa. Apenas uma

porta comunica seu cômodo com o restante da residência da família. Tia Dondon ali

permanece dias a fio, saindo apenas para acompanhar a missa no domingo e os cantos

religiosos do culto semanal. Logo, a tia detém uma aura de mistério não só por catar

objetos desvalidos pela casa, como também por impedir a entrada em seu quarto.

Somente a empregada ali faz visitas ocasionais, para executar uma limpeza superficial,

sem chegar a mexer no conteúdo dos grandes baús, nos quais Dondon encerra seus

preciosos brinquedos vindouros, zelando por eles, impedindo que tudo se torne resíduo,

rastro, rota memória. De tudo fica um pouco.

Para o narrador, garoto à época em que transcorrem os fatos veiculados na

narrativa, com a imaginação incandescente típica da meninice, Dondon representa

enigma e arrebatamento; é aquela que se desgarra dos costumes cheios de códigos bem

estabelecidos dentro da família. A ela é permitida uma posição na hierarquia familiar

muito diferente da dos demais, pois é um tanto extravagante. Tia Dondon mostra ao

menino as possibilidades que um comportamento extraordinário pode proporcionar.

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A tia assusta-se sobremaneira com a chuva, que parece ameaçar a saúde da casa

e dos habitantes que ali se encontram. A chuva, sempre potente e por vezes bela, capaz

de regar o solo e dele fazer nascer brotos, incríveis verdes que depois darão fruto a

madeiras robustas prontas para virar a lenha benquista das fogueiras juninas, traz, por

outro lado, trovoadas, raios, ameaças terríveis que esmigalham os nervos de Dondon,

que vê no temporal um mau presságio. A tia acredita no mistério infinito e

imponderável da natureza, impressiona-se com fatos vistos como triviais pela maioria

das gentes, devota-se inteiramente à sua fé peculiar.

Uma água introduz o conto, logo na primeira frase: “Junho chegara com muita

chuva!” As gotas são incessantes, cobrem com “uma lama gorda e cinzenta” o curral, o

pátio da casa onde mora a família do narrador – lodo que se espalha até a beira da

calçada, quase impossibilitando a chegada ao estábulo. É junho uma das épocas

preferidas do narrador, que vê no mês a ocasião de festejos, comilanças, fogos de

artifício, brincadeiras com meninos da região, folguedos encadeados de Santo Antônio,

São João e São Pedro, libertação da rotina tradicional da família, permissões

excepcionais para fazer o antes proibido.

O menino, “Agarrado às grades de ferro da cozinha”, olha para a chuva, vê a

labuta dos empregados que tentam alimentar as vacas, a azáfama daqueles que correm

no massapê lamacento; parado, não podendo se molhar, tem “vontade de correr de pé no

chão nas poças d’água sobre o capim rasteiro dos cercados, na alegria dos meus dez

anos de idade”. Um Casimiro pernambucano, recatado, aluado, envolto nessa bruma de

infância feliz:

Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida,

Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores,

Naquelas tardes fagueiras

À sombra das bananeiras,

Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias

Do despontar da existência!

– Respira a alma inocência

Como perfumes a flor;

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O mar é lago sereno,

O céu – um manto azulado,

O mundo – um sonho dourado,

A vida – um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,

Que noites de melodia,

Naquela doce alegria,

Naquele ingênuo folgar!

O céu bordado d’estrelas,

A terra de aromas cheia,

As ondas beijando a areia

E a lua beijando o mar!

Oh! dias de minha infância

Oh! meu céu de primavera!

Que doce a vida não era

Nessa risonha manhã!

Em vez das mágoas de agora,

Eu tinha nessas delícias

De minha mãe as carícias

E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,

Eu ia bem satisfeito,

Da camisa aberto o peito,

– Pés descalços, braços nus.

Correndo pelas campinas

À roda das cachoeiras,

Atrás das asas ligeiras

Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos

Ia colher as pitangas,

Trepava a tirar as mangas,

Brincava à beira do mar;

Rezava às Ave-Marias,

Achava o céu sempre lindo,

Adormecia sorrindo

E despertava a cantar!

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Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

– Que amor, que sonhos, que flores –

Naquelas tardes fagueiras

À sombra das bananeiras,

Debaixo dos laranjais! (ABREU 2010).

A casa de Dondon – da família – é um mundo mágico, imagem em camadas,

imagem-dado de sete faces. Rolada, ela se descortina ao azar para o leitor como 1, ou 2,

ou 8. A cada momento, um novo lado. Um dado que se esfericiza, cada ponto

instituindo plano tangente. Uma imagem que é outra, e mais outra, e mais outra.

Também a infância é diversa a cada pensar, revisitar.

Ao assistir ao preparo da pólvora com que se fabricam os foguetes de São João,

o narrador lembra-se do milho plantado em março – mês de São José – e constata que

estaria no ponto “por Santo Antônio” e daria canjicas deliciosas. Mesmo a chuva não

poderia atrapalhar o corte de lenha para as fogueiras de São João e São Pedro, nas quais

seriam assadas espigas de milho verde, ao redor das quais os meninos brincariam de

roda, píncaros da felicidade infantil. Há também “caixas de traques, mosquitinhos,

busca-pés, foguetes do ar [...] pistolas, estrelinhas”, até mesmo milagres, como o de

“andar sobre o fogo com essas brasas amortecidas na cinza”, maravilhas. Paganismos de

fogueiras, antiga comemoração do solstício de verão na Europa. Ou, na tradição

católica, que absorveu as festas estivais e as transformou em celebração de santos,

especialmente São João Batista, fogo sagrado, bíblico. O costume de acender fogueiras

no começo do verão europeu teria suas raízes em um acordo feito pelas primas Maria e

Isabel: para avisar Maria sobre o nascimento de João e assim receber seu auxílio após o

parto, Isabel acenderia uma fogueira sobre um monte. Gentia, miraculosa, idólatra,

cristã, a fogueira consome, purifica, afasta, por seu fulgor, o mal. Aproxima, por seu

calor, fornece luz e alento – uma imagem cara a esta narrativa em especial, toda ela

permeada pelo fio delicado de uma ternura.

É o mês de junho, e a chuva dele se apossa com rajadas violentas de vento e

provoca pânico entre as mulheres da casa, principalmente Dondon, que nos é nesse

momento apresentada: uma das idosas irmãs do avô paterno do narrador, mora num

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quarto contíguo à grande sala de jantar, cuja porta mantém sempre fechada. Os cabelos

embranquecidos teriam sido louros em tempos antigos, mas os olhos permaneciam

“fielmente azuis”, numa descrição que estabelece um primeiro contato amistoso com a

figura de Dondon.

Além das tempestades de junho, o narrador aborda alguns episódios ocorridos no

Recife: pestes de bexiga, passagens de cadáveres, transportes de mortos por homens

levando nas mãos velas acesas, improvisadas lanternas de papel, até o Cemitério do

Barro. Imagens fortes, que imprimem fundas marcas. Desenrolam-se acontecimentos

como as procissões dedicadas a São Sebastião, “padroeiro e protetor dos que estavam

ameaçados pela peste das bexigas”. A liturgia católica, com seus cantos, luzes, trajes

específicos, imagens carregadas, padres, a comoção dos homens e mulheres que ali vão,

deixando-se levar pela simples fé, inflama o narrador. Aquele imaginário o (co)move,

invoca uma prodigalidade de imagens extraordinárias, no sentido de uma explosão de

imagens que o fazem sair do lugar onde se encontra:

Tudo isso me confrangia, tudo me dava, ainda na infância, uma sensação dolorosa. A

procissão passava com o seu cortejo de fiéis, com a sua imagem iluminada numa litania

agônica e sofrida, desesperada e ao mesmo tempo cheia da esperança de que o santo

acabaria por ouvi-los e atendê-los. Dentro de uma chuva fina e de uma noite densa, a

procissão de São Sebastião passava na estrada (CARDOZO 2008).

Na sequência é retomado o pavor de tia Dondon diante de vendavais, que saía

então do quarto, endoidecida, “com um rosário na mão e uma campainha”, atenta à sua

fé, para rezar o terço e tocar a campainha. Segundo o narrador, esse expediente nada

mais era que um “feitiço [...] esconjuro para afastar tempestades [...] magia”. Além de

parecer alheia ao bom senso, tia Dondon é, como demonstra o narrador, bruxa, guardiã

de sortilégios inalcançáveis para os demais. É ela que conserva a chave do grande

enigma capaz de afastar a chuva ameaçadora; é ela a maga suprema que zela pelo bem-

estar da casa, embora muitas vezes incompreendida por seus próprios habitantes. Tia

Dondon encerra ainda o máximo do eixo paganismo/catolicismo tão presente no

imaginário brasileiro. Ela reza o terço enquanto realiza a feitiçaria. “Noite de vento,

noite dos mortos”, e a velha Ana, de lenço na cabeça e tesoura enferrujada nas mãos,

parece encarnar em Dondon, uma Bibiana algo caduca que se embala, com seu rosário e

orações esquecidas, na cadeira do quarto.

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Como uma espécie de eremita, nos períodos de tormentas Dondon permanece

trancada, saindo apenas para assistir à missa de domingo e flanar pelas dependências da

casa quando não há ninguém para censurá-la por colher o que encontra pelo chão. São

carretéis vazios de linha, de vários tamanhos, “cuja linha tinha sido usada na sala de

costura”, caixas de fósforo “deixadas sem uso pelos cantos da casa; caixas de fósforos

ou de caraduras, que tinham servido para guardar pequenos foguetes; frascos de

perfumes vazios e outros tipos de invólucros, já também em desuso”. Os brinquedos

recebidos nos dias de festa e depois largados pelos cantos da casa eram recolhidos por

Dondon; entre eles, havia bonecas, pequenos trens e bois, cavalinhos de madeira

quebrados,

[...] deixados como lixo, sem préstimo. Pelo Natal, pelo Carnaval, ou pelas festas do

mês de junho, era grande a colheita que ela fazia. Pelo Natal e Ano-Bom, ia recolhendo

os velhos calendários substituídos pelos do novo ano; as flores que tinham figurado

durante o ano, agora substituídas; pelo Carnaval, eram as bisnagas, eram sacos de papel

picado, ainda cheios de confetes; eram as bombas de cheiro não arremessadas durante

os folguedos dos três dias de Carnaval (CARDOZO 2008).

Nas festas juninas, tia Dondon reunia caixas vazias de traques, tabocas vazias de

busca-pés, de foguetes do ar, bisnagas com cheiro e coloridas. Assim, vai amealhando

os despojos das grandes festas, os resquícios da alegria, dos momentos de

confraternização, afeto familiar. Como grande feiticeira, junta em seu baú-caldeirão

vestígios de épocas de esplendor, de laços de amizade, de risos e brincadeiras. A tia é

aquela que encerra, sobretudo, a beleza da vida, no colorido dos papéis, das embalagens,

dos objetos largados sem uso, mas que ainda conservam algum encanto; vela pela

felicidade da família, simbolizada nas principais comemorações do ano: Carnaval, Ano

Novo, Natal, festas juninas.

Generosa, zela com “piedade pelas coisas mortas e abandonadas”, incapaz de

desprezar objetos que “tivessem também uma alma, uma alma dispersa, erradia e que

mais tarde viria novamente a eles se incorporar”. Assim como os homens, os brinquedos

e objetos, embora alquebrados pelo passar do tempo, mantêm seu espírito, seu vigor.

Guardam dentro de si a possibilidade de renascerem, de outra vez trazerem brilho,

perfume, explosões de luz, “como se existisse um céu eterno para as almas das coisas

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inanimadas. Já muito velhinha, minha tia só pensava no céu para ela; desejava também

um céu para todos; no seu conceito, todos tinham direito ao paraíso”.

Tia Dondon é, portanto, feiticeira branca, incapaz de fazer (ou desejar) mal; uma

mulher que almeja o bem para todos, seus objetos, seus entes queridos, aos quais devota

afeição e que, em seu entender, guardam pedaços de alma vibrante. Com tudo que

recolhe, a tia enche malas e baús, conservados no interior de seu quarto. Os habitantes

da casa, acostumados a um pensar estreito, se perguntam constantemente o que a tia

poderia fazer com “tanta coisa quebrada e imprestável”, ao que ela retruca, dando

“vazão a toda a sua fantasia, explicando que tudo aquilo que guardava era para fazer

novos brinquedos para os meninos; quando menos esperássemos, veríamos correndo no

chão vários carros rodando sobre os carretéis; as bonecas de louça, as de pano também

serviriam, renovadas, e até mais bonitas do que foram.” Nesse trecho específico se

desenrolam cenas em movimento, um tanto de lirismo, além de carinho e admiração por

essa figura enigmática, que traz para o seio da família um entendimento mais amplo das

coisas do mundo.

Apegada a santos, promessas, rezas e milagres, a tia é toda envolta em segredo

(como seu quartinho), em “devaneio que ela muito raramente revelava quando descrevia

o que iria suceder, isto é, alguma coisa de mágico e de deslumbrante”. Figura que

alumia a mente do menino, contagia-o, leva-o adiante, fazendo-o considerar a riqueza

do outrora visto como imprestável, despertando-o para o mundo, que o deslumbra com

suas chuvas e folguedos.

Nesse ponto, o narrador retoma o contemplar do trabalho dos empregados

debaixo da chuva, atolados no lamaceiro. Começa a escurecer, a chuva para um pouco,

o menino deixa as grades da cozinha e retorna para a sala de jantar. Ali, após observar

os movimentos da casa, no jantar, nas conversas entre adultos, permanece na sala,

acompanhado pelas velhas que costuram até tarde da noite, ouvindo contos sinistros

sobre castelos mal-assombrados, fantasmas, forasteiros que ali se aventuravam e nunca

mais retornavam.

Uma história bizarra e angustiante incendeia definitivamente o pensamento do

garoto, que afirma ignorar como a história termina, mas declara que “todo aquele

ambiente, noturno e deserto [...] toda aquela história me trouxe uma perturbação, um

pavor imenso”. Com a mente perturbada pelo conto macabro das velhas no quarto de

costura, cheio de fantasmas, rostos e olhos alucinados, bocas abertas, imagens pesadas,

prenúncios de tragédia e morte, o menino fica “num estado de nervos insuportável;

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antes do fim da história já me tinha afastado, procurando o meu quarto para dormir;

comigo mesmo pensava que não iria dormir naquela noite, e isso, para mim, era uma

perturbação que trazia efeitos deploráveis”. O tal conto de terror provoca-lhe

palpitações durante o sono, alucinações quando pensa escutar a voz do fantasma, visões

sinistras de corpos balançando, sangrentos, mutilados. Tenta afastar-se da história

sombria, meditar sobre outras coisas, a chuva no curral, os empregados tentando

alimentar as vacas com os pés afundados na lama, o milho que colheria na época de

Santo Antônio, os foguetes das festas juninas. Todavia, os pensamentos funéreos

retornam. Sem saber se dormia e, portanto, sonhava, ou se estava acordado e tinha

visões, levanta-se para tentar se acalmar.

Começa, pois, a caminhar pela casa, no fundo negro da noite, com os sentidos

aguçados; olhando para o fim do corredor que dava para a sala de jantar, vê uma luz no

lugar onde, teoricamente, em hora tão avançada da madrugada, haveria apenas

escuridão. Pensa vir a luz da porta do quarto de tia Dondon, o que lhe parece

surpreendente. Continua a andar rumo à sala de jantar, e se posta atrás do guarda-louça

para ver o que se passa no quarto da tia, “inesperadamente iluminado”. Não é sem

espanto que vê, numa cadeira, “uma jovem loura e de olhos azuis; tinha nos lábios um

sorriso indeciso; balançava-se alegre na parede do fundo, atrás de uma janela aberta

ilusoriamente”. A velha Dondon, com os cabelos embranquecidos pela traição do

tempo, mas os olhos lealmente azuis, mostra-se de novo loura e bela como em sua

mocidade. Detentora do grande mistério, faz em seu quarto fechado e insignificante

abrir-se uma janela imensa que contempla a “lua em quarto minguante”: “Assim, o

minúsculo, porta estreita por excelência, abre um mundo. O pormenor de uma coisa

pode ser um signo de um mundo novo, de um mundo que, como todos os mundos,

contém os atributos da grandeza. A miniatura é uma das moradas da grandeza”

(BACHELARD 2012).

A tia rejuvenescida embala-se na cadeira; em torno, malas e baús abertos,

brinquedos trabalhados, lindos, tinindo de novos. Bonecas de pano, de louça, bem

cuidadas, arrematadas, sobre a cômoda do quarto. Fabricados a partir dos carretéis

reunidos pela tia, correm pelo chão com vida própria, espalhando-se, trens, carros, em

sons e atropelo. A tia ria, sabendo que é a causa desse afã; não mais havia “a dentadura

de velha, mas belos dentes brancos”.

Dos baús saíam as antigas bisnagas, frascos de perfume, tabocas de foguetes,

pipas; tudo que fora amealhado no seu estado mais pobre e arruinado recompõe-se,

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renova-se. Há pólvora, perfume, cor, magia: “Fiquei deslumbrado”, conta-nos o

narrador. Também se encanta a lua, que se achega da janela inventada do quarto de tia

Dondon para contemplar tal espetáculo. Conforme prometido ao menino, Dondon pode

agora distribuir entre as crianças os benfazejos brinquedos; bruxa boa, repartiria o

carinho premeditado.

Embevecido atrás do armário, o menino ouve “como que o som de um ronquido,

um ruído agudo e arquejante, ruído surdo e ofegante. Tive um aceno de espanto e de

medo. Fechei os olhos, senti em mim qualquer coisa de inesperado”. Percebe que

despertara, oculto por trás do aparador. A situação voltara ao normal: não havia luz

oriunda do quarto da tia, cuja porta estava, como de hábito, fechada. Crê haver dormido,

ou tido um acesso de sonambulismo por conta da perturbação dos nervos causada pela

história de terror narrada pela velha Gertrudes. Aflito, o menino volta a seu quarto e

tenta dormir.

Depois da tempestade, a manhã seguinte nasce clara e serena; após o almoço, no

entanto, regressa a chuva fina. Para se proteger, o narrador mantém-se em seu quarto,

estudando; ao sair, passa pela porta da alcova de tia Dondon e de novo ouve o rouquido

ofegante. Recorda o acesso da noite anterior e da situação que pôs em dúvida sua

própria razão. Estivera sonhando ou acordado? Tivera visões de um passado distante ou

de futuro maravilhoso? Não importa, afinal: “As grandes imagens têm ao mesmo tempo

uma história e uma pré-história. São sempre lembrança e lenda ao mesmo tempo. [...]

Toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que

o passado pessoal coloca cores particulares” (BACHELARD 2012).

Angustiado, vai para o jardim, sobre o qual cai a chuva fina. Em seguida, uma de

suas irmãs o manda entrar em casa, pois tia Dondon morrera. Enfim, compreende: a

respiração dificultosa era “o grito do coração da minha tia”. A velha, muito perto de

morrer, já se despedia em direção à dissolução no mistério universal, junto com seus

brinquedos e preces. Em “Minha tia Dondon” Cardozo cria uma engenhosa narrativa

repassada de sonho, lirismo e lembrança, conjugados a uma adoração pelas coisas do

mundo.

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9.Na estação

No conto “Na estação”, notamos, em meio à névoa da memória, um pequeno

ponto de luz, que permite iluminar (ou borrar) levemente o limite, sempre tênue, entre

mundo, consciência, sonho e fantasmagoria. A propósito disso, afirma Everardo

Norões:

[O] destino literário de Joaquim Cardozo: todos os caminhos conduzem à cidade; a

cidade dos trajetos de trem e das esperas na velha gare da Great Western Railway, que

ele, no conto “Na estação”, conta ter visitado cerca de cinquenta anos depois. Na

estação, Joaquim Cardozo observava as locomotivas a olharem “para a noite, no pátio

da noite”. Seu fascínio pelos comboios, no entanto, era diferente [...]

Joaquim Cardozo, mesmo fixado nos elementos do real – as manobras das locomotivas,

os seus horários, a bandeira do condutor, os gestos do maquinista, os trabalhos de

manutenção dos trilhos ou o barulho os freios –, empreende especulações metafísicas, a

partir das quais compõe sua visão do último trem [...] (NORÕES 2008).

A imagem do trem e seus desdobramentos acessórios – a gare, a estrada de ferro

–, diletos do autor, voltam aqui a encontrar seu espaço no repertório cardoziano. Em

desenhos e sonhos infantis, bem como na vida e nos sonhos dos adultos, o trem adquiriu

importância significativa, imagem revisitada exaustivamente – dona de lugar cativo no

universo das imagens associadas a mudança, movimento. A estrada de ferro evoca

espontaneamente a imagem de um intenso tráfego de trens, de filas de vagões de

passageiros. Imagem privilegiada em prosa e verso cardozianos, o trem, ao garantir o

transporte dos viajantes, estabelece uma ligação entre regiões antes desvinculadas e

longínquas umas das outras, concreto e fantástico, tempo e espaço, permitindo

comunicações e intercâmbios até então impensáveis, inexistentes.

Para o narrador de “Na estação”, a estrada de ferro estabelece-se como uma

força de ligação e coordenação, atuando no bojo de seu pensar e deixando-o contemplar

a universalidade da vida – posto que o trem é ele mesmo experiência coletiva,

incorporada e una, de um mesmo fado que abarca a todos. Ao encarnar a possibilidade

de mudança, movimento e integração, o trem encorpa uma tomada de consciência por

parte do narrador que desfaz grilhões de pensamento e dá livre curso ao devaneio.

A gare apresenta-se como canal de conexão direta com o mundo do devaneio;

ela instaura esse imaginar. Daí o medo de se chegar atrasado para a partida do comboio,

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perdendo-se o trem, o que indica que se deixou passar uma oportunidade, ou que esta

quase foi perdida, o que, justamente pelo confronto com a perda, gera um despertar, não

sem precipitações nervosas, desarranjos e ausência de um domínio logicamente

estabelecido, quebra da confiança em si mesmo.

É na estação que se encontra o ponto de partida do desenvolvimento de

atividades psíquicas e (quiçá) espirituais. Muitas direções se oferecem, muitas são

possíveis, mas é imperioso tomar apenas aquela que convém. A possibilidade de eleição

pressupõe a justeza da escolha, o encontro consigo, o conhecimento do seu dentro e a

comunicação com ele, seus ímpetos, fundações e anseios. Na gare erige-se um centro de

circulação intensa em todas as direções, e o deparar-se com sua essência é, pois,

inevitável.

Toda a vizinhança do trem mostra-se também relevante para esse intraolhar.

Flashes de imagens como a locomotiva e as bagagens revestem-se de renovado

impacto. A primeira traz à tona o impulso que move o conjunto de vagões. A energia

dinâmica concentrada na imagem da locomotiva desperta as forças do devanear – a

gigantesca máquina avança e ameaça, atordoa e descentra, mas, em última análise,

inflama a potência do pensar e cria um novo ser, mais livre, mais oscilante. As bagagens

são objetos indispensáveis, bens materiais, possibilidades, guardam toda uma gama de

elementos fundamentais: forças, capacidades, hábitos, proteções, ligações. Como numa

viagem no aqui e agora, a bagagem assegura a percepção de que se carrega todo o

essencial consigo.

Por excelência, o devanear atua como veículo privilegiado do trânsito de

imagens, e permite que irrompa seu caráter inventivo, inesperado, rico. A imagem como

autovetor: ela se subtrai à vontade do homem, visto que sua dramaturgia devaneada,

espontânea, escapa a seu controle. No conto, o narrador cardoziano experimenta o

drama sonhado.

O sonho acordado é complexificado se comparado ao sonho noturno pelas

imagens que põe em jogo e pelo movimento que engendra: “O devaneio é um fenômeno

espiritual demasiado natural [...] para que o tratemos como uma derivação do sonho,

para que o incluamos, sem discussão, na ordem dos fenômenos oníricos [noturnos]. Em

suma, é conveniente, para determinar a essência do devaneio, voltar ao próprio

devaneio” (BACHELARD 2006). Estando o indivíduo acordado, o sonho pouco a

pouco se impõe e sorrateiramente toma-o, ele que se vê então mergulhado num estado

de esquecimento abandonado, ou de abandono esquecido – ou mesmo translúcido e

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fugidio, cujo contorno exato é apagado, e que vem à tona num patamar de consciência

antes adormecido. O devaneio configura-se, pois, como alternativa inventiva à

realidade, fundador de universos remotos e quase ignorados. Oscilando entre tensão e

distensão, arrefece a pressão do mundo consciente.

Para o sonhador, o devaneio traz uma imagem – não raro desconhecida – dele

próprio, espelho um tanto confuso (e desorientador) de sua essência. Frequentemente,

adentra a situação experimentada pelo sujeito, entrando no jogo cambiante e conflituoso

entre consciente e inconsciente, sujeito e objeto, do qual sai triunfante como peça-

chave. Desejos, lembranças, temores, angústias, falhas – o consciente extravasa-se por

meio de imagens e dramas encenados que recuperam experiências descartadas ou

apagadas da vida exterior. Ao estabelecer uma ligação entre mundo corpóreo,

consciente, e mundo fluido, o devaneio possibilita uma comunicação criativa entre esses

dois domínios.

O conteúdo do sonho do narrador cardoziano vincula-se a uma fantasmagoria,

sobretudo descritiva, elaborando-se dados da memória que se acercam de imagens

efetivas; abrangendo-se várias informações em uma única imagem ou em grupos de

imagens; estabelecendo-se uma sólida ponte afetiva com o passado com base em cargas

de elementos mnemônicos revividos a partir de um determinado conjunto de imagens,

dramatizado no roteiro devaneado de forma intensa. O conteúdo contemplado pelo

sonho de “Na estação” é de tonalidade violentamente emotiva; a memória afetiva do

narrador desvela-se em uma estrutura onírica que comporta um local geográfico e

cenários específicos (o Recife e sua estação, o salão e a plataforma da gare), uma época

e personagens determinados (o passado de juventude do narrador, seus amigos,

vizinhos, conhecidos, pessoas ilustres da sociedade), o desenvolvimento da ação e o

desfecho da encenação.

A fronteira entre o universo real e o surreal surge vaga, borrada, deixando-se

entrever somente aqui e acolá. No conto, o trem cardoziano – ou trens, posto que há

vários, de diferentes horários, gentes e percursos – configura-se ele próprio como limite

entre mundos, transporte entre o este e o aquele, numa trajetória flexível e recriadora

das noções de tempo e espaço. Seu percurso espaço-temporal é novo, ignora os

fundamentos do real, amplia-se no domínio do sonho e traz para o narrador uma visão

de coisas pretéritas, um anúncio de despedida, uma viagem cósmica.

A despedida, aliás, encharca todo o tecido da trama, nos parágrafos cheios de

nostalgia e beleza contida, no sentimento zelosamente desdobrado no decorrer do conto,

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na saudade, saudade imensa e delicada, das coisas idas, do pretérito vivaz que já se

esconde atrás do horizonte, do cenário tão e há tanto visitado – a gare ampla, primeira e

última –, das pessoas, amigos, conhecidos, moças formosas, gente antiga e garbosa,

pessoas entrechocando-se em grande azáfama, saudade que se desfia em palavras

precisas e cálidas, flashes simples, clarões:

[...] o dia estava claro e luminoso; ouvi passos no corredor e, aos poucos, iam entrando

pelo salão de espera os que estavam acostumados a viajar naquele comboio. Quase

todos eu conhecia de vista e estavam como costumavam viajar. Eram normalistas,

moças que estudavam para serem professoras, vinham da Escola Normal; eram rapazes

saídos há pouco do Ginásio Pernambucano, onde faziam o curso de Madureza;

chegavam, sentavam-se nos sofás e ficavam à espera da chamada, da abertura do portão

para a gare onde estava o trem que ia partir. Ali vi também chegarem amigos com quem

costumava conversar [...] Estavam todos ali parados dentro daquele silêncio, todos; a

estação estava repleta de gente e havia um rumor surdo dentro daquela paz, dentro

daquele sossego dos anos remotos que eu agora revia e experimentava (CARDOZO

2008).

Todos eles, toda essa saudade hão de embarcar em direção ao outro lado, ao lá,

ao avesso do mundo, à profundeza ignorada e perdida em confins cósmicos, numa

viagem caracterizada por uma geometria própria, desvinculada de trilhos euclidianos,

uma lírica e arrojada navegação. Na obra cardoziana – e especificamente em “Na

estação” – abundam passagens que demonstram a habilidade do autor em reelaborar

termos da ordem do real e reconfigurar o esquema espaço-tempo. Ainda é Everardo

Norões quem melhor traduz a preocupação incessante do autor com essa relação:

O trem, personagem central [...], viajará pelo espaço-tempo. Assim pressentia o poeta ao

avistar o comboio de 1h20 de um tempo passado e ver desembarcar amigos, colegas de

colégio, usineiros, normalistas, médicos ou despachantes de alfândega. A sensação de

inversão do tempo o fez sentir-se observado por aqueles transeuntes que, apesar de já

mortos, lhe pareciam moços e vivos. E ele, de repente, sentiu-se como “um velho, muito

diferente do que teriam visto em outros tempos longínquos”. O Tempo, em toda sua

desmedida, afligirá o poeta até sua Viagem derradeira. (NORÕES 2008).

A imagem do trem em “Na estação”, perfeitamente harmonizada com a unidade

essencial tão ansiada pela prosa cardoziana, reveste-se de beleza e balanço, oscilando

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entre o real corpóreo do passado e o sonhado nebuloso do agora, o vivido e o

maravilhoso, luz, bruma e noite, integrando-os numa linha trançada de forças de fato

notável, rumo a um caminho todo. A inabalável aproximação entre elementos antes

afastados torna-os especulares, interdependentes, solidários, ecoantes; há “uma

ressonância de tudo em todos [...] Essa unitotalidade, ou esse grau de coalescência, essa

vastíssima teia que serve como ponte, passagem, comunicação entre ordens tão diversas

da matéria/energia” (LUCCHESI 2008).

Com o trem de Cardozo, saímos da esfera natural, física, para a esfera cósmica,

saciadora do desejo de espaço e plenitude. Não se trata de um horizonte celestial, que

ainda se situa no mundo sensível, terreno, mas de um lugar outro, fora, novo, ligado a

um tempo e um espaço completamente alheios a noções tradicionais. Para preencher seu

destino (chegar?) – a eterna e distante solidão dos astros, soltos no sem fim, integrados a

um único (uno) fluxo cósmico –, o trem cardoziano parte de uma visão, sonho mítico,

reavivamento de momentos de passagem, de ritos de adeus e recomeço, paisagem

completa e transitória, para se mover no Universo, “onde tempo e espaço não são dados

fixos, neutros, inalteráveis, mas elementos inerentes ao embate das forças do mundo,

onde se inclui o trem” (LUCCHESI 2008). As imagens levantadas por Cardozo em “Na

estação”, melancólicas, compõem o estrado sobre o qual o leitor se construirá e o trem

se encorpará e viajará em direção a um novo mundo.

Transportando passageiros de outras épocas, homens já idos, para o depois da

memória, o trem cresce para alcançar o além do céu, em que os tripulantes terão suas

vidas desvinculadas da lembrança do narrador e experimentadas autonomamente, numa

inversão de pontos de vista: para eles, o narrador é apenas nódoa encontrada em um laço

específico do tempo e espaço. Dele separados, desligam-se das raízes do lembrar e

afirmam-se como corpos independentes, fantasmas que vagueiam pelo além-sonho,

despregados de gravitações.

A viagem é aqui busca de plenitude, da eternidade, do reencontro – a viagem

realizada dentro de seus domínios, não como fuga. A viagem perpetrada pelos

personagens cardozianos em “Na estação” é uma trajetória post-mortem, um além do

além, uma ascensão para o depois, a viagem no espaço que se quer estranho ao

moldado, que se quer incorpóreo, pura energia. O narrador perfaz sua viagem sem se

deslocar, arejando os recôncavos do pensar.

Ao deixar o passado aflorar, exposto nas roupas, personagens, conversas e

janelas, o narrador liga-se indelevelmente ao presente. A viagem empreendida em sonho

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(e fora dele) começa num lugar passado, e por isso nenhum lugar, roçando uma

desfocada realidade, um cenário enfumaçado, incerto: Inferno, Paraíso, nada, ambos.

Fora do aqui e agora, simples exalação, o trem desprende-se da última saudade, e, longe

de realidades conhecidas, embrenha-se, em profundas evocações silenciosas da

memória, no remoto. O trem fantasma parte das orlas do sonho, paisagem liberta,

elusiva, para atingir o acima do espaço e tempo do mundo.

A memória no conto é algo cinematográfica – não à toa o personagem Reinaldo

toca piano numa orquestra que acompanha filmes mudos. As lembranças não se

desenovelam como simples memórias, mas como quadros em movimento, autônomos,

tangíveis. Ao desfiá-las, Cardozo compõe de fantasmas gentes de carne e osso, que vão

tomando o salão da estação. Podemos ver Reinaldo, sempre atrasado, correndo para

pegar o trem. Enxergamos a locomotiva apitando, fumando, as rodas começando a se

mexer lentamente, depois mais rápido, e rápido, e rápido.

Mais do que um conto composto sobre bases imagéticas, “Na estação” surge

quase como película de páginas e letras e papel. A narrativa se robustece com cadeias de

imagens que propõem movimento, como rolo de filme. Na primeira sequência do conto,

aliás, vemos o salão de espera, sempre mais próximo – e recapitulado outra e outra vez

parágrafos adiante –, a câmera ampliando-o, condensando progressivamente o plano.

Poderíamos sugerir uma associação – embora não declarada, nem intencional –

com A chegada do trem à estação, dos irmãos Lumière, primordial. As imagens

elencadas por Cardozo situam-nos numa dimensão de realidade, lastreada por seu

caráter fundador, o que de certo modo lembra a reação do público ao assistir à Chegada

do trem à estação – pessoas correndo da sala de projeção por acreditarem que o trem

iria atropelá-las.

Memória e presente entranham-se, codificados em imagens, indiferenciados. Se

a imagem é organicamente processada da mesma forma que a lembrança e independe do

tempo cronológico, podemos negar a existência presente de nossas memórias? Podemos

negar a existência presente de nossos sonhos? O sonâmbulo vê seus sonhos misturarem-

se aos fatos indistintamente. Sem esta separação, podemos negar a (supra)realidade do

sonho?

Só a imagem é certa, matéria que conforma passado, presente, sonho, vigília,

tecido em que se cruzam fios para produzir uma mesma estampa. A imagem cardoziana

é o tear sagaz a partir do qual se compõe o motivo, fibra única que, por um movimento

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preciso, chega a formar uma superfície. Ela é a trama – e talvez por isso em Cardozo

elementos antes apartados apareçam colados.

A imagem é ela mesma sequencial, trazendo no bojo a simultaneidade espaço-

temporal, coexistência de presente, passado e futuro. Nela, o passado não é só uma

lembrança e o futuro é mais que uma suposição: em ambos os casos, a dinâmica

temporal é remodelada em função de um olhar em torno. Diferentemente do cinema, em

que a continuidade é garantida pelo esforço de recuperação da memória do fotograma,

portanto, pela representação da imagem passada, na pura imagem literária a sequência

configura-se como sobreposição de momentos em uma mesma imagem, num contínuo.

Há que se desviar do perigo de não contemplar a totalidade da escrita

cardoziana; aqui se trata de narrativa pejada de imagens, em que estas se cercam das

palavras para erigirem seu edifício. Pelo contrário, num olhar mais ligeiro, o texto

poderia parecer acintosamente apartado da imagem, um desafio para o leitor

desacostumado a ler-se essas imagens. Não basta (ler) ver, é preciso estar aberto para

que se possa a partir disso (re)inventar-se. Assimilar totalmente a imagem, assimilar-se.

Se a imagem constitui um elemento narrativo insubstituível, expressão independente,

ela pode revelar-se ao máximo. No universo cardoziano, o (não) preparo para lidar com

a imagem envolve também a compreensão da posição assumida por ela na obra do

autor; há narrativas simples que se complexificam com imagens primárias. A imagem

ganha fôlego impulsionada pelo seguimento do contar, pelo espocar de outras imagens,

e não apenas por seu desenho detalhado, isolado. A eficácia da imagem não se apoia em

sua “beleza” – um traço rude pode ser mais instigante.

O narrador recorda seu eu mais jovem sentado no mesmo banco, e somos

remetidos ao conto “O Outro”, de Borges, igualmente relatado por um eu mais velho. O

parágrafo final parece resumir a qualidade da imagem de depositório de instâncias de

outro modo segregadas: “Meditei muito sobre esse encontro, que não contei a ninguém.

Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um

sonho e foi assim que pôde esquecer-me; eu conversei com ele na vigília e ainda me

atormenta a lembrança” (BORGES 2004). Aqui, tais esferas embolam-se, infinito

novelo, cujas pontas se perdem no miolo da espessa, pura lã.

O narrador é puxado para o agora, as imagens dissipam-se. Da fervilhante

estação resta o silêncio, da juventude só uma ruga. Tudo é poeira, o tempo derrete para

dentro de si. A estação afunda, revela o cair do corpo, matéria que escorre lenta,

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transcorre sempre para o fumarento da morte. O narrador quer fugir, correr, mas está

atado. A cada momento, um sobressalto.

Da tempestade, contudo, nasce a onda plácida: o narrador segue rememorando

os personagens recorrentes que coloriram sua juventude e o percurso diário do Recife a

Jaboatão. Chega mesmo a ouvir o grito do vendedor de bilhetes de loteria, o que o

arrasta de volta para o hoje, angustiado, assustado. Oscila, assim, entre o conforto

sossegado do devaneio e a melancolia trazida por um agora um tanto decadente, algo

soturno, em que contempla sua sanidade e a razão de recordar e ver todo aquele cenário,

antes de se deixar de novo levar por sua galeria de luzes, pessoas. Desta vez, é o trem

das 10:20, o último, que o levava de volta a Jaboatão, em viagens noturnas – levanta-se

para aguardá-lo, ouvir seu apito. Deslocado subitamente para o estático da sala vazia a

seu redor, sente, estranhamente, que a composição passou sem que pudesse embarcar,

vetado por leis de uma dimensão à qual não pertence, não pode ir. O trem assoviou,

partiu, mas o narrador não ouviu, nem pôde prosseguir, como se eixos se

sobrepusessem, espaço-tempo dobrável – a estação espraia-se rumo a um tempo passado

e a um tempo futuro, ponto que encerra um diagrama quadridimensional.

O tempo inapreensível é entrevisto no instante de um cochilo: “Suponho que dei

um cochilo... Perdi a consciência por alguns segundos. Segundos? Quem poderá dizer o

tempo que dura um cochilo? Quando não se sabe medir o tempo de um sonho, como se

poderá conhecer o tempo que se passa num cochilo?” (CARDOZO 2008).

A seguir, temos o trem das 4h10, que perfaz o trajeto mais longo, com habitués e

outros nem tanto – todos esperam a partida. Se o narrador não estranha as pessoas e não

demora a aceitá-las, a recíproca não é verdadeira. O sonhado rejeita o sonhador, e não o

reconhece como parte do universo sonhado, que para ele não é sonho, mas seu mundo

inerente. Os habitantes do sonho combatem o invasor, o corruptor de sua teia onírica. A

presença do narrador já idoso, ao contrário do jovem a que estavam acostumados,

desperta a suspeita dos sonhados, que vão se amalgamando em sua desconfiança.

Partem apenas com a passagem do trem, que os leva em seu encalço. A nuvem que

ainda resta revela uma última passageira de idos longes a ser carregada dali: Maria de

Lourdes, que se despede do narrador com um boa-tarde e um boa-noite, momentos

emaranhados, próprios. Lourdes apaga-se, e o narrador desperta – ou desperta, e então

ela some. Nada mais sobra para ser sonhado, resta a sala vazia do agora.

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10.Brassávola

No dia, solar, que se apaga, que se extingue, a tarde pouco a pouco se fina, se

espetala. Espectros, espíritos rondantes cantam suas mortas almas no perfume da

pequena orquídea, embaciada e ordinária. É o cheiro desses fantasmas, o aflorar de

tantas sensações bruxas, sombras, aromas, silentes – descabidas –, que atravessa o conto

“Brassávola”, ele próprio uma orquídea casta e recolhida que desabrocha num tomar

pleno dos sentidos, numa anunciação de tantos encantamentos, sortilégios.

Nos ritos e liturgias os mais variados, das crenças pagãs da Antiguidade ao

catolicismo, o perfume aparece continuamente como elemento mágico. Oferecido em

sacrifícios para deleitar divindades – no Egito antigo as deusas eram tidas como capazes

de ofuscar as mulheres com seu odor inebriante –, fabricado em templos, purificador –

sendo por vezes fruto da queima de incensos –, espargido em estátuas de deuses,

empregado no embalsamamento de cadáveres, depositado, em pequenos frascos, em

túmulos, borrifado em lápides, o perfume remete emblematicamente a uma conexão

com um mundo espiritual, que, assim como ele, é inapreensível, incorpóreo, muito

embora sensível. Ele alude fatalmente, por conta de sua própria natureza, a uma

essência, presença da alma: fragrante, existente, impalpável, perceptível.

