144

Secretações

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Isso não é bem um livro. Embora constituído em prolíferos movimentos no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, não há letra que o expresse, que o pontue para determinados fins e financiamentos. Inclassificável, talvez intolerável para determinados discursos e políticas hegemônicas, Secretações é uma resistência que ultrapassou dificuldades impossíveis de serem narradas dentro de si mesmo. Organizado por uma professora vetor de poéticas, aglutina um povo que se compõe de acadêmicos oriundos desde a graduação até o doutoramento com o aval de professores de instituições universitárias de todo o Brasil cujo pensamento defende espaços de produção acadêmica não restritos à ciência e suas variáveis lógicas. Ao afirmarmos a arte como um campo possível para criação textual tanto no âmbito da pós-graduação como da graduação, respiramos, amamos, desenhamos, capturamos imagens, escrevemos, aprendemos mil coisas, ensinamos vida, versamos, conversamos e damos a ver versos, crises, fragmentos e outros desesperos que fazem um corpo pensar.

Citation preview

  • INDEPIN INSTITUTO

    O Instituto de Desenvolvimento Educacional e Profissional In-tegrado INDEPin oferece cursos livres em diferentes reas e atua como Editora, atravs de publicaes colaborativas em for-mato impresso sob demanda e em formato digital para download gratuito. O Instituto no visa lucro com essas propostas de publi-cao, apenas busca contribuir para que produes de diferentes reas sejam disponibilizadas facilitando o acesso.

    Copyrigth @ 2013 Paola Zordan (Org.)

    Organizao: Paola Zordan

    Projeto Editorial: INDEPIN - Miriam Piber Campos

    Processo C3 - coletivo de vrias coisas - Wagner Ferraz

    Capa: Paola Zordan e Anderson Luiz de Souza

    Arte da capa: Paola Zordan e Anderson de Souza

    Layout e diagramao: Diego Mateus, Miriam Piber Campos e Wagner Ferraz

    INDEPIn Editora - Coordenao EditorialMiriam Piber Campos e Wagner Ferraz

    2013INDEPIn Editora

    www.indepin-edu.com.br

  • Paola Zordan (org.)

    secretAES1 Edio

    Porto AlegreINDEPIn

    2013

  • 2013INDEPIn Editora

    www.indepin-edu.com.br

    Comisso Editorial

    Prof. Dr. Antonio Carlos Amorim (UNICAMP)Profa. Dra. Gilcilene Dias da Costa (UFPA)

    Profa. Dra. Carla Rodrigues Gonalves (UFPel)Prof. Dr. Julio Groppa Aquino (USP)

    Prof. Dr. Marcelo de Andrade Pereira (UFSM)Prof. Dr. Wladimir Garcia (UFSC)

    Profa. Dra. Dinamara Feldens (UNIT)Profa. Dra. Ana Maria Netto Machado (UNIPLAC)

    Bibliotecrio responsvel: Ana Lgia Trindade CRB/10-1235

    S446 Secretaes. / organizao de Paola Zordan. = Porto Alegre: INDEPIn, 2013. 156 p.: il.

    ISBN 978-85-66402-01-8

    1.Literatura - textos filosficos. 2.Educao. I. Zordan, Paola.

    CDU 82-83:37

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • Autores

    Paola Zordan (Org.)Ana Carolina de Bonna Becker

    Andr Pietsch LimaAnglica MunhozCarmen JacquesFernanda Kieling

    Jamer MelloJlia Berenstein

    Julianna CoutinhoLuiz Daniel Rodrigues

    Mrcio Porcincula FerreriaMarilu Goulart

    Mayra Martins RedinNara Lucia Girotto

    Patrcia UnylPaula Trusz Arruda

    Polen SatoSimone Rodrigues

    Talita TibolaValdemar Schultz

  • Sumrio

    - Riscos de um corpo que no se educa/Polen em processoPaola Zordan ......................................................................................11

    - A ttulo de uma secreo/inominvel Valdemar Schultz ...............................................................................14

    - Tatuagem (texto)Polen Sato ..........................................................................................22

    - Oblaes ao corpo: escrituras do desejoMrcio Porcincula Ferreira ..............................................................23

    - RE[DES]CONSTRUINDO-SE (fotografia)Simone Rodrigues ..............................................................................35

    - amor em fragmentosMarilu Goulart ...................................................................................36

    - desenhosAna Carolina de Bonna Becker .........................................................56

    - O rosa das infernais Patrcia Unyl ......................................................................................59

    - insensato/mquina/experimentoJamer Mello .......................................................................................65

    - AtmosferasCarmen Jacques .................................................................................68

    - e s cri a tura /sobras e sombrasTalita Tibola .......................................................................................75

    - Histrias de observatriosMayra Martins Redin .........................................................................84

    - pus/asterisco/bordescriturasRaquel Andrade Ferreira.....................................................................89

  • - Jogo de astciaAnglica Munhoz ..............................................................................93

    - Tempo (fotografia)

    Fernanda Kieling ...............................................................................97

    - linhas num livroPaula Trusz Arruda ............................................................................98

    - Caras da LuaPaola Zordan ....................................................................................103

    - VARIAESAndr Pietsch Lima / Nara Lucia Girotto ........................................107

    - Giacomo Joyce: Declinaes Nara Lucia Girotto / Andr Pietsch Lima ........................................116

    - cicatrizes - Confeitaria Rocco (fotografia)Jlia Berenstein ................................................................................123

    - squitos misteriososLuiz Daniel Rodrigues .....................................................................124

    - vitria da tripa sobre a palavraJulianna Coutinho ............................................................................129

    - colagem/Arcano Zero/ fluxo puro/colagem

    Paola Zordan ....................................................................................132

  • / 11

    Riscos de um corpo que no se educa

    Paola Zordan

    Apesar de tanta paixo, o que se apresenta talvez seja s outro produto de uma nova escrita, j muito velha em suas frmulas, estudos e modos de expresso. Certamente no se quer amostragem de estilos definidos, ainda menos desfile de tendncias moda de. Apenas deseja experimentaes, trazendo um tanto de indeterminado para mostrar o que podemos criar em torno de um corpo, de uma linha, de uma vida. Com seus padecimentos, amores, suores, desvios, suspiros, exerccios e excrees. O que se coloca em mos reunido em papel a composio entre povos de diferentes orientaes. Os autores so oriundos de vrios campos disciplinares, arte, psicologia, teologia, pedagogia, histria, biologia e qumica. Exercem ofcios diversos, que vo da docncia ao trabalho senso e corpreo, em grupos e/ou estritamente individual. Atestam, em seu devido fato, que possvel colocar uma mquina venusiana a rodar dentro da Educao. De Vnus porque no mais se move contra ao poder para fazer guerras, como a mquina blica de Marte que Deleuze e Guattari discorrem em Mil Plats, mas coaduna com suas foras em prol de vrios prazeres possveis. Traz a novidade operando no mais duro da maquinaria estatal, ignorando aparato e arsenal para agir segundo a deusa do amor, da sensualidade e da volpia. No trabalho incansvel de quem ama e no teme perder seus prprios pedaos essa juno no mais do que enorme vontade de poesia e demanda de pesquisa. E de trabalhar, acima de tudo, na modulao de aes potentes em sala de aula, com a arte. Sem nenhuma pretenso de verdade. Secretaes um rumor ignorado, tamanha quantidade de perigos que encerra. Por no se conformar aos textos bem-

    ZORDAN

  • 12 /

    educados, s interpretaes tidas como certas e a nenhum sentido de equiparao, esse projeto faz dos alunos e docentes que a ele aderiram reverem sua prpria obscuridade. Fartos de alguns tipos de discursos, no fluxo de variados humores, afirmamos o potencial das criaes coletivas, a superao do tempo e aceitao de riscos. De letras, de imagens, de desenhos. Aqui se arriscam alunos especiais do Programa de Educao Continuada, alunas da graduao em Artes Visuais, mestrandos, mestres, doutorandos e doutores ligados ao Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao qual somos gratos pela possibilidade e pelas dificuldades de realizar este livro. Com exceo das alunas participantes da pesquisa Paixes da Diferena, bolsistas e voluntrias de Iniciao, os autores so orientandos e ex-orientandos da Linha de Pesquisa Filosofia da Diferena e Educao. Os textos surgem impregnados pelos seminrios oferecidos, prticas de pesquisa e outros contgios. Dentro de um projeto acadmico que percorre artes de todos os tipos, msica, literatura, clnica e traduo, essa produo um presente que todos festejamos. Dando viva aos corpos, cuspes, gozos e brindes!

    ZORDAN

  • / 13ZORDAN

  • 14 /

    ttulo de uma secreo

    Aos que lhe perguntarem em que consiste a escrita, Virginia Woolf responde: Quem fala de escrever? O escritor no fala disso, est preocupado com outra coisa.Deleuze, em Crtica e Clnica

    Quando se est s voltas procurando achar o tom de uma escrita, se configura antecipadamente uma preocupao pelo ttulo, uma espcie de guia ou taxonomia do pensamento. No final, se projeta nele uma imagem de um objeto que, movida por uma estranha necessidade, se quer palpvel. Contudo, em exposies de arte, sobretudo nas contemporneas, obras sem ttulo so bastante frequentes. Para os artistas, a funo do ttulo no revelar algo da obra nem guiar o olhar do pblico, pois, ao ser criado, j se tornou outra coisa. Nas produes textuais, especialmente na publicao de livros, se espera que o assunto ou a

    SChULTZ

  • / 15

    matria desenvolvida seja designado. Salvo em poesias ou aforismos, a ausncia de uma nomeao produz um inevitvel estranhamento, porque um vazio incmodo se instala. Paira no ar uma necessidade de inscrever, como propriedade e autoria, o que se pensa e se quer referendar. Se o texto no nomeado, parece que algo lhe falta, ou que a propriedade de um autor obliterada. Seja antes, durante ou aps a escrita, tal qual o pintor diante de uma tela branca ou o compositor diante de seu instrumento, o objeto de criao dever se configurar com todas as vsceras e dilaceramentos possveis. Na mistura de todas as substncias, o ttulo surge como incessante condio do estopo de uma escrita.

    Sendo o ttulo uma criao indelvel e um pretensioso empreendimento, lanam-se vrios atravessamentos que o constituem. Alguns, persuadidos de uma viso tecnicista, esperam que seja original e indito sem, contudo, comprometer a profundidade do que se expe. Defensores do racionalismo verificam se o ttulo expressa a matria de modo coerente e objetivo com um saber institudo. Alguns passadistas observam se a tradio da histria do pensamento humano est bem resguardada segundo os

    SChULTZ

  • 16 /

    liames da filosofia. Outros, preocupados com as distines acadmicas, tm preferncia por formas clssicas, ainda que evitem formulaes hermticas. h tambm os comunicadores, para os quais indiferente se o que se escreve sagrado ou profano, coloquial ou cientfico, pois esto preocupados com a audincia de suas informaes. Os revolucionrios so contundentes em sua exigncia por algo que desperte a conscincia do mundo. Os ressentidos evitam tanto a formulao tcnica quanto a provocao acadmica. Os mais exticos ficam espreita de uma revelao secreta ou esto inclinados a cultuar mistrios. J os poetas, no fluxo de seus pensamentos e afectos, compem com o ritmo das palavras os sons que fazem naufragar a presuno do seu ser. Os amantes da arte so criadores que desejam disparar suas produes e ativar humores.

