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8/16/2019 Significacoes Do Corpo Negro Isildinha Baptista Nogueira Tese
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Isildinha Baptista Nogueira
Significações do Corpo Negro
Doutorado em Psicologia
Universidade de São Paulo — USP —
São Paulo — 1998
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Isildinha Baptista Nogueira
Significações do Corpo Negro
Tese apresentada como exigência parcial paraobtenção do Título de Doutor em PsicologiaEscolar e do Desenvolvimento Humano, sob aorientação da Profª Drª Iray Carone.
Universidade de São Paulo — USP —
1998
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Agradecimentos
A Iray Carone que além de orientadora, foi quem me deu achance de fazer este trabalho.
Ao Kanbengele Munanga e Cristina Kupfer, membros da banca domeu exame de qualificação, pelas valiosas sugestões e críticasque me permitiram realizar esse trabalho.
Ao CNPq, pela bolsa, que me deu condições para realizar partedesse trabalho.
A Heidi Tabacof, minha analista, que tem me acompanhado nocomplexo caminho de me tornar sujeito de minha própria
história.A Rosana Paulillo, com quem pude aprender os segredos daescrita.
A Radmila Zygourís, a mestra, a amiga, mãe generosa, que soubesempre mostrar caminhos.
A Walkirya B. Lima, por me acompanhar na vida e me fazeracreditar que era possível realizar esse trabalho.
A Caterina Koltai, a irmã querida com quem sempre pudecontar.
A Irene Munanga, um exemplo de luta.
A Drª Nidia Cecilia P. da Silva, por me fazer confiante napossibilidade de superar as dificuldades de ordem física.
A Leila Tendrih, com quem pude contar carinhosamente.
A mãe Ida, mãe de doçura e compreensão, companheira demomentos difíceis e bons.
Aos amigos Eduardo Goldenstein e Luis Antonio de BarrosCamargo, amigos queridos, companheiros de estudospsicanalíticos.
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Aos amigos do grupo de filosofia e ao Prof. Luis Alfredo Garcia-Roza, mestre de filosofia e vida.
A todo pessoal da Escola de Dança Maria Antonieta, em especialaos professores, Katia Mingorante e Alexandre Marino
Hugenneyer, que nas horas de tensão me ajudaram a relaxar.
Ao Dr. Paulo A. Arantes Jr., pelos cuidados que me permitirammanter o equilíbrio em momentos de stress.
Ao Dr. Fagner Fioranti, pelo carinho e o incentivo à minha luta.
A Janise e Regina, da Oficina das Letras, que com carinho eamizade cuidaram da confecção deste trabalho.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para esse trabalho.
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Dedicatória
À minha mãe, mulher negra, com
quem aprendi a lutar.
À minha irmã e aos meus sobrinhos,Fernanda e João Phelippe para queeles continuem a lutar.
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Eu canto aos Palmares, sem inveja
de Virgilio, de Homero, e de
Camões, porque o meu canto é o
grito de uma raça, em plena luta
pela liberdade!
Solano Trindade
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Resumo
Este trabalho tem como objetivo investigar a dimensão psíquica da questão do
racismo, partindo da hipótese de que essa realidade histórico-social determina,
para os negros, configurações psíquicas peculiares.
A partir do referencial da teoria psicanalítica, procura-se determinar o modo
como as significações que o racismo envolve se inscrevem psiquicamente para o
negro, e o modo como elas vão produzir a dimensão simbólica do corpo negro e
ideal imaginário da brancura.
Tais inscrições psíquicas não são simplesmente resultado da introjeção das
experiências de discriminação efetivamente vivenciadas, mas se constituem na
infância, envolvendo momentos iniciais da constituição subjetiva. Nesse sentido,
afetam os negros independentemente de sua posição econômico-social.
Nessa abordagem, busca-se definir a condição de negro como produto da
interação dialética entre, de um lado, as representações sociais ideologicamente
estruturadas e as estruturas sócio-econômicas que as produziram e as
reproduzem, de outro, as configurações que formam o universo psíquico.
Este trabalho pretende chamar a atenção para o fato de que nem a consciência da
condição de negro nem o engajamento em relação às lutas políticas contra a
discriminação racial são suficientes para modificar a condição do negro, na
medida em que os sentidos do racismo, inscritos na psique, permanecem não
elaborados.
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Resumé
Ce travail se propose à étudier la dimension psychique du racisme, à partir de
l’hypothèse suivante: que cette realité historico-sociale détermine, pour les noirs,
des configurations psychiques particulières.
J’essaye, a partir du réferentiel psychanalitique, de déterminer la façon par
laquelle les significations du racisme s’inscrivent psychiquement pour le noir,
ainsi que la manière dont celles-ci vont produire la dimension simbolique du
corps noir et l’imaginaire de la blancheur.
Ces inscriptions psychiques ne sont pas exclusivement conséquences de
l’introjection des expériences effectivement éprouvées de discrimination, mais se
constituent tout au long de l’enfance, concernant les moments cruciaux de la
constitution subjective. Ainsi conçues, elles affectent tous les noirs
indépendemment de leur position socio-economique.
Dans cette perspective, j’essaye de définir la condition du noir en tant que produit
de l’interaction dialectique entre, d’une part, les représentations sociales
ideologiquement structurées et les structures socio-economiques qui les ontproduites et continuent à les réproduire et, d’autre part, les configurations qui
constituent l’univers psychiques.
Ce travail se propose d’attirer l’attention sur le fait que ni la conscientization ni
l’engagement politique contre la discrimination raciale suffisent pour modifier la
condition d’être au monde du noir, tant que les significations du racisme, inscrites
dans son psychisme, ne seront pas elaboreés.
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Abstract
This work aims to invetigate the psychic dimension of the racist question,
starting by the hypothesis that this historic and social reality determines, for the
black, peculiar psychic configurations.
Begining with the referencial of the psychoanalytic theory, we aim to determine
the way by which the significations that the racism involve inscribe themselves
psychically for the black, and the way by which they will produce the simbolic
dimension of the black body and the imaginary white ideal.
Those psychic inscriptions are not simply the result of the introjection of the
discrimination experiences actually lived, but they constitute themselves in the
infancy, involving crucial moments of the subjective constituion. In this sense,
they affect the blacks no matter what is their social and economic position.
In this focusing, we search to define black condition as a product of the dialectic
interaction between, in one side, the social representations ideologically
structured and the social-economic structures that produced and reproduce them,
and, in the other side, the configurations that form the psychic universe.
This work aims to call attention to the fact that neither the consiousness of the
black condition nor the engagement in the political struggle against racial
discrimination are sufficient to modify the black condition, since the racism
senses, inscribed in the psyche, remain non elaborated.
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Índice
Pág.
Introdução .................................................................................................. 13
Primeira Parte ----- Dimensão Sócio-Cultural da Condição deNegro
Capítulo I
— A Constituição do Indivíduo na Sociedade.................................... 201.1 Gênese da Categoria de Indivíduo ......................................... 211.2 A Constituição do Indivíduo na Classe.................................. 28
1.3 O Lugar do Negro na Sociedade............................................. 33
Capítulo II
— As Representações Sociais ................................................................. 372.1 A Cultura como Sistema de Significações.............................. 382.2 O Corpo enquanto Signo.......................................................... 432.3 A Significação Social do Corpo Negro ................................... 44
Segunda Parte ----- Dimensão Psíquica da Condição de Negro
Capítulo III
— As Estruturas da Condição Subjetiva .............................................. 463.1 A Concepção Lacaniana de Sujeito: a metáfora do
Nome-do-Pai; a falta; a castração ............................................ 483.2 A Spaltung: a divisão do sujeito ............................................... 503.3 O Mecanismo do Recalque....................................................... 523.4 A Alienação do Sujeito na Linguagem................................... 533.5 O Eu como Construção Imaginária......................................... 573.6 A Fantasia como Constitutiva do Corpo................................ 603.7 A Noção de Objeto: a falta e o gozo........................................ 63
Capítulo IV
— O Corpo Negro enquanto Categoria Imaginária e Simbólica..... 704.1 Imagem do Corpo e Esquema Corporal: o indivíduo.......... 714.2 A “Inumanização” do Negro ..................................................... 764.3 A Dissociação Narcísica na Imagem do Corpo para
o Negro........................................................................................ 77
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Cont.
Capítulo IV
— O Corpo Negro enquanto Categoria Imaginária e Simbólica 4.4 A Imagem do Corpo enquanto Rosto..................................... 79
4.5 A Construção da Imagem do Rosto Próprio peloOlhar do Outro........................................................................... 81
4.6 O Rosto Próprio enquanto Estranho....................................... 854.7 A Construção da Imagem do Corpo no Negro: injunção
ou sobreposição do racismo? ................................................... 864.8 A Criança Negra e o Espelho................................................... 934.9 A Relação Persecutória com o Corpo Negro ......................... 944.10 A “Vergonha de Si” e os Processos Auto-Destrutivos
do Negro ..................................................................................... 96
Capítulo V— A Condição de Negro Vivida como Privação ................................. 103
5.1 A Categoria Freudiana de Romance Familiar ....................... 1045.2 Gênese do Mito da Brancura no Romance Familiar do
Negro........................................................................................... 1075.3 A Condição de Negro como Falta ........................................... 112
Capítulo VI
— Estudos de Casos ................................................................................. 117
6.1 Caso nº 1...................................................................................... 1196.2 Caso nº 2...................................................................................... 1226.3 Caso nº 3...................................................................................... 127
Considerações Finais .............................................................................. 135
Referências Bibliográficas...................................................................... 140
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Introdução
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Transportados para o Brasil, na segunda metade do século XVI, os negros
provenientes de várias regiões da África, falando portanto diferentes línguas, são
enviados ao trabalho escravo nas fazendas.
Por mais de três séculos, as principais atividades econômicas mercantes
brasileiras basearam-se no trabalho do negro escravizado.
A historiografia oficial nos conta que a substituição do braço escravo indígena
pelo do negro se deu por este apresentar maior resistência física e por ser mais dócil. O
que essa historiografia não nos conta é que os negros resistiram violenta e
sistematicamente à escravidão.
Evidentemente, era mais fácil submeter alguém à escravidão num meio
geográfico e cultural desconhecido. Capturado no continente africano e transportado já
na condição de escravo, sofrendo todos os horrores, o negro era, assim, “preparado”
para ser escravo; o tráfico vergava-lhe, física e moralmente.
A distribuição dos negros era feita de maneira tal que num mesmo ambiente de
trabalho eram reunidos negros com línguas, culturas, tradições e religiões diversas,
dificultando a comunicação entre os semelhantes. A aculturação era uma conseqüência
normal entre culturas diferentes obrigadas a conviver. Perderam progressivamente as
identidades originais, mas, nesse processo de transculturação, surgiu nova identidade
negra, resultado tanto da transculturação, como da existência e criação de novas formasde resistência.
Vivendo em péssimas condições nas senzalas, brutalizados e animalizados pelos
senhores, os negros se viam destituídos da sua condição de humanos; não faltaram
estudos que os compararam aos animais, justificando, assim, as condições em que
viviam como sendo “naturais”.
Libertos da situação de cativeiro, quando da promulgação da “Lei Áurea”,
continuaram, porém, excluídos, despossuídos. Todo período que antecede àpromulgação da lei se deu, paralelamente, às mudanças na ordem econômica e política,
que colocavam obstáculos à existência de um país escravagista no cenário mundial. Os
abolicionistas mostravam grande indignação pelas condições de cativeiro dos negros,
mas não puderam pensá-los como indivíduos que deveriam ser inseridos na sociedade.
Assim, supunham que, saindo da condição de escravo, o negro trabalharia como mão
de obra remunerada para seu auto-sustento. Mas grande parte do contingente de cativos
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libertos vagavam desorientados, sem condições para seu auto-sustento, e sem trabalho
no campo, que começava, então, a ser feito pelos imigrantes.
Dadas suas condições de vida, os negros são comparados a animais e vistos como
incompetentes, preguiçosos e indolentes, quando comparados aos europeus que para cá
vinham para trabalhar; restava aos negros o trabalho doméstico, situação que
perpetuava a imagem anterior, em que o negro, tal como uma besta fera domesticada,
trabalha em troca de ração.
Embora juridicamente capazes de ocupar um espaço na sociedade, os negros
eram, de fato, dela excluídos e impedidos de desfrutarem de qualquer benefício social,
foram marginalizados, estigmatizados, marcados pela cor que os diferenciava e
discriminados por tudo quanto essa marca pudesse representar.
Desde então, libertados do cativeiro, mas jamais libertos da condição de escravos
de um estigma, os negros têm sofrido toda sorte de discriminação, que tem como base a
idéia de serem os negros seres inferiores, portanto não merecedores de possibilidades
sociais iguais.
Ainda hoje representam 43% da população deste país, sendo facilmente
identificados não pela sua cor, mas pelas péssimas condições de moradia, saúde e
escolaridade que os acompanha.
Tendo que conviver com a mais cruel forma de discriminação, isto é, a de umracismo encoberto, sutil; em que, embora aparentemente e legalmente amparado e com
os mesmos direitos de qualquer outro cidadão, o negro é tratado como se não o fosse, e
responsabilizado pelo seu déficit em relação aos outros cidadãos: “os negros não têm
força de vontade”.
É sempre visto como bandido, sujo, incapaz, e, por mais esforços pessoais que
tenha feito para conquistar um lugar social melhor, será um indivíduo marcado por essa
cor que não o separa desses implacáveis sentidos de que o configuram o racismo e a
discriminação.
Em função da minha formação como psicóloga, que atua no campo profissional
como analista, e também em função da minha condição de negra, herdeira, portanto, de
todo esse passado histórico, fui levada a refletir sobre a dimensão psíquica da questão
do racismo e sobre as formas pelas quais essa realidade histórico-social do racismo
determina configurações psíquicas peculiares no negro.
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Como se dá, para o sujeito negro, a elaboração, no plano psíquico, dos sentidos
que o racismo traz consigo? Senti necessidade de investigar tais processos, porque
minha hipótese é que vão além de uma pura e simples introjeção; tampouco podem ser
explicados como simples conseqüência de um lugar de inferioridade econômica e
social, embora esta seja a realidade que afeta a maioria da população negra, fruto doprocesso histórico que anteriormente comentamos.
Na situação atual, o negro pode ser consciente de sua condição, das implicações
histórico-políticas do racismo, mas isso não impede que ele seja afetado pelas marcas
que a realidade sócio-cultural do racismo deixaram inscritas em sua psique.
Qual o efeito dessas marcas? Até que ponto não afetam a própria constituição do
negro como sujeito? E, nesse caso, até que ponto sua afirmação da condição negra, na
luta contra o racismo, não seria atravessada por sentidos não elaborados, obscuros,produtos dessas marcas?
O que pretendo, neste trabalho, é levantar subsídios para a discussão dessas
questões.
Teoricamente, tal perspectiva se justifica na concepção de que há uma interação
dialética entre as representações sociais — ideologicamente estruturadas — que são
produto das estruturas sócio-econômicas, e as configurações que constituem o universo
psíquico dos indivíduos.Tal perspectiva foi proposta, primeiramente, pelos freudo-marxistas, como nos
coloca Sergio Paulo Rouanet, ao sintetizar o ponto central dessa concepção:
As condições sócio-econômicas e a ideologia modelam a estrutura psíquica dos homens (...) e a consciência, assim estruturada, percebe oreal de uma forma particular, transformando essa percepção emopiniões e idéias que correspondem às exigências sociais. 1
Tal processo não é imediatamente verificável, pois as representações da estrutura
psíquica dos homens não são puro reflexo das condições objetivas. As estruturas
psíquicas são contaminadas pelas condições objetivas que receberão, no plano
inconsciente, elaboração própria a partir das quais são assimiladas e incorporadas,
tornando os sujeitos cativos e mantenedores de tais condições.
1 Rouanet, S. P. (1987:119).
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Cada contexto histórico, cada época gera a estrutura psíquica necessária para sua
manutenção; as estruturas psíquicas funcionam, assim, como o mediador entre as
condições sócio-econômicas e a ideologia, selecionando algumas percepções,
excluindo outras, construindo, assim, as representações ideológicas que acabam por
funcionar como estereótipos enquanto repertório de representações coletivas.2
Os mecanismos de elaboração que, no plano inconsciente, entram em jogo na
construção das representações ideológicas são da ordem do que Freud chamou os
mecanismos de defesa, a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos
que incorporem impulsos indesejáveis. 3
É o que se verifica no processo de identificação, em que o sujeito introjeta,
parcial ou totalmente, através da imitação ou da incorporação, o objeto amado ou
odiado, ou ambas as coisas simultaneamente, reagindo, assim, ao amor ou ao ódio pelaincorporação das propriedades do objeto: tal processo funciona como mecanismo de
defesa.
Tal mecanismo é o que ocorre, diz Rouanet, no que Anna Freud caracteriza como
a identificação com o agressor, pelo qual “a criança introjeta algumas características
de objetos externos geradores de angústia... (de tal forma que) imitando o agressor,
assumindo seus atributos ou reproduzindo sua agressão, transforma-se, de pessoa
ameaçada, em pessoa que executa a ameaça.” 4
Isto é, cada incorporação de objeto, seja como maneira de preservar
endopsiquicamente o objeto amado, ou como maneira de se defender do objeto hostil,
implica na subversão da pulsão erótica ou agressiva, que impede ao sujeito a percepção
da origem externa do material introjetado, que é, assim, vivido pelo sujeito como sendo
autônomo. Assim, nas identificações pós-edipianas que formam o superego, o sujeito
manterá a ilusão de seguir prescrições e proscrições autodeterminadas, quando estará,
na realidade, seguindo “prescrições e proscrições heterônimas, que emanam da
autoridade paterna introjetada e, através dela, do sistema social e político”. 5
É nesse sentido que, este trabalho tem como objetivo investigar as formas pelas
quais se dá, para o negro, no plano psíquico, a repercussão do racismo e da
2 Rouanet, S. P. (1987:120).3 Rouanet, S. P. (1969).4 Rouanet, S. P. (1987:127).5 Rouanet, S. P. (1987:127).
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discriminação e de que maneira tal repercussão do racismo que afeta o negro enquanto
sujeito produz, para esse sujeito, configurações psíquicas peculiares.
As pesquisas que tratam da questão da negritude, em geral, se concentram no
fenômeno do racismo e da discriminação enquanto fatos sociais, e buscam analisar de
que maneira se manifesta, socialmente, o preconceito contra os negros.
Minha hipótese, porém, é a de que tais fenômenos afetam o negro não só no
plano sociológico, mas também no plano psíquico.
Penso que é importante compreender a natureza e os sentidos dos processos
psíquicos que se passam no sujeito, a partir da experiência psíquica, porque este é
também um dos aspectos do fenômeno do racismo em sua totalidade.
Pretendo, com essa pesquisa, contribuir para a discussão política da questão
negra, através da proposta de consideração, na discussão dessa questão, de que os
efeitos perversos do racismo transcendem (vão mais além) os efeitos socialmente
perversos em que se manifestam com maior visibilidade.
Pretendo, ainda, chamar a atenção para a necessidade de se trabalhar com a
dimensão dessa vivência psíquica específica, própria dos negros, como uma das formas
de resgate da condição subjetiva do negro, para além das reivindicações e lutas
político-sociais.
Para o desenvolvimento desse trabalho, utilizarei fundamentalmente a literatura
psicanalítica. Busco em tal literatura algumas figuras teóricas pelas quais a psicanálise
procura dar conta da constituição psíquica do sujeito enquanto atravessado pela
alteridade.
Recorro, primeiramente, a reflexões próprias do campo da sociologia e da
antropologia, que me permitem questionar as condições em que o negro pode se
representar como indivíduo na sociedade e, em segundo lugar, me permitem pensar a
dimensão significativa do corpo negro no sistema simbólica da cultura.
Em seguida, para aprofundar tal questão e investigar o modo como tais processos
se inscrevem na psique, recorro à literatura psicanalítica para, através das categorias
teóricas pelas quais a psicanálise busca dar conta da constituição psíquica do sujeito
enquanto atravessado pela alteridade, poder compreender o modo pelo qual se dá, para
o negro, tal processo.
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Para a psicanálise, o sujeito é inevitavelmente social e é no espaço da
intersubjetividade que ele se constitui. As relações parentais, longe de se inscreverem
aquém do social na sua amplitude, são relações em que o social como um todo está
presente; através do discurso e das atitudes dos pais, a criança se vê confrontada com a
ordem social como um todo, que está presente na linguagem que constitui a dimensãosimbólica, onde os sentidos sociais estão cristalizados.
As conceituações teóricas de que lanço mão são uma tentativa de buscar
elementos capazes de explicar a natureza dos processos psíquicos que constituem a
realidade subjetiva comum aos sujeitos negros.
Num segundo momento, através de estudos de casos, procuro encontrar nas
vivências e sintomas que se manifestam nos pacientes, a marca da presença de tais
configurações psíquicas.
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Capítulo I
A Constituição doIndivíduo na Sociedade
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1.1 Gênese da Categoria de Indivíduo
Para discutir a noção de indivíduo, recorro à sociologia, que por sua vez se
associa a outras disciplinas, como a psicologia, a história, a filosofia, para melhor
visualizar a complexidade das relações e forças sociais.
A sociologia, por sua vez, se encarregará do estudo das relações entre os
indivíduos, cabendo a outras ciências a reflexão sobre o conceito de indivíduo.
Em “Temas básicos de Sociologia”, Adorno e Horkheimer6 dedicam um capítulo
ao estudo do indivíduo. Os autores começam por pensar a origem do conceito de
indivíduo na Filosofia, a partir de Descartes, que introduz o conceito de autonomia do
eu, no primado do “Eu sou” e do “Eu penso” independente dos sujeitos concretos,
entendido por Descartes com o sum do cogitans, por Fichte como eu absoluto e por
Husserl como consciência pura. São visões que privilegiam o indivíduo isoladamente, e
não em suas relações na sociedade. A Filosofia pensou o indivíduo como algo
concreto, auto-suficiente, uma unidade com propriedades particulares. Dizem os
autores: “Indivíduo é a tradução latina do atomon materialista de Demócrito”7. Para
explicitar essa afirmação, citam Boécio:
Individuum é aplicável de muitas maneiras: dá-se o nome de indivíduoàquele que não pode ser subdividido, de modo nenhum, como a Unidadeou o Espírito; chama-se indivíduo ao que, por sua solidez, não pode serdividido, como o aço; e designa-se como indivíduo aquele cuja
predicação própria não se identifica com outras semelhantes, comoSócrates.
A definição de Boécio acerca do indivíduo busca o singular e o particular, que
evoluíra com Duns Escoto, no início da Escolástica, momento em que em
contraposição ao universalismo medieval, se afirmam os estados nacionais; Escoto
concebe o começo da individuação pela mediação da natureza humana geral, a essentia
communis com a pessoa individual, o homo singularis8.
Leibniz, sem pensar historicamente a produção dos seres organizados sobre a
terra, definiu o indivíduo por meio do seu simples ser. A teoria das mônadas de
Leibniz, isto é, a substância simples, sem partes agregadas de outras substâncias,
6 Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:45).7 Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:46).8 Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:46).
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constitui as coisas de que a natureza se compõe; origina-se aí, segundo Adorno e
Horkheimer9, um modelo conceptual para a visão individualista do homem na
sociedade burguesa. Segundo Leibniz:
As mônadas não têm janelas pelas quais possa entrar ou sair algumacoisa, e as modificações que nelas ocorrem não têm causas externas masderivam, outrossim, de um princípio interno.10
Já que a mônada conserva a propriedade de ser diferente de todas as outras, a
sociedade será a somatória dos indivíduos singulares. Desse ponto de vista, a natureza
de um ser coletivo é o modo de ser das entidades que o formam:
... a essência de um exército não é outra coisa senão um modo de ser doshomens que o formam.11
Sob a ascendência da teoria da concorrência, isto é, do liberalismo, passou-se a
pensar as mônadas como um ser em si, mas graças à filosofia especulativa da
sociedade, demonstrou-se que o indivíduo está socialmente mediado.
Surge, com Hegel, a idéia de que a individualidade, o isolamento, leva à loucura;
precursor de tendências modernas na Psiquiatria, busca explicar que um dos motivos da
doença mental é a falta de contato social; por outro lado, também o absolutismo sem
limite, a resistência contra a individualidade, tem como resultado uma permanente luta
de todos contra todos, conseqüentemente, ninguém desenvolverá verdadeiramente a suaprópria individualidade, cada um pretendendo afirmar sua singularidade sem o
conseguir, porque esbarra na singularidade do outro.
A visão individualista da filosofia foi se transformando numa ciência da
sociedade, tendo as relações entre os indivíduos e a sociedade como seu tema central;
surge então a sociologia como uma via de compreensão de tais relações.
O conceito de indivíduo como unidade social fundamental é posto em causa: “A
vida humana é essencialmente e não por mera casualidade convivência”. 12
Isto é, o homem só se constitui enquanto tal na relação com os seus semelhantes,
e só por eles é o que é; portanto, ele não é uma indivisibilidade e unicidade primárias,
mas está em constante participação e comunicação com os outros:
9 Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:47).10 Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:46).11 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).
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Mesmo antes de ser indivíduo o homem é um dos semelhantes, relaciona-se com os outros antes de se referir explicitamente ao eu; é um momentodas relações em que vive antes de poder chegar, finalmente, àautodeterminação.13
Segundo Adorno e Horkheimer, isto se expressa através do conceito de pessoa,
persona, termo romano para designar a máscara do teatro clássico.
A palavra Persona, em Cícero, que designava a máscara do personagem, usada
pelo ator, o papel a ser representado por alguém, passou a designar o cidadão nascido
livre, como pessoa jurídica, em contraposição com o escravo.
Os autores lembram que, na Antigüidade, o conceito não tinha o sentido da
individualidade substancial da personalidade; a primeira referência nesse sentido será
encontrada em Boécio, no século VI.14
O conceito personalista da pessoa tem origem nos dogmas cristãos, com a noção
de imortalidade da alma individual; mas foi na Reforma protestante que a pessoa,
composta num dado momento do desenvolvimento histórico do indivíduo, encontra sua
enunciação social. No entanto, os autores ressalvam que não pretendem significar com
esta afirmação que a concepção teológica tenha sido responsável pela transformação do
sentido da palavra persona e nem que o desenvolvimento histórico-social do indivíduo
tenha sua origem no cristianismo, tal como concebe Hegel na construção da História
universal; mas, observam, até Hegel a discussão teórico-sociológica do indivíduoacontecia nos limites desses princípios:15
A definição do homem como pessoa implica que, no âmbito dascondições sociais em que vive e antes de ter consciência de si, o homemdeve representar determinados papéis com os seus semelhantes.16
Como resultado dessa representação de papéis e em relação com os seus
semelhantes é que ele se constitui no que é. Os papéis, por outro lado, se definem na
relação: mãe de /, filho de /aluno de /, professor de /, médico de /, paciente de. Isto é,as relações não são, para o indivíduo, algo extrínseco a ele, mas algo intrínseco que o
determina como filho, aluno, doente etc.
12 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).13 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).14 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).15 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).16 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).
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24
A pessoa, portanto, é, em primeiro lugar, uma entidade biográfica, uma categoria
social, que só se define na relação com outras pessoas; em segundo lugar, a pessoa é
um ser social: é no contexto social que a “máscara social do personagem” é também
um indivíduo; e em terceiro na relação entre o indivíduo e a sociedade está diretamente
ligada à natureza.
O conjunto desses três momentos do indivíduo, no seu caráter dinâmico, gera leis
que garantem a interação entre indivíduo, sociedade e natureza; cabe à sociologia
observar como acontece essa interação.
Adorno observa que Marx e Engels enfatizaram essa necessidade da sociedade
que têm os homens para a satisfação de suas necessidades vitais na natureza:
... o primeiro pressuposto de toda a História humana é naturalmente a
existência de indivíduos humanos vivos.17
Para Comte, as influências de certas condições naturais, geofísicas e climáticas
incide diretamente nas condições sociais; nasceu uma subdisciplina da geografia, a
Ecologia. Alguns estudiosos deram um valor absoluto às condições físicas da
convivência humana, desviando o centro da investigação do campo social, relacional
propriamente dito.
