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FAJE - FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Raimundo Donato REINO DE DEUS E CONVERSÃO ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO-PASTORAL Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia de Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE, como requisição parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de Concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Johan Konings BELO HORIZONTE 2010

REINO DE DEUS E CONVERSÃO - faculdadejesuita.edu.br · O sintagma reino de Deus/dos Céus abarca o pensamento central da mensagem de Jesus. Ele inicia sua pregação anunciando que

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FAJE - FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

Raimundo Donato

REINO DE DEUS E CONVERSO

ESTUDO BBLICO-TEOLGICO-PASTORAL

Dissertao apresentada ao Departamento de

Teologia de Faculdade Jesuta de Filosofia e

Teologia FAJE, como requisio parcial

obteno do ttulo de Mestre em Teologia.

rea de Concentrao: Teologia Sistemtica

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings

BELO HORIZONTE

2010

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A mensagem de Jesus muito simples, sempre mais teocntrica.

O que novo e totalmente especfico na sua mensagem dizer:

Deus est em ao agora,

esta a hora em que Deus se mostra na histria,

de um modo que supera tudo o que aconteceu at agora,

como seu Senhor, como o Deus vivo.

Joseph Ratzinger

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Agradecimento

A meus pais:

Mateus Teodoro Raimundo

Ana Luiza Raimundo.

Ao meu Bispo:

D. Jos Alberto Moura.

Ao meu orientador e professor, pela pacincia

e presteza na elaborao desta Dissertao:

Prof. Dr. Johan Konings.

Aos professores, funcionrios e alunos da FAJE,

de modo especial ao

Prof. Dr. Geraldo de Mori.

Aos colegas da Ps-Graduao.

Aos amigos e amigas que me apoiaram

na realizao deste trabalho.

4

RESUMO

A presente pesquisa de dissertao surge de um desejo de aprofundamento a respeito da

categoria reino de Deus, que uma das mais importantes categorias bblico-

teolgicas. Nosso objetivo no fazer exegese bblica do tema reino de Deus, mas

colocar os conhecimentos exegticos a servio da pastoral. Esta dissertao aprofunda

os conceitos bblicos de reino de Deus e de converso para chegar a uma prxis que seja

mais reinocntrica e humanizadora. A converso, neste contexto, surge como uma porta

que nos leva para dentro do reino de Deus. Ao final do trabalho, chegamos concluso

de que a converso pastoral de suma importncia para a concretizao do Reino, e a

esperana que nos move adiante a misso continental, na qual, como povo de Deus,

buscamos mais justia e vida para o povo latino-americano, pois o Deus do Reino o

Deus da vida.

Palavras-chaves

Reino - converso - discipulado - Amrica Latina

ABSTRACT

This dissertation research project emerges from a desire to gain a deeper understanding

regarding the category of the kingdom of God, one of the most important biblical-

theological categories. Our objective is not to do biblical exegesis on the topic of the

kingdom of God, but rather to place exegetical knowledge at the service of pastoral

work. This dissertation simply deepens the concepts of the kingdom of God and

conversion in the biblical-theological field in order to reach a more kingdom-centered

and humanizing praxis. Conversion, in this context, emerges as a door which leads us

into the kingdom of God. Ultimately, we conclude that pastoral conversion is of utmost

importance for the concretion of the Kingdom and that the hope that moves us forward

is a continental mission, whereby as the people of God we search for more justice and

life for the Latin American people, because the God of the Kingdom is the God of life.

Key-words:

Kingdom conversion discipleship Latin America

5

ABREVIATURAS E SIGLAS

Adv. Haer Adversus Haereses

AG Ad Gentes

CELAM Conselho Episcopal Latino-americano

DAp Documento de Aparecida

DCE Deus caritas est

DGAE Diretrizes Gerais da Ao Evangelizadora da Igreja no Brasil

DM Documento de Medelln

DP Documento de Puebla

Did Didaqu

DSD Documento de Santo Domingo

EN Evangelii Nuntiandi

GS Gaudium et Spes

LG Lumen Gentium

NMI Novo Millenio Ineunte

PNE Projeto Nacional de Evangelizao

PP Populorum Progressio

RP Reconciliao e Penitncia

RMi Redemptoris Missio

SCa Sacramentum caritatis

SS Spe Salvi

As citaes referentes aos escritos do Mar Morto so tiradas de Geza VERMES,

Manuscritos do Mar Morto.

As abreviaturas dos livros bblicos so as da Bblia Sagrada da CNBB.

6

SUMRIO

INTRODUO .................................................................................................... 9

1 Problema, estado da questo e explorao inicial............................................ 13

1.1 A pergunta pelo significado da converso e do reino de Deus ................ 13

1.2 As respostas na reflexo da Igreja............................................................ 14

1.2.1 Os antigos ......................................................................................... 14

1.2.2 A Idade Mdia e Moderna ................................................................ 17

1.2.3 Alguns autores da atualidade............................................................ 20

1.2.4 A voz da Igreja hoje ......................................................................... 31

1.2.5 A prtica das nossas comunidades ................................................... 39

1.3 Conceitualizao bblico-teolgica .......................................................... 42

1.3.1 A converso ...................................................................................... 42

1.3.2 O reino de Deus na perspectiva bblica ............................................ 44

1.3.3 O reino de Deus no Novo Testamento ............................................. 47

1.4 Concluso ................................................................................................. 68

2 A pregao da converso por Joo Batista ...................................................... 70

2.1 A figura de Joo Batista na tradio evanglica ...................................... 70

2.2 O incio da pregao de Joo Batista ....................................................... 75

2.3 O batismo de Joo Batista como sinal da converso radical a Deus........ 82

2.4 A Esperana de Joo em relao renovao de Israel ........................... 88

2.5 O novo comeo ........................................................................................ 91

2.6 Joo Batista e o reino de Deus ................................................................. 92

2.6.1 Segundo Marcos (e Lucas): o batismo de arrependimento para

remisso dos pecados ................................................................................ 92

2.6.2 Segundo Mateus: Joo anunciando o Reino e reconhecendo as obras

do Messias ................................................................................................. 95

7

2.7 A misso de Joo Batista como ponto de partida e referncia para a

misso de Jesus .............................................................................................. 96

2.8 Concluso ................................................................................................. 98

3 O reino de Deus e a converso na pregao de Jesus .................................... 100

3.1 A esperana do Novo Testamento: o reino de Deus est prximo ........ 100

3.2 O batismo de Jesus inaugura a chegada do reino de Deus ..................... 102

3.3 As razes para o batismo de Jesus segundo Mt 3,15 ............................. 105

3.4 A converso de Jesus .......................................................................... 107

3.5 A misso de Jesus como prolongamento e contraste com a obra de Joo

Batista .......................................................................................................... 109

3.5.1 Joo preso e Jesus o sucede ......................................................... 109

3.5.2 Jesus inicia sua misso de profeta itinerante .................................. 110

3.6 Jesus inicia seu novo projeto .................................................................. 115

3.7 Como entender o Reino anunciado por Jesus? ...................................... 119

3.8 A certeza do reino de Deus .................................................................... 121

3.9 A novidade de Jesus: O reino escatolgico de Deus como prximo e

iminente ........................................................................................................ 123

3.10 A orao para a vinda do Reino: Venha a ns o teu Reino .............. 127

3.11 Concluso ............................................................................................. 128

4 O sentido do Reino anunciado por Jesus ....................................................... 130

4.1 Os sinais da presena do reino de Deus ................................................. 130

4.2 As parbolas como chave hermenutica para o reino de Deus .............. 132

4.3 As bem-aventuranas e o reino de Deus ................................................ 135

4.4 Os milagres, sinais comprobatrios da proximidade iminente do Reino137

4.5 Os primeiros destinatrios da Boa-Nova do Reino ................................ 139

4.5.1 A predileo de Deus pelos pobres ................................................ 139

4.5.2 As crianas tm lugar privilegiado (Mt 19,13-15) ......................... 141

4.6 A demora da chegada do Reino ............................................................. 142

4.7 O paradoxo do j e do ainda no do reino de Deus ........................ 143

8

4.8 A Igreja como tardana do reino de Deus .............................................. 145

4.9 Concluso ............................................................................................... 146

5 O reino de Deus e a converso pastoral da Igreja na Amrica Latina ....... 148

5.1 A realidade latino-americana ................................................................. 148

5.2 A Igreja latino-americana ante a realidade dos pobres .......................... 149

5.3 A Igreja Povo de Deus e o Reino ........................................................... 151

5.4 Por uma prxis pastoral reinocntrica centrada na missionariedade...... 152

5.5 A renovao estrutural da Igreja e a converso pastoral ........................ 153

5.6 A Espiritualidade da obedincia ......................................................... 157

5.7 Concluso ............................................................................................... 159

CONCLUSO .................................................................................................. 163

REFERNCIA BIBLIOGRFICA .................................................................. 165

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INTRODUO

Como servio f eclesial e, portanto, Igreja, a teologia , antes de tudo, um

servio ao reino de Deus1, que se visibiliza na prtica da justia, da solidariedade e da

caridade a favor do povo de Deus. A teologia, enquanto reflexo sistemtica do

ensinamento da Revelao e do magistrio da Igreja, ilumina e fundamenta a prxis

eclesial.

O sintagma reino de Deus/dos Cus abarca o pensamento central da mensagem

de Jesus. Ele inicia sua pregao anunciando que o reino de Deus estava chegando (Mc

1,15). Toda a sua pregao e atuao tm como tema central esta verdade fundamental:

o reino de Deus chegou, est presente.

Uma dificuldade que se percebe de incio o fato de no se saber quais so os

contedos precisos deste reino de Deus que Jesus anuncia. O que que Jesus queria

indicar com semelhante sintagma? Jesus nunca definiu os contedos do Reino. Jesus

falava do reino de Deus como se os seus ouvintes entendessem os seus contedos e os

seus contornos.

A categoria reino de Deus central na teologia latino-americana. J foi abordada

por Jon Sobrino, Joo Batista Libanio, Juan Luiz Segundo, Incio Neutzling, Igncio

Ellacura, dentre outros, sob diferentes enfoques teolgicos. Para Jon Sobrino, a

categoria reino de Deus a via com maior capacidade de organizar sistematicamente o

todo da teologia2.