    Nem ordenaes nem classificaes. Em vez de nominaes, secrees. Qualquer tentativa de objetivao permanecer na condio do improviso, do provisrio, da experimentao, mais prximos do acaso, como num lance de dados. preciso experimentar, exprimir e expressar incansavelmente o que se pensa e o que se sabe sobre um plano de composio a fim de encontrar pontos

    SChULTZ

  • / 17

    de conexo e estabelecer zonas de intensidade sem que se tenha a pretenso de designar algo. Longe de ter que revelar algo intrnseco do contedo, sem jamais esgotar seu sentido, uma nomeao pode ter a grata possibilidade de ser uma disjuno, de revelar seu fora, de instaurar uma multiplicidade. Em razo de uma secreo se cria um ttulo. Cria-se procedimentos para testar a linguagem e lev-la a forar o seu limite. Chega-se a novas figuras rompendo-se com qualquer tentativa de imitao. Escrever uma forma de expor-se a sobressaltos e golpes no plano do pensamento. Traos se produzem infinitamente sem que se possa nome-los. O que se pensa e se escreve se realiza como matria de sensao. No mais a sensao que se realiza no material, antes o material que entra na sensao. Um remete ao outro os fluxos de seu devir.

    SChULTZ

  • 18 /

    Inominvel

    quando o corao se me amargou

    e as entranhas se me comoveram,

    eu estava embrutecido e ignorante;

    era como um irracional tua presena. (salmo 73.21)

    tentava adaptar o mundo a mim,

    muitas coisas me traziam perturbaes digestivas,

    meus desejos se tornaram viscerais,

    mas cada parte do meu corpo carregava um sentimento diferente,

    alguns para me excitar,

    outros para secretar,

    parte de mim era consciente,

    outra parte, puro instinto,

    meu desejo era viver o prazer,

    ainda que andando em deriva,

    espreita das surpresas,

    de partes desconexas,

    SChULTZ

  • / 19

    surgidas ao acaso,

    como num anagrama,

    o movimento que se faz vem a ser o ritmo que se vive,

    na alma se produz efeitos de prazer e desprazer,

    opondo ao que til,

    afirma a forma de uma matria,

    dispara pulsaes,

    viver para alm da crtica,

    contra o bom senso,

    evitando julgar,

    sem poder dizer se bom, ou mau.

    um esprito afligido sob a tutela da moral

    precisa ter pressa para traar uma linha de fuga,

    j que, de todo, do jugo no se consegue livrar,

    desnecessrio se faz pedir desculpas e dar explicaes,

    nomear e classificar,

    promover destruies ou idealizaes,

    desejo de vaguear na poesia,

    seguir o ritmo da respirao e os fluxos vitais,

    SChULTZ

  • 20 /

    em vez de significaes, secrees,

    tentativas de objetivao

    permanecem na condio do improviso e do provisrio,

    terrenos estranhos se atravessa com pressa,

    antes de neles fazer morada,

    superfcies so estendidos no horizonte,

    nas fendas se exprime e se expressa um corpo novo,

    ertico em vez de pornogrfico,

    nas nuanas se ama,

    mostrando pontos de contgio,

    marcando zonas de intensidade,

    vazias de significado,

    carregadas de sentido,

    cobertas de sensaes,

    viver o prazer de experimentar disjunes,

    tanger o fora,

    instaurar uma multiplicidade,

    em razo de uma secreo se expressa a matria,

    se transpe o limite de uma lngua,

    SChULTZ

  • / 21

    se ri da prpria irracionalidade,

    se expe sobressaltos,

    as marcas no corpo se produzem infinitamente,

    no h o que se possa controlar,

    o que se pensa se realiza como matria de sensao,

    um remete ao outro os fluxos de seu devir.

    escrevemos,

    desenhamos, pintamos, rabiscamos

    e, incansavelmente, proliferamos nossas criaes,

    nossa professora,

    escritora-artista,

    que passeia pelas paisagens que se passam em nosso esprito,

    sonhou com um livro que se apresenta em forma de corpo.

    SChULTZ

  • 22 /

    TATUAGEM

    IMPULSO DE ARTE PREPARATIVOS PARA UM RITUAL MONTAGEM DE MESA MQUINA AFINADA MAQUINAFINADA MATERIAIS DE PROTEO OBRIGATRIOS PROTEOFRGIL

    PARA UM CORPORISCO CONSTANTE O SOM O ZUNIDOGEMIDOMAQUINRIO MSICA QUE ARREPIA

    PELEPELO SEM ESCAPATRIA ELAS PENETRAM A PELE VAI-E-VEM ENTRA-E-SAI TO RPIDO QUE OS OLhOS PERDEM O

    MOVIMENTO E APENAS V O RASTRO DEIXADO TINTASANGUE PELEMORTA PELETINTA PELEARRANhADA PELEAVERMELhADA PELEMARCADA UM COMEO LENTO QUE AOS POUCOS GANhA

    RITMO UM-DOIS-TRS 1-2-3 Z-ZZ-ZZZ E ENTO TUDO ENTRA EM SINTONIAFINA INCLUSIVE A DORAGUDA DORAGONIZANTE

    DORGOSTOSA DORVCIO NUNCA NUNQUINHA DE SO NUNCA NEVER AGAIN QUE FAO ISSO NOVAMENTE COMENTRIO

    FREQENTE NA METADE DE CERTOS RITUAIS OS MOMENTOS DE SOFRIMENTO DEMORAM MAIS PARA PASSAR MINUTOhORA QUE AT O PAPEL MAChUCA MAS COMO LEMBRANAVINGANA ELE

    TAMBM PENETRADO PAPELCOLORIDO PAPELMANChADO PAPELVERMELhO NECESSRIO MUITOS DELES PARA

    SECAR AS LGRIMAS DA PELE SOFRIMENTOCRUELDADE SOFRIMENTOSATISFAO SOFRIMENTOMASOQUISTA

    RITUAL DE AFIRMAONEGAO NEGAOAFIRMAO PASSAGEMEXPERINCIA CICATRIZ DA ALMA TRAZIDA PARA A SUPERFCIE DORANESTESIA VIRTUAL EDUCAO DA DOR

    EM UM COMEO SEM FIM AUTOCONTROLE DESCONTROLADO AUTOCONhECIMENTO DESCONhECIDO A ARTE MOTIVA A

    AO ARTEMOTIVAO AO FIM DE TUDO O COMEO A ARTE RENOVA A PELE E O RITUAL SE REPETE TATUAGEM NOVA

    PELERENASCIDA PELEARTE

    SATO

  • / 23

    Oblaes ao corpo: escrituras do desejo

    Para Al Berto, sensual.

    Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; rseo, azul ou violceo, o quarto inviolvel; o quarto individual, um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angstia, se colhe, de um spero caule, na palma da mo, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra esto primeiro os objetos do corpo. (Raduan Nassar)

    Nota do autor: Como um incansvel ladro de palavras, alguns fragmentos foram roubados: 1 palerma, o amor!, do livro O homem ou tonto ou mulher, de Gonalo M. Tavares, o amor consiste em duas pessoas poderem ser tolas juntas, do livro Monsieur Teste, de Paul Valry, ningum tem vontade de falar do amor, se no for para algum, do livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, ... no uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoo, do livro A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil, de Gonalo M. Tavares, e rasgo com minhas possantes mos meu peito em pedaos, do livro Os Cantos de Maldoror: poesias: cartas, de Lautramont.

    PORCIUNCULA

  • 24 /

    1

    Noutro dia, por exemplo, sa a caminhar pela noite.

    Para seduzir.

    Acho que um dom que eu tenho desde pequeno.

    Sou muito hbil em matria de seduo.

    Disso sim eu entendo. No tenho pudor algum.

    Acho at que esse o meu destino: caminhar pela noite afora roubando e seduzindo almas e corpos.

    Me habituei a isso.

    Adoro a ferocidade e a respirao da noite.

    quando chego ao extremo e ao esplendor de mim mesmo.

    Ao mais silencioso e eterno de mim mesmo.

    No fundo de mim.

    Durante o dia fico muito paciente e desconhecido de mim.

    A respirao do dia doda.

    O dia est cheio de horrores.

    O dia me devora.

    PORCIUNCULA

  • / 25

    noite, entorpecido, seduzo o que seja: pedra, rvore, sereia, demnio, drago...

    O que atravessa no meu caminho.

    E assim ando procura.

    Gosto de seduzir nica e exclusivamente para sossegar

    meus sentidos.

    Minha paixo.

    De madrugada volto pra casa com os olhos em chamas.

    Vou descansar o corao.

    Para trs da noite, no quero mais lembrar dos rostos que

    passaram por mim.

    Nas mos e no pensamento, s o cheiro e a lembrana dos

    corpos que seduzi.

    A minha vida inteira sempre foi isso: seduzir corpos na

    eterna noite do mundo.

    a minha sina.

    Que tremula no mais fundo da noite em mim.

    PORCIUNCULA

  • 26 /

    2

    Dizem que o amor faz pensar.

    Li isso num livro.

    Eu diria que sem o amor mais possvel de se pensar.

    Ningum consegue ser inteligente quando est apaixonado: h sempre uma fora a nos atrapalhar o pensamento.

    Ningum consegue medir as conseqncias de um amor.

    1 palerma, o amor!

    Se no estiver com o corao intacto.

    E depois h mais coisinhas.

    Ficamos paralisados.

    Quase impossibilitados de qualquer movimento.

    O corpo di demais. inevitvel.

    (Como tolo um homem apaixonado).

    Alis, h quem pense que o amor consiste em duas pessoas poderem ser tolas juntas.

    Qumica complicada essa do amor.

    Delrio puro.

    PORCIUNCULA

  • / 27

    No entanto, um paradoxo: ningum tem vontade de falar do amor, se no for para algum. Sempre h na escrita sobre o amor, o desejo e a sensualidade, uma pessoa normalmente um canalha a quem nos dirigimos.

    Da que o amor pode ser tambm, a grande inspirao de quem escreve.

    E h sempre um doido a estar inspirado.

    J a paquera no produz nada.

    Nenhum desejo de escritura.

    Seria pedir muito.

    De resto, se quer escrever,

    fuja do amor.

    PORCIUNCULA

  • 28 /

    3

    isso tende. isso tende e pressiona. isso tende e pressiona e corcoveia. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo e quer projetar-se. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo e quer projetar-se realizar-se. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo e quer projetar-se realizar-se exprimir-se. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo e quer projetar-se realizar-se exprimir-se expressar-se. isso tende e pressiona e corcoveia e quer explodir e sedento e quer espalhar-se e est em tenso com teso e quer sair de si mesmo e quer projetar-se realizar-se exprimir-se expressar-se arranjar-se. isso escorre. isso escorre e flui. isso escorre e flui e explode. isso se torna escritura. a escritura torna-se isso. e isso o desejo.

    PORCIUNCULA

  • / 29

    4

    por isso que eu gosto disso.

    Mas o nome disso no isso.

    O nome da boca no a boca.

    Os nomes dos lbios no so os lbios.

    Os lbios podem ser: carnudos, em formato de corao,

    finos, grossos, inferior, superior.

    Os nomes das coisas no so as coisas.

    As coisas so as coisas.

    As coisas so.

    Pode ser estranho.

    estranho.

    Mas eu gosto disso.

    Justamente quando no preciso explicar

    o inexplicvel que isso que eu gosto.

    Gosto de morder teus lbios e sentir o gosto dos teus sonhos.

