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Biblioteca Digital Revista de Direito Administrativo e Constitucional - RDAC, Belo Horizonte, ano 10, n. 39, jan. 2010

O princpio da pessoalidade da pena, a incorporao societria e o Direito Administrativo Sancionador Jos Luciano Jost de Moraes Resumo: O presente artigo analisa as particularidades que envolvem a aplicao da sano pecuniria quando a pessoa jurdica apontada como responsvel pela conduta infracional vem a ser incorporada por outra sociedade. Nesse contexto, o trabalho examina se o princpio da pessoalidade da pena e o art. 107, I, do Cdigo Penal inviabilizariam o processo administrativo punitivo contra a incorporadora. Com tal propsito, investigam-se as bases histricas do princpio em questo, bem como a sua relao com as pessoas jurdicas e, ainda, os seus reflexos sobre a incorporao societria e sobre a pena de multa. Palavras-chave: Princpio da pessoalidade da pena. Incorporao societria. Direito administrativo punitivo. Sano pecuniria. Sumrio: 1 Introduo - 2 O princpio da pessoalidade da pena - 3 A utilizao analgica do art. 107, I, do Cdigo Penal - 4 Concluso - Referncias

1 Introduo O Direito Administrativo Sancionador representa importante segmento do ordenamento jurdico, na medida em que orienta o exerccio do poder punitivo do Estado e a relao deste com o particular no mbito do processo administrativo. A disciplina, todavia, no desfruta de uma legislao especfica, razo pela qual a doutrina se vale de princpios e regras penais como fontes norteadoras para a soluo de casos concretos. Entretanto, tal afirmao no significa admitir que a transposio de institutos penais para o Direito Administrativo Punitivo possa ser feita de modo automtico, como se estivesse diante de um mesmo ramo do direito. Ao revs, tal operao demanda a anlise da situao ftica para que se precise, no preceito a ser transportado, a intensidade e o limite da sua incidncia. Alis, corrente na literatura jurdica a ideia da inexistncia de um nico direito punitivo, haja vista que o Direito Penal e o Administrativo Sancionador reagem de maneira prpria influncia dos princpios constitucionais que os orientam. Confira-se, por oportuno, o esclio de Fbio Medina Osrio:1

possvel, sem dvida, falar-se em um direito constitucional limitador do ius puniendi do Estado. Nesse sentido, o direito constitucional limita, a um s tempo, qualquer exerccio de pretenso punitiva, inclusive as sanes privadas, alcanando, portanto, a pretenso punitiva dos particulares. Por essa ampla perspectiva no razovel, todavia, por mais paradoxal que parea, tratar de um unitrio ius puniendi estatal, dado que os princpios constitucionais, quando incidem em relaes penais ou de Direito Administrativo, revelam-se distintos, ainda que nominalmente idnticos. De fato, h que se reconhecer que esses supostos princpios gerais do direito pblico estatal punitivo - que na verdade seriam melhor denominados "princpios constitucionais" -, quando concretizados, resultam diferenciados, distintos, com contornos prprios e especficos, ainda que subsista uma origem comum, que , singelamente, a Constituio.

Percebe-se, por consequncia, que tanto o Direito Administrativo Sancionador quanto o Penal sofrem o influxo de princpios constitucionais maiores que limitam o poder punitivo estatal. Desta forma, no se pode falar em subservincia do Direito Administrativo Sancionador ao Direito Penal ou que aquele

deva ser conduzido por este, mas sim adotar o entendimento de que eles se posicionam lado a lado, possuindo igual hierarquia. Inspirado nessas consideraes, cumpre analisar, luz do princpio da pessoalidade da pena, a especificidade da aplicao da sano pecuniria no mbito administrativo punitivo, quando a sociedade acusada incorporada por outra pessoa jurdica. Isso porque a incorporao de sociedade annima possui sua regulamentao traada pela Lei n 6.404, de 15 de dezembro de 1976, cujo art. 227, 3 prescreve que tal operao acarretar a extino da sociedade incorporada, comando presente tambm no art. 219, II, do mesmo diploma. Por outro lado, o art. 5, XLV, da Constituio Federal positiva o princpio da pessoalidade da pena (princpio tambm conhecido como da intranscendncia ou da incontagiabilidade), por meio do qual nenhuma pena passar da pessoa do condenado. Supletivamente, o art. 107, I, do Cdigo Penal determina que a morte do agente extingue a punibilidade. Nesse contexto, surge o questionamento quanto legitimidade do Estado exercer o ius puniendi no campo do Direito Administrativo Sancionador, nos casos em que a pessoa jurdica apontada como autora da conduta infracional vem a ser incorporada por outra sociedade, sob o argumento de estar2 se violando o princpio da pessoalidade da pena.

2 O princpio da pessoalidade da pena a) Consideraes gerais Dispe o art. 5, XLV, da Constituio Federal:

Art. 5 Todos so iguais perante a lei,do condenado, podendo a obrigao de reparar o dano e a decretao do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, at o limite do valor do patrimnio transferido;

O contedo do dispositivo intuitivo: busca garantir que a pena no passe da pessoa do condenado, evitando, assim, que, uma vez imposta ao ru ou, na impossibilidade de comin-la ao infrator, seja ela transmitida ou suportada por terceiros. O inciso concretiza o princpio da pessoalidade ou da intranscendncia da pena de tradio histrica no nosso ordenamento jurdico, eis que aqui se faz presente desde a Constituio do Imprio de 1824, no art. 179, inciso XX. Sobre o tema, calha trazer 3 baila o magistrio de Jos Cretella Jnior:

A pena pessoal, individuada, intransfervel, adstrita pessoa do delinqente. Mors omnia solvit. A morte rompe todos os vnculos. Na poca do Brasil Colnia, a pena transmitia-se aos parentes do ru, como aconteceu com Tiradentes, condenado morte e pena de infmia, incidindo esta sobre os descendentes at a quarta gerao. Proclamada a Independncia, a Carta Poltica do Imprio do Brasil de 1824, art. 179, 20, firmou a regra da intransmissibilidade ou no-ultrapassagem da pena, pela qual a sano se fixa na pessoa do delinqente e a nota de infmia do ru no se transmite aos parentes em qualquer grau que seja, cabendo lei a regulamentao da individuao (e no individualizao) da pena. Julgado e condenado, toda e qualquer sano moral, patrimonial ou privativa de liberdade aplicada ao condenado pontual, "individuando-se", particularizando-se, petrificando-se, limitando-se ao acusado. Morto este, a pena desaparece. A morte do condenado rompe o vnculo jurdico entre o Estado-condenador e o morto-ru. A famlia, quanto aos descendentes, ascendentes e colaterais, no fica sob a incidncia da pena, exaurida para sempre com a morte do ru.

