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VIAGENS ULTRAMARINAS

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  • VIAGENS

    ULTRAMARINAS

  • VIAGENS

    ULTRAMARINAS

    Monarcas, vassalos e governo a distncia

    Ronald Raminelli

  • copyright 2008 Ronald Raminelli

    Edio: Joana MonteleoneAssistente Editorial: Guilherme Kroll DominguesDiagramao: Gustavo FujimotoReviso: Flvia Cristina YacubianImagem da capa:

    [2008]Todos os direitos reservados

    Alameda Casa EditorialRua Ministro Ferreira Alves, 108 Perdizes05009-060 So Paulo SPTel/Fax (11) 3862-0850www.alamedaeditorial.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Fonte (CIP)

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Raminelli, Ronald, 1962-

    Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distncia /

    Ronald Raminelli. So Paulo: Alameda, 2008.

    Inclui bibliograa

    ISBN 978-85-

    1. Brasil - Histria - Perodo colonial, 1500-1822. 2. Brasil - Histria

    - Imprio, 1822-1889. 3. Portugal - Colnias - Administrao - His-

    tria. 4. Brasil - Poltica e governo. 5. Elites (Classes sociais) - Brasil

    - Histria. I. Ttulo.

    08-0419

    CDD: 981

    CDU: 94(81) 1500/1889

    R139v

    07.02.08 07.02.08 005162

  • Sumrio

    Introduo ...................................................................... 7

    A escrita e a espada em busca de merc ............................17

    Inventrio das conquistas ................................................61

    Viagens Filoscas ..........................................................97

    Ilustrao e patronagem ................................................135

    Naturalistas em apuros ..................................................177

    Fragmentos do imprio .................................................213

    Bacharis na crise do Imprio ........................................259

    Fontes bibliogracas.......................................................289

    Bibliograa.....................................................................xxx

    ndice temtico..............................................................309

  • introduo

    Em 1808, quando a Corte portuguesa estabeleceu-se no Rio de Janeiro, uma nova congurao poltica surgia no imprio colonial portugus. Por longos sculos, Lisboa mantivera-se como centro das decises, mas no momento em que o rei se radicava na colnia, a cidade perdeu sua capacidade de promover a unidade entre as provncias. Se antes a centralidade das possesses ultramarinas estava no reino, a partir da transferncia da Corte ela se deslocou para o Brasil. O evento, por certo, contrariava a secular atrao exercida pela antiga capital que reunia os principais agentes da administrao e os lucros do comrcio. De Lisboa partiam, rumo s conquistas, os vassalos em busca de terras e mercs, que enfrentavam as adversidades dos novos territrios com a inteno de alargar os horizontes dos reais domnios. Em princpio, esse livro pretende estudar como os vassalos do rei contriburam para manter esse vasto imprio, durante tantos sculos, e como a lealdade monrquica viabilizou um governo a distncia. Sem a contribuio dos moradores das possesses ultramarinas, seria invivel o contro-le das conquistas por parte do soberano.

    Essas reexes fornecem subsdios para melhor entender os vnculos do Brasil no imprio colonial. A trama entre o centro e as periferias baseava-se na negociao entre os sditos e o monarca. Os primeiros, ao prestar servios no ultramar, tinham seus feitos reconhecidos e recompensados, reuniam honras e privilgios que os aproximavam, paulatinamente, do monarca e da burocra-cia metropolitana. Ao avanar do sculo xviii, cresceu a importncia dos do-mnios americanos no mbito imperial e, conseqentemente, seus moradores tiveram seus feitos mais valorizados. O ouro, o acar e o tabaco viabilizavam estudos na Universidade de Coimbra e o surgimento de uma elite ilustrada luso-brasileira que, aos poucos, ocupou cargos de destaque na administrao. Depois de 1808, momento de debilidade do poder monrquico, os laos entre o rei e essa elite exerceram um papel ainda mais decisivo para manter a unio entre os territrios apartados. De fato, este livro pretende analisar a formao da elite coimbr, particularmente a trajetria de colonos que se formaram em

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    losoa na Universidade de Coimbra ou exerceram o ofcio de naturalista no mundo colonial.

    Desde o incio da expanso martima, recorrendo espada, os vassalos do rei ampliavam as conquistas e recebiam como recompensas ttulos de cavaleiros de Ordens Militares, terras e cargos na administrao local. Mas os servios dedi-cados monarquia no se restringiam arte da guerra; as viagens, aos poucos, tornaram-se instrumentos indispensveis para reunir conhecimento capaz de viabilizar o governo do ultramar. Inicialmente, os vassalos percorriam os novos territrios e produziam inventrios da natureza e de suas produes. Descre-viam tambm os povos, seus costumes e sua capacidade de gerar produtos co-loniais para fomentar o comrcio do reino. Essas informaes, sob a forma de cartas, relatrios e tratados, dirigiam-se ao soberano radicado em Lisboa, centro do imprio. Assim como a espada, a escrita tornou-se, ento, um importante servio dedicado ao rei, pois lhe informava sobre acontecimentos, terras distan-tes, minas, lavouras e a disposio de sditos em obedecer a suas leis. O conhe-cimento sobre o ultramar rendia aos moradores das conquistas a possibilidade de tambm alcanar privilgios; como os guerreiros, eles poderiam dispor de terras, ttulos de cavaleiros e cargos de prestgio.

    No sculo xviii, quando a cincia se tornou instrumento necessrio para medir terras, produzir mapas, aperfeioar as lavouras e as minas, esses vassalos perderam, em parte, a capacidade de informar ao monarca sobre as suas con-quistas. O Estado, por conseguinte, assumiu a tarefa de instruir prossionais que teriam a nobre tarefa de reunir informaes, cienticamente capazes de promover reformas, delimitar os limites do imprio e introduzir tcnicas res-ponsveis por modernizar as atividades produtivas. A Universidade de Coimbra era, portanto, o centro promotor da modernizao da agricultura, manufatura e comrcio. Filhos de militares, comerciantes e proprietrios de terras foram enviados Universidade com a inteno de receber formao e, posteriormen-te, ingressarem na magistratura ou em cargos de prestgio na administrao metropolitana ou colonial. Formava-se, ento, uma elite composta de bacharis em matemtica, losoa e leis, que deveria percorrer o ultramar e, em viagens loscas, ativar os vnculos entre as colnias e a metrpole.

    No ltimo quartel do sculo xviii, as viagens eram conduzidas, em grande parte, por bacharis luso-brasileiros, uma elite proveniente da Amrica portu-guesa, que percorria as conquistas americanas, asiticas e africanas para infor-mar ao rei sobre seus domnios. Os servios prestados por esses homens de cin-cia tambm resultavam em privilgios. Assim, os mecanismos de remunerao

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    pouco se modicaram, e o rei ainda concedia aos vassalos as mesmas distines que, outrora, atribuam a seus guerreiros. A cincia, portanto, era mecanismo destinado a manter o vasto imprio colonial, mas, ao mesmo tempo, rendia re-galias a naturalistas e matemticos. Essa tendncia tornou-se ainda mais ntida nos anos de 1790, perodo marcado por rumores de sedio. A sacrossanta uni-dade do imprio tornou-se ameaada com a insatisfao manifestada por mi-neiros e baianos, sobretudo em relao aos tributos. A estratgia de neutralizar a possvel rebeldia da elite ilustrada luso-brasileira era inseri-la em altos cargos da magistratura, nos Tribunais da Relao, em posio de destaque nas instituies do reino, como na Universidade de Coimbra, Mesa de Conscincia e Ordens, Junta de Comrcio, Museu de Histria Natural, Academia da Marinha e Aca-demia das Cincias de Lisboa.

    Essa estratgia, por certo, produziu entraves ao desenvolvimento cientco em Portugal, pois, ao receber as mencionadas distines, os homens de cincia tornavam-se burocratas, senhores de prestgio, e abandonavam a carreira de naturalista. Em busca de cargos de prestgio e enfrentando conjuntura desfa-vorvel, os naturalistas deixaram de produzir conhecimento e provocaram o esvaziamento dos museus e academias, fenmeno evidente nos primeiros anos do sculo xix. No entanto, a formao universitria e os servios prestados ao monarca originaram uma elite que teve participao decisiva na nossa indepen-dncia. Quando a famlia real transferiu-se para o Rio de Janeiro, esses bacha-ris da Universidade de Coimbra assumiram cargos importantes na burocracia do imprio luso-brasileiro. Por dispor de ttulos e cargos, eles estavam capaci-tados a ocupar lugares de honra na administrao. Na nova conjuntura, bacha-ris e doutores, como Jos Bonifcio Andrada e Silva, Jos Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho e Jos da Silva Lisboa, empregaram seus conhecimentos adquiridos em Coimbra para fortalecer a economia e incentivar a unidade das provncias imperiais. Por muito tempo, a elite ilustrada apostou na unio entre Portugal e Brasil e somente depois da tentativa de recolonizar o Brasil, deciso tomada pelas Cortes do Porto em 1821, a denominada elite coimbr declarou-se a favor da independncia, posio mais evidente nos escritos de Hiplito da Costa e Jos Bonifcio.

    Ao recorrer trajetria de alguns bacharis, o livro pretende analisar os es-tritos vnculos entre o monarca e a elite ilustrada luso-brasileira, entender, so-bretudo, o funcionamento da patronagem rgia que, por quase trs sculos, fomentou a produo de conhecimento sobre o mundo colonial. Por meio de acmulo de informaes, esses vnculos consolidaram a idia de imprio e a

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    constituio de uma faco da elite, responsvel por defender a unidade entre as provnciais, ao invs de lutar por um projeto separatista. Os bacharis de Coimbra planejavam intervenes na economia para torn-la competitiva, mas descartavam qualquer reforma capaz de ameaar a sociedade de ordens, a antiga estrutura scio-econmica. Pretendiam conservar a gura do rei e os privilgios nobilirquicos por temerem os dissabores de uma ruptura capaz de conduzir a revoltas comandadas pelas elites locais ou por mulatos, negros e escravos, tal como varreu a colnia francesa em So Domingos e fragmentou a Amrica es-panhola. Essa congurao explica o nascimento de uma elite conservadora e responsvel, inicialmente, por defender a unio com Portugal e, posteriormen-te, por consolidar a autonomia poltica comandada pelo prncipe D. Pedro.

    No primeiro captulo busquei explorar a origem do sistema de patronagem e o mecanismo de controle a distncia sobre as redes que compunham o im-prio colonial portugus entre os sculos xvi e xvii. Nos primeiros tempos, os vassalos lutavam contra invasores europeus, enfrentavam levantes indgenas, percorriam rios e desbravavam os sertes em busca de ndios e metais preciosos. Para tornar seus servios relevantes ao monarca, sobretudo no perodo lipino, os primeiros conquistadores descreviam as grandezas e estranhezas das terras braslicas. Sem conhecer as potencialidades da Amrica portuguesa, o monarca castelhano no remuneraria seus feitos. Para valorizar as demandas, Gabriel Soares de Sousa e Bento Maciel Parente enviaram aos Felipes a relao de seus servios e os inventrios da natureza e das comunidades indgenas.