    Gosto e pronto.

    PORCIUNCULA

  • 30 /

    5

    Noutro dia.

    Noutro dia, por exemplo.

    Noutro dia, por exemplo, fiquei observando.

    Noutro dia, por exemplo, fiquei observando aqui do lado de dentro.

    Noutro dia, por exemplo, fiquei observando aqui do lado de dentro, as pessoas.

    Noutro dia, por exemplo, fiquei observando aqui do lado de dentro, as pessoas

    que andavam.

    Noutro dia, por exemplo, fiquei observando aqui do lado de dentro, as pessoas

    que andavam pra l e pra c.

    L do lado de fora.

    Nenhuma delas lia ou escrevia poesia.

    PORCIUNCULA

  • / 31

    6

    Sempre gostei de inventar coisas.

    Inventar uma tarefa manual do corpo.

    Meu corpo tem muita sede de inventar. Necessita de surpresas.

    Mais do que qualquer outra coisa.

    Ainda ontem inventei um corao de pedra.

    S para o meu capricho. Constru um.

    Por minha conta e risco.

    Mas o amor mesmo um ingrato, no se agradou da idia.

    Gosta mesmo de ficar me infernizando o peito de carne.

    to difcil dominar o amor. O amor mesmo um sacana.

    Um corao de pedra uma grande inveno.

    O amor no a percebeu assim, pacincia.

    E de que me importa o amor? E pra que serve um corao?

    H os que vivem to s dessas bobagens do corao.

    Impressionante o esforo que se faz para ficar apaixonado.

    E depois padecer do mal do amor.

    Espero que esse no seja o nosso caso.

    Porque do amor sei quase nada.

    Sou amador demais para o amor.

    PORCIUNCULA

  • 32 /

    Amor pra mim s um acaso. ... no uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoo.

    Um homem belo demais s vezes aperta meu corao (por isso um corao de pedra). Me mete medo. Sou sensvel demais a selvagem perversidade da beleza. Ainda ontem, estavam perto de mim um dois trs homens muito belos que doeu-me o peito. Toquei neles obscenamente. Ningum resistiria no tocar. Mas eles tinham partes muito feias. Que por vezes eram pornogrficas demais. Os dentes quase todos cariados. Parece que os homens feios so mais educados que os bonitos. Um homem feio, mesmo que sem pudor em algumas partes, elegantemente sensvel e sensivelmente inteligente (mais sensvel e inteligente do que imaginamos). Os feios so mais bonzinhos. S que nunca te tocam quando voc mais quer ser tocado. Os bonitos so cpias ordinrias. Por vezes s te assustam. Homem mesmo tem que ter modos mesa (ao comer peixe com espinhas, por exemplo). Principalmente com algumas extremidades do corpo. S no suporto homem engravatado e (ainda pior) demasiadamente educado. tudo to entedioso. Da minha fragilidade no amor. Se pensou ser educadinho ou delicado demais, cagou tudo. Se pensou ser grosseiro ou esfarrapado, nem pensar. No entanto, existem outros jeitinhos. 7 por exemplo um nmero fundamental na minha vida. Adoro ler uma coisa uma vez, depois outra, depois mais outra. Com um poema assim. Sempre uma vez diferente da outra. Sete vezes o essencial. Acredito em tudo que aprendi at os sete anos. At em Deus. Tudo o que vem depois dos sete mentira. Aos sete anos entrei para a escola. Disseram que inventar um corao de pedra era besteira. Que era algo impossvel. Sempre houve muita besteira nas escolas. Tenho cem anos. Tudo continua igual. E por isso que eu quando crescer no vou amar no. Preferiria mesmo ter um corao de pedra. Ser desumano. R.B que sofreu todos os desertos do amor, poderia ter baixado a cabea e desacreditado na vida. Ou acreditado que estava fora de moda. Ou morto. Mas no. Certamente descobriu certas coisas que eu ainda no descobri. seu nico e simples prazer. O amor. Pra mim, talvez o melhor seja outra coisa.

    com um corao de pedra que melhor me sinto!

    PORCIUNCULA

  • / 33

    7

    j no necessito mais de ti

    tenho a companhia noturna dos demnios

    que moram beira da minha boca

    e cospem flores no meu corpo

    ( o diabo agora que me move e at me manuseia)

    repugnante nosso amor se perdendo intil

    aborrece-me e nauseia

    no, no preciso mais de ti

    mas se encaro teus olhos, meu corpo treme

    desejo-te ainda

    no, no preciso mais desse objeto repugnante e imundo

    que se tornou o nosso amor

    no, no serei mais visto por ti

    deixo de estar disponvel sempre que tu queiras

    rasgo com minhas possantes mos meu peito em pedaos

    mordo sofregamente com meus dentes de vampiro a carne

    macia e cheia de seiva do corao

    no, no cultivo mais saudade por ti

    j no posso mais te amar

    eu te detesto

    no h mais nada a fazer

    no, no h mais nada

    PORCIUNCULA

  • 34 /

    7

    lngua louca gaga que loucura dizer isso dessa

    loucura da lngua dela dado que isso essa loucura

    do desejo da lngua dela de ver ouvir sentir outra

    lngua dela disso dessa loucura de tudo isso dessa

    loucura dela de deslizar gaguejar entre lbios o

    qucomo dizer como escrever vendo tudo isso

    sentindo levando ato limite do limite do desejo

    dela que deseja arrastar a lngua dela a delirar a

    lngua que deseja tudo isso dela toda essa loucura

    dela disso de como dizer como escrever toda

    essa loucura dela disso de tudo isso do desejo que

    deseja a lngua dela como

    PORCIUNCULA

  • / 35

    RE[DES]CONSTRUINDO-SE

    RODRIGUES

  • 36 /

    amor em fragmentos

    [a perda do rosto]

    Como termina um amor? O qu termina? Em suma ningum exceto os outros nunca sabe disso... Eu mesmo no posso construir at o fim minha histria de amor... O final dessa histria assim como minha morte pertence aos outros.

    Ao final do amor, certa paixo s avessas: exagerada sensibilidade ao que no outro (que est prestes ao desamor) no me convm, desagrada, entristece. A perda do rosto (apaixonado) maior que a perda do outro: desmantelamento de crenas e convivncia com o vazio: contato com o vazio porque todos so iguais: nas partes vazias do vazio. O nada que compe o corpo. Sem rosto: sem olhar. Impossibilidade de ser afetado: menor capacidade para alegrar-se. Amor cego nos encontros e cego nas despedidas. Por amor ao rosto, o amor prolonga seu tempo, cria outro (tempo) mais espichado. Tempo extensivo: meses, anos, dcadas. O amor cria a conjugalidade, casa com ela, dorme com ela, acorda com ela, comemora bodas e convida amigos para festejar. Tenta, sinceramente, fazer festa e no compreende sua tristeza. A fartura rodeia-o, nada lhe falta (parece). O corpo desejante, no entanto, pede mais. O corpo desejante do amor. Amor que no tem somente rosto, que tem tambm um corpo que lhe d sinais do menos.

    GOULART

  • / 37

    [delicadeza]

    Mesmo provocado a isso: repartir o amor, distribu-lo por merecimentos e dedicaes. Finge no entendimento. Faz: distribui beijos, olhares, sorrisos. Seduz. Disfara. Esquece. Sabe que est num jogo de vida e morte, mesmo que muito cedo, e que no vai morrer de verdade agora. Assim, cruza seus dias inventando, disfarando e sempre querendo o que lhe parece mais til. Certa negligncia com o aprendido (nada educado que fica) faz com que se afaste das polaridades. Cria sua prpria distribuio em ato.

    [botes (cuidado)]

    Ao querer preservar o outro e assim, o seu prprio amor, X cuida para que ele no se afaste muito daquilo que suportaria de diferente e tenta mant-lo, esteticamente, dentro dos padres suportveis e um tanto distante das fronteiras do desamor.

    Ao reparar-lhe o boto cado, oferece-lhe sua coleo. Y, ao perceber isso, mantm duas posies um pouco em suspenso: atento ao

    GOULART

  • 38 /

    convite, sem muito entusiasmo guarda para si a curiosidade e imagina botes coloridos de vrios formatos, apesar de achar que X no usaria muitos botes coloridos. Diz que sim. E tambm resiste um pouco (sem nfase alguma), para poder manter certo descuido e continuar a ser o que e, sendo assim, ao no se subjugar ao total desejo de X, tambm cuidar do amor. Desses cuidados em trs tons de si, do outro, da relao jamais se sabero os limites do suficiente para cada um.

    [encantamento]

    O enamorado, ao conseguir expressar aquilo que o encanta, produz no ser amado, ou no candidato ao amor, certa potncia que irradia e dura um tempo indeterminado, horas, anos, dcadas. Diz ele: me encanta o jeito como olhas e te movimentas. Fala de uma exterioridade, pois ainda no conhece interiormente o outro. Assim lhe d um presente que ele mesmo. Aquilo que ele no sabe de si. E a paixo comea criando sulcos neste exterior. Ou at mesmo: uma interioridade prpria. Na paixo, desde sua origem, a ocupao primeira sempre ser consigo.

    GOULART

  • / 39

    [detalhe]

    Tanto o apaixonado quanto o sedutor (que nem sempre coincidem) possuem uma viso microscpica para os pequenos detalhes do outro: um tom diferente, uma pequena desateno mais do que (uma) ateno. A pronncia de uma palavra, um pequeno sinal adquirido: Um contraste com qualquer outra coisa. Um murmrio atrs da orelha: Ai! doeu? ainda di? ...a voz mais rouca... as lembranas acompanham at o fim um latin lover... que hoje morre de tdio.

    O apaixonado percebe esses detalhes por ser todo olhos e ouvidos: o corpo todo voltado ao seu amor. O sedutor aprendeu e apreendeu a tcnica da seduo e isto faz parte da sua estratgia de aproximao: a dana na qual um se deixa prazerosamente e perigosamente levar pelo outro. E o detalhe a partcula mnima de toda uma mquina posta em ao.

    GOULART

  • 40 /

    [gesto]

    Quem ama acompanha com ternura os gestos do amado. Decora a seqncia de movimentos e deleita-se em observ-los em silncio. Qualquer interrupo, nesse momento, quebra o ritual silencioso e quase incompreensvel de que feito a maior parte disso que se ousa chamar amor.

    No amor, alguns signos assumem a maior relevncia: os escolhidos pelo par amoroso. Qualquer mudana pode causar estranhamento. A flexibilidade ao estranho d a esse amor o quantum de mundo que ele necessita para viver: o corpo do amor intensivo. Se o esforo tem fora dupla de afastamento do estranho, vive-se um amor morto, infeliz, normatizado: o rosto srio e carrancudo do amor.

    Composto geralmente por vrios desses movimentos, o amor tem uma estratgia de procura do estranho: o olhar.

    Os olhos so o espelho da alma.

    Ao procurar os olhos do amado, o apaixonado quer mesmo ver a alma do outro e assim saber o quanto de si continua l (espelho). Qualquer desvio no olhar, piscada mais rpida

    de olhos, ou mesmo certa fixidez ocular j causam certo alerta. Algo acontece e ainda pelo olhar, antes que pelas palavras, que se d a tentativa de descobri-lo.