A aderência do perfume, mesmo após a partida daquele que o carrega, insinua

uma noção de duração e uma insistente e impositiva lembrança. As reminiscências

olfativas provocadas pelo perfume ajuntam-se em fragmentos mnemônicos e atiçam a

chama da recordação:

Quando de um passado muito distante nada subsiste depois das pessoas estarem mortas,

depois das coisas estarem quebradas e dispersas, somente sabores e cheiros, mais

frágeis, mas mais duradouros, mais não-substanciais, mais persistentes, mais fiéis,

permanecem estáveis por um longo tempo, como almas, lembrando, esperando,

ansiando, dentre as ruínas de todo o resto; carregam inabaláveis, na minúscula e quase

impalpável gota de sua essência, a vasta estrutura da memória (PROUST 1982).

Assim, o perfume traz a memória, o vestígio do que um dia foi, o reavivamento

do findo, quase memento – e talvez por isso tenha sido vastamente utilizado em

cerimônias funerárias. Ao despertar o aparelho sensitivo do homem e destrancar o baú

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das lembranças, o perfume inflama o pensar, que se abre então para as imagens em

redor.

Em “Brassávola”, Cardozo cria uma expectativa no leitor ao elaborar um conto

dramático que se desenrola num crescendo de suspense. Aqui, entremeado à sutil

simplicidade de parte do ambiente da narrativa – encorpada por sugestivas e bem-

acabadas descrições –, viceja um clima fantasmagórico, abeirando o feiticeiro, que

outorga um caráter muito peculiar ao narrado (atmosfera já vividamente presente no

desnorteio do eu, no cenário agressivo, soturno e desvairado e nos intangíveis

descaminhos de “O caminho”). O que se vê é o acontecimento chão adquirir uma

dimensão de extraordinário, insondável – o que ocorre igualmente em “O caminho” –,

ao se evolar do conto mesmo a impressão de sons entreouvidos, presenças furtivas,

cheiro extasiante, entardecente.

“Brassávola” incorpora mais um expressivo exemplo de mundos paralelos, que

fascinam e tanto mobilizam Joaquim Cardozo, impelindo-o a elaborar universos

ficcionais intensamente (extra) sensoriais, uma das bases de sua criação. Do mesmo

modo que em “O caminho”, Cardozo convoca o leitor para uma teia narrativa em que se

enredam imagens, sensações, possibilidades, estímulos, sobressaltos. O perfume

delicioso e impregnante e o espanto temeroso que ele produz assediam incansavelmente

o narrador, atacado então por calafrios, numa consequente e pronta reação

psicossomática: o homem desarranja-se, turva-se ao topar repentinamente com

determinadas manifestações, que lhe assaltam sem trégua os sentidos e o mental.

Com suas sugestões e narrativa densamente tramada que se achega do leitor

enigmática, o conto desprende uma atmosfera misteriosa que se acerca até das

lembranças de Cardozo, especialmente ao se referir o narrador à casa e à rua habitadas,

à disposição dos cômodos de sua morada, ao trabalho que realizava, à rotina de

perambulação por restaurantes, bares e pensões de mulheres, às conversas com amigos,

às recordações de outros, já falecidos, às leituras e hábitos domésticos. Em

“Brassávola”, assim como em “O caminho”, as imagens parecem reforçar o ingrediente

fantástico, inebriante, crepuscular. Combinando descrições planas, mas não desprovidas

de beleza, com límpidos efeitos sonoros, cheios, e tessitura de palavras culminando em

imagens semeadas aqui e acolá, Cardozo apura um texto liricamente urdido.

Íntimo da morte e dos elementos a ela adjacentes por ter assimilado, desde muito

cedo, sua latente ubiquidade (no caso de alguns membros da família, como o irmão

mais velho, o pai, a tia-avó), e afeito a uma solidão contemplativa, Cardozo traslada

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para este conto tal fascínio pelo perfume das almas: perfume do que já se foi, mas

persiste, e que portanto sempre está. Introdução ao anoitecer, despedida da luz, o

perfume relaciona-se ao tempo cardoziano, integramente cósmico; ele é, como o

corredor de “Brassávola” e a encruzilhada de “O caminho”, entroncamento, transição

entre dois mundos coexistentes, ou mesmo coalescência, passagem para um paraíso

possível, Éden terreno, perfeito humano.

Nesse perfume se animam momentos passados e revividos, copiosas

possibilidades – clarão e noturno –, a das gentes de outras épocas, uma de mulher,

incerta, ela mesma flor romanticamente aureolada. Nesse perfume se aninha o

crepúsculo, momento lacunar, hora do ângelus, “hora dos corvos”, hora dos mortos

(também em “O caminho” a tensão se agudiza com a chegada da noite).

É a hora em que o sino toca,

mas aqui não há sinos;

há somente buzinas,

sirenes roucas, apitos

aflitos, pungentes, trágicos,

uivando escuro segredo;

desta hora tenho medo

É a hora em que o pássaro volta,

mas de há muito não há pássaros;

só multidões compactas

escorrendo exaustas

como espesso óleo

que impregna o lajedo;

desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,

mas o descanso vem tarde,

o corpo não pede sono,

depois de tanto rodar;

pede paz – morte – mergulho

no poço mais ermo e quedo;

desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,

gasalho, sombra, silêncio.

Haverá disso no mundo?

É antes a hora dos corvos,

bicando em mim, meu passado,

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meu futuro, meu degredo;

desta hora, sim, tenho medo (ANDRADE 2002).

Hora da saudade e da melancolia, da nostalgia por um passado que declina,

imagem de um sol que se apaga, mas também de anúncio de uma nova aurora, de um

novo tempo-espaço, que irromperá de dentro das trevas.

No silêncio expectante de seu retiro poético, Joaquim Cardozo deixou-nos um dos mais

importantes legados da cultura brasileira do século XX. Sua obra literária [...] representa

apenas parte da construção mental do poeta-engenheiro, cuja genialidade pôde abarcar

desde a refinada linguagem literária à compreensão das mais avançadas conquistas da

ciência e da arquitetura modernas. Na gênese de sua obra – nas formas dos gestos e da

poesia, ou na poesia das formas – havia em Joaquim Cardozo a irreprimível obsessão da

beleza aliada à intuição de que o ímpeto criador que dele se apossara, quase como uma

doença, resvalaria serenamente rumo a uma dimensão cósmica (NORÕES 2008).

Em “Brassávola”, o leitor se afunda no clima fantástico a partir do qual se

constrói a narrativa, na qual sobrepujam sensações que incendeiam e frequentemente

desorientam os sentidos, como o próprio perfume da orquídea, que sugere algo de

sobrenatural ou mesmo mal-assombrado. Medos, angústias, sobressaltos e a visão de

eventos inexplicáveis são tópicos que Cardozo ajunta de forma harmoniosa neste conto,

espalhando-os ao longo da narrativa, além de elementos com fundo científico, como,

por exemplo, nomes técnicos, botânicos, de uma série de espécies de orquídeas. Assim,

Cardozo logra atingir efeitos expressivos a partir de sugestões sonoras, visuais e

olfativas propiciadas pelas imagens espalhadas ao longo do texto.

Temos em jogo aqui a questão da memória, saudada como capaz de reviver fatos

olvidados, guardados. Em “Brassávola”, os sentidos, perturbados ao roçarem suvenires

visuais, olfativos, sonoros, acordam a memória e causam certo desequilíbrio e distúrbios

psicossomáticos naquele que experimenta tais sensações difusas.

O narrador principia o relato contando como habitava uma rua do Recife

chamada 24 de Maio, lugar detentor de poderosa carga significativa, posto que

construído sobre o Cemitério do Convento dos Carmelitas – daí seu nome anterior, Rua

dos Ossos. Isto parece sugerir um contato, embora involuntário, do narrador com o

trascendente, o sobrenatural. Por ali ter havido um cemitério, muitos ossos haviam sido

removidos, sepultados, esquecidos. A Rua 24 de Maio, portanto, fora aberta sobre “terra

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ocupada por gente morta há muito tempo, e de quem não mais se tinha qualquer

lembrança dos parentes e amigos”. A rua não é agradável; por sua peculiaridade,

caracteriza-se como misteriosa, algo sombria.. Mantendo sempre um paralelo com o

cemitério que havia previamente ali, as casas, muito pequenas, são comparadas a

mausoléus para os vivos, local de atração para as almas cujos corpos haviam sido

enterrados no antigo cemitério. A rua era “estreita e triste, indicando, pelo aspecto, a sua

origem lúgubre e funérea”; pela implicação geográfica e seu passado de morte e

desconsolo, engendra de antemão um clima gris – “estava impregnada de uma

lembrança vaga e incerta, desconhecida ou indeterminada, impregnada de uma saudade

imperceptível e mutilada; de uma nostalgia misteriosa e longínqua. Era uma rua estreita

e triste!” (CARDOZO 2008).

Mesmo tendo acolhido durante tanto tempo centenas de mortos, a rua não mais

guarda seus rastros, visto que com os anos “Apagaram-se os nomes nas pedras das

sepulturas, apagando-se, nas memórias, as recordações.” A rua, “estreita e triste”, está

sempre impregnada “de uma lembrança vaga e incerta, desconhecida ou indeterminada,

impregnada de uma saudade imperceptível e mutilada; de uma nostalgia misteriosa e

longínqua”. Já neste ponto Cardozo prepara o terreno para as sugestões de mistério,

dúvida e nostalgia que marcarão o conto nos parágrafos a seguir.

A casa do narrador parece também evocar essa tristeza, o tom tétrico, a

desolação. Reside solitário na casa, parca e toscamente mobiliada, com outros cômodos

mantidos em quase ruína, desuso. Seria a casa do narrador seu mausoléu? Seria ele uma

das almas penadas da 24 de Maio, atracado à rotina de sempre?

Morando sozinho numa das casas da 24 de Maio, o narrador afirma ocupar

apenas a sala da frente e o quarto adjacente. O restante da residência permanece

completamente abandonado. A parte da casa que mais o impressiona é o corredor – algo

bastante curioso, visto que “O corredor somente usava pela manhã, para alcançar o

banheiro e o sanitário, localizados no extremo da casa, depois de um pequeno quintal”

(CARDOZO 2008). O longo corredor comunica os cômodos anteriores, habitados, com

as dependências posteriores, isto é, a sala de jantar, outro quarto e a cozinha, deixada

inteiramente sem uso, morta, esquecida, abandonada. Na parte de trás da casa, somente

a sala de jantar é utilizada, no café da manhã. O corredor é eleito pelo narrador como o

espaço de maior destaque, o que mais lhe interessa, apesar de não encerrar nenhum fim

senão o de passagem – limbo sem bem ou mal, amorfa interrogação:

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Dessa casa em que morei, na rua 24 de Maio, o que mais me impressionava era o

corredor; não sei por que descobria, na sua escura e larga e longa penetração até a sala

de jantar, qualquer coisa de esquisito e fantástico, sobretudo porque sabia que ele era

uma comunicação quase mutilada para o resto da casa, sobretudo para a cozinha e o

outro quarto. O que mais me impressionava era o corredor. Quando levantava os olhos

da leitura que estava fazendo, era sempre do corredor que me vinha uma sensação de

tristeza e isolamento. Ao longo das suas duas paredes sem abertura para os dois

quartos da casa reinava sempre um silêncio dentro de uma escuridão, mais espessa

quando, com as chuvas, mais cedo anoitecia, e quando procurava ir ao banheiro, à noite,

era uma aflição que me vinha ao penetrar naquele túnel, pois representava, para mim,

uma aventura percorrê-lo. De qualquer modo, aquele corredor era uma passagem

forçada para alcançar a sala de jantar e o banheiro; habituei-me, portanto, ao seu

mistério e à sua realidade (CARDOZO 2008).

A imagem do corredor, espaço mítico de transição entre dois mundos, é união

indivisível entre o aqui, civilizado e habitado, e o além, insondável, bruto. Mais adiante

o corredor é lembrado como fator de indeterminação e gerador de angústia, temor e

fascínio, posto que nele se encontram dois universos antes separados. Agora, entretanto,

temendo o imponderável, o narrador utiliza-o de forma estrita, unicamente para alcançar

o banheiro e o sanitário, situados no extremo da casa.

A memória, aludida no segmento consagrado ao nome anterior da Rua 24 de

Maio, é também evocada no trecho em que o narrador fala de seu costume de trabalhar

na repartição, almoçar fora, voltar a casa após o expediente, e encontrar-se à noite com

amigos em restaurantes da região, com os quais conversa até tarde. Recorda com gosto e

vividez de detalhes como bebiam em bares do Recife Velho e frequentavam “pensões

de mulheres”. Antes agregada a elementos lúgubres, nesse momento a memória –

embora revestida de certa melancolia – associa-se à alegria de reviver tempos idos com

companheiros em aventuras notívagas, completas e animadas.

No trecho subsequente volta o narrador a comentar acerca do corredor: “na sua

escura e larga e longa penetração até a sala de jantar, qualquer coisa de esquisito e

fantástico, sobretudo porque sabia que ele era uma comunicação quase mutilada para o

resto da casa [...] O que mais me impressionava era o corredor.” A parte deficiente e

inútil da casa robustece no corredor seu caráter de fator de ligação entre um pedaço

vivo, mundano, enérgico, e outro, mero apêndice, apagado e esquecido. Do corredor lhe

vem “uma sensação de tristeza e isolamento. Ao longo das suas duas paredes sem

abertura para os dois quartos da casa reinava sempre um silêncio dentro de uma

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escuridão, mais espessa quando, com as chuvas, mais cedo anoitecia”. Como usual nos

contos de Cardozo, a imagem da noite suscita perturbação e silêncio definitivo, maus

presságios, isolamento e tristeza. A imagem do corredor, ele passagem entre dois

mundos, impõe-se ao narrador como desafio, causando-lhe aflição: “representava, para

mim, uma aventura [...] era uma passagem forçada [...] habituei-me [...] ao seu mistério

e à sua realidade.”

Retornando aos amigos com quem costumava prosear nos antigos cafés

recifenses, lembra-se o narrador do filho de um engenheiro inglês, William Cox. No

sítio onde morava, Cox cultivava orquídeas, tema recorrente de suas conversas.

Incentivado pelo interesse demonstrado pelo narrador, Cox começa a oferecer a seus

amigos o que o orquidário produzia: oncídios, catleias, lélias, vandas, dendróbios,

miltonias, epidendros, que em todos despertavam admiração, fascínio pela beleza de

seus cachos, de seu colorido intenso. Presenteado com alguns exemplares, o narrador

retornava a casa e os punha na sala de jantar, dentro de um copo com água. É uma

dessas encantadoras flores que suscitará no narrador uma impressão suprema, indelével

– à semelhança do corredor da casa em que mora, com o qual se relacionará.

Em dado dia recebe de Cox “uma pequena flor, sem o brilho e o colorido das

catleias ou das lélias ou dos oncídios e tantas outras que eram belas, brilhantes, com

suas pétalas acetinadas; era, sim, uma pequena orquídea de cor branca e medíocre, que o

nosso amigo designou como uma brassávola”. A flor, ao contrário das demais, que

esgotavam seus encantos à primeira vista, permanece para o narrador fonte de mistério,

por não trazer estampada em sua figura nenhuma graça especial – nem formato, nem

textura, nada que sobressaísse. No entanto, possuía um tesouro: o dom de, nas primeiras

horas da tarde, desprender “um cheiro bom, forte e agradável”. Portanto, a brassávola

introduz o entardecer; é ela que “anunciava a noite”, imagem conectada ao vir do

crepúsculo, cujo “dom cósmico” informa à natureza a partida do sol. O perfume da

brassávola é, pois, uma despedida, um aceno de adeus ao dia que se extingue. Como o

corredor, o odor da orquídea estabelece o processo transitório entre dois mundos – luz e

sombra –, comunicando um lusco-fusco, a finitude do dia e a obrigatoriedade da noite.

Também a flor é passagem, prenúncio:

[...] uma noite o meu amigo trouxe-nos uma pequena flor, sem o brilho e o colorido das

Catleias ou das Lélias ou dos Oncídios e tantas outras que eram belas, brilhantes, com

suas pétalas acetinadas; era, sim, uma pequena orquídea de cor branca e medíocre, que o

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nosso amigo designou como uma Brassávola. Quase sem graça e sem valor para ser

vista, mas tinha uma propriedade que as outras não possuíam: aquela Brassávola era

perfumada, emitia um cheiro bom, forte e agradável; a partir das primeiras horas da

tarde, a flor, com o seu perfume, anunciava a noite; o crepúsculo tinha o dom cósmico,

universal, de comunicar ao mundo terrestre, à natureza, que o sol distante desaparecera;

havia entre a flor e a luz solar uma espécie de simbiose ou de despedida qualquer, que

justificava o seu perfume como uma manifestação da vida vegetal, caracterizada pela

clorofila; o seu perfume era uma parte do crepúsculo, era a transformação da luz em

sombra (CARDOZO 2008).

Flor e corredor, aliás, embaraçam-se no dia seguinte. Levando a brassávola para

casa, o narrador faz como de praxe: coloca-a num copo d’água sobre a mesa da sala de

jantar. Retoma a rotina, voltando a trabalhar na repartição, almoçando na rua,

regressando a casa no final da tarde para ler, já esquecido das propriedades da orquídea.

Um dia, ao cair da tarde, vê-se confrontado com algo insólito. Lendo um romance,

como de costume, sente “um cheiro intenso e agradável [que] invadia a sala onde me

achava”. Tal aroma, fortíssimo e extraordinário, parece-lhe vir da boca do corredor, “já

escuro”. O corredor, ponte para outro universo, traz também um perfume de outro

mundo – perfume que se confunde com a vida que finalmente parece pulsar na parte

traseira da casa, antes tão largada. O narrador pensa em fatos corriqueiros, ligados

àquele cheiro, que teriam ocorrido no lugar, e aos poucos outras pessoas – antigos

habitantes? Indivíduos enterrados no velho cemitério? – voltam à vida por esse portal

ativado pelo espaço físico do corredor e o olor da orquídea.

Talvez houvesse “uma empregada preparando a mesa para o jantar, ou na

cozinha uma cozinheira ativando aquele morto fogão de tijolo que nunca utilizei para

coisa alguma”. Logo, o narrador impressiona-se com a presença de algo inesperado,

escondido, como se os cômodos posteriores, inúteis e amputados, enfim recobrassem

fôlego, quiçá sob a forma “de uma mulher bonita e perfumada que estivesse se

preparando para vir ao meu encontro na sala da frente”.

Nesse momento, entregue a seus sentidos e ao acossamento que lhe provocam,

sente um pânico absoluto, lembrando que a casa fora construída sobre território de

defuntos. Assim, talvez o perfume fosse um recado dos mortos, reminiscência de outros;

talvez na penumbra do corredor houvesse alguém à espreita – o fantasma da bela

mulher, enterrada há anos? Momentaneamente enlouquecido pelo cheiro profundo e

inesperado, o narrador chega “a ter a sensação de passos no corredor e uma certa ilusão

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de ouvir sorrisos abafados”; ignora o que fazer, perseguido pelo misterioso corredor,

que lhe traz eflúvios mágicos, alucinações.

Tentando “voltar à realidade” palpável, e para controlar a amplidão soturna da

noite, acende a lâmpada da sala. O aroma, no entanto, permanece, cada vez mais

penetrante. Conquanto tomado pelo medo, resolve enfrentá-lo e descobrir a origem do

perfume; para isso deve atravessar o largo corredor, longo, fechado, corredor “túnel”. O

perfume não só provoca seu olfato; desguarnece-o, igualmente, dos demais sentidos,

deixando-o à mercê de delírios, como as visões de “uma figura esvanecida,

estrangulada, que desapareceu de repente” e de “uma mão muito branca, de dedos

crispados, ao longo da ombreira da abertura da passagem para a sala de jantar”.

Apesar das aparições, o narrador persiste, em busca da causa do enigmático

cheiro, que faz com que siga pelo portão mágico. A hora é significativa: “seis e meia”,

tempo aproximado do ângelus, instante em que o dia vira noite, fundindo-se ambos, em

que os mortos revivem e os vivos preparam-se para a escuridão. Percorre o corredor e,

atingindo a sala de jantar, a fim de dissolver o pretume da noite, acende a lâmpada.

Finalmente dá-se conta da pequena brassávola, que começa a exalar seu perfume às seis

da tarde. Com a descoberta, desfaz-se o encanto: vê “a pequena orquídea! Estava ali,

medíocre, esbranquiçada, alvacenta, desbotada [...] era quase nada”. Nesse momento, o

crepúsculo, também ele uma imagem de transição, dá lugar definitivo à noite. A flor,

aparentemente vulgar, fora capaz de relembrar-lhe o passado, solapar seus sentidos,

desgoverná-los com seu perfume embriagador. A imagem da brassávola contém, ela

mesma, a “hora das antigas ave-marias das igrejas do Recife”, de ângelus idos, tempos

acabados – a brassávola que, com seu perfume, se despede do dia e entra na noite,

envolvendo ambos: “Perfume da luz crepuscular, se transformando em noite pura.”

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11.O caminho

“O caminho”, como aliás de maneira mais geral ocorre nos contos de Cardozo,

intriga e esparge possibilidades entrançadas. Os dados estão todos lá, o tema é claro;

mesmo assim, a montagem do puzzle final mostra-se complexa, talvez impossível. O

conto acossa com idas e vindas, mistérios indecifráveis – é todo ele incerteza. Não há

justo e errado, falso e autêntico. Dualidade é palavra emblemática na obra de Cardozo,

com as imagens se arrumando em contrários, avanços e tropeços, fatos, chances,

sugestões.

A começar pela forma escolhida para a narrativa, na superfície linear, mas

rugosa e espessa num substrato, há quase dois modos entrelaçados de contar uma

história – afinal, a mesma história. Tudo é especular, imagem e reflexo. Há, por um

lado, o relato do narrador, relato este que, embora pessoal, busca um tom mais seco,

direto. Tal relato é calcado em fatos, descrições pormenorizadas de acontecimentos.

Num primeiro momento, não parece haver muito espaço para divagação. O estilo quase

cronístico é rompido em momentos-chave da narrativa, quando o relato se imbui de

caráter mais emocional, e assim se duplica.

Ao relato objetivo dos primeiros parágrafos contrapõe-se – complementando-o –

o do momento seguinte, que traz uma carga de imagens poderosas, afetando o narrador

e o leitor. A história vai sendo contada com largas pinceladas, expressionistas. A

narrativa revela na mesma medida em que se perde em devaneios circulares que nunca

parecem chegar ao ponto ansiado pelo leitor.

Nada em Joaquim Cardozo é certo, previsível. A ambiguidade do enredo e do

estilo gera um confronto de forças fadado a não ter fim. Se por um lado há o narrador,

homem culto e sofisticado, por outro irrompe a força bruta de uma natureza crua e

mormacenta, num legítimo coração das trevas tropical.

Do conflito entre essas duas partes, a contenção de um mundo lapidado e o

imponderável de um universo brutal, nasce a tensão que, pouco a pouco, encharca a

narrativa.

Em determinado momento, a leitura impõe-se compulsiva, furiosa e atropelada,

embora quase se espatife contra um beco sem saída, em que a dúvida, e não uma

verdade pronta, triunfa fragorosamente. O translúcido exaspera e fascina. É inevitável a

sensação de se estar acompanhando o desenrolar de uma história por uma janela

embaçada que deixa entrever apenas contornos pouco nítidos, sem distinção de linhas,

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traços, arestas, particularidades. A compreensão do leitor está inextricavelmente

vinculada ao olhar do personagem-narrador, diretamente participante do enigmático

drama.

Ao final da leitura, a pergunta martela – mas a solução não vem, ou, se parece

vir, está misturada a erros, possibilidades. Para uns, a resposta pode insinuar-se, mas “O

caminho” parece não querer apostar no simplismo de uma única saída, jogando

simultaneamente com várias cartas, por vezes conflitantes. Em Cardozo, não há perdão

para verdades; impera sublime a atmosfera de horror crescente que alucina e desarranja,

sulca fundamente o homem e enseja um questionamento inesgotável. A mestria de

Cardozo revela-se plenamente no artifício de mostrar, descrever, e mesmo assim

encobrir. E, no fundo, a pergunta ainda está lá: por quê? Por que o trágico do humano?

Joaquim Cardozo arma sua trama dobrada em mil anéis espiralados de significados

possíveis, searas plurais, entrecruzadas.

No conto deparamo-nos mais uma vez com a obsessão do autor em retratar

temas já tão amplamente abordados em sua produção ficcional, como o tempo, a morte,

a irrupção do elemento sobrenatural, o desarranjo do sujeito diante da natureza violenta

e imprevisível, a condição oscilante do homem no mundo, que ele pensa dominar, mas

que o subjuga por completo quando menos esperado.

“O caminho” é, talvez, o conto de Cardozo em que a narrativa se tece de maneira

dramática mais destacada, começando como tantas outras, com um aparente relato mero

de fatos triviais, para desenrolar-se num crescendo de tensão algo fantasmagórica. Aqui,

Cardozo aprofunda a questão do elemento fantástico, desconcertante, que oprime a

razão do homem, esmagado pela força tentadora dos sentidos que o levam a um

universo além do tradicionalmente concebido. O caminho apresenta-se,

primordialmente, como uma trajetória sem eira nem beira, embora usualmente

entendido como uma linha ligando dois pontos, uma estrada que une origem e destino.

Este conto, contudo, mostra-nos a opção de Cardozo pela questão do caminhar em si.

Para ele, não importa de onde se sai ou para onde se vai, e, sim, o conteúdo mesmo da

trilha percorrida. É um caminho em espiral – fractal –, que vai e volta, que leva o

homem a regiões nunca antes exploradas de sua mente, de sua compreensão, ao

assombro de seus sentidos. É um caminho que, enquanto o revigora, traz-lhe um quê de

loucura, questionamento de sua razão, pasmado diante do vigor e do sobrenatural

encontrados neste mesmo mundo. Andando, o homem esbarra com grandes questões, o

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porquê de aqui estar, para onde vai – neste caminho que incessantemente se fia e se

desfaz.

Em contos como “O caminho” temos um ambiente fantasmagórico que roça o

delírio quimérico, e que se desdobra num evento que, embora nasça como aparente

prosaico – a volta por um dado caminho –, se desfolha como insólito pelo assombro que

origina. Neste conto Cardozo brinda-nos com uma peça da maior densidade,

valorizando sobremaneira a matéria literária. O confronto permanente do homem com o

circundante inóspito reflete a luta do próprio homem consigo, com o obscuro de sua

natureza, suas trevas, seu subterrâneo, o oculto. Assim, a natureza exterior encarna e

espelha a hostilidade do mundo recôndito do homem mesmo.

O que deveria ser, a princípio, um simples depoimento de um profissional

técnico vai aos poucos se desvelando como um embate do homem com seu próprio eu e

uma reflexão acerca dessa abismada relação: as voltas no caminho, as enervantes idas e

vindas pela mesma trilha (que, contudo, se mostra outra a cada percurso, a cada

palmear, numa revisita ao mote heraclitiano exaustivamente aplicado) fazem o narrador

recordar-se de outros trajetos, percorridos ou não, reais ou fictícios, como o de Santiago

de Compostela ou “aquele em que Dante se perdeu”. A alusão religiosa aparece em

ambos, absolutamente flagrante no caso do caminho de Santiago, não tão nítida no de

Dante, poeta da integralidade da experiência humana – desenovelada em Inferno,

Purgatório e Paraíso – assim como Cardozo, em quem “o amor telúrico [...] confunde-se

ou deflui do amor da vida e do amor da morte, pois que tudo se integra num só ciclo

essencial e natural, cuja aceitação é a mais alta liberdade humana” (HOUAISS 1976).

Em “O caminho”, a narrativa, dramática, é magistralmente conduzida, avivando-

se numa irresistível gradação. O universo imagético alicerça toda a estrutura narrativa.

O homem espremido pelo caminho, pelos sentidos, pelo hiperestímulo das sensações,

desorientado, descentrado, é assombrado pela perspectiva de um acontecimento

inexplicável, por fenômenos naturais que inteiramente lhe escapam. Avassalado por

manifestações da natureza – de sua própria –, o homem mal e pouco resiste à febre dos

sentidos, à urgência inclemente que se lhe impõe. A razão e o ordenamento lógico do

pensamento são, portanto, solapados pela pujança do excesso. “O caminho” expõe

estados em que se descortinam os imensos precipícios que o homem traz dentro de si e

não raro o subjugam sem que ele os perceba ou possa confrontá-los.

Refratária à convivência com o que se mostra fora do domínio da lógica, a razão

exibe-se aqui como o exercício de uma faculdade que desconfia da emoção. Assim,

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encontra esteio na necessidade humana de nomear, posto que designar é a maneira eleita

para se trazer o inefável para o âmbito do controlado. No binarismo estabelecido pelo

pensamento ocidental, segregam-se radicalmente razão – da ordem da especulação,

cerceada – e emoção – da ordem da natureza desmoderada. “O caminho” reitera a

potência dessa natureza autoenlouquecida, submetida a atipias, que se esquiva de

qualquer comedimento, para se extravasar frente ao homem, atingido em cheio pela

presença insolente do mundo, imagens que se revelam e que o revelam.

As imagens veiculadas por Cardozo reiteram sempre o cunho de transição, “de

suspeita e de incerteza”, de atmosfera movediça, metamórfica, oscilante: temos a levada

(“Araçu, velho engenho que ainda possuía o açude e a levada do tempo em que era

engenho d’água”, “levada” aqui podendo ser vista como a corrente de água desviada de

um rio para regar ou mover um engenho – a camada mais evidente – e o balanço do

tempo, imperecível embalo, justo girar, tempo cósmico); a roda (“restos da calha da

roda do velho engenho”; “Era a constatação de que a marcha do homem era o rodar de

um fragmento de roda, a material verificação de que os pés, caminhando, descrevem no

ar uma roda imaginária”; “Eu rodava assim a minha roda”); a estrada (“indo de

automóvel, em boa estrada”; “Tomávamos o automóvel muito cedo, percorríamos uma

boa parte da estrada”; “dentro da mata que orlava a estrada”; “cajueiros que ficavam à

margem da estrada”; “cheguei à estrada que vinha da cidade”); a encruzilhada (“uma

encruzilhada de três caminhos”; “cheguei à encruzilhada”; “consegui chegar à

encruzilhada dos três caminhos ou de todos os caminhos: os que eu tinha já visto e

trilhado e os que outros também seguiram”); o caminho (“íamos a cavalo [...] pelo

caminho”; “Sentia [...] alguma coisa de novo para quem voltava a pé por um caminho,

por um caminho que percorrera”; “Muita coisa de suspeita e de incerteza aquele

caminho me lembrava”; “Caminhando meu caminho e minha lembrança”; “Caminhos

que me fazem lembrar e esquecer”; “mas se o caminho já foi caminhado, recoberto por

meus passos”; “Recompor, reconstruir o caminho para poder passar”; “Nessa minha

volta fui notando como um caminho se desfazia”; “Lembrei-me de outros caminhos, em

outros países, trilhados não somente por mim, mas onde me sentia acompanhado, ou

apenas tendo sido um viajante posterior a outras passagens. Outros caminhos, outras

paisagens”), aliado a um caminhar (“Caminhava devagar”; “Mas caminhava e refletia,

meditava sobre estórias que já tinha lido”; “Caminhando... caminhando, lembrava”;

“caminhar... e despedir-se!”); a terra desdobrada em chão (“Sentia alguma coisa que me

vinha do chão”; “Aquele chão me fazia recordar outros chãos por onde passei

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caminhando a pé. Outros chãos!”; “o chão era de areia frouxa”; “o chão começou a se

mover, valas se abriram e todo o dorso do caminho ondulava encachoeirado; me sentia

deslizando nas águas de um solo incerto, tinha receio de cair, mas ia acompanhando,

com a vista, as margens da trilha por onde viera; vereda, chão que se desfazia, e agora

não mais me conduzia, antes me perseguia”); a noite em sua obscuridade (“Começava a

escurecer”; “noite fechada”; “minha marcha dentro daquele capão de mata sombria,

com a aproximação da noite”; “E a noite conduzia aquele silêncio. A noite era um túnel

completo”; “sombria espessura da noite”; “profundidade escura e fechada”; “escura

mata”; “Recuei alguns passos e ainda me demorei olhando a noite que agora aparecia,

depois da noite dos cajueiros, como a noite da maré, a noite da lama, a noite dos

mangues”; “com a noite mais densa”; “O sol [...] era como se tivesse se extinguido para

sempre, e tudo de agora em diante seria noite e caminho”; “dentro daquela noite

eterna”; “mas a noite era a mesma e o caminho era o mesmo”); o silêncio (“Por toda a

parte, no ar, havia um silêncio duro e vazio, apenas quebrado melancolicamente [...]

pela voz de um coriambo”; “cheio de silêncio, cheio, quase extravasando. Um mutismo

apagado, murcho e mutilado que tivesse sido jogado no ar [...] como um silêncio

nascendo”); de novo a terra, derramada em areia e rocha (“Terras que me revelaram

muitas coisas do barro e da areia”; “recordava outras marchas que fiz na areia frouxa”;

“O trato da areia frouxa por onde viera desaparecera, se enchera de mato, se alargara de

mar. Se apagara. Morrera.”; “Ia pensando em outras veredas [...] outras sendas que me

prenderiam pelos pés, agarrando-me com areias ou gramas secas; que me prendiam, que

não me deixavam seguir como se na sua atitude houvesse uma voz, um chamado da

terra”; “Parecia-me que tudo se modificara, a areia que eu vinha pisando não era a

mesma”; “em vez de areia frouxa, se fez rocha dura e, nesse caminho de pedra [...] toda

aquela trilha se tornara um descaminho”); a água (“observei a estrada mais além: estava

toda coberta de água [...] era água de maré crescente”; “Com o subir e descer do seu

lombo dava a impressão, não tanto de um rio, e sim de um fragmento de mar, de um

refluxo de maré cheia [...] Com aquele resvalar, às vezes rápido, às vezes preguiçoso, o

curso d’água em que se transformou o caminho ia aos poucos ondulando, oscilando”; “o

caminho que era rio, fragmento de mar, pedaços de ondas”; “uma água também,

escorregadia”).

Durante o dia solar, reto, o caminho é palmeado. À noite, com a escuridão que

envolve as coisas mais triviais, o caminho então se dissolve em areia, água mole,

pegadas que vão sumindo aos poucos na lama, descaminho: o homem perdido. É agora

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noturno, sobre-humano, brutal, tortuoso. Ao trilhar as páginas de “O caminho”, o leitor

vê-se enredado nessa progressão, que na verdade nunca atinge um clímax, posto que

não o há. O ápice, se assim pode ser considerado, é o próprio embrenhar-se neste

caminho coleante, que, traiçoeiro e misterioso, leva o leitor a alguns pontos antes

incogitados e inexplorados para em seguida mostrar-lhe que aqueles lugares tampouco

existem. É obrigado, portanto, o leitor a ir e vir em suas páginas qual o próprio

caminhante personagem do conto.

Temos, sobretudo, a natureza hostil, sempre em combate. O simples depoimento

do engenheiro técnico metamorfoseia-se, veste-se de outras roupagens, e mostra ser

uma aventura em que o narrador está envolvido, perturbado por obstáculos que lhe

aparecem do nada, na estrada ao entardecer, em meio a silêncios e opressões da noite –

noite que é “um túnel completo, cheio de silêncio”. O caminho que se desdobra em

caminhos já percorridos pelo narrador também lhe evoca outros, factuais, cogitados,

alheios, sagrados, caminhos que fizeram da história do homem seu caminho cósmico:

de Santiago da Compostela, de Dante, de Jesus, da rota da seda. A narrativa dramática

adensa-se num clima de mistério extremamente bem conduzido, o que, conforme já

ressaltado, faz de “O caminho” um dos melhores de Cardozo.

O início do conto aguça a curiosidade do leitor ao inserir um flash-forward

revelando que haverá um acidente com o engenheiro alemão Von Tilling e que, em

razão disso, será interrompida a tarefa no Engenho Araçu. No princípio do relato, o

narrador nos informa que, como ajudante do dr. Von Tilling, trabalhava na ocasião em

Araçu, distante da praia de São José da Coroa Grande, para medição de terrenos e

levantamento topográfico da área. Araçu guarda em suas terras alguma chave: tem “o

açude e a levada do tempo em que era engenho d’água”. Não à toa, o tempo aparece

vinculado à imagem da levada – a corrente de água para mover um engenho –, o que

sugere um balançar fluido e incontornável, balançar esse que fará, mais adiante, o

homem enfrentar um ir e vir contínuo, serpentear do tempo.

Para chegar a Araçu, o narrador menciona que deve trilhar um longo caminho –

mais exato, porém, do que o que encontraremos páginas à frente – a partir da praia de

São José da Coroa Grande, passando pelo Engenho Queimadas, para finalmente

alcançar seu destino. Logo no terceiro parágrafo de “O caminho” o narrador menciona a

“boa estrada” pela qual ele e seu parceiro de trabalho seguem, diariamente, de

automóvel, a fim de alcançar o engenho Araçu, onde desempenham suas tarefas de

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engenharia. Entrando à esquerda em estrada mais estreita, mais à frente se deparam com

uma encruzilhada de três caminhos, imagem que retomaremos mais adiante.

No último dia da história retratada, o Dr. Von Tilling acidenta-se e o narrador,

seu acompanhante, tem de prosseguir sozinho na tarefa cotidiana, um nivelamento.

Depois de se lesar gravemente, o engenheiro Von Tilling é levado de volta ao Recife,

mas o ajudante é instruído a trabalhar até o fim do dia e voltar a São José da Coroa

Grande apenas no final da tarde; assim faz. Na hora do ângelus, toma o cavalo e dirige-

se ao Engenho Queimadas, onde deveria encontrar um automóvel, como de praxe, para

retornar à praia. No entanto, com as idas e vindas e os obstáculos surgidos com o

acidente de Von Tilling, não encontra automóvel algum. Vê-se forçado, pois, a “fazer a

pé o trajeto do Engenho Queimadas a São José da Coroa Grande”. Parte, sabendo que

andaria por horas, visto estar tarde e ser extenso o caminho.

Após o acidente no caminho que os levava, eles a cavalo, a Araçu, o narrador

vê-se obrigado a perfazer o trajeto a pé, sozinho. É nessa caminhada que degringola o

pensar concatenado, usurpado pela natureza que avulta, viola os sentidos e clama o

homem para si. No caminho que se faz e desfaz, que é o mesmo e outros, que carrega

consigo o espectro de outras trilhas, o narrador percebe-se desamparado, confrontado

com percursos vários, pretéritos, realizados ou não; ele é um romeiro da memória, de

seu próprio eu, e assim se compara a outros caminhantes: Dante, andarilhos do deserto,

Jesus, São Nicolau de Bari, Germain Nouveau, tecelões e mercadores medievais,

vendedores viajando pelas rotas da seda da longínqua China. Dante, o poeta do exílio de

si, do exílio do amor, ele mesmo exilado perpetuamente de sua dileta cidade natal,

Florença, renegado pelos próprios companheiros, itinerante condenado a seguir de

Roma para Verona, Sarzana, Lucca e (finalmente) Ravena, peregrino de Inferno,

Purgatório e Paraíso – Dante, perdido nos caminhos –; Jesus e seus últimos passos rumo

ao Calvário; os caminheiros espaciais da Via-Láctea, os caminheiros pios de Santiago

de Compostela, dos sagrados lugares; São Nicolau de Bari (padroeiro da Rússia,

nascido na Turquia no século III, peregrino à Terra Santa, preso por Diocleciano e

libertado por Constantino, cujas relíquias foram supostamente transportadas para Bari,

Itália – daí seu nome. Segundo consta, distribuía presentes às crianças e às filhas de

homens pobres, que, sem dote, sucumbiriam à prostituição, o que o levou a ter sua

imagem posteriormente vinculada à do símbolo natalino maior, Papai Noel – o Pai

Natal –, o pródigo velhinho); Germain Nouveau (poeta francês do século XIX, amigo de

Rimbaud, atingido por crises de loucura mística, internado algumas vezes antes de

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passar a levar uma vida de pedinte e peregrino inspirada em São Benedito Labre, seu

conterrâneo, que recupera, no Século das Luzes, as grandes romarias e a rotina de

esmolas e pobreza tipicamente medievais); todos são retomados nesse caminho que se

tece e destece, se trama ao ser palmilhado, se apaga ao ser desfeito.

Com a chegada da noite – imagem associada a um mal-estar e palpitação, como

de hábito nos contos cardozianos –, o narrador começa a se questionar quando

finalmente chegará à praia. Começa a caminhar e sente alguma coisa estranha que lhe

vem do chão:

Começava a escurecer. Dentro da mata que orlava a estrada por onde ia, fui pensando:

quando chegarei à praia? Certamente já com a noite fechada. Caminhava. Sentia alguma

coisa que me vinha do chão, alguma coisa de novo para quem voltava a pé por um

caminho, por um caminho que percorrera, de manhã, sentado num automóvel. Aquele

chão me fazia recordar outros chãos por onde passei caminhando a pé. Outros chãos!

Terras que me revelaram muitas coisas do barro e da areia, de esforço e de cansaço.

Muita coisa de suspeita e de incerteza aquele caminho me lembrava. Mas caminhava e

refletia, meditava sobre estórias que já tinha lido; pensei que estava ali vivendo o que

algures já tinha lido. Já tinha lido! Era a constatação de que a marcha do homem era o

rodar de um fragmento de roda, a material verificação de que os pés, caminhando,

descrevem no ar uma roda imaginária, com apenas visível um seu fragmento

(CARDOZO 2008).