    Depois de 1640, com a Restaurao e as guerras contra os neerlandeses, a Amrica portuguesa, aos poucos, conquistou um espao de destaque no con-junto das conquistas lusitanas. Se antes as riquezas braslicas eram indispens-veis para engrandecer os feitos dos vassalos, na segunda metade do seiscentos a importncia do Atlntico portugus tornou os servios militares de seus mo-radores indispensveis para manuteno do equilbrio poltico e econmico de Portugal. A partir de ento, os vassalos deixaram de produzir os inventrios e trataram de descrever somente seus feitos militares nas guerras em Pernambuco, Bahia e Angola. Terminava, assim, a primeira fase da produo de conhecimen-to sobre o mundo colonial, quando os vassalos escreviam notcias ao rei para inform-lo sobre suas conquistas.

    No entanto, anos depois, a produo de conhecimento seria retomada, em-bora sua lgica fosse invertida, tema do segundo captulo. No partia dos vas-salos a iniciativa de enviar notcias ao soberano. Pressionado por questes de limites e ocupao do serto americano, a monarquia tornou-se patrona da

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    cincia, formando um corpo de funcionrios capaz de conduzir o governo a dis-tncia, segundo os princpios da cincia setecentista. Inicialmente, a monarquia contratou professores italianos e alemes para ensinar e participar nas expedi-es no interior da Amrica. Essa equipe tambm atuou, durante o governo pombalino, na elaborao da reforma da Universidade de Coimbra e criao de cursos de losoa e matemtica, conhecimento indispensvel para promover o estreitamento de laos entre as partes do imprio. Esses planos no pretendiam intervir apenas na Amrica portuguesa, mas nas possesses africanas e asiticas. Em princpio, os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777) incenti-varam a produo de conhecimento geogrco, mas a Secretaria de Estado da Marinha e Negcios Ultramarinos exigia dos demarcadores o avano da histria natural, sobretudo depois de criado o Museu de Histria Natural que reuniria colees de plantas, animais e minerais dos mais distantes rinces das conquis-tas. Se a geograa permitia a delimitao das fronteiras, a histria natural reunia notcias de plantas, lavouras e comunidades indgenas, responsveis pela efetiva ocupao dos limites e fomento do comrcio colonial.

    Embora as primeiras remessas de espcies chegassem Secretaria de Estado e ao Museu de Histria Natural a partir dos anos de 1770, somente com as via-gens loscas o conhecimento da histria natural se rmaria como relevante e conduzido segundo os princpios cientcos, tema do terceiro captulo. As primeiras expedies avanaram sobre o alm-mar, em 1783, sob comando de naturalistas, formados em Coimbra. As viagens dirigiam-se ao Par, Goa, Mo-ambique, Angola e Cabo Verde. A partir da farta documentao produzida pela Viagem Filosca ao Par, percebe-se os sentidos conitantes dos empre-endimentos. Durante nove anos, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira percorreu as capitanias do Par, Rio Negro e Mato Grosso, enviou remessas, dezenas de memrias e desenhos Secretaria de Estado. Ao retomar a Lisboa, seus estudos no tiveram continuidade, as remessas caram intocadas e os es-critos permaneceram em manuscritos imprprios publicao. A fragilidade cientca era recorrente em quase todos os estudos produzidos no ultramar, o que indicava a debilidade das instituies cientcas da metrpole, o esvazia-mento da Universidade, museus e academias, particularmente depois dos anos 1790. A carreira de Alexandre Rodrigues Ferreira forneceu-me elementos irre-futveis da mencionada debilidade cientca.

    Ao invs de seguir os passos dos afamados naturalistas, Ferreira, ao retornar do Par, inseriu-se paulatinamente na burocracia, recebeu privilgios pelos ser-vios prestados e abandonou o ofcio de naturalista, tema do quarto captulo.

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    A patronagem rgia tambm promoveu a ascenso social de Jos Bonifcio de Andrada e Silva e o afastou, paulatinamente, das pesquisas ao conceder-lhe inmeros cargos e ttulos honorcos. Embora ele mantivesse vnculos com a Universidade de Coimbra e com a Academia das Cincias de Lisboa, essas instituies, antes mesmo do perodo napolenico, estavam francamente de-bilitadas e decadentes, segundo suas prprias palavras. poca, Andrada e Silva se ressentia do ostracismo e da impossibilidade de participar da alta ad-ministrao no Rio de Janeiro. De fato, no incio do sculo xix, os homens de cincia no mais percebiam as instituies cientcas como espao de prestgio e migraram para as altas esferas da burocracia estatal. Mas essa estratgia so-mente era vivel para os naturalistas bacharis em leis.

    O quinto captulo explorou as distintas trajetrias de lsofos e juzes-na-turalistas. Ambos atuavam como naturalistas, mas os primeiros eram egressos da faculdade de losoa enquanto os segundos atuavam como magistrados que tiveram, na Universidade, formao losca, embora incompleta. A partir da trajetria dos juzes de fora Baltazar da Silva Lisboa e Joaquim de Amorim Cas-tro, percebe-se que a histria natural era parte de uma estratgia para reunir honra e se aproximar do secretrio de Estado e do soberano. Para tanto, reme-tiam espcies raras ao Museu de Histria Natural, escreviam memrias econ-micas e, em seguida, pleiteavam ascenso na carreira de magistrado. A cincia era um meio de servir ao soberano e acumular prestgio. Aos lsofos, porm, estavam vetados esses cargos. De fato, havia, por parte da administrao, um ntido favorecimento dos juzes-naturalistas. O nico lsofo a exercer somen-te o ofcio de naturalista era Alexandre Rodrigues Ferreira, os demais deveriam atuar em inmeras outras atividades para sobreviver. Como bem salientou Jos Bonifcio, o curso de losoa natural era cada vez menos procurado pelos estu-dantes devido falta de apoio por parte do Estado.

    De todo modo, os naturalistas, fossem lsofos ou magistrados, envolve-ram-se, nos anos de 1790, em rumores de sedio e incondncias nas capita-nias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. Em apuros, os naturalistas en-frentaram investigaes e processos que resultaram em sentenas nitidamente distintas. Os lsofos foram presos, como lvares Maciel e Bettencourt Acioli, sendo o primeiro castigado com degredo em Angola, onde faleceu anos depois. As suspeitas sobre a lealdade dos juzes-naturalistas, porm, no resultaram em prejuzos para suas carreiras na magistratura. Anos depois seriam condecora-dos com ttulos de cavaleiro e lugares de desembargador da Relao do Porto e Rio de Janeiro.

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    De todo modo, ao longo do setecentos, matemticos e naturalistas reuniram conhecimento indispensvel para tornar menos abstrata a idia de imprio. Ma-pas, colees e memrias conduziram a Lisboa os fragmentos do imprio colo-nial e viabilizaram uma poltica responsvel por fomentar a interdependncia entre as provncias. Valendo-se desses testemunhos, o secretrio de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho traava planos para harmonizar os pleitos e forta-lecer a sacrossanta unidade, embora os acontecimentos tramassem em favor do enfraquecimento da centralidade de Lisboa e da gura do monarca. A intensa produo de inventrios era uma estratgia de aperfeioar o governo a distncia e criar uma identidade imperial.

    No sexto captulo, analisei os inventrios visuais dos povos das conquistas. Entre 1780 e 1800, Leandro Joaquim, Carlos Julio, Jos Joaquim Codina e Joaquim Jos Freire, os dois ltimos riscadores da Viagem Filosca ao Par, produziram imagens dedicadas a retratar a diversidade de povos nas mais dife-rentes provncias do ultramar, em Macau, Goa e Amrica portuguesa. Se antes, essas naes foram fartamente descritas na correspondncia e nas memrias, nesse perodo, as autoridades metropolitanas consideraram pertinente identi-car suas caractersticas visuais para tornar mais concreto o domnio monrquico sob terras e povos.

    Ao comandar a Viagem Filosca, Alexandre Rodrigues Ferreira criou uma taxonomia muito original, baseada na capacidade tcnica dos tapuias. Suas reexes foram registradas nas memrias, desenhos, remessas e na intrigante coleo de produtos industriais. O controle sobre a natureza era indcio cru-cial para o naturalista, capaz de avaliar a civilidade dos grupos. No entanto, suas investidas no se resumiam a perceber como as plantas se transformavam em artefatos entre os ndios da Amrica. Ao analisar a lista de produtos indus-triais, evidencia-se a preocupao de Ferreira com a evoluo tcnica das raas. Ele no se preocupava apenas com os tapuias pois incluiu na coleo artefatos dos negros de Benguela e Angola, dos indianos e chineses de Macau. Estavam, ento, presentes testemunhos materiais das trs raas: americana, chinesa e africana. Para escrever memrias e formar a coleo, Ferreira inspirou-se nos trabalhos do escocs William Robertson e do naturalista francs Buffon, o que demonstra a existncia do dilogo do naturalista com importantes pensado-res do sculo das luzes. As reexes de Ferreira sobre os povos e os planos de redigir a Histria da Indstria Americana no tiveram, porm, repercusso em Portugal. Na Academia das Cincias de Lisboa, os debates e as publicaes giravam em torno da agricultura e da modernizao dos demais processos pro-

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    dutivos, razo talvez para permanecerem desconhecidas suas anlises sobre o progresso das tcnicas.

    As viagens ultramarinas ainda viabilizaram a composio de memrias eco-nmicas sobre as relaes entre metrpole e colnias, tema do stimo captulo. Os inventrios da natureza, povos e produtos industriais tornaram mais palpvel a idia de imprio. A partir desses inventrios, D. Rodrigo de Sousa Coutinho e a elite luso-brasileira investigaram as conexes comerciais entre o Brasil e a me-trpole, entre o trco de escravos nas conquistas africanas e as lavouras de cana e tabaco na Amrica. As transaes comerciais eram quase sinnimo de vnculos imperiais, embora esses testemunhos ainda valorizassem a circulao de plantas, a produo de manufaturas, os ensinamentos agrcolas, a cartograa e os povos. Ao concentrar seus esforos nos vnculos entre o reino e a Amrica portuguesa, suas reexes antecedem e preparam a abertura dos portos e a elevao do Brasil a reino unido a Portugal. Depois de 1808, com os plos invertidos, a relao me-trpole e colnias sofreu uma ntida transformao. No momento que o Rio de Janeiro era o centro do imprio, a elite luso-brasileira juntou esforos para asse-gurar a harmonia entre as provncias como planejara o bispo Azeredo Coutinho e D. Rodrigo de Sousa Coutinho. A elite coimbr, sobretudo os magistrados, aos poucos, ocupou postos na burocracia e buscou fortalecer a monarquia. Jos da Silva Lisboa e Jos Bonifcio de Andrada e Silva foram os principais defensores do reino unido e da monarquia dual. Preparam, assim, a independncia poltica capitaneada pelo prncipe D. Pedro.

    Agradecimentos

    Esta pesquisa iniciou-se em ns de 1995, na importante biblioteca do Ibero-Ame-rikanisches Institut Berlin. Este estgio realizou-se com apoio do convnio Ca-pes/daad e do convite professor Dietrich Briesemeister. Anos depois, em 1999, como bolsista da Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, realizei pesquisa documental e bibliogrca na Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre 2002 e 2003, nanciado pela Capes, realizei estgio ps-doutoral na ehess e na Universit de Paris-Sorbonne (Paris iv), onde pude contar com a va-liosa contribuio de Serge Gruzinski e Luiz Felipe de Alencastro. Minha partici-pao nos seminrios coordenados por Gruzinski foram decisivos para elaborao do primeiro e do stimo captulo deste livro. Em Paris, tive ainda a oportunidade de discutir o rumo da pesquisa com Kapil Raj, Jean-Marc Drouin e Pietro Corsi

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    no Centre Alexandre-Koyrs (ehess). Entre 1995 e 1996, realizei estudos no Ar-quivo Histrico Ultramarino e na Torre do Tombo, nanciados pela Fundao Biblioteca Nacional e pelo Pronex/cnpq/Faperj. Entre 1996 e 2006, contei com a bolsa de Produtividade em Pesquisa e Iniciao Cientca do cnpq.