    GOULART

  • / 41

    [espera]

    A agonia da espera do outro que no chega nas longas horas da madrugada: d-se menos pela ausncia e mais pela colocao do eu, no no presente imediato, mas num futuro que est por vir: a chegada. Mesmo tentando ocupar-se e pensar noutras coisas, a pr-ocupao domina, imagina, fantasia, cria cenas, dilogos, solilquios... Pensamento inquieto. Certo dia cai-lhe nas mos um livro: No apresse o rio, ele corre sozinho. Dizia o bvio: s se vive no presente. O amor ao livro, que trouxe a realidade, o presente necessrio ao viver, cura a agonia do amor ao outro que comea a ser desamado, sensivelmente.

    GOULART

  • 42 /

    [perdas]

    Afastar-se de um amor por querer no parece coisa do apaixonado. Ainda mais quando h correspondncia. Exceto se h um querer maior, pura necessidade, fora maior que, desprezada, pode ser fatal. Afastar-se de um amor afirmar o prprio amor como sendo completo, suplementar. Nada lhe falta, nem a presena. Aceitar o risco, muito possvel, de que acabe, a sua sade, a beleza e a possibilidade do amor: antecipadamente aceitar a sua morte e arriscar que ela no acontea.

    [segredinho sujo]

    Nunca se sabe o que fazer com o amor. Ao misturar amor e sexualidade (e quem disse que so separados?) e no acreditando na hiptese repressiva (onde o falar sobre j faz parte do discurso e no se caracteriza como represso, ao contrrio), ocorre: tentativa v de combate ao segredinho sujo: conscientemente fazer deslizar o amor no fluxo corriqueiro das lnguas e, ao fazer isto, produzir exatamente aquilo que afasta o amor de sua liberdade.

    GOULART

  • / 43

    [charme]

    Talvez seja a parte mais sutil da seduo, o charme. Aquilo pelo qual a seduo ganha corpo, se materializa. Pelo qual pode ser vista, admirada, idealizada. Por isso mesmo nunca h concordncia: quem ama v coisas no seu amor que ningum v, e fica-se sem saber se isso coisa inventada pelo olhar amoroso ou se algo prprio daquele que amado. Para saber isso seria preciso uma conveno de olhares. Geralmente no se vai mais longe: tudo o que o apaixonado no quer so outros olhares para o seu amor.

    [masoquismo]

    O prazer de estar submetido, de no controlar. A liberdade de se tornar escravo. O indomvel do corpo forja sua expresso no deixar-se domar. humilhaes, chicotadas, dor e sofrimentos impensveis. Corpo surrado, organismo desmanchado.

    Mas o que isto? Que passa? Talvez o desejado seja menos a dor e mais algo prximo ao milagre de deixar de ser o que se . Por um movimento singular entregar-se , por vezes, perigosa, excntrica, criadora, experincia de um novo corpo, que, mesmo com aparncia frgil, acorrentado, pisado, machucado, traz em si a coragem insubmissa de chegar perto daquilo que a maioria tenta em vo desviar: a dor e a morte. O trgico.

    GOULART

  • 44 /

    [encontro]

    Algo que no aconteceu na histria, mas que pode ser inventado, imaginado. Um jeito de estar no mundo. De amar. Um olhar ao que constitui o amor. Ao que o atravessa (foras animais, csmicas, inconscientes) e ao como compomos com isto. O modo como aprendemos a amar e o valor que damos ao amor. Seus estrangulamentos. Sufocaes. Os espaos abertos. O deserto. A solido. As liberdades ou sadas. Os vazios. Os encontros. As fugas...

    As foras dos devires afetando o corpo do amor que somente quer ampliada a sua capacidade de afetar e ser afetado. Que quer

    alegria. Visitar paisagens. Uma viagem ao que til, bom e necessrio: o corpo do amor que se amplia como fora que o tempo todo foge de ser capturada pela rostidade amorosa que se segue como um mapa. Mapa que no leva a lugar nenhum, impossvel de ser percorrido sem que o corpo amoroso tropece, desvie, se perca.

    Nos rastros do (corpo) amor, muitas vezes, destruio. Morte. Mas a que a vida se dobra. Ante o perigo da quase extino. Desvia sobre si. Do mesmo. Do igual. Da a possibilidade de vida. De sade: do erro que no o mal. Amor errante que viaja de carona no desejo, que fora o amor ao esquecimento para dar-lhe novos poderes de afetar e ser afetado, desejo que por vezes vai embora e no avisa deixando o amor entregue ao rosto.

    GOULART

  • / 45

    [pstuma]

    Se eu morresse agora, talvez, estranhamente do meu amor te ocupasses.

    E te porias a compreender o que teimas em no escutar, ansioso por algum que te acompanhe passo a passo nessa aventura

    combinada de pequenas coisas.

    Eu, em liberdade pura, existiria ainda e brincaria de fugir eternamente.

    [delicadeza]

    A delicadeza quando toma um homem, por exemplo, camisa branca-mais aberta do que deveria-corrente no pescoo...Percebe-se de imediato: ali no h nada casual. Exatamente esse saber confere uma certa sensualidade ao fato. Se parece algo proposital, deve ser e provm justamente da sua natureza de artifcio. A sensualidade, da hora tambm, no se confunde com a espontaneidade, da hora somente. Assim um corpo masculino acolhe em si um tanto de feminino: a delicadeza.

    GOULART

  • 46 /

    [intempestivo]

    s vezes um deserto se arrasta vida afora e parece que o tempo no existe para faz-lo acabar. E de repente tudo o que no aconteceu irrompe de uma s vez. Pega-nos despreparados para viver: nunca se est pronto. Nem forte o suficiente para que no seja um risco suportar a falta de sentido que se gruda nas coisas. E mesmo para ter um corpo que no sucumba com tudo o que forte demais.

    E as suavidades... que acontecem a qualquer tempo! Como as desejo!

    Desejos de menina que carrego em mim. Que me embala.

    E que me faz sentir que posso amar a vida e tudo o que vive, porque assim me sinto amada. Por ningum em especial. Especialmente pela vida. Quando ela cessa de me fazer morrer. Quando algo de alguma completude roa a alma e se sente: poderia morrer a qualquer tempo, agora.

    GOULART

  • / 47

    [o ltimo fim]

    Um dia, acontece. Ao olhar o outro, se tomado de um excesso de realidade

    absurda, incomum, e que bem poderia ser chamada lucidez. Uma seqncia de olhares, uma inclinao de cabea (acomodao visual), pequenos sinais (os de sempre) desenrolam-se passo a passo. Absolutamente nada mudou. O outro segue o seu ritual: sozinho, desavisado. hora de ir embora. E no olhar para trs. Pode-se crer que o amor termina quando alguma coisa muda num ou noutro. Curiosa experincia de v-lo fulminado com um raio do mesmo.

    [cartas]

    Ao escrever uma carta para seu amor, o apaixonado, se esta carta no for enviada imediatamente, provavelmente desistir do intento. Motivo: o sentimento amoroso recoberto de uma atualidade que permanentemente lhe acrescenta algo. O que foi escrito aparecer como menos e no ser digno de ser enviado. O apaixonado luta constantemente com a linguagem, onde no cabe o seu amor. Ao mesmo tempo, delicia-se em reler as cartas recebidas e parece-lhe que ali est: tudo.

    GOULART

  • 48 /

    [mensagens]

    Mais possvel que o apaixonado deste incio de sculo 21 afogue o seu amor em e-mails e torpedos: tentativa de completar aquilo que nunca poder ser dito.

    [desejo]

    S o desejo inquieto, que no passa,

    Faz o encanto da coisa desejada

    E terminamos desdenhando a caa

    Pela doida aventura da caada.

    Veloz e a galope sobre o desejo, por vezes o amor v-se s, desprovido de corpo. No se confundem os dois (amor e desejo). H um desejo prprio que s do amor: sua secreta

    vontade de continuar existindo. O desejo, por sua vez, no lhe pede licenas para chegar, tampouco se despede ao ir embora. O amor fica por si vagando e vazio, indefinido: da aquela vagueza de sentimentos que nos pega de repente e coloca uma dvida persistente qual se tenta no dar valor (como poderia haver vazios no amor?). Depois se v (quando e se ele volta) que era somente uma rpida retirada do desejo, este sim, indomvel, imoral, inquieto.

    GOULART

  • / 49

    [irms]

    So todas aquelas que poderamos ter sido e talvez isso explique esse amor to terno, quando h, ou esse dio de no exclusividade, que insiste. O poderamos ter sido apenas uma brincadeira boba: no poderamos ter sido nada diferente do que somos. Melhor, somos do jeito que deveramos ser. Ainda: no existe deveramos, ou deveria (futuro do pretrito: onde fica isso?). Ter irms compor uma irmandade, sem referncia a qualquer sentido religioso. A energia do feminino que circula nessa irmandade que inclui a me, mas no a coloca num lugar central, avessa

    (vai a contrapelo) s organizaes formais familiares, onde o falo (nos dois sentidos) a fora dominante. A diviso do humor sesso de diviso do humor era o que acontecia sem ter sido combinado nada, nunca. Um absoluto se formava ali e depois se desmanchava, at...

    Curioso era o chamamento: preta que se distribua em trs tonalidades diferentes e cada uma sabia no sem confuso, por alguma distrao, quando era a sua vez.

    GOULART

  • 50 /

    [etiqueta]

    Aprende-se a amar como se aprende bons modos mesa: voc deve..., esquerda..., quando um homem..., o copo ao lado do..., no segundo encontro..., e os talheres..., falar do amor antigo..., servir-se pouco..., no falar muito..., ao repetir..., de uma mulher.... Assim poder dar casamento (o fim do banquete). Impressionante o esforo que se faz para ser infeliz.

    [tringulo]

    Parece que o tringulo foi a figura escolhida para encerrar e delimitar os processos

    afetivos, sejam eles sexuais ou amorosos. Edipianamente, desde cedo, a castrao: do mundo. Amorosamente (sem oposio amorosidade do loq), as relaes em corredor (eu x tu) esforam-se para manterem-se assim e o tringulo o perigo iminente (o seu fora) e tudo o que se cria apenas uma aresta. Como o amor no se contenta, cria-se outra figura: o quadriltero. E s para comear.

    GOULART

  • / 51

    [declarao]

    A declarao de amor, hbito lingstico (repleto de palavras doces e muitas palavras estranhas, inventadas), acaba sendo hbito do desenrolar do amor na sua cotidianidade. Por vezes transbordamento silencioso, mas o apaixonado suporta pouco esse tempo espichado sem sentido (cola o sentido nas palavras e no desgruda e nem descr). Quer ouvir aquele tom sussurrado e no abre mo disso. Esperto.

    [persistncia]

    (Teve uma pequena experincia da no universalidade do amor, lampejo

    instantneo). Resiste: comprarei um gatinho.

    [onde?]

    No fim do juzo

    comea o amor:

    fati.

    Fato.

    GOULART

  • 52 /

    [ao acaso]

    No amor, o que feminino acolhe, recebe: continente.

    Quase nada d. Feminino que foge de gnero, dualidades, papis.

    Que de um, de outro

    ...da vida que vai passando...

    [presena]

    A maneira sutil com que o amor se aproxima e cresce pela presena do amado... aos poucos. Isto comea devagarzinho... na

    ausncia inquieta, no deleite das imagens que marcam o corpo e retornam sem cessar. Na busca da quietude para se fazer acompanhar pelas imagens e rever as marcas: assim que o apaixonado compreende o que se passa com seu corpo (a sua revoluo): o mesmo encantamento com um sabor (de solido) nunca sentido. A novidade amorosa in corpore.