A citao colacionada enuncia de forma clara a origem do princpio, evidenciando a intrnseca relao entre ele e a pessoa fsica. Com efeito, o texto de Cretella remete-nos poca do Brasil Colnia, em que a pena de infmia imposta a Tiradentes se estendia aos seus descendentes, fato que potencializou a constitucionalizao do princpio. Nessa esteira, interessante destacar a doutrina de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, que, de forma objetiva, analisam a aplicao do princpio 4 em referncia no contexto atual:

O contedo, pois, da personalizao da pena, ou, se tambm quisermos, princpio da pessoalidade, tem o seguinte teor: em primeiro lugar, a proibio da transmisso da pena para familiares, parentes ou terceiros; em segundo lugar, como corolrio, de resto, da vedao anterior, a extino da pena e do procedimento criminal com a morte do agente.

Por outro lado, cedio que os direitos e garantias fundamentais tm seu campo de aplicao expandido para alcanar tambm as pessoas jurdicas,5 desde que haja a adequao dos princpios fundamentais realidade desses entes. A este respeito, lecionam Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, in verbis:6

No h, em princpio, impedimento insupervel a que pessoas jurdicas venham, tambm, a ser consideradas titulares de direitos fundamentais, no obstante estes, originalmente, terem por referncia a pessoa fsica. Acha-se superada a doutrina de que os direitos fundamentais se dirigem apenas s pessoas humanas. Os direitos fundamentais suscetveis, por sua natureza, de serem exercidos por pessoas jurdicas podem t-las por titular. (...) Garantias, porm, que dizem respeito priso (e.g., art. 5, LXI) tm as pessoas fsicas como destinatrias exclusivas.

Verifica-se, assim, que a pessoa jurdica no destinatria de todos os direitos fundamentais, mas somente daqueles cuja violao venha a prejudicar a execuo da sua finalidade institucional. Ou seja, sobressair claro o direito invocao da proteo constitucional sempre que ele se conectar 7 com o exerccio da atividade econmica da pessoa jurdica, o que sobreleva a importncia do seu objeto social para fins de averiguao do direito fundamental cabvel. Ainda sobre o tema, vlido mencionar a orientao de Cezar Roberto Bitencourt, que, ao abordar a possibilidade de pessoas jurdicas praticarem crimes, alude doutrina referente a um novo direito situado entre o Penal e o Administrativo, cujas garantias aplicadas a tais pessoas devem ser mais 8 brandas do que aquelas do Direito Criminal. Confira-se:

Sem endossar a nova doutrina do Direito Penal funcional, mas reconhecendo a necessidade de um combate mais eficaz em relao criminalidade moderna, Hassmer sugere a criao de um novo Direito, ao qual denomina Direito de Interveno, que seria um meio-termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que no aplique as pesadas sanes de Direito Penal, especialmente a pena privativa de liberdade, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional.

Da narrao exposta, tem-se que o estudo do princpio da pessoalidade da pena possui a sua construo historicamente voltada para o ser humano, tendo a doutrina e a jurisprudncia traado suas lies influenciadas por tal concepo. Portanto, as concluses desse estudo no devem ser generosamente aplicadas s pessoas jurdicas, mormente quando se observa que o regime jurdico dos direitos fundamentais relacionados a esses entes consubstancia um tema cuja compreenso ainda no se mostra to bem definida como o estudo da relao do ser humano e seus direitos fundamentais.

b) O princpio da pessoalidade da pena e as pessoas jurdicas O princpio da pessoalidade da pena, cujo campo de incidncia facilmente assimilado no Direito Penal aplicado s pessoas naturais, encontra certa dificuldade de compreenso quando transportado para a seara das pessoas jurdicas. Isso porque o dispositivo constitucional em questo tem por finalidade, ainda que no exclusiva, apenar a conduta do autor, praticada a ttulo de dolo ou culpa, afastando, portanto, a responsabilizao objetiva. Nesse sentido, assevera a doutrina ser "certo, por outro lado, que do disposto no art. 5, XLV, da Constituio decorre tambm que a responsabilidade penal de que se cuida responsabilidade subjetiva ou responsabilidade que se assenta na culpa."9

Ou seja, o princpio da incontagiabilidade da pena visa a assegurar que somente aquele que cometeu 10 a conduta culpvel seja responsabilizado. "Disso decorre ser a culpabilidade inerente ao princpio da pessoalidade da pena, no devendo ningum se sujeitar imposio de uma sano sem que 11 para o ilcito tenha concorrido com dolo ou culpa", o que pressupe a existncia de vontade e conscincia da ilicitude da conduta, eis que, "sem esses dois elementos - conscincia e vontade -, exclusivos da pessoa natural, impossvel falar, tecnicamente, em ao, que o primeiro elemento estrutural do crime. A menos que se pretenda destruir o Direito Penal e partir, assumidamente, para a responsabilizao objetiva".12 Logo, a despeito de consideraes sobre a possibilidade de pessoas jurdicas praticarem ou no conduta criminosa,13 percebe-se, no Direito Criminal, que a culpabilidade desses entes no similar das pessoas fsicas, tal como ensina Gianpaolo Smanio, para quem "o Direito Penal tradicional traz conceitos dogmticos incompatveis com a responsabilizao penal da pessoa jurdica. As noes de conduta e de culpabilidade so formuladas de acordo com a pessoa humana, sendo imprprias para as pessoas jurdicas. O Direito Penal clssico feito com a viso individualista, herdada do Iluminismo, como uma limitao ao poder do Estado."14 A concluso se aplica ao Direito Administrativo Sancionador, eis que, tambm nesta seara, a culpabilidade do ser humano no se equipara culpabilidade das pessoas jurdicas. Com efeito, Fbio Medina Osrio, aps consignar ser necessria a avaliao da culpabilidade da pessoa fsica no domnio administrativo punitivo, expresso em afirmar que a culpabilidade no uma exigncia que alcana o ente coletivo:

No plano do Direito Administrativo Sancionador, pode-se dizer que a culpabilidade uma exigncia genrica, de carter constitucional, que limita o Estado na imposio de sanes a pessoas fsicas. No se trata de exigncia que alcance tambm as pessoas jurdicas.15 (...) O Direito Administrativo Sancionador no possui, portanto, um regime jurdico unitrio para pessoas fsicas e jurdicas, porque h uma clara ruptura dessa suposta unidade no requisito da 16 culpabilidade.