A Sociologia Clássica, portanto, está direcionada mais para a totalidade social e
seu movimento do que para o indivíduo.
Adorno e Horkheimer apontam que não é aleatória a
... doutrina do primado necessário do todo sobre a parte, expressa naPolítica de Aristóteles, e que se encontra pouco depois da definição
formal do zoon politikon, isto é, da natureza social do homem.18
É na “convivência com outros que homem é homem”, afirmação válida para
Platão e Aristóteles, visto que para esses filósofos é na comunidade da pólis que a
natureza humana se realiza: “O homem não social só poderá ser um animal ou um
deus” 19.
Esta idéia é retomada por Kant quando, numa referência direta à fórmula
aristotélica, considera o homem um “ser destinado à vida em sociedade” e atribuí-lhe
17 Marx, K. e Engels, F. A ideologia alemã, citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:56).18 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:49).19 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:49).
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uma “tendência associativa”. Só em sociedade o homem é capaz de desenvolver todo o
seu potencial natural.
No entanto, as condições para tal desenvolvimento implicam não somente a
convivência enquanto tal, mas uma convivência organizada:
O homem não foi predestinado à vida em rebanho, como os animaisdomésticos, mas em colmeia como as abelhas.20
Adorno observa que Hegel, embora um crítico rigoroso da filosofia prática de
Kant, está de acordo com Kant no que diz respeito a essa idéia mas, em sua crítica,
aponta o fato de que a filosofia moral de Kant deu muito pouca importância aos
conflitos societários, em favor da subjetividade abstrata da pessoa moral na sua
unicidade.
A filosofia de Hegel contesta a idéia da pura individualidade, em que os
indivíduos seriam seu próprio centro, como em Schlegel, para quem o homem se basta,
tira de si mesmo todo sentido de ser sem qualquer limite imposto pela sociedade, uma
individualidade que não se dá conta do outro, nem na imitação nem na identificação, e
não está subordinada a nenhuma lei universal.
Adorno chama a atenção para uma certa semelhança entre Schlegel e Nietzsche.
Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche apresenta um “indivíduo soberano” que só é
igual a si mesmo,
... que voltou a libertar-se da moral dos costumes, um indivíduoautônomo e super-moral, o homem de vontade própria, extensa eindependente, capaz de cumprir as suas promessas.21
Para a Sociologia, a sociedade tem prioridade em relação ao indivíduo,
concepção que se origina no momento da Revolução Francesa. É quando Auguste
Comte fala de uma
... impulsividade social da humanidade, em virtude de uma tendênciainstintiva para a vida em comum, independentemente de qualquerdeliberação pessoal e, com freqüência, contrária aos interessesindividuais mais vigorosos.22
20 Kant, E. citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:50).21 Nietzsche, F. Genealogia da Moral; citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:50).22 Comte, A.; citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956).
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26
O conceito comteano de indivíduo como categoria da sociedade está próximo de
uma idéia ainda hoje corrente de que o indivíduo é um dado da natureza, tendo como
premissa o fato de que todo homem vem ao mundo como indivíduo, como ser
biológico; portanto, sua natureza social seria secundária.
A natureza biológica é um fato e a sociologia crítica leva em conta esse fator,
para não privilegiar tão somente a comunidade social. No entanto, o conceito de
individuação biológica é muito vago e indeterminado, não possibilitando a expressão
do que os indivíduos efetivamente representam.
A existência natural do indivíduo é mediatizada pelo gênero humano e,
conseqüentemente, pela sociedade; portanto, o indivíduo não é só uma entidade
biológica.
Anteriormente, a linguagem filosófica e a linguagem comum definiam o
indivíduo como “auto-consciência”:
Só é indivíduo aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelececomo norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio.23
No entanto, a autoconsciência da singularidade do eu não é suficiente por si só
para fazer um indivíduo; o indivíduo é uma auto-consciência social.
Adorno e Horkheimer citam a definição de Hegel para auto-consciência: “a
verdade da consciência do próprio eu”, mas “a sua satisfação só é alcançada numa
outra consciência.” 24
Nessa relação de uma auto-consciência com outra, o indivíduo aparecerá como
nova consciência, da mesma forma que o universal, a sociedade, como uma unidade
das mônadas, só se fará presente na medida em que “o eu somos nós e nós o eu”.
O trabalho do indivíduo para as suas necessidades tanto é satisfação das
suas necessidades como das dos outros; e a satisfação das suasnecessidades só é conseguida em virtude do trabalho dos outros.25
Adorno lembra que este motivo reaparece em Marx:
23 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).24 Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956).25 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).
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27
O homem Pedro só se refere a si próprio como homem através darelação com o homem Paulo, seu semelhante.26
A crença na independência absoluta do ser individual com relação à sociedade
como um todo é falsa, concluem os autores.
O indivíduo enquanto um ser social é o contrário do ser natural, porque no seu
processo de desenvolvimento ele se distancia paulatinamente das relações naturais, por
estar desde a sua gênese referido à sociedade.
Quanto mais o indivíduo é reforçado, mais cresce a força da sociedade,graças à relação de troca em que o indivíduo se forma.27
Mas as relações entre indivíduo e sociedade são tensas e conflituosas.
A Sociologia enfatizou a força da sociedade sobre o indivíduo, como um alertacontra a ilusão de que o homem chegou ao que é por sua própria atuação, natureza e
psicologia. Essa visão sociológica mostra uma sociedade que pressiona violentamente
o indivíduo, e as reações individuais são contidas de modo a esconder as
responsabilidades da sociedade, que as colocam como um problema de ordem
psicológica.
Poderíamos pensar que a visão sociológica tende a reduzir o homem a um ser
genérico, ainda que ser genérico de uma organização complexa onde o homem é um
representante impotente dessa sociedade. Mas, evidentemente, o conceito puro de
sociedade é tão abstrato quanto o de indivíduo, portanto a oposição entre sociedade e
indivíduo deve ser considerada com especial atenção. É preciso uma análise das
relações sociais e da configuração que o indivíduo assume nessas relações.
A compreensão da relação entre indivíduo e sociedade tem sido evitada pela
sociologia positivista, com sua concepção de que “o homem só atinge a sua existência
própria como indivíduo numa sociedade justa e humana.” 28
Mas, com o advento da concorrência, com a falta de limites das ordens
correlativas e o início da revolução técnica na indústria, se desenvolveu uma dinâmica
social na sociedade burguesa que obriga o indivíduo econômico a lutar
inexoravelmente por interesses de lucro, sem pensar no bem coletivo.
26 Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).27 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:53).28 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:53).
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28
A ética protestante e o conceito burguês-capitalista de dever reforçam esse tipo
de atuação:
O ideal anti-feudal da autonomia do indivíduo compreendia a autonomiada decisão política dos indivíduos; no contexto econômico, porém,
transformou-se numa ideologia que exigia a manutenção da ordemvigente e o constante recrudescimento da capacidade de realização produtiva.29
Uma vez interiorizado esse ideal, a realidade se transforma “em aparência e a
aparência em realidade”: surge então a existência absolutamente solitária do
indivíduo, dependente da sociedade, que o tolera e o anula simultaneamente:
O meio ideal da individuação, a Arte, a Religião, a Ciência, retrai-se edepaupera-se como posse privada de alguns indivíduos, cuja
subsistência só ocasionalmente é garantida pela sociedade. 30
Assim, a sociedade, que se constituiu como conceito e práxis em função do
desenvolvimento do indivíduo, desenvolve-se à revelia dele, se distanciando cada vez
mais do indivíduo, que ignora esse funcionamento do qual está intrinsecamente
dependente. 31
1.2 A Constituição do Indivíduo na Classe
Tal hiato entre indivíduo e sociedade será ultrapassado pelo conceito de classe
social, que permite pensar a constituição do indivíduo na classe.
Entre os estudiosos desta questão, em especial os marxistas, não há um consenso
em torno do conceito de classes sociais, nem mesmo na obra de Marx encontramos o
seu significado definido, afirma Ridenti32.
O termo “classe” em Marx, aparece em vários sentidos: tanto num sentido
“genérico-abstrato”, quanto num sentido “específico-particular”. No primeiro, se
29 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).30 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).31 Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).32 Ridenti, M. (1994:13).
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29
destacam as determinações comuns e gerais, próprias de cada época; no segundo, “o
fenômeno específico determinado pela produção capitalista moderna” 33.
Num sentido mais amplo, o termo classe identifica os grandes grupos humanos
que lutam e se relacionam entre si para a produção do sustento próprio, criando
relações de dominação, apropriando-se do excedente gerado para além do mínimo
necessário para a subsistência.
Desta forma, as classes estão presentes em todas as sociedades, não importa se
estruturadas em castas ou estamentos ou nas sociedades de classe modernas. É nesse
sentido, diz Ridenti, que foi formulada a conhecida frase do Manifesto Comunista,
quando se diz que “... a história de todas as sociedades até nossos dias tem sido a
história das lutas de classes.”
A rigor, só faria sentido falar em classes nas sociedades industriais capitalistas,
quando aparece uma classe burguesa, que detém em suas mãos a propriedade dos
meios de produção. Esta classe investe capital para valorizá-lo mediante a extração de
um “sobre-trabalho” não remunerado, dado pelo emprego de uma classe de
trabalhadores assalariados, “livres”, sem propriedades e sem vínculos com os patrões
ou com a terra ou outros meios de produção.
São trabalhadores obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviverem, só
formam uma classe propriamente dita quando se associam para lutar contra aexploração a que são assujeitados. Neste sentido específico, apareceriam as classes, em
“O Capital”, de Marx.
Seria impróprio, diz Ridenti, pensar, como sugerem alguns autores, a questão da
“classe em si”, porque na realidade isso implicaria pensar questões que dizem respeito
à prática política e à inter-relação entre “classe em si” e “classe para si”; nesse caso,
seria um artifício analítico, porque é impossível fazer uma separação do econômico e
do político. Em “O Capital” e outros livros de Marx, pode-se concluir que seriam três
as “grandes classes”: a “classe dos capitalistas”, proprietários de capital; a “classe
dos proprietários” fundiários, proprietários de terra; e a “classe dos trabalhadores
assalariados”, detentores da força de trabalho. Tais classes têm como rendimentos,
respectivamente, o lucro, a renda da terra e o salário.
33 Ridenti, M. (1994:13).
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30
Logo, são três as grandes classes ligadas ao modo de produção capitalista; são as
únicas que poderiam ser chamadas de classe em sentido estrito.
Além das três classes em sentido estrito, Marx fala de classes intermediárias e de
transição. Ridenti, citando Ruy Fausto, dá um apanhado das classes sociais fora do
âmbito das três classes básicas, com base em diferentes obras de Marx.
À parte o lumpenproletariado formado por marginais ao sistema produtivo,
mendigos, ladrões, prostitutas etc., que conseguem seus rendimentos de maneira
estranha às relações capitalistas, as classes, fora do âmbito das três principais classes,
seriam:
1. A classe dos camponeses e artesãos, que se formam a partir das relações de
circulação simples, são produtores de mercadoria.
2. A classe de trabalhadores improdutivos, que não estão fora do sistema, mas
não estão ligados à produção simples, fazem parte da “exterioridade no
sistema”. Seus salários são oriundos dos rendimentos do sistema (lucro,
renda fundiária e salário), grupo que Marx chamou de “improdutivos
políticos”, os assalariados do Estado e os domésticos.
3. A classe dos trabalhadores que estão inclusos no processo produtivo, mas
que excedem a classe dos trabalhadores assalariados por estarem além de
certos limites de qualificação ou de poder no processo de trabalho ou deremuneração.
4. E, por último, o grupo dos profissionais liberais, advogados, médicos,
artistas, etc. O trabalho desses profissionais liberais não implica uma relação
salarial, porque o profissional liberal é dono dos seus meios de produção, ele
presta ou vende serviço.
Sabe-se que o dinheiro funciona como mediação necessária das relações sociais
no capitalismo, é um “equivalente geral que representa a intercambialidade de todasas mercadorias entre si” 34
As mercadorias se apresentam como tendo valor em si mesmas, valor
representado na relação de troca pelo preço da mercadoria. A relação cambial é
34 Ridenti, M. (1994:87).
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mediadora da troca, desta forma evidencia-se o valor que nunca é o que na verdade é, o
resultado do trabalho social:
A forma do valor (valor de troca) oculta necessariamente seu conteúdo:as relações sociais de produção, ou relações de trabalho entre classes
opostas, aparecem como relações entre coisas trocadas no mercado eque valem em si mesmas. 35
As relações sociais no modo de produção capitalista se apresentam sob a forma
de relações naturais entre as coisas.
No modo de produção capitalista a mercadoria assume um caráter místico e
fantasmagórico, que encobre os fundamentos das relações de classe; Marx chamou esse
processo de fetichismo da mercadoria:
... as relações sociais de classe no capitalismo são representadas pelasrelações de troca de mercadorias entre supostos proprietários ‘livres eiguais’ para competir no mercado. 36
A representação da qual se fala encobre o conflito entre o capital e o trabalho,
que subjaz nas relações de concorrência mercantil, por si só a representação não dá
conta de promover e conciliar os interesses de classe, nem tão pouco gera uma relação
harmoniosa entre capital e trabalho.
Todos os conflitos e competições são mediados por uma instância superior, o
Estado.
O Estado assume uma representação do conjunto da sociedade, não expressando
nunca as incompatibilidades sociais. O Estado se apresenta como “uma forma
autônoma”, neutra e acima dos interesses dos indivíduos que se fazem representar nele.
Ele aparece como uma força superior que está localizada fora dos indivíduos;
Marx chamava a isso “coletividade ilusória”, que paira acima dos interesses
particulares e gerais, fetichismo do Estado.
O Estado não só aparece como representando o bem comum, como também
enquanto o guardião da vontade de todos os cidadãos, mantendo-se acima deles, agindo
de maneira neutra e imparcial, o que o autoriza para resolver as “pendências entre os
35 Ridenti, M. (1994:86).36 Ridenti, M. (1994:88).
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32
sujeitos de direito, elaborando, julgando e depois executando leis gerais”,
hipoteticamente em benefício da sociedade como um todo.
Cumpre, portanto, a ele, uma função mediadora entre indivíduos-cidadãos-
proprietários, sem distinção de classe.
A execução e formulação das leis que regem o Estado são assumidas pelos
cidadãos que elegem representantes nos poderes legislativo e executivo:
... graças a essa operação ideológica, os membros da sociedade civil semostram aglutinados numa comunidade originária, a encobrir suasdiferenças efetivas. 37
Isto é, a representação dos cidadãos no Estado é mediada pelos seus
representantes políticos; desta forma está posta a possibilidade de representação de
diferentes indivíduos, de diferentes classes, dentro do Estado.
Existe uma idealização, ou melhor, uma mistificação das classes sociais, quando
se fazem representar no Estado através de partidos, sindicatos ou lideranças isoladas;
cada classe busca priorizar sua individualidade através das organizações que a
representam, negando as bases diferenciais em que se baseiam.
O Estado, portanto, a partir dessa perspectiva, é o resultado dos antagonismos de
uma sociedade civil. O Estado aparece como uma entidade acima de qualquer
diferença, representante do conjunto da sociedade, uma entidade acima de interesses
particulares, como se tivesse vida própria e não fosse o resultado das diferenças de
classe.
Ele é a representação política de uma sociedade civil onde a burguesia é a classe
dominante, que exerce seu poder não só econômico, mas político, cultural, ideológico
etc. Sua hegemonia enquanto classe não é só porque detém o poder político e
econômico, mas porque seus valores e idéias são dominantes e preservados pelos
dominados até quando lutam contra a dominação exercida pela burguesia.Para Marx, uma classe se constitui enquanto “classe para si” quando propõe a
sua organização política através de um processo de conscientização e tomada do poder
político. A representação seria, portanto, parte do processo de vir a ser da classe
enquanto tal “em si” e “para si”.
37 Gianotti, J. A. (1983:295), citado em Ridenti, M. (1994:92).
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33
1.3 O Lugar do Negro na Sociedade
A partir das considerações teóricas até aqui apresentadas, gostaria de levantar
algumas questões relativamente ao lugar do negro na sociedade. Para tanto, cito uma
passagem de Schwarcz que aponta para um aspecto que, a meu ver, pode explicar os
fenômenos que pretendo apontar. O título do artigo de Schwarcz, “Ser peça, ser coisa:
definições e especificidades da escravidão no Brasil” já designa aquilo que, penso, está
na gênese da dificuldade da constituição do lugar social do negro:
É conhecido um documento que orienta os proprietários na compra de‘novas peças’ e alerta para o perigo de calotes. Assim aconselha o
Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades,escrito em 1839 por I.B.A. Imbert: ‘Circunstâncias a que se deveorientar toda a pessoa que deseja fazer uma boa escolha de escravos:
pele lisa, não oleosa, de bela cor preta, isenta de manchas, cicatrizes ouodores demasiado fortes; com as partes genitais convenientementedesenvolvidas: isto é, nem pecasse pelo excesso, nem pela cainheza; obaixo-ventre não muito saliente; nem o umbigo muito volumoso; peitocomprido, profundo, sonoro, espáduas desempenadas, sinal de pulmõesbem colocados; pescoço em justa proporção com a estatura, carnes rijase compactas; aspecto de ardor e vivacidade: reunidas ter-se-á umescravo que apresentará ao senhor todas as garantias desejáveis desaúde, força e inteligência. 38
Em função desse passado histórico, marcado pela desumanização que, como
conseqüência, constitui um obstáculo à construção da individualidade social, o negrotem o seu processo de tornar-se indivíduo comprometido. Embora haja um processo
efetivo em o negro buscar constituir-se como tal, tal processo é conturbado, esbarra em
inúmeras dificuldades.
O passado histórico da escravidão é constitutivo desse processo. Pois, como diz
Schwarcz:
... fazer história não é um exercício exclusivo do passado ou nomearheróis em lugar de questões que levem à nossa própria reflexão. A
escravidão existente no Brasil faz parte do passado e do presente, já quese inscreve em nossas religiões mestiças, em nossos costumes e
preconceitos. 39
Se o negro, de um lado, é herdeiro desse passado histórico que se presentifica na
memória social e que se atualiza no preconceito racial, vive, por outro lado, numa
38 Schwarcz, L. M. (1996:14).39 Schwarcz, L. M. (1996:28).
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34
sociedade cujas auto-representações denegam esse mesmo racismo, camuflando, assim,
um problema social que produz efeitos sobre o negro, afetando sua própria
possibilidade de se constituir como indivíduo no social; assim, não se discute o racismo
que, na condição de um fantasma, ronda a existência dos negros.
Se antes de ser indivíduo, o homem é um ser entre semelhantes, que se relaciona
com os outros, enquanto seres iguais, antes de se referir a si mesmo, em que condições
uma mercadoria, uma “peça” pode se auto-referenciar no outro?
Esse processo de desumanização pelo qual passou o negro tem como
conseqüência, conforme apontei, bloquear o processo de constituição da individuação,
na medida em que bloqueia a possibilidade de identificação com os outros nas relações
sociais. A única esfera de identificação possível seria com os outros negros, todos
identificados entre si e pela exterioridade social como não-indivíduos sociais, porque“coisas”, “peças”, “mercadorias” possuídas por aqueles que, estes sim, eram
indivíduos na sociedade.
A instituição da escravidão construiu, para os negros, a representação segundo a
qual eram seres que, pela sua “carência de humanização” (porque portadores de um
corpo negro, que expressava uma “diferença biológica”), inscreviam-se na escala
biológica num ponto que os aproximava dos animais e coisas, seres esses que,
legitimamente, constituem objetos de posse dos “indivíduos humanos”.
O negro não era persona. Não era um cidadão nascido livre, como pessoa
jurídica; na condição de escravo, não era pessoa; seu estatuto era o de objeto, não o de
sujeito. Assim, o negro foi alijado do corpo social, única via possível para se tornar
indivíduo.
Mais tarde, com a abolição da escravatura e a constituição da República, a
condição jurídica de cidadão foi estendida aos negros. Mas, como inscrever-se, ao nível
das representações, nesse lugar social se, até “ontem”, estava-se excluído dele?
Por outro lado, tal momento coincide com a fase inicial do modo de produção
capitalista no Brasil. Assim, o negro se vê na situação de, ao mesmo tempo em que
adquire o estatuto de cidadão, entrar no registro social da categoria de trabalhador livre,
proprietário de sua força de trabalho que, assim, pode livremente vendê-la no mercado.
Mas, como entrar nesse registro se, até “ontem”, não se pertencia à categoria dos
agentes econômicos, já que se estava catalogado nas outras categorias — mercadoria
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35
e/ou bem de capital (isto é, instrumento de produção) — em suma, na categoria das
coisas?
Sabemos que só faz sentido falar em classe em sociedades industrializadas. No
entanto, o negro já tinha, na escravidão, um trabalho no campo, além de ser artesão ou
serviçal doméstico. Em tese, estavam dadas as condições para que os negros,
identificando-se entre si pela ocupação de um mesmo lugar social, determinado por sua
condição de “força de trabalho”, se auto-representassem como classe, por contraste
com outros grupos sociais em relação aos quais se diferenciariam pela posição social e
interesse. Mas, na realidade, a emergência de tal tipo de representação de classe era aí
impossível, dado o fato de que faltava aquilo que é sua premissa básica: o estatuto de
indivíduo, persona, que para o negro, enquanto escravo, estava excluído.
A libertação da escravatura não significou para o negro, ingresso na classetrabalhadora; ao contrário, tal processo foi vivenciado como um abandono: abandonado
pelos senhores, ele se tornava um peso, um excedente na estrutura social.
O negro, conseqüentemente, veio a ocupar o que, modernamente, se
convencionou como lumpenproletariado (marginais, mendigos, prostitutas, etc.), grupo
formado por marginais ao sistema produtivo, mesmo atualmente, grande parte da
população negra se encaixa nessa categoria; ou, pelo menos, é assim que, nas
representações sociais, se constitui a imagem da população negra.
Pós o período abolicionista, a grande massa negra, portadora de uma força de
trabalho não qualificada relativamente ao processo industrial, permaneceu literalmente
à margem do processo de socialização porque alijada do processo de produção.
É nesse sentido que pretendo aqui pontuar, simultaneamente, dois aspectos: de
um lado, a dificuldade, para o negro, de construir sua identidade social enquanto negro,
enquanto indivíduo pertencente ao grupo dos negros; de outro, o mesmo tipo de
dificuldade em se constituir como indivíduo no interior do corpo social como um todo,
pelas identificações com seus semelhantes sociais. Tais dificuldades são o subproduto,de um lado, do “não-lugar” social do escravo, cuja identidade não correspondia a um
lugar de sujeito, no corpo social, mas a um lugar de “peça”, objeto; de outro, ao fato
de que, tendo adquirido, pós-escravidão, o estatuto jurídico de cidadão, portanto, o
reconhecimento de seu lugar de indivíduo social, não pôde, por outro lado, identificar-
se com esse lugar no plano sócio-econômico.
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A conseqüência disso é que o negro, no seu processo de tentar se constituir como
indivíduo social, desenvolveu um horror a se identificar com seus iguais, pois estes
representam, para ele, o retorno de um sentido insuportável, que tenta recalcar: a
gênese histórico-social de sua condição de negro, que o remete ao estatuto de “peça”,
em primeiro lugar; ao estatuto de “lumpem” , em segundo lugar.
Como resposta, o negro desenvolve uma identificação fantasmática com a classe
dominante, cujo emblema é o ideal imaginário da brancura. Nesse processo, o negro
talvez reproduza aquilo que segundo Adorno, é o enunciado tácito que a dominação
produz:
(...) os negro, é preciso conservá-los em seu lugar (...)40
Que lugar é esse?
40 Adorno, T. W. (1969:157).
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Capítulo II
As Representações Sociais
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2.1 A Cultura como Sistema de Significações
As categorias de indivíduo ou de classe, embora se constituam a partir das
estruturas sociais e econômicas, são inseparáveis das formas de representação pelasquais as “mônadas” podem se reconhecer como indivíduos na sociedade e como
membros de uma determinada classe.
É no campo da antropologia que a vida social é pensada como um sistema de
significações, que corresponde à noção de cultura. A cultura funciona como uma grade
que incide sobre um território indistinto, seccionando aí partes e estabelecendo, entre
as partes, contrastes e diferenças de que resulta a constituição do sentido. É o que nos
fala José Carlos Rodrigues em “O Tabu do Corpo”:
(...) essa atribuição de sentido ao mundo só se torna possível porque asociedade é, ela mesma, um sistema estruturado cujos componentesrelacionam-se segundo uma determinada lógica, lógica esta que éintrojetada nas mentes dos indivíduos e, por esse caminho, ‘projetada’,sobre o mundo, na medida em que este, para ser apreendido pelosindivíduos, deve ser representado em suas mentes e, portanto,‘concebido’. 41
Existe na antropologia, modernamente, uma tendência a visualizar a vida social
como um sistema onde a razão de ser dos elementos que o constituem é significar; asrelações entre esses elementos significantes são produtoras de significação.42
Segundo Rodrigues, Lévi-Strauss, ao propor, no campo da antropologia, tomar-se
como ponto de referência a teoria saussuriana da linguagem, pôs em jogo uma
concepção da sociedade humana que tem, como principal característica o postulado de
que:
... o comportamento e as relações sociais constituem uma linguagem. 43
Baseando-se em Lévi-Strauss, Rodrigues diz que a ciência social contemporânea
tem uma orientação mais próxima da sociedade humana, tendo em vista que o objeto
da Lingüística é, entre os fatos sociais, o mais legitimamente humano. 44
41 Rodrigues, J. C. (1983:43).42 Rodrigues, J. C. (1983:9).43 Rodrigues, J. C. (1983:9).44 Rodrigues, J. C. (1983:9).
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Um dos pontos que fundamenta a teoria de Lévi-Strauss é a de que a atividade do
espírito humano é a de um estruturador inconsciente, como um regulador entre o
homem e o mundo, não para o simples controle da natureza ou dos eventos, mas
porque necessita determinar e sistematizar.
A Cultura, para Lévi-Strauss, é o resultado privilegiado da atividade do espírito
humano, na medida em que consiste
... na substituição do aleatório pelo organizado, assegurando assim aexistência do grupo humano como grupo.45
A função desse processo de organização que a cultura envolve, diz Rodrigues,
corresponde à necessidade, para o homem, de atribuir sentido, e se manifesta, no
sistema de significações que constituem a estrutura cultural da sociedade como:
O reconhecimento de que em sutis diferenças e nuances de olhar, de posturas, de maneiras de comprimentar, de atividades econômicas, de procedimentos rituais, exprime-se um juízo acerca das relações queexistem entre quem se olha, se comporta, se comprimenta, trabalha ouage e acerca do relacionamento entre estes e outros que não serelacionam diretamente com os primeiros.46
Para a teoria antropológica de Lévi-Strauss, a organização se funda num conjunto
de normas que se fixam, instituem e estabelecem valores e significações que facilitam
a comunicação dos indivíduos e grupos de um dado terreno comum; de modo que asrelações sociais que aparecem como resultado de uma realidade “objetiva”, só se dão
enquanto tal porque são “concebidas”; enquanto concebidas, não formam uma
realidade “objetiva”, porque só existem na consciência ou inconsciência de um sujeito
particular.
Sendo assim, a sociedade é, fundamentalmente, concebida; não é uma “coisa”, é
uma construção do pensamento, uma entidade com sentido e significação:
A cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um mapa queorienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social.47
O conjunto das representações que constituem a cultura está condicionado a uma
lógica, que determina que viver em sociedade é estar “sob a dominação dessa lógica”:
45 Rodrigues, J. C. (1983:10).46 Rodrigues, J. C. (1983:10).47 Rodrigues, J. C. (1983:11).
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os indivíduos se comportam segundo essa lógica, muitas vezes sem ter consciência
disso. Disso resulta que a vida coletiva, assim como a vida psíquica dos indivíduos, se
faz de representações, ou seja, de figurações mentais. Os sistemas de representação
historicamente existentes tiveram sua origem no relacionamento dos indivíduos e dos
grupos sociais entre si, processo que se dá de forma complexa: não corresponde a umarelação causal simples, mecanicista, empírica, mas depende de fatores os mais
diversos.
