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Significacoes Do Corpo Negro Isildinha Baptista Nogueira Tese

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Isildinha Baptista Nogueira 

Significações do Corpo Negro 

Doutorado em Psicologia 

Universidade de São Paulo — USP —

São Paulo — 1998

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Isildinha Baptista Nogueira 

Significações do Corpo Negro 

Tese apresentada como exigência parcial paraobtenção do Título de Doutor em PsicologiaEscolar e do Desenvolvimento Humano, sob aorientação da Profª Drª Iray Carone. 

Universidade de São Paulo — USP —

1998 

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Agradecimentos

A Iray Carone que além de orientadora, foi quem me deu achance de fazer este trabalho.

Ao Kanbengele Munanga e Cristina Kupfer, membros da banca domeu exame de qualificação, pelas valiosas sugestões e críticasque me permitiram realizar esse trabalho.

Ao CNPq, pela bolsa, que me deu condições para realizar partedesse trabalho.

A  Heidi Tabacof, minha analista, que tem me acompanhado nocomplexo caminho de me tornar sujeito de minha própria

história.A Rosana Paulillo, com quem pude aprender os segredos daescrita.

A Radmila Zygourís, a mestra, a amiga, mãe generosa, que soubesempre mostrar caminhos.

A Walkirya B. Lima, por me acompanhar na vida e me fazeracreditar que era possível realizar esse trabalho.

A Caterina Koltai, a irmã querida com quem sempre pudecontar.

A Irene Munanga, um exemplo de luta.

A Drª Nidia Cecilia P. da Silva, por me fazer confiante napossibilidade de superar as dificuldades de ordem física.

A Leila Tendrih, com quem pude contar carinhosamente.

A mãe Ida, mãe de doçura e compreensão, companheira demomentos difíceis e bons.

Aos amigos Eduardo Goldenstein e Luis Antonio de BarrosCamargo, amigos queridos, companheiros de estudospsicanalíticos.

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Aos amigos do grupo de filosofia e ao Prof. Luis Alfredo Garcia-Roza, mestre de filosofia e vida.

A todo pessoal da Escola de Dança Maria Antonieta, em especialaos professores, Katia Mingorante e  Alexandre Marino

 Hugenneyer, que nas horas de tensão me ajudaram a relaxar.

Ao Dr. Paulo A. Arantes Jr., pelos cuidados que me permitirammanter o equilíbrio em momentos de stress.

Ao Dr. Fagner Fioranti, pelo carinho e o incentivo à minha luta.

A  Janise e Regina, da Oficina das Letras, que com carinho eamizade cuidaram da confecção deste trabalho.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para esse trabalho.

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Dedicatória

À minha mãe, mulher negra, com

quem aprendi a lutar.

À minha irmã e aos meus sobrinhos,Fernanda e  João Phelippe  para queeles continuem a lutar.

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Eu canto aos Palmares, sem inveja

de Virgilio, de Homero, e de

Camões, porque o meu canto é o

grito de uma raça, em plena luta

pela liberdade!

Solano Trindade

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Resumo

Este trabalho tem como objetivo investigar a dimensão psíquica da questão do

racismo, partindo da hipótese de que essa realidade histórico-social determina,

para os negros, configurações psíquicas peculiares.

A partir do referencial da teoria psicanalítica, procura-se determinar o modo

como as significações que o racismo envolve se inscrevem psiquicamente para o

negro, e o modo como elas vão produzir a dimensão simbólica do corpo negro e

ideal imaginário da brancura.

Tais inscrições psíquicas não são simplesmente resultado da introjeção das

experiências de discriminação efetivamente vivenciadas, mas se constituem na

infância, envolvendo momentos iniciais da constituição subjetiva. Nesse sentido,

afetam os negros independentemente de sua posição econômico-social.

Nessa abordagem, busca-se definir a condição de negro como produto da

interação dialética entre, de um lado, as representações sociais ideologicamente

estruturadas e as estruturas sócio-econômicas que as produziram e as

reproduzem, de outro, as configurações que formam o universo psíquico.

Este trabalho pretende chamar a atenção para o fato de que nem a consciência da

condição de negro nem o engajamento em relação às lutas políticas contra a

discriminação racial são suficientes para modificar a condição do negro, na

medida em que os sentidos do racismo, inscritos na psique, permanecem não

elaborados.

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Resumé

Ce travail se propose à étudier la dimension psychique du racisme, à partir de

l’hypothèse suivante: que cette realité historico-sociale détermine, pour les noirs,

des configurations psychiques particulières.