Nessa esteira, o mesmo autor sustenta que a responsabilidade das pessoas jurdicas se mostra incompatvel com "a culpabilidade, pessoalidade da pena, exigncias de dolo ou culpa, e mesmo individualizao da sano". Confira-se:17

A pessoa jurdica, dotada de personalidade criada pelo direito, no possui, naturalmente, vontade ou conscincia, circunstncia que lhe afasta do alcance da culpabilidade, pessoalidade da pena, exigncias de dolo ou culpa, e mesmo individualizao da sano. Tais princpios resultam ligados a uma especfica capacidade humana de obrar, tendo por pressupostos atributos exclusivamente humanos. Somente o homem pode evitar comportamentos proibidos atravs da conscincia e da vontade. As pessoas jurdicas, por seu carter fictcio, atuam sob o domnio dos homens, em geral de uma pluralidade de vontades, sendo que, em si mesmas, no esto dotadas desses atributos humanos. To bvia essa afirmao que, em realidade, dispensa maiores comentrios.

Por outro lado, a culpabilidade do Direito Administrativo Sancionador tambm no se equipara culpabilidade do Direito Penal, que se vale de garantias mais rigorosas que o Direito Administrativo e, ao contrrio deste, adota como regra a punio de condutas dolosas e s excepcionalmente admite a modalidade culposa. Assim, assiste razo a Fbio Medina Osrio quando afirma que:18

Lembre-se de que a culpa tem especial importncia no Direito Administrativo Sancionador, porque possvel uma ampla utilizao das figuras culposas. O ilcito culposo tem larga utilizao prtica. No vigora o princpio da excepcionalidade do ilcito culposo. Depende de uma deliberao legislativa ou da prpria redao do tipo sancionador a constatao se h, ou no, a exigncia

de uma subjetividade dolosa ou culposa. O silncio legislativo h de ser interpretado em seu devido contexto, podendo haver, inclusive, uma admisso implcita de uma modalidade culposa de ilcito. (...) O recurso idia de culpa bastante comum no Direito Administrativo Sancionador e resulta conectado vigncia de importantes princpios constitucionais, como a moralidade e a eficcia administrativas.

No mesmo sentido caminha a doutrina de Marcelo Madureira Prates:19

Para a Administrao, a repercusso de um descumprimento doloso prxima, se no igual, quela que se observa em face de um ilcito culposo, pois o que importa em primeiro lugar o dano causado de forma injustificvel ordem administrativa, organizao pretendida em determinado setor administrativo para equilibrar os diversos interesses em causa, independentemente da vontade manifestada pelo infrator, que, nesse sentido, acaba por ser indiferente. Tudo isso ocorre basicamente porque falta ao administrativamente ilcita a mesma ressonncia tico-social que permeia a conduta criminosa, ressonncia essa a impor com maior instncia que se determine se o odioso resultado criminal foi ou no conscientemente querido pelo agente infrator.

Desta feita, a culpabilidade no terreno administrativo sancionador revela-se bastante distinta da culpabilidade do Direito Criminal, at porque vislumbram-se na legislao administrativa hipteses em que a aplicao de sano independe da comprovao da culpa do infrator, a exemplo do art. 20, da Lei n 8.884, de 11 de junho de 1994, circunstncia que evidencia a especificidade do ilcito administrativo frente ao ilcito penal, que no tolera a imposio de pena com esteio na responsabilidade objetiva. Nesse passo, convm proceder leitura do texto abaixo, em que Marcelo Madureira Prates elucida as peculiaridades dos ilcitos penal e administrativo:20

O certo que, como j deixamos delineado, a censura do ilcito no domnio administrativo sancionador decorre basicamente da nocividade, muitas vezes presumida pelo prprio legislador, da infrao sobre a ordem e os interesses pblico administrativos, enquanto no direito penal o ilcito avaliado no apenas pela intensidade do resultado provocado, mas tambm, e principalmente, pela vontade consciente e livre manifestada pelo infrator, por ele ter, consciente e livremente, agido como agiu.

Essas consideraes inibem, por conseguinte, o acolhimento integral das concluses da culpabilidade penal pelo Direito Administrativo Sancionador, fato que influencia, por bvio, o exame do princpio da pessoalidade da pena, que visa, dentre a outros propsitos, avaliar o elemento subjetivo do infrator para fins de verificao do ilcito. Observe-se, por pertinente, a lio de Fbio Medina Osrio sobre o 21 assunto:

No basta, portanto, transferir do direito penal diretamente ao Direito Administrativo todas as discusses e significaes da culpabilidade, embora tal tcnica se apresente aparentemente confortvel do ponto de vista terico. No cabe essa transposio, pura e simples, de lies doutrinrias e jurisprudenciais, comumente utilizadas no Direito Penal, ao terreno do Direito Administrativo Sancionatrio.

Por todo o exposto, pode-se afirmar que o exame da culpabilidade do ente coletivo na seara administrativa sancionadora no partilha das mesmas concluses que a culpabilidade da pessoa fsica do Direito Penal, aspecto que repercute no estudo do princpio da pessoalidade da pena, haja vista a intrnseca relao que tais institutos travam.

Desta forma, o art. 5, XLV, da Constituio Federal demandar interpretao prpria, com intensidade diferenciada, quando a relao envolver pessoas jurdicas sancionadas pelo Direito Administrativo, porquanto a natureza desse vnculo impede que sobre ele incidam as construes jurdicas do Direito Penal aplicadas pessoa humana, cujas caractersticas justificam um maior rigor no emprego das garantias constitucionais.22

c) O princpio da pessoalidade da pena e as multas Por fim, no se pode olvidar que a multa, haja vista seu carter pecunirio, recai no sobre a pessoa do agente, a exemplo das penas privativas de liberdade ou restritivas de direito, mas sim sobre o seu patrimnio. Trata-se, portanto, de pena real, o que atraiu a crtica da doutrina quanto a sua compatibilidade com o princpio da pessoalidade da sano. Rogrio Greco, ao citar Ferrajoli, trata da questo:23

Ferrajoli, com a preciso que lhe peculiar, aduz que "a pena pecuniria uma pena aberrante, sob vrios pontos de vista. Sobretudo porque uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar."