    Em Portugal, agradeo o apoio do meu amigo Joo Carlos Pires Brigola, de Jos Lus Cardoso, ngela Domingues, Pedro Cardim, Nuno Monteiro e Ma-falda Soares. No Brasil, contei com a colaborao de Lorelai Kury, Marcos Chor Maio, ngela Porto, Marco Antnio Silveira, Slvia Hunold Lara, Evaldo Cabral de Mello, Carlos Gabriel Guimares e Magnus Roberto de Mello Pereira. Agra-deo ainda a Neil Saer, Jorge Caizares-Esguerra e aos colegas da Companhia das ndias.

    Tive ainda o valiosssimo apoio de colegas e amigos que analisaram as primei-ras verses dos captulos ou de todo o livro. Agradeo ao meu grande amigo Ro-naldo Vainfas, Guilherme Pereira das Neves, ris Kantor, Thiago Krause e Rafael Marquese. Por m, lembro de meus alunos de graduao e ps-graduao que tiveram participao ativa na elaborao deste livro.

  • a escrita e a espada em busca de merc

    O imprio martimo portugus integrava pontos dispersos nas quatro partes do mundo. Eram fortalezas, feitorias e pequenas terras delimitadas por oceanos. Con-tando com populao diminuta, a Coroa deveria arquitetar meios de manter vastas reas sob controle, valendo-se de estratgias para compensar as longas distncias entre Lisboa e as possesses apartadas. A descontinuidade geogrca era particular no Estado da ndia, que compreendia conquistas e descobertas no imenso litoral entre Moambique e Macau. Essas possesses formavam redes, unidades interliga-das pela circulao de bens, pessoas e instituies. O domnio espacial era menos relevante, quando comparado circulao mercantil e ao controle martimo. Nas localidades, por vezes, a organizao jurdica, poltica e administrativa adaptava-se tanto aos interesses de mercadores portugueses quanto tradio das comunida-des conquistadas ou aliadas.1 Embora as possesses se mantivessem interligadas metrpole, no existia, at o sculo xix, uma constituio colonial unicada. O imprio ultramarino, enm, signicava conexo de pontos dispersos, laos que multiplicaram, entrelaaram ou extinguiram-se ao longo do tempo.

    Para manter a unidade, a monarquia estabelecia nas possesses, ora um gover-no tradicional e formal, inspirado nos modelos administrativos do reino, como os concelhos e as capitanias-donatarias; ora recorria a controles menos institucionaliza-dos, mais frouxos, como fortalezas, feitorias, protetorados e vassalagem. Os entraves nanceiros e populacionais originaram um conjunto heterogneo, descentraliza-do, formado por ncleos polticos relativamente autnomos. Os portugueses do alm-mar no se rmavam apenas nas reas com estrutura militar e administrativa formal. O imprio ainda reunia comunidades lusitanas amplamente autnomas, apesar de adotar as instituies civis do reino, como os mercadores de So Tom no leste da ndia e em Macau. Havia, igualmente, indivduos que adquiriram terras, vilas ou jurisdio sobre povoados estabelecidos fora do imprio formal, como os afro-portugueses muzungos da Zambsia, os paulistas no interior da Amrica Por-tuguesa, os mercenrios em guerra em Burma e Sio. Nesse rol constavam tambm

    1 Lus Filipe Thomaz. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. p. 207-210.

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    os portugueses casados e residentes fora da jurisdio portuguesa, que recusavam as instituies civis da ptria e no se incorporavam ao domnio imperial. Vale ainda incluir os missionrios, as comunidades crists e as elites aportuguesadas, como a do reino do Congo.2 Enm, a presena lusa nos continentes longe esteve de uma regularidade, o imprio estava em construo, e por isso torna-se interessante en-tender, ao menos em parte, sua dinmica centralizadora. Para tanto, recorro aos la-os entre o soberano e alguns sditos radicados na Amrica Portuguesa como pon-to de partida para pensar a dinmica dessas conexes entre os sculos xvi e xvii.

    Mesmo com projeto de colonizao agrcola, por muito tempo, o Brasil tam-bm interligou-se metrpole de forma fragmentada, era arquiplago.3 Em princpio, a presena lusa no promoveu controle extensivo do espao. Compar-timentado entre o litoral e o serto, os domnios portugueses se resumiam a pou-cos ncleos nas proximidades do mar e rios, que atuavam como ilhas, enquanto a imensido de terras permanecia quase alheia ao processo da conquista. Nem mesmo o governo-geral, institudo em 1549, reverteu a tendncia centrfuga, permitindo que a mais prspera capitania, Pernambuco, mantivesse, tempos de-pois, vnculos mais fortes com Lisboa, ao invs de aliar-se ao centro administra-tivo em Salvador. Os conitos e a frgil integrao entre os ncleos explicavam os entraves centralizao poltica que ainda se atroava com guerras externas e internas. Ao mencionado descompasso, acrescentava-se a diversidade de naes que inviabilizava uma legislao unicada para os povos das conquistas.

    Ali havia moradores brancos provenientes do reino ou nascidos na Amrica, reinis e mazombos; cristos velhos e novos; mestios diversos; ndios escravos e livres, tupis e muitos tapuias; negros forros e escravos. Os reinis cristos velhos estavam mais aptos a assumir cargos e receber privilgios, enquanto os escravos eram, depois dos mestios e forros, os mais perifricos em relao ao poder cen-tral. A coroa relutava em conceder altos cargos pblicos a pessoas com sangue impuro pela origem negra, indgena ou judaica.4 A diversidade tnica e social

    2 Malyn Newitt. Formal and informal Empire in the History of Portuguese Expansion. Portugue-se Studies, 17: 2001, p. 1-21; Antnio Manuel de Hespanha e Maria Catarina Santos. Os poderes num imprio ocenico. In: 4. Histria de Portugal. O Antigo Regime. Dir. de Jos Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 395-413.

    3 Sobre o tema ver: John Russell-Wood. Centro e periferia no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Revista Brasileira de Histria. v. 18, n. 36, 1998.

    4 Sobre a heterogeneidade da sociedade colonial, ver: C.R. Boxer. Relaes raciais no Imprio Co-lonial Portugus (trad.) Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1967; Maria L. Tucci Carneiro. Preconceito racial no Brasil Colonial. So Paulo: Brasiliense, 1983; Stuart B. Schwartz. The formation of a Colonial Identidy in Brazil. In: Nicholas Canny and Anthony Pagden (ed.) Colonial Identity in the Atlantic World. Princeton: Princeton University Press, 1987. p. 15-50.

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    tornava ainda mais difcil a administrao colonial, situao que se agravava de-vido inexistncia de um corpo de leis especco para a possesso. As Ordena-es Manuelinas e Filipinas foram igualmente aplicadas na Amrica com auxlio de leis extravagantes. Criadas para o reino, essas leis nem sempre eram adequa-das heterogeneidade social vigente no ultramar. Se as distncias, os inmeros grupos e conitos eram como foras centrfugas, havia, porm, elementos que atuavam como ims, atraindo para o centro pontos distantes da periferia.5

    O comrcio e a agricultura constituam fatores indispensveis ao funciona-mento da grande rede comandada pelos portugueses. Os diversos pontos inte-gravam-se pela circulao de mercadorias, homens e instituies. Oriundos dos domnios ultramarinos, o pau-brasil e a cana-de-acar ativavam a economia metropolitana e impulsionavam a interdependncia entre as reas americanas e Lisboa. A partir de ns do sculo xvi, o trco de escravos ainda ativava co-nexes entre as costas da frica e Amrica, como bem demonstraram Boxer e Alencastro.6 O comrcio fomentava a construo de vilas e fortalezas, indis-pensveis defesa do territrio. Em 1530, o plano de colonizao do Brasil pretendia, ao mesmo tempo, proteger as terras contra as investidas estrangeiras e inserir a possesso no comrcio internacional, a partir da produo de cana-de-acar. Ao longo do quinhentos, percebe-se que a insero de novas reas coloniais obedecia a mesma lgica, a integrao comercial. As capitanias de So Vicente, Pernambuco e Bahia caram mais prximas da metrpole por meio do acar. O produto atraa investimentos, reinis, comerciantes e escravos, pro-movia a construo de fazendas, vilas, forticaes, igrejas, reproduzindo nos trpicos as instituies portuguesas.

    No entanto, a agricultura e a extrao de pau-brasil no eram as nicas po-tencialidades da conquista. Havia ainda muitas reas frteis e recursos a serem descobertos ao longo do litoral e no interior dos sertes. Para manter o monarca informado, os vassalos percorriam a costa e as terras, realizavam descobertas e, logo, comunicavam ao centro os resultados do empreendimento. Os primeiros escritos narravam a surpreendente fertilidade do solo, indicavam a existncia de minas, mapeavam os rios navegveis, descreviam os habitantes, as plantas e os

    5 Sobre os conceitos de centro e periferia ver: Edward Shils. Center and Peripheries; essays in mac-

    rosociology. Chicago: The University of Chicago Press, 1975; Jack P. Greene. Transatlantic Coloni-

    sation and the redenition of Empire in the Early Modern Era. In: Negociated Empires; centers and

    peripheries in the Americas. London: Routledge, 2002. p. 267-282.6 C.R. Boxer. Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola. (trad.) So Paulo: Companhia Editora Na-

    cional, 1983; Luiz Felipe Alencastro. O trato dos viventes. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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    animais. Essas notcias eram, aqui e ali, formas de manter as redes em funciona-mento, de incrementar os laos entre Lisboa ou Madri e a Amrica. As viagens, enm, promoviam estreitamento entre mundos apartados. Nos dirios, os vas-salos recriavam a natureza e os feitos portugueses no ultramar e os conduziam a Portugal ou a Castela, no tempo da unio das Coroas. Eram por meio de papis que o monarca tomava conhecimento das terras, traava estratgias para posse e efetiva explorao. Os escritos tambm denunciavam os desmandos dos poderes locais, os contrabandos e as prticas contrrias aos interesses da Real Fazenda. Se essas notcias eram indispensveis aos empreendimentos ultramarinos, os vas-salos, sobretudo os sditos letrados, almejavam privilgios que atuavam como recompensa para as viagens exploratrias e as notcias reunidas.