Na dcada de 1990, a Amrica latina passou por uma nova fase histrica, que

gerou profundas mudanas no modo de se conceber a realidade. Dois acontecimentos

afetam negativamente, e com intensidade, a utopia e o profetismo do cristianismo: o

pentecostalismo e o secularismo. Esses acontecimentos tendem a mostrar que o tema do

reino de Deus/ dos Cus seria radicalmente irrelevante no contexto atual.

1 Usaremos normalmente a expresso reino de Deus, a no ser onde o estudo do contexto de Mateus

impe a expresso equivalente reino dos Cus. 2 Cf. SOBRINO, J. Centralidad del Reino de Dios, p. 472-423.

10

Diante da ideia de fim do mundo, colocado na cabea das pessoas, sobretudo

pelo pentecostalismo, surgiu a ideia da destruio do mundo, quase como um

aniquilamento csmico. Porm, necessrio frisar que Jesus nunca falou a respeito da

destruio do mundo. Jesus fala de reino de Deus/ dos Cus, e ele v esse Reino dentro

da perspectiva da teologia proftica, como um grande processo evolutivo que j

comeou e que culminar na plenificao desse mundo, dessa histria. Esta ltima

plenificao o reino de Deus em plenitude. muito mais bblico entender o mundo em

termos de uma ltima plenificao, ideia que foi retomada pelo Conclio Vaticano II. A

partir dessa constatao de uma interpretao errnea do final dos tempos, torna-se

necessrio um estudo a respeito da categoria teolgica reino de Deus. Como tal, essa

categoria portadora de densa fora semntica e inseparvel da realidade pessoal de

Jesus. A categoria reino de Deus possibilita adequada compreenso da totalidade da

mensagem de Jesus. O reino de Deus/dos Cus quer significar para ns a soberania de

Deus sobre todas as coisas (Sl 22,28), quando todas as coisas esto em perfeita

harmonia com sua vontade (Mt 6,10). Deus est agindo na histria humana, redimindo-a

em Cristo a fim de fazer com que sua vontade soberana seja conhecida e experimentada

pelos homens (Ef 1,5-9; Rm 12,1-2).

Procuraremos entender Jesus, nesta dissertao, a partir da sua profunda

comunho com Deus, seu Pai, sem a qual nada se pode compreender e a partir da qual

Ele se torna presente no hoje da nossa histria. Acreditamos que, sem essa dimenso da

comunho entre Jesus e o Pai, tudo permanece na obscuridade, e a tarefa teolgica se

torna mera especulao vazia de significado e de pertinncia, sobretudo, para a f.

No Captulo 1, apresentamos o status quaestionis sobre a pregao de Joo

Batista e de Jesus nas percopes de Marcos 1 e Mt 3-4. Queremos analisar e desenvolver

os dois temas principais da pregao de Joo Batista e de Jesus: a converso e o reino

de Deus. Mostraremos como eles foram abordados nos diferentes perodos da histria

da Igreja, enfocando de modo especial trs autores da atualidade - Joseph Ratzinger,

Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura - que fizeram a redescoberta da categoria

reino de Deus, presente nas pginas do Evangelho e ofuscada ao logo dos sculos.

No Captulo 2, nos deteremos de forma mais pormenorizada na figura de Joo

Batista como nos transmitiram os Evangelhos. Joo Batista sabe que sua misso a de

estar ali como algum que prepara o caminho a outro totalmente misterioso; que toda a

11

sua misso est orientada para esse outro, que o mais forte que ele (Jo 1,30-33).

Com a pregao de Joo Batista, as profecias (Is 40,3; Ml 3,1; Ex 23,20) se tornam

realidade. Por isso, a pregao de Joo era profundamente carregada de novidade. E o

batismo que ministrava era batismo de converso para o perdo dos pecados. Esse

captulo pretende mostra o carter escatolgico da pregao de Joo Batista.

No Captulo 3, analisaremos a pregao de Jesus Cristo sobre o reino de Deus/

dos Cus. Esse Reino tem carter universal, no se restringe raa de Israel. O captulo

mostra a esperana de Israel sobre a vinda do Messias e, com isso, o Reino. Jesus com

sua pregao afirma que o Reino esperado j chegou. Essa a novidade. Ele prega o

Reino presente e atuante no mundo atravs da sua pessoa. Por meio de Jesus, o Deus do

Reino e Deus da Vida continua agindo na histria humana, transformando todas as

estruturas de morte em vida.

No captulo 4, aprofundaremos o sentido do Reino anunciado por Jesus. As

curas e os exorcismos sero vistos como sinais da presena libertadora e salvadora do

reino de Deus. Analisaremos tambm algumas parbolas para maior compreenso da

expresso reino de Deus. Os destinatrios do Reino so as crianas e os pobres.

Depois, ser feita pequena considerao a respeito do atraso do Reino, que ainda no

chegou de forma definitiva. E, por fim, falaremos da Igreja enquanto intermediria entre

a inaugurao do Reino e sua plenificao no fim dos tempos.

No captulo 5, trabalharemos o tema do reino de Deus e a converso pastoral da

Igreja na Amrica Latina. Procura-se apontar pistas para a reflexo da prxis eclesial. A

teologia ajuda a Igreja a entender seu futuro e a caminhar em direo a ele. Em sintonia

com o Conclio Vaticano II e tambm com o Documento de Aparecida, prope-se a

converso pastoral, entendida como converso estrutural da Igreja, caminho necessrio

para se chegar, enquanto comunidade de fieis, ao reino de Deus. Neste captulo, nos

restringimos anlise do reino de Deus a partir do contexto latino-americano. No se

tem a pretenso de aprofundar questes teolgicas, eclesiolgicas ou dogmticas, mas,

sim, lanar luzes que norteiem o agir eclesial em direo ao reino de Deus. O captulo

desemboca na Espiritualidade da obedincia, pois, a exemplo de Jesus Cristo, o reino de

Deus se instaura na obedincia ao Pai. Quanto mais dceis e obedientes a Deus, mais o

reino se aproxima de ns. Inversamente, quanto mais desobedientes, mais nos afastamos

do Reino, isto , de Deus.

12

impossvel falar de Deus sem senti-lo e sem ser agente da missio Dei no

mundo. impossvel falar de Deus sem sentir Deus, sem agir em Deus, sem

experiment-lo. Fazer teologia, hoje, significa falar de Deus e do homem, e agir no

mundo a partir dos valores do reino de Deus. A esperana do reino de Deus impulsiona

o cristo a inserir-se na misso de transformar o mundo: Venha o teu Reino, seja feita a

tua vontade, como no cu, assim na terra (Mt 6,10).

13

1 Problema, estado da questo e explorao inicial

Segundo o evangelho de Marcos, a pregao de Jesus pe em primeiro plano o

anncio da proximidade do reino de Deus e a exigncia de converso que esta Boa-

Nova implica (Mc 1,14-15). Tal mensagem provoca perguntas, tanto em relao com o

momento em que Jesus a proclamou quanto em relao a ns, hoje. o que

pretendemos aprofundar neste estudo.

1.1 A pergunta pelo significado da converso e do reino de Deus

Joo batizava e pregava a converso em vista do evento escatolgico,

interpretados por ele principalmente como juzo (Mt 3,10). Jesus anunciava a

proximidade do reino de Deus e exortava converso em vista deste (Mc 1,15). Se o

reino de Deus exige converso, a primeira concluso que da se tira de que sua

chegada no algo automtico, algo que se imponha sem a participao do ser humano.

A converso, primeira vista, parece apontar para uma mudana de atitude que faa

com que a mensagem da proximidade do Reino seja uma Boa Notcia. Isso provoca

imediatamente uma segunda reflexo: de quem se exige tal mudana?

Os evangelhos de Marcos e Mateus, que priorizamos neste estudo, mas tambm

o de Lucas, a seu modo, relatam, de modo impactante, como veremos, o anncio da

proximidade do reino de Deus como incio da pregao de Jesus. Que significavam para

os contemporneos de Jesus e seus discpulos o reino de Deus e a converso? Quais as

conotaes que esses termos evocavam nos seus coraes? Estavam preparados para

entender ou tinham o corao endurecido, necessitado de mudana, de converso?

Como ressoavam essas palavras aos ouvidos deles como indivduos e como povo de

Deus?

Por outro lado, se trazemos essa mensagem para nosso horizonte podemos fazer

perguntas semelhantes. Ser que entendemos por reino de Deus e por converso a

mesma coisa que Jesus anunciava, ou ser que, no decorrer dos sculos, os termos

perderam o sentido original e, quem sabe, at nos afastaram daquilo que Jesus quis

dizer? Como se apresenta a ns hoje aquilo que Jesus quer dizer com a exigncia da

14

converso em vista do reino de Deus? Como imaginamos, hoje, o reino de Deus e o que

significa converso para ns como indivduos e como comunidade, como Igreja?

1.2 As respostas na reflexo da Igreja

Antes de entrar no estudo dos textos neotestamentrios, e para ampliar o

horizonte deste estudo, tentaremos ouvir algumas vozes representativas da reflexo

teolgica de nossa comunidade de f em torno da mensagem bblica.

1.2.1 Os antigos

O cristianismo primitivo, com a demora do advento do reino de Deus, viu-se

obrigado a adequar-se ao mundo. At ento, os cristos haviam se limitado a aceitar as

circunstncias polticas e a evitar conflitos com o poder estatal (cf. Rm 13,1-7; 1Pd

2,13-17), j que se pensava que o fim fosse iminente. Com a mudana, comeam os

problemas e as diversas interpretaes sobre a relao entre o reino de Deus e a histria

do mundo. As duas posies fundamentais nesta poca primitiva pr-crist, so: o

quiliasmo e a espiritualizao, e tanto uma como a outra, apiam-se numa exegese

particular de textos do Novo Testamento1.

O quiliasmo a crena na chegada de um reinado de mil anos de paz e de

felicidade, seguido do juzo universal e do fim do mundo. Apia-se em Ap 20,1-6, e foi

defendido por Tertuliano, Irineu e Lactncio, entre outros. Reflete a esperana

escatolgica do reino de Deus. Tratava-se de se consolar e de suportar o Estado pago e

suas perseguies, as quais so entendidas como sinais do fim que comea. Evitou-se

um conceito privado e meramente individual da salvao2.