Na mesma linha, Fbio Medina Osrio destaca, com apoio na doutrina de Luiz Luisi, os problemas existentes no mbito das garantias do art. 5, XLV e XLVI, da Constituio Federal, quando em pauta 24 as penas pecunirias:

A pessoalidade da pena , insisto, no raro, quebrada ou pelo menos burlada com a chamada sano pecuniria, porque a natureza dessa sano permite que outrem a cumpra no lugar do ru. Trata-se de um dos maiores paradoxos da "multa", que a posiciona de forma bastante diversa das demais sanes, sejam as privativas de liberdade, sejam as privativas ou restritivas de direitos. H quem diga que a multa sequer seria uma sano, conforme o faz Luigi Ferrajoli. Derecho y razn, teora del garantismo penal, 3. ed., 1998, Madrid, Trotta, p. 418, ao apontar a intrnseca desproporcionalidade, ademais, dessas sanes que ficam sempre abaixo do mnimo que se espera em termos de gravidade da resposta estatal ao ilcito. Nesse ponto, o autor pondera que a multa se assemelha mais a uma "taxa" do que a uma pena. (...) compreensvel que apenas a multa no possa esgotar uma sano penal ou mesmo uma sano a ato de improbidade administrativa, por regra, dadas as dificuldades na pessoalizao da sano e, ainda, na produo de preveno especial no agente, notadamente quando se trate de agentes ricos e poderosos. Ficaria a impresso que o agente pode "comprar" do Estado o direito de cometer fatos ilcitos, o que revelaria distoro intolervel.

Contudo, no se est a afirmar que a sano pecuniria uma pena inconstitucional, mas somente que o princpio da pessoalidade da pena no deve ser empregado com o mesmo rigor que aplicado para as penas classificadas como pessoais. Essa ideia fortalecida quando se atenta, na linha traada pela literatura exposta, que a multa, ante o seu carter real, exibe traos de impessoalidade, seja pela sua incidncia no sobre o corpo do infrator, mas sim sobre o seu patrimnio, seja pela possibilidade, ainda que indesejada, de ser cumprida por pessoa que no o agente da infrao. Tem-se, em suma, que a natureza impessoal da multa administrativa conjugada ao fato de que a infratora uma pessoa jurdica evoca a concluso de que o princpio da pessoalidade da pena, quando presentes tais caractersticas, reveste-se de uma roupagem prpria, circunstncia que afasta qualquer interpretao que lhe busque equiparar a situaes dspares.

d) Concluso O princpio da intranscendncia da pena apresenta contornos especficos quando se tratar de ato infracional, apenado com multa e praticado por pessoa jurdica no domnio administrativo sancionador. Em tais casos, mostra-se razovel limitar, abrandar o princpio em questo, para afastar a clssica exegese do Direito Penal aplicado s pessoas humanas.

De fato, o hermeneuta, ao interpretar no s o princpio em tela, como tambm os demais direitos fundamentais, quando atinentes s pessoas jurdicas, deve observar que sua aplicao no se d de forma mecnica, tal como ocorre com as pessoas naturais, mas requer a anlise do caso concreto, eis que somente incidiro quando se mostrarem pertinentes com a realidade desses entes - cautela, alis, que demanda especial ateno quando sob exame o princpio da pessoalidade da pena, que visa a garantir que a punio apenas se d com esteio na culpabilidade, conceito que se revela nebuloso para as pessoas jurdicas. Logo, a natureza impessoal da multa e o fato de que as concluses da teoria da culpabilidade da pessoa fsica do Direito Penal no se amoldam em sua inteireza ao Direito Administrativo Sancionador aplicado s pessoas jurdicas demonstram toda a peculiar sistemtica em que se assenta a interpretao do art. 5, XLV, da Constituio Federal, quando a relao disser respeito a aplicao de sano pecuniria administrativa aos entes coletivos, circunstncia que afasta a interpretao correntemente adotada ao princpio quando em pauta as pessoas naturais.

3 A utilizao analgica do art. 107, I, do Cdigo Penal Cumpre, nesta oportunidade, destacar as peculiaridades da pessoa fsica e da pessoa jurdica, com o objetivo de se avaliar a possibilidade de aplicao analgica do art. 107, I, do Cdigo Penal. Neste passo, pertinente comentar a doutrina de Francisco Amaral, que, ao dissertar sobre as teorias da pessoa jurdica,25 destaca a existncia de dois grandes grupos, o da fico e o da realidade, ressaltando que o nosso ordenamento jurdico adotou a teoria da realidade tcnica.26 Confira-se:27

Para tal concepo a pessoa jurdica resulta de um processo tcnico, a personificao, pelo qual a ordem jurdica atribui personalidade a grupos em que a lei reconhece vontade e objetivos prprios. As pessoas jurdicas so uma realidade, no fico, embora produto da ordem jurdica. Sendo a personalidade, no caso, um produto da tcnica jurdica, sua essncia no consiste no ser em si, mas em uma forma jurdica, pelo que se considera tal concepo como formalista. A forma jurdica no , todavia, um processo tcnico, mas a "traduo jurdica de um fenmeno emprico", sendo a funo do direito apenas a de reconhecer algo j existente no meio social. (...) O direito brasileiro adota a teoria da realidade tcnica na disciplina legal da matria, como se depreende do art. 45 do Cdigo Civil.

A citao acima evidencia a concluso de que o ente coletivo um produto do direito que somente adquire personalidade jurdica "com a inscrio, no registro prprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos" (art. 985, do Cdigo Civil), procedimento que tem por escopo atender aos interesses do homem.28 J no que tange s pessoas fsicas no se observa tal construo,29 como bem anota 30 Francisco Amaral:

Conclui-se, portanto, que o direito permite a formao de centros unitrios de direitos e deveres que, semelhana das pessoas naturais, so dotados de personalidade jurdica para servir aos interesses dos seres humanos. Com uma diferena porm. Nas pessoas fsicas, a sua personalidade jurdica autnoma e original, no sentido de que inerente ao ser humano como atributo de sua dignidade pessoal, enquanto nas pessoas jurdicas, ou coletivas, ela meramente instrumental e derivada ou adquirida, meio de realizao de infinita variedade dos interesses sociais.