Quando estabelecidos os sistemas de representação, sua lógica passa a ser
introjetada, pela educação, nos indivíduos, de maneira a estabelecer, nestes,
semelhanças essenciais que a vida no coletivo presume e que constitui a garantia de
homogeneidade para o sistema social: é o que garante o processo de socialização dos
indivíduos.
Os sistemas de representação são, via de regra, pensados como originados da
morfologia social, isto é, das formas da vida social, mas essa relação não é tão direta
quanto possamos ser tentados a pensar.
As criações míticas, artísticas, rituais, as crenças, os valores e os costumes, diz
Rodrigues,
...não têm um caráter instrumental e pragmático, mas sim metafórico e
metonímico, inconscientes no maior número de vezes possível.
48
As representações, segundo Rodrigues, funcionam como redes, cujas malhas
instauram os domínios da experiência para além de um terreno anteriormente
indiferenciado e estabelecem os limites dos comportamentos dos indivíduos e dos
grupos:
... como códigos constituídos, aplicam-se a esses componentes paradecifrá-los pois, ao dividir os domínios da experiência , os sistemas derepresentação estabelecem cortes e contrastes e instituem diferenças.49
Citando Saussure, Rodrigues reitera que é a diferença que faz o sentido.
Os sistemas de representação, ao funcionarem dessa forma, se transformam em
sistemas de classificação; daí o dito “mundo real” ser inconscientemente construído “a
partir dos códigos da sociedade”.
48 Rodrigues, J. C. (1983:12).
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A natureza humana não sabe lidar com o caos; o homem tem medo de se ver
frente àquilo que ele não controla, seja tecnicamente ou simbolicamente:
Tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está àmargem das normas, tudo o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é
anômalo, tudo o que é desestruturado, pré estruturado e antiestruturado,tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e previsível e oque está longínquo e fora de nossas preocupações, tudo o que estásimultaneamente em nossa proximidade imediata e fora do nossocontrole, é germe de insegurança, inquietação e terror: converte-seimediatamente em fonte de perigo.50
Desse modo, a cultura funciona, para o homem, como um escudo que o protege
da possibilidade de ter uma experiência que escape ao estabelecido pelas codificações
do grupo social, defendendo-o do pavor do isolamento e da desordem, dando
legitimidade às estruturas institucionais.
Contraditoriamente, a sociedade precisa de fenômenos que ela mesma rejeita,
pois é através deles que expressa sua positividade, é por contraste com estes fenômenos
que seus conteúdos expressos ganham sentido.
A cultura, portanto, funda a “natureza do homem”, que tem como base as
condições orgânicas e sociais dialeticamente relacionadas:
Não há comportamento humano fora da Cultura, ou resultante de
qualquer abstração que se faça desta.51
A cultura se identifica enquanto tal em oposição à natureza, assim como uma
cultura em particular se reconhece como tal em oposição a uma outra cultura. É a
relação dual entre natureza e cultura que traça o perfil de um sistema social e o
estabelece como um bloco significativo. Este bloco significativo tem suas divisões
internas que vão significar outros contrastes e outras oposições. O sagrado e o profano
fazem parte desse bloco, como os mais importantes “articuladores do sentido na
estrutura social”.
O sagrado se faz representar por objetos de interdição; em contrapartida, o
profano é aquilo a que estas interdições se aplicam. A relação que se estabelece com o
sagrado é não permitir que esse entre em contato com o profano:
49 Rodrigues, J. C. (1983:12).50 Rodrigues, J. C. (1983:15-16).51 Rodrigues, J. C. (1983:19).
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Estas duas interdições configuram o que, na literatura etnológica,classificou-se de tabu. O tabu isola tudo o que é sagrado, inquietante,
proibido, ou impuro; estabelece reserva, proibições, restrições; opõe-seao ordinário, ao comum, ao acessível a todos.52
Objetos e pessoas tabu exercem uma força e energia extraordinária; sempre
pronta a recair sobre o transgressor que não se armou dos cuidados rituais de conduta
frente ao objeto sagrado.
O sagrado tanto expressa o que é importante positivamente como negativamente
para a estrutura social, pois a ordem dessa estrutura depende do respeito ou temor a
determinadas idéias, coisas, pessoas ou símbolos.
Esta distância entre sagrado e profano não é a única forma de manifestação da
distância social, que se manifesta também no contraste entre o distante e o próximo.
Quando alguém representa o não viável o não desejável, (por exemplo, “burro”,
“vagabundo”, etc.) ele deve ser distanciado, sempre em tons ofensivos.
Da mesma maneira, tons elogiosos aproximam o que é visto como desejável (por
exemplo: “fulano é um anjo”). O sistema de distanciamento é defendido, diz
Rodrigues, por uma série de racionalizações ideológicas (“pureza de sangue”,
“destino”, “ordem das coisas”, “vontade de Deus”, “igualdade de oportunidades”) e
por uma simbologia que lhe credita uma energia especial (mana), própria do sagrado,
de maneira a fazer com que os extremos coincidam com os pólos do sagrado.53
Desse modo, no dia-a-dia, o indivíduo estabelece um conjunto de tipificações,
que lhe dão uma consciência de “nós” relativamente a um grupo de indivíduos que se
reconhecem como pertencendo ao mesmo grupo, com coisas comuns, até indivíduos
com quem se relaciona vagamente, indiretamente, abstrações anônimas, em relação aos
quais ele não se vê em um “nós”, não se reconhecendo enquanto elemento desse
grupo. A estrutura social supõe o conjunto de tipificações polares.
52 Rodrigues, J. C. (1983:26).53 Rodrigues, J. C. (1983:31).
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2.2 O Corpo enquanto Signo
Essa estrutura social acaba por se reproduzir no corpo humano, de forma a dar-
lhe um sentido em particular, o que certamente irá variar de acordo com os mais
diferentes sistemas sociais:
Como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano ésocialmente concebido. 54
A análise da representação social do corpo possibilita entender a estrutura de uma
sociedade. A sociedade privilegia um dado número de características e atributos que
deve ter o homem, sejam morais, intelectuais ou físicas; esses atributos são,
basicamente, os mesmos para toda a sociedade, embora possam se nuançar para
diferentes grupos, classes ou categorias que fazem parte da sociedade.
O corpo humano, para além de seu caráter biológico, é afetado pela religião,
grupo familiar, classe, cultura, e outras intervenções sociais. Assim, cumpre uma
função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia ou não da integridade de
uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou de afastamento em relação ao
conjunto de atributos que caracterizam a imagem dos indivíduos em termos do espectro
das tipificações. É assim que, em função da aparência (atributos físicos), alguém é
considerado como um indivíduo capaz ou não de cometer uma transgressão (atributosmorais), por exemplo.
Isto significa que o corpo está investido de crenças e sentimentos que estão na
origem da vida social mas que, ao mesmo tempo, não estão submetidas ao corpo:
O mundo das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamentonatural e material, sem provir diretamente dele.55
O corpo funciona como marca dos valores sociais, nele a sociedade fixa seus
sentidos e valores. Socialmente, o corpo é um signo e, como diz Rodrigues:
A utilização do corpo como sistema de expressão não tem limites.56
54 Rodrigues, J. C. (1983:44).55 Rodrigues, J. C. (1983:46).56 Rodrigues, J. C. (1983:97).
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2.3 A Significação Social do Corpo Negro
A partir das reflexões de Rodrigues, o estatuto do negro na sociedade pode ser
considerado como sendo determinado pelos sentidos que o corpo negro representa, na
rede de unidades significativas que constituem a cultura como estrutura significante.
De fato, os atributos físicos que caracterizam o negro, e mais particularmente a
cor da pele, expressam as representações que, historicamente, associam a essas
características físicas atributos morais e/ou intelectuais que vão corresponder, no
espectro das tipificações sociais, àquilo que se instaura na dimensão do distante, ou
seja, àquilo que expressa o que está além do conjunto dos valores nos quais os
indivíduos se reconhecem. Nessa rede, negro e branco se constituem como extremos,
unidades de representação que correspondem ao distante — objeto de um gesto de
afastamento — e ao próximo, objeto de um gesto de adesão.
Dessa forma, a rede de significações atribuiu ao corpo negro a significância
daquilo que é indesejável, inaceitável, por contraste com o corpo branco, parâmetro da
auto-representação dos indivíduos. Como diz Rodrigues, a cultura necessita do
negativo, do que recusado, para poder instaurar, positivamente, o desejável. Tal
processo inscreve os negros num paradigma de inferioridade em relação aos brancos.
O indivíduo branco pode se reconhecer em um “nós” em relação ao significante
‘corpo branco’ e, conseqüentemente, se identificar imaginariamente com os atributosmorais e intelectuais que tal aparência expressa, na linguagem da cultura, e que
representam aquilo que é investido das excelências do sagrado.
O negro, no entanto, é aquele que traz a marca do ‘corpo negro’, que expressa,
escatologicamente, o repertório do execrável que a cultura afasta, pela negativização.
Vítima das representações sociais que investem sua aparência daqueles sentidos que
são socialmente recusados, o negro se vê condenado a carregar na própria aparência a
marca da inferioridade social. Para o indivíduo negro, o processo de se ver em um
“nós” em relação às tipificações sociais inscritas no extremo da desejabilidade esbarra
nessa marca — o corpo — que lhe interdita tal processo de identificação; ao mesmo
tempo, a cultura incita-o a aderir aos signos da desejabilidade, pela injunção, própria
das estruturas da cultura, que resulta do fato de que os signos desse sistema são
introjetados pelos indivíduos no processo de socialização, como diz Rodrigues.
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Capítulo III
As Estruturas daCondição Subjetiva
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Para a psicanálise, o sujeito se define como uma estrutura marcada peladescontinuidade entre consciência e inconsciente. Tal descontinuidade implica que a
dimensão do inconsciente, enquanto tal, escapa à consciência e aos processos
cognitivo-reflexivos que lhe são próprios. Nesse sentido, o sujeito é afetado pelos
processos inconscientes que o habitam e sobre os quais não pode exercer um controle
consciente.
O ponto de vista que pretendo tematizar, neste trabalho, diz respeito justamente a
esse aspecto inconsciente em que o racismo se inscreve, tanto para os brancos quanto
para os negros. E é esse fenômeno que faz com que os conteúdos inconscientes ligados
ao racismo persistam, independentemente da realidade social e política. Ou seja,
mesmo que, no campo social, político e jurídico o racismo possa estar excluído, tal
exclusão opera no plano da consciência dos indivíduos que, enquanto tal, não pode, por
si só, determinar o campo do inconsciente.
A fim de explorar essas questões, torna-se necessário, em primeiro lugar,
explicitar o conceito psicanalítico de sujeito, e os processos que estão em jogo na sua
constituição, de modo a explicitar porque sujeito, desse ponto de vista, é um conceitodiferente de indivíduo ou de ego, noções que predominam nas abordagens das ciências
sociais. É o que se desenvolverá neste capítulo.
Em segundo lugar, trata-se de investigar de que modo o processo de constituição
da dimensão psíquica, no caso do negro, envolve certas configurações de sentido que, a
meu ver, vão determinar formas particulares que caracterizam, para o negro, a condição
subjetiva. Essas questões se desdobrarão no capítulo seguinte.
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3.1 A Concepção Lacaniana de Sujeito: a metáfora do
Nome-do-Pai; a falta; a castração
A concepção lacaniana de sujeito atribui à linguagem um lugar central, a ponto
de pensar o inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem.
Esse vínculo entre linguagem e inconsciente decorre do fato de que é a linguagem
que determina o sujeito enquanto tal, isto é, enquanto determinado por uma
exterioridade que o ultrapassa.
Na origem da constituição do sujeito está o processo que Lacan denomina
metáfora do Nome-do-Pai. Entender a metáfora paterna é antes de mais nada pensar o
objeto fálico como uma função que seria idêntica no homem e na mulher, uma função
mediatizada pelo pai intervindo na relação da criança com a mãe e da mãe com a
criança. O falo, portanto, a partir da concepção lacaniana, é um objeto de natureza
significante, não é um pênis imaginariamente atribuído à mulher, caracterizando uma
mãe fálica, mas é um objeto que significa o fato de que o pai, na situação edipiana, é o
terceiro que institui uma lei, um poder.
Portanto, o falo, para Lacan, é um objeto imaginário que tem sua origem nafantasia das crianças em torno da diferença de sexos que, em princípio, está dada pela
diferença anatômica.
Tal diferença será elaborada psiquicamente pela criança através de uma
construção imaginária, onde a diferença se dá porque existe uma falta, enquanto
conseqüência de uma despossessão, de uma castração.
O falo, portanto, é primordial no processo da metáfora paterna, na medida em que
desempenha um papel estruturante na dialética edipiana, instituindo-se como
significante essencial do desejo na triangulação edipiana. Isto é, o processo do
complexo de Édipo, se dará, respectivamente a partir do lugar do falo no desejo da
mãe, da criança e do pai, dialeticamente sob a forma do ser e do ter.
O falo, portanto, é um elemento significante sempre referido a uma função
simbólica. A primazia do falo na organização genital infantil fez com que Freud, no
texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, de 1923, associasse essa prevalência
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do falo com a problemática da castração. A natureza da organização genital infantil é o
que a diferencia da organização genital definitiva do adulto, pois, se tanto para o
menino quanto para a menina o órgão genital masculino desempenha um papel
marcante, não é, aí, do genital por excelência que se trata, mas do falo. O fato de um
único órgão genital ser tão marcante na evolução sexual infantil explica o carátersimbólico que se situa fora da realidade anatômica, apontando para a falta como
possível de ser subjetivamente representada por esse órgão. Freud deixa claro, então,
que a castração é uma conseqüência de ordem fálica e não anatômica, isto é, uma vez
registrada pela criança a falta de pênis, ela imagina a ausência do pênis como uma
castração e, a partir daí, a criança se depara com a castração relativamente a ela
própria.
Portanto, a natureza do objeto fálico expõe, de um lado a noção de falta (a
ausência de pênis), levando a uma hiper-valorização do objeto fálico que extrapola a
realidade anatômica. Nesse sentido, a descoberta da criança em torno da diferença dos
sexos dá-se a partir da noção de falta, o genital feminino é diferente do masculino
porque lhe falta algo. Por outro lado, o resultado da observação da experiência da
criança que olha outra é elaborado subjetivamente como uma concepção de que algo
que falta supõe um lugar dessa falta.
A criança persiste nesta idéia de que falta algo e, a partir daí, os sexos se
tornaram diferentes para ela. Esta construção imaginária, que coloca uma falta no lugar
do real da diferença, coloca a existência de um objeto imaginário, o falo. Tal objeto é o
que a criança supõe poder existir para todos, naturalmente; a falta, portanto, é que
coloca a criança diante da possibilidade da castração a ela própria.
Todo esse processo é intra-subjetivo, é a relação do sujeito com uma formação
intrapsíquica que tem por base o imaginário do fantasma; daí teremos o processo da
metáfora paterna, isto é, o reinado do falo enquanto objeto imaginário, que será uma
peça importante, fundamental e estruturante na dialética edipiana; o próprio processoedipiano estabelece uma situação simbólica inaugural, que culmina com a metáfora do
Nome-do-Pai. O processo Edipiano, portanto, se dará em torno da do lugar do falo no
desejo da mãe, da criança e do pai, no decorrer de uma dialética e girará em torno do
“ser” e do “ter”. A metáfora paterna, na sua estrutura, está ligada diretamente à
situação edipiana, processo estruturante para o sujeito.
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51
superego. Daí a postulação lacaniana do recalque originário, que sustentaria a metáfora
paterna no nascimento do inconsciente, o que coloca o inconsciente, ele próprio, como
produto de uma certa ordem significante.
Segundo Dor, essa concepção de organização metapsicológica sobre a origem do
inconsciente estruturado como linguagem tem sua origem nas formulações de Freud;
nos Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud dizia que, “na histeria, o sujeito
consciente está separado de uma parte de suas representações” 62.
Isto deixa claro que Freud pensava o inconsciente totalmente independente da
consciência; por interferência do recalque, esta divisão de ordem psíquica pode ser
pensada já nesse momento como a divisão do sujeito. Em Freud, a noção de divisão
psíquica, ou Ichspaltung, foi traduzido para o francês como “clivagem du moi”
(clivagem do eu). Essa idéia sustenta a clivagem como interna ao “eu” propriamentedito, ainda que, nesse momento houvesse em Freud também a idéia de uma divisão
entre o “eu” e o “isso” (inconsciente); mas não há dúvidas de que uma parte dos
conteúdos psíquicos do sujeito foge ao controle pela ação do recalque.
Para Lacan, essa divisão ou Spaltung é o que inaugura o sujeito e define a
subjetividade. Através da Spaltung, o sujeito se estrutura de um certo modo psíquico,
que definirá sua maneira de ser na vida.
A Spaltung, para Lacan, não é simplesmente uma divisão intra-sistêmica ouintersistêmica. Para Lacan, a Spaltung institui o aparelho psíquico “num sistema
plurissistêmico”. A partir desse raciocínio de Lacan é possível colocá-la, diz Dor,
como a “divisão inaugural do sujeito”63 , nascida da subordinação do sujeito a uma
terceira ordem, a ordem simbólica, a ordem que intersecciona a relação do sujeito com
o Real, ligando, para o sujeito, o Imaginário e o Real.
Essa operação acontece no advento do processo da metáfora paterna,
representado por um símbolo de linguagem, o Nome-do-Pai, que nomeia
metaforicamente o objeto primordial do desejo que se tornou inconsciente, o
significante fálico (significante do desejo da mãe). Como resultante do processo da
metáfora paterna, a criança tem acesso à linguagem sem saber o que diz no que fala,
isto é, ao nomear o objeto de seu desejo, lhe dá sentido ou significa o Nome-do-Pai.
61 Dor, J. (1985:100).62 Dor, J. (1985:101).63 Dor, J. (1985:102).
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52
A linguagem é vista, por Lacan, como uma atividade subjetiva onde se diz algo
muito diferente do que se acredita estar dizendo. Esta diferença é a expressão do
inconsciente no discurso do sujeito. O inconsciente escapa ao controle do sujeito que
fala, pois está separado do sujeito. Desta divisão subjetiva colocada pela ordem dos
significantes resulta que a linguagem regula o inconsciente, mantendo-o num lugar deonde ele sobrevem, independentemente da vontade do sujeito. Lacan enfatiza: “A
linguagem é condição do inconsciente (...) O inconsciente é a implicação lógica da
linguagem: com efeito, não há inconsciente sem linguagem.”64.
A partir dessa colocação, Lacan deixa claro que só existe sujeito em ser falante,
isto é, que a noção de sujeito se sustenta a partir do acesso à ordem significante que
origina o sujeito estruturando-o a partir de um processo de divisão que faz sobrevir o
inconsciente. Nesta estrutura de divisão do sujeito, o recalque originário é peça
fundamental no aparecimento do inconsciente.
O recalque originário age propositadamente sobre o significante do desejo da mãe
(significante fálico, que se faz representar por vários significantes). Esses significantes
primordiais, como diz Joël Dor65, se prestarão a substituições metafóricas, que serão
seus núcleos inconscientes.
3.3 O Mecanismo do Recalque
O recalque originário de significantes primordiais é um processo descrito por
Freud em 1915, como um mecanismo que se subdivide em três tempos: o recalque
originário; o recalque propriamente dito ou recalque posterior e o retorno do recalque
nas formações do inconsciente.
O recalque propriamente dito seria uma conseqüência do recalque originário, isto
é, o recalque que incide sobre significantes primordiais relacionados ao desejo da mãe.Sendo o núcleo inconsciente originário de forte atração, Freud diz que o recalque
originário é um processo de contra-investimento, uma vez que “representa a defesa
64 J. Lacan. Préface in Jacques Lacan, Anika Riffet — Lamaire, 1ª ed. Bruxelas, Dessar, 1970, p. 18;citado em Dor, J. (1985:103).
65 Dor, J. (1985:103).
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permanente de um recalque originário, mas também a permanência deste último”66 O
contra-investimento é o único mecanismo do recalque originário. O recalcado
originário exerce uma grande atração em outros significantes, acrescentando-se ainda
as forças de repulsão oriundas das instâncias superiores do eu e do super eu.
Nesse sentido, o recalque secundário é aquele cuja função é manter o processo de
divisão do sujeito instaurado pela metáfora paterna; é ele também que institui o
inconsciente como um lugar de significantes organizados a partir do discurso, isto é,
uma organização semelhante à de uma linguagem e que escapa ao controle do sujeito.
Daí Dor67 enfatizar a afirmação de Lacan: “O inconsciente é o discurso do Outro
(discurso do outro do sujeito, que lhe escapa em razão da Spaltung)”.
3.4 A Alienação do Sujeito na Linguagem
Uma outra propriedade fundamental da subjetividade se inicia a partir da divisão
do sujeito como resultado da ordem significante, “a alienação do sujeito na e pela
linguagem”68, na seqüência do tipo de relação que a linguagem estabelece com a
ordem simbólica. É nesta relação que o sujeito se dá conta da sua não existência
enquanto tal, isto é, de que sua existência só se dá na cadeia significante.
É próprio da linguagem trazer um real através de um substituto simbólico, o queproduz uma cisão entre o real vivido e o que vem significá-lo. Isto é, o substituto
simbólico que significa o real, mas que não é o real propriamente dito, mas somente
aquilo pelo qual o real é representado.
Como diz Dor, o aforismo de Lacan “É preciso que a coisa se perca para ser
representada” mostra que a linguagem tem uma propriedade singular, que se constitui
em representar um real, na ausência desse real enquanto tal, ou, como diz Lacan “pela
palavra que já é uma presença feita de ausência, a própria ausência vem a se
nomear”69. Nestas circunstâncias, a relação do sujeito com seu próprio discurso se
apoia nesta cisão; isto é, o sujeito não aparece no seu próprio discurso a não ser pelo
66 S. Freud. Die Verdrangung (1915), G. W., X, 248-261, S.E., XIV, 141-158, trad. por J. Laplanche eJ.B.Pontalis: “Le Refoulement” in Metapsychologie, Paris, Gallimard, 1968, pp. 45-63; citado emDor, J. (1985:104).
67 Dor, J. (1985:104).68 Dor, J. (1985:106).
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efeito dessa cisão, o sujeito desaparece enquanto tal, e se encontrará representado
exclusivamente como um símbolo.
J.-A.Miller usa o termo sutura como o que “nomeia a relação do sujeito com a
cadeia de seu discurso”, precisando que “ele figura ali como elemento que falta, na
qualidade de um lugar-tenente. Pois, faltando ali, ele não está pura e simplesmente
ausente.” 70.
Há vários exemplos de como alguns símbolos cumprem bem essa função, nos
lembra Joël Dor: o “nome”, o “Eu”, o “quanto a mim”, o “tu”, o “ele”, o “a gente”.
Isto é, no sentido próprio da palavra, pro-nomes que têm a função da representação
simbólica do sujeito no seu discurso.
Portanto, a relação do sujeito com o seu próprio discurso se apóia no fato de que
o sujeito só se presentifica no seu discurso às custas de estar ausente em seu ser
propriamente dito. Essa relação mostra a estrutura de divisão do sujeito e ressalta que o
sujeito, ao ter acesso à linguagem, se perde nela mesma, na linguagem que o criou
(enquanto sujeito).
O sujeito não é a causa da linguagem, mas é causado por ela, isto é, o sujeito, que
tem sua origem na linguagem, se manifesta nela própria como um efeito; efeito de
linguagem que o materializa enquanto tal, ao mesmo tempo que o encobre. Lacan
nomeia esse encobrir como o “fading do sujeito”, que diz respeito ao fato de que osujeito só se apreende através da sua linguagem enquanto representação, como um
disfarce de si mesmo. A alienação do sujeito no seu próprio discurso manifesta a
refenda do sujeito, isto é, o movimento que continuamente reproduz a divisão do
sujeito.
A linguagem é um conjunto de signos que compõem um sistema, isto é, os signos
se opõem de maneira que um significante, numa cadeia significante, só tem sentido em
relação a todos os outros. Joël Dor esclarece que esta propriedade, que Saussure batiza
com a expressão valor do signo, permite entender melhor o conceito lacaniano de
ponto-de-estofo, que funciona como uma substituição desta propriedade da linguagem
que delibera que um significante, numa dada cadeia falada, só tenha sentido a
posteriori, onde o último significante, posto retroativamente, é quem revela o sentido.
69 Lacan, J. “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, Écrits, p.276; citado emDor, J. (1985:106).
70 Citado em Dor, J. (1985:107).
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Se é a ordem significante que faz emergir o sujeito, este não poderia se fazer
presente senão pela linguagem, a partir do advento da metáfora paterna:
O que resulta então é uma conseqüência princeps, que solda a relaçãodo sujeito na ordem de seu discurso: um significante é o que representa
um sujeito para um outro significante. 71
Isto é uma conseqüência inevitável da estrutura própria do sistema da língua. Se,
por um lado, o sujeito só aparece no discurso através de um representante, por outro, se
é um significante que o representa como sujeito no discurso, isto só é possível em
relação a outro significante. Daí a idéia de que o sujeito é apreendido como um efeito
do significante, exclusivamente como um efeito.
A esse respeito, comenta Nasio72, o significante não é endereçado a ninguém, o
significante salta de sujeito para sujeito. Isto significa que não pode haver significantesem sujeito, mas o sujeito não causa o significante, ele é antes um efeito de
significante.
A noção de sujeito barrado, elaborada por Lacan, se funda nessa noção de que o
significante representa o sujeito. O sujeito não emerge a não ser “como sujeito barrado
pela ordem significante, isto é, barrado de si mesmo.” 73. Esse movimento é assim
explicado por Lacan:
O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por este efeito,ele não é causa de si mesmo, ele traz dentro de si o verme da causa que orefende. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhumsujeito no real. Mas o sujeito é o que este significante representa, e elenão poderia nada representar a não ser para outro significante, a que,desde então, se reduz o sujeito que escuta.
Não se fala, portanto, ao sujeito. Isso fala dele e é aí que ele seapreende, e isto tanto mais forçosamente, portanto antes do simples fatode que isso se enderece a ele, de que ele desapareça como sujeito sob osignificante que se torna, ele não é absolutamente nada. Mas esse nadasustenta-se em seu advento agora produzido pelo chamado feito noOutro ao segundo significante.74
71 Dor, J. (1985:108).72 Nasio, J.-D. (1992:70).73 Lacan, J. “Position de l’inconscient”, in Écrits, p. 840; citado em Dor, J. (1985:108).74 Lacan, J. “Position de l’inconscient”, in Écrits, p. 840; citado em Dor, J. (1985:108).
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O sentido do signo está subordinado ao ato de simbolização, isto é, à construção
do signo pela associação de um significante a um significado, que só emerge quando
um sujeito participa de sua elaboração: o signo é o que representa a intervenção de um
sujeito. Mas o sentido e o signo passam a ser secundários, visto que o significante tem
a prioridade em detrimento do significado. O significado é sempre secundário narelação com o significante, visto que, no inconsciente, são as substituições significantes
que são determinantes.
A relação do sujeito com seu discurso é, portanto, uma relação em que o sujeito
ignora a significação dos significantes que produz. Uma vez que os significados estão
remetidos ao recalque originário, que por sua vez, a partir da metáfora paterna,
adquirem uma nova representação e assim, sucessivamente, novos significantes que
estarão associados a eles (significados), a refenda do sujeito é quem define, na
existência do sujeito, isto é, do “fala-ser”, como diz Lacan, a total ignorância do
sujeito quanto à cadeia dos significantes.