J’essaye, a partir du réferentiel psychanalitique, de déterminer la façon par

laquelle les significations du racisme s’inscrivent psychiquement pour le noir,

ainsi que la manière dont celles-ci vont produire la dimension simbolique du

corps noir et l’imaginaire de la blancheur.

Ces inscriptions psychiques ne sont pas exclusivement conséquences de

l’introjection des expériences effectivement éprouvées de discrimination, mais se

constituent tout au long de l’enfance, concernant les moments cruciaux de la

constitution subjective. Ainsi conçues, elles affectent tous les noirs

indépendemment de leur position socio-economique.

Dans cette perspective, j’essaye de définir la condition du noir en tant que produit

de l’interaction dialectique entre, d’une part, les représentations sociales

ideologiquement structurées et les structures socio-economiques qui les ontproduites et continuent à les réproduire et, d’autre part, les configurations qui

constituent l’univers psychiques.

Ce travail se propose d’attirer l’attention sur le fait que ni la conscientization ni

l’engagement politique contre la discrimination raciale suffisent pour modifier la

condition d’être au monde du noir, tant que les significations du racisme, inscrites

dans son psychisme, ne seront pas elaboreés.

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Abstract

This work aims to invetigate the psychic dimension of the racist question,

starting by the hypothesis that this historic and social reality determines, for the

black, peculiar psychic configurations.

Begining with the referencial of the psychoanalytic theory, we aim to determine

the way by which the significations that the racism involve inscribe themselves

psychically for the black, and the way by which they will produce the simbolic

dimension of the black body and the imaginary white ideal.

Those psychic inscriptions are not simply the result of the introjection of the

discrimination experiences actually lived, but they constitute themselves in the

infancy, involving crucial moments of the subjective constituion. In this sense,

they affect the blacks no matter what is their social and economic position.

In this focusing, we search to define black condition as a product of the dialectic

interaction between, in one side, the social representations ideologically

structured and the social-economic structures that produced and reproduce them,

and, in the other side, the configurations that form the psychic universe.

This work aims to call attention to the fact that neither the consiousness of the

black condition nor the engagement in the political struggle against racial

discrimination are sufficient to modify the black condition, since the racism

senses, inscribed in the psyche, remain non elaborated.

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Índice

Pág. 

Introdução .................................................................................................. 13

Primeira Parte ----- Dimensão Sócio-Cultural da Condição deNegro

Capítulo I

— A Constituição do Indivíduo na Sociedade.................................... 201.1 Gênese da Categoria de Indivíduo ......................................... 211.2 A Constituição do Indivíduo na Classe.................................. 28

1.3 O Lugar do Negro na Sociedade............................................. 33 

Capítulo II

— As Representações Sociais ................................................................. 372.1 A Cultura como Sistema de Significações.............................. 382.2 O Corpo enquanto Signo.......................................................... 432.3 A Significação Social do Corpo Negro ................................... 44 

Segunda Parte ----- Dimensão Psíquica da Condição de Negro

Capítulo III

— As Estruturas da Condição Subjetiva .............................................. 463.1 A Concepção Lacaniana de Sujeito: a metáfora do

Nome-do-Pai; a falta; a castração ............................................ 483.2 A Spaltung: a divisão do sujeito ............................................... 503.3 O Mecanismo do Recalque....................................................... 523.4 A Alienação do Sujeito na Linguagem................................... 533.5 O Eu como Construção Imaginária......................................... 573.6 A Fantasia como Constitutiva do Corpo................................ 603.7 A Noção de Objeto: a falta e o gozo........................................ 63 

Capítulo IV

— O Corpo Negro enquanto Categoria Imaginária e Simbólica..... 704.1 Imagem do Corpo e Esquema Corporal: o indivíduo.......... 714.2 A “Inumanização” do Negro ..................................................... 764.3 A Dissociação Narcísica na Imagem do Corpo para

o Negro........................................................................................ 77

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Cont.