Dessa forma, assim como a existncia da pessoa jurdica decorre da lei, tambm as hipteses de sua 31 extino so por ela previstas, sendo que a morte da pessoa natural, ao revs, no produto do ordenamento jurdico, mas sim da realidade biolgica a que se submetem os seres humanos.32 "A extino da pessoa jurdica decorre da vontade dos associados ou das causas previstas em lei ou no estatuto."33 Da porque no parece razovel a aplicao analgica do art. 107, I, do Cdigo Penal, com as consequncias que dele decorrem, aos casos de multa aplicada sociedade que incorporada, sobretudo quando se atenta a que este fenmeno resulta de processo voluntrio que se formaliza por

meio de pacto contratual. "A incorporao, reunindo interesses e responsabilidades, exige simplesmente novo contrato, modificativo do primordial, e aumenta, em regra, o capital social e 34 agremia novos scios." H, portanto, ao contrrio do que ocorre na sucesso universal decorrente da morte biolgica da pessoa fsica, uma sucesso universal voluntria por ato entre vivos entre incorporador e incorporadora, cujos termos se formalizam por meio de contrato,35 o que a difere da sucesso causa mortis, resultante do falecimento da pessoa fsica. Esse o entendimento de Waldirio Bulgarelli, segundo o qual "tambm fica claro que a transmisso ocorre 'inter vivos', pois a extino efeito da transmisso do patrimnio e no sua causa."36 Ainda na mesma linha, esse autor aponta como caracterstica da incorporao "a passagem dos patrimnios das sociedades fusionadas, formando um patrimnio nico; ocorrendo uma sucesso 37 'intervivos' com novao subjetiva dos devedores". Neste contexto, revela-se oportuna a transcrio do seguinte excerto da lavra de Waldirio Bulgarelli que, ao dissertar sobre a sucesso 38 causa mortis e inter vivos, conclui pela inviabilidade da utilizao da analogia entre elas:

verdade que nos dois casos h transmisso de um patrimnio a ttulo universal, mas a analogia cessa a. O primeiro ocorre por morte do "de cujus", cuja transmisso dos bens aos herdeiros efetua-se conforme a lei, em princpio, sem contra-partida do herdeiro, que sempre livre de renunciar sucesso. O segundo tem sua causa no contrato de fuso, que requer um duplo consentimento e regula as condies de transmisso do patrimnio para a pessoa jurdica da incorporante, a qual no pode renunciar a ela, sob o pretexto de que o passivo da incorporada seria muito elevado. Tambm, a sociedade incorporada no morre na fuso, ela perde simplesmente sua personalidade jurdica em relao a terceiros, mas conserva-a nas suas relaes com a sociedade incorporante, na medida dos direitos que lhe so prprios (...).

Por outro lado, a morte da pessoa natural extingue a punibilidade, pois o prosseguimento da persecuo penal ou se revelaria intil ou afrontaria diretamente o art. 5, XLV, da Constituio Federal, porquanto exigiria, necessariamente, a responsabilizao de pessoa fsica diversa da autora da conduta tpica.39 Contudo, com a incorporao societria, embora ocorra a extino da 40 com a transmisso no s do incorporada, h a "insero da incorporada na incorporante", patrimnio, mas tambm da atividade econmica, que se prolonga na sociedade incorporadora. Tal fato permite falar, como aduz Cheminade, que "a empresa continua na sociedade incorporante, 41 como fenmeno que da concentrao empresarial". Esse prosseguimento da atividade econmica na pessoa da sucessora evidencia a extino apenas formal da sociedade e demonstra inexistir o rompimento do vnculo social, consoante ensina Pontes de Miranda:42

Quer na transformao, quer na incorporao, quer na fuso, tal como as concebe o direito brasileiro, como tipos (sem que isso afaste outras manifestaes da vontade diferentes), h a persistncia do vnculo social. A finalidade da lei foi regular tais operaes, sem soluo de continuidade que abrisse abismo entre o ontem e o hoje. Na primeira espcie, s muda a forma, o tipo social; na segunda, h continuidade de forma e de vnculo social para uma das sociedades, vnculo social que cresceu, e a extino de outra ou de outras sociedades, em virtude da absoro dessa, ou dessas; na terceira, os vnculos sociais se fazem em vnculo social nico, que se inserta na sociedade nova.

Com efeito, a incorporao no visa extino (ou a morte) da sociedade incorporada, muito pelo contrrio, busca-se por meio de tal procedimento estabelecer maior poder patrimonial, proporcionar ganho de escala para a conquista de novos mercados, fortalecer a produo e potencializar a atividade econmica outrora exercida pela sociedade extinta, em evidente unio de esforos. Neste contexto, de grande valia mencionar a deciso oriunda do Supremo Tribunal de Justia de Portugal,43 que ao analisar questo anloga a que aqui apreciada, externou entendimento perfeitamente aplicvel hiptese em tela. No caso lusitano, teve-se por examinado o art. 30 da Constituio portuguesa,44 combinado com o art. 112, a e b, do Cdigo de Sociedades Comerciais,45

bem como os arts. 127 e 128, n 1, do Cdigo Penal.46 Tais dispositivos se identificam, respectivamente, com os arts. 5, XLV, da Constituio Federal, 227 da Lei n 6.404, de 1976, e 107, I, do Cdigo Penal brasileiro. Submeteu-se, assim, Corte Constitucional portuguesa, pedido para que fosse fixada a jurisprudncia no sentido de que "cometido um ilcito contra-ordenacional por uma sociedade que vem a ser incorporada numa outra, por fuso, transmitem-se para a sociedade incorporante todas as responsabilidades da sociedade incorporada, incluindo a decorrente daquela ilicitude". Na hiptese, o julgado da instncia inferior decidiu que "no mbito contra-ordenacional, a extino de uma sociedade extingue tambm o procedimento relativo a factos que lhe sejam imputados, equiparando, para tais efeitos, a extino jurdica de uma pessoa colectiva, operada de acordo com o preceituado no citado artigo 112, alnea a), do Cdigo de Sociedade Comerciais, morte da pessoa fsica". Tal deciso foi objeto de recurso, em que o Tribunal competente, ao reform-la, firmou orientao segundo a qual "no estando determinado por via normativa que tal extino conduza extino da responsabilidade contra-ordenacional da sociedade infractora, sua sucessora responsvel, conforme determina a alnea a) do artigo 112 do Cdigo das Sociedades Comerciais." A Suprema Corte em referncia, antes de acolher o pedido de fixao de jurisprudncia, trouxe importantes consideraes, cuja colao de aspectos pontuais mostra-se digna de nota. Observe-se, nesse sentido, a transcrio do entendimento alado sobre o uso da analogia entre a morte da pessoa fsica e a extino da pessoa jurdica, especialmente quanto possibilidade de predeterminar os seus efeitos:

Neste aspecto, como se salientou, a "morte", como categoria da natureza com relevncia normativo-jurdica, co-natural ao homem; as pessoas colectivas, como tal, no esto tocadas pelo momento da "morte", que faz cessar a personalidade da pessoa singular (artigo 68, n 1, do Cdigo Civil); as pessoas colectivas, neste sentido, no "morrem", embora, como entidades com existncia determinada por actos de vontade de criao e de extino, possam extinguir-se, deixando, ento, de ser construes instrumentais do homem para agirem com centros autnomos de imputao de direitos e deveres. (...) A morte, relevante no sentido normativo e especificamente no campo penal, no , como se salientou, pensvel seno em relao aos seres humanos. A extino de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criao instrumental do direito, pode no determinar, por si mesma, que nada de si permanea, continuando alguma substncia afecta ao desempenho, ainda, sob uma outra perspectiva jurdico-funcional, das finalidades da pessoa colectiva que foram a sua razo de ser.