Dessa divisão do sujeito de que nos fala Lacan resulta, necessariamente, que uma
parte de nossa subjetividade, enquanto sujeito do inconsciente, ou seja, sujeito do
desejo, nos escapa.
O sujeito não fala por si mesmo, porque ele é representado em seu próprio
discurso. A fala é uma substituição do que estava originalmente posto, que só poderia
vir à tona como um significante substituído, que representa o desejo do sujeito. O
sujeito, portanto, frente a seu desejo, está apartado de si mesmo pela linguagem;
independentemente da vontade do sujeito, o isso se apresenta em seu discurso, sem que
ele possa ter o controle. “O sujeito, na verdade de seu desejo, pode, portanto, ser
colocado como sujeito do inconsciente.” 75
O sujeito do inconsciente, portanto, não o é senão representado na linguagem,
única forma de expressão do desejo, isto é, do registro inconsciente. A linguagem,
aparece, assim, como o meio pelo qual o sujeito emerge e aquilo que o institui comodiretamente relacionado com a estrutura do discurso.
A estrutura do discurso se subdivide entre o nível do enunciado e o nível da
enunciação. A enunciação é o ato singular, individual de mobilização da língua, o
enunciado é o resultado desse ato de enunciação. Por ser um ato de linguagem, a
75 Dor, J. (1985:114).
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mãe constituem um só ser, e passa a se perceber como um outro, um “Eu”, em relação
à mãe, ao outro, aos outros. A subjetividade vai, assim, sendo delineada através da
aquisição da identidade originária.
O sujeito, portanto, se constitui enquanto estrutura de divisão tanto no campo do
simbólico quanto no campo do imaginário. Tal processo, que determina a construção
da subjetividade, envolve, simultaneamente, a divisão do sujeito na Spaltung, efeito da
ordem simbólica, e a construção de uma unidade imaginária no eu, fenômeno da ordem
do imaginário.
Ambos os processos são inseparáveis da existência do Outro, da alteridade.
Assim, no estádio do espelho, o eu só se constrói enquanto representação imaginária
pelo outro e em relação ao outro. A identificação da criança com sua imagem especular
só é possível quando a criança tem um certo reconhecimento do Outro (a mãe). Isso sóé possível quando a criança percebe que o outro a identifica como tal, facilitando,
assim, seu próprio reconhecimento: é o olhar do outro que confirma a realidade do seu
corpo na imagem do espelho. A subjetividade que vai se delineando na fase do estádio
do espelho representa uma construção imaginária inteiramente submetida à medida do
outro.
No estádio do espelho, quando da aquisição da identidade através de uma
imagem própria, que vem substituir um imaginário anterior em que a imagem de si (da
criança) era inseparável da imagem da mãe, é a partir da imagem de si mesmo como
outro que o sujeito tem acesso à sua identidade, estabelecendo-se, assim, um
movimento subjetivo peculiar.
É como um outro especular (a imagem do sujeito no espelho), fora de si mesmo,
que o sujeito se dá conta do Outro, um outro igual a ele.
O que está assegurado para a criança na fase do “estádio do espelho” é a
conquista da imagem de seu próprio corpo, fundamental na identificação primordial.
Esta identificação primordial, feita pela criança com a imagem do seu próprio corpo,
será responsável pela estruturação do “Eu”, pondo fim ao que o Lacan chama de
“fantasma do corpo esfacelado”.
Na fase anterior ao “estádio do espelho”, a criança não percebe seu corpo como
uma unidade totalizada, mas como algo separado, despedaçado; isto é, há uma
experiência fantasmática do corpo esfacelado. No “estádio do espelho”, a criança
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Isto é, o captar imaginário do eu não acontece pela imagem, mas por algo não
perceptível, é com esse vazio dentro da imagem que o eu se identifica.
Conclui então Nasio:
A identificação imaginária que dá origem ao eu é mais do que umaseqüência de imagens sucessivas, é fundamentalmente a fusão do eu coma parte furada da imagem do semelhante. 79
A percepção do Eu é atraída pela parte imaginária do semelhante, ou seja, por
tudo o que, da imagem, é visto como sexual, isto é, o eu só pode ser formado nas
imagens que lhe permitem reconhecer-se e afirmar sua natureza imaginária como ser
sexual.
É nesta relação do Eu, ou, melhor dizendo, do sujeito do inconsciente e do Objeto
(outro), onde um se assemelha ao outro, que se dá o processo de identificaçãofantasística.
3.6 A Fantasia como Constitutiva do Corpo
O processo de identificação fantasística compreende a relação do “objeto a”
(como chamou Lacan o outro) com o sujeito, tendo como motor desse processo a
fantasia.
A fantasia é um produto psíquico, uma formação psíquica, que tem como função
impedir o movimento arrebatador de uma pulsão e evitar que ela alcance o limite de um
possível gozo intolerável. Ela tem, portanto, a função de barrar a entrada da pulsão a
um gozo absoluto e permitir a satisfação parcial da pulsão, evitando, assim, a
destruição do sujeito. Portanto, a fantasia funciona como uma defesa de uma possível
descarga total das pulsões. Mas o “objeto a” não é tão somente uma sobra de energia
pulsional à deriva e na origem das formações psíquicas; é uma tensão de naturezasexual, na medida em que está associado a uma fonte corporal erógena, sempre
presente numa fantasia. O “objeto a”, representará diferentes figuras e terá diversas
nominações, de acordo com a zona erógena do corpo que é valorizada na fantasia.
79 Nasio, J.D. (1980:117).
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O lugar da identificação, na fantasia, resume-se na identificação do sujeito com o
objeto, isto é, na fantasia, o sujeito é o objeto. Ao afirmar isto, Lacan quer dizer que o
agente da fantasia não é o indivíduo, a fantasia não é criação de alguém, ela é resultado
simultâneo da ação do objeto, produzida pela perda do objeto ou corte do significante.
Nasio80 observa que a matriz formal de uma fantasia é composta de quatro
elementos: um sujeito, um objeto, um significante e imagens.
Esses elementos estão ordenados num roteiro preciso e, em geral, perverso, tendo
como mecanismo principal, que organiza a estrutura fantasística, a identificação do
sujeito transformado em objeto. “Na prática, devemos reconhecer que a queda do
objeto produz-se no mesmo movimento da identificação do sujeito com o objeto do
desejo”. 81 Isto é, na fantasia, somos o que perdemos.
A propósito do comentário do Nasio, de que a fantasia tem em geral um roteiro
preciso e perverso, Jacques Alain Miller nos dá alguns esclarecimentos:
A vergonha do fantasma liga-se ao fato de que em um primeiro nível,geralmente, o fantasma se apresenta em relação de oposição aos valoresmorais do sujeito.
Isto é, o sujeito aí não se reconhece e, em geral, tem muito medo da realização do seu
fantasma:
O fantasma que é fundamentalmente este pequeno tesouro do sujeito é aomesmo tempo a matriz da submissão ao mundo, sendo os limites de todasignificação para ele. 82
Isto significa que, para o sujeito, não há nenhuma possibilidade de significação
ao longo da vida que não seja atravessada pelo fantasma.
Ao se fazer o objeto que perdeu, o sujeito acaba por vivenciar na fantasia o
“objeto a” como objeto do desejo que vai assumir as mais diferentes formas corporais.
O “objeto a”, na verdade, tem diferentes abordagens no contexto analítico: como
um furo na estrutura, dentro dos conceitos o Um e o Todo; o objeto a também pode ser
visto a partir do ponto de vista energético, como o “mais-gozar”, a partir, é claro, da
80 Nasio, J.D. (1992:128).81 Dor, J. (1985:108).82 Miller, J.A. (1983:.22).
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noção do inconsciente estruturado como uma linguagem, onde o gozo passa a ser uma
categoria.
Mas, certamente, de todas as possíveis significações do objeto a, a que mais me
interessa é a que o considera do ponto de vista do objeto do desejo, núcleo da fantasia,
o que o faz aparecer sob várias formas corporais (mutilação, seio, dor etc.).
Segundo Lacan, o corpo é o lugar do gozo; o lugar onde gozamos, onde percorre
uma multiplicidade fluída de gozos. Entende-se aí gozo não como prazer, mas como o
estado que está para além do prazer, uma tensão excessiva que leva ao esgotamento: se
o prazer é a possibilidade de não perder, o gozo, ao contrário, se coloca ao lado da
perda. O sujeito não se apercebe do gozo, há um sofrimento do corpo, não importa de
que parte; não é possível reconhecer nem medir o grau de sofrimento a que é submetido
o corpo; podemos reconhecer o prazer, mas não a medida do que é perdido: o sujeitoestá excluído do gozo.
Para a psicanálise, portanto, não existe um corpo total: o corpo é sempre uma
parte, ou seja, o gozo localizado acumulado nessa parte, pois o corpo não é uma
unidade física, mas uma unidade significante, que se manifesta como corpo falante e
corpo sexual.
Corpo sexual: sexual porque o corpo está associado a gozo e gozo é sexual, gozo
gerado pelos orifícios erógenos do corpo e, portanto, tudo que se liga ao gozo sesexualiza, seja uma ação, uma palavra, uma fantasia ou um dado órgão do corpo ou
parte do corpo que tenha se convertido em elemento erógeno.
Corpo falante: falante porque ele é apreendido como um conjunto de
significantes “que falam entre si” 83 . O corpo falante não é o corpo gestual que me fala,
mas o que está investido do poder de determinar, sem o conhecimento de quem o
contempla, um ato (por exemplo, o ato de repulsa do racista, que não sabe explicar
porque é racista).
Além de falante ou sexual, o corpo é também uma imagem, como observa
Nasio84. Não a imagem refletida no espelho, mas a imagem que é dada pelo outro, meu
semelhante. A imagem do corpo, propriamente dito, é de fora do corpo que ela é
83 Nasio, J.D. (1992:149).84 Nasio, J.D. (1992:150).
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percebida. Essa imagem vem de fora, dando forma ao corpo sexual e ao gozo do
sujeito.
Portanto, o corpo é visualizado aqui de três pontos de vista que se
complementam. Do ponto de vista real, o corpo é sinônimo de gozo; do ponto de vista
simbólico, o corpo é significante “conjunto de elementos diferenciados entre si e que
determinam um ato no outro” e como corpo imaginário, “identificado como uma
imagem externa e prenhe, que desperta o sentido num sujeito”. 85
3.7 A Noção de Objeto: a falta e o gozo
Em psicanálise, a noção de objeto é pensada em correlação à noção de pulsão; o
objeto seria o alvo em que a pulsão cumpriria seu objetivo, a satisfação.
A noção de objeto aparece historicamente na psicanálise no artigo de Freud “Luto
e Melancolia”, no qual Freud escreve que o sujeito faz o luto do “objeto perdido”, ao
invés de dizer da pessoa perdida. Isto se explica porque Freud entendia que a palavra
objeto daria conta de designar os vários significados e sentidos que a pessoa amada
representa para o sujeito.
No entanto, é a partir de uma construção de Lacan, fundada nessa noção de Freud
sobre objeto, que seria possível melhor entender a noção de falta do objeto que aqui
pretendo discutir.Lacan propõe pensarmos a noção de objeto através do que ele denominou objeto
a, a letra a , um símbolo que representa a primeira letra da palavra “outro” (autre, em
francês).
Para Lacan, portanto, existe o outro com a minúsculo e o Outro com a maiúsculo,
que designa o grande Outro, imagens antropomórficas do poder; o outro com a
minúsculo diz respeito ao nosso objeto, o alter-ego (outro-eu).
O objeto a, portanto, seria o outro, não importa sob que representação: umapessoa, um corpo, uma imagem, uma representação simbólica de qualquer ordem.
Em “Psicologia das massas e análise do Ego”86, Freud apontou, entre outros tipos
de identificação, aquele em que se dá a identificação do sujeito com um traço do
objeto, ou seja, com um traço dos seres que amamos ao longo da vida. Tal concepção
85 Nasio, J.D. (1992:151).
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supõe que esse traço corresponde a uma marca que se repete ao longo da história do
sujeito com os sucessivos parceiros, e que nada mais é do que a somatória de traços
que representa o próprio sujeito. Daí a idéia de Lacan de que o sujeito é o traço comum
dos objetos amados e perdidos ao longo da vida, o que ele chamou de traço Unário.
É o que explica Nasio:
O outro amado é a imagem que amo de mim mesmo, o outro amado é umcorpo que prolonga o meu; o outro amado é um traço repetitivo com oqual me identifico. 87
A partir dessa concepção, Nasio propõe três formas diferentes pelas quais o outro
pode ser definido: a primeira, imaginária: o outro como imagem; a segunda,
fantasística: o outro como corpo; a terceira, simbólica: o outro como traço que
condensa uma história. Essas três possíveis formas de definição do outro não esgotam a
noção do outro, pois nunca é possível identificar quem é o outro escolhido pelo sujeito.
Isto é, não é possível precisar esse lugar não identificável em que aparece o objeto a.
Das três propostas feitas por Nasio para pensar o outro é a fantasística que mais
se aproxima do conceito lacaniano de objeto a: o outro escolhido como parte
fantasística (o outro como corpo) e gozosa de meu corpo, uma extensão de mim de que
não tenho controle, que me escapa.
A partir da teoria lacaniana, Nasio propõe pensar o estatuto formal do objeto a
para se entender melhor o que seria a idéia de outro como parte gozosa de meu corpo.
Tudo o que chamamos passado, isto é, acontecimentos na história de um sujeito,
ou, numa terminologia lacaniana, significantes, Nasio propõe conceituar a partir do par
S1 e S2: o objeto a se definiria em função dessa rede.
O estatuto formal do objeto a dá conta da relação do objeto a com o conjunto dos
significantes e com o significante do Um. O objeto a corresponde, segundo Nasio, a
algo heterogêneo à rede dos significantes. Isto é, o sistema produz algo que lhe éheterogêneo, estranho e excedente, e essa produção é uma operação semelhante, ainda
que de outra ordem, à da manifestação do significante S1 (o dito).
86 Citado em Nasio, J.D. (1992:94).87 Nasio, J.D. (1992:94).
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No que diz respeito ao objeto, Nasio não nos fala de um elemento externo, mas
de um “excedente” do sistema; portanto, o objeto a é o heterogêneo excedente criado
pelo próprio sistema formal dos significantes.
Como produto excedente, o objeto a é diferente do elemento significante e, nesse
sentido, margeia o conjunto de significantes.
O sistema, portanto, se compõe de dois elementos: um elemento externo (S1) (o
dito) e um produto eliminado (a). O significante externo S1 é absorvido no conjunto dos
significantes, sua natureza é simbólica; ao contrário, o objeto a é de natureza real, é
heterogêneo ao conjunto significante. A ordem simbólica implica que todos os
elementos são homogêneos, todos estão sob a ordem das leis que regem a lógica do
significante; o objeto a contraria essa lógica.
O estatuto formal do objeto a nos dá uma idéia do seu funcionamento. No
entanto, Nasio sugere ainda que seria possível identificar o objeto a com o furo na
estrutura do inconsciente, isto é, com o vazio deixado pelo significante da cadeia
transformado em margem. A idéia de furo, aqui, está subentendida não como um
orifício concreto, mas como um “vazio aspirante”.
É possível imaginar o objeto a como o furo da estrutura e entendermos que ele é
uma força que anima e atrai os significantes e dá firmeza à cadeia. A partir dessa idéia
de objeto como um furo num processo dinâmico, estamos diante da imagem do gozo.A afirmação de Nasio de que o objeto a é o furo na estrutura do inconsciente
implica em três condições: primeiro, o furo é o motor que anima o sistema (causa);
segundo, a força que anima o sistema chama-se gozo (mais-gozar ); terceiro, o gozo,
além de ser a força motriz no interior do furo, é o que mantém o furo.
O furo é então concebido não como, numa visão formal, o buraco na estrutura do
inconsciente, mas como margens (bordas) movidas pelo gozo que produz e cria o furo;
não há furo sem gozo que coloque em movimento as margens. Na vida erógena e,
portanto, na vida psíquica inconsciente, só existem furos criados pela tensão do
movimento; mas tal movimento das margens dos orifícios é o movimento do gozo na
presença de outro corpo, ele mesmo desejante. A partir dessa concepção, que parte da
noção de objeto a como furo, é possível entender que o objeto a é o fluxo do gozo que
circunda a margem dos orifícios do corpo e, portanto, como motor do inconsciente.
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Mas, do ponto de vista da teoria lacaniana, o objeto a pode ser visto também
enquanto partes do corpo, isto é, não enquanto pedaços do corpo, mas enquanto
fantasias, imagens, “simulacros” que implicam o real do gozo.
Talvez fosse o caso de nos determos ainda um pouco mais na idéia de gozo, antes
de prosseguirmos na concepção que Nasio chamou de estatuto corporal do objeto a.
Leclaire88 nos propõe entender o gozo em correlação com a categoria freudiana
de prazer. Se o prazer é identificável no nível das zonas erógenas, implicando, pelo
princípio do prazer, numa redução de tensão, o gozo é uma categoria estritamente
lacaniana e, “uma forma de experiência completamente insuperável, um mais além de
todo limite”89.
Onde Freud se interroga, no “Além do princípio do prazer” sobre o além do
prazer, Leclaire coloca a possibilidade do gozo.
No “Além do princípio do prazer”, Freud trabalha a noção de pulsão de morte,
para a qual usou o termo de princípio de Nirvana, um estado que aparece em
contraposição com o projeto de vida, um ignorar as diferenças, as tensões, um prazer
absoluto, a pulsão de morte como ato.
Leclaire, por sua vez, coloca o gozo como o mais além de todo limite, e fala da
anulação do limite, isto é, do limite como algo que separa, de um lado, a organização
biológica, de outro, a organização ou não-organização erógena: a perda desse limiteelimina toda erogeneidade possível, o biológico e o erógeno não se diferenciam.
O prazer é, portanto, o exercício da erogeneidade sexual a partir da noção da
diferença das zonas erógenas do corpo. Ao passo que o gozo se evidencia quando esse
limite se desfaz e passa a ser confundido com o objeto.
O funcionamento do prazer é uma espécie de defesa contra o gozo; quando o
gozo (mais-gozar) emerge, não há mais erogeneidade: nesse momento, rompe-se o
limite que viabiliza a organização erógena, isto é, o aparecimento do desejo, do prazer.
Porém, em situações como essa, o limite se impõe entre a necessidade de
conservação e o prazer, ao mesmo tempo que possibilita situar o absoluto do gozo, ou
seja, serve de proteção contra ele. Esse limite acontece entre o erógeno e o biológico,
88 Leclaire, S. (1979).89 Leclaire, S. (1979:138).
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entre o prazer e a conservação, isto é, ele pode ser contra algo que ainda se situa na
erogeneidade, como o gozo, ou do lado do biológico, como a morte.
Quando há quebra ou impossibilidade de fazer com que esse limite intervenha,
teríamos a realização do gozo. Mas sua realização eliminaria qualquer possibilidade de
prazer de vida erógena, assim como qualquer possibilidade de construção psíquica
normal.
Retomemos, portanto, a noção de estatuto do objeto a, partindo da ótica
lacaniana, que supera a ótica do gozo, para outras formas de visualizar o objeto a, a
partir das fantasias, imagens que têm como conseqüência o gozo.
É possível pensarmos, a partir da idéia de fantasia, como partes separadas do
corpo, sob determinadas condições, podem representar “a”. Para que essas partes se
incluam na categoria de “a”, é necessário que respondam a três condições: uma
condição imaginária e duas condições simbólicas.
A título de uma melhor possibilidade de compreensão dessas condições, Nasio
propõe pensarmos o objeto a sob duas formas particulares, o seio e as fezes, que estão
determinadas por uma remarcável condição imaginária.
São formas que apresentam uma configuração que excede os limites do corpo, ou
seja, pela saliência, pela possibilidade de serem pegas, separadas ou até retiradas do
corpo, enfim, são formas que convidam ao manuseio.
A primeira condição simbólica baseia-se na relação dessas formas do corpo: o
seio que, em particular, trará a primeira experiência de separação significativa para o
sujeito, o desmame, e as fezes, através da defecação, estão diretamente relacionados a
orifícios e partes do corpo, como a boa em relação ao seio e o ânus em relação às fezes.
Essa condição é simbólica justamente porque os componentes que formam esses
contornos de partes do corpo são significantes por onde circulam o fluxo do gozo e sua
permanência.
Outros objetos, no entanto, não são passíveis de serem representados; por
exemplo, a voz e o olhar, que não dependem de uma condição imaginária, estão
diretamente ligados a uma condição simbólica, por serem produzidos por bordas, com
formas particulares de manifestações.
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Nasio91 recorre a Freud a propósito de explicar esse processo de mão dupla, onde
a criança alucina o seio e ao alucinar, se identifica com ele; a criança é o seio que ela
alucina. A criança expressa a relação objetal pela identificação, ela é o objeto.
90 Nasio, J.D. (1992:104).91 Nasio, J. D. (1992:113).
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Capítulo IV
O Corpo Negro enquantoCategoria Imaginária e
Simbólica
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Para a psicanálise, o corpo, enquanto tal, é irrepresentável. Impossível de ser
capturado numa representação, o real do corpo permanece, fantasmaticamente, ligado
às experiências arcaicas de despedaçamento, anteriores à fase do espelho.
Se o corpo real corresponde ao lugar do gozo, na dimensão da falta que produz o
objeto a, como vimos nas seções anteriores, é enquanto corpo imaginário e corpo
simbólico que o corpo vai se inscrever na dimensão psíquica.
Corpo imaginário corresponde à imagem totalizadora que a criança conquista na
fase do espelho, e que lhe advém, como vimos, pelo reconhecimento do outro: é nessa
experiência fundadora que se produzem as estruturas de identificação. Se o corpo
imaginário constitui um todo, uma imagem, um continuum de ligações, o corpo
simbólico corresponde a uma forma significante, isto é, a algo que, como parte,
representa, numa relação simbólica, aquilo que, enquanto tal, escapa à representação.Na dimensão simbólica será, portanto, um pedaço, um aspecto do corpo, devidamente
simbolizado, isto é, investido de significação, que emerge como marca de uma
totalização impossível.
É desse ponto de vista que, nesse capítulo, procurarei explorar as dimensões
imaginária e simbólica do corpo negro e que, a meu ver, produzem certas vivências
psíquicas singulares que — é o que pretendo sugerir — constituem, para o negro,
aspectos particulares da sua condição subjetiva.
É dessa perspectiva que tentarei discutir a complexidade do processo do espelho
que, para o negro, produz um processo de identificação com a “brancura” enquanto
justamente aquilo que, na sua imagem especular, lhe escapa. E é também considerando
a pele negra como significante, do ponto de vista do corpo simbólico, enquanto aquilo
que representa a condição de negro para negros e não-negros, que tentarei explorar os
sentidos que a tal significante se associam, nas redes simbólicas da formação social
assim constituída.
Explorando as dimensões imaginária e simbólica que a experiência de ser
portador de um corpo negro produz, pretendo chamar a atenção para aspectos da
vivência psíquica dos negros que, em geral, não são levadas em conta nas abordagens
sociológicas da condição de negro, mas que, a meu ver, são constitutivas dessa
condição.
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4.1 Imagem do Corpo e Esquema Corporal: o indivíduo e aespécie nas formas de representação do corpo
Françoise Dolto, psicanalista infantil, em seu livro A imagem inconsciente do
corpo92, estabelece uma distinção entre os conceitos de imagem do corpo e de esquema
corporal, cujos sentidos não raro confundimos. O esquema corporal indica a condição
de representante da espécie do indivíduo, sendo, em geral, o mesmo para todos; já a
imagem do corpo não se define a partir desse inexorável pertencimento genérico à
espécie humana: ela é única a cada um, específica, está ligada ao sujeito, à sua história;
é inconsciente e sustentada no narcisismo.
A imagem do corpo é uma construção imaginária determinada pelo fato de que o
aparelho psíquico se estrutura nas instâncias psíquicas do id, do ego, do superego, tal
como propôs Freud. Para Dolto, o mediador das instâncias psíquicas (id, ego,superego), nas representações metafóricas expressas por um sujeito, é a imagem do
corpo. Nesse sentido, a imagem do corpo estará envolvida em todas as formações do
aparelho psíquico.
Dolto afirma que através das expressões apresentadas nos desenhos e
modelagem, as crianças falam de seus fantasmas. As produções infantis são
“verdadeiros fantasmas representados”, que tornam possível a percepção das
estruturas psíquicas. Tal percepção é possível porque as crianças humanizam suas
criações, isto é, as antropomorfizam e quando falam ao analista, é possível estabelecer
associações entre o que dizem de suas criações, bases de seus fantasmas, na relação
transferencial, e as características pictóricas dessas expressões.
Para as crianças e os psicóticos, que não conseguem falar objetivamente sobre
seus sonhos e fantasmas, como fazem os adultos nas associações livres, a imagem do
corpo é o mediador que lhes permite expressá-los e, para o analista, a forma pela qual
pode percebê-los.
No entanto, diz Dolto:
A imagem do corpo não é a imagem que é desenhada ali, ourepresentada ali, ou representada na modelagem; ela está por serrevelada pelo diálogo analítico com a criança. 93
92 Dolto, F. (1984).93 Dolto, F. (1984:9).
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A imagem do corpo não se relaciona somente com o imaginário, é também da
ordem do simbólico, representando um signo da estrutura libidinal como o cerne de um
conflito, que deverá ter seu entrave desfeito através da palavra da criança. Existe aí
algo a ser dito, a ser “decodificado”, que não está em poder do analista, mas da
criança.
Quanto ao esquema corporal, diz Dolto, “é uma realidade de fato, sendo de certa
forma nosso viver carnal no contato com o mundo físico”94. Desse modo, as
experiências por nós vivenciadas serão determinadas pelas condições físicas do
organismo, conforme este apresente um estado de integridade ou lesões, passageiras ou
permanentes, de caráter neurológico, muscular ou ósseo, ou sensações fisiológicas
dolorosas, viscerais ou circulatórias.
Problemas orgânicos precoces, mesmo que circunstanciais, resultam emperturbações do esquema corporal, mas por falta ou interrupção das relações do que
Dolto denominou de “imagem falante do corpo”95, podem resultar em modificações
passageiras ou permanentes da imagem do corpo. No entanto, não é incomum a
coexistência de um esquema corporal enfermo e uma imagem sã do corpo.
A simbolização de uma imagem do corpo não enfermo depende da aceitação,
pelos pais, do problema da criança para que, apesar do problema, esta possa ser
reforçada positivamente em suas possibilidades, garantindo a humanização da criança.
Quando, ao contrário, a mãe é incapaz de falar à criança de sua diferença,
enquanto a criança, no decorrer de seu desenvolvimento, vai se dando conta das
diferenças reais entre seu corpo e o corpo das outras crianças, haverá dificuldades para
que a criança passe pelas várias etapas do desenvolvimento.
Em geral, a criança fica impedida de superar a castração oral, constituída pelo
desmame e, conseqüentemente, não terá condições de superar as castrações posteriores,
tornando-se dependente da mãe numa fixação fóbica.
A imagem do corpo é, a cada instante, para o ser humano, arepresentação imanente inconsciente em que se origina seu desejo.96
94 Dolto, F. (1984:10).95 Para Dolto, a “imagem falante do corpo” constitui o conjunto das formas verbais em que a imagem
do corpo pode se representar e se expressar.96 Dolto, F. (1984:24).
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de base, a anal, soma-se às duas anteriores acrescentando-lhes os mecanismos de
retenção ou expulsão da parte inferior do tubo digestivo.
Quanto à imagem funcional, segundo componente da imagem do corpo, é a que
possibilita ao sujeito a realização do seu desejo. É através da imagem funcional que as
pulsões de vida, após serem subjetivadas no desejo, buscam alcançar prazer,
objetivando-se na relação com o outro e com o mundo.
Já a imagem erógena, terceiro componente da imagem do corpo, é “associada a
determinada imagem funcional do corpo”, onde se focaliza o prazer ou o desprazer
erótico na relação com o outro.