A espiritualizao a posio oposta anterior, e defendida por Clemente de

Alexandria e por Orgenes, apoiando-se numa interpretao interiorizada de Lc 17,21:

O reino de Deus est dentro de vs. E, assim, o reino de Deus se transforma em ideal

tico e em meta do esforo de perfeio que o ser humano deve fazer3.

Orgenes caracterizou Jesus como a autobasilia, ou seja, Jesus a

personificao do reino de Deus. Nele se pode contemplar o Reino acontecendo na

1 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

2 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

3 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

15

terra. O Reino, para Orgenes, no uma coisa, no um espao de domnio como um

reino do mundo. pessoa: o Reino Jesus4.

A escatologia, que se pode entrever no conceito do reino de Deus do

cristianismo pr-constantiniano, acentua o carter de no cumprimento e de gratuidade

absoluta dele. A Igreja vista como realidade provisria, temporal e contingente que o

prprio Deus levar sua consumao5. Igreja e reino de Deus, embora relacionados

entre si, de forma alguma so idnticos e no se harmonizam com nenhum Estado

poltico. Essa situao mudar drasticamente com Constantino.

A reviravolta poltica de Constantino traz consigo mudana radical na

concepo do reino de Deus, que, no contexto da poltica imperial, vai se transformar

numa categoria teolgico-poltica6. O representante mximo desta teologia poltica do

reino de Deus Eusbio de Cesareia, que v em Constantino a representao do Logos

celeste, em nome do qual o imperador deve assumir o domnio sobre a terra. A

monarquia divina e a poltica so manifestaes do nico regime universal de Deus, que

se manifesta no imprio terrestre de Constantino, no qual se torna presente o reino de

Deus e no qual se enquadra a Igreja terrena. A misso do imperador a de realizar a

soberania de Deus ou de Cristo na terra, transformando-se, assim, no rgo destacado da

vontade divina. No governo de Constantino, devia se tornar realidade o plano de Deus

concernente ao mundo: conduzir a histria humana ao verdadeiro conhecimento de

Deus7.

Eusbio legitima a dignidade imperial baseando-se no Antigo Testamento8.

Neste contexto, o conceito de reino de Deus perde o seu contedo escatolgico e passa a

ser um prolongamento e uma exaltao do presente9.

Na poca patrstica, os Pais da Igreja foram muito influenciados pela filosofia

grega. Tentavam fazer uma ponte entre a f crist e o pensamento grego. Eles

conceituaram o Reino, somente, em categorias espirituais. O governo de Deus era

espiritual.

4 RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59.

5 Cf. Did. 10,5-6; Irineu, Adv. Haer. 5,26 in: BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

6 BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

7 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

8 Cf. Vita Const. 1,12

9 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.

16

Agostinho de Hipona rejeita a interpretao do reino de Deus que davam tanto o

quiliasmo quanto os imperialistas. Em sua crtica, prope a teoria das duas cidades,

uma civitas Dei, em que reina o amor de Deus, e uma cidade terrena, onde o amor de

si mesmo que governa10

. Agostinho explica, em A Cidade de Deus, a origem das duas

cidades,

dois amores fundaram, pois duas cidades, a saber: o amor prprio, levado ao

desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si prprio,

a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque

aquela busca a glria dos homens e tem esta por mxima glria a Deus

testemunha de sua conscincia11

.

Para explicar sua teoria sobre as duas cidades, Agostinho ocupa a segunda parte

de sua obra. Nela tratar tanto da origem (cap. XI-XIV) e desenvolvimento (cap. XV-

XVIII) das duas cidades, quanto de seus respectivos fins (cap. XIX-XXII)12

.

Agostinho no identifica a civitas terrena com o Estado e muito menos equipara

a civitas Dei Igreja. Agostinho entende que pertencem civitas Dei todos os homens

que se deixam guiar pelo amor de Deus13

, estando ou no dentro das barreiras visveis

da Igreja.

Os dois tipos so ideais e se definem pelas respectivas concepes de paz: a paz

terrena (ausncia de guerras...) e a paz celeste (a tranquilidade, a ordem...). As fronteiras

de ambos os reinos se confundem no tempo e sua separao ser real s no juzo final.

Agostinho recusa tanto uma realizao intramundana do conceito de reino de Deus

como a integrao da Igreja no Imprio cristo. E, com isto, sua pretenso de levar a

cabo este reino de Deus como realidade intra-histrica14

. Destaca a condio

escatolgica deste Reino que foge soberania e manipulao humana. Rebate as

pretenses de poder cesaropapista e ressalta o valor especfico e relativo da cidade

terrena em sua funo de servio Cidade de Deus.

Agostinho, em A Cidade de Deus, inicia uma teologia da histria. Descobre um

fio condutor que move a histria, comeando com a prpria criao, movendo-a atravs

dos tumultos e das agitaes do mundo (cidade terrena), e se conclui com a realizao

10

BERNAB, Reino de Deus, p. 681. 11

AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 169 (cap. XXVIII). 12

Cf. AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 19. 13

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681. 14

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681

17

do reino de Deus (Cidade de Deus). Para Agostinho, a histria tende a se completar na

lei divina.

Com o tempo, sua doutrina foi se mitigando. Esquecendo o carter idealista de

ambos os reinos, acabou por identificar a cidade terrena com o Estado, e a Cidade de

Deus, com a Igreja. Foi o comeo da problemtica medieval, que teve duas

caractersticas principais: a) controvrsia entre reino e o sacerdcio, em que o primeiro

tinha de se submeter ao segundo, se no quisesse transformar-se em inimigo de Deus; b)

desescatologizao da teologia, j que a Igreja, identificada com a Cidade de Deus, une-

se com o sacro Imprio, ao se apresentarem juntos como portadores terrenos das

esperanas escatolgicas15

.

Nesse perodo, com raras excees, a expresso reino de Deus aparece nos

escritos dos santos Padres e, por conseguinte, desaparece dos manuais. Agostinho, como

vimos, trabalhou o tema do reino de Deus identificando-o com a cidade celeste, na obra

Civitas Dei. Depois, a expresso silencia-se no pensamento teolgico antigo.

1.2.2 A Idade Mdia e Moderna

A Idade Mdia foi uma poca marcada pelas pretenses, tanto da Igreja quanto

do Imprio, em relao ao reino de Deus16

. A ideia do rei sacerdote (rex et sacerdos)

tinha sua base no Antigo Testamento e na concepo constantiniana. Os imperadores

carolngios pretenderam assumir a direo da Igreja universal, baseando-se na ideia da

unio eclesial e estatal de toda a cristandade, identificada com o reino de Deus que j se

via cumprido nela. Os imperadores creram que sua misso, pela vontade divina, era a de

impor o reino de Deus na terra. Isto , deviam preparar os povos, mediante poltica

adequada, para a chegada do Imperador celestial. Isto foi chamado Sacro Imprio.

A reao por parte da Igreja no tardou: aconteceu a denominada luta das

investiduras. Seu objetivo foi a liberdade da Igreja perante as pretenses religioso-

polticas do Imprio. A Igreja, entendida como Igreja hierrquica e clerical, reivindica

sua identidade com o reino de Deus. Eram os anos de Gregrio VII, Inocncio III,

Bonifcio VIII17

.

15

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 16

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 17

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.

18

A Igreja eximia o Imprio da antiga pretenso de tornar efetivo o reino de Deus.

Competia ao sacerdcio fazer isso, aproveitando a religiosidade poltica do poder

estatal. Esta a ideia que subsiste em instituies como a trgua de Deus ou nas

cruzadas. As fronteiras espaciais do reino de Deus se identificam com as da

cristandade18

.

A disputa para ver quem era o administrador do reino de Deus se desenvolveu,

cada vez mais, como luta entre a Igreja e o Estado. Por consequncia desta pretenso da

Igreja, produziu-se uma secularizao crescente que resultou na emancipao do

Imprio. Esta situao fez surgir movimentos contra as pretenses absolutistas, tanto da

Igreja quanto do Estado, atravs da interpretao crtica do conceito reino de Deus.

Joaquim de Fiore, monge cisterciense do sculo XII, ficou famoso por sua teoria

da histria dividida em trs perodos: o do Pai (Antigo Testamento), o do Filho (Novo

Testamento) e o reino do Esprito Santo, ou do amor. As pessoas da Trindade passam a

ser, portanto, para Joaquim de Fiore, realidades teolgicas e histricas. Teolgicas, pela

sua prpria natureza; histricas por estarem associadas a perodos cronolgicos e

estruturais da histria humana. Joaquim de Fiore anunciava um reinado vindouro do

Esprito, caracterizado pela humanidade, pelo servio e pela imitao de Cristo, que

preceder o reino de Deus definitivo19

.

O mtodo pelo qual Joaquim imaginava que o fim dos tempos e a nova idade

estariam prximos (1260) baseava-se num clculo do nmero de geraes aproximado

em cada idade: cada uma teria a durao aproximada de quarenta geraes, e cada

gerao duraria mais ou menos trinta anos. Com base nessas premissas, Joaquim chegou

concluso de que o eschaton se daria por volta de 126020. Assim, podemos dizer que

procurava preparar a Cristandade para uma transformao radical que se daria muito em

breve, como ecloso do Esprito Santo na Terra.

A Igreja era, para ele, simples realidade transitria. Joaquim de Fiore no

pretendia atac-la diretamente. Sua doutrina foi acolhida pelos franciscanos espirituais,

18

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 19

BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 20

Cf. COHN, Na senda do milnio, p. 90.

19

que a transformaram em crtica acirrada contra a Igreja. Para eles, o reino de Deus j

comeava nas comunidades fraternais21

.

A condenao da doutrina de Joaquim de Fiore teve por consequncia a nfase

na hierarquia clerical, a desescatologizao da teologia, a identificao do reino de Deus

com a Igreja concreta22

. Alm disso, sups a eliminao de todo o potencial de crtica

positiva Igreja e uma fixao desta em suas formas e contedos histricos concretos.