De outra ponta, a Corte Constitucional, ao analisar a questo sob a vertente da finalidade da incorporao societria, bem demonstrou o contrassenso de se utilizar o Cdigo Penal em tais situaes, porquanto a operao em tela objetiva o fortalecimento da atividade econmica, ao contrrio da morte prevista no diploma criminal, do qual resulta a interrupo do processo vital.

No entanto - di-lo a lei -, com a fuso extinguem-se as sociedades incorporadas, ou todas as sociedades fundidas. "Mas tambm no podem esquecer-se as finalidades dessas extines; no se extingue tudo isso como um fim em si mesmo; extingue-se para substituir, extingue-se para renovar. Certamente so aproveitados os elementos pessoais, patrimoniais e at imateriais das sociedades participantes que se extinguem, mas extino no implica desaproveitamento." (Idem, ibidem, p. 230 e 231.) Existe sempre, pois, um elemento decisivamente relevante na comparao entre o real e a construo jurdica - que , como construo ao servio de interesses, meramente instrumental: os interessados, ao procederem fuso, no tm inteno de morte, mas, sim, de melhor e longa vida para as sociedades e para a realizao das finalidades com que foram constitudas. (...) No regime material do direito penal, construdo historicamente para a responsabilidade individual das pessoas singulares, a morte extingue o procedimento e a pena, na

concretizao do princpio da intransmissibilidade da responsabilidade penal inscrito como direito fundamental - artigo 30, n 3, da Constituio. Mas como a dimenso jurdica da categoria biolgica de morte no se refere a pessoas colectivas, esta causa de extino do procedimento e da coima apenas poder ser chamada se for possvel, e na medida em que o seja, a interveno de critrios relevantes de analogia. No caso, como se demonstrou, tais critrios no permitem encontrar uma similitude relevante de situaes entre a morte fsica da pessoa singular e a extino por fuso de uma sociedade comercial, sendo que tambm a semelhana na diferena no pode ser suportada pela racionalidade em que assenta o regime das contra-ordenaes quando permanea e continue, apesar da extino jurdica, um centro de imputao e se mantenham, inteiramente, as finalidades que determinam a necessidade de censura social pela continuao da actividade em que ocorreu a violao.

A incorporao, portanto, no acarreta a "morte" da sociedade, eis que a atividade empresarial, elemento integrante do ente coletivo, continua a ser executada pela sucessora. Desta forma, a utilizao analgica do art. 107, I, do Cdigo Penal para tais situaes no se revela adequada, pois a incorporao societria no acarreta o fim da atividade econmica, tal como a morte encerra a vida de uma pessoa natural. V-se, assim, que o legislador, a exemplo do art. 219, II, da Lei n 6.404, de 1976, se valeu da expresso extino falta de melhor termo, pois pretendeu designar o cenrio jurdico que passa a vigorar no mbito da entidade sucedida, como efeito da incorporao societria. De fato, tal operao ocasiona o esvaziamento dos elementos constitutivos da incorporada, haja vista que o seu patrimnio transferido para a incorporadora, os seus scios tornam-se scios da sucessora, e a atividade empresarial que exercia passa a ser desempenhada pela incorporadora, o que, todavia, no significa a "morte" da pessoa jurdica sucedida.

4 Concluso O tema, como se percebe, de ampla complexidade, contudo, as razes aqui expostas permitem traar as seguintes concluses: a) o Direito Administrativo Punitivo no se subordina ao Direito Penal, eis que ambos encontram fundamento de validade nos princpios constitucionais que limitam o poder punitivo estatal. Portanto, a transposio de institutos e princpios penais para o Direito Administrativo Sancionador demanda a anlise do caso concreto com o objetivo de se adequar o preceito penal realidade do processo administrativo punitivo; b) o princpio da pessoalidade da pena uma garantia clssica das pessoas naturais do Direito Criminal, que visa assegurar a responsabilizao do infrator na medida da sua culpabilidade. Logo, o exame deste instituto para as pessoas jurdicas no Direito Administrativo deve se desvencilhar de tradicionais paradigmas esculpidos para as pessoas fsicas no campo do Direito Penal para adotar seus prprios modelos, eis que no s a culpabilidade das pessoas jurdicas no se equipara das pessoas naturais, como tambm a culpabilidade do Direito Administrativo Sancionador no se iguala do Direito Criminal. Por outro lado, tem-se, ainda, que a sano aplicada se reveste de visvel impessoalidade, haja vista que, por se tratar de expresso pecuniria, no s incide sobre o patrimnio do infrator, como permite tambm que terceiros venham a cumpri-la; c) ademais, escorado em entendimento da Corte Constitucional portuguesa e na doutrina nacional e estrangeira do direito societrio, constata-se que a utilizao do art. 107, I, do Cdigo Penal, como consequncia dos efeitos do art. 227 da Lei n 6.404, de 1976, no se revela de bom alvitre, porquanto a morte prescrita na Lei Penal e a extino da sociedade da Lei Societria, por decorrncia da incorporao, somente na aparncia se assemelham, tendo em vista que tais fatos no decorrem de uma idntica razo ou fundamento que autorize a aplicao da mesma regra de direito. Verifica-se, assim, que o princpio da pessoalidade da pena requer um novo desenho que no se apoie exclusivamente no estudo clssico das garantias do Direito Penal aplicado s pessoas naturais. Destarte, adaptando-se a exegese at ento construda sobre o art. 5, XLV, da Carta da Repblica para as pessoas jurdicas no campo do Direito Administrativo Punitivo, e, conjugando-a com as demais razes consignadas neste estudo, chega-se concluso de que o princpio em referncia e o art. 107, I, do Cdigo Penal no inviabilizariam a persecuo administrativa contra a sociedade

incorporadora, interpretao que se harmoniza com o princpio da incontagiabilidade da pena e prestigia o sistema jurdico dos direitos e garantias fundamentais.