Esses três componentes da imagem do corpo se articulam de maneira dinâmica,
transformando-se, remanejando-se e metabolizando-se ao longo das vivências do
sujeito e dos limites com que ele se depara sob a forma de castrações que lhe são
impostas, de modo que a imagem de base possa garantir sua “coesão narcísica”. Mas,
para isso, diz Dolto, é necessário que a imagem funcional, permitindo uma ação
adequada, garanta a integridade do esquema corporal; e que a imagem erógena “abra
ao sujeito o caminho de um prazer partilhado, humanizante naquilo que tem como valor
simbólico” 100.
A imagem do corpo é a síntese em constante devir das imagens de base,
funcional e erógena, “ligadas, entre si, através das pulsões de vida”, num atualizarcontínuo para o sujeito ao nível do que Dolto chamou de imagem dinâmica.
A imagem dinâmica é o “desejo de ser” prosseguindo em um advir, a falta que
propulsiona para o desconhecido. Sem uma representação própria, a imagem dinâmica
é a “tensão de intenção”: “A imagem dinâmica expressa em cada um de nós o Sendo,
chamando o Advir: o sujeito no direito de desejar, eu gostaria de dizer ‘desejância’”.
101
100 Dolto, F. (1984:44).101 Dolto, F. (1984: 45).
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4.2 A ‘‘Inumanização’’ do Negro
Para entendermos a posição do negro no que se diz respeito às representações
associadas ao corpo, tal como a percebemos hoje, é necessário levarmos em conta a
herança do sistema sócio-econômico escravagista, que não só atribuía ao negro o lugar
de mão-de-obra escrava, com todas as implicações sociais de condições de vida
miseráveis, mas que também construiu teorias que, em última instância, tinham como
objetivo tomar o efeito pela causa, ou seja, atribuir as condições de vida que os negros
efetivamente experimentavam a limites e tendências “naturais”.
Louis Conty102, médico francês radicado no Brasil como professor da Escola
Politécnica, realizou, em 1878, estudos sobre a realidade brasileira dando especial
ênfase à população negra que, na ocasião, vivia o processo que culminou com aabolição. Tal processo, embora lhe tenha atribuído a cidadania, na realidade não a
libertava, pois não lhe garantia as condições necessárias para o exercício dessa
cidadania; e, além disso, não obstante a abolição, permaneceria por tempo
indeterminado o cativeiro psíquico de uma imagem que, com o crivo da ciência,
justificaria uma “inumanidade” do negro. Conty cita estudos já feitos anteriormente,
pesquisas científicas que, tendo estudado a conformação do cérebro africano,
pretendiam atestar sua incapacidade mental.
Para esse pensamento “científico” marcado pelas idéias racistas da época, os
negros africanos, porque seriam oriundos de um continente de terras inférteis, não
conheciam formas de organização social, desconhecendo as idéias de família e
propriedade; portanto, roubavam e matavam para ganhar a vida. Pode-se perceber,
nesse tipo de reflexão, a influência do pensamento naturalista da época.
Os negros, segundo Conty, eram sujeitos afeitos à vagabundagem, recusavam-se
a trabalhar, tinham tendências ao alcoolismo e à marginalidade (resultado de sua
inferioridade racial). Os negros revelavam-se indiferentes em suas relações sociais: nãose importavam com os laços filiais e suas mulheres eram objetos servis; não formavam
famílias, eram por natureza desagregados; conviviam com a violência de modo
indiferente e apático, isto é, como não eram sensíveis aos castigos violentos a que eram
submetidos, não construíam uma consciência moral e ética, o que, para Conty,
102 Conty, L. L’Esclavage au Brésil, Paris, Guillaumin et Cie, 1981; citado em Azevedo, C.M.M.(1987:76 a 82).
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mostrava que os negros eram potencialmente selvagens, atestando sua incapacidade de
serem cidadãos.
É interessante observar como, nesse pensamento, a diferença de cor, que seria o
traço mais visível, não é o tema central desse discurso que visa descrever as diferenças
da população negra: trata-se antes de por em jogo o conceito de raça que legitimaria,
através de um dado “natural”, alguns comportamentos (determinados pelas condições
de vida na escravidão) que, no entanto, eram explicados não em função das condições
objetivas mas de “disposições inatas”.
Ainda que Conty não faça uma descrição objetiva do “corpo negro”, em seu
discurso está subentendido um esboço deste corpo, que foi se conformando ao longo da
história. Neste esboço, Conty estabelece uma associação direta das características do
corpo negro com valores morais e éticos depreciativos. Esta visão, embora caricata,subsiste ainda, de alguma forma inscrita num dado universo de teorizações científicas,
que deram e ainda hoje dão suporte às representações que fazem parte das construções
imaginárias socialmente elaboradas sobre o negro.
Tomemos, como exemplo, um trecho retirado de uma entrevista com Darrel
Flynn103, que nos diz dessas construções imaginárias sobre o negro:
Folha - Você é incapaz de conviver com as diferenças?
Flynn - Sim, porque eles são uma raça violenta. Você já percebeu que osdentes dos negros são mais parecidos com os de orangotangosdo que com humanos?
O cérebro dos negros é 10 gramas menor do que o dos brancos.Eles têm um osso a mais em cada pé. Eles são diferentes.
4.3 A Dissociação Narcísica na Imagem do Corpo para o
Negro
Dolto, quando fala da imagem de corpo e esquema corporal, traça diferenças
importantes. O esquema corporal define o indivíduo como representante da espécie,
condição genérica, que, em princípio, é igual para todos.
103 Ku Klux Klan tem horário em TV pública . F.S.P., 12.05.96; trecho de entrevista com Darrel Flynn,apresentador do programa.
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Até que ponto, na medida em que o negro é atravessado pelas representações
depreciativas em relação ao corpo negro, é possível, para ele, a construção de uma
imagem de corpo em que a condição genérica esteja preservada?
Penso que até mesmo o que por herança nos daria um sentimento de humanidade
e pertencimento fica abalado quando muitos negros rejeitam sua conformação física, e
se tornam desejantes de características físicas que os aproximem “do branco”, que os
“humanizem”.
Não é incomum os negros que lançam mão de cirurgias plásticas numa tentativa
de, via o flagelo corporal, modificar suas características físicas. Não raro as mães
negras, através de métodos deploráveis, tentam modificar as características físicas de
seus bebês, para que não cresçam com seus narizes chatos ou nádegas volumosas.
Por outro lado, a imagem do corpo é individual e estritamente ligada à história do
sujeito. Suporte do narcisismo inconsciente, é simbolicamente o perfil do sujeito
desejante. Que sujeito desejante é o negro, que vê no seu equipamento para satisfação
do desejo, o corpo, desde já um entrave — sua cor? Um corpo que é a negação daquilo
que deseja, pois seu ideal de sujeito, sua identificação, é o inatingível — o corpo
branco.
Não é incomum o sentimento que nós, negros, experimentamos de nunca sermos
suficientemente bons nas relações ou funções sociais por nós assumidas: não bastasermos bons, temos que ser os melhores e exemplares, depositários que somos do
desejo de pais que projetaram em nós o sujeito que foram impedidos de ser.
Estas aspirações que, a princípio, têm origem no desejo dos pais, na verdade
representam, para o negro, a impossível superação do incômodo de sermos portadores
de um “corpo negro”.
Há uma dissonância, aí, entre esquema corporal e imagem do corpo, que se
expressa quando o negro idealiza para si uma imagem de corpo que não corresponde a
seu esquema corporal — quando é este que, teoricamente, daria ao negro o sentimento
de universalidade, de pertencer à espécie humana.
Seu esquema corporal é retaliado pela cor da pele, pelos tipos de cabelo etc., e
essa diferença não é aplacada pelos pais, mesmo quando trabalham uma imagem de
corpo mais saudável, porque seus corpos também estão atravessados pelo mesmo
estigma.
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O que Dolto coloca como “imagem de base”, a “mesmice de ser”, a continuidade
narcísica, para o negro aparece como comprometida, prejudicando sua coesão
narcísica.
Não é difícil para mim, enquanto psicanalista, enumerar situações em que
pacientes, em suas sessões, expressam esses fantasmas. Como M., que me dizia:
“Precisava quando criança tomar vários banhos para tirar a minha sujeira”. Ou C.,
uma secretária negra: “Preciso estar sempre apresentável, e ser eficiente, para que não
me chamem de negra; não suportaria, quando imagino essa situação, sinto meu corpo
rachando e sumindo no chão, como nos desenhos animados”.
4.4 A Imagem do Corpo Enquanto Rosto
Enquanto Françoise Dolto trabalha a imagem inconsciente do corpo, traçando a
diferença entre imagem do corpo e esquema corporal, Sami-Ali trabalha a questão do
corpo a partir da dialética entre o real e o imaginário, psique/soma, para entender a
unidade psicossomática constitutiva do homem a partir do referencial psicanalítico.
Para Sami-Ali, na constituição da imagem do corpo, o rosto e o sexo se destacam
como pontos relevantes. O rosto é “o lugar onde se afirma a dupla identidade sexual e
simbólica do sujeitos”.104
Mas o rosto só pode ser percebido no plano da visão por um outro, ou pelo
próprio sujeito através do espelho; para o sujeito, só é possível ter acesso direto ao
rosto pelo tato, e não pelo olhar: o rosto é o invisível onde se revela o visível.
É um fato que o sujeito tem, para si, um rosto que transcende a série de
manifestações que ele possa exibir, mas não se trata da simples possibilidade de um
ser que supera o parecer; trata-se, antes, de uma “ambigüidade radical”, que é o se
apropriar de um rosto que se esboça e passa a ter existência a partir do “ponto de vista
dos outros” 105.
104 Sami-Ali (1977:108).105 Sami-Ali (1977:108).
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remete novamente, no nível da imaginação material, a um outro que nãoé o próprio sujeito. 108
Ressaltando o fato de que a teoria psicanalítica revelou o segundo momento de
Narciso, Sami-Ali procura esclarecer como a investigação analítica vê essa formulação
e de que maneira os fenômenos de regressão permitem “reconstruir” a experiência
original do rosto.
A experiência original do rosto não se dá em um “desenvolvimento linear ”, mas
num todo que vai se revelando gradativamente onde, em função do movimento circular,
o fim coincide com o começo.
O rosto, no início, é um dado constitutivo do mundo externo, uma forma
significativa, “mas surpreende por um vazio ao nível da imagem do corpo”. Sem que
haja uma perda da identidade pessoal, nesse vazio da não constituição “o sujeito éaquele que não tem rosto”. Isto significa o reconhecimento do estrangeiro em si
mesmo: “Ser sem rosto e possuir um rosto que se perde em seguida são duas maneiras
de expressar uma intuição fundamental do ser”. 109
4.5 A Construção da Imagem do Rosto Próprio pelo Olhar do
Outro
Na tentativa de resgatar os três movimentos lógicos da constituição da imagem
do corpo que o mito de Narciso expressa, Sami-Ali vai descrever a gênese dessa
estrutura no sujeito.
A partir dos 3 meses, quando se instala a visão binocular, a criança passa a ter a
visão do rosto da mãe, sendo a mãe objeto de identificação primária. O rosto da mãe
coincide com o “campo visual imediato”, dificultando o discernimento entre a
experiência de ver e a de ser visto, entre visão e órgão da visão. Trata-se de umprocesso inicialmente caótico, onde não há diferenciação entre sujeito e objeto.
O olhar da criança, portanto, é atraído pelas formas da mãe. Assim, tanto em sua
transposição projetiva como na sua expressão direta, “o olho confunde-se com aquilo
que vê”. Isto se dá devido a um efeito do que Sami-Ali chama de narcisismo material,
108 Sami-Ali (1977:109).
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pelo qual o campo perceptivo se revela idêntico ao próprio sujeito. Assim, a percepção
tátil do seio da mãe se confunde com a percepção visual do rosto da mãe e, nesse
sentido, numa relação de parte a todo, a imagem do rosto da mãe representa o corpo.
Por outro lado, na medida em que não há diferenciação, nesse estágio, entre a criança e
a mãe, a criança toma a imagem do corpo da mãe como própria. Nessa construçãoteórica, Sami-Ali apoia-se em Spitz, que identifica no seio o primeiro objeto tátil110 e
no rosto o primeiro visual, embora sem considerar toda a questão do ponto de vista da
subjetividade.
Inicialmente a criança percebe o rosto do outro — o da mãe — como sendo seu
próprio rosto, o que corrobora as observações que atribuem à criança o rosto visível a
partir do olhar do outro:
No primeiro tempo do processo de reconhecimento do sujeito ele não temum rosto; no segundo, ele tem o rosto do outro; no terceiro, ele percebeo rosto como sendo outro. 111
Neste terceiro momento não se trata, para a criança, de uma percepção do outro
em si, ou do outro em relação a ela mesma, mas do outro que se diferencia em relação
a outros: assim, a mãe e o pai, da perspectiva da criança, são percebidos como
estranhos entre si. Esta percepção da criança de que existem outros rostos diferentes do
da sua mãe significa, para ela, pressentir a possibilidade de ela mesma ser um rosto
diferente do da mãe.
É nesse sentido que Sami-Ali contesta a proposição de Spitz, segundo o qual a
angústia do oitavo mês — quando a criança reage mal diante de estranhos — se deve a
uma vivência de perda do primeiro objeto. Para Sami-Ali, ao contrário, o horror que a
criança manifesta diante do rosto estranho mostra a experiência da alteridade, quando a
criança se dá conta de que há outros rostos, estranhos, diferentes do rosto da mãe e,
nesse sentido, da possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, vale
dizer, um rosto estranho. Assim, diz Sami-Ali: “A angústia do oitavo mês quandoocorre, revela essa dupla constituição do outro como outro e do sujeito como outro em
relação a esse outro” 112. É nesse sentido que, na dimensão da alteridade, isto é, da
109 Sami-Ali (1977:111).110 Spitz, R. De la naissance à la parole. Trad. fr. PUF, Paris, 1968, pp.52-53 e 62; citado em Sami-Ali
(1977:119).111 Sami-Ali (1977:120).112 Sami-Ali (1977:120).
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existência de outros indivíduos que são distintos dele próprio, o estranho se revela para
o sujeito, não somente no outro, mas como implicando o próprio sujeito.
“Diferença do rosto desconhecido relativamente ao rosto da mãe, diferença do
rosto desconhecido em relação ao rosto do sujeito”113: através de que mediação se dá,
para o sujeito, a aquisição de um rosto que lhe falta no primeiro tempo? Essa mediação
se dá através do processo de projeção, que dependerá da evolução individual,
resultando na formação de um “espaço delimitado por um dentro e um fora” 114, fora
que não mais será o do rosto da mãe que a criança pôde antes confundir com o seu,
mas que será o de um rosto que é capaz de tornar-se outro, porque não mais se
confunde com o seu.
A angústia do oitavo mês se dá no momento em que a identificação do rosto dá
lugar a uma projeção; e, nesse momento, se estabelece simultaneamente a diferença e adistância em relação a um outro self:
Daí decorre a profunda identidade entre o familiar e o estranho revelada por um sentimento de inquietude sempre que se opera a objetivaçãoincerta do rosto do outro que foi, de início, o rosto do sujeito. 115
É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si
garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe se vê afetada
pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no
estranho. É esse processo que Sami-Ali chama de “angústia de despersonalização”.
Num primeiro momento, o sujeito ainda não atingiu sua identidade corporal,
portanto é incapaz de construir objetos idênticos a si mesmo. Quando, numa situação
vivenciada pela criança como ameaçadora, atenuada a sensação de angústia de perda
do objeto primordial, “o outro se manifesta ao mesmo tempo como sujeito e objeto”.
Essa ambigüidade, diz Sami-Ali,
...é sinal de que está se efetuando uma projeção para criar umaimperceptível distância com relação ao rosto do outro e, assim, permitirque o sujeito se constitua como outro em relação a si mesmo. 116
113 Sami-Ali (1977:120).114 Sami-Ali (1977:121).115 Sami-Ali (1977:121).116 Sami-Ali (1977:121).
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Somente quando essa experiência se dá é que a criança adquire a noção do
estranho enquanto duplo de si mesma.
Sami-Ali destaca três variáveis que marcam a complexidade do processo de
distanciamento da criança que levará da identificação à projeção da figura materna.
Primeiro, a criança consegue viver de maneira menos aterradora a experiência de
expulsão das próprias fezes assimiladas como parte de seu corpo ou parte da mãe, sem
que isso represente, para ela, uma separação definitiva. Segundo, se estabelece a visão
binocular como resultado de uma projeção sensorial, como conseqüência de uma
motricidade ocular. Terceiro, através do sonho em forma de pesadelo a criança
vivencia e elabora a problemática da ausência e da presença. É esse o quadro que, em
torno do oitavo mês, norteia a organização psicossomática como um todo.
A partir desse processo, a criança passa a reconhecer no rosto da mãe um outrocom o qual ela, anteriormente, se identificou, o que produz um sentimento estranho e
inquietante em que a criança percebe a distância entre si mesma e o outro (mãe): “sou
e não sou o rosto do outro” 117. Estranho que é o outro em relação ao outro, isto é, o
próprio sujeito. Ao projetar seus impulsos, a criança disporá das noções de estranho e
ruim, de familiar e bom. Aqui bom e ruim se relacionam à elaboração da criança em
relação à presença e à ausência da figura materna, representando uma clivagem do
sujeito e do objeto.
Para Sami-Ali é sob esse fundo que se dá para a criança a experiência do espelho:
se, de um lado, ela dá acesso, para o sujeito, à identidade enquanto rosto, essa, uma vez
atravessada pela dimensão da alteridade, produz uma vivência ambivalente, o
sentimento de possuir um rosto (enquanto um dentro) e, ao mesmo tempo, não possuí-
lo (enquanto um fora).
A experiência do espelho, segundo Sami-Ali, coloca desde o início o sujeito em
contraposição com o outro, um outro que ainda não é o próprio sujeito.
Sami-Ali faz referência àquilo que Wallon chama de “realismo das imagens”118,
a experiência em que a criança, que já tem o rosto da mãe mas ainda não seu próprio
rosto, vivencia a aquisição da imagem de seu rosto. Ocorre uma perfeita seqüência
117 Sami-Ali (1977:124).118 H. Wallon, 1934. Les origenes du caractère chez l’enfant . PUF, Paris, 1970, p. 226; citado em Sami-
Ali (1977:125).
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coordenada das aparências visuais, das sensações táteis e cinestésicas: assim, o sujeito
se reconhece na imagem refletida do espelho.
Aparentemente, ele consegue coincidir consigo mesmo mas, na realidade, há uma
ruptura completa com o que ele é. A imagem reflexa não coincide com a representação
da criança enquanto sujeito, representação essa que se formou na relação com o
“outro”.
Portanto, a existência do sujeito só é possível de apreensão como uma entidade
visual do outro, isto é, da posição do outro. Fora da imagem reflexa do espelho, o
sujeito volta a ser o outro que ele era antes da imagem refletida e que nunca deixou de
ser. Esse mecanismo se dá em função do desenvolvimento do processo de projeção
que, ao se repetir, permite ao sujeito superar seus pontos de fixação.
4.6 O Rosto Próprio Enquanto Estranho
O reconhecimento de si no espelho conforma uma projeção, não realizada em
função das dificuldades em se reconhecer. No entanto, a proximidade da imagem
objetivada em relação ao sujeito suscita, a princípio, um sentimento de estranho
inquietante em relação ao duplo especular. Um sentimento muito próximo do que a
criança vivenciou no momento em que inicialmente ela percebe o rosto da mãe, com o
qual ela se identificou, como podendo ser o outro. Portanto, o mal-estar que a princípio
a criança sente diante do desdobramento do sujeito no espelho prenuncia o início de
uma projeção que interrompe a identificação primordial com o rosto do outro: “sou
outro diferente do outro, logo sou eu mesmo” 119.
Mas esse “eu mesmo” que o espelho reflete, numa realidade virtual, é, no
entanto, novamente um outro. A experiência do espelho, portanto, se caracteriza por
um processo de desidentificação do rosto da mãe, para um processo de identificaçãocom o rosto do próprio sujeito. Entre esses dois processos toda sorte de percepção
possível pode ocorrer, do familiar ao estranho, que vão aparecer sob várias formas de
afetos, do medo ao constrangimento. Sentimentos como o que nos descreve S. Freud,
em texto de 1919, o Estranho, em que relata o equívoco de que foi vítima quando,
pensando ter entrado em sua cabina um estranho durante uma viagem, se precipita para
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mostrar-lhe o seu desagrado pela invasão, quando percebe que o estranho que pretendia
expulsar nada mais era do que seu próprio rosto refletido no espelho da porta de
comunicação. Diz Freud: “Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua
aparência” 120.
Sami-Ali lança mão de um conceito de Lacan, “a assunção jubilatória”, para
explicar que a criança da fase do espelho, dependente da mãe para se alimentar, em
processo de desenvolvimento de suas funções motoras, está longe de colocar em ação
todo o processo dialético da identificação com o outro. No entanto, dá-se aí o
deslanchar de um longo processo de projeção que tem como objetivo formar, em sua
diferença, o rosto do outro com o qual a criança se identificara de início:
A assunção jubilatória adquire então uma tríplice significação: é a
culminância da separação primordial entre o dentro e o fora; é asuperação do estranho inquietante primitivamente ligado à percepção doduplo; e é a confirmação do primado absoluto dessa mesma percepção.
121
Por ser a experiência do espelho derivada do duplo e não ao contrário, por mais
eventual que ela possa ser, não deixa de ser uma experiência onde a criança vivencia a
perda da sua subjetividade enquanto rosto, isto é, a perda do rosto que ela imaginara
ter.
4.7 A Construção da Imagem do Corpo no Negro: Injunçãoou sobreposição do racismo?
As proposições teóricas de Sami-Ali podem, a meu ver, lançar nova luz às
discussões em torno da condição subjetiva do negro.
O modo como a condição do negro costuma ser pensada pode ser exemplificadapelo comentário de Jurandir Freire Costa, quando afirma que
... ser negro é ser violentado de forma constante e contínua e cruel, sem pausa ou repouso por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os
119 Sami-Ali (1977:125).120 Freud, S. (1969:309).121 Sami-Ali (1977:131/132).
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ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.122
Para Jurandir Freire é a violência racista que, como um peso insuportável, se
impõe ao negro, através de uma “norma psico-sócio-somática”123, criada e imposta por
uma classe dominante branca. A violência exercida pelo branco, diz Freire, reside no
fato de que as reações racistas se baseiam na destruição da identidade do negro.
À medida que o negro se depara com o esfacelamento de sua identidade negra,
ele se vê obrigado a internalizar um ideal de ego branco. No entanto, o caráter
inconciliável desse ideal de ego com sua condição biológica de ser negro exigirá um
enorme esforço a fim de conciliar um Ego e um Ideal, e o conjunto desses sacrifícios
pode até mesmo levar a um desequilíbrio psíquico: isto é, o ideal de ego negro, diz
Jurandir Freire, contraria o que denomina “regras das identificações normativas ouestruturantes” 124.
Esse fato — o processo singular pelo qual o funcionamento do ideal do ego se dá
para o negro — pode ser explicado, segundo Jurandir Freire, se considerarmos os
processos pelos quais as regras das identificações normativas ou estruturantes atuam.
Tais regras permitem ao sujeito ultrapassar a fase inicial do desenvolvimento psíquico,
tendo sua identidade delineada por uma dupla perspectiva:
A perspectiva do olhar e do desejo do agente que ocupa a funçãomaterna; a perspectiva da imagem corporal produzida pelo imaturoaparelho perceptivo da criança. 125
Trata-se, aqui, da fase do processo de construção da identidade do sujeito que
chamamos de narcísica, imaginária ou onipotente. Através desse processo, a criança
tem acesso ao mundo da linguagem, diz Jurandir Freire, da cultura, onde a mãe deixa
de ser a única referência e definição de sua identidade; acontece a introdução do pai, e
de todos outros sujeitos, sejam partes da família ou da sociedade como um todo.
Dessas relações o sujeito apreende o que lhe é ou não de direito expressar, o que lhegarante a existência em grupo numa dada comunidade histórico-social. Diz Freire:
122 Costa, J. F. (1984:104).123 Costa, J.F. (1984:104).124 Costa, J.F. (1984:105).125 Costa, J.F. (1984:105).
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As identificações normativo-estruturantes, propostas pelos pais aos filhos, são a mediação necessária entre o sujeito e a cultura.126
Essas mediações a que se refere Jurandir acontecem através das “relações físico-
emocionais” no seio familiar e do “estoque de significados lingüísticos que a cultura
põe à disposição dos sujeitos”. O ideal de ego seria, portanto, o resultado de todo esse
processo, no intercâmbio das relações parentais e sociais, onde se encontra a origem da
identidade do sujeito, em que coexistem um investimento erótico do seu próprio corpo
e do pensamento, permitindo-lhe uma via de acesso harmoniosa nas relações sociais.
Para o negro, no entanto, esta via de acesso está impedida, afirma Freire, pois o
modelo de ideal de ego ao qual o negro tem acesso, em troca de suas “antigas
aspirações narcísico-imaginárias”, está muito além do humanamente possível,
psíquica e historicamente:
O modelo de identificação normativo-estruturante com o qual ele sedefronta é o de um fetiche: o fetiche do branco, da brancura. 127
A “brancura” vista da perspectiva do olhar do negro oprimido é, como afirma
Freire, uma qualidade transcendental: para este olhar negro, prevalece a brancura,
acima das falhas do branco. A brancura se contrapõe ao mito negro. A ideologia racial,
portanto, se funda e se estrutura na condição universal e essencial da brancura, como
única via possível de acesso ao mundo.Embora o negro saiba que sua condição é o resultado das atitudes racistas e
irracionais dos brancos, o ideal de brancura permanece. Diz Freire: “a brancura
transcende o branco” 128.
A “brancura” passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética,
majestade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o branco encarna todas as virtudes, a
manifestação da razão, do espírito e das idéias: “eles são a cultura, a civilização, em
uma palavra, a humanidade”
129
.A partir dessas considerações, Jurandir Freire conclui que é a partir do momento
em que o negro se confronta com o racismo que se produz, para ele, esse desejo
126 Costa, J.F. (1984:105).127 Costa, J.F. (1984:106).128 Costa, J.F. (1984:106).129 Costa, J.F. (1984:106).
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inatingível, em conseqüência de suas condições, tanto históricas quanto étnica e
pessoal.
O que significa, do ponto de vista da condição subjetiva do negro, o desejo de
brancura? Na medida em que o desejo se põe, imaginariamente, como a tentativa de
recuperar um momento original mítico, de plenitude, o desejo de brancura supõe, para
o negro, a negação de sua condição própria, a negritude — desde a origem.
É desse modo que o “desejo do embranquecimento”, afirma Jurandir Freire,
significa o desejo de sua própria morte, do desaparecimento do seu corpo, assim “o
sujeito negro ao repudiar a cor, repudia radicalmente o corpo” 130.
Nos depoimentos analisados por Neusa Santos131, fica claro que é com embaraço,
desprezo, vergonha e hostilidade que os sujeitos apresentados por ela nos estudos de
caso se referem aos atributos físicos próprios a sua condição de negros: “beiço grosso”
do negro, “nariz chato e grosso” do negro, “cabelo ruim” do negro, “bundão” do
negro, “primitivismo sexual do negro”, etc. Sem dúvida, conclui Freire Costa, um dos
traços marcantes que a violência racista estabelece via preconceito de cor é uma
“relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo”. 132
A identidade do sujeito depende em grande parte do corpo ou imagem corporal
eroticamente investida, isto é, a identidade depende da relação que o sujeito cria com o
próprio corpo. É assim que Jurandir Freire conclui que:
A partir do momento em que o negro toma consciência do racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo-próprio”. 133
É em função dessa consciência que o sujeito negro passa a controlar, observar e
vigiar o corpo que “se opõe à construção da identidade branca” que foi obrigado a
desejar. É aí que o sofrimento pela consciência da diferença do seu corpo em relação
ao corpo branco faz emergir a negação e o ódio a seu próprio corpo: corpo negro.