    GOULART

  • / 53

    [lembrana]

    Quem ama faz uma marcao: sim, (o outro) pensa em mim agora, pois estou tambm a pens-lo. Pensamo-nos coincidentemente juntos, por muitas vezes. E isso no uma lembrana, apenas, mas presena constante do prprio amor que, por vezes, extravasa o corpo e desponta na mente: poro mnima de existncia do outro que carrego em mim.

    [vinho]

    A existncia se afirma quando assume sem melancolia a sua morte que certa. Ningum foi enganado. Escolhemos nossa natureza ao persistir nela. Por isso se nasce. Se nasce danando sem saber bem de onde. Se nasce tonto. A primeira bebida, j se v. No tanto o leite quanto o vinho. Nasce-se sempre com Dioniso. Deus que nos acompanha e abre as portas. Pernas. Entranhas. Onde comea a vida.

    GOULART

  • 54 /

    [flamboyant]

    A idia da morte parece ser ruim. J a prpria (morte) no boa nem m. Reserva-se o direito de apenas ser. Pensando apenas na idia da morte, da minha morte, penso-a (ah! como eu gostaria) lentamente: me decompor sob a sombra de flamboyants. E que minha morte alimente a beleza. Mas isso s vale para a morte enquanto idia. Depois no h mais querer.

    [suporte]

    Nada prova contra o amor que o objeto amado nunca tenha existido.

    As pessoas que amo, seja por ter aprendido a am-las, ou pelo amor ter se imposto entre ns, carrego-as comigo pela vida. Cada encontro desses me ensina a viver. E elas, vivas ou no, ainda existem porque o amor no precisa mais do que um corpo para continuar existindo. Vivo amo morro diariamente e meu corpo o grande suporte de vida: ladro de tudo o que pulsa...Quando eu morrer um mundo tambm morrer.

    GOULART

  • / 55

    [o amante]

    Saber que se ama no faz necessariamente parte do amar (ou do amor). Ele (o amor) cresce ou morre a seu tempo, deixa ou no vestgios de existncia, pode ser eterno ou fugaz. A dvida no aparece a quem no faz perguntas: por vezes elas repousam no fundo da alma escondida embaixo de uma intuio que diz: esquece. A certeza...pode vir numa msica.

    [dor]

    A dor (no o desespero) s faz aumentar o amor, ou pelo menos, o deixa intocvel, j que: a dor nunca de amar, mas de estar s.

    [bem me quer]

    mal me quer. bem me quer. mal me quer. bem me quer. mal me quer. bem me quer. mal me quer. bem me quer. mal me quer. bem.

    que menina no conhece a trapaa das florezinhas amarelas de ptalas brancas?

    GOULART

  • 56 / BECKER

  • / 57BECKER

  • 58 / BECKER

  • / 59

    O Rosa das Infernais

    1. Manifesto

    Clausura em espetculo. Prticas do mal in performance. Crime perfeito no existe. Matar deve ser bom. Mas tenha cuidado! Se condenarem tua alegria selvagem, no enfraquea a polifonia dissonante da vida. Uive como um co. Esquea do bom senso. Exalte os assassinos. Roube mais de uma vez. No resista. Desate teus temores. Desamarre ardores. Liberte o xtase. Seja falso com boa conscincia. Sinta prazer pela dissimulao. Sinta o poder que de voc emana. O poder da seduo. Adapte-se a todo tipo de pessoa. Desenvolva o instinto de passar por situaes constrangedoras imune. Saia pela escada de servio. Vire o casaco. Mude com o vento. Imite. Decore papis. Aprenda a mentir. Esconda a carne viva atrs da pele. Tome excitantes para se energizar. Fume narguil para relaxar. Elas fazem o que vocs no fariam. O que ningum mais faria. Elas podem tudo. Infinitas so as metamorfoses. Cospem sangue esquecidas num lugar nenhum. No so artistas, estrelas de cinema, divas do teatro. So mulheres em crcere.

    2. Sortilgios Numa priso, trs mulheres e vrias traies. deriva, quase destrudas, Leila, Julia e Telma encontram-se em solitrias num presdio feminino. Mulheres em fluxo sem governo algum inventam verdades e possveis novos erros. Assoladas, em nada lembram as gloriosas noites de crime de outrora. Foras em travessia, esta trade de heronas ao avesso recua pelo deserto da esperana. s vezes so os pequenos delitos e proezas que as unem. Demonacas, outras muitas, paixes inconseqentes. Crimes passionais de mulheres que nunca foram to livres como agora. Encantadoras de serpentes distribuem intensidades com seus afetos abafados. O jogo cintilante do esgotamento. A exaltao deslumbrante da solido. Carregadas de erotismo e santidade, ningum sabe ao certo quais laos mantm intacta a amizade do trio. As insistentes marcas em

    UNYL

  • 60 /

    volta de seus crimes criam manchas combatentes. Uma lira dos excessos. Sem nenhuma porta ou janela que se abre. Nenhuma concesso ser dada. No entanto, com olhos insones, na inquietude dos corpos, avanam no escuro pela noite abissal a fim de aplacar o tdio e apagar a culpa. Permitem-se prazeres aos tropeos. No ignoram o pressentimento das paixes. Corpos crivados de intenes: fendas e pernas se raspam; peles se tornam abrigos provisrios. Lnguas, coregrafas de sucesso. Clamor de delcias. Enamoram-se segredando em paredes riscadas de amor e dio. Saboreando obscuridades e preferindo mais a noite do que os dias. No importa mais o acontecido, mas os desejos latentes e inevitveis do aqui agora. O foco est no passageiro e no acidental. Sucessivas noites. E sempre no dia seguinte, o refeitrio vira ringue. H sempre um novo conflito. O vigilante Cime - o adorvel deus sombrio no estava fora da cena e as observava salivante. Em maior ou menor medida ele atinge uma a uma com sua baba. E planos de fuga so mastigados, engolidos e por fim esquecidos como gros de arroz fora do prato. Desatreladas marcam o territrio com o salto agulha vermelho. E defendem-se com a boca, lngua e o cotovelo-estilete. Cospe sangue a furiosa rainha Especta, carnificina do tempo. Ainda assim e por isso tambm so malvistas e temidas. Inevitvel o estado de opresso depois do trmino de mais um dia de galo. De agora em diante, s resta resignar-se ao inferno cor de rosa. Intil pensar no dia seguinte. Nem os ressentimentos nem os novos pecados iro impedir a morte do instante. Viagem sem volta. Partida sem final. Jogo sem moral. Atrao fatal para o mundo do crime. As infernais, presas no carretel dos ardores, se tornam cada vez mais belas na misria de suas vidas errticas. Constelaes soterradas de vazio. Caoam do bem, pois do mal extraem mais certezas.

    3. Breve currculo

    LEILA

    1. No universo que se abre com meu esgotamento sou fora da lei. Vou para alm da moral e dos bons costumes. Os movimentos so contrrios. Inversos do esperado. Como uma atriz sem ensaios, sou experiencial. Ladra opcional. Estou procura dos estados de exceo do corpo em crime. Intensidade fora do lugar comum. Do gesto esperado, premeditado. Que surge dos intervalos.

    UNYL

  • / 61

    No instante da afirmao do ato de roubar. Quero deformar a imagem da ladra. Para alm de todas as evidncias.

    2. Entrar no refeitrio. Parar no meio, ao fundo. Deslizar

    numa diagonal para a superfcie da cena. Ou ento ir das margens ao alto. Voltar para o canto pelos muros. Retroceder, ir outra direo. Imitar, roubar. Colar e sobrepor. Suspender a respirao. Tudo isso para se esconder dos olhares. Arrebatar o obscuro. Sempre espreita. Apenas surpreender e nunca ser surpreendida.

    3. Um pensamento de fora e tudo estar perdido. No h

    permisso para a dualidade. No existe meio termo neste palco. Um ou outro ou aquilo. Corpo e mente e esprito tudo vindo a ser. Noite Abissal, hipntica, inevitvel e encantada. Atravesso um outro dia sendo apenas um meio. Ser em processo.

    4. Chegar da rua com mos vazias puro desalento.

    5. Entrou no refeitrio. Queria verificar se Julia estava

    l. E estava. Fizeram como na semana passada. Enquanto escolhiam o arroz checavam mais uma vez o plano de fuga.

    TELMA

    1. Ainda deitada, notou pela janela que havia sol l fora. Alegria pequena.

    2. Sempre tive medo de voltar a amar. Medo de histrias que se repetem. Jamais esquecerei que amei o homem errado.

    UNYL

  • 62 /

    2. Mas com um novo amor no se pode lutar. O amor age e eu no sei resistir.

    3. 3. No vou mudar tua vida nem o mundo. No sou feita

    para isso. Nem eu nem todo meu amor poder mudar tua vida. Mas se a senhora Moralina entrar pela porta da tua casa e tentar te vender receiturios de vida digna, ela a estar o enredando. Ela vai querer melhorar o mundo. Mas tu s o que . Assim como eu sou o que sou: anti-herona, passional, dionisaca, assassina. Plena com minhas vontades. Combato entre elas e no contra. No crcere digo sim para a vida que escolhi.

    4. De novo Julia me arrebata. ela que pe meu corpo a tremer

    de desejos nunca satisfeitos. Inconfessveis. Serpenteando fogo e enlaando-me com suas asas de mulher santa.

    5. 5. O confronto no direto. Nenhuma diretriz

    ainda a seguir. Somente desejo. Vivo de intensidades. humores. Atiro-me no abismo da paixo.

    6. Jogo de Amor e mortes. Outra noite ainda e a vida no presdio tem de renascer das cinzas. Fim de partida, tic-tac da arena. Reno meus pedaos em nova charada. Mas no permaneo de p sem a iluso da repetio. O espetculo nunca para, se desdobra. O presdio no coisa do efmero. O palco sim lugar provisrio. Sempre em vias de ser abandonado.

    JULIA

    1. Pedi dinheiro para ir visitar meu filho. - Na minha vida ter filho foi criar a minha morte. No pude viver

    UNYL

  • / 63

    duas vezes como a fmea faz ao conceber. Matei logo aps o parto.

    2. Foi torpor, embriagus. Deslize. Sopro de morte. Mas

    no havia nada por trs da bruma. Nada a desvendar ou descobrir. Nem devaneio, nem Ariana. Somente mais trevas.

    3. O que estimula, atravessa e faz amar? O que mobiliza,

    produz potncia de vida e emerge dos intervalos? Em gestao, processo. O que acontece nos entreatos?

    4. Ser bom ou ser mau. O erro no meu. O

    erro no teu. No me condene to rpido. De nada valem tuas acusaes de baixeza. Ao diabo com teus falsos julgamentos. So reivindicaes do impossvel. No h paz nem trgua na vida. Ela fere com violncia.

    5. Por acaso ao final de uma pea a atriz que fez a vil carrega culpa por isso? Depois de se despir do figurino, tirar a maquiagem, ela ainda se julga desprezvel? Ento por que eu haveria de agir assim?

    6. Escolho papis. Represento o mal. Permito variaes. Transgrido as regras. Traio o personagem. Fujo do enredo. Mas no tolero condenaes. Ser bom ser ento: identificar muito facilmente e muito rapidamente. , portanto uma metamorfose, igual a do ator. (NIETZSChE, 2001, p. 23).