    As trocas entre vassalos e o soberano permitem entender, em uma outra perspectiva, os vnculos entre o centro e as periferias. Por meio de invent-rios, crnicas e mapas, o mundo colonial era codicado e transformado em papel para ser enviado ao ncleo administrativo. No passado, esses registros viabilizavam o domnio de terras distantes, enquanto hoje permitem reetir sobre a dinmica da centralidade. As teias informativas dentro do imprio forjavam-se aos moldes da sociedade do Antigo Regime, seguiam a mesma lgica hierrquica, a mesma busca de privilgios e distines. Como qualquer servio prestado realeza, o conhecimento era parte de uma troca, de um ne-gcio entre o rei e seus sditos. Virtude prpria dos soberanos, a liberalidade era mecanismo de recompensa. Esses vassalos, por sua vez, radicavam-se no ultramar, nas franjas do imprio, e produziam conhecimento indispensvel manuteno do domnio; ao mesmo tempo, criavam elos com o rei e sua administrao, viabilizando o governo a distncia. Anal, produzir conhe-cimento era forma de estar no centro e desfrutar de privilgios prprios da corte. Mas o mundo colonial transformado e transportado em papel no in-teressava apenas Coroa. Vice-reis e governadores tambm recebiam servios de subordinados e viabilizavam cargos e mercs, concedidos pelo rei. Eram, enm, intermedirios entre os moradores das conquistas e o rei. Como o co-mrcio e a agricultura, administradores, moradores e viajantes ativavam tam-bm os laos entre as partes do imprio, alimentavam a rede, conectavam os pontos distantes sob controle dos portugueses. Esses agentes eram indispen-sveis ao processo de governar as possesses, pois interligavam terras e gentes do imprio, promoviam os negcios e efetivavam a liberalidade rgia.

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    Vnculos entre centros e periferias

    Como em Portugal, conquistar honras era a grande ambio na sociedade cas-telhana renascentista. Em servio ao soberano, os vassalos lutaram contra os mouros na pennsula e depois expandiram o reino em terras americanas. Esses feitos resultaram em cargos, terras e privilgios, prmios destinados a retribuir o herosmo e, ao mesmo tempo, a conceder distino aos valorosos cavaleiros. As mercs, porm, no eram apenas disputadas como meio de usufruir de maiores rendimentos nanceiros. Os cargos e as terras promoviam ascenso social, era ainda forma pblica do monarca reconhecer os feitos de seus s-ditos. Nessa ordem, a busca da real generosidade aproximava os vassalos do projeto de construo do Estado que, no perodo, se confundia com a gura do rei. A concesso de cargos, postos e ofcios pautava-se na lgica da centra-lidade do rei, pois a prpria administrao era extenso do poder soberano. Na Amrica, os conquistadores procuravam obedecer ao rei com a nalidade de alcanar privilgios, dependncia que, por certo, viabilizou o controle mo-nrquico sobre os novos domnios. A ameaa de perder o controle das novas terras se estancou frente ao seu poder. Somente o rei poderia distribuir ttulos e cargos; somente ele legitimava a conquista de terras, minas e comunidades. Devido a esse princpio, mesmo distantes do centro, os vassalos da Amrica no desvirtuaram o projeto imperial. Dependiam do soberano para reconhecer seus feitos e honr-los com mercs.

    Desde Colombo, as descobertas e as expanses territoriais eram recompen-sadas com ttulos e cargos no governo. O conquistador do Mxico, Hernn Corts, criou um canal eciente, capaz de convencer Carlos v de sua lealdade e devoo catlica. Para tanto recorreu Carta de Relacin tipo de corres-pondncia ocial , que lhe permitiu justicar o emprego de armas e tornar-se um heri, perante os olhos do rei, mesmo tendo se rebelado contra o comando do governador de Cuba, Diego Velsquez. Ardiloso, Corts teve o cuidado de dramatizar eventos para assegurar-lhes veracidade, contava ainda com a pre-sena de testemunhos e a observao direta de acontecimentos. Nos escritos, as vitrias militares jamais eram atribudas sua capacidade de comando, antes eram obras da Providncia. Deus, a Virgem e os santos mereciam os crditos, e no Corts e seus companheiros. Ao recorrer escrita, informava o rei sobre os acontecimentos e dava-lhes uma explicao divina para os sucessos. Como o monarca, ele tambm alcanava vitrias ao ser guiado por Deus, comandava

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    batalhas inspirado na mesma fonte do soberano, razo da justa conduta e su-cesso do empreendimento.7

    Seu saber humanista, adquirido em poucos anos na Universidade de Sala-manca, e a coragem de enfrentar seus inimigos valeram-lhe a capitania gene-ral de toda la armada, concedida por Diego de Velzquez.8 Seriam, porm, a eloqncia literria e o envio de boa remessa de ouro ao rei os responsveis pela concesso do cargo de governador e capito-geral da Nova Espanha. Sua reputao de guerreiro extravasou as fronteiras ibricas depois da publicao das cartas enviadas a Carlos v, onde narrava as conquistas no Novo Mundo. Enm, o extraordinrio controle de armas e letras promoveu a ascenso de humilde dalgo a nobre de alto prestgio. A partir de ento, sua casa e famlia gurariam entre a aristocracia de Castela.9 Em forma de crnica, as cartas de Corts constituem mais um veculo de entrosamento entre centro e periferia, resultando igualmente em pedido de cargos e mercs. Seu testemunho refora, anal, a estreita relao entre conhecimento e poder, entre histria e monarquia. Os escritos eram partes de estratgias destinadas a centralizar o poder e forjar o Estado Moderno. Os letrados no possuam outro alvo seno o soberano; escre-viam, noticiavam e alertavam os poderes institudos no centro. Ordinariamente o consumo desses produtos realizava-se na monarquia; havia poucas possibilida-des de direcionar esses manuscritos para alm do crculo em torno do soberano. Como a distribuio de honra era meio de recompensar os servios prestados, percebe-se o justo interesse desses sditos em solicitar privilgios. Enm, o co-nhecimento no era apenas fruto da curiosidade, ou do pragmatismo, nem do amor ao soberano, mas, sobretudo, elemento de negociaes. Essa transao, no entanto, podia ter uma dinmica invertida. Nem sempre era iniciativa do vassalo o envio de notcias ao soberano, por vezes, o ltimo poderia interessar-se pelas possesses e demonstrar um explcito interesse do centro pela periferia.

    Cronista da Cesarea y Catolicas magestades, o capito Gonalo Hernandez de Oviedo e Valdes publicou em 1535 o primeiro volume da Historia general e natural de las Indias. Anos antes, 1532, ele recebera o ttulo de cronista de las cosas de las indias, fornecendo notcias das novas possesses sob encomenda de

    7 Beatriz Pastor Bodmer. The armature of conquest: Spanish accounts of the Discovery of America.

    Stanford: Stanford University Press, 1992. p. 798 Bernal Daz del Castillo. Historia Verdadeira de la conquista de Nueva Espaa. Barcelona: Plaza

    & Jans Editores, 1998. p. 949 David A. Brading. Orbe Indiano; de la Monarquia Catlica a la Repblica Criolla, 1492-1867.

    (trad.) Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1991. p. 42-44.

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    Carlos v. Depois da chegada dos tesouros mexicanos a Sevilha, o soberano teve seu interesse reavivado pela Amrica e encomendou a Oviedo, que retornava Espanha pela segunda vez, um compndio acerca das ndias. Para atender o con-vite, ele escreveu de memria o Sumario de la natureza de las Indias, impresso por ordem do imperador em 1526. Dedicada quase exclusivamente natureza, a obra destinava-se a conceder ao soberano, de forma rpida e sumria, alguma recreao. Mais tarde, os temas a tratados foram melhor explorados na Histria, quando, alm do mundo natural, abordou os descobrimentos e os avanos da conquista. Essa obra seria muitas vezes ampliada com a inteno de que antes del ltimo da de los que me quedan, yo pueda ver corrigido y en limpio impreso lo que en todas as partes de aquesta General Historia de Indias yo tengo notado.10

    Oviedo estudava a natureza segundo princpios e normas de historiadores e gegrafos como Plnio, Estrabon e Ptolomeu. Descrevia cada planta de for-ma exaustiva, ressaltando no apenas sua morfologia, mas tambm a utilidade como alimento ou como remdio. Sempre que possvel comparava as espcies americanas s espanholas para melhor descrever suas caractersticas. A percep-o pragmtica da natureza cava evidente ao relatar o emprego de distintas rvores na composio de vigas para construo de casas, ou quando da espcie obtinha-se madeira macia e apropriada para confeco de mveis, objetos de adorno e utenslios de cozinha. O grande interesse, porm, eram as plantas com propriedades medicinais, como a hierba de los remedios que era muito abundan-te e servia para curar feridas provocadas por lanas. A Historia ainda se ateve ao estabelecimento de cultivos e lavouras com plantas provenientes de Castela.11

    O protomdico de todas la Indias, Francisco Hernndez tambm recebeu instrues do soberano, Felipe ii, para realizar, durante cinco anos, inventrio das riquezas naturais da Nova Espanha. O mdico no pretendia ofertar-lhe um tratado em troca de merc, como zera Corts. Guiado por instrues do prprio soberano, ele recebeu a incumbncia de realizar um inventrio da na-tureza, a partir de uma viagem Nova Espanha. Para produzir histria natural, sua expedio era composta de um gegrafo, pintores, botnicos e conhecedores de plantas medicinais indgenas. Era, ento, o primeiro empreendimento de ca-rter racionalista e enciclopdico a desbravar e classicar a natureza para alm da fronteira da pennsula ibrica. Nascido em Montalbn, entre 1517 e 1518,

    10 Gonzalo Fernndez Oviedo. Historia General delas Indias. Sevilla: Juan Cromberger, 1535. Libro vi, proemio em vol. i, p. 143.

    11 Remedios Contreras. La ora de Amrica en la Historia general y natural de las Indias... In: Cuadernos de Historia Moderna, 16: 157-178, 1995.

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    Fernndez cursou medicina na Universidade de Alcal de Henares. Interessou-se pela botnica ao conhecer a obra do doutor Nicols Monardes, divulgador da ora americana, e ao dirigir o Jardim Botnico do Monastrio de Guadalupe na Extremadura. Somente em 1567, recebeu o ttulo de Mdico de Cmara, inte-grando-se corte de Felipe ii, quando pode contar com as benesses do soberano para expandir seus conhecimentos botnicos. Das terras americanas, recolheu e descreveu cerca de trs mil espcies, com especial interesse pelas plantas medici-nais. No amplo compndio, forneceu detalhadas notcias dos produtos naturais, suas propriedades e nomeaes em diversas lnguas indgenas. Com esses sub-sdios, produziu herbrios e obra monumental que, em parte, perderam-se em incndio no El Escorial em 1671. A smula de sua obra, porm, preservou-se graas ao trabalho do doutor Antonio Recco, tambm mdico de cmara do rei, que resumiu a obra com a nalidade de public-la, o que aconteceu em Roma em 1649. A originalidade da extensa pesquisa estava na sntese entre as tradi-es botnicas ocidental e mexicana. Hernndez buscou traduzir para a cultura ocidental os conhecimentos locais, contribuindo para o debate renascentista em torno da histria natural. Seus resultados caracterizavam-se pela enorme novi-dade, motivo talvez para que seus estudos no tivessem a merecida acolhida nos meios eruditos europeus.12

    Como os demais sditos e vassalos, Oviedo e Hernndez produziram crnicas e inventrios. A dinmica dos vnculos entre centro e periferia, porm, era inver-tida. No eram os sditos ou vassalos da periferia que se dirigiam ao centro para pleitear honras em troca de conhecimento, mas ao contrrio. Desde as primeiras dcadas do sculo xvi, os monarcas espanhis demonstraram interesse em conhe-cer e controlar as possesses americanas, preservar os laos e manter a centralida-de de Madri no vasto imprio. Nesse sentido, nada se compara amplitude das Relaciones Geogrcas, questionrio composto pelo cronista e cosmgrafo do rei, Juan Lpes de Velasco. Elaborada em 1577, essa enquete reuniu dados indispen-sveis para viabilizar aprimorada cartograa do Novo Mundo, continente que ainda era desconhecido do kosmos.13 As Relaciones eram parte de uma poltica de interveno da monarquia, prpria da modernidade, e recolhiam dados, por vezes, semelhantes aos fornecidos por Oviedo e Hernndez. Exigiam, porm, a participao de vrios setores das comunidades estabelecidas na Amrica.