A teoria da histria dividida em trs perodos deu origem a erros gravssimos

milenaristas. Todos os erros milenaristas surgidos posteriormente no Ocidente tiveram

raiz em Joaquim de Fiore, inclusive o terceiro Reich de Hitler se inspirou no terceiro

reino de Joaquim de Fiore23

. As heresias mais virulentas da Idade Mdia tiveram

relao com as doutrinas joaquimitas. Os primeiros a serem contaminados pelos erros

joaquimitas foram os chamados Espirituais Franciscanos, depois os Pseudo-apstolos,

os dolcinianos, os gibelinos, entre os quais, Dante24

.

A mstica dominicana, dentre outras, espiritualizou o conceito de reino de Deus

e acentuou o seu carter individual. O reino de Deus surge no fundo da alma, unindo

Deus e o homem de forma espiritual (Eckhart, Tauler)25

.

Lutero elaborou a doutrina sobre os dois reinados, baseada na de santo

Agostinho. Com ela, se desprende da concepo catlica teocrtica da Igreja e tambm

dos iluminados. A justificao pela f, na pregao do evangelho, constitutiva do

regime espiritual de Deus, que visvel, e a caracterstica constitutiva do regime

temporal a lei. Este ltimo regime , em si, ambivalente e, embora o cristo deva

exerc-lo com f, deve salvar a sua autonomia.

Na Idade Moderna, a partir do sculo XVI, produz-se a queda dos diversos

planos - religioso, social, poltico, geogrfico - que haviam configurado a imagem

medieval do mundo. Esta mudana atinge, tambm, a concepo de reino de Deus, que

no pode mais se articular em uma representao concreta, com possibilidade de se

tornar realidade atravs do poder, tanto eclesistico quanto estatal. As diversas

21

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 22

BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 23

BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 24

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 25

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.

20

concepes do reino de Deus passam a ser tarefa de uma filosofia ou de uma teologia

especulativas.

O iluminismo acolheu o conceito do reino de Deus, despojou-o de sua forma

histrica e o transformou em ideia racional.

No sculo XIX, volta-se a produzir mudana no conceito do reino de Deus. A

escola de Tubinga retoma o reino de Deus como conceito teolgico-moral. O reino de

Deus est a servio da interpretao da Igreja e da existncia crist como realidade

histrico-salvfica, cuja presena temporal j est marcada pela chegada do Reino, que

ocorreu em Cristo e pela esperana de sua consumao pela ao de Deus26

.

Por ltimo, teria que se mencionar a doutrina marxista ou a utopia de Bloch, nas

quais o reino de Deus entendido de forma totalmente secularizada.

1.2.3 Alguns autores da atualidade

Queremos, neste tpico, tratar o enfoque que dado ao reino de Deus na

atualidade e, para entender isto, apresentaremos uma viso muito geral de trs autores:

Joseph Ratzinger, Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura, procurando perceber como

abordam a questo do reino de Deus.

Ao se recuperar o Jesus histrico e o significado revelador de sua existncia

terrena, descobre-se um fato central para a cristologia: Jesus no fez de si mesmo o

centro de sua pregao. Ento, quais so as realidades centrais da vida e da pregao de

Jesus? Na vida e na pregao de Jesus, qual a relao com o reino de Deus e com o

Deus do Reino?

O Vaticano II procurou tirar as consequncias do conceito reino de Deus

fundamentado na Bblia, e se conscientizou de suas implicaes para a

autocompreenso do cristianismo. Desta forma, volta-se a entender a Igreja como povo

de Deus contingente, temporal e a caminho. Sua consumao reservada a Deus, mas a

Igreja deve se tornar crvel, em sua histria e mediante sua mensagem e prxis, pois

nela se torna presente a esperana de salvao definitiva (LG 3; 9; GS 39,72).

A Igreja se v como comunidade de irmos e de irms, portadora, guardi e sinal

antecipado dessa esperana, que deve dar expresso digna de crdito, tanto com sua

26

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683.

21

palavra, quanto com sua ao27

. O reino de Deus se transforma em paradigma da

salvao universal para todos os seres humanos, vares e mulheres, e, embora sua

consumao seja obra exclusiva de Deus, requer a necessidade do esforo humano28

.

Na dcada de 50, aparece fortemente na teologia do Novo Testamento a ciso

entre o Jesus histrico e o Cristo da f. Existe a tendncia de se fixar o pensamento

teolgico no Cristo da f em detrimento do Jesus histrico, esboado de forma to atual

e sempre nova nos Evangelhos. Com o surgimento da pesquisa histrico-crtica, buscou-

se entender, atravs da crtica das fontes, se nas narrativas evanglicas tudo era

verdadeiramente histrico, autntico. Isso resultou em relativismo histrico e uma

estranheza hermenutica29

. O relativismo histrico consiste em constatar que no se

possui uma imagem historicamente confivel de Jesus, mas, mesmo que se tivesse,

restaria o problema de que esse personagem, enquanto inserido em um contexto

histrico, acabou por se diluir nesse mesmo contexto, logo, Jesus foi menos singular e

absoluto do que se acreditava30

. E, como se no bastasse essa constatao, ainda surge a

estranheza hermenutica que afirma que, mesmo que fosse possvel encontrar o Jesus

histrico por meio documental e fontes confiveis, isso no bastaria, pois, sempre se

esbarraria na distncia abissal da histria de um Jesus que isolou-se em seu mundo

passado, cheio de exorcismos e estranhos temores pelo fim do mundo31

.

A histria da pesquisa sobre o Jesus histrico uma histria de sempre novos

distanciamentos e aproximaes em relao a Jesus. Por isso bom frisar que a histria

das imagens cientficas a respeito de Jesus de maneira nenhuma esgota a histria das

imagens de Jesus, pois essa ser sempre mais rica do que aquela32

.

A partir dessa breve introduo, percebemos que o foco, na atualidade, se volta

mais para a pessoa de Jesus, em busca de encontrar os seus reais contornos, o que, por

sinal, importante para a credibilidade e razoabilidade da f. Nesta busca, porm,

acaba-se por supervalorizar o mensageiro e ofuscar a sua mensagem (o reino de Deus).

Diante disso, priorizaremos estudar a mensagem de Jesus o reino de Deus e ver

27

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 28

Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 29

Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 30

Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 31

THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 32

Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20.

22

como alguns telogos contemporneos procuram redescobrir essa categoria teolgica,

que foi o centro norteador do Jesus histrico.

Cabe apontar aqui a valorizao do estudo histrico-crtico pelo Magistrio da

Igreja. Em 1943, o papa Pio XII escreveu a Encclica Divino afflante spiritu, que se

tornou um importante ponto de referncia e um passo muito significativo do magistrio,

indicando caminhos para a aplicao correta e coerente do mtodo histrico-crtico

teologia catlica. Outro passo significativo do magistrio foi a Constituio Conciliar

Dei Verbum, sobre a divina revelao. Alm disso, so tambm importantes dois

documentos da Pontifcia Comisso Bblica: A interpretao da Bblia na Igreja,

lanada em 1993, e O povo judeu e a sua Escritura Sagrada na Bblia crist, lanado

em 2001, os quais oferecem um juzo amadurecido no campo da exegese catlica33

.

Nessa busca por resgatar, no pensamento teolgico contemporneo, a categoria

reino de Deus, iniciamos com o telogo Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI. Nossa

pesquisa se limita ao seu livro intitulado Jesus de Nazar, especificamente ao captulo 3

intitulado: O Evangelho do Reino de Deus, onde faz uma releitura atual da categoria

reino de Deus. Como ele mesmo explica no prefcio, essa a primeira parte de seu

projeto de contribuir, enquanto telogo, e acima de tudo, enquanto cristo, com a

verdade sobre a pessoa de Jesus, que vem ao mundo com a desafiante misso de

inaugurar o reino de Deus. E esse passa a ser o contedo central da sua misso34

.

Ratzinger, no prefcio de Jesus de Nazar, afirma que, dentre os exegetas

catlicos do sculo passado, o mais significativo foi Rudolf Schnackenburg35

.

Schnackenburg, em sua obra: A pessoa de Cristo no espelho dos quatro Evangelhos

(1993), procurou ajudar os cristos que professam a f em Cristo e que se sentem

inseguros por causa da pesquisa histrica, a fundamentarem a f na pessoa de Jesus

Cristo como o portador da salvao e redentor do mundo36

.

33

Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 12. 34

Para Ratzinger, o anncio do reino de Deus forma realmente o centro da palavra e do ministrio de

Jesus. Uma indicao estatstica pode sublinhar isto: a expresso reino de Deus ocorre no conjunto do

Novo Testamento 122 vezes; destas, encontra-se 99 vezes nos Sinticos e, destas, de novo, 90 pertencem

s palavras de Jesus. No Evangelho de S. Joo e nos restantes escritos do Novo Testamento, a expresso

representa um papel muito limitado. Pode-se dizer: enquanto o eixo da pregao pr-pascal de Jesus a

mensagem do reino de Deus, a cristologia constitui o centro da pregao apostlica ps-pascal

(RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.) 35

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10. 36

Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10.

23

Ratzinger inicia o captulo terceiro mencionando Mc 1,14-15, onde o

Evangelista relata a priso de Joo Batista e o incio da atividade missionria de Jesus

com a clebre expresso: Completou-se o tempo, o reino de Deus est prximo.

Convertei-vos e acreditai no Evangelho37

. Ratzinger, recordando o sentido primignio

do termo Evangelho, ressalta que, na sua origem, nem sempre foi uma Boa-Nova, pois

esta palavra designava as mensagens que vinham do imperador romano38

que, na

maioria das vezes, poderia ser tudo, menos uma Boa Notcia. A mentalidade da poca

era que o que vinha do imperador seria uma mensagem redentora, no uma simples

notcia, mas uma mudana do mundo para o bem39

.

Quando o termo evangelho foi assumido pelos escritores dos Evangelhos

passou por uma reinterpretao, ou seja, foi elevado ao grau mais alto de significado e

eficcia. Para Ratzinger, o que o imperador, que se fazia passar por Deus, sem razo

pretendia, isso acontece aqui: mensagem cheia de poder, que no simples discurso,

mas realidade40

. Com a mudana semntica do termo evangelho, esse adquire uma

fora eficaz que entra no mundo como fora transformadora41

. O evangelista Marcos

entende a Boa-Nova que Jesus anuncia como Evangelho de Deus, e, com isso, ressalta

que no so os imperadores romanos que iro salvar o mundo, mas Deus42

. Quer

dizer, aquilo que os imperadores, que se julgavam senhores do mundo civilizado,

pretendiam realizar ao fazer uso do termo Evangelho, no conseguiam na realidade, pois

lhes faltava o poder eficaz para isso. Porm, quando o Evangelho se torna palavra de

Jesus, esse o potencializa e garante a sua realizao, porque entra em ao o verdadeiro

Senhor do mundo, o Deus vivo43

.

