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    número 22

    setembro de 2009

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     ARANTES, Lucielle Farias. Educação musical em ações sociais: uma discussão antropológica sobre o Projeto Guri.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 21, 97-98, mar. 2009.

    Esse livro, oriundo da tese de doutorado daantropóloga e musicista Rose Hikiji, está organizadoem cinco capítulos, e se propõe a investigar os signi-ficados do fazer musical dos participantes do ProjetoGuri, empreendido pelo governo do Estado de SãoPaulo a partir do ano de 1995. Desenvolvendo-se

    em mais de 200 polos, o projeto oferece cursosde instrumentos, canto coral e teoria e é voltado acrianças e jovens de baixa renda. Para o trabalhode campo foram selecionados os polos Mazzaropie Febem-Tatuapé.

    Buscando compreender o fazer musical ob-servado e até mesmo vivenciado, Hikiji o discuteem seus aspectos políticos, pedagógicos e perfor-máticos, relacionando-o à construção das noçõesde corporalidade, temporalidade e alteridade entreseus atores, trazendo em sua etnografia elementosde sua própria vivência musical. Em face da opção

    por uma “abordagem sensível do cotidiano”, em quetoma o fazer musical como cerne de sua investiga-ção, discute no primeiro capítulo as possibilidadesde privilegiar a perspectiva auditiva ao desenvolversua narrativa. A partir de uma contextualizaçãohistórica, busca entender ainda os sentidos dosdiscursos atribuídos à música em seu suposto papelde interventora na realidade social.

    No segundo capítulo, a autora procura levan-tar os aspectos em que se dá a transferência dos va-lores advindos da experiência musical à constituição

    dos sujeitos enquanto cidadãos, já que o ensino demúsica no Guri é proposto mediante a expectativade contribuir para a mudança da realidade social.Daí, avalia a especificidade dos projetos atuais,

    Educação musical em ações

    sociais: uma discussãoantropológica sobre o

    Projeto GuriResenha de: HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A música e o risco: etnogra-

    fia da performance de crianças e jovens. São Paulo: Edusp, 2006. 256 p.

    Lucielle Farias ArantesUniversidade Federal de Uberlândia (UFU)

    [email protected] 

    como o em questão, frente à abordagem de educa-ção musical já ocorrida no Brasil durante o governode Getúlio Vargas. Em virtude da recorrência decertos termos, como “situação de risco”, “cidadania”e “autoestima”, em discursos ligados a projetos so-ciais, Hikiji faz uma revisão crítica atentando-se para

    as implicações de seus usos. Mostra que a maneiracom que tais termos são empregados acaba porrefletir o desconhecimento de quem os adota emrelação às vivências e anseios do público ao qualas atividades são destinadas, além de acentuar osestigmas que já pesam sobre ele.

    Embora a autora deixe claro que sua in-tenção não é a de avaliar o Guri, é importante acontribuição que dá à educação musical na medidaem que, inevitavelmente, discute a ideologia queo permeia, chegando a desvelar-lhe traços de umprojeto “civilizatório”, principalmente tendo em vista

    o momento histórico atual, em que o país conta coma promoção de um crescente número de projetosmusicais, de cunho educativo, com o objetivo deintervir na realidade social de crianças e jovens debaixa renda. Mas a maior contribuição advinda de A música e o risco talvez esteja em proporcionaruma interpretação antropológica de questões pró-prias da educação musical, procurando desvelar a“teia de sentidos” (Geertz) envolvida no processode aprendizagem. Para tanto, Hikiji tem seu olharatento à aula enquanto espaço de transmissão devalores, que passam a compor outras instâncias da

    vida dos jovens, para além da propriamente musi-cal. Assim, no terceiro capítulo são analisadas asexperiências musicais de leitura, audição, imitaçãoe corporalidade, a partir das quais são conferidos

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     ARANTES, Lucielle Farias. Educação musical em ações sociais: uma discussão antropológica sobre o Projeto Guri.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 21, 97-98, mar. 2009.

    os significados musicais. A autora observa que, naprática cotidiana, não há barreiras entre a leitura eoralidade nem tampouco entre os gêneros eruditoe popular, como sugerido pelos coordenadores doprojeto em seus discursos; identifica estratégiaspedagógicas e outros aspectos motivadores parao ingresso e permanência dos jovens no Guri;chama a atenção para as transformações que aatividade musical provoca nos corpos dos músicose o confronto que pode gerar ao tratar-se de corposvigiados, no caso dos jovens internos. Mostra quemuitos desses atores, ao se envolverem com ofazer musical, ainda que por motivações extrínse-cas, acabam imersos, despertando-lhes desejos epromovendo-lhes transformações.