O caminho já tantas palmeado revela-lhe sua intimidade, suas profundezas. É em

suas entranhas – no que, nele, é intrinsecamente caminho (e que o aproxima de outros

caminhos), ou seja, seu próprio trilhar – que aquela linha faz com que o narrador sinta

outros chãos, outras terras, que trazem “muitas coisas do barro e da areia, de esforço e

de cansaço. Muita coisa de suspeita e de incerteza aquele caminho me lembrava.” O

caminho traz-lhe o viver outros caminhos – barro e areia –, mas também “esforço e

cansaço”. O percorrer a natureza é visto, indubitavelmente, como desgastante, pois ela é

coisa bravia, oblíqua, incerta; não é, absolutamente, aquela que o homem imagina

domar. Ela é, antes, a pura violência do inesgotável, do impermeável ao pensar estreito.

O narrador prossegue em seu caminhar, que o leva a meditar e repisar terras já

palmeadas, histórias já lidas. O caminho é a própria leitura; “a constatação de que a

marcha do homem era o rodar de um fragmento de roda, a material verificação de que

os pés, caminhando, descrevem no ar uma roda imaginária, com apenas visível um seu

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fragmento”. O caminho é marcha vital, roda que contém – em sua perfeita

circunferência – o princípio e o fim, que se confundem e se enredam. Logo, o narrador

diz que “rodava assim a minha roda”: sua história é também tecida dentro daquela noite

cerrada, num questionamento contínuo de seu início e fim, sua ida e retorno.

A noite traz “um silêncio duro e vazio. [...] E a noite conduzia aquele silêncio. A

noite era um túnel completo, cheio de silêncio, cheio, quase extravasando.” Parceira do

desassossego, a imagem da noite é caminho dentro do silêncio completo, uma senda que

leva do silêncio ao silêncio – tão repleto que quase arrebenta, “mutismo apagado,

murcho e mutilado”. Noite grávida de silêncio ou silêncio grávido de noite, ambos aqui

se sobrepõem e fazem do homem seu joguete. Andando, o narrador percebe que

caminha as histórias que leu, caminha seus segredos, futuro e passado, sua lembrança.

Atingindo a encruzilhada que marcara sempre um dos pontos principais do

caminho, não sabe reconhecer o trajeto que a partir dela deve tomar. Escolhe

aleatoriamente seguir pela direita – reta, perfeita. No entanto, o chão ali “era de areia

frouxa”. Não é o que esperava de um caminho à direita: certeiro, compacto. Tudo ali é

escuridão e fechamento; está envolvido “na sombria espessura da noite”. Sua memória,

que o atraiçoa e o leva a escolher o mau caminho na encruzilhada, também recupera

outras marchas, trajetórias trilhadas, outras areias frouxas, caatingas, charnecas,

carrascais e tabuleiros. Solos aproximados na sensação do pisar que “deixaram gravados

nos meus pés uma história, que não sei bem como começa, nem como termina, e de que

também já me esqueci”.

A lembrança é açulada pelo tato, mas, a exemplo do caminho incerto, não sabe

fornecer ao narrador pistas de como principia e se fina, apenas desfalece. São caminhos

descaminhos que “fazem lembrar e esquecer, avançar e me conter, me achar e me

perder, chegar e me despedir, me aproximar e me afastar, agitando a mão de adeus;

caminhar, e despedir-se!” É um caminho quase morte, de renovação, que, embora tenha

fim, retém semente de seu recomeço – a roda mencionada anteriormente. Alude a

aventuras e obstáculos enfrentados por homens de todos os tempos, aqui, lá, agora: o

caminho de Dante – Inferno, Purgatório, Paraíso –, o caminho desértico das caravanas

de outrora, Jesus e seu calvário da cruz, o caminho dos peregrinos, amantes de Deus, do

espírito e da comunhão, o caminho de Santiago de Compostela. Caminhos universais,

astronômicos, da Via-Láctea, ela mesma chamada de estrada de São Tiago, largo

carreiro alvacento de massas e nuvens estelares cruzando o arco celeste em noites

limpas. Caminho espiral, lenticular, visão ao longe de nossa galáxia, esbranquiçada

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casa, nebuloso leito, nossa seara. Caminho de homens mortos, mas retomados,

ressuscitados nesse novo caminho que refaz a senda do próprio Homem, em busca de

seu começo e seu fim, procurando manter dentro de si a chave do cosmo

infinito/esférico.

Apesar de achar que vai pelo caminho errado, o narrador prefere continuar na

mesma direção. Sente o cheiro dos cajueiros, o perfume de suas flores. A mata escura

engana a visão. O ruído o perturba na extensão da noite. Seus sentidos estão plenamente

aguçados: o tato é irritado pela chuva fina que cai sem trégua. Continuando a percorrer a

vereda, depara-se com cenários inóspitos, cogita agora voltar: tal opção é, todavia,

impossível, posto que “o caminho já foi caminhado, recoberto por meus passos, rodado

pela minha roda! Voltar! Recompor, reconstruir o caminho para poder passar; talvez até

que, assim fazendo, ele se reconstrua, se recupere de outro modo.”

Ao regressar, percebe como o caminho antes palmilhado se destece; para existir,

precisa ser trilhado, construído – depende que o caminhante prossiga e jamais recue. Ao

ser destramado, o caminho hostiliza o narrador. Portanto, abrem-se “valetas quase

intransponíveis, ou surgiam, por toda parte, ervas daninhas, moitas de urtigas e de

espinhos, por onde era difícil pisar. Tive a impressão de que o primeiro caminho tinha

morrido. O trato da areia frouxa por onde viera desaparecera, se enchera de mato, se

alargara de mar. Se apagara. Morrera.” Ao ser desfeito, o caminho fenece, faz-se outro,

com outras vegetações, outros tatos, outras durezas de solo. A areia não é a mesma, o

cenário modifica-se, o tempo acompanha a transição. As paisagens e caminhos

metamorfoseiam-se nos de outros lugares, perfeitos não somente pelo narrador, mas por

tantos andarilhos.

Angustiado pela morte do caminho antes criado, o narrador sente abater-se sobre

si uma “noite eterna”: “tudo de agora em diante seria noite e caminho.” O sol se

extinguiu de todo; na noite monolítica, outros atalhos que lhe prenderiam os pés fazem-

lhe um apelo, “uma voz, um chamado da terra”. Em seguida, comenta que

“Bruscamente, o chão começou a se mover, valas se abriram e todo o dorso do caminho

ondulava encachoeirado.” Ao deparar-se com a maré que sobe, o narrador busca voltar

pelo caminho da ida, mas já não encontra mais a areia de há pouco – existe agora um

ambiente hostil. O caminho (não) é o mesmo da ida, e o narrador nem o reconhece mais,

comparando a experiência às reminiscências de terras estrangeiras. Os cajueiros tão

bem-vindos dão espaço a paisagens inóspitas, a maré o persegue. O caminhante torna-se

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fugitivo, vítima de um caminho que o molda, acolhe e ataca, arredio. A natureza é

inexorável, engolindo tudo ferozmente.

O solo – primeiro areia frouxa, depois ervas daninhas, urtigas, espinhos e valetas

inextricáveis – está agora inundado de água: é incerto, ondeante. O chão por onde viera

vai pouco a pouco se apagando, vingança da trilha – que “agora não mais me conduzia,

antes me perseguia” – por ter sido desfeita. Na resistência a seu término, e como

portadores de sua própria renovação, não à toa “a noite era a mesma e o caminho era o

mesmo”. O caminho metamorfoseado em curso d’água vai cada vez mais cacheando,

líquido fluido, derramado, incontido, até se tornar ladeira, subida, rocha, dureza –

“descaminho”.

Caminhando, o narrador chegara a uma encruzilhada, imagem do suprarreal,

místico. Fora também o momento da escolha: quando o caminho se espalha, o narrador

é chamado a decidir. Inseguro a respeito do caminho tomado, acreditando estar perdido,

perde-se também nos caminhos do pensar, intercalando memórias e olvidos, atingindo

encruzilhadas internas, enevoadas, difusas. A encruzilhada, lugar enigmático por

excelência, não abrange “três caminhos”, mas todos, todas as opções, soltas alternativas

sobrepostas, mescladas. Ao contrário da estrada, que pressupõe uma linha reta,

masculina, edificada, triunfo da civilização e do ordenamento (e que por isso serve às

maravilhas ao uso do automóvel, ícone da cultura industrial), a encruzilhada caracteriza-

se como o local de entrançamento de caminhos, de multiplicidade de perspectivas,

portanto, de incerteza, indefinição, desconhecimento. Ao se postar no cerne da

encruzilhada, o sujeito avista uma abastança de possibilidades; ele está, pois, no centro

do mundo, pronto a fazer escolhas, a privilegiar esta ou aquela direção. Em mitologias

várias, a encruzilhada é epifânica por natureza, presta-se como um portal entre dois

mundos, à aparição de espíritos maus e bons – numa brotadura do sobrenatural –, à

reflexão íntima, daí ser contemplada com a instalação de santuários e marcos de

religiões e credos diversos. Por se tratar de um espaço de abertura, de imprevisibilidade,

de passagem, a encruzilhada firmou-se para as gentes como imagem geradora de medo,

sítio fantasmagórico, sombrio.

Naquele (des)caminho, a partir da encruzilhada de todos os caminhos, era

possível ver e trilhar não só um, mas todos, pretéritos e vindouros. É apenas com a

chegada à estrada – domínio do firme, fixo, concreto – que o narrador declara que “tudo

agora era firme e seguro, definido e imutável, justo e concluído”, sugerindo ser o âmbito

da razão espaço privilegiado de paz e segurança. Finalmente, o narrador consegue

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retornar à encruzilhada, escolhendo uma trilha que, longe da volubilidade do solo mole,

é dura:

Por fim, consegui chegar à encruzilhada dos três caminhos ou de todos os caminhos; os

que eu tinha já visto e trilhado e os que outros também seguiram; consegui livrar-me

daquele misterioso descaminho e cheguei à estrada que vinha da cidade de Barreiros em

direção do mar; tudo agora era firme e seguro, definido e imutável, justo e concluído.

Cheguei à estrada que me levou, já tarde da noite, à casa em que eu e o meu chefe Von

Tilling nos hospedamos, na praia de São José da Coroa Grande (CARDOZO 2008).

No entanto, engana-se o homem, posto que o caminho/descaminho – girar

contínuo de sua roda – o acompanhará não somente em trilhas brutas da natureza

agreste, mas também nos momentos em que se julga resguardado.

O caminho constrói-se como oblíquo, à margem da certeza, fímbria, em torno,

entorno da razão; atropela o homem em sua jornada amarrada, cerrada. A “encruzilhada

dos três caminhos ou de todos os caminhos” cristaliza-se como um essencialmente

borgiano jardim de veredas que se bifurcam, em que a concepção linear de tempo e

espaço presente na física newtoniana é absolutamente chacoalhada; o tempo, assim

como o caminho, é labiríntico, espiralado. Abre-se, pois, uma miríade de possibilidades,

em que coexistem tempos, caminhos, espaços, direções, em que perspectivas diversas se

incorporam, sendo possível saltar de uma para outra sem perda de nexo, pois todas são

apenas uma, e uma se estende em muitas, incontáveis – no lugar do quando – quonde –,

no tempo do onde – ondo.

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12.A pesca de lagostim

Assim como “De novo em Cabedelo”, o conto “A pesca de lagostim” aborda o

tema da batalha do homem contra a natureza, mais especificamente o legendário

confronto com o mar. Trata-se de um conto dramático que se desenrola numa atmosfera

de suspense contínuo. Aqui, Cardozo excita o leitor criando nele ansiedade e

expectativa, mas sem muito se aproximar do clima fantástico. O ambiente da narrativa é

exemplarmente descrito.

Como também já acontecera em “O caminho”, temos a sensação inicial de se

tratar de um simples depoimento, apenas um relato mero, que, no entanto, aos poucos se

metamorfoseia em aventura, em que o narrador se vê confrontado com obstáculos e

hostilidades que aparecem no meio de sua trajetória: no caso de “O caminho”, a própria

estrada; em “A pesca de lagostim”, sua ida em busca do crustáceo e a tentativa de

retorno à praia.

A narrativa dramática é bem desenvolvida, assim como em “O caminho”.

Embora pareça, à primeira vista, uma narrativa pessoal, de climas, locais, regiões,

costumes ou mesmo fatos, como, aliás, acontece em praticamente todos os contos de

Cardozo, “A pesca de lagostim” agudiza-se como uma exposição, análise e

questionamento de estados psicológicos limites do homem, estados estes que, muitas

vezes, revelam o vazio que o ser humano traz dentro de si, grandes abismos, ruínas

internas, aflições, medos. Esses são estados que frequentemente o subjugam, sem que o

homem possa perceber ou reagir, pois sua natureza interior, muitas vezes considerada

por ele lógica, enquadrada, mostra-se rebelde, como aquela que o circunda.

Em seus contos, e sobretudo em “A pesca de lagostim”, Cardozo tem a

habilidade necessária para nos chamar a atenção para tais desarranjos, momentos

críticos de questionamento e percepção da impotência humana frente à violência da

natureza. Logo no primeiro parágrafo, o narrador alerta que a noite estava escura, as

nuvens pesadas, “densas”, que não deixam ver as estrelas, são maus agouros,

evidentemente, posto que nesse ambiente sinistro, “tempestuoso e fusco”, um vento

pequeno sopra. Não obstante, anuncia-se a possibilidade de uma excelente pesca de

lagostim, o que, afinal de contas, leva o narrador e seus companheiros a tentar realizá-la.

Há que se notar a sugestão de um clima já um pouco inóspito, com escuridão, ameaça

de chuva e uma trajetória um tanto conturbada pela frente.

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O narrador e seus companheiros preparam-se para a empreitada. Partem numa

jangada, rumo a alguns recifes, distantes no mar, que, no momento da partida, encontra-

se em maré vazante. A maré baixa, informa-nos o narrador, tornaria muito mais

tranquilo descobrir entre os recifes os esconderijos de lagostim. Levando consigo os

utensílios indispensáveis a tal projeto – cestos, iscas, forquilha, balaios de folhas secas

de bananeira que seriam acesas e que poderiam ofuscar os lagostins e assegurar a

placidez e a iluminação do caminho marítimo –, o narrador e seus camaradas embarcam

na jangada.

São apenas quatro: o narrador e três amigos; dos três, dois nunca haviam

participado de tal façanha. A maré, descendo, atiça a impaciência dos pouco experientes

pescadores, que, por fim, entram na água já sobre a jangada e esperam ser levados aos

longínquos recifes, em tal momento praticamente descobertos, posto que a maré baixa

cada vez mais. O jangadeiro dá afinal o sinal de partida. Ao contrário do início do

conto, em que a noite é escura, compacta e monolítica, temos aqui um sinal positivo da

natureza, em que o mar é descrito como “macio, manso, de água parada, contida pelos

recifes”. Quase como um espelho da natureza fora, que se mostra amigável, convidativa

e serena, o dentro do homem, especular, também se revela de boa índole. Assim vão o

narrador e seus companheiros, além do jangadeiro, “alegres, satisfeitos, esperançosos no

bom êxito da nossa atuação como pescadores de lagostim”.

O mar é aqui a imagem do homem por excelência: calmo e linear na superfície,

enrodilhado e furioso nos seus precipícios, ou turbulento e troante prestes a se adoçar

numa paradeza contagiante. Enquanto navegam na jangada em direção ao recife, o mar

está tranquilo, o que denota a placidez dos camaradas, contentes com a oportunidade.

Enquanto estão serenos, o mar é calmo – ou, por ser calmo o mar, estão satisfeitos,

quietos. Quando o mar se agita, também os personagens perturbam-se.

Embora saibam que vão atuar como pescadores improvisados, acham-se

confiantes: a natureza não poderá lhes causar mal, não poderá lhes trazer perigo.

Rumando para dentro do mar, avistam a praia e, ao poucos, as luzes das casas vão

dissolvendo-se na bruma, que, já tarde da noite, às dez horas, encobre o povoado de

onde haviam partido. A terra finalmente desfaz-se no negrume da noite. Dentro do mar,

o que os companheiros veem são apenas sombras móveis, muitas vezes tempestuosas.

Não tarda e chegam aos recifes, descritos como “um conjunto de pedras eriçadas,

surgindo, naquele momento, das águas da maré baixa e que fica, quase sempre,

inteiramente coberto nas marés altas”.

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Procurando um lugar propício para que saltem sobre as pedras, não encontram

grandes dificuldades. Conseguem desembarcar numa das pedras salientes em que o

jangadeiro enlaça a jangada. O mar, serenado, mais tranquilo, posto que se encontra em

maré baixa, não causa grande desconforto aos pescadores. Para que todos se sintam

mais seguros e tenham uma ajuda suplementar, o jangadeiro vai com o narrador e seus

três amigos, para tentar auxiliá-los naquela pesca. Caminham sobre os recifes, pisando

com cuidado para não escorregarem nas pedras “lisas, úmidas e musgosas”.

A partir do tempo em que deixam a jangada, trilham uma grande distância,

embrenhando-se nos recifes, até chegarem ao local onde, estão certos, haveria bons

esconderijos, cheios de lagostins. Acendem, portanto, as folhas secas de bananeira que

haviam levado para esse propósito, fazendo delas uma espécie de archote rudimentar.

Iluminam as locas dos pequenos crustáceos para encontrá-los e, assim, poderem apanhá-

los e colocá-los em seus cestos.

É notável a descrição que Cardozo faz da pesca propriamente dita, com riqueza

singular de detalhes e uma capacidade de realização visual incomum. De forma próxima

à cinematográfica, ficamos frente a frente com a cena: vemos os crustáceos apanhados

após serem atraídos pela luz fortíssima das tochas, empilhados, presos, jogados dentro

dos cestos.

Assim como Cardozo absorve seu leitor ao descrever de forma minuciosa e rica

a pesca de lagostim, o narrador e seus companheiros mostram-se envolvidos naquela

situação. Empenhados e distraídos, fascinados, pasmos com a beleza da pescaria e o

sucesso da empreitada, não sentem que sua sensação de controle irá muito em breve se

dissipar, posto que em poucos momentos a natureza passará não mais a ser amena e

pacificada, mas revolta, hostil e dominadora. A maré subirá certamente e aquelas

pedras, agora tão acolhedoras e seguras, daí a pouco estarão completamente tomadas

pelas águas. Os recifes que abrigam os pés dos companheiros de pesca e que os

convidam a ali permanecer e a, de forma traiçoeira, se embevecer pela pesca de

lagostim e perderem muito de seu tempo, esses mesmos recifes não possuirão mais

nenhuma ponta de pedra aflorante acima das águas dentro de alguns instantes.

O termo que o narrador utiliza para descrever sua situação diante do exercício de

pescar é bastante significativo: “estávamos dominados realmente por uma verdadeira

fascinação, uma espécie de atração.” Diz ainda que era uma “obsessão permanente” a

tarefa de descobrir os pequenos crustáceos, que apareciam à luz das tochas acesas, e

prendê-los. Assim como os lagostins se deslumbram e são facilmente apanhados pela

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mão do homem, que fica fascinado, arrebatado em vê-los na sua vida marítima dentro

da noite das águas, também o homem é presa fácil para essa natureza, que se desdobra

“dentro da noite tempestuosa”, natureza aquosa, indomável, incerta. O homem cai

diante do sortilégio dessa natureza, vê-se enfeitiçado, tomado por sua imensidão, pela

beleza da tocha dessa mesma natureza, luz cegante que se desdobra ante seus olhos e

que o converte, ele mesmo, numa espécie de lagostim. A noite espalha-se, atinge seu

ápice, e o mar, abaixado, pequeno, contido, avoluma-se para muito em breve alcançar o

estado de “escuro e rumoroso aguaceiro”.

Avassalados pela atração incontornável de sua pescaria, nada veem ou

pressentem. Dizem mesmo se tratar de uma festa, que “pudesse se prolongar até alta

madrugada”. Pescam à farta, voluptuosamente, entopem os cestos de crustáceos, tontos,

facílimos de apanhar – continuam a arrebatar suas presas. Não percebem, tolos, que eles

mesmos são alvos fáceis, posto que arrogantes, sem sentir receio do surgimento de

imprevistos, tão frequentes numa natureza sempre inconstante, incontrolável. Não custa

muito e finalmente saem de seu torpor pretensioso e inebriado. Lembram-se de que a

maré virara. Logo é necessário, urgente, sair dali o quanto antes. Têm de voltar ao ponto

onde haviam deixado a jangada: “foi uma surpresa, e como que um despertar.”

É um torpor, um sonho que envolve os homens, encantados com a possibilidade

de, como deuses, domarem a natureza, fazerem dela seu joguete, moldarem-na a seu

bel-prazer. No entanto, o preço virá, alto. Logo em seguida, com muita pressa, juntam

os cestos e utensílios utilizados na empresa. Procuram chegar rapidamente ao lugar

onde havia ficado amarrada a jangada. Sabem que haviam se distanciado muito nos

recifes e estão longe da pedra onde haviam amarrado seu meio de transporte. Caminham

depressa, e não é sem angústia que percebem que têm de empregar maior cuidado do

que antes, posto que com a maré enchendo as águas já encobrem muitas pedras e o

equilíbrio torna-se cada vez mais árduo, visto que, além da quantidade volumosa de

água, as ondas criam um balançar constante que desafia o caminhar tranquilo dos

homens sobre os recifes. O jangadeiro, que havia auxiliado o processo, volta com os

homens para o local onde haviam desembarcado.

Como o narrador havia dito alguns períodos antes que se tratava de um

despertar, não é surpreendente que o tom de acordar mostre-se de novo no seguinte

trecho: “saímos como que de um sonho para, aos poucos, entrarmos num verdadeiro

pesadelo.” Embriagados, enlevados pela aparente facilidade de sua aventura, não

percebem que haviam se embrenhado num labirinto de dificuldades e incertezas. O

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caminho de volta, feito sobre os recifes, dá-se com dificuldade crescente. Cheios de

peso, com os utensílios da pesca e os cestos agora recheados de lagostins, veem-se

diante de um cenário tumultuoso. As pedras mostram-se levemente cobertas pela água

da maré. Há apenas algumas poucas que ainda se revelam. Em uma série de trechos, os

pés estão completamente mergulhados na água e as pedras escorregadias oferecem um

obstáculo praticamente intransponível.

Apressados, angustiados, temerosos, prosseguem, amparam-se em pedras altas

quando escorregam. As águas do mar, cada vez mais inclementes, movem-se, espirram,

causando marolas e ondas que molham a todos. As pedras cobertas d’água dificultam o

trajeto tranquilo, e os pingos de água levantados pelo movimento incessante do mar

fazem com que as tochas de folha de bananeira pouco a pouco se extingam.

Confrontam-se agora o narrador e seus companheiros com o pânico do escuro, posto

que, se não achassem muito em breve o ponto onde haviam deixado a jangada, teriam

de enfrentar as trevas da noite pesada e compacta. Os fachos vão se consumindo cada

vez mais, e o mal-estar se adensa.

Logo em seguida, chegam ao local onde haviam amarrado a jangada. Para seu

desespero, no entanto, ali não encontram a embarcação em que haviam feito o trajeto de

ida. Ao desassossego soma-se a dúvida, pois se questionam se aquele é, de fato, o lugar

do desembarque. A incerteza a respeito do local permanece. Todavia, o jangadeiro

finalmente reconhece a pedra onde havia prendido a jangada e apercebe-se de que

aquela havia se desgarrado e provavelmente penetrado no distante do mar.

Cada vez mais o desconforto toma conta dos personagens. Não sabem se a

jangada está à deriva no mar, em que direção, a que distância. A ignorância é total,

ficam perplexos, perturbados, amedrontados. A pergunta abate-se sobre todos: como

voltar ao povoado? “Um certo nervosismo se apoderou de nós todos.” Finalmente, o

imponderável da natureza pega-os no contrapé. A constatação faz-se cada vez mais

cortante, mais incisiva, na medida em que, ao vir das ondas, as pedras são ultrapassadas

mais e mais.

Assim, acossados pela situação inescapável, começam a fazer suas confissões. É

nesse momento que o narrador enxerga o drama prestes a se abater sobre eles. Dois de

seus amigos não sabem nadar e “quase alucinados [...] estavam prevendo um fim

desesperado”. A maré cresce, desenrola-se, a tensão aumenta, desenvolve-se, a água

cada vez mais alta, as pedras cada vez mais cobertas. O afogamento era praticamente

certo. O nível de angústia exacerba-se. Num beco sem saída, tendem a entregar-se ao

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delírio. O narrador e o amigo que sabe nadar sentem-se presas de um conflito íntimo

terrível, pois pensam como podem deixar naqueles recifes em breve completamente

alagados seus companheiros que não sabem nadar, e como vencer a distância enorme

entre recifes e praia.

A tensão torna-se aguda, penetrante. O leitor é envolvido num desconcerto cada

vez mais profundo e agonizante. A onda, bem como o nervosismo dentro do leitor e no

próprio clima da narrativa, torna-se violenta. Bate mais alto nas pedras, avança, cada

vez mais se arrasta de volta “em curvas caprichosas. A maré subia!” Tudo contribui

para a criação de uma atmosfera de dissolução nervosa, desconsolo, grito calado,

convulsão aprisionada em entranhas. A luz se extingue, a maré cresce, o mar avoluma-

se, as pedras se encobrem, e não há saída distinguível para esse mudo soluço.

A jangada, já estão certos os companheiros, está afastada dos recifes.

Finalmente, como solução última, o jangadeiro busca atirar-se à água e procurá-la.

Tenta amainar os ânimos, diz que não deve estar muito longe. Lança-se na noite

“escura, marítima” e começa a nadar, engolfando-se no pretume do mar tempestuoso.

Com os fachos quase todos consumidos, esperam pela volta do jangadeiro, que

se aproxima, enfim, nadando, cabisbaixo. Diz que não consegue ver nada e que a

jangada provavelmente perdeu-se no mar. A aflição subia “no mesmo compasso da

maré, com a mesma ondulação, as mesmas súbitas pancadas”. É o sinal agonizante do

fim próximo, sem escapatória, indócil resistência. É necessário dobrar-se à vontade da

natureza, à qual sucumbe o homem, que o envolve, o engloba e faz dele parte de sua

potência.

Todos sentem a morte bater à porta. O narrador, no entanto, pensa ter outra

alternativa: pede ao jangadeiro que volte a nadar ao redor do local em que estão, e que

leve na mão um dos últimos fachos que ainda restavam para iluminar as águas escuras e

profundas, engrossadas e compactadas pela maré. Na densa escuridão, carregando o

luzeiro, o jangadeiro embrenha-se na “treva espessa” e, muito em breve, torna-se apenas

“um ponto luminoso”. Até mesmo esse sinal de luz, de ordenação, desaparece ao ser

engolido pela imensidão trevosa do mar inquieto, crescente. A água dá sinal de que não

haverá trégua: pouco a pouco, os fachos de luz morrem frente àquela umidade

gradativa.

Quase milagre, o jangadeiro enfim afirma ter encontrado a jangada. Todos se

sentem aliviados, certos de que havia cessado seu calvário. No entanto, em seguida, o

jangadeiro desfaz esperanças ao comentar que não, tratava-se apenas de um tronco

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boiando no breu do mar. Naquele momento, vão morrer. O narrador e o companheiro

que sabe nadar, antes diante de um dilema insolúvel, finalmente encontram sossego:

resignados, decidem morrer ao lado dos demais companheiros. Incapazes de abandoná-

los, o máximo que fariam seria tentar levá-los nas costas até a praia, desbravando um

mar revolto, encapelado, que atrairá uma chuvarada forte adiante.

Tentariam vencer a nado o trajeto até a praia, batalhando contra a água da maré

cheia, contra um vento cada vez mais perturbado, turbilhão. Dentro da noite selada, as

nuvens se espessam, pretas. A chuva se aproxima, agravando o cenário. O jangadeiro,

levado no fundo do mar, não mais aparece com seu pequeno ponto de luz. Todos os

feixes já esgotados, consumidos. A maré, no entanto, alheada, sobe majestosa.

Com pernas e pés mergulhados em mais de palmo, o equilíbrio cada vez mais

comprometido pelas pedras traiçoeiras, os quatros homens que permanecem sobre os

recifes veem-se acuados, entregues, amortecidos. Na escuridão, sabem que, dentro em

pouco, terão de se lançar ao mar e nadar o mais que podem, carregando os amigos rumo

à praia. Enfim, como aparição bendita, divina, uma voz “longínqua, quase apagada [...]

falou da noite do mar, como uma revelação misteriosa; como uma voz vinda do além,

uma voz distante, vinda do outro lado do mundo, vinda da morte de alguém”.

É essa voz mítica, de um ser distante, Deus, sabe-se lá, que os salva e que vem,

da noite da água, trazer as boas-novas, uma voz do além, longe, enigmática: “Achei a

jangada!” Era a voz do jangadeiro, sem dúvida, “ou a voz de além-túmulo”. Já

perturbados, com os sentidos à flor da pele e o psíquico em frangalhos, demoram a crer

que seja a voz de um homem, tão homem quanto eles, abandonado, desfeito em

pedaços, vítima da natureza, desprotegido contra o imponderável. Não podem acreditar

no corpo daquela voz, uma voz que parece, sobretudo, “uma ressonância, dentro de nós

mesmos, da outra que já tínhamos ouvido, pronunciando as mesmas palavras; ou como

canto ilusório de uma sereia”. Miragem auditiva que apenas traga para o seu ermo

aquele que pensa encontrar um desfecho para o trágico que se anuncia.

Não querem acreditar na realidade, no palpável e quieto daquela voz. Preferem

entregar-se ao frenesi, mas a própria voz os traz de volta à realidade, e percebem que

dentro da bruma espessa há ainda esperança. “Achei a jangada!” De fato, agora ouvem,

mesmo que distante, no rumoroso da onda farta, a jangada que se aproxima, que desliza

na superfície do mar. Gritando, alegres, vivos, sanguíneos, todos esperam que ela

chegue. Para ser encontrado, em meio ao líquido negrume, o narrador tira a camisa,

ainda seca, enrola-a num pedaço de pau e gasta os poucos fósforos remanescentes

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queimando-a. A camisa logo se torna um archote tosco, e enfim ilumina os quatro

companheiros. Assim, o jangadeiro pode ir até eles e ceder-lhes a embarcação.

Todo o fruto daquela pesca larga e inicialmente tão afeita a enlevos é largado ali

mesmo, cestos repletos de lagostins, aparelhos de pesca, um resto. Com aqueles quatro

homens abatidos, mas reluzentes, já com maré alta, o jangadeiro toca a embarcação para

a praia. O céu chumbo, quase num alívio, abre sobre os cinco seu peso; joga a chuva,

lençóis cerrados, cortinas grossas, brancas, cantantes. É uma chuva “completa,

amargurada”.

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13.Variações sobre uma vida

“Variações sobre uma vida” é a única narrativa em terceira pessoa entre os doze

contos redigidos por Cardozo. Aqui, mais uma vez, o fantástico encontra tratamento

privilegiado, juntamente com o elemento de inação diante de fenômenos e eventos

naturais e (extra)sensoriais. O personagem do conto é, de forma consecutiva, vítima da

sombra de uma nuvem, de uma luz fria, de uma voz lívida, de um cheiro fétido, de um

vento perturbador e de dores por todo o corpo.

Neste conto, vemos a expressão de uma série de perturbações psicossomáticas

ser levada a graus variáveis, mas sempre desestabilizantes. Prova disso é que o

personagem mal resiste, ou, mais tarde, absolutamente não resiste, a expressões

violentas da natureza que atacam seus sentidos, sua capacidade de julgamento, seu

cérebro, seus órgãos, suas funções vitais. Tais manifestações, sobretudo quando se trata

de eventos não tão apreensíveis, dão ao personagem e, mais amplamente, ao ser humano

a impressão de impotência frente à fortaleza bruta do circundante.

Aqui, explicita-se certa diferença em relação a contos anteriores, posto não se

tratar de uma descrição pormenorizada de acontecimentos aparentemente triviais que,

ao fim, se desenrola e deságua numa narrativa crivada de tensão e, muitas vezes,

enigma.

Indo contra a tendência dominante em seus outros contos de trazer à tona um

quê extraordinário no decorrer da narrativa, logo no início de “Variações sobre uma

vida” topamos com elementos que se tornarão a tônica do conto, isto é, o cogitado que

se torna efetivo por sua palpabilidade, o suspense e a sensação de uma fatal iminência.

Estamos diante de um conto que se debruça, primordialmente, sobre a questão

dos sentidos do homem acossado por acontecimentos que ignora e não sabe, não pode

abarcar, acontecimentos (não) nascidos de seu pensamento delirante, que reverberam

em desconsolo, em um aflorar de sintomas.

Assim é que, no princípio da narrativa, o narrador menciona a presença da

sombra de uma nuvem, que passa a atormentar o personagem central. Toda vez que abre

a janela, a sombra, à espreita, posta-se-lhe defronte para dizer algo, para revelar uma

espécie de segredo. No entanto, essa mesma sombra, que procura comunicar algo ao

protagonista, ao mesmo tempo o tortura, posto que dela nada se sabe. De onde teria

vindo? O que desejava saber? Qual seu propósito em vigiá-lo constantemente? Por que

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sua presença sempre tão constante tornava-se importuna? Uma presença “que só lhe

trazia infelicidade e desgosto”.

Não se trata nem mesmo de nuvem plena em brancura de algodão, em

incorporalidade, em múltiplas formas feitas possíveis pela escolha de um olhar, nuvem

que, água pluriparticulada, diante do homem transforma-se, em um recorte, em objeto

palpável. É somente uma sombra de nuvem, espectro. E, como fantasma que é, está

incessantemente à espera, escrutando, quase fera tentando dar o bote. A sombra de uma

nuvem, “fragmento de noite”, persegue-o durante o dia, é noite que adentra o dia e o

perturba; a luz solar, mesmo inclemente, é violada por esse pedaço insolente de noite,

que o faz recordar outras noites, muito antigas e distantes, em bairros da cidade onde se

divertia quando jovem. É uma “sombra noturna”, como se em seu negrume trouxesse a

lembrança de tempos idos – imagem que abre as comportas de um devanear.

Ao sair à rua, a sombra acompanha-o. Tudo que o personagem deseja dele se

aproxima, mas, ao se deparar com a presença da nuvem, vai embora. A própria sombra

da nuvem, traiçoeira, muitas vezes sentindo-se espreitada, some, vai por outros lugares,

e a sensação de angústia e abatimento é então substituída por alívio, o que leva o

personagem a considerar estar finalmente livre da incômoda presença. Assim, prossegue

feliz seu passeio, seu flanar pelas ruas, na esperança de que jamais tornará a vê-la, a se

sentir acuado e perplexo. Tolo, posto que mais adiante se defrontará novamente com a

sombra. Nas esquinas, nos esconderijos da cidade, mostra-se outra vez, ainda mais

tenebrosa. Para tentar se libertar de tal estorvo, viaja para o interior do estado, lugares

longínquos, e pensa ter driblado sua companheira malquista. Não logra êxito, posto que

“lá estava, a cobrir sua cabeça, a sombra da nuvem”. Uma presença encarnada, que o

encurrala, dele se avizinha e, sabendo que está longe, longe vai para acompanhá-lo. O

personagem vê-se, pois, estupefato diante do absurdo que o envolve, no qual, ignorante

dos motivos da sombra, se questiona por não saber como ela consegue encontrá-lo,

reconhecê-lo.

A sombra de nuvem é, a seguir, substituída por “luz fria, gelada, que batia na sua

cabeça e penetrava no seu pensamento”. Luz torturada, funda, que entra pela janela ao

amanhecer e fere a testa do protagonista ainda adormecido. Luz agouro, luz cirúrgica

que inunda, corta o cérebro, levando o protagonista a se machucar, numa angústia

circular, em uma especulação dolorida sobre o porquê de tal facho.

“Variações sobre uma vida” reposiciona a questão do sonho dentro do sonho –

neste caso, do pesadelo dentro do pesadelo –, do qual não se pode acordar e que acaba

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mesmo por levar embora o sopro basilar da vida. Desse modo, o conto de Cardozo faz

eco à obra de Borges:

Um dia ou uma noite – entre meus dias e minhas noites que diferença existe? – sonhei

que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que

despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir; sonhei que os grãos de areia

eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob esse

hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com enorme esforço, despertei.

O despertar foi inútil; a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: “Não

despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro,

e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás de

desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente (BORGES

2005).

A exemplo da sombra da nuvem, que revigora o pretérito e restaura cantos

longínquos da cidade, a luz suscita o pensar do personagem: em sua mente passam a

chocar-se ideias difusas, indeterminadas. Diz o narrador: “era a luz de uma estrela

longínqua que se refratava no vidro da janela; era a luz, talvez, de um fósforo riscado no

escuro por mão invisível” (CARDOZO 2008). O fósforo é imagem raio, por ele se

abrem espaços onde ver dentro da escuridão; sua chama provém do desconhecido, do

que não se quer enxergar. A mão – ela existe? – gera o lume que dissolve o negror. Do

inapreensível vem a fagulha que cava seu ovo – seu côncavo – num espaço blocado que

assim se subtrai.

A luz busca adentrar o personagem, esquadrinhá-lo à procura de uma lembrança,

ato, algum acontecimento praticado e não mais recordado. Como a sombra de nuvem, a

luz assedia, indomável, penetrando-o, espremendo seu pensamento, medindo-o,

amassando-o. Dentro de sua cabeça, a luz é tão potente que, em dados momentos, o faz

perder a memória; em outros, pensar de forma clara, exata, quase matemática.

O corpo, na esteira do pensar, é também varado: a dor de cabeça, pois, é

desdobramento da força dessa luz gelada, e evolui para enxaquecas, tonteiras, que,

declara o narrador a respeito do personagem, “pensava ser qualquer perturbação no

labirinto”, mas este, consultando um médico, é convencido da acurácia de sua audição.

Aqui, Cardozo faz questão de ressaltar o fato de que o homem tem de conviver, não

importa de que forma, com tais perturbações, e que a luz, à semelhança de outros

distúrbios, constitui algo de “magia e de real” – como uma espécie de possessão, ente

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insondável. A obsessão da presença – sombra da nuvem, agouros, estorvamentos –

irrompe em enfermidades, gripes, tuberculoses, enxaquecas. Não se trata de moléstias

do corpo puramente, ou mesmo moléstias apenas psíquicas; são, antes, moléstias

inteiras, que afetam o âmago, feitiços indivisíveis, indizíveis. Isso significa, logo, que a

doença é curável “com apenas um esconjuro”, assim como acontecera com a sombra de

nuvem, desaparecida após um longuíssimo banho de sol, fogo do dia purificante,

queimando em seu clarão torvelinho demônios invisíveis; somente com um exorcismo

da alma o corpo pode estar livre dos males que o acometem.

Para tentar extinguir a luz seria preciso banhar-se em escuridão? O protagonista

agoniado chega a comparar a presença da nuvem, agora vista como não tão insalubre, à

ação dorida da luz, inquebrantável. Pensa em ir de novo ao médico para sanar a

enfermidade – não haveria, no entanto, nenhum tipo de tratamento para tão certeira

moléstia. Afinal, “quando não era a sombra ou a luz, era a voz; uma voz lívida, partida,

voz que vibrava dentro dele, repentinamente”. Depois de pensar esconjurar a luz, vê-se

mais uma vez diante do grande espectro, dessa feita enformado pela voz. É voz

onipotente, voluntariosa.

Em suas andanças pela cidade, a voz interior o estrangula, imperiosa. Sufocado,

o personagem desconhece a origem do som incerto que aperta sua garganta, que, em

pleno dia e no meio da multidão, o oprime. Como a sombra de nuvem e a luz, a voz o

segue e o aprisiona.

A voz é “ora aguda, penetrante, como se ferisse a garganta, e, ferindo-a, fosse

também uma ferida; voz, punhal, ferimento, causa da dor e dor ela mesma; ora era

grave, mole, lânguida, perdida em qualquer parte do corpo ou do pescoço, sem posição

certa; ora quase sem tom, nem som, agia em qualquer parte.” É voz, portanto, causadora

de dor, mas também flagelo em si, contaminada e incessante, que engloba seu penar e

irradia para o restante do corpo os tentáculos do sofrer. Dor que fere e se fere, polido

metal tinindo no corte, lâmina de lustro incisivo, focada e vaga, concentrada e

espalhada. A voz de tonalidades diversas, trepidante, às vezes lhe dá trégua, o que o faz

alimentar a esperança de se ter libertado de tal perturbação. Os intervalos são os

instantes de maior aflição, visto que representam apenas um breve intermezzo entre um

mal-estar e o seguinte.

A partir do desassossego causado pela voz, Cardozo insere na fala de seu

personagem, em um parágrafo específico reproduzido abaixo, o questionamento acerca

da existência e do porquê de tal mistério. Prossegue então com uma investigação sobre

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os motivos de se estar no mundo, uma especulação metafísica a respeito das razões da

presença do homem:

Por que sucedem esses fatos comigo? Por que essa invasão odienta contra mim, para

que serve o ódio? Nós estamos aqui, neste mundo, de passagem; pode ser que tenhamos

vindo do nada ou da eternidade, isto é, no espaço em que estivemos antes de nascer

nada exista ou tudo exista para sempre; entre o nada e a eternidade não há transição ou

passagem; entre o que nada existe e a existência total o que existe é uma sequência de

nada, uma travessia consciente, homo-existente. Essa voz que me persegue, o que será

dessa consciência? A sua verdade? A sua abstração? Que parte dela revela esse

monólogo sonoro que me atormenta? Monólogo ou diálogo (se é diálogo) é uma

conversa, através de mim, entre dois mundos – o anterior e o posterior a nós? E Deus,

que parte tem nessa entonação que extrapola de mim mesmo para o Antes e o Depois?