    12 Serge Gruzinski. Les quatre parties du monde. Paris: La Martinire, 2004. p. 183-4.13 Serge Gruzinski. La colonisation de limaginaire. Paris: Gallimard, 1988. p.139-140; Barbara E.

    Mundy. The mapping of New Spain. Chicago: Chicago University Press, 1996.

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    O questionrio era composto por cinqenta captulos, subdivididos em ge-ograa fsica, toponmia, clima, recursos agrcolas e minerais, botnica, ln-guas, histria poltica, populao, doenas e comrcio. De forma variada, esses temas esto em quase todos inventrios produzidos igualmente pelos sditos portugueses. Essa seria uma tipologia de dados presentes nos papis enviados ao centro administrativo, para informar as potencialidades do territrio. No imp-rio portugus, desconheo procedimento equivalente ao proposto no reinado de Felipe ii, pois seu cosmgrafo planejava transformar corregidores e alcaldes mayores em intermedirios, encarregados de levar questionrios e instrues s comunidades americanas. Em princpio, toda Nova Espanha deveria empe-nhar-se para o sucesso do empreendimento, no eram apenas as autoridades locais. 415 pueblos teriam de fornecer registros para aperfeioar os laos entre as possesses e a metrpole. O projeto, enm, possua ntido carter ideolgico, no pretendia compendiar apenas riquezas, mas traar estratgias para atrelar as periferias ao centro, ou melhor, tornar visveis os indissociveis vnculos de Cas-tela com os domnios ultramarinos. A visibilidade promovida pela cosmograa e cartograa efetivava a harmonia entre mundos apartados, formava corpo im-perial, estruturado a partir da gura de el-rei.

    Em propores bem modestas, os portugueses tornavam tambm visveis os meios de integrar o Estado do Brasil a Castela, fornecendo a Felipe ii registros indispensveis para compor um mapa da riqueza e estranheza braslicas. Sem os recursos do poder central, os sditos no eram capazes de reunir conheci-mentos com a mesma intensidade das Relaciones Geogrcas. Os reis portugue-ses jamais projetaram uma interveno dessa amplitude, nem mesmo nancia-ram equipes de artistas e cartgrafos para compor mapas do imprio, como os de Anton van den Wyngaerde e Pedro de Esquivel. Para Felipe ii de Espanha, os mapas eram instrumentos de governo, vitais tanto para o comando do reino quanto para expandir seus tentculos para muito alm de seus horizontes. Sem conhecimento geogrco no se poderia exercer um poder imperial convin-cente.14 No quinhentos, os reis lusos tambm investiram na produo carto-grca que entraria em decadncia no sculo seguinte. Incentivaram as crni-cas, as histrias dos feitos portugueses nas quatro partes do mundo, enquanto a histria natural era tema de pouca monta. Nem mesmo Garcia dOrta rece-bera recursos do soberano para estudar as drogas da ndia. Os conhecimentos reunidos eram frutos de empreitadas de colonos e administradores, em busca

    14 Geoffrey Parker. Sucess is never nal. New York: Basic Books, 2002. p. 96-121; ver tambm Barbara E. Mundy. The mapping of New Spain

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    de privilgios, e no constituam parte de um projeto de interveno estatal. Depois da Unio Ibrica, os incentivos para conhecer o mundo colonial torna-ram-se ainda menores. As notcias braslicas se arrefeceram logo aps o perodo holands. Os vassalos no mais escreviam ao soberano para doar seus escritos, na esperana de obter privilgios. O tempo de incertezas restaurao, guerras contra Castela e crescente dependncia lusitana ao pode econmico e militar britnico talvez, explique a perda de vigor da monarquia em presentear os vassalos-escritores com honras e mercs.

    Se na monarquia portuguesa, a natureza no era parte da poltica de in-tegrao de mundos apartados, as crnicas dedicadas expanso ao Oriente receberam especial interesse. A histria dos feitos portugueses viabilizava o es-treitamento entre o monarca e as possesses do ultramar. A histria de cercos e batalhas travadas ao longo da costa exaltava o gnio portugus, relatava a expanso comercial e as guerras contra os reinos orientais. Entre os sculos xvi e xvii, Joo de Barros e Diogo do Couto eram seus maiores expoentes e regis-traram inmeros episdios dedicados glria de cavaleiros. Eram recorrentes as narrativas centradas em heris que, com amparo de santos, arriscaram suas vidas em nome da expanso do imprio luso. As crnicas atuavam como tes-temunhos da valentia e da delidade ao rei, realizaes que, por vezes, seriam lembradas pelos prprios protagonistas ou por seus descendentes nas peties dirigidas ao soberano. Anal, a histria dos feitos era meio legtimo de pleitear e atribuir mercs. Quando registrados nas crnicas, os servios ganhavam noto-riedade e os heris reconhecimento, tornando-os aptos a pleitear prmios.15

    Em princpio, os descobrimentos originaram dois tipos de literatura dirigida aos soberanos. O primeiro explorava as potencialidades do comrcio, exaltava riquezas e singularidades, realizando um inventrio da geograa, da natureza e das comunidades. Dedicado aos feitos de sditos em mares distantes, o segundo obedecia a uma cronologia, era histria destinada a singularizar acontecimentos e heris. Freqentemente, inventrios e crnicas estavam presentes em uma ni-ca narrativa. Para alm da diversidade, essa produo escrita dirigia-se ao sobe-rano e contava como servio equivalente aos atos de bravura. Assim privilgios e concesses eram atribudos como recompensa, de valor honorco e econmico, como forma de retribuir a manuteno dos laos entre metrpole e possesses. Esses sditos atuavam na defesa da ptria, que se fazia tanto pela expanso terri-torial quanto pelo aumento do comrcio.

    15 Fernanda Olival. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Lisboa: Estar, 2001. p. 24

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    Cronista dos feitos na sia, Joo de Barros teve igualmente recompensa por exaltar a ptria e narrar a expanso portuguesa, escusado dizer que se trata do que viria a ser historiador da ndia, com tanta glria para a nao, e fortuna para a ln-gua....16 A escrita da histria, portanto, permitiu-lhe entesourar merecimentos que lhe renderia merc. Em parceria com Aires da Cunha, recebeu de D. Joo iii uma extenso de terras dispersas no norte do Brasil, entre a Paraba e o Rio Grande do Norte. O cronista no se aventurou nas novas terras, enviando dois de seus -lhos e um delegado de conana, Fernando lvares, todos embarcados na frota do capito-do-mar e tambm donatrio Aires da Cunha. Em 1551, depois de funestas tentativas de estabelecer-se nos quinhes, a frota deslocou-se rumo ao Maranho, onde muitos pereceram em naufrgio. A custa de rduo trabalho e dispndio, Joo de Barros pde reaver os lhos, mas restou-lhe uma enorme dvida que contrara com as viagens. Mais tarde, D. Sebastio a perdoou e, depois de morto o cronista, ainda concedeu outra merc viva. Na poca de Felipe ii, o lho, Jernimo de Barros, recebeu indenizao dos direitos sobre a capitania.17 Assim, mesmo com os insucessos, o servio prestado ptria seria recompensado pelo monarca.

    Joo de Barros deixou-nos uma explicao singular dos vnculos entre sditos e soberanos, armando que os homens eram mais dispostos a conceder frutos voluntrios que encomendados. Forneciam diligentemente seus prstimos com a mesma naturalidade que as plantas forneciam sementes. Imitando a terra, sua madre, Barros dedicou-se glria das armas comandadas pelo soberano. De livre vontade, escreveu sobre patrcios que militaram e verteram sangue em guerras orientais. Dirigindo-se ao rei, o cronista confessou ser o primeiro a brotar este fruto de escritura desta vossa sia, se lcito por ser rvore agreste, rstica e no agricultvel, poder merecer este nome de fato ante a vossa real Majestade. Desse modo, buscou naturalizar a subordinao ao rei e o dever moral de registrar os feitos portugueses no Oriente. Assim, ao mesmo tempo, ele guardava a memria dos valorosos guerreiros e preservava o saber indispensvel conquista e admi-nistrao do reino e do Estado da ndia. Barros advertia o soberano da conveni-ncia de preservar registros de eventos passados tanto no prprio reino e imprio, como nos vizinhos: lio das Crnicas dos reinos vizinhos, com que comuni-cam e tem conferncia de negcios, e de si a toda outra histria proveitosa.18

    16 Francisco A. Varnhagen. Histria Geral do Brasil. v. 1, t. i. So Paulo: Ed. Itatiaia/Edusp, 1981. p. 144.17 Francisco A. Varnhagen... p. 143, 192-196.18 Joo de Barros. Terceira Dcada, prlogo In: sia de Joo de Barros, dos feitos que os Portugueses

    zeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Primeira Dcada. Lisboa: Imprensa

    Nacional-Casa da Moeda, 1988.

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    Muito tempo depois de cessadas as edies das Dcadas, o legado de Joo de Barros teve continuidade com Diogo do Couto. Ao escrever Soldado Prtico (ca.1565), o primeiro fez severas crticas ao governo da ndia, considerando-o como rapina organizada em favor de clientela comandada pelo prprio vice-rei. Sob encargo ocial tornou-se cronista dos feitos portugueses, comps algumas Dcadas da sia, entre a quarta e a nona dcadas. A turbulenta histria dessas edies seguiu entre roubos, cortes e censuras: a quarta, a quinta e stima dcadas foram devidamente publicadas, a sexta ardeu na casa do impressor, a oi-tava e a nona foram roubadas e a dcima primeira perdeu-se. Em relao ao ante-cessor, Couto destacou-se pela longa vivncia na ndia, que lhe permitia conhe-cer as coisas do Oriente, consultar relatos orais e documentos inacessveis aos escritores radicados na Europa, pois era guarda-mor do arquivo real de Goa. Os poderosos nem sempre aprovavam as histrias narradas pelo cronista, pois delas dependiam para pleitear junto ao rei recompensas pelos servios prestados.

    Diogo do Couto era natural de Lisboa, teria sido criado e educado sob a pro-teo do infante D. Lus. Esteve na ndia desde os 17 anos, onde tomou parte em escaramuas e batalhas. O pendor para as letras certamente teve origem no ambiente palaciano, experincia responsvel pelo conhecimento histrico e pe-las formas de governar. Era ainda bem informado da situao de Portugal e de potncias concorrentes, atributo que faria dele um soldado singular. Em Goa, o vice-rei D. Antnio de Noronha o encarregou da provedoria dos armazns, com muita merc e vantagens. Sob ordem do governante, providenciou ainda armadas em socorro de Chale, Damo, Baaim e Columbo, entre 1571 e 1573. Enm, Diogo do Couto aproximou-se do vice-rei ao emprestar mantimento e prover armadas regulamente. Por vezes, era convidado para conversas conden-ciais, para relatar suas experincias.