    No quarto capítulo há significativa atençãoao tema performance sendo interessante notarcomo essa atividade, tomada no Guri como o cerneda aprendizagem musical, é aqui abordada comoa finalização de uma experiência, portanto, sendoconsiderada em seu processo, que, para Hikiji, cor-responde à experiência coletiva do fazer musical.Baseada em Schechner, a autora entende que apartir da experiência da performance, há a possibili-dade de transformação dos sujeitos. Ressalta ainda oexercício de alteridade, mas também de afirmação daidentidade; a oportunidade dos jovens conhecerem

    novos espaços e pessoas, ampliando-se horizontes,além da experimentação de sensações diversas,de ordem física e emocional. No entanto, a autoraobserva que os performers muitas vezes deixam devivenciar, plenamente, o “transformar-se em outro”,tão peculiar quando se está no palco. Isso pelaseparação nos discursos precedentes às apresen-tações públicas da dimensão “ética” (da ação social)da “estética” (do fazer artístico), quando a primeiraé enfatizada ao serem reiteradas as condições depobres e/ou infratores dos performers.

     Atentando-se às justificativas acerca da exis-

    tência do Guri, bem como as de pais e das própriascrianças e jovens para a sua participação no projeto,a autora nota a aversão ao tempo livre, configurandoa necessidade de extirpá-lo. Daí o seu preenchi-mento com a atividade musical. A partir dessa ob-

    servação, surge o interesse de melhor investigar asrazões que permeiam o medo do tempo ocioso e ossignificados de sua ocupação com a atividade musi-cal. É então no quinto capítulo que Hikiji tece suasreflexões no sentido da temporalidade, associandoa prática musical ao tempo do jogo, marcado pelaexperiência de imersão e suspensão do cotidiano. Assim, desvela uma possível reflexividade por partedos jovens no momento em que tomam a músicacomo um intervalo. Nesse tempo eles têm então apossibilidade de vivenciar novas sensações, conhe-cerem a si próprios, tornarem-se mais conscientesde sua realidade, podendo, de tal maneira, dar “umprimeiro passo para a transformação das formassociais” (p. 64), conforme entendimento emprestadode John Blacking.

    Em sua etnografia de “descrição tensa” –conforme Dawsen (p. 208), dada a presença de“ruídos” e “falas dissonantes”, Hikiji acaba porfavorecer a visibilidade dos jovens para além dosinteresses institucionais, dando-lhes voz por meiode dois vídeos, com eles produzidos durante suapesquisa. Percebe que, embora exista uma tentativa“civilizatória” mediante o oferecimento da práticamusical erudita supondo que os jovens “carentes”não têm acesso a “cultura”, há sim um prévio envol-vimento de participantes com tal prática ou mesmo

    a sua reapropriação em outros contextos. Concluique o fazer musical realmente demanda, conformeressaltado por Clifford Geertz, um “intenso aprendi-zado sentimental” (p. 234), com a necessidade demanipulação de expectativas e sentimentos.

     Aos educadores musicais ficam as evidên-cias de quão poderosa pode ser a experiênciamusical, a ponto de provocar mudanças nos corpose nas vidas de seus alunos; consistindo-se eminstrumento de reflexão e, quiçá, transformação;afetando outras instâncias da vida cotidiana. Porisso, a necessidade de uma atuação profissional

    que leve em conta os anseios dos aprendizes, aspeculiaridades dos contextos em que o ensino sefaz presente e as relações construídas entre os di-ferentes atores, ultrapassando a mera transmissãode conhecimentos.

    Recebido em 05/07/2009

     Aprovado em 02/08/2009