    7. Entrada da igreja incendiada do Presdio Madre Pelletier, 2003.

    UNYL

  • 64 /

    REFERNCIAS GENET, Jean. Nossa Senhora das Flores. Apresentao de Jean-Paul Sartre, traduo de Newton Goldman. 3 edio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.NIETZSChE, F. W. O Livro do Filsofo. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. 3 Ed. So Paulo: Centauro, 2001. ______. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. SERRES, Michel. Variaes sobre o corpo. Trad. Edgard de Assis Carvalho, Mariza Perassi Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

    UNYL

  • / 65

    MELLO

  • 66 / MELLO

  • / 67MELLO

  • 68 /

    ATMOSFERAS

    O QUE PODE UM ESCARAVELHO NO ESPELHO?

    Patinhas seis, escorregando levemente, passo duplo, passo duplo, trs vezes, pra cima, nunca pro lado, nem caranguejo, nem casca. Patas fixas, aderentes que parecem possuir cola, tenaz. O velho escaravelho morre, pois assim quer Khepra, exemplo de uma cosmogonia Helipolis, um homem, acreditem, com um escaravelho na cabea. Amuleto, creiam, dos vivos e dos mortos. Isso se passar bem pra ns, no digas mentiras contra mim. Os amuletos no mentem, desde os faras assim. E, depois

    disso tudo, acreditem, alguns acreditam, nem fmeas possuem.

    NATUREZA FORMIGANTE

    Suas pernas perderam a sensibilidade. Ficaram penduradas por muito tempo para cima. Uma natureza pra l de deslizante, quer dizer, formigante. Por que no deixar as formigas andarem pelas pernas? Seria uma sensao muito agradvel se no fossem animais. Voc sentiria suas perninhas levitando pela superfcie da pele. Veria que no pesam nada, alm do mais muitas nem possuem veneno. Seria uma sensao agradvel se no fossem animais, porque muitas vezes so feitos tratamentos a base de formigantes, mas sem formigas, s com a sensao da formiga. Mas se elas estiverem caminhando a sensao seria real. Alm do mais a pele no pesa como uma perna, voc perderia o peso da perna e ganharia a leveza da pisada do animal. Suas superfcies esto abertas? As janelas da alma? Por que uma formiga faria tanta diferena num mundo to cheio de formigueiros. Voc ficou com coceira? um bom comeo. Seus poros podem falar alguma coisa que no seja somente cheiro. Alm do mais fique atento as que esto bem ao seu alcance: no aucareiro.

    JACQUES

  • / 69

    AMADOR DE SIGNOS

    Queres uma estrutura, um corpo de artista, uma vela acesa?

    Estrutura?

    Signos e significados?

    O corpo do artista fricciona-se no corpo do texto.

    Quase so a mesma coisa sem ser.

    Semiologia?

    No sei responder. Nem tudo possui resposta.

    Para amar so necessrios smbolos. Alguns usam a poesia.

    Erro.

    A poesia no serve para amar.

    A poesia ledo engano, escorrega ao caminhar.

    A poesia no diz, ela .

    Portanto amador no ames tanto, teus signos iro se esgotar!

    Tua estrutura ir corroer, teus signos perdero o significado.

    Em compensao nunca amaste tanto!

    JACQUES

  • 70 /

    COISAS COLETIVAS

    No corpo coletivo dos sintagmas o signo.

    No corpo polissmico do signo, lexias.

    Como o texto letra morta, o crtico deve trabalhar o cadver, cortar o corpo morto em vrios pedaos textuais e trabalhar o cadver do texto at vivificar suas partes torn-las linguagem-corpo no corpo-linguagem.

    Uma vaga semiologia, busca de anacoluto, esdrxulas frases.

    Brincadeiras de escrever.

    Aventurar-se ao acaso para ser devorado pelo no-sentido.

    Mas falta algo, algo de falta, j que precioso decidir, julgar e classificar.

    Como pode seu corpo estar a e no estar aqui, no texto?

    No corpo coletivo dos sintagmas?

    No corpo polissmico do signo?

    JACQUES

  • / 71

    CONOTATIVAMENTE COMO EXCREMENTOS

    Quase choca

    Escatolgico

    Embaraoso

    Quase descontnuo: A assinatura

    Quase nossos: corpos insignes

    Uma bofetada

    Repugnncia la Sade

    Potica teolgica

    As grandes lexias: O corpo

    O que era pra ser polissemia faz referncia, o que tinha traos resinosos aparece claro na palavra. Mesmo assim vertigem aquilo que no tem fim.

    O que faz referncia o faz at mesmo ao cu.

    JACQUES

  • 72 /

    DUAS OU TRS CERTEZAS

    Uma beleza, ligeiramente horrenda

    Um horrio, ligeiramente impreciso

    Uma boca, ligeiramente torta.

    Assim tu te instalas em meu peito

    Precisamente no instante marcado

    Ligeiramente fora do eixo

    Por agora, nesse instante

    Vou desvencilhar-me de ti.

    Como se pudesse uma certeza talvez duas

    Deixar de ter certezas.

    Como se pudesse uma duas horas

    Deixar de ter horrios

    Como se pudesse um ou dois amores

    Deixar de amar.

    JACQUES

  • / 73

    REGIME ONDE OS PRONOMES PESSOAIS S FUNCIONAM COMO FICO

    Digo eu e por que quero. Quero digo eu, mas a subjetivao est bem longe dos pronomes que aqui descrevo. Quero, eu, uma semitica mista, onde eu queira dizer eu e a significao ou a interpretao percam a pele. Quando me alimento, quero dizer ns, da interpretao impomos um rosto significante, exalamos um sujeito.

    Mas no quero mais dizer eu.

    Como ser sua mudana atmosfrica?

    Leia um livro, voc um discpulo.

    Quero dizer a linguagem caso de poltica antes de ser caso de lingustica(Deleuze).

    ARQUITETURA DE PALAVRAS

    Projetado trao foi at a altura. Parou. Desceu em ziguezague. Deslizou na base. Tringulo amoroso. Reto. Cortado na hipotenusa no aceita. Incalculvel.

    JACQUES

  • 74 /

    LINGUAGEM TOTAL: CREMOSA, CROCANTE...

    Outro dia deu no jornal: Mandaram comer a lngua. Mastigando a letra. Seria como uma moda atual especialmente dos linguistas que hoje esto nos jornais. A lngua, no o rgo. Mandaram comer seus comentrios. Foram classificados como imprprios. Algum disse: ningum sabe falar, no mximo repetir o que j foi dito. Outros dizem no sabem escrever, escrevem o que j foi escrito. A lngua linguagem perdeu o sabor, dizem. Qual sabor possui a lngua? No o rgo, a palavra. Uns dizem cremosa outros dizem crocante. Outros dizem: tudo e no diz nada. Como saber qual jornal estava certo? A linguagem que aprendemos total, totalmente sem sal. s vezes uma pitada deixa tudo sensacional. Pitada, alis, que gosto bom de dizer essa palavra. Pi, ta, da. Outras possuem tais sons, acordes aveludados. Um veludo, outro som incrvel. Ve, lu, do. Essas palavras soltas so tudo, dizem muito sozinhas. Ss. Como pode o sabor perder-se ao mesmo tempo em que tantas palavras so trocadas. Ontem o silncio quase morreu? Mor, reu. Mas o silncio est a grudado na palavra ao mesmo tempo em que soa. Soa Crocante. Palavra crocante, por causa do r. Por que lembra sabor tambm. quase impossvel dizer crocante sem sentir um crac na boca. O crac no ouvido repentinamente... At fazer sentido, depois, perde o sabor. Volta como som especialmente elegante. Como sedutor ser elegante!

    JACQUES

  • / 75

    e s cri a tura

    escritura

    escreve criatura!

    e cria a tua

    escreve e atura

    a tura.

    TIBOLA

  • 76 /

    parnteses abre

    corpo que renasce a cada novo gesto, essa a escritura. corpo que cai ao cho e, despedaado, descobre o que no sabia poder sentir. a lngua um choro sem lamento. corpo acrobata movendo-se at o impossvel ou jejuador na economia de movimentos, em ambos os casos, de um esforo que se trata, tambm de esforo que se sustenta o equilbrio. corpo, de qualquer forma, deformado, pois imprime uma nova forma a algo que era frmula. a escritura no de praxe.

    parnteses fecha

    mas vir, aps o equilbrio, o tempo para que as mos tremam? ser a pgina rasgada por algum desequilibrado? aps o equilbrio e o esforo um momento fugidio e uma necessidade que sobe pelas veias, move as vsceras e com um corpo pesado arrasta a pena.

    TIBOLA

  • / 77

    ver

    vez que outra

    o corpo apenas como

    vestido

    (vivo)

    caindo

    vez que outra

    o corpo apenas um

    vestido

    (vivo)

    caindo

    ver

    da

    de

    sc

    ida

    apenas

    as voltas

    no vento

    h penas

    s voltas

    no vento.

    TIBOLA

  • 78 /

    sobras e sombras

    tudo to amarelo, tudo to amarelo daquele amarelo das lmpadas de cem watts, as que tm em todas as casas e que no chegam a ilumin-las.tudo to comumente amarelo at que olhos levantam-se levemente do livro e sentem o silncio. sentem o silncio dessas sombras.vive-se em dias silenciosos. silenciosamente abraados. contguos.cada um com seu olhar perdido nesses dias de cheiros que ainda no se sabem. os cheiros, sabe-se-os amanh. dias silenciosos que agradam o tempo. faz-se de uma casa uma toca onde coisas ares bocas entram e saem ...trocas.olhos percebem tudo isso nesse leve afastamento da pgina do livro.sentem o tempo, sentem o timo em que se vive, sentem uma atmosfera. atmosfera amarela e silenciosa que se nutre de po e caf.atmosfera amarela, dentes amarelados, amarelo de olhos cansados.tem-se pouca vontade, as distncias parecem aumentadas.o mais agradvel: diviso de camas, disperso de peles.est-se to longe!e ao mesmo tempo quase se confundem os ares. rarefao de ares: armas guas caros. est-se suspenso! flutua-se no ar pesado esperando um trofu ou um machado que jogue tudopara o altoou para baixo,falsamentepara o altoou para baixo:o amarelo das cebolas queimadas do cigarro acabado, o amarelo do prdio ao lado, o amarelo de um fim de tarde com sol depois da tempestade.

    TIBOLA

  • / 79

    o cu que sobre

    o cu que s

    obra

    o cu que se abre

    sobre o que

    sobra.

    TIBOLA

  • 80 /

    ele bem que entendia que a coisa era assim porque era, mas no queria que fosse. ele me olhava com aquele olho verde cheio de clios e sorria ... sorriso meigo com aquela

    feminilidade que todos o acusavam de ter .... ele era o mais escroto e o mais doce ... forma escrota de sobreviver, auto-

    suficincias para agentar solides e marcas no corpo de quem mais sente... o corpo grita, pede socorro, mas ele grita mais alto e ri... ele rodopia e dorme com seus amigos bbados, da amarela! da amarela! dessa pinga a noite inteira! e as coisas

    eram assim como deviam ser... no sabamos ver diferente... ele olhava sempre com aquele olho verde e cheio de clios e eu com meu olhar de peixe morto, peixe morte, peixe mote, eixo mole... quando o eixo ficava mole a gente perdia o equilbrio

    e o controle j tinha ido com a pinga... a tal da realidade sempre dissimulada, sempre mostrando-se s sombras (a luz, a luz daquele quadro barroco vista somente, posta s claras, entregue, descoberta pelo preto), escura, a pinga engolida j

    preta de tanta imundcie, mundice... quanto mais mundo, mais sujeira, j viu? j viu que se eu pifo eu no cago? A produo excessiva de lixo, a produo excessiva de lixo e bl bl bl, tudo que produto j lixo... j e de jogar fora ou de usar s por um pouquinho (e jogar fora), por isso o medo do fato... quanto mais dissimulada mais real? dura a medida de sua

    dissimulao, a realizao j o caminho para a lata de lixo.... por isso ficamos no meio do caminho. De amarelo, s o elo elo elo eco perptuo (elo perptuo, aliana at a morte no!)

    perptuo socorro... ele olhava a vida com aquele olho grando e eu ali me fazendo de alegrinha... porque esse era o lugar

    presenteado, o lugar onde todos os presentes desembocavam... onde todos os presentes estavam destinados a fenecer...

