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Resenha: Maria da Conceição de Almeida Antropóloga, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte O Método 6 – ÉTICA Autor: Edgar Morin Tradução: Juremir Machado da Silva Editora Sulina, Porto Alegre, 222 páginas “A ética se manifesta em nós de maneira imperativa, como exigência moral”. Esse imperativo origina-se de três fontes interligadas entre si: uma fonte interio r ao indivíduo, que se manifesta como um dever; outra externa , constituída pela cultura, e que tem a ver com a regulação das regras coletivas; e, por fim, uma fonte anterior , originária da organização viva e transmitida geneticamente. Esse macro argumento que abre a Introdução do Método 6 de Edgar Morin, é um divisor de águas no oceano das inumeráveis interpretações filosóficas e sociológicas sobre ética. E isso porque, via de regra, essas interpretações encarceram a ética num mundo noológico autônomo, dirigido por uma consciência transcendente e uma razão ideal; ou numa axiomática da moral coletivista, difusa e universal; ou no domínio das contingências individuais e das singularidades subjetivas, que acabam por degenerar a ética em moralia, conforme expressão de Nietzsche. Pautadas na concepção da condição humana extirpada dos domínios da vida e da matéria, e na noção antropocêntrica de sujeito, ou seja, limitada à experiência humana, as interpretações clássicas da ética apresentam hoje suas brechas e insuficiências.

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O Método 6 – ÉTICAAutor !dgar Morin

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Resenha: Maria da Conceio de Almeida

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Resenha: Maria da Conceio de Almeida

Antroploga, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte

O Mtodo 6 TICA

Autor: Edgar Morin

Traduo: Juremir Machado da Silva

Editora Sulina, Porto Alegre, 222 pginas

A tica se manifesta em ns de maneira imperativa, como exigncia moral. Esse imperativo origina-se de trs fontes interligadas entre si: uma fonte interior ao indivduo, que se manifesta como um dever; outra externa, constituda pela cultura, e que tem a ver com a regulao das regras coletivas; e, por fim, uma fonte anterior, originria da organizao viva e transmitida geneticamente.

Esse macro argumento que abre a Introduo do Mtodo 6 de Edgar Morin, um divisor de guas no oceano das inumerveis interpretaes filosficas e sociolgicas sobre tica. E isso porque, via de regra, essas interpretaes encarceram a tica num mundo noolgico autnomo, dirigido por uma conscincia transcendente e uma razo ideal; ou numa axiomtica da moral coletivista, difusa e universal; ou no domnio das contingncias individuais e das singularidades subjetivas, que acabam por degenerar a tica em moralia, conforme expresso de Nietzsche. Pautadas na concepo da condio humana extirpada dos domnios da vida e da matria, e na noo antropocntrica de sujeito, ou seja, limitada experincia humana, as interpretaes clssicas da tica apresentam hoje suas brechas e insuficincias.

No novo patamar inaugurado por Edgar Morin, a trade indivduo-sociedade-espcie, tanto quanto a dialgica natureza-cultura e individual-coletivo servem de tela para reconstruir a idia de tica no intercruzamento da histria da vida, da histria da cultura e da histria individual. Isso s possvel porque a concepo de sujeito elaborada pelo autor ao longo de toda sua obra vale, como ele prprio anuncia no Mtodo 6, para todo ser vivo mesmo que o sapiens-demens opere uma dispora sem prescedentes no interior da histria do vivo pela complexificao do padro de inacabamento e pela propenso diversidade e conseqente singularizao do sujeito bio-social. Distante de qualquer biologismo, essa compreenso do sujeito supe uma tica encarnada, incerta, ambgua, complexa. Oscilamos permanentemente entre razo, afetividade e pulso. Temos que nos haver, ao mesmo tempo com o princpio de incluso, que responde pela conscincia do ns, propiciada pelo coletivo e prximo (me, famlia, partido, grupo ou ptria) e com o princpio de excluso, que garante nossa identidade singular (eu mesmo).

Na contingncia de todas as pequenas e grandes decises e escolhas, reatualizamos, permanentemente, aprendizagens do passado no propriamente humano e, a partir delas, construmos novos padres de escolhas e respostas cada vez menos estigmatizadas, cada vez mais complexas e indeterminadas. O sujeito humano se engendra, no interior das contingncias scio-histricas e bio-culturais - outra forma de dizer que ele emerge do interior de reorganizaes no exclusivamente humanas, histricas e sociais. Para Morin, possvel distinguir, mas no isolar, nem contrapor, os domnios individuais, sociais e biolgicos que juntos configuram o paradigma aberto e inacabado da espcie humana, do sujeito e da tica.