Capítulo IV

— O Corpo Negro enquanto Categoria Imaginária e Simbólica 4.4 A Imagem do Corpo enquanto Rosto..................................... 79

4.5 A Construção da Imagem do Rosto Próprio peloOlhar do Outro........................................................................... 81

4.6 O Rosto Próprio enquanto Estranho....................................... 854.7 A Construção da Imagem do Corpo no Negro: injunção

ou sobreposição do racismo? ................................................... 864.8 A Criança Negra e o Espelho................................................... 934.9 A Relação Persecutória com o Corpo Negro ......................... 944.10 A “Vergonha de Si” e os Processos Auto-Destrutivos

do Negro ..................................................................................... 96

Capítulo V— A Condição de Negro Vivida como Privação ................................. 103

5.1 A Categoria Freudiana de Romance Familiar ....................... 1045.2 Gênese do Mito da Brancura no Romance Familiar do

Negro........................................................................................... 1075.3 A Condição de Negro como Falta ........................................... 112

Capítulo VI

— Estudos de Casos ................................................................................. 117

6.1 Caso nº 1...................................................................................... 1196.2 Caso nº 2...................................................................................... 1226.3 Caso nº 3...................................................................................... 127

Considerações Finais .............................................................................. 135

Referências Bibliográficas...................................................................... 140

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Introdução 

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Transportados para o Brasil, na segunda metade do século XVI, os negros

provenientes de várias regiões da África, falando portanto diferentes línguas, são

enviados ao trabalho escravo nas fazendas.

Por mais de três séculos, as principais atividades econômicas mercantes

brasileiras basearam-se no trabalho do negro escravizado.

A historiografia oficial nos conta que a substituição do braço escravo indígena

pelo do negro se deu por este apresentar maior resistência física e por ser mais dócil. O

que essa historiografia não nos conta é que os negros resistiram violenta e

sistematicamente à escravidão.

Evidentemente, era mais fácil submeter alguém à escravidão num meio

geográfico e cultural desconhecido. Capturado no continente africano e transportado já

na condição de escravo, sofrendo todos os horrores, o negro era, assim, “preparado” 

para ser escravo; o tráfico vergava-lhe, física e moralmente.

A distribuição dos negros era feita de maneira tal que num mesmo ambiente de

trabalho eram reunidos negros com línguas, culturas, tradições e religiões diversas,

dificultando a comunicação entre os semelhantes. A aculturação era uma conseqüência

normal entre culturas diferentes obrigadas a conviver. Perderam progressivamente as

identidades originais, mas, nesse processo de transculturação, surgiu nova identidade

negra, resultado tanto da transculturação, como da existência e criação de novas formasde resistência.

Vivendo em péssimas condições nas senzalas, brutalizados e animalizados pelos

senhores, os negros se viam destituídos da sua condição de humanos; não faltaram

estudos que os compararam aos animais, justificando, assim, as condições em que

viviam como sendo “naturais”.

Libertos da situação de cativeiro, quando da promulgação da “Lei Áurea”,

continuaram, porém, excluídos, despossuídos. Todo período que antecede àpromulgação da lei se deu, paralelamente, às mudanças na ordem econômica e política,

que colocavam obstáculos à existência de um país escravagista no cenário mundial. Os

abolicionistas mostravam grande indignação pelas condições de cativeiro dos negros,

mas não puderam pensá-los como indivíduos que deveriam ser inseridos na sociedade.

Assim, supunham que, saindo da condição de escravo, o negro trabalharia como mão

de obra remunerada para seu auto-sustento. Mas grande parte do contingente de cativos

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libertos vagavam desorientados, sem condições para seu auto-sustento, e sem trabalho

no campo, que começava, então, a ser feito pelos imigrantes.

Dadas suas condições de vida, os negros são comparados a animais e vistos como

incompetentes, preguiçosos e indolentes, quando comparados aos europeus que para cá

vinham para trabalhar; restava aos negros o trabalho doméstico, situação que

perpetuava a imagem anterior, em que o negro, tal como uma besta fera domesticada,

trabalha em troca de ração.

Embora juridicamente capazes de ocupar um espaço na sociedade, os negros

eram, de fato, dela excluídos e impedidos de desfrutarem de qualquer benefício social,

foram marginalizados, estigmatizados, marcados pela cor que os diferenciava e

discriminados por tudo quanto essa marca pudesse representar.

Desde então, libertados do cativeiro, mas jamais libertos da condição de escravos

de um estigma, os negros têm sofrido toda sorte de discriminação, que tem como base a

idéia de serem os negros seres inferiores, portanto não merecedores de possibilidades

sociais iguais.

Ainda hoje representam 43% da população deste país, sendo facilmente

identificados não pela sua cor, mas pelas péssimas condições de moradia, saúde e

escolaridade que os acompanha.