    Em 1589, em carta a Felipe ii, Couto solicitou a criao da Torre do Tombo de Goa e do cargo de guarda-mor do arquivo. Para atuar como cronista ocial, apresentou ao soberano trs livros dedicados histria dos ltimos vice-reis da ndia. No deu bons resultados a primeira tentativa de ser cronista dos feitos portugueses, embora, anos depois, ele insistisse no pedido. Somente em 1595, o rei o nomeou sucessor de Joo de Barros e guarda-mor do Tombo, respons-vel por escrever a histria da ndia, repartida em dcadas, a partir do ponto em que Barros a encerrara. Como cronista, tentou obter o hbito de Cristo com o apoio do vice-rei D. Francisco da Gama. Em princpio, Felipe iii o concedeu essa e muitas mercs, porm a Mesa de Conscincia e Ordens emitiu parecer negativo, talvez, motivado por sua origem cristo-nova. Diogo do Couto fale-

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    ceu em 1616; no enterro, estavam presentes o vice-rei e o arcebispo, como ele pedira em testamento.19

    No Soldado Prtico, Couto pretendia fornecer elementos para entender e con-ter a decadncia do Estado da ndia. Suas crticas estavam inseridas em dilogos entre um vice-rei e um soldado, entre reinol recm-chegado e veterano de guer-ras e negcios. O soldado dos dilogos no era, porm, Diogo do Couto, pois o primeiro chegara ndia por volta de 1524, ou melhor, muito antes do cronista, e contava com quarenta anos de vivncia nos mares orientais. De fato, o solda-do era portugus de origem humilde, morador por quarenta anos em paragens orientais, vtima de capites e administradores de alta hierarquia, senhores obsti-nados em rapidamente enriquecer. Recorrendo experincia, o soldado consta-tou recuo do vigor marcial e crescente perda das praas.

    Para reagir decadncia, props retorno guerra como meio de submeter s populaes e reverter os interesses particulares em favor do monarca catlico. O interlocutor era o recm-nomeado vice-rei da ndia que, ao saber da eleio para o cargo, logo solicitou a presena do soldado veterano para dissertar sobre a verdade de alguns temas que se mostravam proveitosos para o bom governo. Conhecedor da arte de governar e dos vnculos com o centro, Diogo do Couto aconselhava os governantes a conhecer seus territrios antes de atuar. A valori-zao da experincia seria melhor caminho para servir ao governo e fazenda de Sua Majestade: H outros homens que, por querer alcanar e saber cousas que no sabem bem, pelas no terem nunca vistas, nem praticadas, por virem a ter delas verdadeira informao, trabalham para efetuar seus desejos por meio de homens que as viram, trataram e praticaram....20 O dilogo, portanto, possua carter reformista, concebido para denunciar desvios e indicar bom termo para disputas entre soldados e dalgos. A centralidade do rei tornava-se fortalecida por experincias de sditos distantes (soldado e mercadores) que se dirigiram administrao metropolitana para narrar contrariedades aos interesses reais.

    Sem denunciar desvios, nem propor reformas, o cartgrafo Ferno Vaz Dou-rado forneceu ao rei um tipo de saber indispensvel manuteno do imprio. O controle sobre territrios e rotas sempre mobilizou o Estado a contratar car-tgrafos para mape-los. Somente por meio de mapas e atlas, o imprio deixava

    19 Antnio C. Martins. Introduo In: Diogo do Couto. O primeiro Soldado Prtico. Lisboa, cn-cdp, 2001. p. 14-18 e 74-77.

    20 Diogo do Couto. Observaes sobre as principais causas da decadncia dos Portugueses na sia,

    escritas por Diogo do Couto em forma de Dilogos, com o ttulo de Soldado Prtico. Lisboa: Academia

    Real das Sciencias, 1790. p. 361-362.

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    de ser algo distante e desconhecido para se tornar visvel e controlvel. Essas imagens eram abstrao de paragens distantes, recriao de litorais, pennsulas, ilhas e continentes. Sem eles toda experincia acumulada pelos conquistadores e viajantes estaria perdida. Sem esses rumos, os navegadores deveriam descobrir as mesmas rotas a cada vez que a percorressem. Sintetizam, enm, conhecimento proveniente no somente da geograa, mas igualmente da etnograa e da hist-ria natural. Por essa razo, a cartograa quinhentista rene elementos diversi-cados dos territrios, representando limites terrestres, ventos, correntes e povos. Os mapas expressam, portanto, projetos de centralizao do poder, de constru-o de um centro e vrias periferias. Eram ainda meios de expandir fronteiras, ampliar o comrcio, controlar povos e negociar com imprios rivais. Os dirios, tratados, crnicas e mapas constituam instrumentos indispensveis ao governo imperial. Freqentemente, os reis contratavam cartgrafos para mapear as pos-sesses, mas havia tambm a possibilidade de presentear o soberano na esperana de receber merc. Talvez fosse essa a inteno de Vaz Dourado quando dedicou a D. Sebastio o atlas ricamente iluminado e datado de 1575.

    Provavelmente, Ferno Vaz Dourado nasceu na ndia, lho do moo de c-mara Francisco Dourado e uma indiana. Mesmo mestio, residiu no reino e freqentou universidade, embora pouco se saiba dessa formao. Ao retornar aos mares orientais, participou, em 1546, da defesa de Diu e embarcou para Benguela na nau de Vasco da Cunha, quando, por ser renomado cartgrafo ou navegador, ganhou referncia no roteiro dessa viagem. Em 1571, retornou ao reino em companhia de D. Lus de Atade, dcimo vice-rei da ndia, que lhe possibilitou dedicar a D. Sebastio um atlas universal, contendo imagem do soberano e armas de Portugal no frontispcio, alm de 17 cartas, duas dedicadas ao Brasil: a costa oriental e a parte meridional da Amrica do Sul. Composto em Lisboa, o atlas considerado o mais rico e detalhado do cartgrafo, possui legen-das em portugus e brases dos reinos ibricos. A estreita relao entre Vaz Dou-rado e o vice-rei remonta ao incio do governo, quando o cartgrafo dedicou-lhe igualmente um atlas universal (1568). No frontispcio, comps seu braso de armas e uma longa ta enrolada com inscrio em latim, onde se l a seguinte dedicatria a D. Lus de Atade: Lus impera, reina em submisso a Cristo. E a sua vitria certa.21 O presente certamente rendeu privilgios, permitindo-lhe, mais tarde, aproximar-se da realeza. O vice-rei, portanto, era o intermedirio, elo entre um mestio indiano e a Corte de D. Sebastio, possibilitando a intera-o entre as duas partes do imprio.

    21 Portugalia Monumenta Cartographica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.v. 3, p. 5-6 e 23

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    Como o cartgrafo luso-indiano, Diogo do Couto esperava receber privilgios como reconhecimento de seus mritos. Escrevera as Dcadas sob encargo ocial, mas mesmo assim seus rendimentos eram parcos e necessitava de honras para levantarem o esprito. Em carta a D. Francisco da Gama escreveu: [...]estou pasmado como no h um dalgo nesse Reino que persuada e grite aos ministros a me fazerem alguma honra, s por me levantarem o esprito[...].22 Nesse senti-do, vale lembrar que o desejo de conquistar honras era anterior expanso ma-rtima e comum a toda pennsula. As sociedades ibricas organizavam-se a partir de hierarquia de posies que dependiam profundamente de honras recebidas. Desde a reconquista, alavam-se privilgios por meio da espada, de vitrias mili-tares, mas aos poucos os servios prestados aos soberanos dilataram-se, e honras e tenas poderiam ser concedidas pelo emprego da escrita. Se a espada expandia as fronteiras do imprio, as letras e as cartas permitiam a manuteno, a cons-truo de uma ordem favorvel ao fortalecimento da centralidade da Coroa. Para o canonista Gonalo Mendes de Vasconcelos e Cabedo, o rei era obrigado a remunerar os servios dos seus vassalos, segundo os costumes antigos, sobretudo quando esses recursos eram insucientes.23 As ddivas reais complementavam os salrios fornecidos aos servidores da res publica, razo para Diogo do Couto reclamar melhores proventos e privilgios. O cronista ainda espantava-se com a indiferena dos intermedirios, os dalgos, que pouco reconheciam seus mritos e, portanto, no viabilizavam seus legtimos prmios. Sentia-se injustiado, pois as recompensas ofertadas no estavam altura das suas expectativas, no havia, enm, eqidade entre servio e merc.

    Os laos entre o monarca e os vassalos forjaram, aos poucos, o prprio Estado Moderno e tambm atuaram para integrar partes distantes de um vasto imprio. As trajetrias individuais permitem vislumbrar a dinmica entre servios e re-compensas, entre centro e periferias no mundo ibrico. Os exemplos, portanto, fornecem subsdios para entender uma seqncia de procedimentos que iam desde a enumerao de servios prestados e os pedidos de mercs ao reconhe-cimento monrquico e concesso de privilgios. Essa regra estar presente em quase todos os captulos deste livro e tornou-se uma lgica comum nas relaes entre o rei e os sditos, entre o sculo xvi e a primeira dcada do xix. Os vnculos vasslicos prestam-se, igualmente, para entender a insero da Amrica Portu-guesa nas redes imperiais, alm fornecer subsdios para vislumbrar as estratgias

    22 iantt, Convento da Graa, misc. cx. 6, t. ii, p. 652.23 Fernanda Olival. p. 23.

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    empregadas pelos habitantes do ultramar ao inventariar os povos, a natureza e a histria da presena portuguesa em terras americanas.

    Feitos e mercs no Brasil

    Desde Pero Vaz de Caminha, a lgica da recompensa perpassa boa parte da trajetria dos exploradores da conquista. Ao nal da famosa carta do descobri-mento, o escrivo refere-se a pedido de merc: Pois que, Senhor, certo que assim, neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa, que de Vosso ser-vio for, Vossa Alteza h de ser, por mim, muito bem servida. A Ela peo que, para me fazer singular merc, mande vir da Ilha de So Tom, Jorge de Osrio, meu genro, o que dEla receberei em muita merc.24 No era a primeira vez que a famlia Caminha solicitava ao rei cargos e favores. O pai do escrivo, Vasco Fernandes de Caminha, solicitou a D. Afonso v a nomeao do lho para substitu-lo no cargo de mestre-balana da cidade do Porto, depois de seu falecimento. O soberano acatou o pedido e concedeu ao cavaleiro da casa real, Pero Vaz de Caminha, a mencionada merc. Em carta rgia de 1496, ano da morte do pai, D. Manuel i conrmou sua nomeao. Caminha, porm, no desfrutou da funo por muito tempo, pois, em 1500, partiu rumo ndia, como escrivo da esquadra de lvares Cabral. poca, o escrivo era senhor de 50 anos, e, talvez, idoso para tamanha aventura. No entanto, poderia servir ao soberano em troca de favores, mesmo que tivesse de enfrentar mares tene-brosos para resolver problemas familiares.

    A descoberta de terras era oportunidade de escrever ao rei. Esmerando-se nos detalhes, descreveu a experincia, aquilo que via, a travessia, as praias e os povos. Em forma de dirio, tinha a responsabilidade de traduzir ao soberano os acontecimentos, desde os primeiros sinais da terra a cerimnias religiosas que asseguravam aos cristos a posse do territrio. Os homens de beios furados e nus certamente abandonariam seus costumes para abraar o cristianismo, en-quanto o solo forneceria os metais necessrios ao comrcio oriental. Alm de riquezas, a carta ainda fornecia subsdios para comprovar, junto aos soberanos de Castela, o controle sobre as novas conquistas. Anal, o relato demonstrava que as descobertas localizavam-se dentro dos limites impostos pelo Tratado de

    24 A carta de Pero Vaz de Caminha. Estudo crtico, paleogrco-diplomtico de Jos Augusto Vaz

    Valente. So Paulo: Museu Paulista usp, 1975. p. 194.