Segundo Ratzinger, quando Jesus anuncia que o reino de Deus est prximo,

colocada uma marca de tempo, algo de novo acontece. E exigida uma resposta do

homem a esta oferta: converso e f44

. Aqui ele indica um ponto importante do nosso

37

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 38

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 39

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 40

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 41

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 42

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 43

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 44

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.

24

estudo: converso. A converso a reposta do ser humano proposta do anncio de

Jesus. a porta de entrada para o reino de Deus, por isto a Boa-Nova.

Ratzinger se detm no pensamento de Alfred Loisy, que afirmou: Jesus

anunciou o Reino e o que veio foi a Igreja45

. Percebe que o discurso de Loisy

carregado de certa ironia, mas tambm de tristeza. Em vez da grande esperana do

reino de Deus, do mundo novo renovado por Deus, algo totalmente diferente e to

pobre! chegou, a Igreja46

. Ratzinger procura, ento, mostrar a questo mais profunda

e fundamental que est por detrs, no uma questo meramente eclesiolgica, mas, sim,

cristolgica, visto dizer respeito relao do reino de Deus com Cristo. Sem essa

correta relao, fica comprometida nossa compreenso de Igreja47

.

Para aprofundar a relao que existe entre Jesus e o Reino, Ratzinger analisa a

concepo de Reino nos santos Padres. Por exemplo, Orgenes entendia Jesus como a

autobasilia, isto , como o reino de Deus em pessoa48

. Comentando Orgenes, afirma

que,

a expresso Reino de Deus seria ela mesma uma cristologia oculta: no

prodgio que Deus mesmo estar nEle presente entre os homens, que Ele a

presena de Deus, conduz os homens para Ele atravs do modo como Ele fala

do Reino de Deus49

.

Outra concepo de Reino que Ratzinger ressalta a concepo idealista,

iniciada tambm por Orgenes. O Reino se encontra no interior do prprio ser humano.

Quer dizer, no est fora do homem, em um local qualquer do mundo, mas na

interioridade do homem. A ele cresce, e a partir da que ele atua.50

Uma terceira dimenso que Ratzinger salienta pode ser designada de explicao

eclesiolgica. O reino de Deus e a Igreja so colocados de um modo distinto um em

relao ao outro e mais ou menos aproximados um do outro51

. Para o telogo, a

explicao eclesiolgica influenciou a teologia do sculo XIX e do incio do sculo XX,

onde se via a Igreja como realizao do Reino no interior da histria.

45

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 46

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 47

Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 48

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 49

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 50

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60. 51

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60.

25

Citando a teologia liberal do incio do sculo XX, recorda Adolf von Harnack,

que via o reino de Deus como dupla revoluo em relao ao judasmo do primeiro

sculo. Enquanto no judasmo tudo tendia ao coletivo, para o povo da eleio, Jesus

priorizava o indivduo e tinha reconhecido precisamente o valor infinito do indivduo e

o tinha constitudo fundamento de sua doutrina. A segunda oposio, segundo Harnack,

era de natureza cultual. No judasmo, o cultual (e com ele o sacerdcio) tinha

dominado; Jesus teria colocado de lado o cultual, estruturando sua mensagem de um

modo estritamente moral52

. Jesus no olhava para os aspectos exteriores de pureza ou

santificao, mas os interiores. Sondava a alma do ser humano. A ao moral de cada

um, as suas obras de amor so decisivas, independentemente do fato de cada um entrar

no Reino ou dele ser excludo53

.

Ratzinger, aps comentar algumas tendncias teolgicas que foram surgindo ao

longo da histria, chega categoria de Reino, que foi o centro da mensagem de Jesus.

Reino, para a corrente reinocntrica, significou simplesmente um mundo no qual

domina a paz, a justia e o respeito pela criao54

. Este Reino representaria o objetivo

final da histria. O seu fim ltimo. E as religies teriam a tarefa de conjuntamente

propagar esse Reino55

.

Porm, por causa do secularismo, Deus desapareceu e, com isto o

reinocentrismo tornou-se uma utopia quase irrealizvel. Ratzinger prope, como

alternativa de um mundo ateu, o regresso fonte de onde emana o Evangelho: o

prprio Jesus real56

. Observa que, quando se fala de Reino, no deve se tratar de algo

iminente ou a constituir-se, mas, sim, da realeza de Deus sobre o mundo, a qual, de um

modo novo, se torna acontecimento na histria57

.

De modo muito acessvel ao intelecto humano e, ao mesmo tempo, com

profundidade e amadurecimento reflexivo, Ratzinger conclui que, quando Jesus fala do

reino de Deus/dos Cus, no est criando uma megaestrutura, ou algo que esteja para

alm deste mundo. Mas est to somente falando e anunciando Deus, simplesmente

52

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61. 53

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61. 54

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 55

Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 56

Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 57

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64.

26

Deus e precisamente o Deus vivo, que capaz de agir de modo concreto no mundo e na

histria e que j est exatamente agora em ao58

. Em outras palavras, Jesus est

dizendo: Deus existe59

.

Ratzinger nos leva a pensar que a mensagem de Jesus muito simples e

profundamente teocntrica, e que a novidade da sua pregao consiste em afirmar

categoricamente que Deus est em ao agora, esta a hora em que Deus se mostra na

histria, de um modo to original, que supera tudo o que aconteceu at agora, como seu

Senhor, como o Deus vivo60

. Ainda observa que a traduo reino de Deus

insuficiente, pois seria melhor se se falasse da condio senhorial de Deus ou da

soberania de Deus61

.

O segundo telogo Jos Antnio Pagola, que, j h certo tempo, vem se

dedicando ao estudo da figura de Jesus e, de modo especial, reinterpretando sua

mensagem sobre o Reino. Faremos uma breve explanao de sua obra Jesus:

Aproximao Histrica, recentemente traduzida para o portugus.

No contato com a obra de Pagola, percebemos a elaborao de um estudioso

que, alm de dedicar boa parte de sua vida ao estudo do Jesus histrico, tambm um

cristo profundamente fascinado pela figura de Jesus Cristo, como deixa transparecer

em seus escritos. Pagola afirma na apresentao de seu livro que, Jesus o melhor que

a humanidade produziu. O potencial mais admirvel de luz e de esperana com que ns,

seres humanos, podemos contar62

.

O objetivo do autor possibilitar aos cristos um contato mais prximo com a

pessoa histrica de Jesus de Nazar, sem cair em abstraes de cunho metafsico ou

elucubraes, que mais afastam que aproximam de seu objetivo.

Pagola, no decorrer da obra, tentando ajudar os leitores, enfoca pontos que, para

ele mesmo, ainda no so claros e fceis de serem entendidos e professados pela f,

como tradicionalmente explicada. Assinala que tem dificuldades em crer num Cristo

sem carne, ou seja, tem dificuldade em acreditar no Jesus da F com ausncia do Jesus

histrico, ou em um Jesus doutrinrio, que somente pode ser encontrado nos manuais

58

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 59

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 60

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 61

RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 65. 62

PAGOLA, Jesus, p. 11.

27

teolgicos e no, na realidade concreta da existncia humana. Adverte sobre o risco de

se reduzir a pessoa de Jesus a um mero objeto de culto, desprovido de sua condio de

profeta do reino de Deus.

Pagola procura ressaltar que no h como chegar ao genuno Jesus, se esse for

desvinculado do Reino. Jesus e o Reino esto em perfeita relao. O que ocupa o lugar

central na vida de Jesus no Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a

histria humana, que culminar com o advento do Reino definitivo.

O objetivo que perpassa toda a obra o de resgatar a memria a respeito desse

profeta itinerante e carismtico que nasceu e viveu na Palestina, no primeiro sculo da

era crist, e que acreditava ser o Filho de Deus e o anunciador de uma Boa Notcia de

salvao, que consistia na proximidade do reino de Deus (Mc 1,15). Sua inteno com

a obra colocar Jesus disposio de todos, pois sua vida e a mensagem que traz

consigo no so propriedade exclusiva dos cristos, mas patrimnio da humanidade.

Pagola opta pela perspectiva narrativa com a inteno de aproximar o leitor,

crente ou no, do Jesus histrico. Esse o mrito da obra: levar o leitor a fazer uma

experincia semelhante experincia vivida por todas aquelas pessoas que se

encontraram com Jesus, e, assim, aprender com o prprio Mestre tudo aquilo a que hoje

temos acesso pelos evangelhos, mas de que no temos compreenso satisfatria. O

caminho de acesso ao Jesus histrico, proposto por Pagola, o seguimento a Jesus. Esse

seguimento brota de um encontro pessoal com Jesus, seguido de profundo fascnio que,

consequentemente, leva proposta de Jesus para segu-lo (Mt 4,19) e resposta

generosa de seguimento.

No captulo 3, Pagola esboa um Jesus que um buscador singular de Deus63

,

mas de um Deus cujo agir se pauta sobre a compaixo e a misericrdia. um Deus que

quer entrar no corao do povo. Por isso, Jesus vai ao deserto. Anseia por ouvir esse

Deus que, no deserto, fala ao corao64

de forma amorosa e compassiva. Pois,

segundo Pagola, a melhor metfora para expressar a ideia de Deus a do Deus

compassivo65

. Jesus, ento, a externalizao da compaixo divina. Em seu falar e

63

PAGOLA, Jesus, p. 87-107. 64

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 88. 65

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 159-175.

28

agir, revela o Deus das compaixes. No captulo 5, desenvolve esse belssimo tema da

compaixo, denominando Jesus de Poeta da Compaixo/ Misericrdia66

.

De acordo com Jesus, o reino de Deus uma oportunidade que ningum dever

deixar passar. preciso arriscar tudo que for preciso para conseguir acolh-lo67

. A

partir dessa proposio, Pagola comea a se questionar: Ter razo Jesus? Onde se

esconde esse tesouro que ele descobriu? [...] Em que consiste essa fora salvadora de

Deus, que j est transformando secretamente a vida?68

. Pagola comenta que, diante de

todos esses questionamentos, Jesus procurou responder com as parbolas mais belas e

comovedoras que jamais saram de seus lbios69

. E todas elas convidam a intuir a

incrvel misericrdia de Deus, como apresentada na cativante Parbola do pai bom70

.