Somente porque parte de uma concepo complexa do sujeito, possvel ao autor reconsiderar a noo de tica num patamar epistemolgico igualmente complexo. Se oscilamos entre pulso, razo e afetividade (concepo do crebro trinico de Mac Lean); se oscilamos entre egosmo e altrusmo, a tica s pode ser pensada como estratgia, aposta provisria, deciso e risco, convico pessoal que admite auto-engano. A tica complexa por ter sempre de enfrentar a ambigidade e a contradio; por estar exposta a incerteza; por se situar no limite difuso entre o bem e o mal.

Composto por cinco partes O pensamento da tica e a tica do pensamento; tica, cincia e poltica; Auto-tica; Scio-tica; Antropotica; e pelas Concluses ticas -, o livro desdobra a magistral obra sobre O Mtodo, constelada agora por seis volumes e iniciada com o Mtodo 1, publicado pela primeira vez em 1977. Sensivelmente mais palatvel que alguns dos volumes que o precede, o Mtodo 6 expressa bem a passagem do conhecimento cientfico esotrico (acessvel apenas aos iniciados) para um conhecimento exotrico (aberto a comunidade maior). E mais: como de resto em todos os livros de Edgar Morin, tambm nesse, os argumentos tm a marca do autor; o sujeito se mostra e assume, explicitamente, a subjetividade que, queiramos ou no, est presente na escritura da cincia. Como se no bastasse esse mostrar-se por inteiro nos argumentos, o autor nos brinda pela primeira vez com o que chama de notas introspectivas lugar aonde ele extravasa suas auto-anlises.

Para tecer o frgil e incerto horizonte da tica, Edgar Morin faz uso abundante de exemplos histricos e de romances clssicos esses ltimos, verdadeiros operadores cognitivos complexos para a compreenso da ambigidade que parasita a tica. A prostituta Snia, do romance Crime e Castigo de Dostoivsky, o monsenhor Myriel, de Os Miserveis de Victor Hugo, tanto quanto outros personagens e romances, se fazem presentes para problematizar a difcil arte do perdo, os limites da compreenso, a incerteza tica. O campons do romance Quatre-vingt-treize de Victor Hugo, que salva um chefe contra-revolucionrio o qual, em seguida, manda fuzilar trs mulheres, faz uma pergunta crucial e desconcertante: Ento, uma boa ao pode ser uma m ao?

O livro expe com vivacidade e crueza processos e eventos que operaram no limite ou no centro da barbrie, da intolerncia, do totalitarismo e promoveram genocdios irreparveis no curso de nossa histria recente. Nazismo, stalinismo, escravido, Gulag, Auschwitz, Terrorismo... Foras do mal? Degenerncias e desvio de boas intenes? Bestializao coletiva? Como identificar o responsvel, se se trata de um processo de responsabilidades em cadeia, desde o tipo de Hitler e Stalin, at os executores dos campos de morte? Quando Hannah Arendt escreve sobre Eichmann, ela o v como uma engrenagem da mquina criminosa e a mediocridade desse funcionrio perfeito que a choca. Ela percebeu tambm que o absurdo Auschwitz no seria compensado com uma pena de morte, diz Morin.

H que se considerar tambm que o binmio intenes-aes se encerra num paradoxo. Nada garante partida que uma boa inteno no se degenere em atrocidades futuras. As boas aes podem gerar maus resultados e o inverso. Assim como o pensamento complexo, a tica complexa no escapa ao problema da contradio. H sempre incerteza escondida sob a aparncia unvoca do bem e do mal. preciso romper com o cdigo binrio bem-mal, justo-injusto. Para o autor, a crena numa tica superior com finalidades emancipatrias universais toma, quase sempre, iluses por verdade. Da a necessidade da vigilncia tica e do exerccio do pensar bem proposto por Pascal.