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    Tordesilhas. To logo as notcias chegaram a Lisboa, D. Manuel escreveu aos reis catlicos, tomando posse da Terra de Santa Cruz.

    Executado o esmerado servio, Caminha solicitou ao rei mais uma merc que pretendia atenuar os dilemas da lha. Ao deixar a cidade do Porto, o escrivo abandonava sua esposa e lha, senhoras que teriam de sobreviver sem apoio de seus maridos. Sua lha, Isabel de Caminha, casara-se com Jorge de Osrio, que, por cometer delitos, estava como degredado em So Tom. Na carta do desco-brimento, o escrivo solicitava ao soberano perdo e retorno do genro. Anal, ele, senhor idoso, abandonara a famlia para aventurar-se na ndia, deixando ne-tos e mulheres desamparadas. Sem conhecer a sorte do genro, Pero Vaz de Cami-nha faleceu em 16 de dezembro de 1500. Para recompensar os servios prestados e atenuar a morte do chefe de famlia, D. Manuel concedeu ao neto, Rodrigo de Osrio, o cargo de mestre-balana da cidade do Porto. Durante muitos anos, os Caminha desempenharam a mesma funo, pois D. Joo iii nomeou outro neto, que, em homenagem, tambm se chamava Pero Vaz de Caminha.25

    Com a descoberta, os portugueses promoveram, de forma incipiente, viagens de explorao e comrcio para nomear, mapear e localizar reservas de pau-brasil ao longo da costa. Antes de 1530, porm, no se produziram escritos que ampliassem os conhecimentos para muito alm da carta de Caminha. Sem ouro ou especiarias, a conquista era de pouca monta, razo do descuido. O soberano investia esforos na rota inaugurada por Vasco da Gama, enquanto a Terra de Santa Cruz perma-necia como reserva de madeira corante, explorada tanto por portugueses quanto por franceses. Alm da cartograa, os portugueses pouco se dedicavam a desco-brir e a descrever as grandezas do Brasil. No reinado de D. Joo iii estabeleceu-se, de fato, uma poltica de ocupao das novas terras que se iniciava com a expedi-o de Martim Afonso de Sousa ao litoral americano. Aps 1530, devido s inces-santes investidas francesas, o soberano iniciou efetivamente a colonizao do Bra-sil, como bem lembrou, saudoso, Gabriel Soares de Sousa. A expedio assentou padres e, em princpio, garantiu a posse de extenso litoral entre o Amazonas e o rio da Prata e, em seguida, estabeleceu ncleos de povoamento com instituies administrativas. Expulsou franceses de reservas de pau-brasil no nordeste, prote-geu a costa do ouro e prata, territrio ao sul, onde fundou a vila de So Vicente, em ilha do litoral, e uma outra, a nove lguas no serto, chamada Piratininga.

    Durante essa jornada, entre 1531 e 1532, o escrivo Pero Lopes de Sousa pro-duziu um cuidadoso dirio que, ao retornar a Lisboa, cederia a D. Joo iii, para

    25 Jos Augusto V. Valente. Pero Vaz de Caminha In: A carta de Pero Vaz...p. 40-47

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    informar-lhe dos acontecimentos.26 Os registros eram imprescindveis ao traba-lho dos cartgrafos, pois localizavam e nomeavam ilhas, baas e costas, mediam distncias, descreviam o clima e as gentes encontradas, alm de indicar paragens onde se poderiam refazer os estoques de gua e mantimento da frota. Os infor-mes eram indispensveis aos navegantes que continuariam a proteger o litoral das investidas francesas. O dirio ainda trazia notcias precisas das comunidades radicadas no litoral, destacando vnculos entre os amerndios e os invasores. Lopes de Sousa era irmo de Martim Afonso de Sousa e primo-irmo de D. Antnio de Atade, conde de Castanheiro, membro do Conselho Real e muito prximo ao rei. Estudou na Universidade de Coimbra, aventurou-se em expedi-es guarda-costas no litoral atlntico e, em seguida, percorreu a costa braslica na expedio de Cristvo Jacques, entre 1526 e 1528. Em nome do rei portu-gus, auxiliou os espanhis ao comandar a nau enviada a Tunes contra os inis. Como capito-mor de armada, deslocou-se para Goa, em 1539. Combateu em Sam juntamente com Tom de Sousa e, por todos esses servios prestados, re-cebeu como doao uma capitania no Brasil, dividida em trs quinhes: Santo Amaro, SantAna e Itamarac. Seus escritos, servios e valentia, enm, resultaram na posse de terras, privilgio que era o reconhecimento dos feitos ofertados ao soberano. Na verdade, servir a coroa constitua um modo de vida para diferentes estratos da sociedade lusitana. Parte da sobrevivncia material, o oferecimento de prstimos era condio para pedir merc, como forma de compensao. O justo prmio impulsionava sditos e vassalos a promover guerras contra os in-is, desbravar e descobrir terras, tomando notas para demonstrar ao soberano o quanto batalhou em favor da manuteno e expanso de seus domnios. Pero Lopes de Sousa, porm, no tomou posse da capitania no Brasil, talvez devido ao seu falecimento prematuro, em 1539, durante a viagem de retorno da sia, em naufrgio na altura de Madagascar.

    Por volta de 1570, a saga dos primeiros portugueses na Amrica ganhou registros que narravam os feitos de Cabral e dos irmos Sousa, descreviam a explorao de pau-brasil, a cultura da cana, a construo de vilas e engenhos. Dedicado ao mui alto e serenssimo prncipe dom Henrique, Cardeal e Infante de Portugal, o Tratado da Terra do Brasil de Pero de Magalhes Gandavo con-cedia, por certo, informaes valiosas da histria e geograa da nova possesso lusa. Seus prstimos, frutos da pura ateno, contribuiriam para aumentar e conservar, em perptua paz, sditos e vassalos, como o Cardeal sempre desejou.

    26 Pero Lopes de Sousa. Dirio da navegao. Prefcio de Teixeira da Mota. Lisboa: Agncia Geral

    do Ultramar, 1968.

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    Para Gandavo, as notcias da terra divulgariam suas riquezas entre os pobres do reino que, na Amrica, poderiam viver e cultivar a felicidade. Por essa razo, determinou-se a coligi-las com a deliberao de oferecer a Sua Alteza, a quem pediu humildemente que aceitasse, cando ele satisfeito com tamanha merc. O tratado, porm, no seria logo publicado, como fora a sua Histria da Pro-vncia de Santa Cruz (1576). O mencionado tratado somente teve impresso em Lisboa em 1826.

    Quando comparado aos escritos de Soares de Sousa, o tratado e a histria de-monstram, com nitidez, o acanhado conhecimento do territrio. Em princpio, considera-se que Gandavo esteve por aqui por pouco tempo, certamente no esteve em Pernambuco e em outras regies de onde forneceu poucas e esparsas notcias. Mas h tambm a possibilidade de nunca ter pisado em terras brasli-cas. Devido sua crnica, ele recebeu merc, como reconhecimento, talvez, de seu valor literrio e estratgico. Em agosto de 1576, no mesmo ano da publica-o da histria dos feitos portugueses no Atlntico sul, foi nomeado provedor da Fazenda da capitania de Salvador da Bahia de Todos os Santos.27

    Seus escritos possuem mrito de divulgar, em breves notcias, a fertilidade e a abundncia das novas terras. Depois de publicadas, elas ganhariam fama e incen-tivariam os sditos pobres e desamparados que as escolheriam para remediar os seus males. Para alm das lavouras, o autor mencionou dois atrativos irrecusveis e capazes de promover paz aos desvalidos do reino: metais e escravos. O aumen-to das vilas coloniais contaria com terras viosas de onde surgiriam grossas fazendas e muita prosperidade. Do interior, porm, vinham informaes da existncia de metais que estavam inexplorados devido ausncia de gente, ou mesmo devido negligncia de moradores que no se dispunham ao trabalho. Nessas paragens quase paradisacas, o labor seria atenuado, pois com poucos es-cravos os moradores remediavam os sustentos: As pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se fazem moradores da terra, por pobre que sejam, se cada um alcanar dois pares ou meia dzia de escravos, teriam seu sustento remediado. Dispondo de 10 cruzados, os sditos poderiam adquirir um escravo que logo caaria, plantaria e produziria mantimentos. Acumulariam riquezas e viveriam muito mais felizes do que se estivessem no reino; em terras braslicas, [...] ne-nhum pobre anda pelas portas a pedir como neste Reino.28 Gandavo, enm,

    27 Diogo R. Curto. Cultura escrita e prtica de identidade In: Histria da Expanso Portuguesa. v. 2.

    Dir. de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri. Lisboa: Crculo de Leitores, 1998. v. 2. p. 487.28 Pero de Magalhes Gandavo. Tratado Descritivo do Brasil e Histria da Provncia de Santa Cruz.

    So Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Ed. Itatiaia, 1980. p. 44.

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    esboava proposta destinada a harmonizar dois mundos, entrela-los, integr-los para alcanar a esperada felicidade. Os pobres deslocar-se-iam para Amrica e aliviariam a pobreza do reino. Assim, ao mesmo tempo, tomariam posse efetiva e explorariam as riquezas nativas. No sem razo, o projeto recebeu o reconheci-mento do infante, expresso na publicao da Histria da Provncia de Santa Cruz e na concesso de cargo.

    Servios aos Felipes de Espanha

    A Unio Ibrica promoveu a modernizao do sistema poltico portugus, ao recorrer a reformas que alteraram tanto a comunicao poltico-administrativa entre o rei e o reino quanto as modalidades do exerccio de poder. No que toca especicamente histria do Brasil, podemos dizer que esse foi momento em que o Brasil se integrou plenamente no sistema imperial, suscitando um inte-resse crescente por parte da metrpole.29 Desde 1603, a organizao jurdico e administrativa do reino portugus e das terras braslicas pautava-se nas Ordena-es Filipinas que, entre outras mudanas, instrumentalizava o governadorgeral a fomentar a produo agrcola. Com insistncia, a burocracia determinava a construo de engenhos, o cumprimento rigoroso da lei de sesmaria a qual esti-pulava prazo para explorao das terras doadas pela Coroa. Cuidou-se ainda de scalizar, de maneira incisiva, o corte de madeiras e de incentivar a produo de estatsticas civil, militar e eclesistica do Estado do Brasil. Entre os dados coleta-dos deveriam constar os salrios pagos, quantidade e discriminao dos cargos e funes, a receita e a despesas da Fazenda Real, bem como o nmero de praas, fortalezas e capitanias existentes.30

    O governo dos Felipes, portanto, estimulou o fortalecimento dos laos entre a metrpole e seus domnios, sem descuidar das possesses portuguesas na Am-rica. O incentivo no era apenas resultado do incremento da produo agrcola e das baixas no Estado da ndia. O af de promover inventrio do mundo colonial era uma marca do governo castelhano, responsvel pela execuo das Relaciones Geogracas nos Vice-reinos da Nova Espanha e do Peru. Certo da boa acolhida de seus escritos sobre o Estado do Brasil, o portugus radicado na Bahia, Gabriel Soares de Sousa, dirigiu-se Corte de Felipe ii com a inteno de informar-lhe das grandezas braslicas. Natural do Ribatejo, chegou cidade de Salvador em

    29 Guida Marques. O Estado do Brasil na Unio Ibrica. Penlope, 27, 2002. p. 8.30 Graa Salgado (coord.) Fiscais e meirinhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 55-57.