Principle of Individualization of the Sanction, Merger and Administrative Law Sanction Abstract: This article examines the particularities that surround the application of the financial sanction when the legal person responsible for the offense comes to be absorbed by another company. In this context, the paper examines whether the principle of individualization of the sanction and the article 107, paragraph I, of the Brazilian Criminal Code would prohibit the administrative punitive process against the absorbing entity. In this regard, the article investigates the historical basis of the principle in question as well as its relation to legal entities and, furthermore, its impact on the merger process and financial sanctions. Key words: Individualization of the sanction. Merger. Administrative law sanction. Financial sanction.

Referncias

AMARAL, Francisco. Direito civil introduo. 5. ed. So Paulo: Renovar, 2003. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentrios Constituio do Brasil. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2001. BRANCO, Fernando Castelo. A pessoa jurdica no processo penal. So Paulo: Saraiva, 2001. BULGARELLI, Waldirio. Fuses, incorporaes e cises de sociedades. 4. ed. So Paulo, 1999. CRETELLA JNIOR, Jos. Comentrios Constituio de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1990. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 9. ed. So Paulo: Saraiva, 2007. GRECO, Rogrio. Curso de direito penal, parte geral. 3. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2003. MARINS, Natanael; SANTOS, Juliana Nunes. Responsabilidade tributria. Dialtica, 2007. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncio Mrtires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. MENDONA, J. X. Carvalho. Tratado de direito comercial brasileiro. Bookseller, 2001. v. II, t. II. MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. LI. MORAES, Alexandre de. Constituio do Brasil interpretada. 7. ed. So Paulo: Atlas, 2007. OSRIO, Fbio Medina (Coord.). Direito sancionador: sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Frum, 2007. OSRIO, Fbio Medina. Direito administrativo sancionador. 2. ed. rev. ampl. atual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. PRATES, Marcelo Madureira. Sano administrativa geral: anatomia e autonomia. Coimbra: Almedina, 2005. SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. So Paulo: Malheiros, 2002. SMANIO, Gianpaolo Poggio. A responsabilidade penal da pessoa jurdica. So Paulo: Complexo Jurdico Damsio de Jesus, ago. 2004. Disponvel em: http://www.damasio.com.br.

1 2

OSRIO. Direito administrativo sancionador, p. 114.

Informe-se, por oportuno, que este estudo no examinar o teor dos arts. 227, caput, da Lei n 6.404, de 1976, e 1.116 do Cdigo Civil, por entender que tais dispositivos referem-se s obrigaes civis, classificao na qual no se enquadra a multa administrativa decorrente do exerccio do poder punitivo estatal. CRETELLA JNIOR. Comentrios Constituio de 1988, p. 497. BASTOS; MARTINS. Comentrios Constituio do Brasil, p. 251.

3 4 5

"Alexandre de Moraes, ao tratar dos destinatrios da proteo dos direitos fundamentais, assevera que as pessoas jurdicas so beneficirias dos direitos e garantias individuais, pois se reconhece as associaes o direito existncia, o que de nada adiantaria se fosse possvel exclu-las de todos os seus demais direitos. Dessa forma, os direitos enumerados e garantidos pela Constituio so de pessoas fsicas e jurdicas, pois tm direito existncia, segurana, propriedade, proteo tributria e aos remdios constitucionais" (BRANCO. A pessoa jurdica no processo penal, p. 186).6 7

MENDES; COELHO; BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 271.

Exemplo de incompatibilidade entre o direito fundamental e uma pessoa jurdica apresentado por Fernando Castelo Branco, que, ao citar Ferrer Riba, frisa que uma associao sindical no poderia ser titular do direito liberdade religiosa. Op. cit., p. 187.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito sancionador sistema financeiro nacional. Coordenao: Fbio Medina Osrio. Belo Horizonte: Frum, 2007. p. 114.9 10

8

MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit., p. 601.

Rogrio Greco, ao dissertar sobre o sentido da culpabilidade como princpio proibitivo da responsabilidade penal objetiva, firma orientao de grande utilidade para o estudo em questo: "Culpabilidade como princpio impedidor da responsabilidade penal objetiva, ou seja, da responsabilidade penal sem culpa - Na precisa lio de Nilo Batista, o princpio da culpabilidade 'impe a subjetividade da responsabilidade penal. No cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada to-s de uma associao causal entre a conduta e um resultado de leso ou perigo para um bem jurdico.' Isso significa que para que determinado resultado possa ser atribudo ao agente preciso que a sua conduta tenha sido dolosa ou culposa. Se no houve dolo ou culpa, sinal de que no houve conduta; se no houve conduta, no se pode falar em fato tpico; e no existindo o fato tpico, como conseqncia lgica, no haver crime. Os resultados que no foram causados a ttulo de dolo ou culpa pelo agente no podem ser a ele atribudos, pois que a responsabilidade penal, de acordo com o princpio da culpabilidade, dever ser sempre subjetiva" (GRECO. Curso de direito penal, parte geral, p. 100).11 12 13

MARINS; SANTOS. Responsabilidade tributria, p. 113. BITENCOURT, op. cit., p. 109.

Anote-se que expressiva parcela da doutrina penal, tal como Cezar Roberto Bitencourt, nega a possibilidade das pessoas coletivas serem autoras de crime. dele a seguinte lio: "No entanto, a responsabilidade penal ainda se encontra limitada responsabilidade subjetiva e individual. Nesse sentido manifesta-se Ren Ariel Dotti, afirmando que no sistema jurdico positivo brasileiro, a responsabilidade penal atribuda, exclusivamente, s pessoas fsicas. Os crimes ou delitos e as contravenes no podem ser praticados pelas pessoas jurdicas, posto que a imputabilidade jurdico -penal uma qualidade inerente ao seres humanos. A conduta (ao ou omisso), pedra angular da Teoria Geral do Crime, produto essencialmente do homem. A doutrina, quase unanimidade, repudia a hiptese de a conduta ser atribuda pessoa jurdica" (BITENCOURT, op. cit., p. 117).14

SMANIO. A responsabilidade . OSRIO, op. cit., p. 346. OSRIO, op. cit., p. 349. OSRIO, op. cit., p. 343. OSRIO, op. cit., p. 333, 335.

penal

da

pessoa

jurdica.

Disponvel

em:

15 16 17 18

19 20 21 22

PRATES. Sano administrativa geral: anatomia e autonomia, p. 90. PRATES, op. cit., p. 94. OSRIO, op. cit., p. 318.