A vida é um não ser perene? Isso pode ser uma prova de um não ser divino?

(CARDOZO 2008)

Tal parágrafo constitui-se como súmula de algumas das imensas perguntas

ventiladas por Cardozo em sua obra. Os motivos da presença do homem no mundo, em

que consiste esse mundo, em que consiste o universo, há um antes, há um depois? E

Deus, que papel desempenha em tal cenário? Por que a voz persegue o personagem em

“Variações sobre uma vida”? De onde ela vem: da eternidade, do tudo, do nada? Tudo e

nada não se anulariam numa equipolência de antes e depois apenas tornada possível

pela travessia de uma existência humana? Ecoando Bachelard, “Nessas profundezas,

intimamente, roçamos o nada, o nosso nada. Haverá outros nadas além do nada do

nosso ser?” (BACHELARD 2006).

A indagação confunde sobremaneira o personagem, ao permitir digressões

desencontradas, a esmo. Siderado, tentando encontrar saídas para aquela voz, o

personagem embrenha-se em minúcias acerca de sua sonoridade, tons que ora se vestem

em soprano ligeiro, ora baixo profundo, gamas múltiplas de voz humana, imprevista,

chegando mesmo a alcançar “o campo dos ruídos tenebrosos e doentios”.

Essa voz, que o escolta malgré lui, apenas o visita, não sendo sua, contudo. É

uma voz que se exercita em barulhos “explosivos e implosivos como os dos rumores

vertiginosos de uma catástrofe”. A voz, como o absurdo e o imediato da catástrofe,

passa, portanto, e deixa-o, mas seu momento de serenidade é logo após chacoalhado,

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porque, de maneira inexprimível, lhe vem uma sensação de vento perfumado, seguido

por ar brando associado a um cheiro fétido.

Acredita tratar-se de um fenômeno passageiro, pois, ao andar pela rua, perfumes,

maus odores estão por toda parte, misturam-se de forma indistinguível. Depois,

vinculando a insistência do cheiro à fixação perpetuada em sombra, luz e voz, nota ser

este um prosseguimento, outra manifestação do mal que já o acometera três vezes.

Agora é seu olfato que se mostra assediado por um fenômeno externo. O cheiro

mau e a fragrância vêm em ondas, casam-se e o importunam, entram em casa,

confusamente. No parágrafo seguinte, na descrição do cheiro, volta-se a mencionar a

voz, “violenta e extravagante”. O distúrbio da voz é curado, por assim dizer, em um

sonho, em que, ao dormir, o personagem sente-se asfixiado por mãos enormes, fortes,

“como as de um carrasco”. As mãos sufocam a voz, estrangulam o tormentoso ruído;

não à toa, ao despertar, o personagem verifica ter-se salvado da voz que o afogava.

Após algum tempo sem experimentar moléstias, sentindo-se disposto, já idoso e

convencido de que tais imprevistos eram apenas fruto de alucinações da juventude,

pensa estar livre de tais desacertos: “Estava assim tranquilo.” O delírio causara-lhe

desconforto psíquico e sintomas físicos, como aliás ocorre frequentemente na obra de

Cardozo, em que o ordenado é sacudido pelo fortuito do mundo, que o encurrala e o

atrita com sua debilidade. Torturado por sombras, vozes, luzes, cheiros, elementos de

uma natureza estrangeira, o homem cardoziano vê-se fragmentado, chagado em sua

territorialidade física.

Quando considera estar enfim recuperado, um vento forte vibra sobre sua cabeça

e causa-lhe “desgosto, uma angústia”; como as expressões anteriores, o vento é

inexplicável, continua a soprar, ferino, ruidoso, apressado, dentro do quarto de dormir

no qual se enclausura o protagonista. Sente “no ouvido o sopro do vento como se o seu

crânio fosse uma bola que alguém invisível quisesse encher de ar e depois arremessá-la

para cima, jogá-la no teto e apará-la embaixo novamente”. O vento troça do homem, faz

dele peão num jogo de antemão ganho.

Como se libertar totalmente? “Depois de tanto tempo perdera a experiência em

procurar meios e motivos que fossem capazes de corrigir o seu mal”. Após uma

aparente vitória sobre o mundo, o homem é levado a incrementar sua confiança,

avolumar seu ego, certo de haver triunfado sobre o antes inescapável; vencido, contudo,

por uma teimosa recidividade, mostra-se amortecido, cansado.

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O vento de “Variações sobre uma vida” é imagem ancestral, maléfico rumor de

tufões arrasadores, monções orientais ou duro minuano debruçado em planície visível,

mistral atrevido de diabruras, alísio insistente numa claridade ela mesma pampa, que

ecoa um sibilo petulante, meridiano de som. A ventania estica seus braços e toca o

leitor, devasta-o em seu vigor de imagem afundada no seio humano.

Já persuadido de que não se esquivaria do acesso, pois o ar ventoso lhe

desguarnecera a audição e a memória, o homem sente-se “desolado e só, quase morto”.

Alquebrado pela percepção do fracasso ante o mistério, nada mais cogita a não ser

prostrar-se à perspectiva de uma morte próxima e dolorosa. No entanto, como de praxe,

volta um cíntilo quando o mal arrefece de leve. Ao atenuar-se o vento que zune no

ouvido do personagem, a esperança acorda em seu íntimo. “Como dopado”, o

personagem pode agora dormir, esfalfado pela luta.

Consumido até as últimas forças, o protagonista deita-se moído, convencido de

que jamais se recuperará. Entrega-se à fatiga, às dores que colhem seu corpo, “obtusas e

agudas, lentas e instantâneas”, feridas pequenas e grandes, sempre se abrindo,

incicatrizadas. “Era uma afluência de dores; todo o seu corpo se transformou em dores

puras, sutis, devorantes; foram, aos poucos, comendo-o.” O homem, vitimado pela

sombra da nuvem, pela luz, pela voz, pelo cheiro, pelo sonho, pelo vento, é, finalmente,

derreado pelas dores, que o sugam e o fazem extinguir-se.

Por consequência, não consegue resistir e fina-se, minado pela exaustão e pela

dor que se transforma, ela própria, no corpo do homem. Não há mais corpo, não há

alma, há apenas dor, que se torna a essência mesma da vida do homem, transformada

em morte quando do triunfo dessas dores infinitas, vindas não se sabe de onde. O

protagonista, agonizante, morre asfixiado. As dores o acompanham até o fim e o fazem

sucumbir, ao mesmo tempo em que se mostram vivas, visto que, após a morte do

personagem, continuam a reinar, imagem de uma natureza agressiva, acastelada numa

terra sua, indomada, inteira.

“Variações sobre uma vida” trilha um caminho intrigante ao não oferecer ao

leitor explicações para os nefastos fenômenos que sucedem ao personagem. A narrativa

é distanciada; o narrador põe-se como observador atento ao descrever, detalhadamente,

as situações descabidas que se encadeiam. Não há explanação – nem desejo de

explanação – para a série de acontecimentos abruptos e terríveis que se dá ao longo da

narrativa. Cardozo não investe em soluções, quer apenas a especulação, semeando a

dúvida a respeito de moléstias que vão e vêm, perturbações do espírito e da carne, que

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jamais encontrarão, como ele parece querer afirmar, qualquer solução. A narrativa

erige-se como incerteza, tateando num terreno desconfortável e movediço, num vaivém

traiçoeiro, dúvida exacerbada em manifestações repetidas à exaustão nos ouvidos (e

olhos) do leitor, martelando-o e ao protagonista.

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14.Em busca do Marco das Balanças

“Em busca do Marco das Balanças” apresenta-se como um relato das

experiências de Joaquim Cardozo como topógrafo e engenheiro, nos confins dos

territórios nordestinos, particularmente na Paraíba. Tal conto remete sutilmente ao

ambiente fantástico presente em outros, já vistos aqui, posto que todas as histórias

contadas pelos trabalhadores que povoam a narrativa são causos indefinidos, beirando o

lendário, todos impregnados de um clima romântico, palpitante. Os eventos descritos

pelos trabalhadores, se não ombreiam em expressividade, tensão e suspense com os

elementos presentes em “O rugido”, levam o narrador a pensar com saudade, afeto e

fluidez a respeito das mulheres fortes e encantadas que estiveram em sua vida.

Essas mulheres são possíveis namoradas, amantes, primeiros alumbramentos,

prostitutas, com um farto veio dramático, mulheres que se distinguem por sua beleza,

seu poder de sedução – a imagem da mulher que evoca sereias homéricas levando o

narrador a devanear, perder-se, mergulhar num aquoso e algo redemoinhado pensar.

Neste conto, a imagem da mulher apresenta-se como o próprio marco; colados ao peito

vêm o misterioso e o errante, as balanças oscilantes, e nunca encontradas, do marco

buscado em vão.

Cheio de incertezas, de sugestões que nunca se concretizam, de possibilidades

abertas em leque delicado, “Em busca do Marco das Balanças” submete-se todo ele a

essa imagem maior: aos olhos ciganos da mulher, seu oblíquo feminino, dono do

esconder e revelar, atraindo o homem para sua fantasia, semelhante à natureza,

exemplar e meiga, combativa e pura.

É essa qualidade de enigma que também reveste as lembranças de Cardozo, em

suas reminiscências dos vagares da juventude, quando alude às mulheres benquistas. A

imagem da mulher parece capaz de avivar, em seu rastro, um passado que foge veloz. É

assim que, em outros relatos, ao mencionar essas meninas e mulheres que lhe marcaram

a experiência, Cardozo torna presentes suas andanças pelo Recife, mágoas, amores,

fulgor de carne. É essa imagem de mulher, nas suas bainhas internas, em sua

persistência ondulante, que serve de guia e, ao mesmo tempo, desnorteio, a exemplo do

Marco das Balanças, procurado e ansiado, mas que parece perder-se em sua pendulação

– ou quiçá em sua não existência.

A narrativa desenrola-se em primeira pessoa, com o narrador principiando ao

mencionar que ele e Neco, seu guarda-costas e parceiro de empreitada topográfica,

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devem partir, certa manhã, em busca do Marco das Balanças. É significativo que, logo

no início do conto, o narrador se pergunte: “Por que das Balanças?” O nome do marco

intriga-o, e faz com que ele indague insistentemente sua causa:

Que equilíbrio se arranjaria entre os pratos dessa balança? Diziam Balanças porque o

marco era por si mesmo oscilante, indicando direções diversas? Se assim era, talvez

fosse designação exata, uma vez que, naquelas terras, os marcos eram muito inseguros,

oscilavam de acordo com a vontade dos grileiros.

Marco das Balanças! Balanças que vibravam como instrumentos musicais e os seus

sons repercutiam ao longo de laranjeiras e cajueiros. Marco talvez aquele que ficou

perdido num atoleiro e nunca mais se soube dele – misteriosamente afundado num

tremedal que corre além do aldeamento de São Francisco.

Que relação haveria entre esse marco, há tanto tempo perdido, e este outro do qual

íamos à procura e nos foi indicado como pertencendo à primeira demarcação das terras

devolutas do estado onde moravam os caboclos de São Francisco? (CARDOZO

2008)

Tal nome engendra um questionamento difuso, que parece bater-se em paredões

intransponíveis. As Balanças estão lá para serem encontradas, mas permanecem

impermeáveis à compreensão do sentido oculto em seu nome. Haveria mesmo um

significado? Ou este seria uma transposição do que está lá apenas para si, em si? O

narrador e Neco partem, portanto, sem saber muito bem aonde devem chegar – se há um

chegar –, como errantes, peregrinos cegados, sem mapa, sem norte, sem direção,

andarilhos apenas, que fazem do palmilhar o rumo fim da trajetória. A desorientação

aqui é plena: confuso acerca do nome do marco e das motivações que culminaram na

busca, o narrador posto em dúvida contagia-nos, também, com suas perguntas.

Guiado por uma forte intuição, mas sem nada conhecer de fato, alheio a motivos

cartográficos, o narrador escolhe tomar o caminho ao norte, próximo a um forte

construído há centenas de anos, durante a guerra contra os holandeses. Afirma:

Íamos assim, como D. Quixote e Sancho Pança; eu, magro e alto, e Neco, homem baixo,

atarracado e forte, que usava chapéu de couro e alpercatas, roupa branca, de

algodãozinho, e curtas a blusa e as calças; íamos assim, à procura, não de moinhos de

vento, nem em defesa de donzelas perseguidas, nem a salvar vidas ofendidas, mas à

procura de um marco que se chamava das Balanças (CARDOZO 2008).

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O objetivo da busca é encontrar o marco, e não defender pobres e incautos, não

tentar abrigar donzelas perseguidas, não combater moinhos de vento, muito embora ao

final do conto irrompa, como veremos a seguir, a ideia de desdobramento de um

caminho certeiro que leva a uma mulher precisa, a uma Dulcineia quixotesca.

O narrador, a seguir, se pergunta a respeito do equilíbrio dos pratos da balança,

impossível de ser alcançado nesse caso específico devido ao movimento do marco,

sempre indicando direções diferentes. Os marcos da região, faz questão de frisar, eram

deveras incertos, posto que dependiam da vontade dos grileiros locais. De forma algo

paradoxal – e, no entanto, bastante sintomática –, o marco, quanto mais oscilante, mais

certeiro se mostra. A imagem da balança parece casar-se à perfeição com o tom da

narrativa, toda ela elaborada como rotação e transição, mas também ela reverberando

um anseio por um ideal de retidão e integridade – balanças como caminho longilíneo,

corredor que torna possível o alongar-se de ondas sonoras, balanças que “vibravam

como instrumentos musicais e os seus sons repercutiam ao longo de laranjeiras e

cajueiros”.

Havia também, segundo o folclore local, um marco misterioso que se atolara

num lamaçal, do qual nunca mais se tivera notícia ou indícios e que se afundara no lodo

para além do aldeamento de São Francisco. Seria possível haver algum tipo de relação

entre esse marco, há tanto tempo afogado, e o outro, das Balanças, que o narrador e

Neco procuram? Apenas sabiam, o narrador e seu assistente, tratar-se de um marco

antiquíssimo, estagnado no lodaçal, e, “como D. Quixote e Sancho Pança”, para lá

seguiam. As orientações e informações eram incertas, a exemplo, como reforça o

narrador, da existência do próprio Marco das Balanças, situado em local olvidado,

oculto por moitas, espinheiros selvagens talvez, lugar perdido em meio ao nada, envolto

em brumas, aventuras, nas lendas dos habitantes locais. O bárbaro da natureza cinge e

protege o fabuloso que se põe fora das capacidades de compreensão/apreensão

humanas.

O marco, assim como seu antecessor, é trespassado por fantasia, imagem

memorial, como monumento que se ergue das fumaças apenas para seu eleito, oculto

aos olhos daqueles que não merecem enxergá-lo. Marco das Balanças, à feição do

enigmático marco anterior, que se teria “perdido por efeitos de magia”, cheio de encanto

e sortilégio, marcos bruxos, que, ao limitarem regiões e revelarem caminhos,

igualmente confundem e desorientam os mais incautos em seu encalço.

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De fato, a única relação que permanece entre os dois marcos é a certeza de que

ambos se solaparam no tremedal, em períodos distintos. Esperam, o narrador e seu

companheiro, encontrar, nos povoados circundantes, um indivíduo mais velho que

mantivesse na memória a primeira demarcação, quase sinônimo de busca finda ao

Marco das Balanças. Procuram, todavia, e nada encontram, nem direção, nem habitantes

antigos da região, nem mesmo a certeza de que tal marco exista.

Objeto perturbador, como perturbadora é a vegetação do lugar, cheia de

tabuleiros, de capim ralo, região vizinha a outras não tão pobres, prenhes de verde

denso, difícil de penetrar, verde esse que talvez pudesse, encantado, ocultar o

enigmático e incerto lamaçal. Cansados pela procura do marco, o narrador e Neco

apeiam de seus cavalos, sentam-se à sombra de uma árvore e ficam ali, matutando sobre

o porquê de andarem e nada descobrirem. Nem mesmo os moradores, caboclos locais da

Baía, tinham conhecimento de tal local. Não à toa, o palpável e o mágico do marco

encetam a discussão e a crença de que pudessem ter sido ludibriados por esse

monumento às avessas, que se encolhe e evita incômodos visitantes que perturbem sua

paz de túmulo, enlameada e quieta.

Sentindo-se tolos, perdidos e abandonados, os dois esperam que seus ajudantes

os alcancem para que possam, enfim, almoçar. Ficam por perto, na expectativa de

depararem subitamente com o marco. Entregam-se à comida e ao desânimo, e é por

meio dos trabalhadores locais, seus ajudantes, que tentam conseguir informação, mesmo

que ínfima, “sobre uma possível verdade, ou mesmo uma lenda que envolvesse a

aliança entre o marco mágico e o das Balanças”. Toda vez que pensam aproximar-se

daquela fronteira, esta se esvai, fantasma que acena com o estrondo de sua existência

mítica para depois dissipar-se em névoa.

Tal investigação é em vão, pois ninguém possuía sequer a mais vaga noção da

localização de nenhum dos dois marcos. Apenas um ajudante faz um breve comentário a

respeito de um outro, terceiro, nem o mágico, nem o das Balanças, que havia visto

esmagado na lama, mas do qual não se recordava exatamente. É desta forma que se

consolida cada vez mais a noção – no narrador e no leitor – de que o Marco das

Balanças – assim como o anterior, fantástico e indefinido, existente talvez somente no

falar remoto de um povo, no pensar de pessoas idas, não mais presentes naquela terra –

é parte de uma lenda criada e difundida, mas hoje desconhecida, inspirada na história do

marco arcaico diluído em pântanos, cerrado em matos alagadiços.

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A partir daí, o narrador prospecta a aflição do leitor e, acossado por perguntas

não respondidas, passa a levantar uma série de explicações concebíveis para o marco.

Mais uma vez, o narrador deixa correr desabrido o sonhar ao tentar assimilar a origem

do nome:

Eram lendas, certamente muito remotas, ligando a vida de um proprietário de terra e

grileiro em contato com os seus vizinhos, uma verdadeira luta com ladrões de terras,

que, na impossibilidade de volver de outro modo, um deles atirou um dos marcos num

pântano, para que não fosse mais possível encontrá-lo, assim ficando para sempre

indecisa a linha limítrofe das propriedades; e por que Balanças? Balanças. Talvez tenha

sido apenas a Balança em que se teriam pesado as virtudes e a honestidade do grileiro,

que ficou vivo quando o seu inimigo foi encontrado morto no pantanal, abraçado ao

marco ali atirado; era ainda história romântica, uma história do tempo em que se

pesavam as suas virtudes com uma balança e a sua verdade se garantia com um fio da

barba.

Uma outra história poderia ser também relativamente admitida, história inventada por

algum contador de histórias, como naquela época existia na Baía e outras localidades:

uma lenda também poderia ter sido forjada por algum pajé ou mágico dos aldeamentos

caboclos, tendo assim a sua origem na tradição indígena. Esta versão talvez seja a mais

razoável, pois ainda ali se notava a influência índia em certos nomes de pássaros e de

peixes, como aparecem nas emboladas cantadas em dias de festa (CARDOZO

2008).

Há, como lemos, a possibilidade de um grileiro, demasiado perto de seus

vizinhos e tentando sanar lutas com ladrões de terras, ter atirado um dos bandidos junto

com o marco num pântano para que ambos fossem sugados pelas profundidades da

lama, tornando a linha limítrofe das propriedades para sempre manipulável, numa

história que remete a um tempo em que qualidades e integridade aludiam à balança da

justiça. É a balança, afinal, que medirá virtudes, honestidade e passos em falso.

A outra explicação seria tratar-se a existência do marco somente de lenda saída

da boca de um contador de histórias, figura também folclórica, fortemente ligada à

tradição oral da Baía da Traição e paragens próximas. O marco seria um mito criado e

reproduzido por pajés, mágicos xamãs dos aldeamentos caboclos vizinhos, uma visão

romântica e fascinante.

Depois de muito meditar acerca do Marco das Balanças e deixar correr livre seu

devaneio, perdido na multiplicidade de imagens convocadas nesse cenário maravilhoso,

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já presa da atração exercida pelo mesmo, de seu feitiço, o narrador desperta do sonhar

pela voz de Neco – seu discreto e prudente Sancho Pança – e entende que é hora de

partir, regressar ao tépido conhecido. A luz descamba, são duas horas da tarde, tempo de

voltar para chegar antes do jantar. O propósito de seguir até o Marco das Balanças e

finalmente desvendá-lo desfaz-se, posto que nem o mistério de seu nome fora resolvido

– a ânsia da descoberta, contudo, traga o narrador, entontecido por seu perfume.

Iniciam, um tanto a contragosto, a marcha de retorno, acompanhados pela luz já

“branda, macia, dourada”, uma imagem igualmente misteriosa e sedutora, a exemplo

das balanças e das mulheres que com aquelas se relacionam.

Como um D. Quixote à procura de impossível Dulcineia, o narrador vem

desmanchando-se sobre o lombo do cavalo, passando pelo crepúsculo, atmosfera

propícia de canto, luz esfumaçada, imagem de natureza preguiçosa e estendida,

momento perfeito para que passe, em seguida, a sonhar com o Marco das Balanças –

inatingível e inexplicável –, que, num átimo, se transforma em clarão mulher, Julieta, “a

morena que tinha sempre nos olhos um pouco de noite e de chuva, um pouco de sombra

e de saudade”. Julieta é, neste momento, o Marco das Balanças, imagem imediata e

radical, instauradora de um pensar mais desgarrado, pouco afeito a explanações

simplistas, a perguntas redutoras, a um porquê tangível. É aquela que assinala um

passado inclinado sobre a janela de uma casa no Zumbi, na Estrada Nova de Caxangá,

Julieta sirena, que não sabia quem escolher e por isso deixara todos da várzea do

Capibaribe perdidos na luz de seu olhar, como perdidos estão o narrador e Neco à

procura do marco cujas balanças devem orientar, mas que apenas desconcertam, à

semelhança do sorriso e da doçura da voz de Julieta.

A jovem é uma Capitu cardoziana, “de olhos molhados de chuva noturna [...] de

voz dolorida de aguaceiros n’água parada de um pântano perdido que eu mesmo não

sabia onde estava, naquele dia”. Uma imagem de mulher-água, iara das profundezas

movediças que se espiralam em bolhas e envolvem o narrador/leitor no seu oxigênio

poético. Uma imagem que baila sua seguidilha, gitana, Julieta mãe-d’água, odalisca de

um líquido território que abriga e conforta, emudece, enche e preenche, imerge. Imagem

que chama para seu coração fluente, que convida a lá perder-se, dissolver-se.

Julieta é o marco, solta na chuva, com a voz cheia d’água parada, encharcada,

plena de bruma, fumaça, Julieta que se distancia nos eflúvios do devaneio e que, logo

em seguida, não é mais Julieta, e sim Ester, rindo no trem que vai para Jaboatão, de

vestido encarnado, “com uma blusa de rendas brancas cobertas por um bolero da mesma

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cor do vestido”. Ester, não mais Julieta, reminiscente dos dias claros e bem-vindos dos

catorze anos do narrador, dias que se transformavam prontamente naqueles dos seus

atuais vinte e dois anos, as balanças do marco de Ester, seu sorriso, sua graça, sua

figura, cuja harmonia, num pêndulo todo próprio, já estaria desfeita pela “angústia do

tempo que não para”. O marco é agora Ester, normalista, bela, viajante sempre do trem

de 01:20, “tinha qualquer coisa em si ligada a um mistério, pois tinha, além de mim,

muitos outros admiradores”. Imagem feiticeira, faz os homens apaixonarem-se, deles se

aproxima sem se curvar, sem lhes ofertar a chave de seu encanto, enlaçando-os em seu

corpo apenas entrevisto, impacto total. Ester, marco de languidez que desperta histórias,

comentários, lendas, dúvidas, mas que jamais se desvela: “Tinha oscilações assim na

sua vida, tinha consigo qualquer coisa de desconhecido como as balanças do marco que

não encontrei.”

O marco-mulher, à maneira de Julieta e Ester, permanecerá encoberto, como

Tereza, mulher do Recife, sua amante, das “noites de brincadeira na feira do Bacurau”,

que acompanhava o narrador em suas comilanças e festas e noites acordadas, de pele

macia, “mulher de vida airada, professora de amor”. Tereza é a imagem cujo corpo é ele

próprio um oscilar, “marcando as horas da noite na Pensão Bohemia”, transluzente véu,

que se agita ao frêmito da passagem do outro. Tereza pendula, paciente, aguarda o

narrador em vão, assim como ele espera encontrar, também inutilmente, o Marco das

Balanças. As horas do relógio hesitam, ponteiros de um lado a outro, em movimento

hesitante, medidas por Tereza, como os pratos da balança e o pranto da mulher que

espera o amado. Os pratos da balança do marco estão presentes nas lágrimas vertidas, de

maneira compassada, pelos olhos de Tereza.

Aqui, o marco não mais é Tereza, mas o próprio narrador, posto que é ela quem

espera, quem procura, a mulher que busca desvendar o lugar oculto de seu homem, seu

esconderijo, aproximar-se de sua verdade, seu fundo. Há uma inversão nesse caso:

“Agora chego a pensar; para Tereza, se tivesse conhecido as ilusões em torno desses

marcos, tudo se inverteria. – Para ela, sou eu mesmo o Marco das Balanças.” Tereza é a

mulher que aguarda e tenta livrar do sortilégio alheio o homem que busca, que vai e

volta, homem monumento que jamais será aprisionado ou desbastado.

Finalmente, depois de muito refletir sobre essas mulheres, que trazem em si o

germe de uma descoberta impossível, mistério insolúvel, o narrador desiste de sua busca

pelo Marco das Balanças; entrega-se, pois, à vida mais morna, ao chegar à porta de casa

na vila da Baía da Traição à hora do jantar. São as mulheres, amadas, amantes,

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enamoradas, que fazem da vida do narrador a busca de uma verdade que, todavia,

jamais findará, procura vã de uma certeza absorta, existência imanente. Como a

imagem, que, afinal, não é cópia do real, mas uma realidade em si, supra – uma

surrealidade –, a busca é ela mesma o seu jogar, voltada para dentro do marco maior –

acessível por chaves diversas: o homem.

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15.Conclusões

O homem cardoziano trafega como sombra de seu autor. O foco do leitor

primeiro recai no relato do narrador, um pouco Joaquim – pelo menos assim este nos

parece querer fazer crer, sempre frisando uma sensação de familiaridade, como se

estivesse a contar histórias de sua vida sentado na cadeira a nosso lado. Em seus contos,

Cardozo traz a figura do narrador anônimo, que tenta, muitas vezes tormentosamente,

encontrar-se em meio a um mar de imagens variadas, palpitantes – essenciais. Estamos

numa obra de um homem cujo “deslocamento de espírito” traz à tona seu próprio âmago

fora do lugar. Suas palavras vêm encadeadas de forma linear, mas escoam um frenesi de

questionamentos e sensações, que caracterizam a força dessa escrita – pensamentos que

tentam em vão dar conta da amplidão de uma natureza por vezes sôfrega, que escapa a

falas e enquadramentos sequenciados. A natureza é, sobretudo, faminta e livre,

inesgotável, distúrbio capaz de fazer o sujeito mover-se. Natureza meio Capitu, com

olhos de cigana oblíqua e dissimulada que tragam o homem para o seu fundo sirênico,

imperscrutável. Natureza tresloucada, de coração nervoso – não é humana, visto que se

põe do outro lado, fora dessa humanidade conveniente e banal. Vibra, se enerva, lateja,

grita, dorme, chora. Instável e bagunçada. No território selvagem e estranhamente

codificado da natureza, só tem vez quem a quer como (ir)reflexo de seu próprio íntimo

chacoalhado.

Esse sujeito-narrador é, também ele, assimétrico a si mesmo. Temos aqui uma

vivência que, apesar do medo, vai à carnalidade das coisas, conhece o corpo das coisas,

prova-o. Esse conhecimento é experimentado por um homem intenso, essencial. Pelos

olhos do narrador/Joaquim enxergamos o mundo. Trata-se de uma escrita que se diria

não se pretender literária, apenas relato, com tom à primeira vista leve. Adota

voluntariamente a forma simples, corrida, e assim se liga incontornavelmente ao caráter

modesto, pudente, de seu autor. Como a constituição mesma dos contos e seu desenrolar

parecem propor, o (aparentemente) prosaico do literário não impede que aqui o escrever

se erga a despeito de si, uma literatura que não carece ser aplaudida, ultrapassada ou

rejeitada. Vemos uma escrita que não se encaixa num fazer literário predeterminado,

sem redenção, sem atenção a rótulos, sem arrojos beletristas.

É obra dona de um contar que se afirma em e por si, sem parecer roçar nas

fímbrias do literário, impregnada de valor quase documental. Afinal, não cabem aqui

olhares afetados, imposições de modos de fazer estético – de um fazer estético que se

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contenta com uma arte obediente a conceitos como realidade e ficção. Cardozo baralha

as cartas, ziguezagueia, joga de mão, veloz.

Os contos de Cardozo trazem para os olhos do leitor a expansão da imagem,

pura palavra, tão imediata e inevitável. Sem empolamentos, dá testemunho do

desassossego desse homem perseguido por seu eu obscuro, que vagueia, e confronta

com seu íntimo o meio circundante. Temos uma angústia funda, um não caber; um

homem cuja mente pode vir a ser sua pior inimiga. Em meio a um esboço de

ordenamento controlado, a súbita irrupção de uma imprevisibilidade compõe retrato

formidável. Não se trata do que não pôde caber em palavras; pelo contrário, é a urgência

da imagem, que emerge apesar do discurso linear. Uma imagem-corpo, o corporal da

literatura.

O homem cardoziano é praticamente um antagonista de si mesmo, numa

autobifurcação, encarnando luz e trevas – essência de um uno fendido. Em Cardozo, a

ambiguidade corresponde ao embate consigo mesmo. Para expressar a natureza humana

em ebulição, a prosa cardoziana não elege conceitos, tradução de ideias, mas sim o puro

impacto, e para isso busca elencar imagens, configurando-se, pois, como uma narrativa

imagética. Nela a trama é cósmica, contempla a totalidade da relação do homem

consigo e com o universo. As imagens reinam no universo cardoziano, em que parecem

arrastar o que se desenrola no interior do homem. A ação interna é emoção, paixão. É

flagrante como o homem cardoziano se engrandece a tal ponto que o exterior passa a

espelhar seu interior, como se pode observar nas cenas de confronto com a natureza, em

que o homem cardoziano, tragado por seu recôndito obscuro, abala-se quase até o

desespero e a loucura, numa ação interna convulsiva que encontra pleno correspondente

na fúria delirante da natureza. Cristaliza-se assim uma certa harmonia entre homem e

mundo, em que o primeiro é o dentro do segundo, e o segundo é o fora do primeiro.

O homem cardoziano está em conflito consigo não pelo que faz, mas pelo que é.

Portanto, temos mais uma vez uma força irreprimível e inconsciente adernando a razão

– a integralidade da natureza humana aparece assim largamente explorada na narrativa

cardoziana.

Em Cardozo, o narrado depende intimamente do narrador, visto suas oscilações

de estados de espírito; e a realidade desconstrói-se como apreensão una e pode surgir

como fragmentos particulares e distintos. O foco da narrativa é muitas vezes o próprio

narrador, que faz de si o objeto privilegiado da narração, num processo de diminuição

do enredo. A anulação dos limites entre realidade e ficção e o realce da qualidade

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poética – sugestão de fingimento e construção – desta última fazem dos contos

cardozianos um corpus surpreendentemente atual.

O narrador cardoziano vive as entranhas do humano, o microscópico. A

insistência de Cardozo em criar atmosferas que apagam fronteiras, frisando que

nenhuma interpretação é definitiva e esgota perspectivas, reafirma sua adesão a uma

narrativa ambígua, marca de seus contos. Sua recusa em fazer escolhas óbvias leva-o a

criar um narrador que, num primeiro momento, narra como homem civilizado e

racional, mas em seguida se vê obrigado a curvar-se diante da potência da natureza, e

reconhecer sua falibilidade, um dos traços mais ricos de sua escrita.

Aqui estudamos também como Cardozo constrói um clima quimérico, que

perpassa sua prosa, numa combinação exemplarmente intrigante de ficcional e real

minuciosamente dosados, entrelaçados, indissolúveis.

A preocupação com temas de fundo metafísico, a constância e o vigor das

imagens, o entendimento, humilde, da violência arrebatada (e arrebatadora) da natureza,

aspectos imensamente privilegiados por Cardozo na tecedura de seus contos, ligam-se

de maneira indelével à sua mocidade, nas cercanias do bairro do Zumbi, repleto de

majestosos exemplares da flora local, terreno propício para a germinação do fértil

pensamento do menino. Seu Recife, todo ele nuvens e terra, cajueiros, mar e rio,

frondoso de verdes, é a base para sua contemplação enleada do mundo, numa busca

incessante do significado das coisas, do grande mistério cósmico. Ao eleger sua terra

mesma como ponto de partida da construção de sua prosa e das imagens que a povoam

– prosa devotada a sondar o mais recôndito do humano –, Cardozo alarga os horizontes

de sua escrita e consegue, assim, tocar o universal.

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17.Apêndice

Voltando de Marcação

A manhã daquele dia nasceu como as dos outros dias: um vento sulão soprando

sobre os coqueiros da Baía, e fazendo correr a areia das dunas em direção da lagoa.

Naquela manhã tinha partido para a vila de Marcação, contrariamente ao que eu

vinha fazendo frequentemente, quando saía logo muito cedo para a ponta do

caminhamento onde fazia o meu trabalho habitual. Desta vez fui para a vila de

Marcação, a meio caminho de Mamanguape, montado num velho e magro alazão que só

possuía as “pistas naturais”, isto é, passo, trote e galope, como diria se o visse o meu

amigo Dr. José Tavares, técnico abalizado em andaduras de cavalos, animal que

considerava “o pedestal do homem”.

O passo, o trote e o galope, maneiras de andar de um cavalo que não fora

forçado a aprender marchas menos ásperas, eram para mim quase um suplício em todas

as minhas caminhadas para chegar ao local do meu serviço; isto porque as duas

primeiras marchas eram muito incômodas para o cavaleiro e a terceira muito cansativa

para o cavalo.

Achei, entretanto, um meio conciliatório para viajar sem me molestar em

semelhante alimária: primeiro chicoteava-a para seguir a galope, andadura que não me

enfadava, mas fatigava o animal, forçando-o a passar pouco depois a trotar – trote que

era mais um chouto –; então, freava-o, e continuava a viagem num simples passo muito

demorado; depois de algum tempo, de novo animando-o a galopar, sucedia que, outra

vez, voltasse ao chouto terrivelmente incômodo. Assim, sucessivamente, conseguia

vencer a distância de quase uma légua sem me cansar, a mim e ao cavalo.

Nessa maneira de cavalgar, cheguei, naquele dia, ao povoado de Marcação, onde

ia contratar e executar o trabalho de demarcação de um sítio.

Eram dez horas, aproximadamente, quando me apeei na porta da venda, a

principal casa de negócio da povoação, e, ao mesmo tempo, hospedaria de forasteiros

que por lá transitavam.

Encaminhei-me diretamente ao dono da venda e lhe pedi para me fazer o

obséquio de comunicar ao proprietário do sítio em que eu havia chegado com a intenção

de ver o terreno e executar, logo após, os serviços de demarcação; ao mesmo tempo,

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como precisaria de dois dias, pelo menos, para a sua realização, pedi-lhe que me

reservasse uma rede para dormir.

Chegando o sitiante, disse-lhe a que vinha, isto é, que tinha trazido comigo o

trabalhador para transportar o instrumento com que iria cumprir a empreitada, mas

precisava de mais alguns operários, no intuito de completar a minha turma; lembrei-lhe,

no entanto, que seria melhor ver o sítio em primeiro lugar, para, conhecendo a natureza

do terreno, poder fixar o número de foiceiros.

Saímos, então, os dois, em direção à propriedade, que percorri totalmente: era

um terreno plano e fácil de demarcar, não tinha elevações, e os trabalhos de foice eram

muito reduzidos.

Os limites do sítio tinham sido feitos de grandes cercas nativas compostas de

altos cafezeiros, que, naquela época, estavam frutificando; as cercas facilitavam muito o

levantamento topográfico. No sítio não havia casas de moradores, nem matagais, não

havia plantações ou outros quaisquer acidentes, como pequenos cursos d’água ou

pequenos alagados, que precisavam ser detalhados com caminhamentos especialmente

feitos para isso.

Resolvi, portanto, começar ali imediatamente, com apenas dois ajudantes, para

fazer as medições. Começaria naquele mesmo dia, se o proprietário me fornecesse dois

auxiliares.

Depois de percorrido o sítio e constatada a facilidade do levantamento, entrei em

entendimento com o sitiante sobre o preço do trabalho, perguntei-lhe se possuía outras

partes de terra semelhante e se todas foram também demarcadas e desenhadas. Ele

ouviu-me com surpresa e me disse que o Dr. Manuel Dantas estava equivocado; ele

somente tinha o dinheiro necessário para comprar aquela terra e não possuía meios para

pagar salários de engenheiros; da conversa que manteve com o Dr. Manuel tirou a

conclusão que o levantamento seria gratuito.

Surpreso também fiquei, e lhe pedi desculpas por tê-lo tirado dos seus afazeres e,

de viva voz, solicitei que me ajudasse a obter condução para podermos, eu e meu

empregado, regressar à Baía, àquela noite. Voltamos juntos à venda onde iria jantar e

tomar as providências no sentido de obter transporte para a viagem de volta, ao cair da

tarde.

O cavalo em que viera tinha voltado à Baía, ficara o que trouxera o trabalhador,

meu acompanhante, com o instrumento e as balizas: precisava, portanto, arranjar uma

montaria para mim; consegui com o dono da venda. Íamos partir, dentro em breve, a

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demora estava apenas na vinda desse cavalo e no tempo de comermos alguma coisa

como jantar.

Partimos afinal quase às sete horas da noite com o dia já escuro; partimos ao

longo daquele caminho deserto, a princípio subindo e descendo ladeiras; somente

depois desses declives entraríamos nos tabuleiros e capoeirões que precediam a chegada

à Baía da Traição; a pouca distância da vila, notei que o cavalo em que eu viajava estava

cansado, pois se movia com muita dificuldade nas subidas, precisando juntar-lhe as

esporas para poder galgá-las.

Disse-me o trabalhador, meu companheiro de viagem, que o cavalo que me

deram para viajar tinha trabalhado durante o dia todo, por isso estava cansado. Na

marcha em que íamos, em hora muito avançada chegaríamos à Baía; talvez onze horas;

meia-noite, talvez.

Alcançamos o ponto principal da viagem: o lugar onde estavam os grandes

declives da estrada; a parte da descida foi feita sem dificuldade; na subida oposta,

porém, a minha montaria já se arrastava – arrastava era o termo – para galgá-la; por

mais que eu o animasse, que usasse as esporas, que o chicoteasse, não progredia no

acesso à colina.

Dessa experiência resultou a conclusão que ele não poderia prosseguir: chegou

quase derreado no alto da ladeira. Procurei encontrar uma solução; chamei o meu

auxiliar, que ia um pouco na frente, e lhe propus a troca de cavalos, ou melhor, lhe

comuniquei que era forçado a abandonar aquele em que vinha montado e que ele me

cederia o dele; com o animal no qual o auxiliar vinha trazendo o instrumento eu viajaria

sozinho até a Baía. Ele deixaria no primeiro tabuleiro que encontrássemos o animal

cansado, amarrado num murici, ou numa mangabeira, e ele seguiria a pé ao meu

encontro.

Houve uma certa demora em fazer a mudança, era preciso tirar a cangalha do

cavalo que trazia o instrumento e deixá-la também no tabuleiro, passando para ele a sela

daquele em que eu vinha. A noite estava um pouco enfarruscada, via-se mal o caminho,

não havendo, entretanto, nenhum perigo em deixar o cavalo e a cangalha dentro de um

tabuleiro por onde, mesmo durante o dia, raramente se via passar alguém.

Feita por fim a mudança saí montado no outro cavalo. Tive ainda que atravessar

vários tabuleiros, vários capões de mato, estes às vezes com picadas abertas onde bem

se distinguia a folhagem derrubada dos pereiros, que fazia no chão com a sua cor

esbranquiçada lembrar um lençol estendido. O cavalo recuava, quando via aquele

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branco fantástico surgir, de repente, na semiescuridão da noite; espantado, recuava,

recusava às vezes mesmo avançar, num pressentimento maligno e nefasto, inesperado

num animal irracional, pressentimento de morte naquele branco de mortalha.

O animal dançava uma dança de lado, repugnando, fugindo àquela aparição

sugerida pelas frondes caídas dos pereiros.

Dentro de algum tempo, estava próximo da lagoa, que tinha agora de atravessar

sozinho, em plena noite densa; aquela mesma lagoa por onde eu passava, todas as

manhãs e todas as tardes, seguindo o caminho para o meu serviço cotidiano. Atravessei

o último túnel aberto dentro de um capoeirão; passei sobre a pequena ponte, na

extremidade da lagoa, pequena ponte sobre o rio Mirici, que contornava as águas mortas

da lagoa até a sua foz perto da Baía.