Eu diria, no entanto, que esta condição é mais que uma injunção, como quer
Freire. Trata-se, a meu ver, de algo que ultrapassa os limites do imposto, mas que se
caracteriza como o que proponho chamar de sobreposto.
130 Costa, J.F. (1984:107).131 Souza, N.S. (1983).132 Costa, J.F. (1984:107).133 Costa, J.F. (1984:108).
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Negar e anular o próprio corpo não torna o sujeito “outro”, visto que só
existimos como sujeito em relação ao outro, à alteridade; portanto, ser sujeito é ser
outro e ser o outro é não ser o próprio sujeito.
O que somos nós, os negros?
Ser branco significa uma condição genérica: ser branco constitui o elemento não
marcado, o neutro da humanidade. Se considerarmos o processo de construção do
corpo imaginário, a partir do referencial da psicanálise e, mais especificamente, das
proposições de Sami-Ali, podemos supor que, se nada de extraordinário ocorrer na
evolução do indivíduo, ele se tornará um sujeito a partir do outro, da alteridade,
experimentará, eventualmente, o sentimento de “estranho inquietante”, diante de uma
experiência inesperada, como a de ser, inesperadamente, refletido em um espelho ou
em uma superfície refletora qualquer, experimentando sentimentos de medo econstrangimento, para em seguida se recompor, reconhecendo-se e não se repudiando,
na certeza de que será confirmado enquanto sujeito pelo olhar do outro.
Para os negros, no entanto, o estranho inquietante é mais do que o
reconhecimento de um eventual outro — estranho — em si mesmo: é o reconhecimento
de sua condição de não ser; é o reencontro de um rosto que um processo desrealizante
imaginariamente negara. Ser negro não é uma condição genérica, é uma condição
específica, é um elemento marcado, não neutro.
O “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social, que se
expressa dentro de um campo etno-semântico onde o significante “cor negra” encerra
vários significados. O signo “negro” remete não só a posições sociais inferiores, mas
também a características biológicas supostamente aquém do valor das propriedades
biológicas atribuídas aos brancos. Não se trata, está claro, de significados
explicitamente assumidos, mas de sentidos presentes, restos de um processo histórico-
ideológico que persistem numa zona de associações possíveis e que podem, a qualquer
momento, emergir de forma explícita.
Se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica o negro que se
confronta com o olhar do outro que mostra reconhecer nele o significado que a pele
negra traz enquanto significante?
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Resta ao negro, para além de seus fantasmas, inerentes ao ser humano, o desejo
de recusar esse significante, que representa o significado que ele tenta negar, negando-
se, dessa forma, a si mesmo, pela negação do próprio corpo.
Jurandir Freire nos expõe todo um mecanismo em que deixa muito claro que é
por intermédio de algo imposto, a partir de um momento em que a experiência do
racismo se dá de modo consciente para o sujeito negro, que se desencadeia, para esse
sujeito, o processo de autodestruição, destruição do seu corpo próprio, corpo negro.
Este é o processo que Freire qualifica como uma injunção. A meu ver, no entanto, esse
fenômeno corresponde antes a uma sobreposição, pois o encontro com o racismo
enquanto experiência consciente vem se sobrepor a um real de recusa do corpo negro
que corresponde a uma lembrança arcaica. O que quero dizer é que, ao contrário do que
afirma Freire, não há, para o negro, um momento mítico, original, anterior ao encontro
com a dimensão social mais ampla na qual o racismo se manifesta: para o sujeito negro
esse encontro se sobrepõe à lembrança arcaica de um encontro anterior, a partir do qual
suas estruturas narcísico-imaginárias se determinaram.
Como afirma Jerusalinsky:
A criança existe psiquicamente na mãe muito antes de nascer, e aindamais, muito antes de ser gerada.134
O bebê negro, está claro, não é menos desejado que o bebê branco, para sua mãeque, inconscientemente, deseja o filho. Mas a criança do projeto e do desejo da mãe
certamente não está representada no pequeno corpo negro, que o olhar materno,
inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja,
para si, a brancura.
Isto se explica porque o eixo central do processo que constitui o sujeito não está
na satisfação nem na frustração das suas necessidades; para o sujeito humano, não há
nenhum mecanismo genético que possa garantir esse processo. A operação que o
define se situa, ao contrário, em outro nível — o do significante.
As falas fundadoras, que envolvem o sujeito, são tudo aquilo que oconstitui, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura da comunidade, que oconstitui não somente como símbolo, mas no seu ser. São leis denomenclatura as que determinam, ao menos até um certo ponto,, ecanalizam as alianças a partir das quais os seres humanos copulam
134 Jerusalinsky, A. (1984:40).
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entre si e acabam por criar, não só outros símbolos, mas também seresreais que, ao chegarem ao mundo, logo possuem essa pequena etiquetaque é seu nome, símbolo essencial do que lhe está reservado. 135
Isto significa que todo ato da mãe para com a criança é parte de um discurso,
discurso que se expressa em todos os movimentos e atitudes do outro com quem acriança se identifica, e no qual se manifesta o desejo materno:
Sendo que esse desejo se articula no que falta à mãe: o falo, esse ficasendo o orientador dessas identificações que utilizam o imaginário comosignificante. 136
Partindo das proposições lacanianas, e entendendo “falo” como o que representa
o poder (a plenitude, a felicidade), ao transpor essas proposições para a situação da
mãe negra cuja “falta” se expressa enquanto desejo de ser “branca”, portanto, do
desejo desse poder que ela não detém, que lhe falta, vemos que a criança negra sofreria
na relação original sua primeira avaria, pois o que a constitui como sujeito nesse
momento original — o desejo da mãe — já estaria impregnado de um significado que é
negado no discurso da própria mãe.
Assim, não dispondo de qualquer possibilidade de disfarce da diferença que o
constitui, o negro passa por um processo identificatório forjado no desejo do que seria
ser “branco”; projeta, portanto, o branco que nunca será por condição biológica.
Está posta, assim, uma dualidade fundamental, no que tange à estrutura psíquica
do negro: uma dupla lacuna se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o real
de sua condição de negro, enquanto tal, não é reconhecido, é negado e se nega. Que
processo se daria, então, na elaboração do imaginário de alguém nessas condições?
O negro sofre do medo permanente da perda da sua imagem, tal qual ele a
mantém em sua representação imaginária: a de branco, mantida por um ideal de
brancura.
Entre o que o olhar do outro reflete para o sujeito negro e a imagem que o negro
tem de seu próprio corpo negro, há, na verdade, uma coincidência. O que o olhar do
outro lhe mostra, desse modo, é o que, no seu desejo, o sujeito negro recusa: o fato de
135 Lacan, J. (1978:31).136 Lacan, J. Las formaciones del inconciente. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970, p. 99; citado em
Jerusalinsky, A. (1984:10).
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que ele é a encarnação do significado “negro”, na medida em que ele traz no corpo o
significante “negro”.
4.8 A Criança Negra e o Espelho
A partir das reflexões até agora desenvolvidas, pode-se pensar a singularidade
que a experiência do espelho comporta para a criança negra.
Como para qualquer criança, é na experiência que Lacan denominou o “estádio
do espelho” que se produz a experiência de domínio do corpo como uma totalidade, em
substituição àquilo que anteriormente era vivenciado em pedaços. Mas, a
particularidade que a experiência do espelho, na criança negra, envolve, diz respeito ao
fato de que o fascínio que essa experiência produz é acompanhado, simultaneamente,
por uma repulsa à imagem que o espelho virtualmente oferece. Nesse movimento, a
assunção jubilatória de que falava Lacan é necessariamente acompanhada de um
processo suplementar que envolve a negação imaginária do semblante que a imagem
especular oferece, pois a criança negra reluta em aderir a essa imagem de si que não
corresponde à imagem do desejo da mãe.
Ao tomar-se pela imagem, ela conclui que “aquela imagem é ela”; mas, nãoreconhecendo ali a imagem do desejo da mãe, a criança se vê, desde então,
inconscientemente mobilizada a procurar, nessa imagem, o que a reconciliaria com o
desejo materno.
A mãe negra, como já foi observado, ama seu bebê, mas nega, ao mesmo tempo,
o que a pele negra representa, simbolicamente. Tal dualidade vai marcar a experiência
do espelho na criança negra, caracterizando seu processo de identificação: coincido
com o que, da minha imagem, corresponde ao desejo materno; não coincido com o que,
dessa mesma imagem, contraria o desejo materno.
Nesse movimento, produz-se um mecanismo complexo de identificação / não
identificação, que reproduz, para a criança negra, as experiências do adulto negro: o
fato de sua identificação imaginária ser atravessada pelo ideal da “brancura”. Para
reconciliar-se com a imagem do desejo materno — a brancura — a criança negra
precisa negar alguma coisa de si mesma.
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O que Lacan chamou de identificação primordial com uma imagem ideal de si
mesmo, na experiência da criança negra ocorre de forma conturbada, porque a imagem
que o espelho lhe dá exige, para ser introjetada, uma operação suplementar de
idealização: é preciso projetar nessa imagem um ideal de “brancura” para afastar dela
o componente de rejeição que a pele negra envolve, no desejo materno.
4.9 A Relação Persecutória com o Corpo Negro
Para Sami-Ali, no processo de despersonalização o sujeito vivencia uma
alternância entre perder a recuperar a sensação de ter um corpo, o que acarreta uma
angústia que se refere ao medo de perder a forma humana, na possibilidade de uma
possessão que o faria se transformar em um animal ou algo inominável. Daí resulta um
imenso pavor da loucura, estado permanente da angústia de despersonalização.
Desencadeia-se, então, para o sujeito, uma ânsia desesperada por estar em relações
transferencialmente positivas.
É o caso de se perguntar se tal processo de despersonalização não é algo que o
negro, guardadas as devidas proporções, vivencie de uma forma crônica, e que,
estranhamente, não o leva a suas últimas conseqüências, ou seja, à loucura. Pode haver
algo mais complexo do que ser portador de um corpo negro, portanto, marcado pelos
significados a ele associados, a partir do que conhecemos a respeito da gênese da
imagem do corpo? Lembremos que é num processo inconsciente que esta gênese se
dará, como resultante de um duplo processo identificatório e projetivo: “ser o sujeito
sendo concomitante o outro e ser o outro não sendo o próprio sujeito”137.
Evidentemente, no confuso processo por que passam os negros, ser sujeito no
outro significa não ser o real do seu próprio corpo, que deve ser negado para que sepossa ser o outro. Mas esta imagem de si forjada na relação com o outro — e no ideal
de brancura — não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo
próprio, mas é, por este, negada, estabelecendo-se aí uma confusão entre o real e o
imaginário. Essa confusão despersonaliza e transforma o sujeito num autômato: o
sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro.
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tais ameaças racistas não se cumprirão, o pavor não desaparece, porque ele traz no
corpo o significado que incita e justifica, para o outro, a violência racista.
É justamente porque o racismo não se formula explicitamente, mas antes
sobrevive num devir interminável, enquanto uma possibilidade virtual, que o terror de
possíveis ataques (de qualquer natureza, desde física a psíquica) por parte dos brancos
cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe
inexoravelmente.
Ainda que lançando mão de um arsenal racional lógico o negro possa
desconsiderar tais ameaças racistas que parecem grotescas, absurdas, totalmente
incabíveis legalmente — já que criminosas em termos de direitos civis — é mais forte
que ele: ele acaba sempre por sucumbir a todo um processo inconsciente que, alheio à
sua vontade, entrará em ação.
4.10 A ‘‘Vergonha de Si’’ e os Processos Auto-destrutivos no
Negro
Quando o processo de despersonalização de que nos fala Sami-Ali é levado às
últimas conseqüências, o indivíduo sofre a perda da condição de sujeito e, como
correlativamente, sofre uma quebra no processo de simbolização: ocorre, então, a perda
do simbólico, que implica na impossibilidade de elaboração de qualquer situação do
seu cotidiano.
Tal forma extrema a que pode levar o processo de despersonalização depende,
está claro, da constituição psíquica estrutural do sujeito, que o torna mais ou menos
vulnerável à possibilidade de uma cisão psíquica. No entanto, independentemente
disso, tal experiência pode ser dar, enquanto fenômeno descontínuo e fugaz, paraqualquer sujeito, pois os processos psíquicos não são excludentes entre si, e podem
ocorrer concomitantemente na estrutura da psique.
139 Sami-Ali (1977:34).
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Essas considerações se aplicam identicamente ao conceito de vergonha que
pode levar ao ódio de si, proposto por Radmila Zygouris 140, que pode funcionar tanto
como uma etapa intermediária antes da possibilidade de instauração propriamente dita
do processo de despersonalização, como pode funcionar como processo pontual,
eventualmente experimentado pelo sujeito em função das experiências vividas.
A vergonha, diz Zygouris, não habita o recém-nascido: esse sentimento começa a
existir a partir da percepção do que ela denomina o julgamento moral do outro, e
produz, como conseqüência para o sujeito, um estado de angústia.
Zygouris estabelece uma correlação entre o sentimento de vergonha de si e a
experiência original da angústia:
A angústia nasce do medo de perder o objeto amado ou de sua espera
devastadora, a vergonha é uma decadência social, ainda que o ‘social’seja reduzido à sua mais simples expressão: um olhar que julga! Esseolhar pode ser o da própria mãe desde os tempos primordiais de umaparente idílio, mas que não lhe pertence: esse olhar que julga já é ainstância à qual a mãe se submeteu e que a criança percebe comoestrangeira ao território de ambas. 141
Zygouris aponta aí a origem da primeira experiência do sentimento de exclusão,
da primeira sensação de “derrota do bom para si em proveito do bem para o outro”.
Para Zygouris, não importa qual tenha sido a causa, nem qual o objeto da
vergonha de si, nem se se trata de vergonha por um outro: sempre será vivida como
vergonha de si mesmo.
Mesmo que se pense a origem da vergonha como oriunda das feridas narcísicas,
ou de dificuldades com o ideal do eu, nenhuma dessas considerações leva em conta que
a vergonha demanda uma “vingança” (reparação), e quando ela não acontece, a
vergonha jamais será esquecida.
Toda situação onde a vergonha se faz presente é uma situação deviolência real ou simbólica, violência feita ao psiquismo, e emconseqüência da impossibilidade de uma resposta eficiente, ao própriocorpo. 142
140 Zygouris, R. (1995).141 Zygouris, R. (1995:166).142 Zygouris, R. (1995:167).
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É nesse sentido que na vergonha de si há um aspecto pulsional que lhe dá
fundamento corporal. Assim, a vergonha de si aparece como um desastre visceral, que
não pode ser esquecido, que demanda o tempo todo um agir que não pode acontecer,
levando o sujeito a uma sensação de impotência.
A vergonha tem sua origem no social, mesmo que ela tenha ocorrido no seio
familiar; coloca o sujeito em confronto com a violência e a impossibilidade de reagir.
Ela desencadeia a angústia e se apodera do corpo, provocando o rubor, o suor e o
desejo de desaparecer. É impossível esquecê-la porque ela está inscrita no sujeito, não
só como uma representação, uma lembrança de dor, mas “como uma experiência
traumática inscrita no próprio corpo” 143.
A experiência de vergonha e a pulsão agressiva que se apresenta,
simultaneamente a uma angústia, são, diz Zygouris, tanto uma quanto a outra, comoafetos em estado bruto, como pura pulsão, que prescindem dos valores linguageiros,
pois na medida em que esses afetos não produzem uma resposta adequada, o espaço
simbólico de vida, que se orienta pelos valores que a linguagem instaura, sofre uma
desestruturação.
Quando colocado em uma situação em que vê seu objeto de amor — e esse
objeto pode ser, em função do princípio narcísico, a imagem de si — atacado pelo
outro, insultado, o sujeito é atacado ele mesmo, e deve reagir, em função de sua pulsão
agressiva.
Mas quando essa situação desencadeia, para o sujeito, a vergonha de si, é
impossível a reação da pulsão agressiva, uma vez que o sujeito, nesse caso, se vê numa
situação de impotência, e a pulsão agressiva, ao invés de se externalizar em direção ao
outro, encontra como saída o próprio corpo do sujeito.
O sujeito é, assim, duplamente atingido: em seu objeto de amor, do qualsempre é apenas parcialmente separado; e em sua capacidade de
resposta, sofrendo desse modo a violência da pressão da pulsão contra si próprio — seu corpo, sua face, seu nome”. 144
No processo de vergonha de si a denominação é a figura por excelência, pois
comumente a denominação marcada pelo sentido da vergonha — como ocorre nos
casos exemplares do insulto ou da injúria — ocupa, no discurso que produz a ofensa, o
143 Zygouris, R. (1995:166).
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lugar do nome próprio do sujeito. Dessa forma, a denominação proferida pelo outro
reduz o sujeito a não ser mais nada, resultando, para ele, na perda simultânea do nome
próprio e da identidade.
Tal denominação faz com que aquele que é seu objeto se veja ameaçado de
exclusão. Diz Zygouris que, se “por vezes isso diga respeito ao imaginário não diminui
em nada a ferida, que não é imaginária quando toca ao mesmo tempo no real do corpo
e no simbolismo do nome próprio” 145.
O nome próprio é o signo que representa o próprio sujeito, que o diferencia do
outro. Diz Zygouris:
Meu nome me separa de ti, mas também graças a ele você pode mechamar. Se a ofensa vier nesse mesmo lugar, então tudo pode
desmoronar... ‘Sinto vergonha’”.
146
A categoria de vergonha de si, a meu ver, permite contemplar de modo bastante
apropriado um fenômeno que, no caso dos negros, constitui uma experiência central,
espécie de marca por excelência na qual se manifestam os processos de racismo e
exclusão.
Refiro-me, aqui, às formas de denominação ofensiva a que o negro é,
comumente, exposto no espaço social, e que, longe de serem uma experiência
específica do indivíduo, se associam ao extenso repertório de designações depreciativasque, historicamente, marcaram os negros (de que Conty, por exemplo, é um
representante, como vimos na seção 2).
Quando o negro é designado, por exemplo, como “macaco”, quando, numa
situação de tráfego, ouve alguém que, dirigindo-se a ele, diz “macacos não deveriam
dirigir”, a vergonha o invade.
O negro ensaia uma resposta, mas o impacto da situação o paralisa. A fantasia,
no entanto, é a de poder dar uma resposta à altura e se vingar do agente dessa situaçãode humilhação.
A designação “macaco” vem ocupar o lugar de seu nome próprio, pois toda
denominação ocupa o lugar do nome próprio do sujeito.
144 Zygouris, R. (1995:168).145 Zygouris, R. (1995:170).146 Zygouris, R. (1995:171).
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Não conseguindo se ver incluído, o negro acaba por se excluir, como única
alternativa para eliminar aquilo que é impossível de ser eliminado. Somente os
processos auto-destrutivos podem significar, para ele, a eliminação daquilo que exclui
seu próprio corpo, sua própria condição de sujeito.
Na sociedade atravessada por uma história de racismo e discriminação persiste,
mesmo que silenciosamente, o pressuposto de que o negro deverá agir de acordo com
certos estereótipos do comportamento do negro que habitam o imaginário social, ou
seja, o negro deverá agir sempre com paciência e moderação; não é suposto estar
sujeito às emoções inerentes ao humano — ódio, raiva, amor — das pessoas ou do
grupo. Deverá se contentar com empregos que nada exijam de inteligência e pelo qual
lhe paguem um salário de subsistência; ele se sentirá feliz em viver e criar sua família
em habitações inadequadas.
Quando o negro percorre uma trajetória social que não corresponde aos
estereótipos sociais da condição negra, não é incomum que ela acabe por se destruir
como se não se desse conta de seu próprio sucesso. Ainda que sua autodestruição
pareça um contra-senso, ela faz sentido no interior de uma lógica em que a “mancha
negra” da qual ele é o portador deverá ser destruída. Isto faz do negro alguém que está
fadado a estar sempre aquém dos padrões idealizados pela sociedade branca.
Na realidade, o significado do percurso do negro socialmente bem sucedido não
pode ser dissociado daquela luta para se sentir incluído (de que tratamos na seção
anterior). Em tal trajetória, o negro acaba sempre por se sentir, de alguma forma,
despossuído dos sentidos desse processo, que, para ele, sempre aparecerá como a
realização do desejo do outro. Em meio a esse processo, o negro acaba por não
conseguir discernir bem quais seriam suas próprias expectativas.
A alienação que resulta de um longo período histórico de subordinação e
humilhação faz com que os negros padeçam de um terrível sentido de inferioridade,
que chega até mesmo ao ódio, em relação à sua condição de “pessoa negra”.
São inúmeros os exemplos de negros que, embora tenham alcançado um lugar
social de destaque (realizando, assim, a inclusão), mesmo assim se empenham, num
processo auto-destrutivo, em “apagar” as marcas do corpo negro, seja pela
modificação de suas características biológicas (o que pode incluir até mesmo a cor da
pele, por meio de branqueamento artificial), seja pelo seu “apagamento” psíquico,
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num gesto onipotente de negação de sua própria condição física de negro (como, por
exemplo, se mostra na declaração: “Eu não sou um negro, sou Pelé”).
O negro é afetado, ele próprio, pelos estereótipos sociais que o territorializam
negro na periferia da sociedade, na subcultura, na pobreza, ao mesmo tempo que é
compulsoriamente atraído pelos lugares e valores sociais estereotipicamente marcados
como “brancos”: os lugares de poder, de status, de segurança, de cultura e, até mesmo,
de beleza são vistos como possessões brancas. Desse modo, a construção de sua
própria identidade, para o negro, é sempre atravessada pela frustração.
No imaginário social produzido pela sociedade branca e escravocrata, o negro
funcionou como significante catalisador dos fantasmas e perversidades dessa mesma
sociedade, que, exteriorizando esses núcleos internos que aterrorizam, construiu
representações em que tais horrores são presentificados no corpo negro.
É assim que, a representação da sexualidade do negro, para tal imaginário,
coloca-o na dimensão da violência selvagem (o estupro, por exemplo), ou na dimensão
do gozo invejado (na figura de uma extraordinária potência sexual do homem negro ou
da sensualidade exacerbada da mulher negra).
A essas imagens sociais, obviamente, o negro não está imune e seu efeito é
confundir e perturbar o sujeito que, na sua tentativa desesperada de não ser a
presentificação do “mal”, adere de forma fantasmática aos valores “brancos”, pelanegação de suas características étnicas que chega, no limite, como vimos, à negação de
seu corpo próprio.
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Capítulo V
A Condição de Negro Vivida como Privação
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5.1 A Categoria Freudiana de Romance Familiar
Para Freud, o crescimento do indivíduo necessariamente passa pelo “libertar-se
da autoridade” dos pais; processo doloroso, esse movimento de liberação é essencialpara o equilíbrio do indivíduo, que será proporcional ao quanto conseguir se liberar. O
progresso da sociedade se baseia na oposição entre gerações que se sucedem; mas há
alguns indivíduos, segundo Freud, “uma classe de neuróticos”, cujo modo de ser é
claramente determinado pela falha desse processo.
Para a criança, os pais representam a “autoridade única e a fonte de todos os
conhecimentos”147, o que provoca na criança, nos seus primeiros anos de vida, um
desejo de se igualar aos pais (“isto é, ao progenitor do mesmo sexo”
), ser como seu paiou sua mãe. No entanto, o desenvolvimento intelectual da criança dá-lhe a
possibilidade de descobrir, gradativamente, a que categoria pertencem seus pais: em
suas relações sociais, é inevitável o conhecimento de outros pais, que ela acaba por
comparar aos seus e, dessa forma, poderá questionar qualidades que, num primeiro
momento, ela considerara insuperáveis.
As frustrações cotidianas que as crianças experimentam no convívio com os pais
dão-lhes suporte para criticá-los, já que, na comparação com outros pais, a criança se
dá conta de que em alguns aspectos os outros se mostram mais interessantes do que os
seus:
A psicologia das neuroses nos ensina que, entre outros fatores,contribuem para esse resultado os impulsos mais intensos de rivalidadesexual.148
A criança, que se sente descuidada pelos pais, experimenta um sentimento que,
sem dúvida, serve de base para que passe a rivalizar com os pais. Em função da
existência de outros irmãos e irmãs, a criança sente-se prejudicada em sua cota deamor, imagina não estar recebendo dos pais o amor que tem que ser compartilhado
pelos irmãos e irmãs. Freud aponta que, mais tarde, na adolescência, essa vivência trará
a idéia, ao adolescente, de ter sido uma criança adotada ou de que um dos pais possa
ser padrasto ou madrasta.
147 Freud, S. (1969:243).148 Freud, S. (1969:243).
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Não é incomum que alguns indivíduos que não desenvolveram neurose acentuada
se recordem de que, em momentos de conflito com os pais, reagiram respondendo-lhes
que tal tratamento só era possível porque ele fora adotado. Os impulsos hostis contra o
pai são mais acentuados no menino do que na menina, os meninos tendem a querer se
livrar do pai, de forma mais acentuada do que das mães, e vice-versa com as meninas,embora Freud observe que nas meninas a imaginação tende a se revelar mais fraca:
Esses impulsos mentais da infância conscientemente lembradosconstituem o fator que nos permite entender a natureza dos mitos.149
Freud denomina “romance familiar do neurótico” o conjunto das representações
ligadas a esse processo de afastamento em relação aos pais. Uma vez ultrapassada essa
fase, o “romance familiar do neurótico” quase sempre é esquecido e raramente se
constitui numa lembrança consciente, que pode ser revelada pela psicanálise.
O romance familiar é produto de uma “atividade imaginativa estranhamente
acentuada”, que é uma característica essencial dos neuróticos e de pessoas
relativamente inteligentes. A atividade imaginativa que se ocupa das relações
familiares aparece na criança nas brincadeiras até o período anterior à puberdade. Os
devaneios, que são comuns até depois da puberdade, são um exemplo da atividade
imaginativa.
Esses devaneios correspondem a “realização de desejos e uma retificação da vidareal.” 150 Têm dois objetivos principais: um erótico e um ambicioso — embora o
objetivo erótico esteja comumente oculto sob o último.
Nesse período de grande atividade imaginativa, a criança se dedica a libertar-se
dos pais, que já não ocupam mais um lugar de alta estima, e os substituir por outros,
“em geral de uma posição social mais elevada”:
Nessa conexão ela lançará mão de quaisquer coincidências oportunas de
sua experiência real, tal como quando trava conhecimento com o senhorda Casa Grande ou com o dono de alguma grande propriedade, se morano campo, ou com algum membro da aristocracia, se mora na cidade.151
149 Freud, S. (1969:244).150 Freud, S. (1969:244/245).151 Freud, S. (1969:245).
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São acontecimentos que fazem brotar a inveja da criança, que se expressa na
fantasia de que seus pais sejam substituídos por outros de melhor origem;
evidentemente, a forma dessas fantasias, que são conscientes nesse período, depende
da capacidade criadora e do material de que a criança dispõe para inventar.
Independentemente das fantasias serem próximas da realidade, esse estádio se dá
numa época em que a “criança ainda ignora os determinantes sexuais da procriação.”
152
Quando finalmente a criança vem a conhecer a diferença entre os papéisdesempenhados pelos pais e pelas mães em suas relações sexuais, [e]compreende que ‘pater semper incertus est’, enquanto a mãe é‘certíssima’.153
A partir dessa aquisição, o romance familiar “sofre uma curiosa restrição”: o paipassa a ser o ponto duvidoso, enquanto a mãe não é colocada em dúvida, já que a
origem materna passa a ser indiscutível.