Jesus um profundo apaixonado pelo reino de Deus: este o norteia e d sentido a

sua vida. Esse amor profundo que Jesus tem pelo reino de seu Pai faz com que traduza

na histria, em gestos efetivos, a Boa-Nova que recebeu de seu Pai. A Boa-Nova de

Jesus consiste em poder afirmar, com certeza, que Deus est se empenhando em

construir uma vida mais ditosa para todos. O sinal concreto de que Deus est realmente

agindo na histria comprovado na atividade de Jesus, atravs de sua pregao e dos

milagres que realiza. O anncio do Reino realizado por Jesus desenvolvido, por

Pagola, no captulo 6, com o ttulo de Curador da Vida71

. Nesse captulo, sintetiza o

ministrio de Jesus enquanto fora curadora de Deus72

, que cura os enfermos do mal

fsico e tambm espiritual e liberta o ser humano das foras do demnio73

. Jesus tinha

o poder de despertar energias desconhecidas no ser humano, criando com isso as

condies necessrias para que se restabelecesse a sade. No ministrio de Jesus, Pagola

perscruta sinais de um mundo totalmente novo que j est irrompendo e transformando

a realidade deste mundo74

.

66

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 145-186. 67

PAGOLA, Jesus, p. 158. 68

PAGOLA, Jesus, p. 158-159. 69

PAGOLA, Jesus, p. 159. 70

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 159. 71

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 191-214. 72

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 202-206. 73

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 206-212. 74

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 212-214.

29

Outro trao importante de Jesus para Pagola a acolhida aos pobres. H uma

identificao de Jesus com os ltimos da sociedade de seu tempo. Jesus vai aos poucos

ensinando que o caminho para chegar a Deus no passa necessariamente pela religio

institucional, pelo culto ou ritos pomposos, mas pela compaixo para com os mais

pequeninos. Trata-se de uma grande revoluo religiosa provocada por Jesus, que abre

um novo caminho de acesso a Deus, que passa pela acolhida e compromisso com os

necessitados, sobretudo os mais pobres. Esse tema Pagola desenvolve no Captulo 7,

cujo ttulo Defensor dos ltimos75

. Nesse captulo, Jesus aquele que, ao anunciar a

Boa-Nova do Reino, restabelece a dignidade para os indesejveis da sociedade.

No captulo 8, temos mais uma das novidades de Jesus apresentadas por Pagola:

ele amigo das mulheres76

. Diante da discriminao sofrida por elas, Jesus lana um

olhar diferente sobre elas, dando-lhes maior visibilidade e presena. Mostra como as

mulheres fizeram parte do grupo dos discpulos desde o incio, permanecendo fieis, todo

tempo, a Jesus e causa do Reino. O autor sugere que elas estiveram presentes na

ltima ceia e tiveram um papel de protagonistas na origem da f pascal. Merece ateno

a belssima reflexo que o autor faz sobre Maria Madalena, a melhor amiga de

Jesus77

. Pagola apresenta Maria Madalena como fiel seguidora de Jesus e testemunha

da Ressurreio78

.

Desse modo, Pagola oferece um novo modo de reinterpretar a figura histrica de

Jesus e, com isso, reinterpretar o sentido do reino de Deus inaugurado por ele.

Um terceiro autor o telogo jesuta espanhol, Igncio Ellacura. Para Ellacura,

o reino de Deus aquela realidade que Jesus viveu e anunciou at com a prpria morte.

Jesus assumiu totalmente a vontade do Pai, de modo que sua morte aceita como

consequncia de sua fidelidade incondicional ao Pai e ao reino de Deus. o Reino de

Deus que se torna realidade com Jesus e na existncia dos que recebem sua Boa

notcia79

. Ellacura insiste em que a morte de Jesus no deve ser vista como fato

isolado, mas em conexo com toda a sua misso. A morte na cruz a sntese da vida de

Jesus.

75

PAGOLA, Jesus, p. 219-252. 76

PAGOLA, Jesus, p. 255-283. 77

PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 78

Cf. PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 79

SCHNACKENBURG, Signoria e Regno di Dio, p. 139.

30

A realidade do reino de Deus presente em Jesus e realizada atravs de seus

gestos, liga-se prxis crist atual. Ellacura aponta para uma prxis crist que se

desenvolve no esprito de Jesus. A ocorre uma circulao hermenutica que vai do

Reino prxis, mas que volta da prxis ao Reino, com o que ambos os plos se vo

reinterpretando pela presena e o influxo do Esprito de Cristo80

. A relao entre o

reino de Deus e a prxis construtiva e explicitadora do alcance de ambos, a partir das

situaes concretas. Isso evidencia que o reino de Deus no algo abstrato ou

meramente terico, mas, o fundamento e o sentido da prxis crist.

Ellacura acredita que necessria uma adequada compreenso do anncio do

Reino, a partir do interior da insero em uma prtica concreta. Nessa prtica, incluem-

se, de modo estrutural, os elementos constitutivos da prtica do prprio Jesus. O Reino

de Deus o fim de uma prxis crist iniciada em nome de Jesus e sustentada na

esperana ativa que flui do Ressuscitado e de sua presena nova na histria81

. Ellacura

reconhece que h um grau de condicionamento nessa forma de aproximao do

contedo do reino de Deus. Porm, no ocorre um reducionismo do Reino a uma prxis

ou realidade meramente temporal. Essa formulao da noo de reino de Deus

possibilita uma contnua atualizao histrica da prpria prtica de Jesus82

.

Ellacura entende que no se pode, pura e simplesmente, identificar o reino de

Deus com determinadas prticas de libertao, pois seria reducionismo. Porm, para que

se possa falar de Reino, de modo pertinente e credvel, preciso que ocorram

acontecimentos histricos concretos que sejam libertao para quem se encontra

oprimido. Assim, se torna razovel aceitar-se que a supresso da misria, da explorao,

da fome, etc., sejam sinais comprobatrios de que o reino de Deus j chegou.

Uma das grandes contribuies de Ellacura para o pensamento atual sobre o

reino de Deus a articulao que faz entre a noo de reino de Deus e a vida de f

concreta dos cristos que leva a uma prxis libertadora. Ou seja, o reino de Deus como

80

ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 81

ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 82

Esta compreenso do significado do reino de Deus encontra sua fundamentao no evangelho de Lucas

que, segundo Schnackenburg, pode ser considerado um evangelho histrico. O evangelista traa a linha

da histria da salvao de maneira tal que a presena de Jesus no mera preparao para o futuro da

soberania de Deus. Para Lucas, a fora escatolgica do Reino de Deus j est atuando eficazmente no

presente e se manifesta nos bens salvficos atuais, sobretudo no Esprito Santo que age na existncia dos

discpulos (cf. SCHNACKENBURG, Signoria e Regno di Dio, p. 140.).

31

realidade concreta e atuante na vida do povo, libertando contra as foras hostis presentes

na histria. Nesse sentido, o seguimento a Jesus e seu Reino algo concreto. Exige uma

prxis concreta. Tanto os cristos como as comunidades de f esto imbudos do valor

histrico e transcendente do reino de Deus. Por isso, se fala da esperana de um mundo

onde se respeite a dignidade dos mais fracos83

.

A abordagem que Ellacura faz sobre a vida e a atuao de Jesus acentua o que

Jesus fez, relacionando seus gestos com a justia e a converso pessoal e eclesial a Jesus

Cristo e ao reino de Deus. H ntima ligao entre o contedo cristolgico e a

eclesiologia. A Igreja chamada a seguir Jesus no servio solidrio humanidade. E, no

seguimento solidrio a Jesus, o Reino vai acontecendo e mudando a realidade do

mundo.

1.2.4 A voz da Igreja hoje

A Igreja, na atual transformao da Amrica Latina, luz do Conclio Vaticano

II, apresenta, especialmente, dois grandes documentos conciliares: a Lumen Gentium,

com a nova compreenso da Igreja; e a Gaudium et Spes, que situa a Igreja dentro do

mundo de hoje. Percebemos, assim, na Igreja Catlica do ltimo meio sculo, uma

retomada do conceito do reino de Deus nos documentos conciliares Lumen Gentium

(LG 3; 9; 35) e Gaudium et Spes (GS 39; 72) e na teologia da libertao.

1.2.4.1 O Conclio Vaticano II: Igreja Povo de Deus a caminho do Reino

O Conclio Vaticano II, XXI Conclio Ecumnico da Igreja Catlica, foi

convocado pelo papa Joo XXIII, em 25 de dezembro de 1961, e aberto em 11 de

outubro de 1962, atravs da bula papal Humanae Salutis84

. O Vaticano II foi o que

poderamos chamar de o sonho de Joo XXIII. Duas palavras sintetizam o que

pretendia com o Conclio: aggiornamento e dilogo, como bem observou um insigne

participante85

. Duas realidades que se completam, mas que tambm se implicam

mutuamente.

O Conclio e as prprias encclicas de Joo XXIII olham com especial carinho e

cuidado para todas as situaes concretas que ferem a dignidade humana e colocam em

83

Cf. ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 84

Cf. BRESSOLETTE, Vaticano II, p. 1820. 85

Cf. LORSCHEIDER, Introduo, p. 6.

32

risco a vida, depondo contra os valores da justia e da fraternidade, sinais do Reino que

a Igreja, no seguimento de Jesus, chamada a construir.

Com o Conclio Vaticano II, repensa-se o lugar social da Igreja, que deve estar

inserida no mundo, com a finalidade de ferment-lo com o fermento bom do Evangelho,

oferecendo a todos, sem excluso, direitos reconhecidos, dignidade respeitada, enfim,

vida nova e plena (cf. Jo 10,10).