Por fim, entrei realmente na lagoa, procurando os caminhos, cobertos de água,

fazendo o cavalo tatear dentro daquelas trilhas inundadas; a vegetação aquática tinha

àquela hora da noite um aspecto sinistro. Reinava um silêncio de túmulo e os grupos de

folhagens distantes faziam vultoso conjunto de formas negras dando a impressão de

nuvens escuras ali pousadas. Era lúgubre. Toda a paisagem dava a impressão de estar

inteiramente coberta de nuvens tempestuosas. De grupos de nuvens espaçadas tomando

o aspecto de uma vegetação ultraterrestre, fenômeno que pela primeira vez percebi, pois

até então não tinha tido oportunidade de viajar de noite através daquela lagoa de água

morta.

Continuei a seguir com muita precaução, olhando todo o ambiente, mas,

sobretudo, cuidadosamente observando por onde pisava o cavalo. Olhando todo o

ambiente, àquela hora vazio das jacutingas, das galinhas d’água, das jaçaranas, das

saracuras, das narcejas, dos jacumins, dos jaburus e outras aves pernaltas que, ao

entardecer, o invadiam, num bater de asas frequente e tumultuoso. Era justamente ao

primeiro crepúsculo que essas aves voltavam a se recolher nos seus ninhos entre as

árvores e os arbustos da lagoa. Assim, as via voando, chegando de outros lugares para

se abrigarem pela noite; as via voltando, voando sobre a minha cabeça, quando eu

também voltava, nos meus dias normais, para também me recolher em nossa residência

na Baía.

Com surpresa, porém, à medida que caminhava não tinha chance de avistar o

pequeno curso d’água corrente que ficava na outra extremidade da lagoa e onde se subia

um pequeno barranco para o coqueiral novo; de repente senti que me tinha enganado;

estava percorrendo uma vereda onde a água morta atingia os pés do cavalo em pontos

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mais altos; esse desvio poderia ter sido motivado por eu me ter empolgado pela visão

fantástica noturna das árvores aquáticas, ou talvez pelo mugido de um socó-boi que

passou no escuro. A regra geral na travessia da lagoa era seguir o caminho molhado

mais alto, e isso se obtinha olhando a altura d’água nos pés do cavalo. Resolvi

retroceder, o que fiz com muita precaução, e fui melhor observando a situação da água

em relação aos pés da minha montaria.

Por fim, depois de pequenas vacilações, encontrei o riacho que sempre supus ser

um raso afluente do Mirici, apesar de ser mais profundo que as outras vias alagadas.

Atravessei-o e galguei a barranca oposta.

Dessa barranca em diante, estendia-se uma plantação de coqueiros novos,

coqueiros de pouca altura, muito menores que os da Baía; maneira de plantar, parece,

porém, que prejudicou o seu crescimento e a sua produção de cocos. Era um coqueiral

deserto onde no capinzal perto das suas raízes pastava apenas o gado que eu via pela

manhã com os anuns voando em torno dele em busca de carrapatos.

Naquelas alamedas de coqueiros plantados num campo coberto de capim,

penetrei; o ar era soturno, tudo ali comunicava uma tristeza árida e sombria que se

tornou maior quando começou a chover; era uma chuva muito fina que embrumava tudo

na minha frente. Instiguei o cavalo já um pouco cansado, senti um certo medo provindo

daquela colina, daquele rígido silêncio, daquela chuva miúda e mesquinha.

Como as nuvens de chuva cobriam o céu, não deixando ver, não pude avaliar a

hora; avancei, porém, ao longo desse coqueiral triste, de onde, de vez em quando, vinha

o canto aziago da coruja, acompanhado de um bater de asas invisíveis e diabólicas; fui

avançando assim mesmo, cheguei perto do nicho do Divino Amor, de que me

aproximei, freei o cavalo e olhei para dentro, onde estavam o crucifixo e a luz; a luz

eterna que ali ficava queimando por dias e noites.

Depois prossegui, vi a igreja do povoado, aonde raramente um padre vinha dizer

missa e que ficava bem no limite do casario da Baía; na sua única rua entrei ao longo do

seu areal e do seu coqueiral de altos e velhos coqueiros sempre bem carregados de

frutos, coqueiros abertos em grandes folhagens de palmas rumorejantes; aproximei-me

da casa onde morávamos: a porta estava aberta.

Era, aproximadamente, meia-noite. Todo o casario estava fechado e silencioso;

entrei pela porta aberta, sem desmontar, para me abrigar da chuva que caía e mais densa

se tornara. No quarto onde dormia Holanda ardia um alcoviteiro de querosene, junto à

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rede do meu companheiro de empreitada, que tranquilamente continuava a dormir, sem

ter percebido a minha chegada inesperada.

Logo depois dessa irrupção pela casa adentro, apeei, sentei-me numa cadeira

próxima e, segurando as rédeas do cavalo, fiquei esperando o trabalhador que trazia os

apetrechos com que trabalhávamos e que ainda ia demorar um pouco a chegar, pois

vinha caminhando a pé.

Sem querer, adormeci, sentado e segurando as rédeas do cavalo; as próprias

rédeas caíam-me das mãos; não ouvi mais o rumor dos coqueiros que, defronte da nossa

casa, acordados pelo vento, faziam um denso rumor convulsionado.

De repente, senti que alguém penetrava pela porta e dizia:

– Seu Doutô!

Abri os olhos, não vi o cavalo, que, sem saber, fugira das minhas mãos; diante

de mim, estava o rapaz que trazia o instrumento e todo o restante do material de

trabalho; colocou-os no canto da parede e indagou onde estava o cavalo, que devia

voltar à vila de Marcação.

Mas, surpreso, meio tonto de sono, não soube explicar-lhe como o mesmo tinha

desaparecido; a ele expliquei: disse-lhe que conservava nas mãos as rédeas quando

adormeci, mas que não devia andar longe; de fato, a alguns metros da casa, babujando o

capim ralo ao pé dos coqueiros, foi encontrado.

Assim termina a história de minha ida e da minha volta de Marcação, onde viajei

no dorso de três cavalos, que raramente possuíam as pistas naturais e científicas que o

meu amigo costumava anunciar nos seus cartões, no Recife, onde se rifava sempre:

“Rifa-se, pelas três finais da Loteria Federal, um hípico nobre, russo-pombo, possuindo

as pistas científicas e naturais.” As pistas científicas. Baixo, baixo e meio, galope

pisado, ele, e nenhum cavalo da Baía, possuía.

Assim terminou a minha volta de Marcação; fechei a porta, estendi-me na rede

para dormir; a chuva arrefeceu e parou; o vento lá fora amainou; no quarto de Holanda o

candeeiro de querosene começou a crepitar e se apagou.

Perdidos nos tabuleiros

Já era noite quando deixei o engenho Cumaru, onde passei duas semanas

ocupado em tirar a linha entre dois marcos que, do lado norte, limitavam aquele

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engenho. Os proprietários estavam ausentes. Apenas os caseiros – constituídos de

marido, mulher e dois filhos – ocupavam a casa-grande. Todos os membros da família

sofriam de maleitas; esforçavam-se para me prestar serviços, sem aquele cansaço que

habitualmente têm os doentes dessa moléstia.

Era noite fechada quando me despedi do casal que me hospedara e comecei, com

um empregado que me acompanhava, a viagem de retorno à Baía da Traição; era uma

noite bastante escura. Apesar disso, podiam-se ver, nitidamente, as constelações e o

grande arco da Via-Láctea. Saímos sem conhecer muito bem o caminho através dos

tabuleiros paraibanos; à frente, montado num cavalo com dois caçuás, ia o empregado,

com o instrumento metido num deles e as balizas no outro. Atrás, ia eu cavalgando,

como sempre, um mau cavalo. Assim, sucessivamente, íamos percorrendo os caminhos

incertos e desorientados dos tabuleiros, sempre com a mesma vegetação arbustiva:

muricis, cajueiros brabos, batiputás e mangabeiras; os batiputás, com os seus frutos

vermelhos que davam muito bom óleo de mesa; as mangabeiras ainda carregadas

naquele mês de junho, com os seus frutos saborosos.

Soprava um vento leve e arisco, que vinha certamente do mar. Um vento

molhado e indeciso; um vento já àquela hora a serviço, destroçado e incerto. Um

vento... Um vento contido pelos capoeirões, pois os caminhos não prosseguiam apenas

sobre tabuleiros. De vez em quando um desses capões de mato surgia, atrapalhando a

passagem para outros tabuleiros.

Tínhamos caminhado já por bastante tempo. Eu seguira, enlevado pela beleza da

noite negra e estrelada, escura e iluminada, quando, de súbito, pensei que já era tempo

de estarmos bem próximos da Baía, e dela não havia sinal. Suspeitei que estivéssemos

perdidos. Parei, então, e gritei para o empregado, que ia na frente:

– Pare aí, seu João, parece que vamos errados!

O empregado, João, puxando as rédeas conteve o seu cavalo; ficamos os dois a

olhar o céu. Por fim, disse:

– Não tenho nenhuma orientação sobre os caminhos por onde vamos, o único

meio que possuímos agora é nós seguirmos em direção do mar, orientados pelas

estrelas.

Olhei-as, vi que Orion estava muito alta, devia ser quase meia-noite; já era

tempo de estarmos na Baía.

Informei o empregado que d’agora em diante iríamos nos orientar pelas estrelas;

eu iria lhe indicando a trilha em direção à praia, e acrescentei:

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– Se atingirmos o mar e estiver baixa a maré poderemos passar facilmente entre

o mar e as barreiras e assim atingimos facilmente a Baía.

Foi como procedemos. No entanto, estávamos num plano mais alto do que o da

praia, estávamos por cima das barreiras que orlam o litoral paraibano, naquele local.

Precisávamos descer cerca de quinze metros; em todos os lugares que tentávamos

descer víamos a queda abrupta e íngreme da barreira. Depois de várias tentativas,

encontramos finalmente, na região do Tambiá, uns sulcos profundos que mergulhavam,

de maneira menos abrupta, para a praia; no entanto, ainda era muito difícil a descida,

mas tentamos. Precisamos descer dos cavalos e puxá-los pelas rédeas com muito

cuidado, sobretudo o que ia carregado com os apetrechos usados em nossos serviços.

Todo o cuidado era pouco, pois os cavalos resistiam, se amedrontavam, recuavam, e nós

procurávamos uma nova linha de descida, um outro declive mais suave, menos

perigoso, para evitar uma queda onde se desse possível fratura nas patas dos animais.

Fomos assim, pouco a pouco, descendo entre aqueles sulcos profundos, de uma terra

pegajosa e escorregadia; fomos indo, pouco a pouco.

Com muito cuidado, conseguimos descer até a praia e tornamos a montar.

Felizmente a maré estava em vazante, tudo levava a crer que quando chegássemos às

pedras já houvesse uma passagem fácil entre elas e as barreiras, podíamos ir tranquilos.

Mesmo que encontrássemos ainda a passagem difícil, podíamos esperar pouco tempo,

teríamos sorte; se fosse de enchente a situação da maré, teríamos que esperar que a

enchente se completasse e depois começasse a vazar.

Dentro de alguns minutos chegamos aos pedregulhos, ainda com água nas

proximidades das barreiras, esperamos um pouco e, depois, passamos fácil pela pequena

faixa de praia que separava as pedras dos barrancos.

Agora estava o caminho aberto, sem empecilhos, sem dificuldades, para o

povoado onde morávamos; já se via de longe o grande coqueiral da Baía da Traição.

Caminhávamos agora com segurança sobre o chão batido da praia de areia

endurecida pela água do mar.

Aproximava-se o povoado, já avistávamos as primeiras choupanas.

Começávamos, porém, ao mesmo tempo, a ouvir uma música, com um som de batuque

anunciando que era noite de festa na Baía. Com efeito, ao aproximarmo-nos ouvimos

mais agudos os sons das palmas e dos tambores usuais na dança do coco.

Disse eu:

– É dia de festa na Baía.

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O empregado que me acompanhava explicou:

– Hoje é dia de Sant’Ana. Esse dia, como por Santo Antônio, São João e São

Pedro, é também festejado na Baía da Traição, com as mesmas danças: coco de roda,

para as mulheres, coco isolado, para os homens.

Entramos no povoado e ouvimos, agora nítido, o canto do coco, tirado pelos

homens:

Todo mundo teve sorte

– O que é, minha comadre?

Lá na pesca do Tavu

– O que é, minha comadre?

Só o pobre do teu compadre.

– O que é, minha comadre?

Só pescou Sambararu

Passa pra qui, Tavu

Passa pra qui, Sabararu (repetido)

Penetramos mais ainda na única rua do povoado e ouvimos além do canto

também o ruído do palmeado, dos ganzás e o batuque dos tambores:

Todo mundo teve sorte etc.

Passamos pela casa de Sinhá Josefa, que possuía um coco de roda somente de

moças, e ouvimos a sua música e vimos os seus corpos gingando nas umbigadas. Sua

música era assim:

Pisei, saltei,

Na barra de Coqueirinhos.

Meninas, vamos

À praia pescar peixinhos.

Pisei, saltei

Na barra do Miriri.

Meninas, vamos

À praia pescar siris.

E assim prosseguia.

Eu e meu empregado continuamos a cavalgar ao longo da única rua que existia

naquela vila e notamos que a festa prosseguia com alegria e entusiasmo; era tarde,

porém, os festejos de Sant’Ana estavam praticamente no fim. As moças que dançavam

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aquele coco de roda giravam ainda, dando as umbigadas que caracterizam a dança,

muitas, entretanto, cansadas, já se tinham retirado.

A noite estava quase no fim, o céu, de um azul profundo, cobria os coqueiros,

que, neste céu, recortavam silhuetas sombrias.

Sant’Ana! Louvei Sant’Ana, na véspera do seu dia, como era costume festejar-se

Santo Antônio, São João e São Pedro. Lembrei-me de que, na minha infância, no grande

sítio em que morávamos no Zumbi, no meu subúrbio do Zumbi, para louvar estes santos

fazíamos fogueiras, procurávamos fogueteiros para comprar foguetes: os busca-pés, os

fogos do ar, as limalhas! Lembrei-me que sempre se falava, todos os anos, no fim da

noite da véspera de São Pedro, na possibilidade de se festejar Sant’Ana. Na Baía da

Traição, essas festas não tinham fogueiras, nem foguetes; aquela gente pobre não

possuía dinheiro para festejar com tantas despesas, mas com muitos cantos e alegria

festejavam esses santos do cristianismo, inclusive Sant’Ana.

Sant’Ana! Foi na véspera de Sant’Ana que nos perdemos nos tabuleiros, com o

risco de passarmos a noite perdidos ou talvez em resultados mais graves na descida do

Tambiá, com a perda de um dos cavalos pelo menos, naquela descida perigosa.

Sant’Ana! Foi Sant’Ana quem nos apresentou a praia limpa de maré alta? Que

nos possibilitou viagem fácil até a Baía? Foi Sant’Ana, na véspera de seu dia?

Cheguei à porta da casa onde morava; o empregado tirou o instrumento e as

balizas e guardou-os, depois levou os dois cavalos, trôpegos e cansados.

Olhei a praia próxima; estava ainda vazia de pescadores.

Preparei-me para me estender na rede e dormir; de uma casa perto da nossa,

chegou-me, porém, o som dos batuques dos ganzás e dos tambores; detive-me e fiquei a

ouvir os trechos de embolada que cantavam:

E Santa Cruz grita: fogos!

Não deixa o rifle esfriar, Helena

Ai! Helena

Onde vai, morena Helena?

Logo depois, uma voz grita: “Viva! Viva!” E o canto prosseguiu, agora cantando

outra história; agora não era mais a história do assalto do bacharel Santa Cruz a Alagoa

do Monteiro; o canto de novo vinha, numa outra voz:

Eu entrei na academia

Pra estudar preparatório.

Helena, ai, Helena!

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Onde vai, morena Helena?

Estudei tanto de tudo

Que fiquei sem saber nada, Helena

Ai! Helena

Onde vai, morena Helena?

Uma outra voz meio alcoolizada, mais rouca e esquiva, se fez soar:

– Muda! Muda!

Houve um silêncio, pensei que tinha cessado o brinquedo, mas logo uma voz,

exigindo outra embolada, se ouviu:

– Outra! Outra!

Levantei-me, fui até a porta. Aquela música e a emoção por que passei durante

aquela viagem noturna me tiravam o sono; olhei entre as palmas dos coqueiros a

primeira luz da manhã; mas a voz continuava:

– Outra! Outra!

Parecia que estava mesmo tudo terminado; voltei para o interior da casa.

Deitei-me na rede para dormir, certo que estava tudo acabado; deitei-me e

sentia-me satisfeito por ter conseguido vencer as irregularidades e incertezas dos

tabuleiros, com os seus caminhos divergentes; ter conseguido reduzir as suas linhas

vacilantes à linha firme das ribanceiras que vão da Baía da Traição à foz do Camunupi,

rio que limita a Paraíba com o Rio Grande do Norte.

Deitado na rede, fiquei ainda sem sono, creio que poucos minutos; de repente

ouvi de novo os zabumbas e um canto de embolada:

Balão, balão bateu

No alto da barra se perdeu.

Balão que veio

Além da serra se escondeu.

Adormeci. No horizonte longínquo, uma fímbria de luz já aparecia entre os

coqueiros da Baía; amanhecia.

Naquela praia formosa, paraibana, o dia de Sant’Ana amanhecia.

Amanhecia!

Tramataia

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Enfim cheguei a Tramataia, pequeno e antigo povoado hoje deserto, esquecido à

margem esquerda do Mamanguape, precisamente na curva que este rio faz se dirigindo

para a sua foz na praia de Coqueirinhos. Era região por mim conhecida de passagem, já

a tinha visto, com os seus sete ou oito mocambos vazios, e inteiramente inútil,

abandonada a sua casa de farinha. Vários coqueiros, sempre carregados, permaneciam

ainda entre os casebres, dando ao conjunto um ar de tempo saudoso e longínquo.

Tramataia. Esse povoado pequeno e morto me surpreendeu vivamente; pelas

imagens de vida que revelava; pelas paisagens esquecidas, extintas muito antes de

prosperar.

Seus habitantes tiveram o rio para pescar, os mocambos para habitar; e os

coqueiros, com sua necessária presença civilizadora, eram, naquela pequena região, um

dos elementos principais de comércio; o outro era, sem dúvida, a casa de farinha.

Aqueles praieiros, modestos e sem recursos, construíram ali uma casa de farinha,

cujo produto servia não somente para uso próprio e doméstico, como também para ser

vendido em outros povoados.

Tramataia. Quando a vi, já estava morta; nascida e morta. Por ela passei muitas

vezes, para alcançar o sítio do velho Gersino. Ia por sobre a planície que o rio ainda

alagava nas grandes marés, mas onde não havia mais o manguezal, que somente

aparecia muito distante, junto à margem do rio, sobrevoado pelas garças e colhereiros,

em grandes bandos; sítio carinhosamente cultivado por seu Gersino, com plantações de

milho, com latadas de uvas e de maracujás. (Para proteger as espigas de seu milharal

contra a invasão dos periquitos e jandaias que viviam em bandos por toda aquela região,

o velho Gersino pagava a um menino para gritar dentro da plantação, durante todo o

dia.)

Enfim cheguei a Tramataia. Não mais para simplesmente passar, e sim para me

demorar por um dia, pois chegava para trabalhar na abandonada povoação, fazendo o

levantamento de uma grande ilha fluvial limitada pela margem do rio e um seu afluente;

e, por outro lado, pelas salinas cobertas de um capim duro, que se estendia numa vasta

planície alagadiça nas marés crescentes e que nela depunham o sal das águas do mar.

Grande parte dessa ilha era ocupada por uma densa capoeira que se juntava, na

margem do afluente do Mamanguape, ao mangueiral que o envolvia. Mangueiral de

grossos troncos e frondes largas, constituídos de mangues canvés. Debaixo dessas

árvores almocei nesse dia; ali me entregaram o almoço que chegara da Baía.

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Num só dia levantei todo o contorno da ilha. Já ao entardecer tinha passado pelas

salinas e conduzi o caminhamento pela margem esquerda do rio. Precisei tirar os

sapatos mais de uma vez (somente com os pés descalços era possível parar nas partes

alagadas). Fui, por isso, duas vezes mordido pelas mutucas, que eram muito frequentes

nessas regiões; às vezes, mutucas negras, cujas mordeduras faziam sangrar.

Um pouco mais além, quase ao chegar de volta à estaca de onde comecei,

encontrei uma grande extensão de terreno formado de uma substância desconhecida

para mim. Não era nem argila, nem areia – não me parecia também pedra –, parecia

mais vastos depósitos de uma matéria de consistência mais aproximada à da madeira,

pelo menos da madeira fossilizada. Tirei um fragmento para levar comigo e examinar

melhor.

Passei por cima dessas estranhas jazidas e liguei logo depois a linha que vinha

tirando à estaca inicial, depois a um marco que instalei no alto da ribanceira e que

amarrei a duas pedras firmemente cravadas no chão. Tirei o instrumento do tripé,

coloquei-o dentro da caixa e, como estava com muita sede, pedi a um trabalhador que

me tirasse uns cocos verdes, dos coqueiros de Tramataia. Foi um regozijo, para quem

vinha bebendo água de chuva contida dentro das folhas de pequenos gravatás (água de

chincho, como por ali era comum se chamar). A outro trabalhador, pedi que fosse

apanhar o cavalo, que estava pastando ali perto. Enquanto esperava os cocos, que

estavam sendo colhidos, abriguei-me na casa de farinha. Vi que estava um pouco

destruída. No caititu e na prensa faltavam peças. O lajeado de tijolo do forno e o próprio

forno de torrefação mantinham-se em bom estado. Por ali não passara nenhum sinal de

incêndio nem de destruição por assalto ou roubo.

Depois que bebi a água de coco, pedi aos meus ajudantes que fossem procurar o

cavalo em que viajara pela manhã, pois, ao cair da tarde, deveria regressar à Baía.

Enquanto esperava, percorri alguns casebres abandonados; entrei em mais de um deles e

verifiquei que, apesar de estarem desocupados por muito tempo, guardavam ainda uma

certa ordem naqueles utensílios mais pesados e, portanto, difíceis de serem facilmente

removidos. Em tudo, porém, transparecia um ar de mistério e indecisão, qualquer coisa

de insólito e inexplicável. As choças, cobertas de palha de coqueiro, permaneciam ainda

com essa cobertura, embora um pouco destruída. Com o tempo, que se supunha ser o do

seu abandono, davam a sensação de poderem ainda ser habitadas.

Sonho com Tramataia

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Nessa noite, sonhei com a pequena vila de Tramataia; sonhei que a localidade

estava de novo animada de gente; de novo os seus habitantes morando nos mocambos;

de novo na faina de plantar mandioca e de fazer farinha.

A casa de farinha estava novamente funcionando: mulheres, sentadas num

pequeno adro, descascavam as mandiocas; o caititu, com o seu rodete, triturava a parte

branca interior das raízes dessa euforbiácea, depois levada à prensa, que, atuada pelo

parafuso, expelia uma gosma espessa (a manipueira, isto é, a parte mais venenosa dos

tubérculos comprimidos). A massa, depois de bem esmagada na prensa, era lançada no

forno de torrefação, que estava aceso, e dois homens, com ancinhos, procuravam

espalhá-la sobre os lisos e quentes tijolos, para que a farinha saísse bem torrada.

Via, no meu sonho, toda essa labuta em fazer farinha, trabalho em que todos se

empenhavam com dedicação e interesse, para conseguir um bom produto (que seria

vendido em Marcação, ou Mamanguape).

Enleado naquela visão ilusória, ouvia também um canto que vinha das vozes das

mulheres, ocupadas em tirar a casca da mandioca:

O que é, o que é?

– Mastiga mas não engole.

– Engolir não pode sê.

Mas soprando como fole

É caititu, já se vê.

Nessa minha paisagem sonhada, além das roças de mandioca, havia milharais, e

as espigas de milho colhidas apareciam suspensas sobre o forno de torrefação;

suspensas do telhado, para secar. E havia o sofrido trabalho da pesca, sobretudo a

apanha de caranguejos, executada com muita dificuldade dentro de um manguezal

enorme, de lama espessa, de lama profunda, em que o apanhador corria o risco de se

afogar naquela massa negra e untuosa; de se espetar nas hastes partidas dos mangues.

Via também, no meu sonho, não apenas o fatigado trabalho, mas a alegria

cantada e dançada, como na Baía, nos cocos de roda e no sapateado dos homens

batendo o compasso das emboladas. Havia mesmo, entre aquela gente, mais saúde do

que na que habitava no litoral. Ali havia menos maleitas, menos febres, pois o povoado

não possuía lagoa de água estagnada onde se criam os mosquitos causadores desses

males.

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O segredo de Tramataia

Quando terá terminado a pequena civilização da vila de Tramataia? E como

morreu, assim tão de súbito, essa atividade, desde que não houve incêndio, nem

destruição por assalto de forasteiros? Os mocambos, cobertos de palhas de coqueiro,

mantinham-se quase intactos, sem indícios de destruição pelo fogo ou pela violência.

Essas perguntas ninguém me soube responder. Mas tudo revelava que o povoado

evoluiu normalmente, como evoluíram o aldeamento de São Francisco e a vila de

Marcação. Teria então sido criado pelos caboclos da mesma tribo que fundou o

aldeamento; ou surgido da mesma consequência que deu lugar a Marcação – a qual

resultou da demarcação de terras devolutas do Estado (isso ainda no tempo da

monarquia).

Mas os habitantes dessas vilas quando e por que abandonaram os seus casebres?

Forçados por que circunstâncias? É provável que o abandono tenha sido feito

lentamente, até que o último habitante o tivesse deixado.

Uma série de insucessos teria sido causa inesperada da interrupção do bom

andamento no curso da vida que vinha sucedendo em Tramataia, daí a evasão, daí o

abandono do próprio lar; mas em busca de quê? Não se sabe.

Seria como se uma voz viesse do alto, uma ordem divina, à maneira dos antigos

avisos aos homens e às cidades atingidas pela maldição de Deus.

Nunca, confesso, tinha visto um povoado ou uma aldeia assim abandonada pelos

seus habitantes; praticamente intacta, como se todos tivessem saído para assistir a

alguma festa distante, e até hoje não tivessem voltado; como se todos tivessem ido

acompanhar uma procissão, numa outra aldeia longínqua, e a qualquer momento

voltassem às suas casas.

Tramataia guardava consigo um segredo que era impossível desvendar, como

muitos outros segredos que, naquelas terras, há séculos habitadas por índios, surgiam,

para surpresa minha, de vez em quando. Esse povoado, sempre que por lá passava,

dava-me a impressão de manter um mesmo semblante: aquele de quem espera; de quem

está sequioso da presença de alguém; de quem conserva um íntimo silêncio no qual uma

alta voz deseja se revelar.

O segredo de Tramataia talvez estivesse contido nas grandes mangueiras

distantes e altas, onde voavam bandos de garças brancas, pescando peixes do rio para

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devorar e sendo elas mesmas caçadas pelos homens que tinham, pelas suas níveas

plumas, a obsessão de consegui-las e vendê-las.

Tramataia

De onde teria vindo esse nome? O que significa? Perguntei a muita gente

entendida – que não me soube responder – que relação tem essa palavra com a

linguagem dos índios que ocupam, há tantos anos, várias localidades da Baía: Mataracá,

São Miguel, São Francisco. Tinham contato com Tramataia?

O fato de existir a casa de farinha não indica a presença do índio nesse antigo

povoado? Sabe-se que a indústria do indígena incorporou a fabricação da farinha de

mandioca na sua técnica primitiva; basta dizer que entre os índios o caititu chamava-se

tipiti e tinha caráter rudimentar e sui generis.

Toda esta especulação aqui fica, para investigações que possam resolver não só

essa incerteza, como muitas outras que ainda hoje existem nas localidades de nome

indígena em nosso país.

Tramataia! Seu nome é também objeto de seu mistério.

O rugido

Estávamos conversando na sala de jantar da casa onde morávamos – lugar onde

nunca nos encontrávamos para fazer refeições, que eram feitas todos os dias na sala da

frente. A comida (sempre peixe cozido, peixes pescados pelos jangadeiros, que saíam

todas as manhãs para pescar) era preparada na casa do engenheiro Manuel Dantas, que

morava perto de nós.

Assim, na sala da frente, recebíamos e tomávamos o café, pela manhã, com

cuscuz de milho; almoçávamos e jantávamos. As nossas reuniões na sala de jantar

aconteciam apenas para podermos nos entreter em conversas que giravam, quase

sempre, sobre as ameaças a que estávamos sujeitos; nós, que trabalhávamos numa

demarcação de terrenos devolutos e ocupados pelos antigos índios que se instalaram, há

séculos, naquele recanto da Baía da Traição.

Meus dois companheiros de casa e de trabalho, o Holanda e o Alencar, tinham

sempre uma novidade para contar: uma vez, se aproximaram de mim e, envolvidos num

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ar de preocupação e mistério, me levaram até a pequena calçada do Divino Amor, onde

ardia uma luz contínua, de dia e de noite; ali me revelaram que estávamos seriamente

ameaçados pelos caboclos do aldeamento de São Francisco, principal reduto dos índios

da Baía. Os habitantes dessa aldeia, que era o núcleo principal dos seus encontros,

estavam ciosos de suas terras e temiam que os Dantas do engenho Barro Branco, sendo

seus vizinhos, procurassem nelas penetrar. Os meus dois companheiros me anunciaram

que, daquela data em diante, iríamos trabalhar sob a proteção de guarda-costas, o que

efetivamente se deu.

Tinha-se, quando as coisas eram mesmo graves, o recurso da velha sala de jantar

para contarmos entre nós as nossas dúvidas e suspeitas.

Estávamos, assim, conversando uma noite nessa sala quando, entre os rumores

do mar, próximo, e o ramalhar dos coqueiros, ouvimos um galo cantar muito longe. O

estranho e misterioso canto, isolado e único, naquela hora pouco avançada da noite, nos

fez silenciar de repente. Passada a surpresa, as nossas almas, já povoadas de coisas

fantásticas, se deixaram arrastar para o domínio da ilusão, da magia, e cada um de nós

contou uma história que, de certo modo, se prendia àquele canto de galo.

– Que canto esquisito! – disse um.

– Alguém morreu! Um canto como este eu já ouvi e foi um anúncio de morte,

disse outro.

– Anúncio de morte? Como se explica isto?

– É fácil de explicar, disse o segundo.

E começou a contar como, anunciada pelo canto de um galo, se deu uma morte

distante; daí lhe veio a ideia de que o canto de um galo, antes da meia-noite, era sinal de

morte.

E assim falou:

– Isto se deu numa noite em que visitei o aldeamento de São Francisco.

Tínhamos acabado de jantar boa feijoada em casa do morubixaba, o caboclo Caetano, e

ficamos como estamos agora, conversando; estávamos, como sabem, muito longe da

praia – quando se ouviu, também como agora, cantar o galo, antes da meia-noite.

“Aquilo nos confrangeu, aquele canto único e isolado, muito antes das horas em

que é comum o canto do galo: nos entristeceu como revelação de algum acontecimento

triste ou milagroso ou macabro.

“Na manhã seguinte soubemos, de fato, o que tinha acontecido: dois homens

passaram a noite anterior, completamente embriagados, por uma praia de areia

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movediça, aliás, por essa mesma duna de areia que é habitual se encontrar por toda essa

costa que nós todos conhecemos; praia como esta aqui temos, e está sempre a se mover

de um lugar para outro. Deitaram-se naquela areia e adormecerem curtindo a

carraspana. Ao amanhecer, dos dois foi encontrado apenas um, o outro tinha

desaparecido. A polícia prendeu o que restara e submeteu-o a interrogatório e torturas,

sem que pudesse chegar à conclusão de que ele tinha eliminado o companheiro.

Tampouco, não obstante as buscas, foi encontrado o seu cadáver ou qualquer indício de

ter sido assassinado. Mas, no dia seguinte, com a mudança da direção do vento, a duna

começou a desfazer o que tinha feito na véspera e começou a aparecer um cadáver – que

teria sido soterrado na noite anterior.

“A terra tinha enterrado, ela própria, o corpo vivo de um homem. O homem, o

bêbado que faltava, que tinha desaparecido e o próprio companheiro não soube

responder pelo seu destino. O soterramento feito pela duna deve ter começado pelos pés

e depois, aos poucos, prosseguido pela cabeça. Embriagado, sem forças para se libertar

da prisão da grande massa que passava sobre ele, o outro bêbado acabara sendo

asfixiado pela areia, sem que o amigo nem mesmo suspeitasse. O aparecimento do

corpo só foi notado por alguns pescadores que, por volta de onze horas da noite,

passaram no local. Foi exatamente a esta hora que o galo cantou...”

Alguém conjeturou:

– Este galo teria também visto o cadáver?

– Não sei – respondi –, trata-se de um mistério, sobretudo porque ele devia estar

nas proximidades do aldeamento, e este, como vocês sabem, está muito longe da praia.

Uma morte um pouco parecida com esta eu também assisti; uma história, pelo menos

tão misteriosa como esta, eu poderia contar – tão imprevista e quase tão inexplicável

como esta –, provocada pelo deslocamento de uma duna.

– Agora vamos lá, como se deu essa morte? – perguntaram todos.

– Para quem trabalha no campo – como nós todos que estamos aqui – o dia em

que aconteceu esse fato que vou descrever era um dia surpreendente. Todos nós

sabemos que durante dias, durante meses, as coisas se passam no campo sem nada de

novo: não vemos uma cobra, não encontramos um camaleão, nem mesmo um nambu ou

teju; mas, de repente, dentro das matas, dos canaviais, dos capinzais, surgem pequenas

cobras inofensivas, ou cascavéis e urutus, pelo meio das picadas e dos caminhos. Por

onde andávamos, jararacas apareciam deitadas dentro d’água. Foi num dia assim, muito

raro para quem trabalha no mato, um dia que gosto de chamar surpreendente, que se deu

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o trágico acontecimento: logo ao chegar às terras do engenho Curado, que fica um

pouco depois do velho engenho São Paulo, na época reduzido à bela casa-grande que lá

existia. No Curado, fazia eu, para a Comissão Geodésica do Recife, um levantamento

hipsométrico. Logo ao chegar às terras do engenho Curado, encontrei os pés de imbaúba

cobertos de camaleões; vários moradores do local os prendiam e levavam para casa,

com a intenção de comê-los. Vocês sabem que os camaleões se comem, e são de sabor

agradável. Além desse inesperado espetáculo nas imbaúbas, encontrei no mesmo dia

uma cobra coral de cauda rombuda, quer dizer, das mais venenosas; e, além disso,

deitada dentro de uma levada, uma jararaca com as suas malhas, pretas e brancas;

aproximei-me e olhei-a de perto; a cobra deu uma rabanada e teria me atingido com o

seu bote, se não estivesse meio tolhida pela água. E, para mostrar que aquele dia era dos

mais surpreendentes, achei no chão dois ninhos de nambu e um de jaó. Toda a vida do

campo e das matas tinha surgido de repente.

“Foi um dia, como acabo de descrever, verdadeiramente espetacular, e, com

tantas aparições, quase deixei de trabalhar. Depois que cobri poucas estações, chegou a

hora de regressar, e logo me fiz a caminho, a pé, dentro de um areal frouxo, o que

tornava a marcha difícil. Já tinha percorrido uma certa distância, quando,

imprevistamente, ouvi um grito agudo naquela planície arenosa e deserta; os caminhos

eram marcados no chão por alguns sulcos na areia e pequenas faixas de grama verde e

rala.

“Ouvi um grito agudo, doloroso. Que teria sido? – pensei comigo. Depois de

quase dez minutos de caminho e já bem perto da estação da estrada de ferro onde

deveria tomar o trem para o Recife, encontrei um homem deitado, quase sem voz e sem

fôlego. Sobre suas pernas desnudas, várias pequenas cobras; seis ou sete cobrinhas

jararacas – apenas saídas dos ovos. As pernas do homem estavam mordidas em vários

lugares e sangravam. Ele parecia quase morto. Tinha as veias tumefactas parecendo

outras pequenas cobras. Procurei, naquele deserto, alguém que pudesse ajudar com o

homem caído. Ajudar a levantá-lo e conduzi-lo até a estação, não foi possível. Apressei

então a minha marcha para a estação, onde comuniquei a ocorrência. De lá, pelo

telefone, foi a mesma comunicada à polícia, que o recolheu já morto.

“Desta vez, não houve canto de galo anunciando a morte, mas houve o próprio

grito do homem que morrera.

“Soube, no dia seguinte, que o morto estava bêbado, e penetrara

inconscientemente, já madrugada, naquela planície; caíra e adormecera ali sobre a

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grama rala. Não sentira a presença das pequenas cobras que estariam lá, quando ele

adormeceu – ou chegaram ainda quando dormia. Quando veio a si, já estava todo

mordido e envenenado. Apavorado, dera o grito angustiado que eu ouvi.”

– É alarmante e imprevisto esse grito, assim dentro de uma charneca deserta –

disse Holanda –, mas não há nenhuma relação entre essa morte e a morte por

afogamento numa duna solta.

– Essa história parece mais – disse Alencar – com a que ouvi quando aqui estive

pela primeira vez; mas não se trata propriamente de um grito, e, sim, de um rugido. A

história me foi contada por um viajante que por aqui passou naquele tempo: contou que

vinha de Mamanguape, pelo caminho deserto que se segue dessa cidade à Baía da

Traição; vinha montado num pequeno burro, bom andador dos caminhos; tudo ia muito

bem, muito certo, tudo na paz do Senhor, como se diz, quando cheguei, disse ele, na

altura daquela passagem por dentro da mata, que encobre um curso d’água volumoso, e

que somente caçadores sabem onde nasce e em que direção ele corre. Senti que o burro

andava meio trôpego; aquele lugar era mais ou menos suspeito para todos que viajam

sozinhos. Eu e meu burro passávamos por esse local quando ouvimos um rugido. Era

um rugido do alto, sem explicação nenhuma, porque não havia animal, que eu conheça,

capaz de emitir um som tão agudo e prolongado. De onde vinha aquele rugido, aquele

grito terrível?

“O viajante disse exatamente esta palavra: terrível; porque, como ele

acrescentou, o burro parou de repente, começou todo a tremer e a suar em bica. De que

natureza era o rugido que atingia um animal inconsciente como um burro, a ponto de ele

sentir no corpo uma espécie de comunicação, talvez de outro mundo, talvez ligada a um

poder mágico que o atingia? Não é possível saber-se. Fiquei muito tempo perplexo

esperando que outro rugido igual viesse, através, ou entre os ramos daquela mata

misteriosa; porém, nada mais se ouviu; o rugido foi único e retumbante, ganhando todo

o espaço deserto daquela região que, como sabemos, raramente é visitada por viajantes.

Naquele silêncio dominante, naquele silêncio que fazia parte do universo e da natureza

que ali estava implantada como que por uma ordem divina, que envolvia todos os seres

e todas as coisas, um rugido como aquele, tão penetrante e tão avassalador, só poderia

vir, magicamente, do próprio silêncio. Era o rumor, a voz do próprio silêncio, ou,

melhor dizendo, era a explosão do silêncio. Ninguém se lembrou que o silêncio pode ser

uma energia ainda desconhecida e que sua concentração pode ou se abafar inteiramente

ou explodir; ou ainda, o rugido talvez fosse a ilusão de uma voz motivada pela presença

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do silêncio, voz de um ser qualquer daquela natureza misteriosa – de uma árvore, de

uma folha, de uma cotia, de um peixe. Ou mesmo, quem sabe, fora a própria

materialização do silêncio. Se não a explosão, a implosão do silêncio.”

Essas últimas palavras, divagantes, desencontradas, Alencar atribuía à tendência

do homem que contou a história para a poesia, para o devaneio. O certo é que, três dias

depois, explicou-se: apareceu, ainda que de um modo duvidoso, a origem do rugido: na

praia de Coqueirinhos, viu-se um animal marinho, que não era baleia, nem tubarão, nem

espadarte, mas um ser completamente desconhecido, um ser estranho, talvez nunca visto

– ou raramente visto – no mar. Forma de um peixe enorme, como eram aqueles

monstros marinhos que frequentavam a fauna marítima da época antediluviana.

Apareceu em Coqueirinhos, na praia, ainda agonizante, estendido na areia. O animal

estava ferido, tinha se empenhado em alguma luta nas profundidades do oceano onde

vivia e... veio morrer na praia.

A esse animal, com o tempo, se associou o rugido de que falou o viajante, pois

esse uivo não foi um sonho, nem um devaneio de viajante. Foi realmente ouvido por

diversas pessoas; houve mesmo quem se lembrasse de outros casos semelhantes –

certamente pessoas já idosas, ligadas, desde o nascimento, àquelas paragens –, casos de

aparecimento de monstros marinhos nunca vistos, desde que o mar, na sua imensidão,

ainda tinha mistérios insondáveis.

Depois dessa última, ninguém mais falou, e o que tenha motivado o canto do

galo antes da meia-noite – canto que fez surgir essas três histórias e anunciou realmente

a morte de alguém – é possível que se venha a saber algum dia.