A vigilncia tica e o exerccio do pensar bem se constituem em plos cognitivos importantes. Se no so antdotos contra o auto-engano e as foras do mal que nos constituem, pelos menos alertam para o perigo, sempre prximo, da ao que impulsiona a crueldade do mundo. Mesmo que se possa distinguir, necessrio ter conscincia do vnculo entre conscincia intelectual e conscincia moral. E isso porque, ao contrrio da cincia moderna [que] alicerou-se sobre a separao entre juzo de fato e juzo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento e, do outro, a tica, crucial reconhecer o parasitarismo mtuo entre esses dois terrenos.

no interior do paradoxo que se situa a tica para Edgar Morin. distante da fragmentao, dos determinismos, da universalidade, do culpado nico, do esteretipo do homem bom e acima de qualquer suspeita, que situa a tica complexa. Em vrias partes do livro, a reflexo sobre a tica na cincia volta tona. No porque o autor privilegie esse dispositivo da cultura em detrimento dos outros, mas porque se esmera em demonstrar os elos que ligam cincia, sociedade, poltica, tcnica, sujeito. A necessidade de compreender a ecologia da ao um argumento central e ao mesmo tempo uma proposta que transversaliza todo o livro. A ecologia da ao supe a compreenso da relao estreita entre convices e aes, entre teoria e ao, entre individual e coletivo, entre poltica e vida cotidiana. Trata-se de uma rede que interconecta o mais fugaz de todos os atos ao mais esplndido produto da cincia.

Ter conscincia de como opera a ecologia da ao certamente faz diferena para pensar a biotica, por exemplo. Dada a arbitrariedade das decises como a que diz respeito ao comeo da vida vulo?, nascimento da cincia? quando o corao comea a pulsar no feto? importante assumir compromissos sempre provisrios. Sobretudo porque, tica remete a escolha, aposta, estratgia. As questes colocadas pelo autor a esse respeito, extrapolam qualquer maniquesmo e permitem ao leitor refletir sobre problemas essenciais do nosso tempo: absolutamente tico querer incondicionalmente salvaguardar a natureza do homo-sapiens? Ou no seria tico querer melhorar essa natureza, inclusive por meios biolgicos? Longe de optar entre o naturalismo e a bioengenharia, o que temos no livro mais propriamente a formulao de questes e problemas que desencastelam a cincia e cobra dela sua misso de copartfice nas decises de toda ordem poltica, social, individual, coletiva.

Assumir a relao entre cincia, poltica e tica, e se ater a ambigidade de cada uma delas em sua ao conjunta configura um axioma importante no livro. Lembra o autor que o problema da cincia vai alm dos cientistas. Citando Clemenceau, para quem a guerra um assunto srio demais para ser deixado nas mos dos militares, Morin sublinha que a cincia um assunto srio demais para ser deixado nas mos dos homens de Estado. Uma tica complexa reconhece que a cincia tornou-se tambm um problema cvico, de cidados. Da porque fundamental investir numa democracia cognitiva e no fim do esoterismo da cincia.

Ter conscincia de que no somos o centro de tudo, mas sujeitos ligados a outros sujeitos e de que, conforme ensina a cosmologia contempornea, alm da identidade terrestre, temos uma identidade csmica (porque somos constitudos de partculas formadas desde o comeo do universo, de tomos forjados num sol anterior ao nosso e de molculas que se juntaram na Terra), muda certamente a forma de ver a ns e ao mundo, de compreender nossa ligao com todas as coisas. Isso tem a ver com a arte de saber viver. Tem a ver tambm com a tomada de conscincia de que o desenvolvimento tecnoeconmico leva degradao da biosfera, das nossas sociedades e das nossas vidas. Isso nos conduz para uma ecosofia, proposta por Flix Guattari, nas palavras de Morin, uma sabedoria coletiva e individual que exige a salvaguarda da nossa relao com a natureza viva.

Excedendo em muito o dimetro de ao da tica clssica, portanto da tica como campo individual de escolha, uma tica complexa produz uma mudana filosfica e nos conduz a uma sabedoria antropolgica: renunciar ao controle e dominao do mundo, estabelecer uma nova aliana com a natureza, conforme os termos de Prigogine e Stengers, sabendo que somos filhos e rfos do cosmos, pois dele nos distanciamos pela cultura e pela conscincia.

Uma tica complexa como um metaponto de vista comportando uma reflexo sobre os fundamentos e os princpios da moral torna-se, pois, urgente para enfrentar os desafios, os paradoxos e o impondervel que emergem da complexa teia entre o juzo pessoal, os princpios morais cristalizados socialmente e a simbitica relao entre bem e mal que parasita os fenmenos sociais e histricos porque, adormecidos, acometem a todos ns. Se o ponto de partida a ser acionado, permanentemente e sem trgua, se situa na auto-anlise que se abre anlise do outro, essa auto-anlise deveria ser ensinada desde o comeo do ensino fundamental para se tornar uma prtica to costumeira quanto a cultura fsica. Ela deveria e poderia ser desencadeada e estimulada por uma pedagogia.