Nesse segundo estádio (sexual) do romance familiar, dá-se a influência de um
outro motivo que não está presente no primeiro estádio (assexual). A essa altura, como
a criança conhece os processos sexuais, ela se imagina em “relações e situações
eróticas”: sendo a mãe o objeto de acentuada curiosidade sexual, ela funciona como
causa do desejo de imaginá-la em “situações de secreta infidelidade e em secretos
casos amorosos.” 154 As fantasias infantis que, a princípio, eram assexuadas, passam a
ser sexuadas, mantendo-se a vingança e a retaliação, que eram bem evidenciadas no
primeiro estádio. Segundo Freud, as crianças neuróticas, que sofreram punições por
suas traquinagens sexuais, se vingam dos pais através dessas fantasias. As crianças
mais novas lançam mão dessas histórias imaginativas, para destituir seus irmãos dos
seus respectivos lugares junto a seus pais, atribuindo à mãe tantos romances fictícios
“quantos são os seus competidores”.
Há variações nesses romances familiares, onde o herói e autor é legitimamentereconhecido, enquanto os irmãos são declaradamente bastardos. O curso dos romances
familiares pode variar de acordo com a demanda interna da criança; por exemplo, uma
criança pode eliminar o grau de parentesco que o une a uma irmã por quem se sente
152 Freud, S. (1969:245).153 Freud, S. (1969:245).154 Freud, S. (1969:245).
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sexualmente atraído. Sob essa aparente indecência infantil se esconde a “primitiva
afeição da criança por seus pais, a infidelidade e a ingratidão são apenas aparentes”
155
Ao olharmos de maneira mais detalhada esses romances imaginativos, a criança
conserva qualidades de seus pais verdadeiros que são atribuídas aos pais aristocráticos;
não se trata de descartar seus pais verdadeiros, mas melhorá-los.
Todo esforço de substituição de seus pais verdadeiros via romance é a expressão
da sua saudade dos dias em que ela pensava seu pai como o homem mais forte e nobre
e “sua mãe a mais linda e amável das mulheres.” 156 A fantasia da criança representa
um lamento pelos dias felizes que ela perdeu: desconhece o pai do presente, para
reconhecer aquele “pai em que confiava nos primeiros anos de sua infância.” Nessas
fantasias são expressas a supervalorização que a criança faz dos pais nos seusprimeiros anos de vida.
5.2 Gênese do Mito da Brancura no Romance Familiar do
Negro
Se todo indivíduo, no processo psíquico de construção da dimensão subjetiva,
vivencia esse processo de afastamento em relação aos pais que se manifesta no
romance familiar, para a criança negra esse processo põe em jogo de modo decisivo os
sentidos associados à pele negra e, nesse movimento de desqualificação dos pais que o
romance familiar envolve, o que se manifesta, para a criança negra, é a emergência do
ideal da brancura.
Pode-se dizer que, mesmo antes da fase em que o romance familiar se manifesta,
isto é, naquela fase em que a criança adere totalmente a seus pais, imbuídos, para ela,
de uma aura de perfeição, a experiência d criança negra comporta uma singularidade, já
que ela se confronta, desde os primórdios, com o ideal da brancura presente em seus
próprios pais. Na medida em que a brancura representa, na fantasia dos negros e dos
brancos, um estado “mais perfeito” do que aquele que é próprio da condição de negro,
155 Freud, S. (1969:246).
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a criança negra é, desde sempre, confrontada com o fato de que a figura de seus pais é
marcada por uma autoridade e uma perfeição “diminuídas”. A criança negra é aquela
cujos pais aparecem, desde sempre, para ela, como fragilizados pelo desejo inacessível
da brancura.
Nesse momento inicial, anterior ao distanciamento que o romance familiar
expressa, a criança deseja assemelhar-se totalmente aos pais. Para a criança negra, essa
identificação ilimitada da fase inicial já envolve a identificação com a fragilização que
afeta os pais negros, decorrente de um imaginário de falta de saber, de poder, os quais
constituem sentidos associados à brancura; mas tal fragilidade é também decorrente do
medo e da desconfiança que as experiências de discriminação produziram para seus
pais. É nesse sentido que, no capítulo anterior, procurei chamar a atenção para o fato de
que a discriminação se manifesta, para o negro, muito antes de qualquer experiência
social de discriminação: é com os efeitos desta, enquanto já inscritos na psique de seus
pais negros, que a criança primeiramente se confronta.
Quando a criança atinge certo conhecimento ela se depara, por comparação, com
a categoria social em que estão incluídos seus pais; ela se depara, nesse momento,
com a vergonha de pais que são “diminuídos” em relação a outros pais, que não só
possuem qualidades e atributos que superam às de seus pais, como são o que até
mesmo seus pais desejariam ser.
Se é normal que, nos processos de frustração que as crianças experimentam na
relação com seus pais, a comparação e a crítica sejam inevitáveis, para a criança negra
os outros pais são mais do que interessantes em relação aos seus pais: não há
comparação ou semelhança possível com o modelo valorizado de pais brancos; começa
aí o sentimento de vergonha em relação ao que os pais negros representam.
É nesse momento que, no romance familiar da criança negra, seus pais serão
responsabilizados por serem a causa de uma incomensurável infelicidade que a afeta,
aquela de possuir um corpo negro.
A isso se acresce o sentimento de disputa com os irmãos (quando esses existem):
pais que estão bem longe de serem ideais, e que ainda, por vezes, dividem o mínimo
que poderiam lhe dar com outros filhos.
156 Freud, S. (1969:246).
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É assim que, para a criança negra, o mecanismo de atribuir aos pais a condição
de falsos pais, pela fantasia de que fora adotada, se dá como conseqüência de uma
dupla frustração: não podem ser verdadeiramente meus esses pais que não me amam
como deveriam, porque dão o amor que a mim caberia a outros e também porque
impuseram, a mim, uma condição insuportável: ser negro.
Essa é a gênese da separação da criança negra de seus pais: o próprio romance
familiar, período de fantasias, de devaneios, e de retificação da dura realidade da
discriminação que aparece como infligida a ela, em princípio, pelos próprios pais,
estruturando, para a criança negra, o mito de que a condição do branco é superior à
sua. O mito da brancura nasce nessa fase onde a capacidade de exagerar os fatos ou
personagens reais é remarcável. São ideais ou representações fantasísticas, mas que
aparecem para a criança negra como reais.
Representações da brancura enquanto mito, idealizações simplificadas do que é
ser branco, ilusórias, sem dúvida, mas que passam a representar um significado que
passará a ter decisivo papel em seu comportamento.
A criança negra começa por ir mais além do desejo de querer ser branca; passa a
tentar se assemelhar ao branco no vestir, no cabelo, etc. Desde que ser branco, para a
criança negra, se constitui como um mito, ela passa a viver a ilusão da imagem da
perfeição absoluta, a utopia da brancura.
Nesse contexto fantasioso, os pais negros são substituídos pelos brancos; eles,
que já não tinham um lugar muito seguro de estima, serão trocados por outros que não
só têm uma posição social, na maioria das vezes, superior à dos pais negros, mas
representam o que elas e seus pais gostariam de ser. Instaura-se aqui a inveja do
branco, como aquele que detém algo que lhe falta: a brancura.
A criança negra, ao amadurecer mais, se dá conta dos determinantes familiares,
ou seja, da estrutura de família e de sua história.
Na maioria das vezes, ela desconhece o pai, quando não foi abandonada pelo pai
e pela mãe. Isto a coloca no limite do que a discriminação, que ela já pressentiu,
representa enquanto isolamento. Mas, supondo que ela tenha mãe, como para qualquer
outra criança, nessa fase os processos sexuais se fazem evidentes. Mas, para ela, as
fantasias sexuais com a mãe e o desejo de exclusividade vão estar comprometidos por
essa mãe que, ao exibir o corpo negro, remete ao que ela, a essa altura, já aprendeu a
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111
O negro, contrariamente ao imigrante, que fez uma “escolha” de buscar uma
nova oportunidade de trabalho a fim de prosperar numa terra distante, foi capturado,
aprisionado, estrategicamente animalizado pelo traficante que o colocava em
condições de perda de identidade.
Expatriado, sem referências pessoais, apartado de sua língua e alheio aos
costumes locais, via-se despossuído de sua humanização que somente as estruturas do
sistema cultural garantem.
No novo ambiente sócio-cultural em que aportou, o negro era visto como um bem
pessoal de seu senhor, podendo ser alugado, penhorado, vendido, hipotecado: era
comparável aos animais e objetos:
Entendido como uma propriedade, uma peça ou coisa, o escravo perdia
a sua origem e sua personalidade para se transformar em um servus non habet personam: um sujeito sem corpo, antepassados, nomes, ou bens próprios.
Como nos diz Schwarcz, sem nome: o nome que lhe era dado não era
reconhecido enquanto tal pelo senhor que antes o desnomeara: ao receber o nome do
senhor, isso não significava, para o negro, a pertença a uma linhagem, mas
simplesmente a identificação da sua pertença, enquanto objeto, ao senhor.
Portanto, o nome que o negro recebeu, não representava o vínculo familiar, mas a
condição de ser posse de outrem: não era um nome, era uma marca.
A única memória da saga familiar que resta para o negro é a que se inicia após a
diáspora, isto é, a partir da escravidão. Ele perdeu sua origem histórica, seu nascimento
se dá na diáspora, um nascimento do qual ele surge despossuído do próprio nome e da
própria linhagem.
Após a diáspora, a história da construção da família negra é confusa; uma vez
tratados como peça, coisa, eram marcados com ferro em brasa, como animais para
serem identificados. Excluídos da condição de sujeitos sociais, não poderiam constituir
família: os negros se acasalavam, tinham crias que eram vendidas; a propósito, havia
negros ditos reprodutores, cuja função era procriar para a venda.
Assim, o acesso do negro às instituições e instâncias sociais foi sempre tardio.
Isso implicou a construção mais lenta, para as populações negras, de certos padrões
sociais, por exemplo, o casamento.
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O homem negro não tinha uma mulher, mas sim uma fêmea, que poderia
inclusive ser usada pelo senhor. Isto colocava o homem negro na condição de não
poder criar vínculos com uma mulher a fim de formar com ela uma linhagem,
descendentes. Isto dificultou a construção de um sentimento de pertencimento a uma
linhagem, fator determinante no processo de identificação.
5.3 A Condição de Negro como Falta
Como vimos no Capítulo III a dimensão da falta é constitutiva da estrutura
psíquica. O sujeito, para a psicanálise, é marcado pela incompletude, é não-todo,
porque clivado pela divisão psíquica que o constitui e assujeitado à exterioridade do
sistema simbólico. A falta, por outro lado, é inseparável do desejo: porque atravessado
pela falta, o sujeito é sujeito de desejo.
A dimensão da falta produz, para o sujeito, o objeto: o objeto representa aquilo
que falta, aquilo que, se o sujeito o possuísse, poderia obturar a falta. Assim, ao longo
da existência, o sujeito, movido pelo desejo, buscará sempre, na dimensão do objeto a,
o ideal da completude que lhe é, constitutivamente, impossível.
Lacan propôs estabelecer algumas distinções no que respeita à noção de falta. a
falta se manifesta, para o sujeito, sob três formas específicas: a castração, a frustração
e a privação. Em cada um dos três casos, há uma diferença quanto à natureza da falta e
ao caráter do objeto. 157
Os três tipos de falta vão se manifestar no processo de constituição da estrutura
psíquica numa dialética em que a criança se confronta com a falta sob a figura da
frustração e da privação, num primeiro momento, para encontrar, num terceiro
momento, a falta enquanto castração. Embora haja, nessa dialética
frustração/privação/castração uma dinâmica constitutiva da estrutura psíquica, as três
diferentes figuras da falta vão também se manifestar, ao longo da existência, nasvivências do adulto.
A frustração se define como a falta imaginária de um objeto real. É nesse sentido
que, diz Lacan, a intervenção paterna confronta a criança com a ausência da mãe, o que
é vivido por ela:
157 Dor, J. (1985:83).
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Como uma frustração, ato imaginário que se refere a um objeto bastantereal, a mãe enquanto objeto da necessidade da criança.158
Já a privação se caracteriza pela falta real de um objeto simbólico. É assim que,
para a criança, a intervenção paterna representa também a figura da privação, pois, para
ela, “(...) o pai, pura e simplesmente, intervém como privador da mãe (...)”159.
Tudo se passa, para a criança, como se o pai privasse, isto é, impingisse uma
falta real à mãe, na medida em que a obriga a se apartar do bebê, que corresponderia ao
objeto de desejo da mãe e, nesse sentido, a um objeto simbólico.
É num terceiro momento que a criança se confrontará com a falta enquanto
castração, que se define como a falta simbólica de um objeto imaginário.
A castração não designa a mutilação dos órgãos sexuais masculinos, mas uma
experiência psíquica inconsciente vivida pelas crianças em torno dos cinco anos de
idade. Essa experiência pontua o fato de que, pela primeira vez, a criança reconhece,
ainda que dentro de um quadro de grande angústia, a diferença anatômica entre os
sexos. Até o momento em que se desencadeia o processo de castração a criança se via
numa ilusão onipotente, onde o pênis, tanto para o menino como para a menina, é visto
como um atributo universal; o menino imagina que o pênis lhe permitirá concretizar
todos os seus desejos sexuais em relação à mãe, mas acaba por aceitar que o mundo se
compõe de homens e mulheres e que o seu corpo tem limites.
O menino se vê, portanto, tendo que aceitar a lei de proibição, imposta pelo pai,
para salvar o seu pênis (ameaças dos adultos aos meninos pequenos, de que perderão
seus pênis caso os manipulem), renunciando à mãe como uma parceira sexual.
Com o reconhecimento da lei paterna e a renúncia à mãe, tem fim o amor
Edipiano. A crise causada por todo esse processo é estruturante, porque o menino se
torna capaz de assumir sua falta e seu próprio limite.
Na menina, a experiência da castração é diferente, apesar de apresentar doispontos em comum com a do menino. O ponto de partida, para ambos, é o mesmo:
ambos atribuem a todos os seres humanos um pênis. O segundo ponto comum é a
importância da mãe; a diferença, nesse ponto, se dá ao nível da separação: o menino se
158 Lacan, J. Les formations de l’inconscient, citado em Dor, J. (1985:85).159 Lacan, J. Les formations de l’inconscient, citado em Dor, J. (1985:85).
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separa com angústia da perda do pênis e a menina com ódio, pela descoberta de que a
mãe é castrada.
Se no menino o complexo de castração termina com a renúncia ao amor pela
mãe, na menina abre-se o caminho para o amor edipiano pelo pai. No menino, o Édipo
termina com a castração; na menina, a castração possibilita a introdução no Édipo.
O principal ponto do complexo de castração, seja ele pontuado pela angústia ou
pelo ódio é a separação entre a criança e a mãe. O complexo de castração, portanto, faz
parte da evolução sexual infantil, uma experiência inconsciente que se repete ao longo
da vida, em que os sujeitos, ainda que ao preço da dor, acabam por admitir que há
limites para a realização do desejo.
Assim, quando se diz que, na castração, estamos diante da falta simbólica de um
objeto imaginário é porque aquilo que falta, na castração, é o falo enquanto
representação da ausência de limites na realização do desejo. Mas, tal possibilidade de
ausência de limites é imaginária, não existe enquanto tal: ninguém, na verdade, é
portador do falo. Desse ponto de vista, trata-se de um objeto imaginário. Mas, a falta
de tal objeto imaginário tem um caráter simbólico, na medida em que seu efeito é
inscrever o sujeito na dimensão simbólica da formação social.
É a partir dessa dimensão da falta que as concepções lacanianas põem em jogo
que proponho considerar o modo como o negro vivencia sua condição de negro. Vimos,na seção anterior, no que respeita à figura do romance familiar, de que modo os
sentidos associados à condição de negro são elaborados pela criança nesse momento de
separação da posição anterior de adesão irrestrita às figuras do pai e da mãe. Nesse
processo em que, como ensina Freud, a criança naturalmente vai experimentar
sentimentos de desqualificação dos pais, para a criança negra tal desqualificação se
define, necessariamente, como a desqualificação da condição de negros de seus pais.
Quanto ao fato — aparentemente contraditório — de que ela, criança, é também
negra, vimos, no capítulo anterior, o modo como a criança negra se vê confrontada,
desde a fase do espelho, com a experiência dupla de introjeção do ideal da brancura,
enquanto objeto de desejo da mãe e com a constatação, de caráter dissociante para a
criança, de não corresponder a esse objeto de desejo.
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É em função de todas as considerações até aqui levantadas em relação às
experiências psíquicas associadas à condição de negro que proponho pensar que tal
condição é vivida, pelos negros, sob essa figura particular da falta que é a privação.
Como observamos anteriormente, há algo que se pode denominar as experiências
fundadoras de frustração, privação e castração, enquanto movimentos constitutivos do
processo edipiano e, enquanto tal, estruturantes da psique. Mas observamos também
que, ao longo da existência, o sujeito, que necessariamente convive com a falta, irá
experimentá-la sob configurações variadas que corresponderão às formas de frustração,
da privação e da castração.
Sem dúvida, a castração corresponderia à forma mais “elaborada” da falta, na
medida em que, aqui, nem a falta nem o objeto são da ordem do real. Mesmo assim,
muitas das experiências de falta do adulto são vividas no plano da frustração (fracassode um projeto, por exemplo) ou privação (perda de um ente querido, por exemplo).
Ora, o negro, para além de inúmeras experiências de confronto com a falta que,
como qualquer sujeito, vivencia, carrega ininterruptamente a experiência de viver sua
condição de negro como falta: falta da brancura.
A condição de existência do negro se define a partir da noção de não ser branco,
ser negro é não ser branco; ser branco, e tudo quanto possa representar essa condição é,
portanto, o objeto do desejo: aquilo que falta.Ser branco é a condição que conteria a possibilidade da não rejeição do olhar do
outro e, portanto a possibilidade de se ver, no outro, reconhecido como igual.
Mas, ser branco é um diferencial representado pela cor da pele, um real palpável,
um “corpo branco”.
“Ser branco”, tanto quanto “ser negro”, para além da tonalidade que reveste o
corpo dos seres humanos, representam “valores”, significados. Para além do branco,
está a brancura, e tudo quanto esta condição de branco “simbolicamente” representapara o negro.
Assim, se a brancura, o objeto que falta, para o negro, é um objeto simbólico, sua
falta é real, porque se manifesta como algo que falta no próprio corpo, uma parte, um
pedaço.
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A brancura, portanto, é o objeto buscado pelos negros em seu processo de
privação, é o objeto simbólico.
A brancura é um desejo materno, uma condição imaginária, que vai se juntar a
duas condições simbólicas: a cor da pele (zona erógena), e a relação do sujeito com a
mãe, que mantém a dupla demanda do desejo de brancura, condições que fazem
emergir a cor da pele como “objeto”.
A tentativa de realização desse desejo materno de brancura é que mantém o negro
enquanto sujeito no gozo; como todo sujeito, o negro está excluído do gozo, isto é, ele
não sabe porque deseja a brancura.
Como já vimos, nosso desejo se mantém diante do desejo do outro, é o desejo da
mãe que o negro tenta manter, o desejo da brancura.
Quando o limite do corpo real negro simboliza essa impossibilidade, a saída, no
imediato, são experiências que vão da mutilação ao processo de branqueamento do
corpo físico. Qualquer possibilidade de adaptação do corpo, de forma harmônica, é
drasticamente quebrada pela realização no concreto do desejo materno, quebrando,
assim, o equilíbrio psíquico. Como a brancura não pertence nem à mãe e nem ao filho,
só pode existir a baixa-estima e a negação da condição de negro, porque o grande
Outro, o espelho em que o negro vai se mirar pela primeira vez, também o nega.
O desejo de brancura persiste, ainda que de modo contraditório e ambivalente,apesar da dor pela consciência de não preencher o que, imaginariamente, responde ao
requisito básico da “brancura”.
É assim que a cor da pele passa a ser um objeto da realidade psíquica.
Imaginariamente o negro se vê e deseja ser o branco que jamais será, pois onde essa
brancura deveria se fazer visualizar, está a cor negra, uma pele negra, marcada por tudo
o que ela representa, um significante que recorta e inscreve, por contraste, o objeto
simbólico do desejo do negro: a brancura; contrariando a condição do objeto simbólico
do desejo, ser negro é a não condição de toda ordem, um real marcado pela falta do
objeto simbólico.
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Capítulo VI
Estudos de Casos
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O sintoma nos informa de algo que não sabíamos a nosso respeito; à parte o
sofrimento que nos causa, pode, no contexto de nossa história, funcionar como algo
revelador. Por outro lado, invariavelmente, os sintomas dos pacientes nos implicam, a
nós, os analistas. Quando nos fala de seu sofrimento o paciente nos faz participante
dele, estabelecendo o que chamamos de transferência analítica. Segundo Lacan, o
paciente supõe que o analista sabe algo ao seu respeito que ele próprio desconhece; e,
mais do que isso, que está na origem e causa de qualquer coisa que lhe venha a
acontecer: é o que Lacan denominou o sujeito suposto saber.
Pensar a questão analítica, quando se fala de negros, não exclui as questões
sociais, econômicas, políticas e culturais que estão na raiz da categoria “negro”,
enquanto produto de uma sociedade hegemonicamente branca, em que tal categoria sepõe em relação de contraste com a categoria “branco”. Mas, na medida em que esse
contraste se sustenta no eixo inferioridade x superioridade, é possível indagar sobre o
modo como se dá, para o negro, enquanto sujeito, a vivência desse processo.
O negro é atravessado pelas construções desse imaginário centrado na
inferioridade do negro, que têm como efeito, para ele, desde o auto-desprezo até à
autodegradação, por colocarem em cheque sua inteligência, beleza e potencial. O negro
se vê, muitas vezes, paralisado e aprisionado nesse lugar imaginário, o que faz com que
padeça de uma necessidade constante de aprovação por parte dos brancos com quem
convive, de um medo contínuo de gestos de racismo que possam vir daqueles brancos
em relação a quem ele não é um igual.
No entanto, quando decido investigar as formas pelas quais os sentidos de que o
corpo negro é investido aparecem na clínica, me vejo diante de um impasse: teria eu
condições de refletir sobre questões que me falam tão de perto, com o distanciamento
necessário para entender que processo é esse que se dá numa relação analítica, paciente
negro — analista negra ou paciente não negro — analista negra, quando se é, ao
mesmo tempo, analista e negra?
No limite, permanece o medo de romper a tênue linha da sensibilidade de ser
humano e me expor personagem de meu próprio drama pessoal, perdendo de vista a
sensibilidade do analista que trabalha com os sintomas que falam do paciente, mas
também dele, que escuta.
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Em psicanálise nunca falamos de corpo físico, mas do corpo que fala e do corpo
sexual. No entanto, percebo que meu corpo físico, que é investido de um significante
peculiar, a cor negra, funciona como um evocador de significações; uma expressão, um
sentimento não controlável pelos que me procuram, um significante que se liga a outros
significantes. No setting, a anulação da presença do meu corpo negro nunca acontece,ao contrário do que ocorre fora do setting. Isto é, embora seja a minha cor um fator de
imediata percepção do paciente que me procura, seja qual for a reação esboçada pelo
paciente, ela sempre será entendida dentro dos parâmetros analíticos, nunca como uma
agressão à minha pessoa, mas antes como uma forma de expressão de seus fantasmas.
Os pacientes que me procuram vêm por indicação de outros profissionais ou
analistas que me conhecem; eles não sabem da minha cor, e estão sob a influência de
quem os indicou, computando a minha eficiência enquanto analista. Quando se
deparam com a minha presença física, acontece o inesperado. Relatarei, aqui, três
casos diferentes em que se pode verificar como essa presença física envolve
significações160. Não tenho a intenção de tecer considerações extensas a respeito do
modo como conduzi ou venho conduzindo tais casos, mas apenas circunscrever
algumas das formas em que o significante “corpo negro” se associa a outros
significantes. Num primeiro momento farei uma breve descrição de cada caso, seguida
de comentário e de uma tentativa de análise.
6.1 Caso nº 1
Uma senhora branca, que hoje é minha paciente, durante a primeira entrevista
demandava análise, a princípio, para seu filho de onze anos. Colocou sua queixa em
relação à criança: falava de um menino birrento, insatisfeito, extremamente apegado a
ela, embora fosse bom aluno; um menino que não tinha muitos amigos e que, diante dequalquer proposta, sempre dizia “não”; cedendo à insistência dela, acabava por gostar
do que lhe era proposto fazer.
Tinha horror de vê-la sair, para trabalhar ou passear, sem a companhia dele. Ele
não conhecera o pai, que morrera quando ele tinha cinco meses. Guardava muitas
160 Para assegurar o sigilo sobre a identidade de meus pacientes, utilizo nomes fictícios.
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fotografias do pai em seu quarto, por quem nutria um amor muito grande. Dava muito
trabalho em casa, relutava para tomar banho, e quando brigava com ela, quebrava as
plantas da casa.
• Senhora Santos: Fui casada durante quatro anos, minha relação era muito
difícil com o pai dele, mas quando ele nasceu tudo parecia um conto de fadas.
Um certo dia, depois de ter vindo almoçar em casa, saiu para o trabalho e
nunca mais voltou. Encontrei-o no necrotério. De lá para cá tenho saído
compulsivamente com muitos homens, e nunca encontrei um companheiro e não
me casei mais.
Durante seu relato, essa senhora me olhava muito fixamente. Quando terminou,
perguntei-lhe quem ela achava que precisava de análise. Mostrou-se constrangida, se
levantou, me pediu para marcar outra entrevista; disse que, caso não pudesse vir, me
telefonaria.
No dia marcado para a entrevista, ela veio e, um pouco constrangida, me
cumprimentou e disse:
Você me desculpe pelo outro dia, não pude deixar de me impressionar, você
era negra.
Perguntei-lhe, então:
— Era negra?
Respondeu-me:
Me sinto envergonhada por ter pensado isso, não tem nada a ver com você,
eu é que tenho uma história negra, nos últimos tempos me comporto como
uma garota de programa. Penso que não falei para você o que me trouxe
aqui; meu filho sempre dorme na minha cama e há uns quinze dias acordei à
noite com ele se masturbando ao meu lado. Não é meu filho que precisa deanálise, sou eu.
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Comentário:
É interessante observar como a verdadeira causa que trouxe a senhora Santos a
meu consultório — alguma coisa ligada à sexualidade de seu filho que a implicava —
só emergiu na segunda entrevista, desencadeada por uma associação, manifesta no
discurso da senhora Santos, a partir de minha condição de negra, que lhe causou uma
reação de estranhamento, espécie de recusa de minha presença, eu, enquanto negra,
naquele lugar de analista, quando da primeira entrevista. A senhora Santos menciona
esse fato, se desculpando e, imediatamente, quando diz “eu é que tenho uma história
negra”, marca, no próprio significante lingüístico, as relações que subjazem na sua
fala: eu, que sou branca, tenho uma história negra/de negra. Que história é essa? É oque ela significa em seguida, quando, assumindo que quem precisa de análise é ela,
estabelece um vínculo entre os comportamentos do filho e os dela, referidos na
entrevista anterior (sair compulsivamente com muitos homens): nesse sentido, a
“história negra” aparece como povoada dos sentidos de desregramento e
permissividade sexual. Sentidos que estão vinculados ao significante “corpo negro” no
imaginário social.
Análise:
Evidentemente o que aconteceu por ocasião daquela primeira entrevista, foi a surpresa da
senhora Santos e seu estranhamento por se deparar com uma analista negra.
Ao falar da sua vergonha em não me aceitar como analista, porque essa é uma função,
em geral, não atribuída aos negros, a senhora Santos reproduz um princípio, de que é possível
julgar a integridade de alguém pela sua aparência. Isto é, seria impossível que eu, uma negra,
pudesse ser uma analista, visto que os negros estão destinados a trabalhos geralmente braçais,
que não envolvam capacidade intelectual.
Seu constrangimento, no entanto, não era só em função de ter posto minha capacidade de
ser analista em jogo. Mas certamente, como ela mesma disse “tenho uma história negra”,
significa que ela associou ao significante cor negra o suposto desregramento e permissividade
sexuais, que teriam os negros no imaginário social.