De novo em Cabedelo

Na véspera tinha subido o morro de São Miguel. Região elevada onde, em

tempos atrás, tinha existido, também, um aldeamento de caboclos, e, naquele momento,

estava localizado o cemitério do lugar. Tinha subido o morro de São Miguel para

marcar o traçado do seu divisor de águas, que os índios de São Francisco se opunham

que fosse o limite de suas terras.

Fui, e me acompanhou nessa empresa o capitão Neiva, chefe dos serviços em

que estávamos empenhados; caminhava na frente, armado de mosquetão e, logo após,

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vinte homens armados de rifles, que foram contratados, nas vizinhanças, justamente

para esse mister.

Esse gênero de trabalho, de aspecto tão belicoso, não me agradou; aliás, a nossa

condição, a minha e a de Holanda, foi-se complicando muito desde a nossa chegada;

assim, resolvemos deixar os trabalhos para os quais estávamos contratados; falamos aos

chefes, que sorriram complacentes e acederam em nos dispensar e, porque naquela hora

não podiam nos pagar dois meses atrasados, fizeram com que assinássemos

documentos, nos quais se comprometiam a nos pagar, dentro de um prazo determinado,

a quantia devida.

Ficamos, portanto, livres do contrato que tínhamos assinado no Recife, de onde

viemos; resolvemos portanto voltar, depois de quatro meses de permanência na Baía da

Traição; da Traição porque os caboclos de lá ficaram do lado dos holandeses contra os

portugueses; contratamos com dois pescadores da Baía o nosso transporte, na sua

lancha, até o porto de Cabedelo, onde tomaríamos o trem para a capital pernambucana.

Às três horas da madrugada, com um céu ainda apagado e noturno, selado ainda

com a sombra do mundo, nos aproximamos, eu e Holanda, da lancha dos pescadores e

que era um tipo de barco fechado com o qual se faziam as pescas no mar alto; a lancha

foi lançada ao mar e, depois, por meio de uma jangada, fomos nela embarcados e

partimos. Seguimos com o intuito de, o mais breve possível, alcançarmos Cabedelo.

Tínhamos vindo deste porto, fazendo um trajeto de apenas três horas de viagem, em

maré cheia, impelidos por um bom vento de feição.

Agora, de volta, viajamos com vento contrário, o vento sulão, que soprava do

sul, do fundo escuro da noite, de um longe sul de um horizonte que se perdia entre

nuvens espessas; um vento que vinha, lambendo a superfície das águas, erguendo as

ondas da maré baixa, impulsionando as nuvens escuras e fragmentadas.

O vento era um vento contínuo, batido, meticuloso; jogava, oscilava, dançava

sobre as águas; se erguia, aprumava-se, subia; e de novo, do sul, nos trazia uma

vibração de asas diluídas, desfeitas, decompostas, um ritmo pesado, seguro, constante;

com ritmos, ora permanentemente do sul, ora ligeiramente variando para leste, para o

horizonte do mar; mas sempre contra, contra a nossa vela aberta naquela noite

incompleta, naquela noite que, dentro em pouco, iria concluir-se.

Para avançarmos na direção de Cabedelo, precisávamos bordejar, éramos

forçados a bordejar, o que iria prolongar a viagem em muitas horas. E os tropeços que

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iria dar esse bordejo em ziguezague de linhas retas, de linhas líquidas e vacilantes? A

que horas avistaríamos Cabedelo? Bordejamos.

O barco navegava penso de um lado.

Bordejamos, assim, ao longo de toda a costa da Paraíba, desde a Baía da Traição

até o porto de Cabedelo: penetrávamos com a vela inclinada, até um ponto muito

avançado, no mar, como procurando contornar o vento, ou descobrir dentro dele uma

passagem; depois cambando e molhando a vela, voltamos até bem perto da praia, num

ziguezague lento e monótono. Depois, puxando de novo as escotas da vela latina da

lancha e cambando-a, dirigimos de novo o barco para o longínquo horizonte marítimo.

Era um bordo difícil, de oscilações muito longas, um movimento como de negaças

diante do sulão, que continuava a soprar sem cessar. A assobiar e a zumbir num assobio

agudo e melancólico, um uivo como se viesse de uma matilha de lobos perdidos e

famintos naquele mar generoso. Fomos assim bordejando, procurando vencer o forte

vento que não nos dava trégua, que continuamente soprava naquele fim de noite,

naquela vindoura madrugada; o barco ia adernado de um lado; por isso, ficávamos

sentados do outro lado como contrapeso; junto a nós estava o tauaçu – a âncora da

lancha – para manter melhor o equilíbrio, mas o vento forte continuava a adernar o

barco.

Era noite ainda: quatro horas da manhã; estava longe o amanhecer; distraía-me

em observar de longe as praias da costa norte da Paraíba; eu, que as vi de perto, agora

olhava-as de longe, com seus coqueirais, os seus pontos de luz vagos e indecisos que

surgiam dentre os coqueiros, quando o barco se aproximava da terra, luzes que

esmoreciam naquele fim de noite, naquele fim de sono mal compensado. Lá estavam,

Salina, Boqueirinhos, Tambaú?

Quando a lancha se apartava do litoral e quase nada se via das praias, para me

distrair, ficava a observar um dos pescadores, manobrando a linha de corso; a técnica

era a seguinte: deixar fugir a linha, que se desenrolava do carretel para dentro d’água,

atingindo grande profundidade no mar; nunca tinha visto uma pesca deste gênero; o

pescador me explicou que era com a linha de corso que se pescavam os peixes que

viviam a grandes profundidades, como as cavalas, os galos-do-alto etc.

Fiquei, assim, por algum tempo acompanhando as manobras de bordo, e o

empenho do pescador em aproveitar a viagem para pescar.

Com o passar das horas comecei a me sentir mal, um enjoo se apossava de mim,

à medida que o céu clareava no nascente e, agora, me parecia que o bordejar da lancha

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procurava, de quando em vez, ir ao encontro da aurora. Já viajávamos há três horas

desde a partida e ainda estávamos muito longe de Cabedelo.

Com mais uma hora comecei a vomitar, numa grande agonia; fizeram-me sentar

no pequeno porão que o barco possuía na popa, onde os pescadores guardavam os seus

utensílios de pesca; o meu vômito saía amarelo, era um vômito que, estando em jejum,

quase somente havia bílis; sentia, também, muito fortemente, doer-me a cabeça.

Com aquele bordejo contínuo comecei a enjoar de maneira intensa, mas o bordo

continuava. A lancha velejava sempre ao longo da muralha do vento, à procura de uma

fresta, de uma fenda, na ventania desesperada, de uma abertura para poder passar e, do

outro lado, encontrar outro vento mais amigo, suave e leal.

Por fim o dia raiou com todo o seu fulgor. Continuava-se a cambar de vez em

quando, a vela da lancha procurando sempre a direção de Cabedelo, aonde somente

chegaríamos por volta do meio-dia, e ainda eram oito horas da manhã. Sentia-me cada

vez mais amargurado, doía-me a cabeça, as pernas encolhidas, no porão, também me

doíam, e o enjoo não diminuía; os vômitos prosseguiam. Que diferença com a viagem

de Cabedelo à Baía da Traição feita há quatro meses atrás!

Na viagem anterior partimos à tarde com mar grosso e maré alta, grandes ondas

subindo e descendo na proa do barco em que íamos; às vezes parecia que a pequena

lancha iria naufragar por uma grande onda clara, iluminada pela luz da tarde do

Nordeste, mas a onda se desfazia, e ia erguendo a embarcação até a sua crista mais alta;

dava a impressão de um buraco onde não se caía, pelo contrário, o fundo do abismo se

erguia e ajudava o barco a galgar a colina das ondas.

Na viagem de regresso as coisas mudaram totalmente; embarcamos às três da

manhã em plena escuridão, não víamos, diante de nós, ondas iluminadas, mas ouvíamos

um grosso rumor de água espessa... e o assobio do vento sulão.

Comecei a sentir frio, o conhecido frio da maleita que voltava, agora em

circunstância muito mais penosa para mim, encolhido naquele momento no fundo do

barco e sofrendo acessos de vômito a todo o momento.

Comecei a sentir frio, frio que já duas vezes me tinha acometido e que me

prendeu no fundo de uma rede, na casa que acabávamos de deixar na Baía da Traição –

Baía formosa – com sua esplêndida praia, e tão difícil de nela se morar.

Era mais um ataque de sezões que me vinha agora, em plena viagem, no mar.

Isto sucedeu, creio, às dez ou às onze horas.

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Esses insultos de malária já me tinham acometido por duas vezes, sempre nas

mesmas circunstâncias: a uma hora da tarde chegava um frio intenso que me tolhia e

fazia recolher à rede, depois, mais tarde, vinha a febre alta, depois o suor. Amanhecia

bom, com muita fome.

Agora, ao léu desse barco, divagando já há sete horas numa luta incessante, num

tempo de vento louco, para alcançar Cabedelo, a minha situação em relação à doença,

que já conhecia, era muito outra; estava ali, no barco, em condições deploráveis;

agachado, praticamente agachado no pequeno porão da popa, com as pernas encolhidas

e ainda, além disso, enjoando e vomitando por quase toda a viagem. Chegou-me o frio,

antes de uma hora da tarde, e nessa situação precária.

Consegui, de qualquer modo, vencer as dificuldades e ainda com resistência de

corpo e de espírito chegar a Cabedelo. Era meio-dia. Precisamente, viajamos durante

nove horas. Ao aportarmos em Cabedelo, fui retirado do porão da lancha, carregado e

conduzido até a praia, de onde caminhei até o hotel, me recolhi a um quarto e me deitei

numa rede. Ali senti, sucessivamente, passar o frio, começar a febre, terminar a noite.

Amanheci bom, com muita fome. No céu brilhava um azul frio.

Nesse hotel em que nos hospedamos, eu e Holanda, passamos a noite e logo na

manhã seguinte nos preparamos para tomar o trem que nos levaria à capital da Paraíba,

onde faríamos baldeação para um outro que, enfim, nos conduziria ao Recife.

Assim, depois de tomarmos café, saímos apressados para apanhar o trem, já na

hora da partida.

Viajamos então para a capital da Paraíba, que se chamava, por aquele então, de

Paraíba. Ali fizemos baldeação para o trem do Recife.

O trem partiu cedo, às oito horas da manhã, e devia chegar ao Recife às oito

horas da noite; era, assim, uma viagem de doze horas, portanto mais três do que

gastamos na travessia marítima. Íamos, agora, com um pouco mais de conforto. Senti-

me bem, a princípio, no vagão onde ia; não era ainda tempo do frio da maleita me

atingir novamente; almocei com apetite no restaurante do comboio e voltei a me sentar

no mesmo lugar do vagão de onde tinha saído.

Às doze horas senti de novo, encolhi-me todo no canto do banco e fiquei ali a

sofrer aquele frio, que não sabia mesmo de onde vinha; que vinha, talvez, ainda, da Baía

da Traição, como uma despedida; agora não era mais no porão do barco que eu sofria,

não era tão-pouco na rede da Baía; era num banco de trem que ia percorrer ainda muitas

léguas para chegarmos à capital de Pernambuco.

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Pernambuco era o destino, a cura, a salvação!

Encolhia-me. Encolhia-me cada vez mais no banco. Passadas algumas horas o

frio foi abrandando, se dissolvendo dentro de mim mesmo, se convertendo no calor da

febre que sentia já no rosto ardente.

Passei a mão no rosto, senti, acompanhei o calor da febre nele se propagando;

tinha vontade de me deitar, mas, ali, no trem, só poderia estar sentado; sofria a vontade

de dormir sem poder, como sucedera nos outros acessos que tive, e estava recolhido

numa rede; no banco do trem era impossível dormir, era impossível descansar o corpo

cansado da febre, de febre violenta e invencível.

Por fim, ao entardecer, quando o crepúsculo pairava sobre a serra da Borborema,

a febre foi se extinguindo e eu, sentindo o alívio, tive vontade de comer.

Holanda trouxe-me uns sanduíches do restaurante, comi-os, e esperei tranquilo

que o trem chegasse à estação do Brum; desembarcamos e partimos de táxi para as

nossas casas.

Em casa, dormi toda a noite em sossego; porém, no dia seguinte, me veio

inesperadamente novo ataque de frio e febre; agora não era mais na rede da Baía da

Traição, não era também no porão do barco – da lancha a vela – em que viajei até

Cabedelo, nem tampouco no banco do trem Paraíba-Recife; agora era na minha cama,

que não usava há mais de quatro meses; foi o último acesso que tive de sezões em

minha vida; depois disso nunca mais tive maleita.

Tudo que era da Baía formosa deixei, deixei os barcos a vela, o vento sulão, a

aldeia de Marcação, as belas praias da Paraíba; somente as sezões me acompanharam,

amorosamente me acompanharam, até Pernambuco, até o Recife, até a rua da Estância,

onde eu morava.

Minha tia Dondon

Junho chegara com muita chuva! As águas do céu desciam incessantes por dias

inteiros, cobrindo de uma lama gorda e cinzenta todo o curral, todo o pátio interno da

casa onde morávamos; uma lama que ondulava, refluía até a beira da calçada que

contornava a casa e era o único espaço por onde se podia passar. No entanto, para se

chegar ao estábulo onde as vacas leiteiras iam receber as rações da tarde, era possível

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seguir a pé enxuto sobre pedras de um único caminho, ali colocadas para esse fim. Do

contrário, só se poderia chegar enfrentando lama até o meio da perna.

Agarrado às grades de ferro da cozinha, eu olhava para a chuva que caía e para

os empregados ocupados em preparar as rações das vacas naquela tarde, correndo, sob a

chuva, atrás do gado, com os pés atolados na lama. Vinha-me também a vontade de

correr descalço naquele massapê lamacento, vontade de correr de pé no chão nas poças

d’água sobre o capim rasteiro dos cercados, na alegria dos meus dez anos de idade. Às

vezes desviava a vista dessas cenas mais próximas, e olhava para mais longe, para além

das mangueiras de Seu João e Sinhá Ricarda, para além do Zumbi regurgitando de água.

Lá estava o Manuel Fogueteiro socando num pilão, debaixo de um telhado de zinco, o

carvão, o enxofre e o salitre para fazer a pólvora com que fabricava os foguetes de São

João.

Junho chegara com muita chuva! O milharal que plantei por São José pendoava

e me daria, por Santo Antônio, uma boa mão de milho verde. Eu pensava nas canjicas

que com ela haveria de fazer; além disso, considerava que, com tanta chuva, Sr. Antônio

não cortara ainda a lenha para as fogueiras de São João e São Pedro. No entanto, já lhe

tinha indicado que nas mangueiras do caminho e nas da frente havia galhos secos que

poderiam ser usados nas fogueiras que iam ser queimadas nas vésperas de São João e

São Pedro. Era preciso cortá-los e a eles, juntando-se mais alguns gravetos, fazer duas

grandes fogueiras para, em torno delas, podermos brincar de roda; ou assarmos na brasa

espigas de milho verde; ou tirarmos tições para acender caixas de traques,

mosquitinhos, busca-pés, foguetes do ar. Podíamos também usar o fogo de lenha para

acender pistolas ou queimar estrelinhas; era também possível atirar com bacamartes. E

até fazíamos o milagre de andar sobre o fogo, com essas brasas amortecidas na cinza.

Aquele mês de junho estava muito chovido. Às vezes, à noite, rajadas violentas

de vento açoitavam os galhos molhados do oitizeiro grande, fazendo um surdo, um

profundo rumor; os galhos do oitizeiro batiam nas janelas do sobrado, na última parte da

casa, lugar onde dormiam as minhas irmãs e as empregadas; isto despertava grande

pânico entre as mulheres, que temiam, supunham que a árvore pudesse pôr a casa

abaixo.

Nesse mês de junho, as noites de chuva eram às vezes tempestuosas; pelo

espaço, estalava o estrondo dos trovões e logo a luz dos relâmpagos cortava o céu;

ficávamos com medo da queda de um raio, principalmente a minha tia Dondon. Era

muito velhinha a minha tia-avó, a quem chamávamos Dondon; era uma das irmãs do

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meu avô paterno e, como ele, preferiu morar com meu pai, não com as irmãs, com as

quais não se dava bem. Morava num quarto da grande sala de jantar, quarto que era uma

alcova, isto é, não tinha janela; e conservava também, sempre fechada, a única porta de

entrada. Os seus cabelos estavam embranquecidos – teriam sido louros –,

embranquecidos pela traição do tempo que passa; mas, por outro lado, conservava ainda

os olhos fielmente azuis.

Nos poucos momentos de estiagem, podiam-se ver, nos casebres e mocambos

distantes, pequenas luzes na escuridão da noite. Era o velório de um bexiguento. A peste

de bexigas assolava, naquela época, quase todos os subúrbios do Recife. De repente,

via-se sair, de um mocambo, uma rede, com um cadáver transportado por dois homens;

outros o acompanhavam, levando nas mãos velas acesas, envolvidas em improvisadas

lanternas de papel; levavam o morto, que conservavam escondido até a noite, para o

cemitério do Barro, um cemitério que eu não sabia bem onde ficava.

O que, no entanto, mais me impressionava eram as procissões que a gente do

povo fazia, em louvor de São Sebastião, padroeiro e protetor dos que estavam

ameaçados pela peste das bexigas. Das janelas da sala da frente, via-se passar a

procissão: luzes desfilavam na noite negra, na noite espessa. Pela estrada nova da

Caxangá, ouviam-se vozes cantando, pedindo ao santo que cessasse a peste, implorando

perdão pelos pecados. Cantos cheios de arrependimento e de gratidão pela intervenção

do padroeiro, na sorte deles. A imagem do santo também se avistava, iluminada por

uma luz que se esbatia na sombra profunda da noite densa, molhada por uma chuva fina.

Tudo isso me confrangia, tudo me dava, ainda na infância, uma sensação dolorosa. A

procissão passava com o seu cortejo de fiéis, com a sua imagem iluminada numa litania

agônica e sofrida, desesperada e ao mesmo tempo cheia da esperança de que o santo

acabaria por ouvi-los e atendê-los. Dentro de uma chuva fina e de uma noite densa, a

procissão de São Sebastião passava na estrada.

Principalmente a minha tia Dondon temia as tempestades quando elas apareciam

no horizonte, sempre do lado do nascente, sobre a cajazeira grande. Ela saía nervosa do

quarto, com um rosário na mão e uma campainha, dirigia-se para a janela que ficava na

sala, bem à frente do seu quarto e, por detrás das reixas, ficava rezando o terço e

tocando, de vez em quando, a campainha; não sei onde aprendeu esse feitiço, esse

esconjuro para afastar tempestades; o fato é que sua magia parecia afastar da nossa casa

o perigo da queda de um raio. Também era, nesses períodos de tormentas, o único

motivo que a fazia sair do seu quarto, durante a noite; durante o dia, saía aos domingos

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para ouvir missa, apenas nos dias em que não chovia. Além disso, andava pelas

dependências da casa, nos momentos em que ninguém se encontrava, apanhava o que

achava no chão, abandonado; aliás, esperava que essas coisas desprezadas não fossem

mais de uso; não pudessem, de qualquer maneira, ser procuradas: eram carretéis vazios

de linha, que ficavam largados no chão, pelos cantos, sem préstimo; carretéis de vários

tamanhos, cuja linha tinha sido usada na sala de costura, e rolavam pelo chão; recolhia-

os, guardava-os, sobretudo os de madeira, pela sua forma ainda firme e segura, bem-

feitos, bem contornados, podendo, no seu entender, ser utilizados. Eram caixas de

fósforo de vários tamanhos, também deixadas sem uso pelos cantos da casa; caixas de

fósforos ou de caraduras, que tinham servido para guardar pequenos foguetes; frascos

de perfumes vazios e outros tipos de invólucros, já também em desuso. Tia Dondon

tinha preferência pelos brinquedos; os brinquedos que nós, meninos, recebíamos nos

dias de festa; além das bonecas das meninas, pequenos trens, carrocinhas, pequenos

bois, cavalinhos de madeira que, logo depois de quebrados, são deixados como lixo,

sem préstimo. Pelo Natal, pelo Carnaval, ou pelas festas do mês de junho, era grande a

colheita que ela fazia. Pelo Natal e Ano-Bom, ia recolhendo os velhos calendários

substituídos pelos do novo ano, as flores que tinham figurado durante o ano, agora

substituídas; pelo Carnaval, eram as bisnagas, eram sacos de papel picado, ainda cheios

de confetes; eram as bombas de cheiro não arremessadas durante os folguedos dos três

dias de Carnaval. Pelas festas do mês de junho, guardava as caixas vazias de traques, as

tabocas vazias atiradas, as tabocas dos busca-pés, dos foguetes do ar; bisnagas com

cheiro e coloridas (destas, aliás, sempre envolvidas em papéis coloridos, deve ter feito

uma grande coleção); mês de agosto, mês de muito vento; mês em que se usava, naquele

nosso subúrbio, empinar papagaio; também os velhos gamelos, os buzamar, os jarros, as

pipas, os livros eram também guardados por minha tia.

Havia na sua atitude, nesse seu movimento, um gesto de compaixão, de piedade

pelas coisas mortas e abandonadas; recolhia-as assim, carinhosamente, como se aqueles

objetos tivessem também uma alma, uma alma dispersa, erradia e que mais tarde viria

novamente a eles se incorporar: de novo os brinquedos se refariam, suas cores voltariam

ao brilho primitivo, as bisnagas vazias se encheriam outra vez de água perfumada para

serem usadas em futuros carnavais; as tabocas, por sua vez, também ficariam cheias de

pólvora e depois voltariam a fazer curvas no ar, explodindo em outros vindouros

festejos de São João; em outros meses de agosto, os gamelos, as pipas, os lírios

voariam; e assim sucessivamente, como se existisse um céu eterno para as almas das

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coisas inanimadas. Já muito velhinha, minha tia só pensava no céu para ela; desejava

também um céu para todos; no seu conceito, todos tinham direito ao paraíso, que era

prefigurado como uma reprodução perpétua.

Com tudo que já tinha recolhido, encheu e guardava no seu quarto duas ou três

malas ou baús; sobre isso não se podia saber muito bem, pois em seu quarto só entrava a

empregada para fazer a limpeza, e esta apenas suspeitava do que havia no interior de

vários baús lá conservados; perguntando-lhe para que reunia tanta coisa quebrada e

imprestável, nesses momentos minha tia dava vazão a toda a sua fantasia, explicando

que tudo aquilo que guardava era para fazer novos brinquedos para os meninos; quando

menos esperássemos, veríamos correndo no chão vários carros rodando sobre os

carretéis; as bonecas de louça, as de pano, também serviriam, renovadas, e até mais

bonitas do que foram.

Vivendo assim, por vários anos sucessivos, dormindo na sua cama de solteira,

num quarto que era uma alcova, minha tia possuía muitos santos, a eles fazia promessas

e pedia milagres. Seu quarto estava sempre fechado, e nele ninguém podia entrar. Sua

vida naquela alcova era quase segredo, era também um sonho; devaneio que ela muito

raramente revelava quando descrevia o que iria suceder, isto é, alguma coisa de mágico

e de deslumbrante.

Naquele dia fiquei contemplando os trabalhos dos empregados debaixo da

chuva, os pés atolados no lamaceiro: contemplava-os, com as mãos presas às grades da

cozinha. Começava lentamente a escurecer e a chuva parou um pouco. Com o anoitecer

já o fogueteiro Manuel abandonara a sua mão de pilão e se tinha recolhido; decerto

estaria trabalhando dentro de casa, nos seus foguetes.

Deixei as grades da cozinha, fui para a sala de jantar e me sentei à mesa, onde

toda a família já estava reunida numa grande mesa para a refeição da tarde; sentava-me

num dos lugares mais afastados, pois era um dos menores da família e a colocação na

mesa era segundo o nascimento.

Logo após o jantar saí, numa estiada da chuva, e me dirigi para o jardim, que era

na frente da casa; de lá se via quem passava pela estrada nova.

Naquela noite fora dormir muito tarde, pois fiquei na sala de costuras até quase

dez horas a ouvir histórias macabras, contadas pela velha Gertrudes, histórias que

falavam de um castelo mal-assombrado onde as pessoas que o visitavam não mais

voltavam, e ninguém se animava a procurá-las; no entanto Gertrudes contava que

aparecera, vindo de longas terras, um homem que não acreditou nos fantasmas

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anunciados pelos habitantes da localidade; diziam que ocupavam o castelo. Corajoso,

decidido, o forasteiro animou-se em lá passar a noite, e afirmou que na manhã seguinte

estaria certo de voltar e contar o que com ele sucedera. Partiu já à noitinha para o morro

onde estava situado o castelo, penetrou no terraço, entrou por uma das portas

escancaradas e, na escuridão, foi tateando até que chegou a uma das dependências, onde

encontrou um leito qualquer onde pôde repousar; nele deitou-se para dormir; até então

não o surpreendeu nada que pudesse lembrar fantasmas, deitou-se e logo adormeceu

num sono tranquilo.

De repente, em pleno sono, o caminhante ouviu um agoniado grito; surpreso

abriu os olhos e viu que do teto pendia uma perna, apenas uma perna pendurada falava,

dizia:

– Eu caio? Eu caio?

O hóspede, valente e temerário, respondeu resoluto:

– Ora, caia se quiser.

Depois apareceu no mesmo lugar uma outra perna pendurada.

– Eu caio? Eu caio?

O homem repetiu:

– Já disse que pode cair!

Assim foram caindo no chão todas as partes de um corpo humano. E a narração

continuou dentro de uma atmosfera da mais lúgubre encenação. Não sei ao certo como a

história terminou; mas todo aquele ambiente, noturno e deserto, visitado já tarde da

noite por fragmentos de um corpo que do telhado caíam no chão, se reuniam e se

recompunham, na forma de um demônio; toda aquela história me trouxe uma

perturbação, um pavor imenso.

Lembro que o conto prosseguia com a queda de outros corpos que não sei se

eram demônios ou se eram homens já mortos há muito tempo naquele castelo agora

abandonado; caíam sempre do telhado aos pés da cama onde estava deitado o forasteiro,

e sempre perguntando, com uma repetição macabra, se podiam cair; lembro que caíam

diversos fantasmas. De repente, na escuridão do quarto, um grupo de rostos apareceram

com os olhos alucinados, e as bocas abertas, como a querer devorar o visitante, que,

com o fogo que luzia naqueles rostos, notava, admirado, que repousava num leito

majestoso e num quarto também muito bonito, contrastando com o castelo em ruínas

que ele pressentiu quando entrou.

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Como disse, não sei ao certo como a história terminou, não me lembro se o

forasteiro chegou a voltar ao povoado ou se foi devorado pelos fantasmas; sei apenas

que o que foi narrado me deixou num estado de nervos insuportável; antes do fim da

história já me tinha afastado, procurando o meu quarto para dormir; comigo mesmo

pensava que não iria dormir naquela noite, e isso, para mim, era uma perturbação que

trazia efeitos deploráveis.

Deitado na cama estava eu procurando conciliar o sono, procurando esquecer

tudo que tinha ouvido da história que Sinhá Gertrudes tinha contado, mas em vão;

chegava, de vez em quando, a voz do fantasma:

– Eu caio? Eu caio?

E ao mesmo tempo aparecia no telhado do meu quarto uma perna pendurada,

uma perna sem corpo, oscilando, sangrenta e mutilada; fechava os olhos, procurava

esquecer, começava a rezar uma ave-maria, mas era inútil, a obsessão voltava; às vezes

tinha a impressão de que já perto do meu leito os fragmentos do corpo mutilado estavam

reunidos e prontos para me enforcar; às vezes tinha a impressão de que cochilara e

aquilo era apenas um sonho, me acalmava um pouco, me tranquilizava, era possível que

viesse a esquecer a história. Procurava pensar em outras coisas que tinham acontecido

naquele dia; a chuva caindo no curral, os empregados correndo atrás das vacas e dos

bezerros, com os pés atolados na lama, as calças regaçadas; a alegria que teria quando

por Santo Antônio colhesse milho do meu milharal ou comprasse a Manuel Fogueteiro

alguns maços de mosquitinhos. Esses pensamentos, porém, se perdiam e a voz do

fantasma voltava aterradora:

– Eu caio? Eu caio?

E a visão da perna mutilada aparecia.

Por fim, depois de muito esforço, veio-me a impressão de que tinha perdido a

razão, ou melhor, a faculdade de pensar em coisas boas e ruins cessada, dormia... Estava

adormecido.

Dormia? Não. Estava desperto e tudo o que havia sucedido foi um terrível

pesadelo; levantei-me da cama para procurar debaixo dela o meu carneiro; era com ele

que corria montado no prado de corridas de carneiros que mantínhamos; não o

encontrei, pensei que estivesse no corredor e saí pela porta do quarto para ver se o

achava; fui caminhando vagarosamente pelo corredor, olhando para os lados, para as

paredes, ainda pensando no meu carneiro. De repente, olhando para diante, isto é,

olhando para o fim do corredor que dava para a sala de jantar, vi uma luz, no local onde

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devia, àquelas horas, apenas existir escuridão; avancei resoluto, notei que a luz vinha da

porta do quarto da minha tia Dondon, achei aquilo inesperado; continuei a caminhar na

direção da sala de jantar, onde penetrei e, me esgueirando, me coloquei por trás de um

guarda-louça, ao pé da mesa grande que ficava bem em frente do quarto da minha tia;

de lá comecei a olhar para dentro daquele lugar inesperadamente iluminado.

Com a maior curiosidade, escondido por trás do aparador, olhei para dentro do

quarto e vi sentada, numa cadeira, uma jovem loura e de olhos azuis; tinha nos lábios

um sorriso indeciso; balançava-se alegre na parede do fundo, atrás de uma janela aberta

ilusoriamente; via-se, no céu distante, a lua em quarto minguante.

A jovem loura era minha tia como teria sido na mocidade; o que, porém, mais

me surpreendia era a janela, naquele quarto que era uma alcova; e o quarto minguante?

Que significava tudo isso? Me aconcheguei cada vez mais por trás do armário e,

embevecido, surpreso, continuei a observar minha tia, agora rejuvenescida, se

balançando na cadeira.

Tirei, por fim, a vista, e olhei para o que estava em torno da cadeira; as malas e

os baús abertos. Tinham acabado de se abrir e começavam a descer deles vários

brinquedos perfeitamente trabalhados; outros, as bonecas de pano e de louça, em estado

perfeito, já tinham se colocado sobre a cômoda do outro lado.

Grandes brinquedos armados sobre carretéis corriam pelo chão, os pequenos

trens, os pequenos carros também, sem que ninguém neles tocasse, moviam-se

livremente em todos os sentidos. E a minha tia começou a rir com alegria, mostrando

não mais a dentadura de velha, mas belos dentes brancos.

De dentro dos baús tinham também saído as bisnagas, as tabocas de foguetes, os

papagaios de papel, tudo no mais perfeito estado de conservação, ali prontos para serem

novamente usados. As tabocas e as bisnagas estavam agora cheias respectivamente de

pólvora e de perfume, como eram no tempo em que foram usadas. E os papagaios, os

gamelos, os baldes e bujarronas estavam também com armação de frechas novas,

também prontos para serem empinados. Estavam ali todos, sobre a cômoda, com os

respectivos cabinhos.

Fiquei deslumbrado.

Longe, através da janela esquisita que apareceu na parede do fundo, também o

quarto minguante da lua parece que contemplava aquele espetáculo.

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Tia Dondon sorria. Estava no auge da sua satisfação, agora rodeada dos seus

brinquedos. Na manhã seguinte iríamos nós, meninos, nos surpreender com eles, e

assim provar que tinha cumprido sua promessa.

Estava por trás do armário, ainda espreitando, quando, de repente, ouvi como

que o som de um rouquido, um ruído agudo e arquejante, ruído surdo e ofegante. Tive

um aceno de espanto e de medo. Fechei os olhos, senti em mim qualquer coisa de

inesperado. Despertei e, com surpresa, me encontrei escondido por trás do aparador.

Olhei para a porta do quarto de minha tia; estava fechada como sempre.

Vi que estava fechado através de uma pequena claridade que era mantida toda a

noite no quarto dos santos, e que vinha de uma luz de lamparina.

Tive que voltar para o meu quarto, percorri tateando o corredor até a porta. Na

minha cama me deitei e esperei, desperto e espantado, até amanhecer. Tinha sofrido um

acesso de sonambulismo em consequência da perturbação sofrida com a história de

trancoso contada pela velha Gertrudes. Acesso que não era em mim frequente, apesar de

sofrer bastante dos nervos, que, por qualquer coisa, me faziam passar noites em claro.

Depois da chuva da véspera, a manhã surgira muito clara e serena, parecendo

não chover naquele novo dia. Saí para o pátio onde estava o grande oitizeiro. Passei

tranquilamente, todo o dia, procurando avisar a Seu Antônio que ele, com aquele dia,

podia ir cortar a lenha para fazer a fogueira. Não o encontrei. Agora, com o sol, ele

estava empenhado com outros serviços mais prementes, estava empenhado em mover a

bomba para encher as caixas d’água que alimentavam o encanamento do banheiro e da

lavagem de roupa.

Depois do almoço, porém, às duas horas da tarde, começou a chover uma chuva

fina; até essa hora fiquei no meu quarto estudando as minhas lições do dia seguinte. Ao

sair do meu quarto e passando pela porta da alcova da minha tia, ouvi, de repente,

inesperadamente, o mesmo grito, o mesmo rouquido ofegante que tinha ouvido em

sonho: desorientado, nervoso, amedrontado, fugi para o jardim à frente da casa; caía

uma chuva fina; pouco demorei no jardim, pois uma das minhas irmãs, meio perturbada,

chegara até lá perguntando por mim:

– Menino! Saia da chuva, volte para casa; tia Dondon morreu.

Compreendi: o grito que ouvira no meu sonho de sonâmbulo era a previsão do

sino, do ruído, da respiração estertorosa das cardíacas; aquele ruído ouvido, vendo

sentada no seu quarto a minha tia, me avisava da sua morte; era o anúncio sonhado, era

o sarrido comatoso, era a voz, o grito do coração da minha tia.

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Na estação

Numa das vezes em que estive no Recife, fui visitar a estação da Great Western

Railway, a chamada Estação Central. Era ali, nessa estação, que, em tempos muito

passados e distantes, esperava o trem para Jaboatão, onde residia.

Fui revê-la justamente às dez horas da noite, hora em que partia o último trem

para aquela cidade e no qual, em certo período da minha vida, eu viajava de regresso a

casa; pois, precisando estudar na biblioteca pública, permanecia todo o dia no Recife, e

somente podia voltar já tarde da noite.

Entrei no salão de espera: estava deserto; os grandes sofás lá ainda se achavam

como antigamente quando, muito moço ainda, utilizei-os para esperar vários trens;

sobretudo os de 1h20 e de 4h10 – chamado trem da serra –, o que seguia para além de

Jaboatão, para além da serra das Russas, atingindo a cidade de Caruaru.

Entrei no salão, depois de tanto tempo de ausência – cinquenta anos, creio eu.

Estava vazio, remoto e sombrio; nada tinha se conservado do antigo e saudável

ambiente que nele reinava nos minutos próximos da partida daquele último trem com

destino a Jaboatão – comboio em que viajava quase todos os dias e que, em quarenta

minutos, lá me deixava – durante a época em que me preparava para fazer exames na

Escola de Engenharia. Chegava ao Recife sempre pelo trem das onze horas, de

Jaboatão, no qual vinha sempre conversando com Reinaldo, um pianista que tocava na

orquestra do Cinema Royal. (Naquele tempo os filmes eram mudos e se faziam

acompanhar com piano e orquestra.) Reinaldo era um homem muito gordo, de roupas

muito ligadas ao corpo; falava com entusiasmo sobre a sua profissão de pianista,

aludindo sempre às músicas que levava debaixo do braço e iam ser tocadas no cinema

onde ele exercia a sua atividade, aliás, uma orquestra reduzida a cinco instrumentos.

Reinaldo voltava também no último trem, das 10h20; chegava quase sempre esbaforido,

a locomotiva tendo já apitado os dez minutos que antecipavam e anunciavam a próxima

partida. Voltávamos, assim, de novo conversando sobre cinema, sobre músicas e

musicistas.

Entrei no antigo salão deserto, sentei-me num daqueles sofás que ainda

restavam, sofás de alto espaldar que, como o assento, era também revestido de palhinha;

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sentei-me num dos grandes que tinham um mesmo encosto para dois assentos, ambos

empalhados e largos; e fiquei a meditar nas coisas que por ali passaram há muitos anos.

Nessa minha recordação surgiram as viagens que eu fazia em trens de horários

diferentes, sempre acompanhado pelos passageiros que neles eram frequentes, que a

eles estavam habituados por várias circunstâncias.

A princípio lembrava, de maneira vaga e indecisa, as diferentes pessoas que

viajavam, os que desciam nas diversas estações, em Areias, em Tejipió, em Socorro, em

Jaboatão. Essas figuras quase apagadas de pessoas iam, aos poucos, aparecendo do

fundo de minha memória; gente que eu evocava e ia reconhecendo, como também as

paisagens onde passava o trem, com árvores altas nas colinas, com pequenos rios

correndo embaixo nos profundos vales, com morros de pedras de onde a água límpida

escorria. Nessa lembrança – eu ainda muito jovem e inexperiente – eu aparecia, como

agora, sentado naquele grande sofá esperando ou conversando com um companheiro de

trem; com Reinaldo, por exemplo, o pianista que voltava do cinema onde era chefe da

pequena orquestra do, na época, mais importante cinema do Recife.

Mergulhado nessa meditação – não sei quanto tempo passei – veio-me a vontade

de abandonar aquele lugar deserto, sem sopro sequer do vento mais leve, sem o som

mais ligeiro de uma voz ou choro de criança. Por que estava ali dentro daquele silêncio?

Senti um certo impulso de sair da estação, daquela estação em hora tão tarde e sem

movimento e rumor; parada no mais absoluto silêncio. Mas naquela serenidade que me

penetrava havia qualquer coisa de vivo e sutil se transformando; vinham, pareceu-me

enfim, chegando os passageiros do trem de 1h20, o dia estava claro e luminoso; ouvi

passos no corredor e, aos poucos, iam entrando pelo salão de espera os que estavam

acostumados a viajar naquele comboio. Quase todos eu conhecia de vista e estavam

como costumavam viajar. Eram normalistas, moças que estudavam para serem

professoras, vinham da Escola Normal; eram rapazes saídos há pouco do Ginásio

Pernambucano, onde faziam o curso de Madureza; chegavam, sentavam-se nos sofás e

ficavam à espera da chamada, da abertura do portão para a gare onde estava o trem que

ia partir. Ali vi também chegar amigos com quem costumava conversar; chegava

Antenor, meu colega no Curso de Preparatórios do Dr. Joaquim Pimenta, chegava

Olivério, sempre risonho, que morava em Tejipió, irmão de uma moça muito bonita,

que raramente vinha ao Recife; Antenor, que morava em Afogados, portanto na

primeira estação, e que era meu colega de aula, pois fazíamos os mesmos preparatórios;

Olivério, que viajava na plataforma do vagão em que íamos, tirava sempre brincadeiras

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com os vendedores e bilhetes de loteria, se dirigia às pessoas que moravam à margem da

via férrea, quando apareciam e olhavam a passagem do trem:

– Oh! Seu malandro – dizia ele –, por que não vai trabalhar, vagabundo?! Isto é

hora de estar em casa na janela, bandido?!

Ou quando via uma moça na janela começava a atirar beijos; o que quase sempre

trazia complicações muito sérias.

Estavam todos ali parados dentro daquele silêncio, todos; a estação estava

repleta de gente e havia um rumor surdo dentro daquela paz, dentro daquele sossego dos

anos remotos que eu agora revia e experimentava.

Olhava para toda aquela gente como se fosse um renascimento, em grande parte

gente moça: estudantes e normalistas. De vez em quando passava um vendedor de

confeitos, de roletes de cana ou de mendubi, e havia os que compravam, ou faziam

pilhéria; ou estava também pela porta do salão um vendedor de bilhetes de loteria

gritando:

– Quem quer tirar a sorte grande?

Tive a impressão exata de ter ouvido esse grito: alguém, como antigamente,

passara por ali vendendo bilhetes de loteria. Teria despertado? Senti-me assustado como

se acordasse. Notei que o salão estava deserto. Como uma fumaça, toda aquela gente

desaparecera; o dia claro em que no trem de 1h20 iríamos viajar tornara-se fechado.

Voltei a pensar no sonho que teria tido, e em que não me lembrava de outros

amigos que às vezes viajavam naquele trem: Oswaldo Antunes, Otávio, seu irmão;

Otávio Paes Barreto, o que, tendo adoecido em Sanharó, fazia um estágio para curar-se

da tuberculose.

Pensei que tudo fosse um sonho ou uma alucinação, ou um entorpecimento, uma

tonteira, pois o que se desfez para mim como fumo logo depois se reuniu como nuvens

no teto.

Mas o dia claro tinha desaparecido... era noite... e estava realmente deserto o

salão; o trem que ia partir era realmente o último, o das 10h20, pois a hora tinha

chegado e imediatamente outras pessoas que eu conhecia de vê-las, naqueles dias

antigos, começaram a penetrar no salão, ocupando os seus lugares nos sofás e ficando à

espera da partida do último trem. Eram empregados no comércio, que moravam em

Tejipió e Jaboatão, porteiros de cinemas do Recife, que regressavam aos seus parentes,

e sobretudo o pianista Reinaldo, sobraçando as suas músicas, e chegando sempre

atrasado. Formou-se então uma roda em torno do salão de espera, todos os passageiros

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aguardando o sinal para, transpondo o portão da grade de ferro, penetrar no ancoradouro

onde se achava o trem já composto e pronto para partir.