Entre as vrias lies explcitas no Mtodo 6 tica, uma diz respeito lio tica essencial: incorporar nossas idias em nossas vidas. Num tom fortemente esttico e poltico, o autor argumenta em favor da tica da responsabilidade e da convico, atitude que pe para girar um crculo trinitrio: auto-tica, scio-tica, antropoltica. Movido por complementaridades, concorrncias e antagonismos, esse triedo se torna uma estratgia para enfrentar a iluso do bem universal. Para tal, o exerccio da introspeco fundamental. Citando Jung, para quem, a humanidade sofre de uma enorme carncia de introspeco, e Paul Diel, que fala da pertinncia de reabilitar a introspeco nas cincias humanas, Morin assevera que a introspeco no pode ficar isolada, ela se torna complexa pela anlise do outro, a extrospeco. Trata-se, diz ele, de um longo trabalho de aprendizagem e de enraizamento da reflexividade. Introspeco e reflexividade esto, portanto, muito distantes da idia de auto-reflexo confessional, ntima e solitria.

A concepo de auto-tica se gesta, no livro, no interior de um desdobramento argumentativo que inclui as noes de cultura psquica, tica da responsabilidade, da religao, de liberdade, amor, compreenso, magnanimidade e perdo, arte de viver.

Num dos centros difusos da tica est a questo do perdo. Mas o perdo um ato limite. Comporta uma dessimetria essencial, indo alm da renncia punio: no lugar do mal pelo mal, devolve o bem pelo mal. No se limita a um ato de indulgncia, supe ao mesmo tempo compreenso e recusa da vingana. Citando Victor Hugo que disse esforo-me em compreender para perdoar, Morin complementa dizendo: compreender um ser humano significa no reduzir a sua pessoa falta ou ao crime cometido. Fazendo dialogar exemplos histricos, interpretaes cientficas e a construo literria, discute os princpios que estariam na base do perdo de Jesus Madalena e aos seus torturadores (quem no tem nenhum pecado atire a primeira pedra; e pai, perdoai, eles no sabem o que fazem); do perdo de Snia a Raskolnikov; e do perdo poltico nas palavras de Mandela:perdoemos, mas no esqueamos. Em relao a esse ltimo, discute a relao entre perdo e memria.

Quais seriam os limites de compreenso e perdo nos casos de regimes totalitrios, da intolerncia tnica e religiosa, das ecatombes provocadas pelo Estado nazista e pelo Estado sovitico, dos massacres sofridos pelos ndios da Amrica, da escravido negra? Nem sempre possvel compreender, perdoar.

O perdovel e o imperdovel apresentam-se como um paradoxo. Esse argumento, construdo por Vladimir Janklvich e referido por Morin, permite a dura concluso de que, num certo limite, como a tortura e o assassinato de uma criana, o perdo perde sentido. A punio irrisria; o perdo, imperdovel. No centro da reflexo sobre a impossibilidade do perdo, da correo do mal e da punio, Morin lembra o caso do sangue contaminado em hospitais da Frana. Punir quem, nesse caso, quando o problema conseqncia da soma de cegueiras oriundas da burocratizao, da compartimentalizao, da especializao, da rotina? Os relatrios alarmantes de alguns mdicos no eram sequer lidos e os grandes caciques da cincia e da medicina no acreditavam que um vrus pudesse provocar a AIDS, diz.

Tecida e problematizada no interior de uma antropologia complexa e fundamental, a tica de Edgar Morin no vislumbra nenhum evangelho de salvao. Antes, talvez, um evangelho de perdio. Antes, talvez, um labirinto sem Ariadne, nem fio condutor. E isso porque, longe do anglico, a tica no tem as mos sujas, mas no tem tampouco as mos limpas. Isso porque, como quer Saramago, no Evangelho Segundo Jesus Cristo, Deus e Sat so duas figuras do mesmo. O pior da crueldade e o melhor da bondade do mundo esto no ser humano. Somos um misto de barbrie e ilhas de bondade. Mas esse complexo de bem e mal no ensaia nenhum horizonte imobilista e derrotista. Ao contrrio, num argumento desafiador, Edgar Morin conclui que, mesmo que as foras de ligao sejam minoritrias em relao s foras de disperso, mesmo que a crueldade e a barbrie sejam majoritrias, preciso de forma obstinada e incansvel apostar nas ilhas de bondades. A tica de resistncia crueldade do mundo tambm tica de aceitao do mundo. A referncia, por duas vezes no livro, expresso de Beethoven Muss es sein? Es muss seins! Ser que isso pode/deve ser? Isso pode/deve ser! condiz com o perfil de uma tica da aposta nos fragmentos do bem imersos no oceano de barbrie e maldade.