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    1569, durante viagem em direo ndia. Ao constatar as boas oportunidades de enriquecimento, decidiu car e empregar seus recursos na lavoura canavieira. No se interessou apenas por empreendimento agrcola, por muito tempo reco-lheu informaes que seriam vitais para seus pleitos na Corte castelhana.

    Por quase duas dcadas, Gabriel Soares de Sousa residiu no Estado do Brasil e reuniu conhecimento digno de notas. Em Madri, durante a espera de um despa-cho, resolveu tir-las a limpo, copiando-as em um caderno para convir ao servio de el-rei Nosso Senhor, Filipe ii de Espanha. Em 1 de maro de 1587, ofertou o manuscrito a Cristvo de Moura que, certamente, enviaria a Sua Majestade. No reino, Soares de Sousa compadecia da pouca notcia que se tinha da grandeza e estranheza do Brasil. Para tanto, comps cosmograa e descrio do Estado, revelando ainda informes dilatados sobre terras e riquezas da Bahia de Todos os Santos. No tencionava, porm, conceber uma histria esmerada no estilo, nem mesmo esperava louvores pela escritura da breve relao. Em tempo de Unio Ibrica, procurava sensibilizar a realeza para a enorme fertilidade da terra. De-nunciava ainda os descuidos dos reis passados, deixando desprotegido o imenso litoral, onde corsrios poderiam estabelecer e assenhorear-se com uso de mui pequena armada. Depois que o rei D. Joo iii passou desta vida para eterna, as novas descobertas estavam muito desamparadas. Antes, porm, com imenso cabedal, edicaram-se muitas cidades, vilas e forticaes. Contando com litoral de mil lguas, terra frtil, fresca e abastada em mantimentos, no Estado do Brasil era vivel edicar um grande imprio, informava ao soberano Gabriel Soares.

    O abandono das novas terras no era por falta de providncia de Sua Ma-jestade, mas por carncia de notcia, negligenciada por quem disso tinha obri-gao. Como leal sbito, Gabriel Soares de Sousa declarou-se empenhado em contornar esses entraves, fornecendo ao servio real uma memria capaz de guiar os empreendimentos imperiais em terras da Amrica descoberta pelos lu-sitanos. Para dissertar sobre defesa, descreveu vilas e cidades da costa, demons-trando o quanto estavam despreparadas para as investidas inimigas externas e internas. No era despropsito, considerou o el sdito, alertar a el-rei para o desamparo em que se encontrava a cidade de Salvador. Era mister cerc-la de muros e forticar, como convm ao servio e segurana dos moradores dela; porque est arriscada a ser saqueada de quatro corsrios, que a forem cometer, por ser gente espalhada por fora, e a cidade no ter onde se possa defender, at que a gente das fazendas e engenhos a possa vir socorrer.31 Por certo, Soares de

    31 Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. p. 40.

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    Sousa percebera no somente a fragilidade das forticaes, mas, sobretudo, o desempenho de vilas e cidades para manuteno do prprio territrio circunvi-zinho. Eram, portanto, alvos frgeis de corsrios e invasores como sucederia, mais tarde, com Salvador e Olinda nas guerras contra os amengos. Do mesmo modo, muralhas protegeriam as vilas de revoltas e combates promovidos pelos amerndios vindos do serto. Ilhus no contava com forticaes e enfrentava a praga dos aimors. Antes contava com quatrocentos ou quinhentos vizi-nhos, mosteiro de So Bento e colgio da Companhia de Jesus, mas enfrentava invases internas e despovoava-se rapidamente: se despovoar de todo, se Sua Majestade com instncia no lhe valer. Enm a insistncia do manuscrito em descrever os povoados atuava como alerta para preservar a conquista lusa.

    No era coincidncia que na mesma oportunidade o colono solicitasse a concesso de Felipe ii para um grande plano de desbravar e conquistar o inte-rior, em paragens localizadas alm do rio So Francisco: Eu El-Rei fao saber aos que este alvar virem que, sendo eu informado quanto importa ao servio de Deus e meu fazer-se o descobrimento do Rio de So Francisco, parte do Brasil, a que ora envio Gabriel Soares de Sousa por capito-mor e governador dela; e querendo como razo fazer merc s pessoas que me forem servir na dita empresa[...]. O monarca acatava, assim, o pedido e concedia-lhe ttulos de capito-mor e governador da conquista, direito de nomear cargos de justia e fazenda. Contaria ainda com hbitos das Ordens de cavalaria e respectivas ten-as, merc de cavaleiros-dalgos e a permisso de formar uma tropa composta de mecnicos, mineiros, degredados ou no, e um grande nmero de ndios, capazes de sustentar o empreendimento no serto. A partir de descobertas de ouro, prata e pedras preciosas, Soares de Sousa planejava seguir os rastro do irmo, Joo Coelho de Sousa, e apoderar-se de riquezas escondidas longe das povoaes litorneas. Para levar frente a empreitada, recorria s benesses de Sua Majestade.32 Com a demora do despacho, resolveu colocar no papel a ex-perincia de quase vinte anos no Estado do Brasil, redigindo o que viria a ser o Tratado Descritivo do Brasil, registro ainda hoje indispensvel ao conhecimento do primeiro sculo da colonizao portuguesa.

    O tratado divido em duas partes: a primeira denominada de Roteiro Geral da Costa Braslica; e a segunda de Memorial e Declarao das Grandezas da Bahia. Iniciando-se com a descoberta do Brasil, ele mistura elementos hist-ricos, geogrcos e etnogrcos de diversos pontos do litoral, do Amazonas ao rio da Prata, fornecendo subsdios valiosos para colonos e administradores. Pro-

    32 ihgb Arquivo 1.2.15, t. 1, p. 76-79, 115 e 174-182.

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    venientes da experincia, os escritos de Soares de Sousa encantam pelo detalhe: mapeamento de naes indgenas, aliadas e rebeldes, rios e portos, engenhos e lavouras diversas espalhadas pelo litoral. Mas conhecimento precioso seria for-necido sobre a Bahia de Todos os Santos, onde se radicou e era proprietrio, senhor-de-engenho e de escravaria. Dividiu o memorial em vinte partes, abor-dando, sem diculdades, a histria e a geograa. Como os naturalistas, ele dis-sertou sobre os trs reinos da natureza e, com muita pertinncia, reetiu sobre as ddivas fornecidas pela criao divina, ou seja, plantas, animais e minerais. De-nominada de bichos menores que tm asas e tm alguma semelhana de aves, nem mesmo a entomologia braslica escapou a esse senhor-de-engenho, na faina de comunicar ao rei, riquezas e estranhezas do Estado do Brasil. O manuscrito ainda se destaca pela capacidade de individualizar comunidades indgenas, parti-cularmente os tupis radicados no litoral, fornecendo pormenores sobre casamen-tos, alimentao, guerras e ritos canibalescos.

    Gabriel Soares no apenas entregou a D. Cristvo de Moura descrio por-menorizada das terras braslicas. Na oportunidade recorreu novamente a seus apontamentos para denunciar privilgios e desmandos cometidos pela Compa-nhia de Jesus. Se inicialmente eram benquistos pelos moradores, tempos depois a reputao dos jesutas no era das melhores, caram os Padres muito odiosos ao povo. Com os favores del-rei, os religiosos construram os colgios da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Anualmente, contavam com 4.500 cruzados de renda provenientes de cofres reais, mais currais de vaca, propriedades e cinco aldeias de ndios forros. Os privilgios no eram bastante para conter a sede de riquezas dos inacianos, comentava Gabriel Soares. Pressionavam is para doar-lhes terras, estimulavam a fuga de escravos de propriedades vizinhas e contraria-vam as ordens das autoridades locais. Alm das mencionadas irregularidades, a catequese, razo para atuar nos reais domnios, demonstrava-se incua, pois os ndios eram incapazes de conhecer que coisa Deus, nem crer nele.33

    As denncias de Gabriel Soares de Sousa abordam os entraves ao emprego da mo-de-obra indgena nos empreendimentos coloniais. Sendo os jesutas res-ponsveis pelos aldeamentos, os moradores cavam dependentes dos padres para tocar as lavouras. As epidemias e as guerras provocaram no recncavo baiano aumento da mortalidade e escassez de braos para o cultivo de cana-de-acar, o que veio agravar a penria de canavieiros e senhores de engenhos. Ao descrever

    33 Gabriel Soares de Sousa. Captulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao Sr. D. Cristovam de Moura contra os padres da Companhia de Jesus... Anais da Biblioteca Nacional, 62, 1940, 337-381.

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    os desmandos da Companhia de Jesus, ele pretendia alcanar o apoio das auto-ridades metropolitanas e solapar os privilgios dos inacianos no Brasil. Sem a in-terferncia dos padres, os proprietrios poderiam recorrer escravido e ampliar suas atividades agrcolas. Percebe-se ento que o vassalo del-rei no pretendia apenas expandir as reas da colonizao para as bandas do So Francisco, mas viabilizar braos para explorar a fertilidade da terra.

    Se os ataques aos jesutas no alcanaram o desfecho planejado, o projeto de conquistar o serto teve todo apoio do soberano. Os favores pleiteados fo-ram, em grande parte, concedidos, em abril de 1591. O novo capito-mor e governador partiu de Lisboa na urca amenga denominada de Grifo Doura-do, conduzindo cerca de trezentos e sessenta homens em direo foz do rio So Francisco. Em terra, seguiria o roteiro rumo s minas traado pelo irmo que encontrara a morte durante a jornada pelo serto. O destino de Soares de Sousa no seria diferente. Na altura da enseada do Vazabarris, a embarcao naufragou, porm sem fazer muitas vtimas. Os sobreviventes logo passaram Bahia. Depois de montar expedio com apoio do governador D. Francisco de Sousa, Gabriel Soares seguiu rumo s suas terras, subindo pela margem do rio Paraguau. No percurso, enfrentaram as cheias do rio, o frio e o nevoeiro da serra. Combalido, ele morreria sem encontrar as minas, desfrutar das tenas e mercs concebidas pelo soberano espanhol. O Tratado descritivo do Brasil, porm, permaneceu como manuscrito durante todo o perodo colonial. Fran-cisco Adolfo de Varnhagen localizou dezenas de verses parciais em arquivos de Portugal, Brasil, Espanha e Frana, o que demonstra o valor do memorial.

    Para Soares de Sousa, nos reinos de Portugal e Castela havia escassas notcias do Estado do Brasil, o que agravava o abandono e a debilidade das forticaes. O inventrio cosmogrco era, em princpio, recurso para incentivar a coloniza-o, mas tambm parte da estratgia destinada a obter o real apoio para expandir seus domnios sobre o serto. Esses entendimentos entre soberanos e sditos letrados eram constantes na poca Moderna, parte imprescindvel do controle e gerenciamento das possesses ultramarinas. Os memoriais estreitavam os laos entre o centro e as vrias periferias. Por vezes, viajantes eram previamente prepa-rados para a tarefa de aproximar e fazer conhecer os limites e as potencialidades dos domnios. Esses sditos percorriam as fronteiras de imensos territrios