Estava agora, realmente, assistindo à repetição de uma das minhas antigas

viagens para Jaboatão no último trem. Preparei-me para acompanhar os viajantes,

cheguei a me levantar e me dirigir para o cais onde estava à espera o comboio. Mas

ouvi, de súbito, o apito do trem que partia, senti no meu corpo uma sacudidela, olhei,

meio assombrado, em torno de mim, surpreso de me achar ali, sozinho, no salão deserto

de uma velha estação. Pensei que, de fato, tinha partido um trem, todos os passageiros

teriam embarcado, mesmo os retardatários e somente eu teria sido deixado, esquecido e

em devaneio, esquecido há muitos anos.

No entanto não era verdade; não tinha, da estação, saído àquela hora trem algum,

muito menos o que deixava a gare à 10h20. Não se tinha ouvido nenhum apito, nenhum

rumor de rodas e de freios... E depois, não era noite ainda, eram precisamente três horas

da tarde... de uma tarde de verão e sol ainda brilhando no céu, e a sua luz se vendo bater

no chão do adro por onde se passava, para atingir a gare – eu tinha vindo pela rua da

Concórdia e não pela margem do Capibaribe, com a intenção de ver uma morena que

ficava sempre à tarde debruçada na janela e que estava ali todas as tardes à espera de um

namorado. Tinha chegado cedo à estação; ninguém ainda tinha aparecido, era muito

cedo ainda para o trem das 4h10 sair com destino a Caruaru – o famoso trem da serra,

que, em Jaboatão, todo mundo ia ver chegar, e conversar com amigos que viajavam para

estações aquém de Caruaru: velhos amigos que se encarregavam de levar encomendas e

presentes para os que moravam em engenhos localizados além de Jaboatão e que não

iam naquele trem.

No cais da estação passeavam moças; era mesmo um costume, há muito tempo

conservado, esse passeio, esse assistir à chegada do trem da serra; era isso um hábito e

uma tradição: passear pelo ancoradouro enquanto se faziam as manobras necessárias

para reduzir o número de vagões que iriam prosseguir a viagem; manobras que

demoravam bastante tempo.

Tinha chegado cedo à estação, estava sentado num dos sofás, um dos que

ficavam encostados à parede, que era o que eu sempre escolhia para ver melhor os

passageiros que iam entrando. Sentado no sofá daquele salão ainda vazio, aguardava a

chegada dos que iam viajar; nem sempre eram os mesmos. Nem sempre os que

moravam em engenhos para além da serra das Russas podiam vir todos os dias, ou

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mesmo todas as semanas, ao Recife. Tinha chegado cedo e já estava desanimado de

esperar por tanto tempo; fiquei, no entanto, convencido de que em breve chegariam.

O tempo avançava, já estava quase na hora de o trem partir e ninguém aparecia;

por quê? Ninguém aparecia.

Suponho que dei um cochilo... Perdi a consciência por alguns segundos.

Segundos? Quem poderá dizer o tempo que dura um cochilo? Quando não se sabe

medir o tempo de um sonho, como se poderá conhecer o tempo que se passa num

cochilo? A verdade é que cochilei: estavam chegando os que iam viajar no trem das

4h10. (Que chegavam, às vezes, isoladamente, às vezes em grupo, às vezes entravam

logo na sala de espera, às vezes iam tomar um refresco no pequeno bar que ficava

defronte.) Estavam chegando e era um esplendor, um encanto de luxo e riqueza. O

usineiro João Lopes, a mulher e os filhos, entre estes, uma jovem muito bonita, de

dezoito anos; logo após, o Dr. Alberto Paes Barreto, residente em Jaboatão e advogado

no Recife, entrou de fraque e colete, sempre fumando um cigarrinho e falando ou

pigarreando; conversava animadamente com os amigos, os seus colegas de Caruaru; em

seguida entraram os filhos dos proprietários da usina Jaboatão: Guilherme e Joaquim

Martins; depois, Domingos Ferreira e Caminha Franco, trocando ideias sobre

engenharia, e, ao lado de Domingos, o seu pai, que ainda usava barba e suíças; todos

vinham voltando de afazeres na capital do estado. Surgem, logo depois, alguns alunos e

professores da Escola de Agronomia de Socorro e que voltavam das férias; traziam

sempre bolsas e embrulhos, pois residiam na Escola de Agronomia, que era um

internato. Iam chegando em dias diferentes, de cidades diversas de Pernambuco; de

Limoeiro, de Barreiros, de Garanhuns; alguns mesmo de Alagoas. Sentavam-se

tranquilos, à espera do trem.

De novo, outra onda de gente, habitués daquela viagem: médicos e despachantes

da alfândega, às vezes com suas mulheres e filhos, voltavam naquele trem que ia partir

dentro em breve e subir a serra, para além de Jaboatão. Ali estavam alguns sentados,

alguns de pé, pois não havia mais lugares nos sofás; ali estavam os estudantes: Zé Luís,

Alcides, Targino, Américo Brito, Cícero Araújo, sobrinho do proprietário da usina

Cachoeira Lisa, Alberto Wucherer, alagoano, João Gomes, de Barreiros, e muitos

outros.

Chegaram os poetas Samuel Capelo e Enéas Alves, que eram assíduos

colaboradores de uma revista jaboatonense; ambos trabalhavam como empregados

públicos no Recife. Vi chegarem os filhos do Dr. Nobre de Lacerda, senhor de engenho,

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os filhos de Dona Marieta, senhora do engenho Entre Rios. Entraram logo depois, no

salão já apinhado de gente, alguns membros de famílias que apenas veraneavam em

Jaboatão: os Paula Lopes, os Médicis, os Bithencourt, os que moravam no morro da

Saúde – quase que também meus vizinhos –, os Baltar, os Bezerra. Vi chegar também,

atrasado, o escritor Manuel Arão e o seu genro, o agrônomo Oscar Campos, e o pai dos

meus amigos Camerino, Toninho e Edésio, com os quais jogava pelada em Tejipió;

ambos moravam no Sancho, bairro desse subúrbio.

O mais estranho era que naquele dia estavam na estação os passageiros de vários

trens de 4h10, pessoas que só e muito raramente viajavam até o Recife; viviam quase

todos os dias do ano nos subúrbios e nas cidades do interior; estavam lá Sidrônio,

Teobaldo, Amélia e Dulce Brandão, filhos e filhas de negociante de Jaboatão, estavam

Austregésilo e Herculano, que eram meus vizinhos na mesma cidade, Simeão e Orlando

Cabral, que se formou em medicina.

Estavam todos à espera da partida; imprevistamente, devagar, todos foram se

erguendo de seus lugares, de mim se aproximaram, e começaram a me olhar, olhar com

uma curiosidade invulgar, inesperada, a me olhar como se vissem, na minha presença

ali, qualquer coisa de anormal, de irregular e absurdo. Fitaram-me por algum tempo de

modo agressivo, uns como que me considerando um intruso naquela sala, outros por

nunca me terem visto, não me terem conhecido muito bem na minha primeira mocidade,

em Jaboatão.

Detiveram-se um instante a olhar, diante da minha pessoa; eles, que eram moços

e vivos, encontravam em mim um velho, muito diferente do que teriam visto em outros

tempos longínquos; fitavam-se todos e cada qual mais se aproximava; olhavam por

cima dos ombros uns dos outros, e os seus rostos, eu vi, se iam deformando, os seus

corpos iam fundindo-se uns nos outros, se amalgamando, se diluindo.

De súbito ouvi, na gare, o apito do condutor, que deveria ter na mão uma

bandeira, que estaria, ao apitar, acenando para o maquinista ligar as alavancas e

conduzir o trem; ouvi os freios dos vagões se esticarem e o rolar das rodas pelos trilhos,

indicando que o trem partira.

Aquela nuvem de gente, que se ia tornando cada vez mais densa, foi aos poucos

se erguendo no ar, atravessando as portas do salão que davam para o embarcadouro;

foram... foram, passando, se elevando, fugindo em seguimento do trem que partira e que

os deixara, que partira e por eles não esperou; deles se esqueceu.

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Tive a impressão de que adormeci e tudo aquilo era apenas um sonho; mas, no

meu lugar, continuei olhando para as portas, para o lado da gare; e vi que, depois da

saída nebulosa dos passageiros, voltara a fumaça da locomotiva e penetrou no salão,

como à procura de alguém. Então compreendi que, naquela multidão de passageiros que

se foram acompanhando o trem, não tinham seguido os dois últimos que vi entrar na

sala – que só depois disso ficou totalmente deserta. Era Maria de Lourdes, acompanhada

por seu pai muito velhinho. Maria de Lourdes, alta, elegante e formosa, Maria de

Lourdes! Divina! Vestida de vestido branco, a pele alva, os olhos pretos. Maria de

Lourdes! Olhou-me de leve e de manso. Uma palavra falou, uma palavra que por ali

andava, e me disse:

– Boa tarde, Joaquim!

E logo depois:

– Boa noite, Joaquim!

Despertei; de novo me vi sozinho naquela sala para onde tinha vindo, a olhar

como estava, depois de cinquenta anos, depois de tantos anos cansados e consumidos.

Brassávola

Uma das ruas em que morei, por algum tempo, no Recife, tinha o nome de 24 de

Maio; era uma rua que há vários anos foi aberta sobre o cemitério do Convento dos

Carmelitas, por isso se chamou primeiramente rua dos Ossos; a razão deste nome

provinha de terem sido revolvidos, por ocasião dos trabalhos com a sua construção,

vários túmulos e valas comuns, exumando-se os esqueletos de muitos mortos que ali

foram sepultados.

A atual rua 24 de Maio foi, assim, traçada sobre terra ocupada por gente morta

há muito tempo, e de quem não mais se tinha qualquer lembrança dos parentes e

amigos. Nas catacumbas demolidas, nos túmulos desmoronados, foram, em dias muito

remotos, encerrados os corpos de frades do convento; irmãos membros da ordem

terceira, das irmandades e confrarias: homens, mulheres e crianças que teriam morado

naquele bairro ou nas suas proximidades; como de hábito naquele então, teriam sido ali

inumados.

As pequenas casas daquela rua, quase todas de porta e janela, tinham

dependências mal distribuídas, e de dimensões exíguas; faziam lembrar, essas pequenas

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casas, verdadeiros mausoléus para gente viva; ou talvez, quem sabe, para darem

acolhimento às almas dos que morreram e ali ficaram como defuntos; as almas que,

depois de tanto tempo, muita gente ainda acreditava que visitassem aquele local e se

comprouvessem em vagar pelas vizinhanças.

Era uma rua estreita e triste, indicando, pelo aspecto, a sua origem lúgubre e

funérea; naquele mesmo lugar gente chorou; em épocas já muito antigas, diversas

famílias rezaram diante dos cadáveres dos seus parentes mais íntimos, e cobriram de

flores, e acenderam velas, e rezaram terços; nos dias de finados, voltavam, todos os

anos, para repartir as mesmas cerimônias, que foram aos poucos desaparecendo, pois se

desfizeram, com o tempo, as próprias famílias. Apagaram-se os nomes nas pedras das

sepulturas, apagando-se, nas memórias, as recordações. E toda a saudade se perdeu no

meio daqueles ossos revolvidos; ossos que teriam sido sementes plantadas, das quais

nada cresceu; semeadura que nada produziu.

Era uma rua estreita e triste que, apesar de tudo, estava impregnada de uma

lembrança vaga e incerta, desconhecida ou indeterminada, impregnada de uma saudade

imperceptível e mutilada; de uma nostalgia misteriosa e longínqua. Era uma rua estreita

e triste!

Eu morava sozinho numa das casas da rua 24 de Maio; ocupava dessa casa

apenas a sala da frente e o quarto que dava para essa mesma sala. Nela estavam a minha

espreguiçadeira, os meus livros, os meus desenhos; nessa cadeira, lia todas as tardes,

antes de sair para jantar; lia todas as noites antes de dormir.

No quarto estava a cama em que eu dormia, deixando inteiramente abandonado

o restante da casa: o longo corredor, a sala de jantar e o quarto que com ela se

comunicava. A cozinha ficou inteiramente sem uso; sem uso o seu fogão de vários

borralhos e com forno de assar bolos e pernis; fogão todo de tijolo de barro, ao jeito

antigo das velhas casas. Na sala de jantar pus, entretanto, uma larga mesa de madeira

tosca, onde fazia e tomava o meu café pela manhã.

E o corredor? O corredor somente usava pela manhã, para alcançar o banheiro e

o sanitário, localizados no extremo da casa, depois de um pequeno quintal.

Naquele tempo eu vivia sempre na rua. Trabalhava numa repartição pública,

almoçava sempre em restaurantes e só voltava para casa à tarde, depois dos serviços

prestados na repartição. Das quatro e meia da tarde às seis horas ficava lendo, na

espreguiçadeira, à espera da hora do jantar, e para isso ia aos restaurantes Gambrino ou

32.

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Logo após o jantar, ia à procura de um grupo de amigos que se reunia todas as

noites no Café Continental, na rua do Imperador; em companhia desses amigos, ficava

eu conversando até tarde da noite. Como a maior parte deles voltava cedo para casa,

costumava eu, quase sempre, em companhia dos mais retardatários, atravessar a ponte

para o Recife velho – aonde íamos beber num bar na rua da Guia – ou procurávamos o

Bar Alemão, que existia ao lado do Diário de Pernambuco; ali ceávamos, bebíamos

chope e comíamos frios sortidos. Às vezes, andávamos até um outro bar, o Pergentino, à

rua de Santo Amaro, onde também ceávamos; depois íamos visitar as pensões de

mulheres: Pensão Bohemia, Pensão Monte Carlo ou Pensão Mimi. Não era, entretanto,

todos os dias que me demorava por tanto tempo nessas excursões noctívagas. Eram

também frequentes os dias da semana em que voltava cedo para casa, onde, na minha

espreguiçadeira, ficava lendo até tarde da noite.

Dessa casa em que morei, na rua 24 de Maio, o que mais me impressionava era o

corredor; não sei por que descobria, na sua escura e larga e longa penetração até a sala

de jantar, qualquer coisa de esquisito e fantástico, sobretudo porque sabia que ele era

uma comunicação quase mutilada para o resto da casa, sobretudo para a cozinha e o

outro quarto. O que mais me impressionava era o corredor. Quando levantava os olhos

da leitura que estava fazendo, era sempre do corredor que me vinha uma sensação de

tristeza e isolamento. Ao longo das suas duas paredes sem abertura para os dois quartos

da casa reinava sempre um silêncio dentro de uma escuridão, mais espessa quando, com

as chuvas, mais cedo anoitecia, e quando procurava ir ao banheiro, à noite, era uma

aflição que me vinha ao penetrar naquele túnel, pois representava, para mim, uma

aventura percorrê-lo. De qualquer modo, aquele corredor era uma passagem forçada

para alcançar a sala de jantar e o banheiro; habituei-me, portanto, ao seu mistério e à sua

realidade.

Entre os amigos com quem costumava conversar, sentado tranquilamente numa

das pequenas mesas do Café Continental, mesas que estavam todos as noites espalhadas

nas largas calçadas da rua do Imperador, entre esses amigos estava, todas as noites, um

descendente de inglês, funcionário do London Bank. Era filho de um engenheiro que

veio da Inglaterra trabalhar na Great Western, companhia inglesa de estradas de ferro.

Chamava-se Walter Williams Cox, mas, camaradescamente, todos nós lhe chamávamos

de “o velho Cox”. Morava na estrada de Dois Irmãos, num grande sítio muito

arborizado, numa velha e grande casa, no subúrbio de Casa Forte. “O velho Cox” era

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um dos primeiros a deixar a tertúlia, preocupado com a entrada no banco onde

trabalhava, no dia seguinte, pela manhã muito cedo.

No sítio onde morava, junto à grande arborização que mantinha, Cox cultivava

orquídeas. Cultivar esse tipo de flores era o seu hobby. Nas conversas que tínhamos,

falava-se às vezes de orquídeas raras, do hibridismo que se usava procurando obter

novas espécies não existentes na natureza, que importam em quase vinte mil espécies.

Dessas conversas que mantínhamos sobre as orquidáceas resultou que, nos

meses em que floriam essas plantas espífitas – os meses de março e abril –, Cox

começou a nos trazer e nos oferecer o que o seu orquidário produzia. Eram Oncídios (as

Regenere e Lancianus); eram Catleias e Lélias; eram Wandas e Dendróbios; eram

Miltonias e Epidendros; todas de belos coloridos; todas de labelos de formas diversas;

algumas em cachos de flores amarelas ou vermelhas.

Nos dias em que recebíamos os presentes das orquídeas, depois que todos nós as

contemplávamos, eu costumava levá-las para casa, onde as colocava na sala de jantar,

em cima da mesa, dentro de um copo com água; voltava nesses dias mais cedo para

casa, com o fim de guardá-las e conservá-las por mais tempo.

Na manhã seguinte, quando passava para o banheiro ou me sentava à mesa para

tomar café, elas sempre me surpreendiam; sempre chamavam a minha atenção, essas

belas flores. Contemplava-as então à luz do dia, observando-lhes o seu encanto. Assim,

fui conhecendo, aos poucos, grande parte do orquidário do meu amigo Walter Cox, e

fiquei familiarizado com essas plantas, de tanta riqueza formal e tão caprichosas linhas e

admiráveis contornos. Essas mesmas plantas, que muitos anos depois voltei a apreciar

no orquidário de um outro amigo, o notável escritor carioca Gastão Cruls, também

descendente de estrangeiros, e que possui uma casa no Alto da Boa Vista, onde passava

o verão e às vezes me recebia, a mim e a Rodrigo M. F. de Andrade, para com ele

jantarmos. Gostava, nessas mesmas ocasiões, de olhar as suas orquídeas, naqueles dias

de verão carioca, áspero e quente, e do qual ficávamos abrigados pelo bom clima do

Alto da Boa Vista; olhava a coleção das suas flores e lembrava-me das do velho Cox;

Gastão era também apaixonado por esse tipo de flor. Hoje, Gastão e Rodrigo vivem

ainda na lembrança dos seus parentes e amigos; portanto, também na minha recordação.

Da influência que em mim exerceram as orquídeas de Cox basta contar o

seguinte episódio: uma noite o meu amigo trouxe-nos uma pequena flor, sem o brilho e

o colorido das Catleias ou das Lélias ou dos Oncídios e tantas outras que eram belas,

brilhantes, com suas pétalas acetinadas; era, sim, uma pequena orquídea de cor branca e

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medíocre, que o nosso amigo designou como uma Brassávola. Quase sem graça e sem

valor para ser vista, mas tinha uma propriedade que as outras não possuíam: aquela

Brassávola era perfumada, emitia um cheiro bom, forte e agradável; a partir das

primeiras horas da tarde, a flor, com o seu perfume, anunciava a noite; o crepúsculo

tinha o dom cósmico, universal, de comunicar ao mundo terrestre, à natureza, que o sol

distante desaparecera; havia entre a flor e a luz solar uma espécie de simbiose ou de

despedida qualquer, que justificava o seu perfume como uma manifestação da vida

vegetal, caracterizada pela clorofila; o seu perfume era uma parte do crepúsculo, era a

transformação da luz em sombra.

Quando me entregou esse exemplar do seu orquidário, já eram quase oito horas

da noite e a flor não tinha mais perfume, pelo que não acreditei no que disse o meu

amigo, pois nunca tinha visto uma orquídea com hábito tão raro na sua vida de flor.

Cox costumava ir cedo para casa e, dentro de pouco tempo, se despediu e foi

embora no seu bonde de Dois Irmãos.

Fiquei com a Brassávola e resolvi voltar também para casa; demorei-me, apesar

disso, bastante tempo para que, ainda com a flor na mão, fosse aos poucos esquecendo o

sortilégio. Na minha hora quase habitual de ir para casa, levei comigo a orquídea, assim

esquecido das suas virtudes quase milagrosas; cheguei em casa e lá, na sala de jantar, fiz

o gesto quase automático dos outros dias: coloquei num copo com água a Brassávola.

Voltei à sala da frente, já quase esquecido de sua existência e, como em todos os

dias, comecei a ler na minha espreguiçadeira.

No dia seguinte, pela manhã, como todos os dias, passei pela sala de jantar para

o banheiro. Depois, sentei-me na mesa para fazer o café e logo após tomei-o com o pão,

trazido pela velha empregada, que chegava cedo; não prestei a mínima atenção à

Brassávola, orquídea pequena e sem brilho, ali esquecida, abandonada para murchar.

Sem mais me lembrar dela, vesti-me e saí para o expediente da manhã na

repartição a que pertencia. Às onze e meia deixei a repartição, para ir almoçar, o que fiz

no Gambrino, como usualmente fazia; dei depois uma aula na Escola de Engenharia e

voltei ao trabalho no horário da tarde. Da repartição, saí às quatro horas e regressei a

casa, onde, como era meu costume, estendi-me na velha cadeira e continuei a ler o

romance de Alexis Tolstoi Dietsvo Hikita – a infância de Nikita, primeiro livro que li

em língua russa, aliás com muita dificuldade; devia sair logo mais, às sete horas, para

jantar e depois dirigir-me ao Continental, para a conversinha costumeira.

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Estava assim a ler, me valendo do auxílio de uma gramática e de um dicionário

russo, aquela história de uma infância, empenhado em bem compreender como Nikita

conseguira deslizar na neve, montando um escabelo transformado em trenó, quando

comecei a sentir que escurecia e, com a escuridão, um cheiro intenso e agradável

invadia a sala onde me achava. Era esquisito aquele cheiro intenso que vinha, pareceu-

me, da boca do corredor já escuro; era como se alguém estivesse àquela hora vivendo,

ocupando o resto da casa e talvez se preparasse para sair, usando um perfume; talvez, na

sala de trás, uma empregada preparando a mesa para o jantar, ou na cozinha uma

cozinheira ativando aquele morto fogão de tijolo que nunca utilizei para coisa alguma;

era como se uma gente inesperada, ou escondida naquele resto de casa, tivesse

ressurgido das cinzas para viver ali; para aparecer, sobretudo na personagem de uma

mulher bonita e perfumada que estivesse se preparando para vir ao meu encontro na sala

da frente.

Nesse ponto, senti um calafrio; um pânico me invadiu, lembrando os mortos que,

no lugar daquela casa onde morava, tinham sido, há muito tempo, sepultados. O

fantasma de uma mulher formosa e perfumada talvez tivesse agora vindo me ver, me

espiar; talvez estivesse mesmo na sombra do corredor, me espreitando, procurando

saber como eu era; o fantasma de uma bela moça; de uma formosa mulher, naquele

lugar enterrada há muitos anos. Cheguei a ter a sensação de passos no corredor e uma

certa ilusão de ouvir sorrisos abafados.

Fiquei sem saber o que fazer. Era o corredor, aquele misterioso corredor, que

voltava a assumir a sua condição de mágica influência sobre mim, como há meses

passados; transido de medo, pensei em me esgueirar pela porta da rua, mas me veio ao

pensamento que alguém iria pôr a mão no meu ombro. Meio alucinado, supus até que

algum desconhecido estava diante de mim.

Tomado pelo medo, comecei a me arrepender de ter vindo morar em semelhante

rua, construída sobre o terreno de um cemitério; e cemitério de convento, com muitos

anos de existência e onde, sucessivamente, muitas pessoas foram inumadas.

Por fim, com um esforço inesperado, procurei voltar à realidade: levantei-me e

acendi a lâmpada da sala; o aroma que vinha pelo corredor era cada vez mais forte.

Animado por essa decisão, quis me aproximar da abertura do corredor de onde vinha

aquele perfume fantástico. Receei; havia como que um tremor no ar daquela passagem

larga e comprida, que se prolongava até a sala de jantar, e não tinha contato com os

quartos da casa; como se fosse um túnel.

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Quando ergui os olhos da leitura, sentindo o perfume que inundava a sala

inteiramente fechada, tive a impressão de ver, na abertura do corredor, uma figura

esvanecida, estrangulada, que desapareceu de repente.

Vi depois, mais devagar, passar uma mão muito branca, de dedos crispados, ao

longo da ombreira da abertura da passagem para a sala de jantar.

Apesar dessas visões que me frequentavam, fui me habituando ao cheiro

agradável que invadiu a sala, procurei me refazer de todas aquelas suposições e tomei

uma deliberação definitiva: iria atravessar o corredor até a outra sala.

Eram aproximadamente seis e meia; todas as perturbações que sentia se

amorteceram. Apesar de não compreender, de não poder explicar de onde vinha aquele

perfume, me expliquei, como possibilidade longínqua, que viria da casa vizinha; de

qualquer modo, fiquei um pouco tranquilo e abatido.

Resolvi penetrar pelo corredor até o fim do mesmo.

Angustiadamente, atravessando o escuro corredor, cheguei à sala de jantar, onde

também acendi a lâmpada; olhei em torno da sala, estendi a vista pela porta aberta da

cozinha; não havia sinal nenhum de ter, por ali, ter andado alguém. Até então não tinha

ainda percebido a Brassávola, que ali pusera na véspera, dentro de um copo cheio de

água, em cima da mesa.

Aproximei-me mais da mesa e vi... vi então a pequena orquídea! Estava ali,

medíocre, esbranquiçada, alvacenta, desbotada, que à simples vista era quase nada... De

repente lembrei-me que ela emitia perfume às seis da tarde. Cheguei-me mais para

perto.

Aproximei-me então da orquídea; tomei o copo de cima da mesa; era ela, era a

orquídea, que intensamente perfumava o ambiente, àquela hora da tarde.

Era o aroma da Brassávola, que começava às seis, hora das antigas ave-marias

das igrejas do Recife, que ainda hoje soam e ninguém mais ouve, ninguém mais escuta,

ninguém mesmo as conta como fazendo parte do folclore; e os serviços de cultura nunca

incluíram a sua música na tradição nacional.

Era o perfume da Brassávola e, ao mesmo tempo, o perfume da tarde, da luz

vibrando no metal da tarde.

Perfume da luz crepuscular, se transformando em noite pura.

O caminho

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Isto se passou quando eu estava trabalhando como ajudante do técnico alemão, o

Dr. Von Tilling, que, na sua ocupação habitual de fazer pequenas barragens e de

econômicas irrigações de várzeas, se achava então no Recife, depois de ter exercido a

mesma atividade na África Oriental alemã e na China.

Trabalhávamos, naquela ocasião, no engenho Araçu, muito distante da praia de

São José da Coroa Grande, onde, na casa de Dona Lulu, nos hospedamos; tínhamos já

feito trabalhos semelhantes no engenho Tentugal, que era muito mais perto dessa praia e

para lá nos transportávamos, fácil e rapidamente, de automóvel.

Araçu, velho engenho que ainda possuía o açude e a levada do tempo em que era

engenho d’água, que possuía ainda restos da calha da roda do velho engenho banhado

pelo rio Persinunga: limite entre Pernambuco e Alagoas; Araçu atingíamos todos os

dias, indo de automóvel, em boa estrada, até o engenho Queimadas, do Dr. Júlio Belo,

e, de lá, a cavalo, até a casa-grande do engenho para onde nos dirigíamos e que ficava a

pouca distância da igreja, pois era uma igreja e não uma simples capela, uma igreja com

torre e com sinos, e não com sineira, como aparece nas capelas dos antigos engenhos.

Tomávamos o automóvel muito cedo, percorríamos uma boa parte da estrada que vai da

praia até a cidade de Barreiros, depois entrávamos à esquerda, em estrada mais estreita,

para chegarmos a um ponto onde havia uma encruzilhada de três caminhos; tomávamos

um deles e chegávamos ao cercado do engenho Queimadas; ali já estavam nos

esperando os cavalos que iam nos levar a Araçu.

O assunto dessa história se encontra exatamente no último dia, que, aliás, se

determinou por ter sido nele que se deu o acidente de que foi vítima o Dr. Von Tilling.

O acidente que motivou o último dia de nossos afazeres em Araçu sucedeu logo

depois que saímos do engenho Queimadas; íamos a cavalo, como nos dias anteriores,

pelo caminho que nos levava ao trabalho. Ia eu sempre na frente, usando a montaria

mais usual entre nós; Von Tilling vinha sempre atrás, montando em estilo inglês; fazia o

cavalo ir a trote e acompanhava a sua marcha apoiando-se nos estribos, subindo e

descendo sobre a sela.

O Dr. Von Tilling montava, como eu, um cavalo xucro, que não possuía o trote

inglês adequado a esse tipo de montaria; as dificuldades aparecidas em pôr o cavalo em

andadura conveniente e a sua avançada idade (Von Tilling tinha quase setenta anos)

fizeram-lhe perder o equilíbrio e ser atirado ao chão; aos seus gritos, deixei de

prosseguir, apeei-me e fui ao seu encontro; ajudei-o a se acomodar novamente à sela e

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acompanhei-o de perto até a casa-grande do engenho, onde ficou repousando e

gemendo. Deu-me ordem, entretanto, para que fosse continuar no campo o nivelamento

que estava fazendo; ainda bem comecei a trabalhar quando me veio um aviso para voltar

a casa e novamente ouvir o que queria de mim o engenheiro Von Tilling: encontrei-o

com terríveis dores e pronto para voltar ao Recife, pois havia suspeita de fratura da

clavícula. Iria num trolley de estrada de ferro que estava próximo a chegar; disse-me,

porém, que continuasse a trabalhar até o fim do dia e voltasse a São José da Coroa

Grande, de onde devia viajar, no dia seguinte, de volta ao escritório. Assim fiz. Às seis

horas da tarde tomei o cavalo e dirigi-me a Queimadas, onde esperava encontrar o

automóvel, como nos outros dias. Mas o automóvel, com o atrapalho que surgiu,

oriundo da queda do engenheiro, não foi enviado; pensei ir a cavalo até a praia, mas,

indeciso se devia levá-lo tão distante, resolvi fazer a pé o trajeto do engenho Queimadas

a São José da Coroa Grande.

Juntei a marmita em que levava o almoço ao lugar de trabalho, as cadernetas de

levantamento topográfico, o copo em que bebia mate, e outras coisas que desejava levar

comigo; meti tudo dentro de um saco, fazendo assim um matolão que pus às costas e

parti em direção à porteira do cercado do engenho.

Atravessei a porteira, e continuei a caminhar ao longo do renque de grandes

bambus que limitavam o cercado, e penetrei na estrada que devia me conduzir a São

José.

Caminhava devagar, segurando a ponta do saco onde levava a marmita.

Começava a escurecer. Dentro da mata que orlava a estrada por onde ia, fui

pensando: quando chegarei à praia? Certamente já com a noite fechada. Caminhava.

Sentia alguma coisa que me vinha do chão, alguma coisa de novo para quem voltava a

pé por um caminho, por um caminho que percorrera, de manhã, sentado num

automóvel. Aquele chão me fazia recordar outros chãos por onde passei caminhando a

pé. Outros chãos! Terras que me revelaram muitas coisas do barro e da areia, de esforço

e de cansaço. Muita coisa de suspeita e de incerteza aquele caminho me lembrava. Mas

caminhava e refletia, meditava sobre estórias que já tinha lido; pensei que estava ali

vivendo o que algures já tinha lido. Já tinha lido! Era a constatação de que a marcha do

homem era o rodar de um fragmento de roda, a material verificação de que os pés,

caminhando, descrevem no ar uma roda imaginária, com apenas visível um seu

fragmento.

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Eu rodava assim a minha roda, a minha marcha dentro daquele capão de mata

sombria, com a aproximação da noite.

Por toda parte, no ar, havia um silêncio duro e vazio, apenas quebrado

melancolicamente, de vez em quando, pela voz de um coriambo. E a noite conduzia

aquele silêncio. A noite era um túnel completo, cheio de silêncio, cheio, quase

extravasando. Um mutismo apagado, murcho e mutilado que tivesse sido jogado no ar

depois do canto de uma ária, como um silêncio nascendo, como uma gramínea

crescendo no campo das últimas notas de um piano, das últimas notas, por exemplo, da

“Marcha dos Confederados de David”, no Carnaval de Schumann.

Caminhando meu caminho e minha lembrança, cheguei à encruzilhada a que já

aludi; não sei por quê, talvez por ali ter passado sempre de automóvel, não pude

reconhecer o trajeto que por ele seguira todos os dias. Resolvi tomar agora à direita:

assim avancei nessa direção para ver se acertava; notei, porém, que o chão era de areia

frouxa, e de um lado e de outro surgiam grandes cajueiros, no momento já envolvidos

na sombria espessura da noite; mas, na escassa luz que descia das estrelas, vi que era

uma floresta dessas árvores frutíferas; via-se, através dos cajueiros que ficavam à

margem da estrada, uma profundidade escura e fechada que penetrava no longe interior

daquela floresta.

Caminhando... caminhando, lembrava, lembrava de outros caminhos, recordava

outras marchas que fiz na areia frouxa, palmilhando ao longo de caatingas, ao longo de

charnecas, ao longo de carrascais e tabuleiros, todos deixaram gravados nos meus pés

uma história, que não sei bem como começa, nem como termina, e de que também já

me esqueci, como esqueci os nomes dos rios que vi passar, as cobras que vi correr, as

névoas que vi navegando entre colinas.

Caminhos que me fazem lembrar e esquecer, avançar e me conter, me achar e

me perder, chegar e me despedir, me aproximar e me afastar, agitando a mão de adeus;

caminhar, e despedir-se!

Ia naquela floresta como se percorresse o caminho em que Dante se perdeu;

como se, no deserto, seguisse o passo das Caravanas; como se acompanhasse Jesus de

Nazaré carregando a sua cruz para o Calvário. Ia, como se estivesse a caminho de

Santiago de Compostela, caminho da Via-Láctea – ou seguisse a senda de São Nicolau

de Bari, como se eu mesmo fosse um peregrino, que trouxesse em mim o espírito de

Germain Nouveau; ou seguisse o roteiro dos tecelões e dos mercadores da Idade Média,

que vinham do Oriente, ou o roteiro dos caminhantes que vinham da China pelas longas

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estradas da seda, trazendo para os senhores feudais a beleza das artes chinesas. Os

cajueiros, decerto, estavam já florindo, porque sentia o perfume das suas flores, que

emanava da escura mata onde os galhos roçavam entre si, e um ruído propagava-se em

toda a extensão da noite nela escondida e desconhecida. Procurei ajeitar melhor o meu

matolão, porque começara a chover fininho; estava convencido de que ia por um

caminho errado, mas insistia na mesma direção. À minha frente saltava um curiango ou

noitibó, o pássaro que somente sai à noite, e ficava à beira das estradas olhando quem

passava; em vez do pássaro poderia ser um sapo, poderia ser uma paca, poderia...

Poderia ser uma onça. Veio-me um calafrio. A chuva fina continuava.

Depois de algum tempo de marcha, os cajueiros desapareceram, abriu-se no céu

uma noite mais clara; notei, então, que no centro dessa claridade, a mais alguns metros

de distância, estava uma porteira, uma cancela feita de paus rústicos, como se usava nos

cercados, nos velhos engenhos de antigamente.

O aparecimento daquela porteira me surpreendeu, uma vez que nunca a tinha

visto antes; dela me aproximei e observei a estrada mais além: estava toda coberta de

água e cortava-a um manguezal; era água de maré crescente; era impossível prosseguir;

não sabia eu, do lugar onde estava, a altura daquela água, pelo que afastei o meu

primeiro pensamento de tirar o sapato; era possível que em algum ponto mais afastado

da estrada não houvesse vau.

Recuei alguns passos e ainda me demorei olhando a noite que agora aparecia,

depois da noite dos cajueiros, como a noite da maré, a noite da lama, a noite dos

mangues.

O pensamento que me veio era a volta imediata; mas se o caminho já foi

caminhado, recoberto por meus passos, rodado pela minha roda! Voltar! Recompor,

reconstruir o caminho para poder passar; talvez até que, assim fazendo, ele se

reconstrua, se recupere de outro modo, agora com a noite mais densa. Nessa minha

volta fui notando como um caminho se desfazia, eu que o tinha construído na vinda

estava assistindo como, pouco a pouco, se ia emaranhando sob meus pés; por toda parte

se abriam valetas quase intransponíveis, ou surgiam, por toda parte, ervas daninhas,

moitas de urtigas e de espinhos, por onde era difícil pisar. Tive a impressão de que o

primeiro caminho tinha morrido. O trato da areia frouxa por onde viera desaparecera, se

enchera de mato, se alargara de mar. Se apagara. Morrera. Os cajueiros agitados por

fortes ventanias espalhavam sobre o morto caminho suas folhas secas.

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O sol, que descera no horizonte, era como se tivesse se extinguido para sempre,

e tudo de agora em diante seria noite e caminho. Ia pensando em outras veredas, dentro

daquela noite eterna, outras sendas que me prenderiam pelos pés, agarrando-me com

areias ou gramas secas; que me prendiam, que não me deixavam seguir como se na sua

atitude houvesse uma voz, um chamado da terra. E em mim sobrevinha uma vontade de

dormir. Mas neste por onde eu seguia havia coisas mais estranhas, era como se o espaço

ali estivesse agora invertido e o tempo o acompanhasse nessa descida. Parecia-me que

tudo se modificara, a areia que eu vinha pisando não era a mesma, dos cajueiros me

chegava um murmúrio surdo de qualquer segredo mantido por alguém que vinha, sem

que eu soubesse, me acompanhando. Não tinha outro meio: era continuar e voltar,

continuar e descer. Lembrei-me de outros caminhos, em outros países, trilhados não

somente por mim, mas onde me sentia acompanhado, ou apenas tendo sido um viajante

posterior a outras passagens. Outros caminhos, outras paisagens. Nesse em que ia, tudo

se modificara, tudo tinha se transformado, não somente o campo em que pisava, como a

paisagem, reproduziam os que já foram vistos e vividos.

Bruscamente, o chão começou a se mover, valas se abriram e todo o dorso do

caminho ondulava encachoeirado; me sentia deslizando nas águas de um solo incerto,

tinha receio de cair, mas ia acompanhando, com a vista, as margens da trilha por onde

viera; vereda, chão que se desfazia, e agora não mais me conduzia, antes me perseguia;

não havia mais cajueiros nas suas margens, e, assim, sucessivas paisagens se iam

reproduzindo: partidos de canas, charnecas, carrascais, viveiros, manguezais; mas a

noite era a mesma e o caminho era o mesmo. Com o subir e descer do seu lombo dava a

impressão, não tanto de um rio, e sim de um fragmento de mar, de um refluxo de maré

cheia como o que se via da porteira de onde tinha voltado.

Com aquele resvalar, às vezes rápido, às vezes preguiçoso, o curso d’água em

que se transformou o caminho ia aos poucos ondulando, oscilando.

Subitamente o caminho que era rio, fragmento de mar, pedaços de ondas,

evoluindo numa paisagem irreal, se transformara numa ladeira que subia, me arrastando,

e voltava a ser planície, para novamente ser ladeira, descendo.

Além disso, em vez de areia frouxa, se fez rocha dura e, nesse caminho de pedra,

uma água também, escorregadia, toda aquela trilha se tornara um descaminho. Por fim,

consegui chegar à encruzilhada dos três caminhos ou de todos os caminhos; os que eu

tinha já visto e trilhado e os que outros também seguiram; consegui livrar-me daquele

misterioso descaminho e cheguei à estrada que vinha da cidade de Barreiros em direção

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do mar; tudo agora era firme e seguro, definido e imutável, justo e concluído. Cheguei à

estrada que me levou, já tarde da noite, à casa em que eu e o meu chefe Von Tilling nos

hospedamos, na praia de São José da Coroa Grande.

A pesca de lagostim

A noite estava escura, com nuvens pesadas ameaçando chuva, nuvens densas

não deixando ver as estrelas, e um vento pequeno soprava; esse ambiente tempestuoso e

fusco anunciava a possibilidade de uma boa pesca de lagostim. Por isso resolvemos

fazê-la. Estávamos, para isso, preparados na praia; dispostos a partir numa jangada, em

demanda de uns recifes de pedras, distantes, no mar àquela hora em maré vazante.

Ótimo! A maré baixa facilitaria descobrir nas pedras as melhores locas desse

apreciado crustáceo. Equipados com os utensílios indispensáveis à pescaria – os cestos,

as iscas, as forquilhas, os feixes de folhas secas de bananeira que acenderíamos e com

eles ofuscaríamos os lagostins –, com tudo isso, ficamos aguardando a vinda da

jangada. Éramos quatro: eu e mais três amigos, dois dos quais nunca tinham participado

de semelhante proeza.

A maré continuava a descer. Estávamos já impacientes com a espera, um pouco

longa; por fim a jangada, com a sua doce pancada, o seu choque uniforme na água

levemente intranquila, chegou bem perto da praia. Entramos n’água e alcançamos

aqueles paus flutuantes, que nos levariam aos recifes distantes e, a essa hora, já quase

inteiramente descobertos; nos aconchegamos, o melhor que pudemos, no seu dorso, e

logo depois o jangadeiro deu sinal de partida.

Atravessamos aquele mar macio, manso, de água parada, contida pelos recifes.