Lembre-se, ainda, que nem todos os direitos, inclusive, os fundamentais, so absolutos ou indisponveis, sobretudo quando encontram como destinatrios as pessoas jurdicas. Ao dissertar sobre o tema, a doutrina bem evidencia a diferena de tratamento que os direitos e garantias fundamentais dispensam s pessoas fsicas e s pessoas jurdicas, in verbis: "Apenas os [direitos fundamentais] que visam resguardar diretamente a potencialidade do homem de se autodeterminar deveriam ser considerados indisponveis. Indisponveis, portanto, seriam os direitos que visam resguardar a vida biolgica (...)" (MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit., p. 243).23 24 25

GRECO, op. cit., p. 90. OSRIO, op. cit., p. 321.

importante mencionar que a teoria aplicvel s pessoas jurdicas no ponto pacfico na doutrina. Contudo, mesmo que se adote a teoria realista, na linha de Francisco Amaral, ainda assim ter-se- as pessoas jurdicas como produto do direito.26

No mesmo sentido a lio de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: "Parece-nos que a teoria da realidade tcnica a que melhor explica o tratamento dispensado pessoa jurdica por nosso direito positivo" (Novo curso de direito civil. 9. ed. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 186).27 28

AMARAL. Direito civil introduo, p. 283.

Sobre o ponto, esclarecedor o pensamento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Confira-se: "O Estado, as associaes, as sociedades, existem como grupos constitudos para a realizao de determinados fins. A personificao desses grupos, todavia, construo da tcnica jurdica, admitindo que tenham capacidade jurdica prpria. (...) Ora, da anlise desses dois dispositivos [18 do Cdigo Civil de 1916 e 45 do Cdigo Civil de 2002], nota-se que a personificao da pessoa jurdica , de fato, construo da tcnica jurdica, podendo, inclusive, operar-se a suspenso legal dos seus efeitos, por meio da desconsiderao, em situaes excepcionais admitidas por lei" (Op. cit., p. 186).29

Jos Afonso da Silva, ao dissertar sobre a dificuldade da conceituao do termo vida, termina por defini-la da seguinte forma: "Vida, no texto constitucional (art. 5, caput), no ser considerada apenas no seu sentido biolgico de incessante auto-atividade funcional, peculiar matria orgnica, mas na sua acepo biogrfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa de difcil apreenso porque algo dinmico, que se transforma incessantemente sem perder sua prpria identidade. mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepo (ou germinao vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, at que muda de qualidade, deixando, ento, de ser vida para ser morte" (SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 198). AMARAL, op. cit., p. 277. Ver, por exemplo, os arts. 1.118 e 1.119 do Cdigo Civil, e o art. 219 da Lei n 6.404, de 1976.

30 31 32

Interessante colacionar a notcia publicada no informativo n 497, de 12 de maro de 2008, do Supremo Tribunal Federal, acerca da ADI n 3.510, em que os Ministros Ellen Gracie e Carlos Britto bem caracterizam as pessoas fsicas e os direitos fundamentais que elas titularizam: "Asseverou que as pessoas fsicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2 do Cdigo Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituio Federal, quando se refere 'dignidade da pessoa humana' (art. 1, III), 'direitos da pessoa humana' (art. 34, VII, b), 'livre exerccio dos direitos... individuais' (art. 85, III) e 'direitos e garantias individuais' (art. 60, 4, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivduo-pessoa."33 34 35

AMARAL, op. cit., p. 299. MENDONA. Tratado de direito comercial brasileiro, t. II, v. II, p. 81.

"Comprovando-se que as decises das assemblias gerais e da administrao, so meios para o fim visado, que a realizao da incorporao, portanto, atos preparatrios com uma funo instrumental, assim como os demais atos so exigncias de procedimento, que a lei impe, para, formalizando o negcio, torn-lo apto a produzir efeitos internos (acionistas) e externos (credores e

terceiros) - alis dentro da tendncia moderna de se regular minudentemente os tipos societrios, principalmente as sociedades annimas - tem-se clara a natureza contratual do instituto" (BULGARELLI. Fuses, incorporaes e cises de sociedades, p. 43).36 37 38 39

BULGARELLI, op. cit., p. 45. BULGARELLI, op. cit., p. 52. BULGARELLI, op. cit., p. 111.

Alexandre de Moraes esclarece: "A Constituio Federal consagrou a incontagiabilidade da pena, proclamando que nenhuma pena passar da pessoa do condenado. Dessa forma, garante-se tanto a proibio de transmisso da pena para familiares, parentes ou amigos ou terceiros em geral, quando exige-se que a lei infraconstitucional preveja a extino da punibilidade em caso de morte do agente, uma vez que no haveria sentido na continuidade, por parte do Estado, na persecuo penal, pela total impossibilidade de aplicao das sanes" (MORAES. Constituio do Brasil interpretada, p. 275).

40 41 42

BULGARELLI, op. cit., p. 113. BULGARELLI, op. cit., p. 103. MIRANDA. Tratado de direito privado, t. LI, p. 65.

43 Acrdo n 5/2004. Data: 02.06.2004. Dirio da Repblica, n 141, Srie I-A. Data da Publicao: 21.06.2004. Supremo Tribunal de Justia. 44

"Artigo 30 (Limites das penas e das medidas de segurana)

1. No pode haver penas nem medidas de segurana privativas ou restritivas da liberdade com carcter perptuo ou de durao ilimitada ou indefinida. 2. Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psquica, e na impossibilidade de teraputica em meio aberto, podero as medidas de segurana privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante deciso judicial. 3. A responsabilidade penal insusceptvel de transmisso. 4. Nenhuma pena envolve como efeito necessrio a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou polticos. 5. Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurana privativas da liberdade mantm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitaes inerentes ao sentido da condenao e s exigncias prprias da respectiva execuo."45

"Artigo 112 Efeitos do Registo Com a inscrio da fuso no registo comercial:

a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituio de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigaes para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade; b) Os scios das sociedades extintas tornam-se scios da sociedade incorporante ou da nova sociedade."46

"CAPTULO III Outras causas de extino Artigo 127 Morte, amnistia, perdo genrico e indulto

A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdo genrico e pelo indulto. Artigo 128 Efeitos 1 - A morte do agente extingue tanto o procedimento criminal como a pena ou a medida de segurana. 2 - A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenao, faz cessar a execuo tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurana. 3 - O perdo genrico extingue a pena, no todo ou em parte. 4 - O indulto extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorvel prevista na lei."Informaes bibliogrficas: Conforme a NBR 6023:2002 da Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT), este texto cientfico publicado em peridico eletrnico deve ser citado da seguinte forma: MORAES, Jos Luciano Jost de. O princpio da pessoalidade da pena, a incorporao societria e o direito administrativo sancionador. Biblioteca Digital A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 10, n. 39, jan./mar. 2010. Disponvel em: . Acesso em: 8 junho 2010.