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Isto é, o que até então era uma representação do imaginário social aparecia, agora,
também como sua, de si mesma, como se ela tivesse sido, de alguma forma, contaminada desse
significante que, até então, na sua fantasia, pertencia aos negros. Uma vez que, na condição de
branca, ela estaria livre de qualquer desequilíbrio dessa ordem, como se a condição de branca
pudesse lhe assegurar um equilíbrio do exercício de sua sexualidade.
Para encobrir a sua dificuldade com a sua própria história, ela coloca em xeque a
competência da analista negra.
No decorrer do processo analítico que, a despeito de suas hesitações iniciais, pode ser
levado adiante, a Sra. Santos revelou não só o seu receio de que pudesse vir a ser comparada
com essas representações do negro no imaginário social, mas também o medo de que viesse a
ser considerada sem qualificação pela sua conduta permissiva com relação ao filho em fase de
adolescência.
Apesar do que se colocou, a princípio, como um ponto de dificuldade, o significante
corpo negro da analista foi o que permitiu um gancho para elaborar a realidade de seu
desregramento e permissividade sexual, facilitando-lhe a entrada em análise.
6.2 Caso nº 2
A senhora Oliveira, de uma família de negros, procurou-me por indicação de um
médico pediatra, e marcou uma entrevista para ela e o marido, porque queriam falar a
respeito da filha: uma menina de seis anos com sérios problemas de relacionamento
com outras crianças, que não se adaptava à escola.
Quando chegaram, abri-lhes a porta, cumprimentei-os e me apresentei; não
obstante, me disseram:
Queremos falar com a psicanalista!
Respondi:
— Sou eu.
Se desculparam e foram embora. Dias depois a mãe telefonou e marcou nova
entrevista. De volta ao consultório, se desculpou, dizendo que havia ficado muito
confusa e começou seu relato:
Minha filha é a primeira deste casamento, porque tenho um filho do primeiro
casamento, e outro menino dois anos mais novo. Mariana é uma criança
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difícil, insatisfeita, briguenta e com dificuldade de se relacionar com as
pessoas (crianças e adultos).
Perguntei:
— Dificuldade de ser negra?
A senhora Oliveira fez uma pausa repentina como se tivesse levado um susto.
Continuou seu relato, dizendo:
Não entendo porque Mariana não consegue se dar bem com os amigos, ela
está sempre limpinha, estuda no Colégio X, trabalho para dar-lhe um certo
conforto, compro as roupas da Pakalolo e, mesmo assim, não entendo porque
ela agride as amigas, é muito chorona. No recreio, na escola, não brinca com
as amiguinhas, sai correndo para encontrar o irmão; a professora achaestranho, porque eles se abraçam como se estivessem um longo tempo
separados, ficam todo o recreio juntos e brincam sozinhos.
Sei que temos dificuldades em casa, temos uma situação financeira estável,
meu marido é umbandista e freqüenta uma escola de samba. Eu não gosto,
digo a ele que isso é coisa de preto, sempre nos agredimos muito por isso.
Mariana e os irmãos assistem a tudo. Essas coisas do meu marido não são
um bom exemplo para elas.
Perguntei, então:
— A religião dos brancos é que é boa para eles?
A senhora Oliveira começou a chorar e disse:
Você não sabe como é difícil ser negro, como a gente sofre quando não se
comporta como se deve, eu gostaria muito que Mariana...
Eu a interrompi e disse:
— Fosse uma menina branca?
Tudo seria mais fácil.
Apesar da resistência da senhora Oliveira, ela trouxe Mariana para uma
avaliação, pois era uma exigência do colégio.
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Comentário:
Não tem sido fácil trabalhar com essa mãe o horror da negritude. É muito difícil
para Mariana ser o que ela não é, uma menina branca. Dizer a negros que eles são
negros não é tarefa fácil, a senhora Oliveira não reconhece, em Mariana, uma menina
negra. Projeta na filha seu desejo de brancura, a partir de sua vivência de que ser negro
é muito ruim, e que não é possível existir a não ser se pensando como branco. A
menina, é claro, se vê exposta a essa cisão, que expressa nos comportamentos
agressivos. Penso que o caso da senhora Oliveira e Mariana mostra uma das
manifestações daquilo que discuti anteriormente, relativamente à construção da
imagem do corpo no negro como marcada, desde a origem, pelo olhar da mãe onde a
recusa do corpo negro é significada. Na ludoterapia com Mariana, usei bonecos
representativos da família, ou seja, negros. Mariana não os aceitou de pronto, dizia queeram feios. Disse-lhe que eles eram iguais a ela e a mim, ao que ela me respondeu
meio hesitante: “Ah, bom, eles são bonitos”. Penso que não há outra forma, nesse
momento, senão mostrar-lhe o próprio corpo, como num espelho, buscando uma
identificação por imagem semelhante, na intenção de que ela possa ver sua própria
imagem de maneira menos destrutiva. Creio que posso significar, para Mariana, a
negra que ela não precisa ter medo de ser.
Análise:
Desde o primeiro momento, minhas intervenções foram em função do que já
estava claro para mim: que uma das dificuldades que apresentava aquela senhora e, por
conseqüência, aquela família, era com relação ao fato de ser negra: o quanto era difícil
aceitar essa condição, mostrou-se no momento em que ela a viu representada em mim,
em espelho e no quanto isso foi aterrador, a ponto de que não foi possível para essa
mãe, no primeiro momento de nosso encontro, sequer prosseguir no processo normalde uma primeira entrevista, a fim de se desencadear a busca de uma queixa fonte da
possível causa do sofrimento que, via de regra, sabemos que não expressa o verdadeiro
problema.
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em relação a outras crianças ou, como último recurso, o choro, em que se expressa
como vítima impotente diante do invencível.
Não era possível, para Mariana, ter em seu pai um modelo de dignidade e força
do “ser negro”, pois ela assistia constantemente aos ataques de sua mãe contra seu pai,
justamente por ele ser um negro minimamente identificado com suas raízes culturais.
Tudo quanto esse pai fazia era, segundo a mãe, “coisa de negro” e as “coisas de
negro” não eram boas. Sendo ela própria negra, era, portanto, o produto direto do mal.
Mariana encontra, portanto, uma dificuldade em transpor sua fase edipiana, visto
que esse pai é incansavelmente desvalorizado por essa mãe. Mariana não mostrava a
menor admiração pelo pai, cuja autoridade era questionada todo o tempo e, não raro,
com certa violência verbal e física.
Num momento posterior, a partir de uma intervenção minha, a Sra. Oliveira se
desestrutura: dá-se conta, nesse momento, de que seu discurso não lhe assegura a
“brancura” e, entre soluços, fala da dor de ser negra; mas parece guardar a ilusão de
que o comportamento (“como a gente sofre, quando não se comporta como se deve”)
pode vir a ser uma porta de acesso à brancura.
O seu desejo de que Mariana fosse uma menina branca se expressa em seu dizer
(“tudo seria mais fácil”). Frustrada no seu desejo de uma filha que não fosse “negra”,
a Sra. Oliveira protesta por Mariana não corresponder ao seu desejo de que ela aomenos, se engajasse nessa busca da “brancura”, como a própria mãe tem feito,
inscrevendo-se, num eterno processo de privação que não pode jamais ser elaborado de
uma falta que é, antes de tudo, simbólica, porque todo o seu esforço em tentar ser,
ideologicamente, um “ser branco” não a liberta do significante “corpo negro”.
Fica, para Mariana, a difícil tarefa de ter que se haver com a sua negritude.
Mariana relata, em algumas sessões, momentos de convivência com o pai, e de
como ela o vê como alguém desprovido de autoridade e, nesse sentido, como ocupandoo mesmo lugar que ela.
Nos poucos momentos em que sai com o pai que, escondido da mãe, a leva ao
samba, Mariana parece achar divertido e diz que o pai é bom sambista, mas que a mãe
diz sempre que samba é coisa de negro, e que quem gosta de pular é saci-pererê.
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Ela acrescenta, sinalizando aí uma experiência vivida como uma transgressão: “É
bom que minha mãe não saiba que fomos ao samba senão nós vamos apanhar”.
Tranqüilizo-a, dizendo que o espaço terapêutico pertence a ela e não à mãe dela.
Ao que me responde: “Que bom que você gosta de samba, você não tem cara de saci-
pererê, e não é linguaruda”.
Difícil tem sido o caminho de Mariana para aceitar sua negritude; ainda que eu
possa ser uma imagem semelhante menos destrutiva, e até valorizada enquanto
profissional, não sou a sua mãe nem a sua família, que, no limite, são a base de sua
formação, enquanto sujeito.
6.3 Caso nº 3
Maíra é uma jovem de 25 anos, negra. Procurou análise em função de sua
dificuldade de ter amigos; dizia-se muito solitária, não tinha namorado e não conseguia
ter um bom relacionamento com sua família.
Trabalhava como secretária bilingüe, numa multinacional, e fazia pós-graduação
em administração de empresa.
Cresceu num bairro de classe média. Na escola onde estudara havia, além dela,
uma outra criança negra.
Eu tinha vergonha de falar com ela, ela era negra.
Respondi:
— Ela era a única negra?
Eu não me sentia negra e fazia de tudo para não me lembrar disso, cresci
ouvindo minha avó falar que temos que casar com pessoas mais claras, para
clarear a família. Só me aceitei negra depois que entrei para a militância domovimento negro.
Costumava dizer durante suas sessões que ela não tinha mais vergonha de ser
negra, mas que os negros eram mal vistos, porque eles não ajudavam muito, eram
vagabundos, não gostavam de trabalhar, andavam sujos e eram ignorantes.
Os negros não podem ir para frente, eles não gostam de trabalhar.
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Respondi:
— Você é vagabunda?
Não, eu trabalho.
— Você pensa que é a única negra que trabalha?
Não...
— Você conhece a história do seu povo?
Já li algumas coisas, mas a verdade é que eu não gosto de ler coisas sobre a
escravidão, nunca prestava atenção na aula de história quando se tratava
disso, sentia meu rosto enrubescer.
Passado um ano de análise, Maíra mudara de emprego, conseguia se relacionar
melhor com as pessoas e dialogava melhor com a família.
Na nova empresa conheceu, durante uma recepção, um executivo estrangeiro que
estava temporariamente no Brasil.
Era um moço branco e, apesar de todo o seu medo, aos poucos se viu apaixonada
e teve início um namoro bem sucedido, que culminou com a decisão de casamento.
Maíra, porém, vivia presa de inúmeros receios: temia que o noivo pudesse se
queixar de seu cheiro, tomava vários banhos quando ia se encontrar com ele; embora o
noivo também falasse português, ela só conversava em inglês com ele; foi-lhe muito
difícil apresentá-lo à família, embora soubesse que a família aceitaria com alegria tal
casamento — pois tinha como lema o clareamento — e, da parte do noivo, nada havia
que pudesse indicar uma reação negativa perante sua família.
Quando o noivo escreveu para a família dele, no estrangeiro, comunicando sua
decisão de se casar e enviando fotografias da noiva, a família reagiu rapidamente,
dizendo-lhe que pensasse bem, que não moraria no Brasil definitivamente e que lheseria difícil viver com uma mulher negra em seu país de origem. Tal situação foi muito
difícil para Maíra, mas o noivo manteve a decisão, sem se deixar abalar pela reação da
família.
O casamento foi marcado, os preparativos estavam em curso quando Maíra
começou a emagrecer de modo surpreendente, tanto que o figurinista, após inúmeros
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ajustes, disse-lhe que não era mais possível ajustar o vestido de noiva, pois a
modelagem já estava prejudicada.
Aos prantos, Maíra diz:
Não consigo parar de emagrecer, o que a família dele vai dizer?
Respondi:
— Me parece que não terão nada a dizer, pois até lá você já terá desaparecido;
agora, como você fará para sumir também com a sua família? Eles também
estarão lá, presentes, no casamento.
Maíra levou um choque e interrompeu seu choro. Uma semana depois, disse-me
que havia parado de emagrecer. Disse ainda que havia se dado conta de que não era
com a família do noivo que estava se casando, e que sabia que teria que se prepararpara uma guerra, que estava apenas começando.
Comentário:
Maíra era uma negra que, na verdade, não conseguia se perceber como tal, ainda
que às vezes aparecesse, em seu discurso, influenciado pela militância, como alguém
que aceitava sua condição de negra. Sua imagem de corpo era a de um corpo branco,produto do desejo de sua mãe que tentou, através das escolas e dos ambientes sociais
que lhe proporcionara, manter esse desejo que, por vezes, era verbalizado no discurso
familiar como busca de clareamento. Maíra sempre tivera muita vergonha de si,
vergonha que ela imaginava já ter ultrapassado, mas que, por ocasião dos preparativos
do casamento, emergiu, produzindo no real, sob a forma do emagrecimento intenso,
uma dos efeitos desencadeados pela vergonha de si, o desejo de desaparecer. Não se
dava conta de que, em seu discurso, havia dois planos paralelos e incongruentes: um
discurso de auto-aceitação enquanto negra, e um discurso pejorativo e de
desvalorização em relação aos negros e, portanto, em relação a si própria, uma garota
negra. Suas dificuldades de relacionamento com a família estavam ligadas ao fato de
que eles eram a presentificação do corpo negro, corpo negro que ela havia aprendido,
com eles próprios, que tinha que ser negado e esquecido.
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Análise:
Quando Maíra relata sua vergonha em falar com a única criança negra, além dela,
na escola onde estudara, evidencia-se toda a sua dificuldade em ser um negra.
Como ela mesma verbalizara, ela não se sentia negra, e tudo fazia para não se
lembrar disso.
Dizia que, a partir de sua militância no movimento negro, ela havia adquirido
uma consciência de ser negra, o movimento havia dado a ela a oportunidade de poder
se ver como cidadã, que deveria lutar pelos seus direitos, como qualquer outro cidadão.
O que Maíra não poderá compreender, pela mediação do movimento negro, é que
ela não havia superado o horror à sua própria negritude.
Não tinha amigos porque temia não ser “branca” o suficiente para bem se
relacionar, e não podia ter amigos negros porque “eles não ajudavam muito”, isto é,
não correspondiam minimamente aos seus requisitos de “brancura”. Visto que os
negros, como ela se referia aos seus iguais, eram, via de regra, sujos, vagabundos e
ignorantes.
Maíra crescera ouvindo de sua avó que era preciso se casar com pessoas mais
claras para clarear a família, isto é, no seu inconsciente esta afirmação assumiu a
conotação de um processo de “limpeza” necessário para que o negro se tornasse maisinteligente e trabalhador. Já que, como ela dizia “os negros não podem ir prá frente,
eles não gostam de trabalhar”.
Ao intervir, perguntando-lhe se ela era vagabunda, ela pareceu confusa, como se
eu houvesse apontado para ela uma conseqüência da sua condição de negra, da sua cor.
Após alguns segundos de reflexão, respondeu-me: “Não, eu trabalho”; como se
ela fosse uma exceção à regra de uma gente que não tem por hábito o trabalho.
Maíra, enquanto militante do movimento negro, fazia semblante de uma negracom propósitos politicamente corretos, mas não se mostrava muito à vontade diante da
história do seu povo; percebeu que tinha vergonha dessa história que conta os horrores
da escravização.
Não adquirira um senso crítico dessa história; além da vergonha, marcou-lhe o
desprezo pelo negro, pelo quanto era visto, e ainda hoje o é, como um ser inferior.
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A vergonha que Maíra imaginava fazer parte de uma longínqua aula de história
perdida na sua infância se mostrava presente em seu discurso, “Os negros não podem
ir prá frente, eles não gostam de trabalhar”.
Ao longo do processo analítico, Maíra parecia se dar conta do quanto ela repetia
valores que lhe foram passados via seu romance familiar, e de como ela os mantinha.
Costumava dizer-me que ficava envergonhada diante de tal consciência, mas
aliviada pelo fato de ter oportunidade de descobrir isso com uma negra.
Ao que eu respondia-lhe: “para lembrar-lhe de que você, também, é negra”.
Dizia-me: “Parece mais doido ouvir isso de uma negra, os brancos nunca dizem
nada disso, eles exigem que sejamos, no mínimo, parecidos com eles, para nos
respeitar, já falei pra minha mãe, pára com essa mania de ser branca, nós somos
negros e gente”.
Na ocasião, Maíra estava lendo o romance “Homem Invisível”, de Ralph Ellison,
e comentou: “provavelmente os brancos racistas ririam muito de mim se pudessem me
perceber intimamente, veriam que eu saí exatamente como eles esperavam que todos os
negros fossem, com um horror a si mesmos.”
Maíra se repetia inúmeras vezes, “negro é gente”, como se não pudesse ter
garantia de ser um “ser humano”, como se o fantasma da história do seu povo, de ter
sido um dia “desumanizado”, sempre lhe rondasse.
Quando de sua mudança de emprego, conheceu um executivo estrangeiro com
quem começou a namorar, namoro que desencadeou uma longa história de sofrimento
psíquico e físico para ela.
Embora Maíra estivesse, há um tempo razoável, na tentativa de elaboração de sua
negritude, seu medo de ser uma negra permanecia enraizado.
Esse medo começou a aparecer quando, antes dos encontros marcados com o
namorado, se mostra muito ansiosa, dizia suar muito e ficar mal cheirosa. Começava
então um ritual interminável de higiene pessoal, repetidos banhos que pudessem limpá-
la de sua marca, a cor negra. Não conseguia falar português com ele, embora ele
demandasse dela que falasse português, porque ele poderia aprender melhor a língua do
país.
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Maíra se via numa situação onde sentia uma angústia ante a um perigo real, o de
que a família de seu noivo pudesse acabar com seu casamento, em função de ser ela
uma negra.
Já com todos os preparativos para o casamento correndo, há dois meses da
chegada da família do noivo, não havia o que pudesse diminuir o seu sofrimento,
embora o noivo fizesse repetidos esforços em assegurar-lhe que ele havia escolhido a
ela para se casar e que não se importava com o que pensava sua família.
Durante uma de suas sessões, desesperada, pois tinha problemas com seu vestido,
que não podia mais ser ajustado, chorando, dizia que não conseguia mais parar de
emagrecer, “o que a família dele diria a esse respeito?”
Ao que lhe respondi: “Me parece que não terão nada a dizer, pois até lá você já
terá desaparecido; agora, como você fará para sumir também com a sua família? Eles
também estarão lá, presentes no casamento”.
Era evidente que esse emagrecimento todo representava uma vontade
inconsciente de desaparecer, de “dar sumiço” em seu “corpo negro”.
Do que Maíra não se dera conta é que isso não garantiria também o
desaparecimento de sua família e, conseqüentemente, do povo negro como um todo.
Sempre haverá negros que irão lembrá-la de sua condição de negra.
O impacto da minha fala fez com que Maíra pudesse parar de chorar a pena que
tinha de si mesma, por ser uma negra, que teria que se fazer respeitar, a despeito da
história do seu povo e da sua história familiar.
Estava se casando com o noivo, era um processo complicado, era difícil não vê-lo
como um representante dessa família que a rejeitava, tinha claro que alguma coisa que
ela denominava como acima de suas forças começaria a partir do casamento, e disse:
“Sei que tenho que me preparar para uma guerra, que está apenas começando”.
Na guerra que Maíra começou a travar a partir do casamento, ela percebe que,
antes de poder vir a convencer quem quer que seja de sua integridade, era ela quem
precisava, acima de tudo, convencer-se a si mesma.
Seu processo de auto-estima, que lhe permitiria se ver como negra e, ao mesmo
tempo, íntegra, era algo a se consolidar; falava do medo de não dar conta disso, afinal,
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dizia, não teve tempo de fazer isso antes do casamento, teria que fazê-lo na situação de
casada.
Maíra se dá conta de que não se apaga o passado histórico do seu povo, que
imputa um peso a cada negro e que, por mais dolorida que essa história possa ser, para
ela, não é ignorando-a, negando-a pela via da negação de seu corpo negro, que ela iria
enfrentar todas as dificuldades que esse significante lhe trará, sempre.
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Considerações F inais
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Nas escadarias do Lincolm Memorial, Washington, em 28 de agosto de 1963,
num dado trecho do seu famoso discurso, “Eu tenho um sonho!”, Martin Luther King
Jr. disse:
Eu tenho um sonho, de que meus quatro filhos um dia viverão em umanação em que não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo deseu caracter! Eu tenho um sonho hoje!”161
Trinta anos após o assassinato do pastor Luther King, no dia 4 de abril de 1968,
importante líder negro na luta pelos direitos civis dos negros americanos e,
conseqüentemente, também para os negros de todas as nações, a força de sua
mensagem política em prol da convivência pacífica e igualitária e da cooperação entre
as pessoas de todas as raças não morreu no ideal de muitos, não só na sociedade
americana, mas em inúmeras outras, onde quer que a diáspora dos negros tenha
produzido um significativo contingente populacional, e mesmo na própria África negra,
quer em um função de uma experiência colonial que tenha inscrito, para os próprios
negros africanos, os significantes da dominação branca, quer em função de uma
vivência dessas significações culturais, “brancura” x “negritude” que, mesmo
independente da experiência da colonização, se colocam hoje para todos os países
africanos que se inscrevem (ou tentam se inscrever) como nações autônomas e
independentes.
No entanto, é triste constatar que o objetivo de Luther King, três décadas
passadas, está tão distante de se realizar, não importa onde.
Ainda que a qualidade de vida dos negros, sejam eles americanos ou outros,
tenha conhecido melhoras, continuamos, na média, mais pobres e com menos
possibilidades de acesso à educação e aos bens sociais do que o restante da população,
como mostram as pesquisas. 162
Em alguns lugares do mundo, os negros têm conseguido ascender a postos que
lhe asseguram uma melhor condição de vida; isso, no entanto, não é uma regra.
No geral, a sua condição de trabalhador ainda é inferior à dos brancos como um
todo, seus rendimentos médios, mostram as pesquisas em vários países, ainda são
161 Luther King Jr., M. (1963:68).162 F.S.P., 04.04.98, “Situação social dos negros melhorou”.
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inferiores aos dos brancos. Não existe ainda uma representação política dos negros que
os represente enquanto membros de uma determinada classe ou, talvez, enquanto um
grupo, um segmento social que se auto-represente enquanto tal.
Imersos em tentativas de ações políticas que possam minimizar as diferenças que
sofrem, os negros, especialmente os americanos que, efetivamente, engajaram-se na
luta envolvendo as chamadas ações afirmativas, desde os anos 70. No entanto, na
atualidade as ditas ações afirmativas estão sendo questionadas, por negros e brancos,
nos Estados Unidos, ou mesmo em outros lugares, em função de pesquisas que
apontam que, infelizmente, os lugares onde as ações afirmativas acabaram, as
participações dos negros caíram em grande porcentagem.
Divididos entre a necessidade de políticas como essa de ações afirmativas, em
função da necessidade de garantir, para a população negra, alguns canais de acessosocial, os negros são confrontados, por outro lado, com a crítica de estarem
promovendo um racismo às avessas. Por outro lado, quando se constata que tais saídas
institucionais parecem não serem suficientes para garantir um novo quadro social, o
quê fazer?
São questões complexas que trazem em seu âmago a questão da igualdade versus
a diferença.
A propósito dessa discussão Carone chama a atenção para o fato de que aafirmação da igualdade como um princípio básico formal da democracia, em que todos,
teoricamente, seriam iguais em direitos e obrigações, postos em termos constitucionais
funciona apenas como uma peça de retórica, isto é, não funciona, porque:
A igualdade é considerada um princípio formal da democracia, o queeqüivale a dizer que todos são iguais em direitos e obrigações em termosconstitucionais. No entanto, o seu caráter formal (não-substantivo)significa que a democracia deixa em aberto e não decidido o problemada estrutura concreta da sociedade (...) 163
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, rejeita as práticas de discriminação e exclusão por origem,
raça, etnia, sexo, idade, credo religioso, convicção política ou orientação sexual e se
põe como um texto de lei que proíbe essas práticas discriminatórias, no qual se
163 Carone, I. (1998:174).
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reconhecem, simbolicamente, todas as nações signatárias. Mas tal gesto simbólico não
é capaz de garantir o fim da discriminação, que sobrevive nas construções imaginárias.
O negro, situado no vácuo entre duas culturas, a dominante e a sua, de origem
(mesmo que perdida, em termos de memória histórica — pelo menos parcialmente),
vê-se sempre desvalorizado, porque avaliado em termos de um padrão que pertence à
cultura dominante e, em função deste, classificado como inferior. O direito à diferença,
nesse sentido, não se pratica. A igualdade na diferença, pelas injunções sócio-culturais
que estão aquém dos registros jurídico-políticos, não se garante.
Viñar, citando estudos de Pierre Clastres com tribos indígenas sul-americanas,
aponta como os indígenas, ao se referirem aos membros de outras tribos, eram sempre
depreciativos nos termos. 164
Viñar observa que Clastres denomina etnocentrismo esse fenômeno
... de uma xenofobia em que sociedades primitivas, porque ela nos tentaa propor origens precoces, talvez constitucionais ou genéticas, para oódio e para a rejeição das diferenças.165
Esta afirmação aponta para a realidade da condição humana, que se mostra
preconceituosa por natureza, o que nos deveria colocar em alerta para a necessidade de
lutar para inscrever, simbolicamente, o respeito à diferença. Já que a tendência do ser
humano, ao se constituir como “si mesmo”, é não ser capaz de fazê-lo sem aeliminação, num gesto imaginário, daquilo que corresponderia ao outro.
Não podemos nos esquecer, no entanto, de que, para além da possibilidade de
caracteres constitucionais da condição humana que estão na gênese da recusa da
diferença, temos as representações ideológicas construídas para salvaguardar
justamente valores instituídos, na medida em que tais valores corroboram interesses
determinados que podem se beneficiar daquelas representações que mapeiam o “eu” e
o “outro”, o “próximo” e o “distante”, o “desejável” e o “recusável”.
Atenta, e inexoravelmente afetada por tudo quanto diz respeito a essa questão,
pela minha condição de negra, tentei, com esse trabalho, construir uma reflexão em
torno de uma situação particularmente complexa, que é aquela vivenciada pelo negro.
164 Viñar, M. N. (1994:7).165 Viñar, M. N. (1994:7).
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Inúmeros trabalhos têm contribuído para lançar luz sobre a condição do negro,
seja pelas investigações historiográficas que dão conta da gênese e institucionalização
da condição de escravo, da origem das representações imaginárias ligadas à figura do
“negro” e, por contraste, à construção do ideal da “brancura”, seja por aqueles
estudos que, debruçando-se sobre a situação atual da população negra, procuramexplicar tal situação em função dos determinantes históricos e das injunções culturais
que seriam os responsáveis por um certo lugar social que, na atualidade, identifica o
negro na sociedade.
Minha tentativa, neste trabalho, foi a de trazer uma contribuição de outra ordem
para esse campo. Enquanto psicanalista, me propus explorar o modo como a realidade
sócio-histórico-cultural do racismo e da discriminação se inscreve, na psique do negro.
Isto é, debrucei-me sobre a questão de como se dá, para o negro, esse processo de se
constituir enquanto sujeito, na medida em que é afetado, desde sempre, por tais
sentidos. Enquanto psicanalista e, particularmente enquanto negra, minha escuta
sempre foi posta nessa direção.
Parece que as estruturas de poder e dominação não são alheias às psicanálises
praticadas nos consultórios.
A literatura de que lancei mão para a realização desse trabalho é tão heterogênea
quanto a natureza da questão que me propus e foi necessário lançar mão de construções
teóricas advindas de diferentes campos para poder circunscrever o objeto que me
propus investigar.
Penso que a contribuição deste estudo não é a de servir de argumento contra a
ação política dos negros, mas antes a de alertar para o fato de que tal ação política pode
vir a ser comprometida e limitada pela falta de consciência, da parte dos negros, do
processo de formação, em sua própria psique, das representações imaginárias e
simbólicas do corpo negro.
A ação política pode vir a fracassar, por exemplo, pela sobrevivência,
inconsciente, do mito da brancura nas próprias formas em que ela, a ação política, se
expressa.
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R eferências
Bibliográficas
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