Íamos alegres, satisfeitos, esperançosos no bom êxito da nossa atuação como pescadores

de lagostim. Era mais uma experiência que realizávamos como pescadores

improvisados. De longe ainda avistávamos a praia, e as luzes das casas iam, aos poucos,

se envolvendo na bruma que cobria, àquela hora – quase dez horas da noite –, o

povoado de onde partimos. Por fim, tudo do lado da terra desaparecera. Daquele lado,

tudo eram sombras tempestuosas. Navegamos por pouco tempo e chegamos afinal aos

recifes. Era um conjunto de pedras eriçadas, surgindo, naquele momento, das águas da

maré baixa, e que fica, quase sempre, inteiramente coberto nas marés altas.

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Chegamos, derivamos um pouco à procura de um bom lugar para saltarmos

sobre as pedras; não foi muito fácil encontrá-lo, no entanto conseguimos desembarcar,

e, numa pedra das mais salientes, o jangadeiro amarrou a jangada. Do lado do mar

aberto vinham, no sopro de um vento forte, alguns golpes de ressaca.

Saímos depois os cinco, pois o jangadeiro ia conosco – pescador experimentado

que era nos ajudaria naquela pesca. Saímos a caminhar sobre os recifes, pisando com

precaução para não escorregar nas pedras lisas, úmidas e musgosas. Percorremos, nos

afastando do ponto em que desembarcamos, uma grande distância, até que deparamos

com um lugar onde, por certo, existiam boas locas de lagostim. Acendemos os feixes de

folhas secas de bananeira; empunhamos o archote, iluminando a região, dirigindo-o para

as locas, agora visíveis, dos lagostins, que iam aos poucos saindo dos seus esconderijos,

que eram muitos.

Atraídos pela luz cegante das tochas, os crustáceos ficavam fascinados e se

deixavam facilmente apanhar. Usamos então as forquilhas sobre o dorso de cada um,

prendendo-os, um após outro, sem grande dificuldade. Presos nas forquilhas os

jogávamos depois dentro dos cestos. Cada um de nós se ocupava de uma loca, fazendo

descer a isca na ponta de um pau, como chamariz; fazendo saírem da toca os mais

recalcitrantes.

Estávamos tão empenhados naquela distração e tão embevecidos com o sucesso

da pescaria que não tínhamos o sentimento de que tudo aquilo devia se passar em

poucos momentos, pois era certo que aquelas pedras, dentro de pouco tempo, estariam

cobertas totalmente pelas águas. Daqueles recifes não mais se veria daí a pouco uma

ponta de pedra aflorante.

Estávamos dominados realmente por uma verdadeira fascinação, uma espécie de

atração que nos provocava aquele exercício de pescar. Era uma obsessão permanente

aquela de querer desvendar e prender os pequenos seres que apareciam à luz dos fachos

acesos. Os lagostins se deslumbravam e nós ficávamos enlevados em vê-los evoluir

dentro da noite das águas; noite dentro da noite tempestuosa e que se converteria muito

em breve no mais escuro e rumoroso aguaceiro.

Pescávamos e nada mais víamos ou pressentíamos, como se toda aquela festa

pudesse se prolongar até alta madrugada. Pescamos, de qualquer modo, ainda por algum

tempo, e estávamos já com os nossos cestos repletos de crustáceos, mas eram tantos e

tão fáceis de apanhar que continuávamos sem o menor receio do surgimento de

qualquer imprevisto. De repente, porém, alguém lembrou que a maré tinha virado.

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Precisávamos bater em retirada quanto antes; precisávamos voltar com urgência ao

ponto onde desembarcamos da jangada; foi uma surpresa, e como que um despertar.

Com toda a pressa, começamos a juntar os cestos e todos os outros utensílios usados na

pesca, e logo procuramos chegar, o mais breve possível, ao local onde tínhamos deixado

amarrada a jangada. Estávamos bastante longe do local. Devíamos caminhar depressa e

com maior precaução do que tivemos antes, pois as águas agora cobriam grande parte

das pedras, e era difícil manter o equilíbrio sobre elas, dado o jogo de ondas da maré

crescente. Conosco, voltava também o jangadeiro, que conhecia bem o local onde

tínhamos desembarcado. Saímos como que de um sonho, para, aos poucos, entrarmos

num verdadeiro pesadelo. A marcha de volta, que sobre os recifes fazíamos, se realizava

com dificuldade crescente. Carregados com os apetrechos da pesca, sobretudo o cesto

com os lagostins, enfrentávamos uma situação muito diferente daquela em que nos

encontramos em nossa vinda: as pedras, mais do que pensávamos, estavam quase todas

levemente cobertas pelas águas da maré. Algumas pontas, entretanto, ainda afloravam;

em muitos lugares caminhávamos com os pés já mergulhados e o perigo de escorregar

era mais frequente.

Prosseguimos, apesar de tudo, com rapidez, e, quando escorregávamos,

tínhamos o cuidado de nos amparar nas pedras mais altas e agudas. As águas do mar,

cada vez mais fortes, espadanavam, fazendo mesmo pequenas ressacas, que molhavam a

todos nós; íamos, cautelosamente, sobre as pedras alagadas, mantendo acesos os fachos

de folhas de bananeira; restavam, porém, poucos luzeiros desse tipo e, se não

alcançássemos em tempo o ponto onde deixamos a jangada, teríamos que ficar no

escuro, e enfrentar as trevas daquela noite fechada; de vez em quando, atirávamos na

água uma tocha quase inteiramente consumida; acendíamos outra e, aos poucos,

chegamos ao ponto onde devíamos ter amarrado a jangada. Digo devíamos ter porque,

no referido local, a situação das pedras, com o crescimento da maré, modificou-se por

completo; e a ausência da embarcação em que viéramos nos dava uma incerteza se era

realmente aquele o lugar do nosso desembarque.

Havia dúvida a respeito do local, até que o jangadeiro reconheceu a pedra onde

amarrara a jangada, constatando realmente que a mesma se tinha desprendido e devia

estar à deriva, perdida na escuridão da noite. O jangadeiro pensava em lançar sobre as

pedras o tauaçu, mas depois achou que ele não daria uma ancoragem suficiente, e

desistira. Aqueles paus flutuantes estariam, agora, à deriva no mar; mas em que direção?

A que distância das pedras do recife? Não se podia saber. Talvez estivesse na direção da

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praia, talvez se afastando mar adentro. Estávamos perplexos e confusos. E agora, como

voltar ao povoado de onde viéramos? Um certo nervosismo se apoderou de nós todos.

Ficamos ainda comentando o que tinha acontecido e esquecemos por um momento que

a maré subia. A maré subia! De cada vez que a onda vinha, atingia as pedras ainda

descobertas num ponto mais alto. De repente, tivemos que fazer as nossas confissões.

Soube então que dois dos que estavam comigo não sabiam nadar; numa atitude

nervosa, quase alucinados, eles estavam prevendo um fim desesperado: se a maré,

crescendo, chegasse a cobrir totalmente as pedras e, sobre estas, as águas atingissem,

como de habitual, a altura de um metro, decerto morreríamos afogados.

Eu e o meu amigo, que sabíamos nadar, ficamos também dominados por uma

angústia terrível, que era pensar como íamos deixar ali, sobre as pedras, os dois que não

sabiam nadar; e pensar de que maneira poderíamos vencer a nado a distância, agora

mais longa, e num mar muito agitado; distância dos recifes até a praia.

E a maré subia! Subia! Ouvíamos a onda bater cada vez mais alto nas pedras,

cada vez mais avançava e se arrastava de volta, em curvas caprichosas. A maré subia!

Os fachos que ainda nos iluminavam iam, pouco a pouco, acabando. A luz não dava

para distinguir cinco metros de noite sobre o mar, e, na área, nada se via que pudesse ser

uma jangada. Certamente ela estava bastante afastada dos recifes.

Foi então que o jangadeiro tomou uma resolução: atirar-se à água e procurar a

jangada. Não devia estar muito longe, dizia ele. E assim fez; lançou-se na água e

começou a nadar; logo perdemo-lo de vista, penetrou na noite escura, marítima.

Perguntamos aos berros:

– Jangadeiro! Algum sinal da jangada?

Ouvíamos, vindo da distância escura, a sua resposta:

– Nenhum! A escuridão não me deixa distinguir coisa alguma!

A aflição entre nós prosseguia, ou melhor, subia, como subia a maré, no mesmo

compasso da maré, com a mesma ondulação, as mesmas súbitas pancadas. Os amigos

que não sabiam nadar começaram a chorar, desolados, perdidos na ausência de tomarem

uma decisão.

Depois de algum tempo, todos os fachos quase queimados, ficamos à espera de

qualquer sinal do jangadeiro; por fim, vimo-lo aproximar-se, nadando, para o local onde

estávamos; chegava cansado e desanimado.

– Então? – dissemos todos. Já com a água no meio da canela, respondeu:

– Nada! Está muito escuro, é impossível ver dois metros adiante.

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Tomei então a deliberação seguinte: disse-lhe que voltasse a nadar em torno

daquele ponto onde estávamos, mas agora levaria um facho na mão, um dos que ainda

restavam, para melhor iluminar aquelas águas escuras.

E ele voltou a investigar a densa escuridão, agora erguendo numa das mãos um

luzeiro; nadando somente com os pés e o braço livre, avançou mar adentro; em breve

saiu daquela treva espessa, tornou-se apenas um ponto luminoso que, de repente,

desaparecera. Ficamos aflitos. Cada vez mais os que não sabiam nadar não davam pausa

ao seu desespero, choravam, gemiam, arrancavam os cabelos. E a maré subia! Subia!

Subia; as águas do mar subiam, e os fachos de luz morriam. De repente, ouvimos um

grito distante:

– Achei a jangada!

Foi um alívio. Aos lábios de todos voltou um sorriso de alegria, houve um

desafogo, até os que choravam criaram novo ânimo, convictos de que o seu terrível

dilema tinha cessado. Mas logo, para destruir toda esperança, veio outro grito:

– Não! Não é; é um tronco boiando.

De novo, e agora mais profunda, a decepção; um desânimo total apoderou-se de

todos nós; naquele momento, pensamos e decidimos morrer todos. Nunca deixaríamos

ali, abandonados, os que estavam fadados a perder a vida sob as águas de maré cheia;

tínhamos determinado. Faríamos, entretanto, o máximo que pudéssemos. Tentaríamos

levá-los, os dois em nossas costas, até a praia, enfrentando aquele mar já encapelado

pela crescente ameaça de próximos aguaceiros, procurando vencer a nado a distância até

a praia; lutando contra as águas da maré cheia e os açoites do vento cada vez mais

constantes e violentos.

As nuvens se espessavam, se escureciam cada vez mais; ameaçava chover dentro

em breve. O jangadeiro não dava mais sinal de vida, os feixes de folhas secas de

bananeira tinham-se esgotado; e a maré subia, subia sempre. A água cobria agora todas

as pedras; estávamos com os pés inteiramente dentro d’água, e em muitos lugares

também as pernas mergulhadas mais de um palmo. O equilíbrio sobre as pedras

tornava-se cada vez mais difícil. Sobre elas, as águas passavam com um movimento

vivo e oscilante, numa dança de avanços e recuos, de giros e rodopios, confirmando que

a maré continuava subindo.

Já estávamos preparados, na escuridão, para lançarmo-nos ao mar e nadarmos,

levando os nossos companheiros em direção à praia, quando uma voz longínqua, quase

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apagada, falou da noite do mar, como uma revelação misteriosa; como uma voz vinda

do além, uma voz distante, vinda do outro lado do mundo, vinda da morte de alguém.

E a voz dizia, ao mesmo tempo que a água subia:

– Achei a jangada! Achei a jangada!

Parecia a voz do jangadeiro, ou a voz de além-túmulo. Estacamos, paramos, a

escutar, não acreditando na realidade daquela voz, que parecia uma ressonância, dentro

de nós mesmos, da outra que já tínhamos ouvido, pronunciando as mesmas palavras; ou

como o canto ilusório de uma sereia:

– Achei a jangada!

Era de fato a jangada que se aproximava: ouvíamos ainda distante, dentro do

clamor das ondas, o seu resvalar sobre a superfície do mar. Com um grito de júbilo,

todos nós o esperamos no escuro, uma vez que não havia mais um facho para acender: o

que o jangadeiro levara consigo tinha se apagado.

Tirei a minha camisa, que estava ainda seca; enrolei-a em torno de um pau que

ainda restava, tirei fósforos e com dificuldade consegui inflamá-la, aliás quase depois de

gastar todos os fósforos; empenhei-me vivamente nesse trabalho, único meio de

indicarmos onde nós estávamos. O pano afinal pegou fogo e se tornou o último archote;

dirigida por essa luz, a jangada encontrada chegou enfim até nós; à sua aproximação,

atiramo-nos os quatro de bruços sobre os seus paus flutuantes.

Abandonamos tudo: os cestos com lagostins e todos os aparelhos de pesca; o

jangadeiro, sem mais nada, impeliu a jangada em direção à praia, com a maré já alta.

O céu continuava enfarruscado. De súbito, sobre nós, começou a cair uma chuva

intensa e pesada: uma chuva cantante, completa, amargurada.

Variações sobre uma vida

No princípio, contra ele sempre aparecia a sombra de uma nuvem; toda vez que

ele abria a janela e olhava para fora, aquela sombra estava à sua espera, e ficava ali

defronte, como que a querer dizer alguma coisa, a lhe contar a revelação de um segredo

que somente ela possuía e a ele é que devia comunicar; a presença daquela sombra o

torturava; de onde teria vindo aquela nuvem acompanhada da sua sombra, o que

desejava saber dele aquela sombra sempre a vigiá-lo, tornando-se uma presença

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importuna e desagradável? Uma presença que a vida lhe amargurava e que só lhe trazia

infelicidade e desgosto! Retirava-se, fechava a janela.

Era a sombra de uma nuvem, menos mesmo que uma nuvem que estava

constantemente à sua espera, do outro lado da rua e que, com uma inexplicável

insistência, o impedia de olhar o céu, de olhar mesmo outras nuvens.

Era a sombra de uma nuvem, um fragmento de noite que ficava durante o dia a

persegui-lo, um fragmento de noite, de uma daquelas noites em que vivia perdido nos

bairros longínquos das cidades onde em seu tempo de moço se divertia; era um

fragmento de sombra noturna.

Quando ele saía, na rua, a sombra o acompanhava; e os objetos que ele desejava,

ou esperava que lhe viessem às mãos, vinham, mas fugiam sentindo próxima a sombra

escura; esta, por sua vez, também sumia de repente, andava por outros lugares; sentia

então um alívio, pensava que da nuvem enfim estava livre; prosseguia, feliz, o seu

passeio pelas ruas da cidade, supondo que não mais a veria; e, subitamente, lá estava a

nuvem de novo, na esquina de uma rua, e mais sombria ainda.

Assim se passaram os dias; às vezes ia para o interior do estado; às vezes viajava

para lugares mais longes e, quando julgava estar livre, observava que a nuvem teimava

em persegui-lo; no hotel, no jardim, nas praças da cidade por onde passava em viagem,

lá estava, a cobrir a sua cabeça, a sombra da nuvem; não sabia dizer como a nuvem

poderia saber da sua ausência, como conseguia encontrá-lo e reconhecê-lo.

No princípio foi uma sombra de nuvem, depois foi uma luz, luz fria, gelada, que

batia na sua cabeça e penetrava no seu pensamento; vinha de longe, através da janela, ao

amanhecer, e feria a sua testa quando estava ainda adormecido; aquilo lhe parecia um

aviso; aquela luz lembrava-lhe uma sonda que penetrava no seu cérebro, numa

especulação angustiada e dolorida...

Aquela luz despertava, na sua lembrança, ideias vagas, imprecisas, imperfeitas,

indeterminadas; era a luz de uma estrela longínqua que se refratava no vidro da janela;

era a luz, talvez, de um fósforo riscado no escuro por mão invisível.

De estrela ou fósforo, a luz procurava penetrar na sua consciência, a descobrir

algum sinal que lá estivesse e que ele próprio não sabia em que consistia; procurava a

lembrança de qualquer ato que ele tivesse praticado e, do qual, não mais se lembrasse. A

luz, como a nuvem que o deixara em paz, também o perseguia; vinha, penetrava no seu

cérebro; e para onde ele ia, ia com a luz no interior da sua cabeça, talvez mesmo do seu

espírito, medindo os seus pensamentos e, às vezes, esses próprios pensamentos

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corrigindo. Certos momentos perdia a memória pela influência da luz no seu cérebro e,

às vezes, era ao contrário, tudo quanto pensava tinha uma acuidade maravilhosa, uma

clareza espontânea e perfeita.

A presença da luz dava-lhe dor de cabeça; uma espécie de enxaqueca,

provocando-lhe tonteiras que a princípio pensava ser qualquer perturbação no labirinto,

mas, consultando um médico, este o convenceu de que os seus ouvidos estavam sãos.

Viveu assim vários meses dominado por essa luz, que possuía qualquer coisa de

magia e de real, qualquer efeito que se fizesse uma obsessão, que o tivesse possuído,

apanhado; pois essa luz, como a sombra da nuvem, era uma espécie de enfermidade que

de súbito o afetou como se fosse uma gripe ou, pior, uma tuberculose; uma doença

curável com apenas um esconjuro; como sucedeu com a nuvem, que desapareceu,

depois que, na praia, tomou por muito tempo um banho de sol.

E agora, como iria ele se livrar da luz? Passar quantos dias na escuridão? E que

escuridão? Se perguntava e refletia: “Se me curei da sombra usando a luz, poderia me

livrar da luz usando uma sombra?” Aqui se lembrou da sombra da nuvem; era preferível

sofrer a presença da nuvem do que a ação dolorida da luz; ficou perplexo, esperando.

Lembrou-se novamente de consultar um médico, mas de que especialidade? Não

acreditava que houvesse uma especialidade médica para essa moléstia, se era mesmo

uma moléstia. Quando não era a sombra ou a luz, era a voz; uma voz lívida, partida, voz

que vibrava dentro dele, repentinamente. Às vezes, andando pela cidade, gostava de

olhar as vitrinas das casas de comércio e, inesperadamente, ouvia a voz interior que o

estrangulava; ficava sufocado, sem saber de onde vinha aquele som incerto que lhe

apertava a garganta, sufocando-o, em lugar tão impróprio e tão à luz do dia; supunha

que estava localizado nas cordas vocais, na sua laringe, ou aninhado no seu ouvido; uma

voz, como a sombra e como a luz, agora o seguia, o impossibilitava de andar, de falar;

prendia-o.

A voz ora era aguda, penetrante, como se ferisse a garganta, e, ferindo-a, fosse

também uma ferida; voz, punhal, ferimento, causa da dor e dor ela mesma; ora era

grave, mole, lânguida, perdida em qualquer parte do corpo ou do pescoço, sem posição

certa; ora quase sem tom, nem som, agia em qualquer parte.

O que mais o afligia, entretanto, eram os intervalos, os momentos de tranquila e

normal consciência de que nada o perturbava, e logo imprevistamente surgia aquele som

sem timbre, sem razão, incompreensível; uma voz que ao mesmo tempo tagarelava,

possuía várias tonalidades, trepidava.

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Às vezes ele meditava assim: “Por que sucedem esses fatos comigo? Por que

essa invasão odienta contra mim, para que serve o ódio? Nós estamos aqui, neste

mundo, de passagem; pode ser que tenhamos vindo do nada ou da eternidade, isto é, no

espaço onde estivemos antes de nascer nada exista ou tudo exista para sempre; entre o

nada e a eternidade não há transição ou passagem; entre o que nada existe e a existência

total o que existe é uma sequência de nada, uma travessia consciente, homo-existente.

Essa voz que me persegue, o que será dessa consciência? A sua verdade? A sua

abstração? Que parte dela revela esse monólogo sonoro que me atormenta? Monólogo

ou diálogo (se é diálogo) é uma conversa, através de mim, entre dois mundos – o

anterior e o posterior a nós? E Deus, que parte tem nessa entonação que extrapola de

mim mesmo para o Antes e o Depois? A vida é um não ser perene? Isso pode ser uma

prova de um não ser divino?”

Essa meditativa especulação ainda mais o confundia porque lhe dava margem a

divagações incertas e inexatas, fazia-o penetrar em minúcias sobre as sonoridades

daquela voz; chegava assim a uma fonologia sui generis, que até então poucas pessoas

teriam sentido ou alcançado: uma fonologia que especulava sobre a qualidade e a

intensidade da voz, desde o soprano ligeiro ao baixo profundo; essa gama da voz

humana que era pura, e não aquela perturbadora e ofensiva, uma vez que era sempre

imprevista e até, às vezes, raiando o campo dos ruídos tenebrosos e doentios. Chegou a

consultar um foniatra, que nada pôde fazer por ele, uma vez que a voz apenas o visitava,

não era sua; chegou a consultar numa escola de linguagem um quimógrafo, mas, do

mesmo modo por que as indicações oferecidas pelo instrumento não tinham um sentido

certo, apareciam mais confusas do que se se tratasse de ruídos; os diagramas daquela

voz, ou vozes, eram mais loucos do que os dos mais absurdos ruídos: eram explosivos e

implosivos como os dos rumores vertiginosos de uma catástrofe.

Por fim passou um certo tempo mais aliviado, passou um certo tempo mais

tranquilo, quando novamente lhe surgiu, de maneira inexprimível, uma sensação de um

vento perfumado, mas, de perfume, só de vez em quando, pois que um pequeno vento

lhe trazia, muitas vezes, um cheiro fétido; pensou, de antemão, que era um fenômeno

passageiro, não ligou muita importância, já que esses perfumes e maus cheiros são

frequentes por toda parte, são como expressões de bom ou mau agouro; com o andar

dos tempos compreendeu que havia uma ordem no seu aparecimento; sentia-se agora

ofendido por um cheiro, que poderia ser perfumado ou malcheiroso; chegou mesmo a

observar que havia várias gradações desse cheiro; havia perfumes que, a princípio, eram

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agradáveis ao olfato e logo depois provocavam uma repulsa pelo acentuado tom que às

vezes atingiam.

Esse cheiro lhe veio de repente, ao passar junto de um cano de esgoto ou de uma

sarjeta, não se lembrava muito bem. Achou natural aquele mau cheiro, numa cidade em

confusão, cheia de buracos, onde as ruas não mais eram lavadas; notou também que esse

mau cheiro lhe veio confundido com um forte perfume que trazia uma senhora que

passava na ocasião pelo local. Daí a confusão entre os cheiros, o mau e o perfumado. O

que o surpreendeu, porém, foi, ao chegar a casa, os dois, confusamente, não o

abandonavam; começou, uma vez que desde o primeiro dia havia uma ordem no seu

aparecimento, começou, disse, a desconfiar ser esta mais uma forma da moléstia de que

fora acometido, como as outras três, de que, felizmente, já se livrara; neste caso seria

uma enfermidade de que deveria estar atacada toda a população, uma espécie de

epidemia, permanente e insolúvel; uma verdadeira peste de mau cheiro, embora com

certos efeitos perfumados.

Da perturbação que antes dessa o dominou, provocada por uma voz violenta e

extravagante, salvou-o, sem que ele esperasse, um sonho; um sonho em que ele,

dormindo, se sentiu estrangulado por duas grandes mãos, duas mãos poderosas, como as

de um carrasco. Ao acordar, impressionado, contrariado, lembrou-se daquela voz que

lhe afogava frequentemente a garganta; desde esse sonho sentiu-se inteiramente sarado

da doença que a voz lhe dera.

Por fim, passou um certo tempo quase aliviado dessas perturbações doentias,

estava por fim se sentindo bem, chegou a supor que dessa vez não mais lhe viria

qualquer constrangimento, já estava idoso e convicto de que todos esses imprevistos que

lhe sucederam lhe vinham de uma alucinação que, com a idade, foi aos poucos se

desfazendo. Estava convencido de que esses acontecimentos eram simples moléstias

para as quais o remédio era sempre inesperado e de natureza a mais exótica que se possa

pensar.

Estava assim tranquilo.

Passaram-se vários anos. Já estava convencido de que tinha sarado daquela

alucinação que por tanto tempo o atormentava. Estava idoso, mas recuperado, sentindo-

se bem no corpo e na alma, fazia projetos ousados, participava das distrações em países

distantes e em viagens penosas; na própria cidade onde morava tinha um programa de

visitas aos amigos e conhecidos que o deixava esfalfado antes da noite.

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Passaram-se vários anos e, para ele, se encontrava completamente sanado

daquela neurose, quando, uma vez, depois de passar a noite numa boate localizada em

rua escura e estreita, sentiu, inesperadamente, um pouco de vento vibrar sobre a sua

cabeça; fazia-lhe mal, dava-lhe um desgosto, uma angústia, julgou ser mesmo um vento,

àquela hora da noite, através da rua estreita, um vento encanado, que lhe fazia doer

todos os membros. Caminhou serenamente, alcançou um táxi, regressou a casa; entrou,

foi para o seu quarto de dormir, notou, porém, que o vento não cessava; dentro do seu

quarto todo fechado continuava a soprar um vento encanado como sucedia na rua onde

se achava a boate; disso lhe veio a pensar nos outros acontecimentos congêneres que

tanto o molestaram passados já tantos anos; o vento batia, soprava nos seus ouvidos,

num batimento apressado repetido que o entontecia.

Não pôde dormir, sentiu no ouvido o sopro do vento como se o seu crânio fosse

uma bola que alguém invisível quisesse encher de ar e depois arremessá-la para cima,

jogá-la no teto e apará-la embaixo novamente.

Também pensou que aquele sopro fazia parte de uma atmosfera que se criara ali

dentro, atmosfera trazida por ele da rua escura e enoitecida, da rua estreita onde se

achava a boate que ele tinha frequentado e atraído sobre si aquele vento exótico e

noturno.

Agora, tarde da noite, estava convencido de que a sua doença, a sua neurose,

voltara, depois de tantos anos. Que fazer? Como iria proceder para se libertar da

doença? Depois de tanto tempo perdera a experiência em procurar meios e motivos que

fossem capazes de corrigir o seu mal.

Há seis dias que o vento assobiava no seu ouvido como o mistral assobia no sul

da França, como, nos pampas do Rio Grande, assobia o minuano: como essa ventania

pudera, tão forte e violenta, se esconder num beco quase sem saída, que era onde estava

a boate?

Isso era uma impertinência; parecia-lhe impossível ficar de novo bom e

saudável; certamente desse acesso não escaparia; aquele ar ventoso tirara-lhe a audição,

lhe apagara a memória; com pessoa alguma podia mais conversar; sentia-se só, desolado

e só, quase morto.

Pôde, no entanto, fazendo grande esforço, sair de casa e ir para pedir conselhos a

um amigo; este em nada pôde lhe ajudar; voltou para casa transido de frio, quase certo

de que iria morrer dentro de poucos dias.

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Recolheu-se a casa e não mais saiu; com o tempo, o vento que soprava no seu

ouvido começou a amainar; sentiu uma leve esperança, um ligeiro alívio, adormecia

mais ou menos tranquilo; sentia-se quase como dopado; dormia de uma maneira

cansada, dando a impressão de que caminhava léguas em vez de dormir. Esse cansaço

fez parar o vento, mas prostrou-o no leito de maneira fatal e última; deitado e fatigado,

deitado e doído, não mais se levantaria.

Foi quando começou a sentir, no corpo, várias dores: obtusas e agudas, lentas e

instantâneas; um conjunto de dores invadiu o seu corpo; ele percebeu naquele conjunto

como que uma orquestração de grandes e pequenas dores; cada uma tinha um fundo

dolorido e sonoro, seguia uma escala dolorosa: umas eram dores constantes e

espalhadas por todo o corpo, e iam, aos poucos, diminuindo; havia as pequenas dores

superficiais, às vezes uma só, isoladamente, atuava fria e funda num lugar e fazia

repercutir em outro ponto do corpo; algumas propriamente não doíam, apenas pesavam;

umas que raspavam nas costelas, outras que mordiam nos seus músculos, outras que

escorriam no seu sangue; umas eram como se apertassem, como se partissem ou

fizessem furos muito finos.

Era uma afluência de dores; todo o seu corpo se transformou em dores puras,

sutis, devorantes; foram, aos poucos, comendo-o.

Até que um dia, um amigo, visitando-o, nada mais viu do seu corpo e da sua

alma; nele somente existiam dores e foram ainda essas dores levadas com ele ao

cemitério.

Foi difícil ao médico dar o atestado de óbito, pois o doente morrera asfixiado,

sufocado, afogado num mar de dores, e morreu antes mesmo que elas terminassem.

Como um náufrago morrera, como um náufrago em torno de quem as águas ondulam, e

que, mesmo depois de morto, as águas do mar, navegando, continuam.

Em busca do Marco das Balanças

A ordem daquela noite era partir na manhã do dia seguinte, com a rede no arção

da sela, em busca do Marco das Balanças. Por que das Balanças? E por que sair com

rede no arção da sela? Para dormir aonde chegasse ao anoitecer? Não compreendi até

hoje.

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Na manhã do dia seguinte, equipado de acordo com as instruções da véspera, eu

e Neco – pois nessa altura já trabalhava sob proteção de um guarda-costas – partimos,

não sabíamos muito bem a que destino, mas partimos. Por uma intuição que me veio –

nada sabendo ao certo – deliberei que tomássemos a orientação da pequena colina, ao

norte, onde foi construído um forte, há muitos anos, creio que na guerra contra os

holandeses, e onde se viam ainda, lançados no chão, alguns canhões antigos.

Íamos assim, como D. Quixote e Sancho Pança; eu, magro e alto, e Neco,

homem baixo, atarracado e forte, que usava chapéu de couro e alpercatas, roupa branca,

de algodãozinho, e curtas a blusa e as calças; íamos assim, à procura, não de moinhos de

vento, nem em defesa de donzelas perseguidas, nem a salvar vidas ofendidas, mas à

procura de um marco que se chamava das Balanças.

Que equilíbrio se arranjaria entre os pratos dessa balança? Diziam Balanças

porque o marco era por si mesmo oscilante, indicando direções diversas? Se assim era,

talvez fosse designação exata, uma vez que, naquelas terras, os marcos eram muito

inseguros, oscilavam de acordo com a vontade dos grileiros.

Marco das Balanças! Balanças que vibravam como instrumentos musicais e os

seus sons repercutiam ao longo de laranjeiras e cajueiros. Marco talvez aquele que ficou

perdido num atoleiro e nunca mais se soube dele – misteriosamente afundado num

tremedal que corre além do aldeamento de São Francisco.

Que relação haveria entre esse marco, há tanto tempo perdido, e este outro do

qual íamos à procura e nos foi indicado como pertencendo à primeira demarcação das

terras devolutas do estado onde moravam os caboclos de São Francisco?

Como não houve outra indicação do que aquela de um marco muito antigo num

tremedal, era para lá que nos dirigíamos como D. Quixote e Sancho Pança, ao longo dos

caminhos. Chegamos primeiramente ao sítio de Seu Gregório, onde comemos tapioca e

chupamos laranjas e continuamos na mesma orientação seguinte, tão imprecisa e tão

incerta como era incerta e imprecisa a existência de um Marco das Balanças.

Esse lodaçal do qual íamos à procura, onde estaria um marco que se perdera

definitivamente, era um local muito vagamente indicado, como ficando por trás de

grandes moitas de espinheiros selvagens, um lugar do qual nunca se dava uma posição

certa, e, sim, sempre envolto em aventuras e ilusões. Com todas as coisas veladas que

surgiam quando se falava nesse tremedal, estava sempre presente a alusão a um marco

misterioso que se teria perdido por efeitos de magia. Era desse misterioso marco que

provinha a designação Marco das Balanças? A única relação que havia entre os dois era

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que ambos estavam atolados no tremedal; em épocas diversas, certamente. Que história

poderia ligá-los não se conhece, história que talvez explicasse a designação estranha

daquele de que estávamos à procura.

Devia haver, no povoado da Baía, ou de Mataracá, ou mesmo no aldeamento de

São Francisco, alguém bastante velho, mas ainda guardando a recordação da primeira

demarcação, que poderia desfazer toda a injunção e para quem tudo era fácil de

explicar.

Não seria melhor procurar esse alguém, informante eficaz e prestimoso, que tudo

podia elucidar, antes de começarmos a busca súbita e sem razão que, por ordem

superior, encetamos essa manhã? Que resultado poderíamos obter de tão insensata

procura?

Enfim, já tínhamos atravessado vários tabuleiros, seguindo à toa por aquelas

regiões de vegetação rala, mas bem próximos, sentíamos, de uma outra mais densa,

mais difícil de penetrar, que contornava, talvez, o tremedal misterioso. Chegamos,

inesperadamente, à margem de um capão de mato, já meio destruído, vendo-se dele

apenas algumas árvores, uma delas, porventura uma oiticica, ficava à beira da estrada

deserta, que sua sombra totalmente cobria; pela posição da sombra era mais de meio-

dia, uma hora da tarde, talvez.

Resolvemos parar e desmontamos, eu e Neco, dos nossos cavalos e nos

sentamos à sombra da árvore como se tivesse chegado o nosso almoço, cujo

aparecimento era bastante problemático porque ninguém sabia por onde andávamos, e

não poderíamos recebê-lo nem da Baía, nem do aldeamento dos caboclos; teríamos sido

encantados pelo Marco das Balanças; encantados, perdidos ou abandonados;

esperávamos, pelo menos esperávamos os nossos ajudantes, que vinham a pé em nosso

encalço, e que iam demorar; no entanto, depois de curta espera, ei-los que aparecem

numa curva do caminho, conduzindo o teodolito, as balizas e as foices; aproximaram-se

de nós, debaixo da sombra da árvore e sentaram-se muito fatigados.

Perguntei-lhes sobre o que traziam para almoçar, mostraram-me os seus

pequenos sacos, cheios de farinha seca, conjuntamente com alguns voadores e pequenos

pedaços de carne do Ceará; concordaram em dividir conosco todo aquele lauto almoço.

Neco arranjou os meios para preparar a comida de modo aceitável: colocou no

meio da estrada deserta, coberta de sombra, três pedras; entre elas fez um fogo. De um

galho de mato preparou um espeto, e, estendido no chão, foi assando um por um,

seguros pelo espeto, os voadores e os pedaços de carne do Ceará.

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Depois de tudo assado na brasa ou no fogo, em folhas de papel como pratos,

Neco procedeu à distribuição daquele parco almoço.

Depois de nos alimentar, ali, em contato com os trabalhadores tentei obter deles

quaisquer informações sobre uma possível verdade, ou mesmo uma lenda que

envolvesse a aliança entre o marco mágico e o das Balanças, mas foi em vão, ninguém

ali tinha a menor noção de qualquer desses dois marcos. Um deles chegou, entretanto, a

aludir a um outro que ele teria visto atolado na lama, mas não se lembrava mais em que

lugar.

O Marco das Balanças, como o outro, o que faz parte de uma lenda que também

ninguém conhece, estariam ambos envolvidos em velhas lendas de marcos perdidos em

matagais encharcados, em regiões alagadas, pantanosas, mais difíceis de penetrar do que

na lama dos mangues, esta sendo, de qualquer modo, mais acessível, nela sendo

possível apanhar caranguejos.

Eram lendas, certamente muito remotas, ligando a vida de um proprietário de

terra e grileiro em contato com os seus vizinhos, uma verdadeira luta com ladrões de

terras, que, na impossibilidade de volver de outro modo, um deles atirou um dos marcos

num pântano, para que não fosse mais possível encontrá-lo, assim ficando para sempre

indecisa a linha limítrofe das propriedades; e por que Balanças? Balanças. Talvez tenha

sido apenas a Balança em que se teriam pesado as virtudes e a honestidade do grileiro,

que ficou vivo quando o seu inimigo foi encontrado morto no pantanal, abraçado ao

marco ali atirado; era ainda história romântica, uma história do tempo em que se

pesavam as suas virtudes com uma balança e a sua verdade se garantia com um fio da

barba.

Uma outra história poderia ser também relativamente admitida, história

inventada por algum contador de histórias, como naquela época existia na Baía e outras

localidades: uma lenda também poderia ter sido forjada por algum pajé ou mágico dos

aldeamentos caboclos, tendo assim a sua origem na tradição indígena. Esta versão talvez

seja a mais razoável, pois ainda ali se notava a influência índia em certos nomes de

pássaros e de peixes, como aparecem nas emboladas cantadas em dias de festa.

Fui, de repente, surpreendido, despertado, pela voz de Neco, que me chamou a

atenção: já estava entardecendo.

– Seu doutor, o sol está descambando.

Realmente, já eram mais de duas horas da tarde. Duas horas da tarde: a luz

daquela hora já anunciava tudo, anunciava o ar, anunciava os caminhos; era hora de

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voltar se quiséssemos chegar antes do jantar. Era a hora de voltar; era bom voltar. Mas,

pensei, que direi eu na volta, eu que não consegui encontrar o Marco das Balanças, não

consegui, mesmo, desvendar o seu mistério, não sabia bem que magia me tomava, me

confundia.

Duas horas! Duas e meia da tarde!

O jeito era mesmo regressar... Comuniquei aos trabalhadores que podiam voltar

à Baía, não era mais possível, naquele dia, pensar em encontrar o marco que nos foi

indicado. Duas e meia, três horas da tarde!

A luz já estava branda, macia, dourada, como é costume estar a luz às três horas

da tarde, no Nordeste; voltamos pelo mesmo caminho, tornamos a comer tapiocas e a

chupar laranjas no sítio de Seu Gregório, e, pela mesma estrada por onde viemos,

voltávamos com destino à Baía da Traição.

Eu vinha na frente como um D. Quixote, e atrás de mim vinha Neco, o meu

guarda-costas: vinha aboiando; um aboio triste, naquela tarde já se desmanchando num

belo crepúsculo, por detrás do alto cemitério de São Miguel. Neco cantava e eu sonhava

com o Marco das Balanças; naquele momento, para mim, esse marco misterioso era

Julieta, a morena que tinha sempre nos olhos um pouco de noite e de chuva, um pouco

de sombra e de saudade... Julieta, que passava o dia namorando, debruçada na janela de

uma casa no Zumbi, terra que foi o país onde nasci, na Estrada Nova de Caxangá,

ocupação a que tinha direito por ser muito bonita.

O Marco das Balanças era Julieta, que não sabia bem a quem escolher e em

dúvida ficava, porque todos a queriam; e por isso deixou perdida na várzea do

Capibaribe, até aquele dia, a luz do seu olhar, o símbolo do seu sorriso, a doçura de sua

voz...

Julieta... a de olhos molhados de chuva noturna, a de voz dolorida de aguaceiros

n’água parada de um pântano perdido que eu mesmo não sabia onde estava, naquele

dia... naquele dia:

Julieta era o Marco das Balanças!

Ou era Ester?

A que pela primeira vez vi sorrindo num trem que partia para Jaboatão; quando a

vi trazia um vestido carmesim, com uma blusa de rendas brancas cobertas por um

bolero da mesma cor do vestido.

Ester, que vi naquele trem, na manhã dos meus quatorze anos e que recordava

ali, naquele instante do meu dia de vinte e dois anos. Ester: o Marco das Balanças: a

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graça do seu sorriso, a harmonia do seu corpo àquela hora já desfeita ou já deformada

pela angústia do tempo que não para.

Ester estudava para professora: era normalista e todo dia viajava naquele trem de

uma hora e vinte minutos, sempre acompanhada por uma colega, sua amiga e

certamente sua vizinha. Ester tinha qualquer coisa em si ligada a um mistério, pois

tinha, além de mim, muitos outros admiradores: o meu amigo Antenor, o meu colega

Oliveira e ainda um outro que chegou a se apaixonar e a ela se declarou, não sendo

aceito. Com os seus encantos femininos, ela era objeto, assunto de histórias e

comentários dos passageiros do trem, que lhe atribuíam um namorado de pouco

merecimento para ela.

Tinha oscilações assim na sua vida, tinha consigo qualquer coisa de

desconhecido como as balanças do marco que não encontrei.

Talvez esse marco oculto e velado não fosse nem Ester, nem Julieta, era talvez

Tereza. Tereza, a que tinha deixado no Recife, onde era a minha amante, que àquela

hora me esperava em vão nas noites de brincadeira na feira do Bacurau, onde com ela

comia sarapatel e bebia cerveja; Tereza, a que tinha o corpo macio, mulher de vida

airada, professora de amor, a que tinha o corpo como um pêndulo, marcando as horas da

noite na Pensão Bohemia. Tereza era a mulher que àquela hora me esperava em vão

como esperei encontrar, descobrir, o Marco das Balanças. Tereza media as horas da

noite como o pêndulo de um relógio, como os pratos de uma balança.

Tereza está, apesar de tudo, à minha espera, à minha procura e é possível que

acabe me encontrando, que acabe desvendando o meu esconderijo, descobrindo a minha

verdade: no dia em que eu voltar de um regresso mais longo.

Agora chego a pensar; para Tereza, se tivesse conhecido as ilusões em torno

desses marcos, tudo se inverteria.

– Para ela sou eu mesmo o Marco das Balanças!

Vamos chegando à vila, a vila onde não se come carne, somente se tem como

comida o peixe fresco quando as jangadas saem em dias de sol; ou nos dias de chuvas,

na impossibilidade de pescarias, comia-se bagre com azeite fabricado com as frutas do

batiputá.

Entramos na vila da Baía da Traição, chegamos à porta de casa, justamente à

hora do jantar, que era de peixe fresco; logo o nosso jantar não seria mais de voadores

ressequidos, seria talvez de peixe cozido, recém-pescado: um galo-do-alto recém-

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trazido do alto-mar por uma jangada recém-chegada, uma jangada, das últimas que

entraram na tarde da Baía.