Tendo que conviver com a mais cruel forma de discriminação, isto é, a de umracismo encoberto, sutil; em que, embora aparentemente e legalmente amparado e com

os mesmos direitos de qualquer outro cidadão, o negro é tratado como se não o fosse, e

responsabilizado pelo seu déficit  em relação aos outros cidadãos: “os negros não têm

 força de vontade”.

É sempre visto como bandido, sujo, incapaz, e, por mais esforços pessoais que

tenha feito para conquistar um lugar social melhor, será um indivíduo marcado por essa

cor que não o separa desses implacáveis sentidos de que o configuram o racismo e a

discriminação.

Em função da minha formação como psicóloga, que atua no campo profissional

como analista, e também em função da minha condição de negra, herdeira, portanto, de

todo esse passado histórico, fui levada a refletir sobre a dimensão psíquica da questão

do racismo e sobre as formas pelas quais essa realidade histórico-social do racismo

determina configurações psíquicas peculiares no negro.

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Como se dá, para o sujeito negro, a elaboração, no plano psíquico, dos sentidos

que o racismo traz consigo? Senti necessidade de investigar tais processos, porque

minha hipótese é que vão além de uma pura e simples introjeção; tampouco podem ser

explicados como simples conseqüência de um lugar de inferioridade econômica e

social, embora esta seja a realidade que afeta a maioria da população negra, fruto doprocesso histórico que anteriormente comentamos.

Na situação atual, o negro pode ser consciente de sua condição, das implicações

histórico-políticas do racismo, mas isso não impede que ele seja afetado pelas marcas

que a realidade sócio-cultural do racismo deixaram inscritas em sua psique.

Qual o efeito dessas marcas? Até que ponto não afetam a própria constituição do

negro como sujeito? E, nesse caso, até que ponto sua afirmação da condição negra, na

luta contra o racismo, não seria atravessada por sentidos não elaborados, obscuros,produtos dessas marcas?

O que pretendo, neste trabalho, é levantar subsídios para a discussão dessas

questões.

Teoricamente, tal perspectiva se justifica na concepção de que há uma interação

dialética entre as representações sociais — ideologicamente estruturadas — que são

produto das estruturas sócio-econômicas, e as configurações que constituem o universo

psíquico dos indivíduos.Tal perspectiva foi proposta, primeiramente, pelos freudo-marxistas, como nos

coloca Sergio Paulo Rouanet, ao sintetizar o ponto central dessa concepção:

 As condições sócio-econômicas e a ideologia modelam a estrutura psíquica dos homens (...) e a consciência, assim estruturada, percebe oreal de uma forma particular, transformando essa percepção emopiniões e idéias que correspondem às exigências sociais. 1 

Tal processo não é imediatamente verificável, pois as representações da estrutura

psíquica dos homens não são puro reflexo das condições objetivas. As estruturas

psíquicas são contaminadas pelas condições objetivas que receberão, no plano

inconsciente, elaboração própria a partir das quais são assimiladas e incorporadas,

tornando os sujeitos cativos e mantenedores de tais condições.

1  Rouanet, S. P. (1987:119).

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Cada contexto histórico, cada época gera a estrutura psíquica necessária para sua

manutenção; as estruturas psíquicas funcionam, assim, como o mediador entre as

condições sócio-econômicas e a ideologia, selecionando algumas percepções,

excluindo outras, construindo, assim, as representações ideológicas que acabam por

funcionar como estereótipos enquanto repertório de representações coletivas.2 

Os mecanismos de elaboração que, no plano inconsciente, entram em jogo na

construção das representações ideológicas são da ordem do que Freud chamou os

mecanismos de defesa, a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos

que incorporem impulsos indesejáveis. 3 

É o que se verifica no processo de identificação, em que o sujeito introjeta,

parcial ou totalmente, através da imitação ou da incorporação, o objeto amado ou

odiado, ou ambas as coisas simultaneamente, reagindo, assim, ao amor ou ao ódio pelaincorporação das propriedades do objeto: tal processo funciona como mecanismo de

defesa.