    TIBOLA

  • / 81

    ser s ser sombra

    o ser sombra

    s o que sobra

    ser s s ser

    sem ombro

    s o choro

    sempre s

    s um sopro

    onda e obra

    o som do seu andar

    sem sombra

    ser sol ser sombra

    TIBOLA

  • 82 /

    quando as marcas roxas no corpo

    j nem mais vermelhas esto

    prestes a desaparecer

    so daquele amarelo que

    quase nem mais marca

    quase nem mais marcam

    quase nem mais marcas

    so amarelas

    (mancha quase clara

    desaparecendo)

    quando a dor nem mais marca

    tem

    dor maior

    o que amarelo

    o que se espalha

    na pele

    corri

    o que no desapareceu

    o amarelo

    da quase no mancha

    (ferimento verdade eterna)

    que no se vai

    TIBOLA

  • / 83

    meu amor, meu querido amor, por que tenho que te ter inteira? quando inventaram um amor assim? quando de corpo e alma? quando totalmente, completamente? quando toda minha? te quero meia. quereria o canto da tua boca. uma pinta, uma veia. quero o espao entre o fio do cabelo quebrado e o andar desacelerado da volta que ele faz em tuas costas. quero tua nuca, mas no teu colo. quero teu queixo, sem teu olho. te quero pela metade como uma lngua da qual s apreende-se o essencial a alegria ou o passo lento. quero s teu acento, tua cadncia e teu sorriso. te dedicaria assim um meio pensamento carta amarelada em letra apagada pelo tempo numa lngua pela metade. fala de meias verdades (lambe teu quase corpo inteiro). porque tenho que te ter inteira lngua se podes ser jogada fora? quando posso, quando quero, te jogo e te insulto. uma meia lngua feita de restos de lnguas inteiras (uma meia lngua para calar no p) para encontrar o que ainda no sabemos (definitivamente a sola do p difcil de se ver). corpos pela metade, para falar do que est no meio (casas abertas para falar de um trio). escolheria (por acaso?) pedacinho daqui pedacinho de l. do portugus o arrastar-se, do italiano o riso, do ingls a preciso, do espanhol a fora, do francs... o brie, o brio. comida viva. linguagem morta-viva devorada. comida em partes, um prato novo. regurgitado. mas no, no uma frmula, (apenas) um desejo mal formulado. meu amor, te quero, mas te quero retalho e lembrana. quero o que fica depois do esquecimento. depois da fala. no silncio.

    seu som sem sombra

    ser sempre

    assombra

    sobra

    ser sempre sombra

    obra

    dobra

    onda

    TIBOLA

  • 84 /

    Histrias de observatrios

    REDIN

  • / 85REDIN

  • 86 / REDIN

  • / 87REDIN

  • 88 / REDIN

  • / 89

    Pus Atravessamentos pus nesta escrita pus Leonilson pus Hlio Oiticica pus Joseph Beuys pus Barrio Pus Bispo do Rosrio pus Louise Bourgeois pus Henry Miller pus Pargrafo pus Trpico de Capricrnio pus Artaud pus Artistar pus Corazza pus Palavras pus Paola pus Jarbas pus Dionsio pus Nietzsche pus Deleuze pus Guattari pus Rolnik pus Dilacerado pus Caio Fernando Abreu pus Carol pus Adriane pus Terra pus Bordados pus Tragdia pus Ariana pus Lamento transcriado pus Zordan pus Machado pus Martelo pus Roberto pus Lins pus Barbosa pus Daniel pus linhas pus Vida pus Arte pus Escrita pus Deriva pus Guy Debord pus Pensamentos pus * pus Dilogos pus Deleuze & Parnet pus Filosofia pus O que pus Nascimento pus Tragdia pus Bailarinos pus Alice pus pele pus do Outro Lado pus Espelho pus Mil Plats pus Lgica dos Sentidos pus Mistrio de Ariana pus Rosto pus Desejo pus Criaes e Sentido Trgico pus dif pus Seminrio pus Ano Zero pus Rosto de Giz pus Carne pus Blides pus Parangols pus Carolina pus Votto pus Lebre Morta pus Corpo pus Paixo pus Dilacerao pus Labirinto pus Fluido pus Deserto pus Puerto pus Manto pus Capas pus Capela pus Cidades pus Verdades pus Ruas pus Corao pus Mundo pus Gigante pus Flores pus Nuvens pus Sonhos pus gua pus Divididas pus Inominvel pus Boca pus Insnia pus Entrega pus Teso pus Rios pus Diferena pus Sangue pus Marques pus Rogrio pus Cuidado pus Amorosidade pus Aventura pus Excesso pus Educao pus Dor pus Silncio pus Cheio pus Vazio pus Lngua pus Ferida pus Corte pus Paisagem pus Caos pus Cartografia pus Oswald de Andrade pus Antropofagia pus Dana pus Pirata pus Msica pus Ouvido pus Oceano pus Cor pus Pinturas pus Afeco pus Percepo pus Spinoza pus Capitalismo pus Esquizofrenia pus Gilles pus Criana pus Feita nas orelhas pus Retorno pus Encontro pus Roubo pus Profano pus Desenhos pus 250 km ao Sul pus Outras Obras Minhas pus Tudo isso para compor esta produo litero artstica

    FERREIRA

  • 90 / FERREIRA

  • / 91

    Me * artista * amante * santa * puta * professora * aluna * filha * louca * deprimida * bbada * obscena * lasciva * ordinria * debochada * cadela * travesti * bixa * mulher * abandonada * transtornada * arteira * bruxa * danarina * bisca * fada * enferma * besta * nula * inexata * mida * intensa * desvairada * companheira * Alceste * indecorosa * amiga * fogosa * escatolgica * ftil * dilacerada * stira * cnica * voraz * nmade * trgica * trmula * ciumenta *traidora * macia * ladra * apaixonada * Ariana * exagerada * vaca * pirata * vaidosa * libidinosa * demasiada * srdida * vulgar * insuportvel * possessiva * volvel * fiel * idiota * solitria * inteira * cigana * feiticeira * extempornea * imaculada * usurpadora * emotiva * colrica* inquieta * frgil * leviana * imanente * assimtrica * incorrigvel * Clarice * Bispo * dissonante * selvagem * Hlio * Mona * Caio * aguda * adorvel * Greta * dilatada * desgraada * espaosa *afogada * Fritz * June* atormentada * libertina * perversa * indecente * Dulce * alcoviteira * Henry * vadia * submissa * spera * Odete * obstinada * meiga * Bete * blue * impostora * vida * Anna * desmemoriada * carnal * Louise * inocente * desmembrada * vazia * melanclica * profana * paranica * estranha * lnguida * diablica * Mara * pesquisadora * desiludida * frtil * temerosa * amarga * sensual * profunda * superficial * alegre * verborrgica * desesperada * estrangeira * risonha * aficcionada * imanente * boa * encantadora * ousada * agressiva * vidente * s* passional * exuberante * malfica * escandalosa * gritona * Teresa * Justine * amorosa * tmida * mltipla * comum*

    FERREIRA

  • 92 /

    FERREIRA

  • / 93

    Jogo de astcia

    / Preldio /

    Como est claro o dia! Sinto-me leve. Os braos soltos. As pernas estiradas. O olhar desviante. O corpo, enfim, relaxado. Posso criar muitos gestos desde que a minha viso se una ao toque das plantas dos ps, como se as pupilas pudessem tatear e as plantas dos ps fossem capazes de ver. Ao redor do corpo e de suas mltiplas bifurcaes, estremecem rajadas de vento e centelhas so lanadas no volume azul. Em exaltaes infinitesimais, o verbo advm da retido inquieta do corpo. O equilbrio perdido em minsculas elipses.

    Repentinamente sou tomada pela sensao de que seguir seria arriscado demais. Obstino-me aos riscos. Antes que meu corpo se encolha e meu esprito se encha de sabedoria, sou acolhida livremente pela clida brisa e pelo gostoso sol dessa tarde de agosto. Mesclo minhas margens ntimas e os afectos se multiplicam interiormente. h certamente outras palhetas que vibram nos contornos dos ventos.

    Com efeito, jamais vi nuances to suaves ou harmonias to secretas na impermanncia do universo. Um equilbrio corpo a corpo, igualmente sereno, deve embeber da absoluta perfeio do acorde ao fim de uma sonata.

    MUNhOZ

  • 94 /

    Meu corpo se agita, meus ps

    tocam o solo, meus cabelos se ouriam. Mas a vida inteira tambm se move: as plantas florescem, as ondas rebentam, as algas flutuam. E a vida pode tantas coisas que at os deuses se espantam com isso.

    Fim de tarde. Comea a chover. Gotas pesadas, esparsas. Depois, mais finas. A gua se avoluma e despenca rua abaixo com fora vital. Por fim o ar lmpido clareia as minhas idias nascentes. Escuto meu sangue, meu corpo, minha potncia. Entrego o corpo linguagem e a escrita desvanecida inicia-se pelas beiradas do fim do dia.

    / A espectadora /

    No comeo, curiosidade de me ver, mas depois no mais. Agora o desejo de me ver no outro. E algo acontece: o passado de minha execuo coincide com o presente do outro. E eu me confundo. Eu e o outro. Um certo mimetismo, esse conhecimento misterioso transmitido de um a outro. Todo o corpo no mais agora aquele que se v sob o vidro lmpido da gua.

    Diante dos meus olhos a danarina desenrola a sua dana. Desarmo-me, renuncio e deixo-me seduzir pela sua potica. E tudo parece indicar que o invisvel da invisibilidade est ali, desvelado e desconhecido, estranho e disforme. Como que em uma mistura de corpos erticos, nada um sem o outro. Implicada no corpo da danarina sou absorvida em sua plenitude e sinto-me perdida em seus delrios. Com que deleite, com que regozijo consolo o meu esprito. Extasiada me calo diante de tamanha seduo.

    MUNhOZ

  • / 95

    Uma vontade me apodera. Quero tornar-me o espectador de mim mesmo. Inventar o meu prprio espao de mim. Talvez precise encontrar uma linha abstrata que trace o movimento no espao e no no corpo que o percorre. Mas a cada instante que eu dano, toda a experincia da minha vida potencialmente visvel. E no limite da experincia corporal vejo a minha prpria matria tornar-se perecvel.

    Se voc soubesse tudo o que vejo. Tudo o que sinto. Meu esprito se alvoroa e no me deixa descansar. Preciso respirar. S um pouco. s vezes falta-me flego. Tenho a sensao de que no consigo mais pensar ou que o pensamento torna-se alguma coisa to somente corporal.