Toda a importncia da Igreja deriva de sua estreita relao com Cristo. E o

Conclio Vaticano II, de diversos modos, descreveu a Igreja como povo de Deus, Corpo

de Cristo, Esposa de Cristo, Templo do Esprito Santo, Famlia de Deus 86

. Ao

enfatizar a Igreja Povo de Deus, o Conclio apresentou uma reflexo profunda sobre a

natureza do povo de Deus, falando do sacerdcio comum dos fiis e do sacerdcio

ministerial, como realidades ordenadas uma a outra (LG 10). O Conclio props uma

nova imagem do papa e dos bispos, cujo trao dominante o de pastor. O prprio

magistrio define-se como servidor da palavra de Deus; no est acima da Palavra, mas

a servio da Palavra (DV 10) 87

.

Porm, no era suficiente mudar o lugar social. Era necessrio reformular

tambm o lugar eclesial. Se a vocao da Igreja ser sacramento do Reino para e no

mundo, o exemplo deve comear por ela. Ento surge uma das mais belas intuies do

Vaticano II que foi sugerir a imagem da Igreja como Povo de Deus, com igualdade de

direitos e obrigaes, onde o Sacramento do Batismo confere a todos a mesma

dignidade: um povo de irmos que, na diversidade de dons e carismas concedidos pelo

nico Esprito, responsvel pela misso de construir o reino de Deus no mundo.

Na Constituio Dogmtica sobre a Igreja, Lumen Gentium, os padres

Conciliares resgataram a imagem bblica de Povo de Deus. Essa conscincia tem

dupla consequncia: uma, a superao de uma eclesiologia jurdica; e a outra, a

conscincia de uma nova relao com o reino de Deus e com o mundo. O Snodo acena

para a Igreja como instrumento de Deus no mundo, cuja misso a de proclamar a Boa-

Nova do reino de Deus. E, para isso, a Igreja precisa estar inserida no mundo, voltando

sua ateno para aquilo que o essencial e o sonho de Jesus, o reino de Deus.

86

CERFAUX, As imagens simblicas da Igreja no Novo Testamento, p. 331-345. 87

Cf. LATOURELLE, Vaticano II, in: DTF, Petrpolis-Aparecida, p. 1046.

33

Com essa viso, est preparado o terreno frtil que tornar fecunda a

Conferncia de Medelln, cujo contexto similar ao do Conclio, porm com agravantes

no que concerne realidade singular da Amrica Latina.

Na Constituio Dogmtica Lumen Gentium lemos:

O mistrio da santa Igreja manifesta-se na sua fundao. O Senhor Jesus deu

incio Sua Igreja pregando a Boa-Nova, isto , o advento do reino de Deus

prometido nas Escrituras havia sculos: Porque completou-se o tempo e o

reino de Deus est prximo (Mc 1,15; cf. Mt 4,17). Este Reino manifesta-se

na palavra, nas obras e na presena de Cristo. A palavra do Senhor

comparada semente semeada no campo (Mc 4,14): aqueles que a ouvem

com f e entram a fazer parte do pequeno rebanho de Cristo (Lc 12,32), j

receberam o Reino; depois, por fora prpria, a semente germina e cresce at

o tempo da messe (cf. Mc 4, 26-29) (LG 5) .

A Constituio salienta que Jesus iniciou sua Igreja a partir do anncio da Boa-

Nova do reino de Deus, que foi prometido aos antigos e que se torna realidade na vida e

pregao de Jesus. O texto prossegue:

Cristo Jesus que era de condio divina... despojou-se de si mesmo,

tomando a condio de escravo (Fl 2, 6) e por ns, sendo rico, fez-se pobre

(2Cor 8,9): assim tambm a Igreja, embora necessite dos meios humanos

para o prosseguimento da sua misso, no foi constituda para alcanar a

glria terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegao, tambm com o

seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai para evangelizar os pobres, sanar

os contritos de corao (Lc 4,18), procurar e salvar o que tinha perecido

(Lc 19,10). Semelhantemente, a Igreja abraa com amor todos os afligidos

pela fraqueza humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a

imagem do seu fundador pobre e sofredor. Faz o possvel para mitigar-lhes a

pobreza, e nele procura servir a Cristo. Mas enquanto Cristo santo, inocente,

imaculado (Hb 7,26) (LG 8) .

O texto insiste em afirmar que, se a Igreja inaugurada na pregao de Jesus

quiser permanecer na fidelidade a ele, tem que viver em constante exerccio de knosis,

tem que ser uma Igreja quentica e servidora do Reino.

Quando a Lumen Gentium fala sobre a nova aliana como novo Povo de Deus,

assim se expressa:

Este povo messinico tem por cabea Cristo, o qual foi entregue por causa

dos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificao (Rm 4,25) e, tendo

agora alcanado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos cus.

Tem por condio a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos

coraes o Esprito Santo habita como num templo. A sua lei o

mandamento novo de amar como o prprio Cristo nos amou (cf. Jo 13,34).

Por ltimo, tem por fim o reino de Deus, iniciado pelo prprio Deus na terra,

a ser estendido mais e mais at que no fim dos tempos seja consumado por

Ele prprio, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf. Cl 3,4) e a prpria

criao for liberta do domnio da corrupo, para a liberdade da glria dos

filhos de Deus (Rm 8,21) (LG 9).

34

O novo Povo de Deus, que surge da nova aliana com Cristo, chamado a viver

na liberdade de filhos de Deus, e a nica lei que deve nortear seus coraes e seu agir

a lei do amor. E no basta qualquer tipo de amor, mas tem que ter a mesma intensidade

do amor com que Cristo amou a humanidade (Jo 13,34). Vivendo a lei do amor em seus

coraes, o povo messinico tem a firme esperana de ser herdeiro do Reino vindouro,

que ser consumado no fim dos sculos. E aqui est uma das grandes intuies do

Vaticano II: somos povo (Igreja) que caminha em direo ao reino de Deus.

A todo o povo de Deus, o Conclio, atravs da Lumen Gentium, lembra que:

Mesmo quando se ocupam com as tarefas temporais, os leigos podem e

devem exercer preciosa ao para a evangelizao do mundo. Porque se j

alguns deles, na falta de ministros sacros, ou estando os mesmos impedidos

no regime de perseguio, suprem na medida do possvel os ofcios sacros; e

se muitos dentre eles dedicam todas as suas foras no labor apostlico: todos,

contudo, devem cooperar na dilatao e incremento do Reino de Cristo no

mundo (LG 35).

O Conclio, fiel s palavras de Cristo, exorta a todos os fiis para que se

empenhem no anncio da Boa-Nova a todas as gentes (cf. Mt 28,19). Recorda que

ningum pode se eximir da obrigao de difundir o reino de Cristo aos coraes

humanos. Diante do Reino que surgir no final dos tempos, na Parusia, todo o povo de

Deus, leigos e pastores, devem somar foras para que o Evangelho do Reino seja

difundido em toda a Terra.

A Constituio Pastoral sobre a Igreja no Mundo, Gaudium et Spes, quando trata

da atividade econmica e o reino de Cristo, assim afirma:

Tendo adquirido competncia e experincia, absolutamente indispensveis no

meio das atividades terrestres, observem a hierarquia dos valores, fiis a

Cristo e ao Evangelho, de tal modo que toda a sua vida, individual e social,

seja impregnada do esprito das Bem-aventuranas, destacando-se pobreza.

Todo aquele que, obedecendo a Cristo, procura em primeiro lugar o Reino de

Deus, encontrar, em consequncia, um amor mais forte e mais puro para

ajudar todos os seus irmos e realizar a obra da justia inspirada pela

caridade (GS 72).

A Constituio afirma que h uma hierarquia de valores para os cristos, uns de

maior, outros de menor peso, pelo que necessrio um discernimento para no correr o

risco de se apegar ao menos importante e esquecer o essencial, que o reino de Deus e

sua justia. O restante vem por acrscimo (Mt 6,24-34). Segundo Mateus, devemos

viver buscando em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justia (Mt 6,33). Paulo

identifica a justia com o reino de Deus. Pois o reino de Deus no comida nem

bebida, mas justia, paz e alegria no Esprito Santo (Rm 14,17).

35

1.2.4.2 De Medelln a Aparecida: Igreja discpula missionria a servio do Reino

Em 1968, ainda sob o sopro do Esprito Santo presente no Conclio Vaticano II,

realizou-se na cidade de Medelln, Colmbia, a II Assemblia Geral do Episcopado

Latino-Americano, que deu origem ao documento que passou a ser chamado

Documento de Medelln. Em Medelln, explodiu forte o grito bblico de libertao, de

opo pelos pobres, com uma Igreja a servio do Reino. Foi a que deslanchou a

caminhada das CEBs, que procuram vivenciar a prtica concreta de Jesus e o sonho de

realizar o reino de Deus. Termos como justia, fraternidade, solidariedade,

compromisso e caminhada revelam o seguimento a Jesus e a vontade de implantar

concretamente o reino de Deus.

A Igreja de Medelln, amadurecida luz do Conclio, prope e realiza a

abertura de novos caminhos para a Amrica Latina em diversos nveis: na luta para

garantir os direitos humanos dos povos, na substituio do assistencialismo pela

verdadeira promoo humana e social, no empenho consciente para que os pases em

desenvolvimento no deixem na margem os pobres e os operrios, na articulao de f e

vida, na superao do autoritarismo e da centralizao eclesistica, no valor da vida

comunitria e social, na construo de sociedades solidrias e democrticas que

evidenciem os sinais do reino de Deus.

Por fim, Medelln prope pistas de ao pastoral, visando a transformar, no

sentido do reino de Deus e da libertao dos pobres, a realidade atravessada por

estruturas de pecado e pelo clamor e esperana dos pequenos. Seu olhar pastoral parte

da periferia do sistema, da sociedade real da Amrica Latina em processo de

transformao.

A III Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em

Puebla, no perodo de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. O tema desta conferncia

foi Evangelizao no presente e no futuro da Amrica Latina. Em Puebla ouviram-se

fortes apelos comunho, participao co-responsvel na Igreja, e defesa da

dignidade humana. Puebla representou a busca de uma nova estratgia pastoral.