Tal mecanismo é o que ocorre, diz Rouanet, no que Anna Freud caracteriza como

a identificação com o agressor, pelo qual “a criança introjeta algumas características

de objetos externos geradores de angústia... (de tal forma que) imitando o agressor,

assumindo seus atributos ou reproduzindo sua agressão, transforma-se, de pessoa

ameaçada, em pessoa que executa a ameaça.”  4 

Isto é, cada incorporação de objeto, seja como maneira de preservar

endopsiquicamente o objeto amado, ou como maneira de se defender do objeto hostil,

implica na subversão da pulsão erótica ou agressiva, que impede ao sujeito a percepção

da origem externa do material introjetado, que é, assim, vivido pelo sujeito como sendo

autônomo. Assim, nas identificações pós-edipianas que formam o superego, o sujeito

manterá a ilusão de seguir prescrições e proscrições autodeterminadas, quando estará,

na realidade, seguindo “prescrições e proscrições heterônimas, que emanam da

autoridade paterna introjetada e, através dela, do sistema social e político”. 5 

É nesse sentido que, este trabalho tem como objetivo investigar as formas pelas

quais se dá, para o negro, no plano psíquico, a repercussão do racismo e da

2  Rouanet, S. P. (1987:120).3  Rouanet, S. P. (1969).4  Rouanet, S. P. (1987:127).5  Rouanet, S. P. (1987:127).

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discriminação e de que maneira tal repercussão do racismo que afeta o negro enquanto

sujeito produz, para esse sujeito, configurações psíquicas peculiares.

As pesquisas que tratam da questão da negritude, em geral, se concentram no

fenômeno do racismo e da discriminação enquanto fatos sociais, e buscam analisar de

que maneira se manifesta, socialmente, o preconceito contra os negros.

Minha hipótese, porém, é a de que tais fenômenos afetam o negro não só no

plano sociológico, mas também no plano psíquico.

Penso que é importante compreender a natureza e os sentidos dos processos

psíquicos que se passam no sujeito, a partir da experiência psíquica, porque este é

também um dos aspectos do fenômeno do racismo em sua totalidade.

Pretendo, com essa pesquisa, contribuir para a discussão política da questão

negra, através da proposta de consideração, na discussão dessa questão, de que os

efeitos perversos do racismo transcendem (vão mais além) os efeitos socialmente

perversos em que se manifestam com maior visibilidade.

Pretendo, ainda, chamar a atenção para a necessidade de se trabalhar com a

dimensão dessa vivência psíquica específica, própria dos negros, como uma das formas

de resgate da condição subjetiva do negro, para além das reivindicações e lutas

político-sociais.

Para o desenvolvimento desse trabalho, utilizarei fundamentalmente a literatura

psicanalítica. Busco em tal literatura algumas figuras teóricas pelas quais a psicanálise

procura dar conta da constituição psíquica do sujeito enquanto atravessado pela

alteridade.

Recorro, primeiramente, a reflexões próprias do campo da sociologia e da

antropologia, que me permitem questionar as condições em que o negro pode se

representar como indivíduo na sociedade e, em segundo lugar, me permitem pensar a

dimensão significativa do corpo negro no sistema simbólica da cultura.

Em seguida, para aprofundar tal questão e investigar o modo como tais processos

se inscrevem na psique, recorro à literatura psicanalítica para, através das categorias

teóricas pelas quais a psicanálise busca dar conta da constituição psíquica do sujeito

enquanto atravessado pela alteridade, poder compreender o modo pelo qual se dá, para

o negro, tal processo.

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Para a psicanálise, o sujeito é inevitavelmente social e é no espaço da

intersubjetividade que ele se constitui. As relações parentais, longe de se inscreverem

aquém do social na sua amplitude, são relações em que o social como um todo está

presente; através do discurso e das atitudes dos pais, a criança se vê confrontada com a

ordem social como um todo, que está presente na linguagem que constitui a dimensãosimbólica, onde os sentidos sociais estão cristalizados.

As conceituações teóricas de que lanço mão são uma tentativa de buscar

elementos capazes de explicar a natureza dos processos psíquicos que constituem a

realidade subjetiva comum aos sujeitos negros.

Num segundo momento, através de estudos de casos, procuro encontrar nas

vivências e sintomas que se manifestam nos pacientes, a marca da presença de tais

configurações psíquicas.

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Capítulo I 

 A Constituição doIndivíduo na Sociedade

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1.1 Gênese da Categoria de Indivíduo

Para discutir a noção de indivíduo, recorro à sociologia, que por sua vez se

associa a outras disciplinas, como a psicologia, a história, a filosofia, para melhor

visualizar a complexidade das relações e forças sociais.

A sociologia, por sua vez, se encarregará do estudo das relações entre os

indivíduos, cabendo a outras ciências a reflexão sobre o conceito de indivíduo.