    De meu lugar na platia vejo o palco. E tambm o lustre. Talvez mais o lustre do que o palco. Talvez ora lustre, ora palco. O que sei que o brilho do lustre ofusca o meu olhar implacvel. Fixo os instantes sbitos que mostram em si a prpria imagem nebulosa. Percebo que o meu olhar de uma pessoa primitiva e talvez tambm o lugar. Desnudado de mim nada mais vejo.

    Quase um palco. A coreografia materializa um trao. Uma antologia de passos semelhante abertura de uma pera faz com que cada passo parea ser o movimento da pera inteira. So movimentos e melodias o que se escuta. Um jogo de astcia.

    Encontro-me no meio. Sentado entre duas pessoas. Estranha sensao de que o meio parece disputar entre si o que sou. Talvez eu seja um estrangeiro de mim e j no mais me reconhea. Sinto minha presena ausente

    MUNhOZ

  • 96 /

    e isso me d um sabor abismal. Sabor de sombra. Sempre gostei de perseguir a minha sombra e nela desaparecer.

    O fascnio me cega e impede um pensamento. Enxergo desenhos feitos por nuvens no horizonte. Depois formas amolecidas, desamparadas. O corpo ofega. De tanto ofegar o que era orgnico soa martimo e o orgnico talvez soe mecnico. E na calma da noite, os olhos fecham. Pesam e fecham.

    O tempo inicia-se pelas beiradas adensando-se noite. Vejo um bailarino exprimir enormemente seus gestos sem quase nada fazer. Vejo o que no se pode no ver. Cada corpo no seu limite a sua luz cegante. E o gesto torna-se absoluto e sem artifcio. O corpo vivo mal se distingue do corpo sem forma e tudo se realiza numa espcie de incidncia vulcnica.

    O que vem a seguir no poderia ser inesperado. Diante de veladuras e opacidades, diante do lgubre da noite, o palco se abre no sol de outras paragens. Os corpos falam uma outra lngua, como se fosse possvel cortejar uma sade.

    Tu exalas em mim a ausncia de ti e te ver faz nostalgia em mim. Sigo os olhares que te levantaram vo e escuto a minha fragilidade. Ser que adormeci? Talvez eu consiga renascer ainda. Em meio a um suspiro e outro, abro a janela para ver o luar. Penso: Le plaisir de danser dgag autour de soi le plaisir de voir danser.

    O final do espetculo. O fim de partida da dana. No existe a seno uma fantasia que se dissimula na repetio infinita entre o j danado, o j visto e o j dito. Tudo procede na extrema resistncia de fazer morrer a sua prpria conscincia.

    MUNhOZ

  • / 97

    Tempo

    KIELING

  • 98 / ARRUDA

  • / 99ARRUDA

  • 100 / ARRUDA

  • / 101ARRUDA

  • 102 / ARRUDA

  • / 103ZORDAN

    Caras da Lua

  • 104 / ZORDAN

  • / 105ZORDAN

  • 106 / ZORDAN

  • / 107

    VARIAES

    Tema: uma linha trabalha por conta prpria. Uma linha passeia

    ondula ziguezaguezeia inscreveu-se num escritor sensaes pequenas percepes antes ou depois enroscou-se entorno contorcendo acasos

    Variaes -

    diz-se que jamais se conheceu (sequer quando escreveu eu) coisas do mundo atiam essa linha se fundindo com aquilo que a contempla na lngua que desconhece entre reconhecimento e aparecimento numa a-percepo (Tristan Tzara): algo surge sobre o papel recortando-se em palavras colocando-se num saco agitado suavemente tirou-se cada pedao um aps o outro

    LIMA / GIROTTO

  • 108 / LIMA / GIROTTO

    copiou-se na ordem em que eram tirados disps-se das palavras das imagens numa

    viso seguindo (entre escolha e acaso) a linha que vitaliza (outra vez?)

    batel fanny clamo e as bolhas de ar entre uma roleta e o bacar linha que arrisca arisca: risca com o acaso: do silncio eu dizia que

    eu tinha uma linha oriental: vai! e ela parecia muito mais antiga do que ns Quem sou? Aqui:Agora ... menor que um morfema.... palavras-olhos palavras-mos: vejo: fao: traolinha aterrisa antes da solitria obra (o banco est vazio chove) quando risca lmina incandescente no papel, o medo continuar ou paralisar?

    cladogramas balanam-me na mesma superfcie em que rio com os peixes - pensando-se encontra-se (impondervel

    mulher de pluma ps de gueixa no olho de zngara)

    agarrada em impossibilidades da realidade da materialidade do impossvel

    (aguardando o nada o jardim desfolha em seus lbios)

  • / 109

    refletindo-se nos prprios movimentos surpreendia-se torneando-se um retalho do fim do mundo

    maravilhosa aflio! de quebrantos no corpo, nas pontas dos dedos

    em palavras vibraes pulsaes gestos atos - linha arquitetural que arruna colocando tudo no devido lugar: Julia e a praa linha declina ascende aparece nos ltimos instantes

    derradeira feito uma enguia enrolada com graa como pequena vbora

    indomesticadaestranha e enigmtica

    no haver uma segunda vez! emerge lmpida encobrindo as ruidosas imerses do pensamento linhas-sons encantaes evocaes obscuras (crepusculares espelhos lquidos imitam o pssaro e a lua enquanto o vento sopra uma ausncia)

    linha cintica na pgina/tela prxima-distante firme tnue seca vaporosalinha dilata volumeia nervos vsceras peles ossos linha vertical desce pela garganta do mundo

    baleia!

    suando do plantio colheita estia a linha torpe germina com gotas de chuva pinga uma fonte silenciosa

    LIMA / GIROTTO

  • 110 /

    do silncio imergia nessa negrura de fazer-se escrituralmente ida na imagem armadilha entreolha-se num interior de tinta: a linha arapuca antes num pssaro (tema) agora num bando de azuis no oceano

    linha pulverizando-se em nuvensde branco jade cintilando emtalco feldspato com mariscos incrustadosem fluoritaAlice!furtivaem matizes deanilcobalto desce: navalfsica gua alga achata!nesse MarCrepuscular descendoplida negra magnetita! abissal

    linha soma soma subtrai soma trailinha seduz l c acol no mais fotogrfica xilografou o trajeto para uma bicicleta

    LIMA / GIROTTO

  • / 111

    passar linha ciclista Bach? campestre celestial singela alegria

    vinha com

    canolas em flor amarelasno meio das colinasda estrada do anoneblina de inverno

    depois da chuva pesadado calor que subia como nevoa da montanhaas ltimas bergamotas

    entre rvoresanimais e pedras vinha, vinho quase augustus

    a montanha devolve em ecoshaver vinhedos e gua -

    a montanha espera,no meio animais e celeste, aurora,fenece

    Kazuo Ohno e a linha: quebrar um movimento para uma alma passar entranhando-se em fibras nervosas rodopiando mergulhando no texto mais uma vez

    no alto da rua XV malabaristas

    LIMA / GIROTTO

  • 112 /

    mergulham do lado de l para trazer para o lado de c essa rosa crepitante a-moralPoe Bacon Klee - trptica - Suspensa Tensa Pensativa linha de carpintaria simples aperfeioa-se (elevando-se em si mesma, de si mesma)inquieta-se ponteada derramando filetes de espaos sutis mais leves que atmosferas demasiado pequenas: agora os ouvidos dos meus ouvidos despertam e agora os olhos dos meus olhos esto abertos (Edward se recolheu aos labirintos infinitesimais da antiga pera) (o som ondulava noite atravs de meus ossos)

    quando coloca sentido contra apaga o logos e aflora na sensao fsica (os et alii loucamente se enfurecem e fogem uns dos outros como da peste!) trapaceia evoca coloca o enigma insolvel dissolve um personagem astuto: seu enigma! na geometria de uma mancha no papel brilhantes razes em negras regies?

    esta linha prosaica navega numa potica, arranhando o no sentido daquilo que inversamente a linha potica da linha prosaica anuncia: sentido formoso astuto feio coxo! assim como uma lngua obscena

    aqum do texto alm dele catstrofe e decomposio ascenso e declnio o mal vampiriza das flores vermelhas s brancas (esta linha que voc l jamais abolir o acaso dizia-se nele, ela) do som antes do salto do velho tanque ouviu-se que

    esta linha to romntica cheia de noite de mar e de estrelas ser um banquete para essas traas to pequeninas quando o mal

    LIMA / GIROTTO

  • / 113

    cheirando as flores os espinhos desnudando-se pouco a pouco como se acaso fosse ainda seria muito vestida no verso rasurasse seu reverso como se no inferno um ritmo levasse a linha para passear (um pequeno comeo) e

    mal iniciado um traado fosse amassado chutado alhures em bolinha de papel em brinquedo para

    um gato encontrado ao acaso desdobrando-se em

    ip

    uma linha que jamais conversa ( msica?) ||:- aplico-me nessa frase! aguardo... desenvolvo-me? perco-me?:|| tac-tac-tacda capo: - seu mtodo? -penso sinto logo insisto

    reverso:

    diz-se que uma linha dissolve a existncia que no a sua em prpriacomo se

    um princpio cujo fim fosse outro princpio nesta terra sem gravidade de colapso e desaparecimento do desastre do trao esculpindo uma linha abstrata como se um cavalo oblquo relinchasse foz eternamente ou bicassem pausadamente pontos da linha dois pombos

    LIMA / GIROTTO

  • 114 /

    ao lado deuma menina correndo para uma fonte em nuvens decduas (enquanto ventos de carvalhos tremem vidraas)

    fim de tarde

    nesse largo da ordem onde

    desalinham-se linguagens em desalinhamentos de linguagens em largos desalinham-se em desalinhamentos de largos de linguagens de desalinhamentos de ordens

    em linhas circulares sem centro sonoras de cristais atmosfricos glissandocomo estes tordos em redes suspensas se rasgando se emaranhando em fios floreios farpas traos de edifcios imaginrios em textos dilogos insetos condies ocorrncias que decompem e desaparecem [7 elementos para uma teoria das origens, das linhas, dos volumes (Paul Klee): ponto cinza

    puxadas laterais superfcies choques puxadas profundas volumes cinzas assim: Gotas estalidos de volumes em superfcies chuva de vero]

    LIMA / GIROTTO

  • / 115

    uma linha que se suicida no se explica em termos de fracasso e perda mas pela durao de seu trao por isso diz-se da razo que o suicdio a precede e dura nela

    na linha conservando-se lembrana sem ter se lembrado enquanto cuidava de tudo na linha aletheia, vestgio do trao na superfcie d e uma memria na linha rarefeita arrepiando o frio

    desejo da linha livre de todas as propriedades (pulso de morte: apoio e desvio do ponto diablico escrevendo uma pergunta que no se formulou

    nunca se formular: linha hiperblica)

    neutra cria ou modifica suas vozes em polifonias de polifonias alongando-se felina e voltando a dormir

    ouviu-se dizer que as espcies de linhas so produzidas pela evoluo no pelo homem contudo nunca se recusaram a escrever a ele epitfios de epitfios:

    - no deserto de matizes de prata sopram minerais ao brilho decrescente da lua

    - bolas de gude caleidoscpicas corrigiam a pontaria do menino de olhos abissais

    - arlequim-pierr querendo-se dramtico perdia-se nesta linha cmica

    - entre a vida e a morte escreveu