Puebla explicitou a opo pelos pobres j presente em Medelln. importante

sublinhar o significado transcendente dessa opo evanglica e, ao mesmo tempo,

estratgica para a vida e a pastoral da Igreja. Iluminada pela opo de Puebla, o agir da

Igreja no mais devia articular-se a partir do poder, mas a partir do pobre, na tica do

36

pobre. A Igreja devia entra no tecido social pela porta da sociedade civil e, nela, pelo

caminho dos pobres88

. O agir eclesial possibilitaria a construo de uma Igreja fundada

no binmio comunho e participao. Comunho, enquanto criaria as condies de

unidade do corpo eclesial em vista da sua misso evangelizadora, participao,

enquanto criaria as condies para um compromisso efetivo na transformao da

realidade social.

A IV Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Santo

Domingo, no perodo de 12 a 28 de outubro de 1992. Foi convocada e inaugurada pelo

Papa Joo Paulo II. Santo Domingo teve um objetivo bastante especfico: comemorar os

500 anos da evangelizao do Continente e fazer-lhe um balano. O tema j orienta para

isso: Nova Evangelizao, promoo humana, cultura crist. Ele aponta para a

evangelizao inculturada que postula uma pedagogia pastoral adequada. Santo

Domingo, tambm, valorizou o protagonismo do leigo na Igreja.

Em Santo Domingo aparecem dois grandes temas que servem como fio condutor

de todo o Documento : a promoo humana e a inculturao. Postulam nova pedagogia

pastoral para o projeto da nova evangelizao. A discusso central deu-se justamente,

em torno da nova evangelizao. Como deve ser a evangelizao para ser nova em

relao aos processos tradicionais de evangelizao? O que ela exige de cada cristo?

Na preparao da Assemblia de Santo Domingo havia duas tendncias na

abordagem da questo da cultura e da inculturao89

. Uma compreendia a cultura como

a conscincia consolidada de um grupo social, ligada a formas culturais j assentadas

historicamente. Essa corrente tendia a compreender a cultura crist como meta-

cultura, reguladora das demais, superior s demais. Preferia falar de evangelizao da

cultura. A expresso cultura crist, nesse contexto, dificilmente escapa suspeita de

fazer parte da proposta de nova cristandade.

A outra tendncia buscava justamente a compreenso mais dinmica e

processual. Apresentava a cultura como processo ligado ao mundo vital dos sujeitos

histricos concretos. Este mundo vital dos sujeitos culturais diferenciado, plural.

Neste sentido, a evangelizao, para ser nova, deve partir do pressuposto de que toda

88

Cf. PALCIO, Uma conscincia histrica irreversvel, p. 59-83; CALIMAN, Identidade histrica da

Igreja no Brasil nos ltimos 20 anos, p. 17-33. 89

Cf. TABORDA, Nova Evangelizao, promoo humana, cultura crist, p. 9.

37

cultura pode chegar a ser crist, ou seja, a fazer referncia a Cristo e inspirar-se nele e

em sua mensagem90

. Essa tendncia prefere falar de evangelizao inculturada. Visa

promoo da pessoa humana no sentido da libertao integral e inculturao do

Evangelho nas culturas.

De 13 a 31 de maio de 2007, realizou-se em Aparecida, So Paulo, a V

Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, solenemente

inaugurada pelo papa Bento XVI. Os bispos tiveram a oportunidade de refletir sobre a

realidade e os desafios eclesiais latino-americanos. Como concluso, foi elaborado um

documento com o ttulo: Discpulos missionrios de Jesus Cristo para que nossos

povos nele tenham vida. Textos conclusivos da V Conferncia Geral do Episcopado

Latino-Americano e do Caribe, que servir para orientar a caminhada da Igreja Latino-

Americana e Caribenha no trabalho pastoral e evangelizador dos prximos anos.

Nosso tempo caracteriza-se para alguns, como ps-cristo, ou ps-cristandade.

Nele de fundamental importncia a personalizao da f, ou seja, a reconstruo do

elo perdido entre o indivduo e a f eclesial. Para que o fiel discpulo de Jesus Cristo

chegue a ser missionrio, preciso que a apropriao subjetiva da f, como experincia

pessoal, seja acompanhada por uma adeso firme aos contedos objetivos da f. S

assim o individualismo religioso pode ser vencido. O cultivo da intimidade com o Deus

de Jesus Cristo se torna fonte de entusiasmo missionrio pelo reino de Deus.

A Conferncia de Aparecida significou para a Amrica Latina uma hora de

graa, um novo Pentecostes, um autntico acontecimento salvfico que ps a Igreja,

peregrina nestas terras, num estado permanente de misso (DAp 547).

O mtodo VER-JULGAR-AGIR perpassa o documento inteiro, mesmo que seja

de maneira bastante sutil. O julgar marcado por trs eixos que explicitam a

experincia crist: a) o encontro pessoal com Jesus Cristo que nos torna discpulos

missionrios, fonte de grande alegria e paz (cap. III-IV); b) a vivncia eclesial, onde

todos se sintam acolhidos e valorizados como sujeitos eclesiais (cap. V); c) o processo

formativo permanente, capaz de gerar convico forte e corajosa (cap. VI). O agir que

segue misso para valer, fecundo e permanente. Atinge de cheio a realidade scio-

econmica, poltica, cultural, religiosa (cap. VII-X).

90

JOO PAULO II, Discurso Inaugural, Concluses de Santo Domingo, n. 4.

38

Algumas novidades que aconteceram na V Conferncia Episcopal: 1) A

presena de um nmero significativo de participantes de todos os estados do Brasil, que

fez com que os bispos no se esquecessem da Igreja Povo de Deus, ainda mais por se

realizar no santurio mariano que tem sua histria relacionada com o povo pobre, os

negros e excludos da sociedade. 2) O Frum de participao fazendo referncia aos

mrtires da Amrica Latina e do Caribe, homens , mulheres e crianas que doaram a

vida pelo reino de Deus. 3) A presena de um grupo de telogos(as), exegetas,

pastoralistas e cientistas sociais, e do grupo Amerndia, que colaboraram com os bispos

na linha da reflexo teolgica, bblica e pastoral. 4) A retomada da colegialidade na

Igreja latino-americana e caribenha.

Chama a ateno a retomada da opo pelos pobres, que a V Conferncia inseriu

na f cristolgica. Pode-se ainda elencar outros aspectos importantes, como o dilogo

ecumnico e inter-religioso, base fundamental para se construir um mundo de justia e

de paz. Outro ponto salientado pelo Documento a realidade de excluso, fome e

violncia, presente na Amrica Latina e no Caribe. O documento d ateno especial ao

cuidado para com os pobres e excludos. A V Conferncia mostrou o rosto indgena e

afro-americano da Igreja latino-americana e caribenha. Outro fruto importante foi o

tema da vida para todos os homens e mulheres, vida para todas as criaturas, vida para a

natureza. Enfim, para que todos tenham vida e a tenham em abundncia (cf. Jo 10,10).

Clodovis Boff afirma que, em Aparecida, a opo pelos pobres ganha nova

amplitude:

Foram identificados novos rostos da pobreza: os desempregados, os

refugiados e migrantes, os aidticos e os txico-dependentes, a populao de

rua, as mulheres vtimas da violncia e explorao sexual, os presos e tantos

outros rostos mais. Mas, , sobretudo, a qualidade desta opo que mais

sublinhada pelo documento. Trata-se de uma opo verdadeiramente

evanglica, no sentido de vir banhada e mesmo encharcada da f em Cristo. E

isso, tanto em sua origem (ela nasce do encontro com o Filho de Deus, que

de rico se fez pobre) quanto em seu exerccio (ela vibra com os sentimentos

do corao do Bom Pastor). Quanto s aplicaes concretas, alm das

indicaes prticas que do, os bispos apelam para a imaginao da

caridade, a que se referiu Joo Paulo II91

.

O rosto da Igreja esboada pelo Documento de Aparecida de uma Igreja

profundamente missionria, que anuncia com alegria e entusiasmo a Boa-Nova do amor

91

Entrevista de Clodovis Boff concedida Revista do Instituto Humanitas Usininos: Os rumos da Igreja

a partir de Aparecida, p. 17. http://www. ihuonline. unisinos. br/uploads/edicoes/1182195938. 41pdf. pdf

acessada em 11/07/2010.

39

de Deus em Cristo, e, nesse amor, o ser humano encontra sentido para sua existncia

concreta. Igreja servidora cuja atitude concreta se traduz no cuidado com os irmos, em

especial os mais necessitados. Clodovis Boff diz que a Igreja da V Conferncia ser

uma Igreja agpica, enquanto se faz samaritana de todos os cados beira das

estradas do mundo, cuidando deles e curando-os92

.

Para Joo Batista Libanio,

uma das grandes luzes de Aparecida decorre da alegria de ter-se encontrado

com o Senhor. De tal experincia, brotam os desejos de segui-lo e anunciar-

lhe o Evangelho do Reino da Vida aos povos latino-americanos. A

revitalizao da vida do discpulo missionrio parte de um fato primeiro que

se traduz na alegria de ser discpulo para anunciar o evangelho do Reino da

Vida. H uma boa notcia que antecede ao cristo, que ele recebe e de que faz

porta-voz convencido. Na base de tal convico est o encontro com Cristo,

que chama para segui-lo e o envia para o anncio na fora do Esprito

Santo93

.

O prazo se cumpriu. O reino de Deus est chegando. Convertam-se e creiam no

Evangelho (Mc 1,15).

Na prxima Assemblia Ordinria do CELAM, que se realizar em Cuba ser

trabalhado o projeto da Grande Misso Continental. preciso aguardar para saber quais

sero as iniciativas propostas para marcar essa nova etapa na caminhada pastoral da

Igreja Latino-Americana e Caribenha.

1.2.5 A prtica das nossas comunidades

Para entendermos as prticas de nossas comunidades, faz-se necessria uma

releitura de algumas prticas do passado, a fim de termos uma compreenso mais

consistente da realidade atual e encontrarmos luzes que possam nortear o momento

presente.

Para a Reforma e o Renascimento, a f a confiana na graa que salva e nos

liberta da lei, inclusive da Lei de Deus94

. A graa justifica o ser humano e, recoberto por

ela, a justia de Cristo o faz justo, mesmo que permanea no pecado. A justificao,

para a doutrina luterana clssica, a imputao forense da justia legal: no somos

justos, mas apenas considerados justos. Confiando nesta justia crendo nela

92

BOFF, C. Os rumos da Igreja a partir de Aparecida, p. 15. 93

Entrevista de Joo Batista Libanio concedida Revista do Instituto Humanitas Us