Em “Temas básicos de Sociologia”, Adorno e Horkheimer6 dedicam um capítulo

ao estudo do indivíduo. Os autores começam por pensar a origem do conceito de

indivíduo na Filosofia, a partir de Descartes, que introduz o conceito de autonomia do

eu, no primado do “Eu sou” e do “Eu penso”  independente dos sujeitos concretos,

entendido por Descartes com o sum do cogitans, por Fichte como eu absoluto  e por

Husserl como consciência pura. São visões que privilegiam o indivíduo isoladamente, e

não em suas relações na sociedade. A Filosofia pensou o indivíduo como algo

concreto, auto-suficiente, uma unidade com propriedades particulares. Dizem os

autores: “Indivíduo é a tradução latina do atomon materialista de Demócrito”7. Para

explicitar essa afirmação, citam Boécio:

 Individuum é aplicável de muitas maneiras: dá-se o nome de indivíduoàquele que não pode ser subdividido, de modo nenhum, como a Unidadeou o Espírito; chama-se indivíduo ao que, por sua solidez, não pode serdividido, como o aço; e designa-se como indivíduo aquele cuja

 predicação própria não se identifica com outras semelhantes, comoSócrates.

A definição de Boécio acerca do indivíduo busca o singular e o particular, que

evoluíra com Duns Escoto, no início da Escolástica, momento em que em

contraposição ao universalismo medieval, se afirmam os estados nacionais; Escoto

concebe o começo da individuação pela mediação da natureza humana geral, a essentia

communis com a pessoa individual, o homo singularis8.

Leibniz, sem pensar historicamente a produção dos seres organizados sobre a

terra, definiu o indivíduo por meio do seu simples ser. A teoria das mônadas de

Leibniz, isto é, a substância simples, sem partes agregadas de outras substâncias,

6  Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:45).7  Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:46).8  Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:46).

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constitui as coisas de que a natureza se compõe; origina-se aí, segundo Adorno e

Horkheimer9, um modelo conceptual para a visão individualista do homem na

sociedade burguesa. Segundo Leibniz:

 As mônadas não têm janelas pelas quais possa entrar ou sair algumacoisa, e as modificações que nelas ocorrem não têm causas externas masderivam, outrossim, de um princípio interno.10 

Já que a mônada conserva a propriedade de ser diferente de todas as outras, a

sociedade será a somatória dos indivíduos singulares. Desse ponto de vista, a natureza

de um ser coletivo é o modo de ser das entidades que o formam:

... a essência de um exército não é outra coisa senão um modo de ser doshomens que o formam.11 

Sob a ascendência da teoria da concorrência, isto é, do liberalismo, passou-se a

pensar as mônadas como um ser em si, mas graças à filosofia especulativa da

sociedade, demonstrou-se que o indivíduo está socialmente mediado.

Surge, com Hegel, a idéia de que a individualidade, o isolamento, leva à loucura;

precursor de tendências modernas na Psiquiatria, busca explicar que um dos motivos da

doença mental é a falta de contato social; por outro lado, também o absolutismo sem

limite, a resistência contra a individualidade, tem como resultado uma permanente luta

de todos contra todos, conseqüentemente, ninguém desenvolverá verdadeiramente a suaprópria individualidade, cada um pretendendo afirmar sua singularidade sem o

conseguir, porque esbarra na singularidade do outro.

A visão individualista da filosofia foi se transformando numa ciência da

sociedade, tendo as relações entre os indivíduos e a sociedade como seu tema central;

surge então a sociologia como uma via de compreensão de tais relações.

O conceito de indivíduo como unidade social fundamental é posto em causa: “A

vida humana é essencialmente e não por mera casualidade convivência”. 12

 

Isto é, o homem só se constitui enquanto tal na relação com os seus semelhantes,

e só por eles é o que é; portanto, ele não é uma indivisibilidade e unicidade primárias,

mas está em constante participação e comunicação com os outros:

9  Adorno, T. e Horkheimer, M. (1956:47).10  Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:46).11  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).

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 Mesmo antes de ser indivíduo o homem é um dos semelhantes, relaciona-se com os outros antes de se referir explicitamente ao eu; é um momentodas relações em que vive antes de poder chegar, finalmente, àautodeterminação.13 

Segundo Adorno e Horkheimer, isto se expressa através do conceito de pessoa,

 persona, termo romano para designar a máscara do teatro clássico.

A palavra Persona, em Cícero, que designava a máscara do personagem, usada

pelo ator, o papel a ser representado por alguém, passou a designar o cidadão nascido

livre, como pessoa jurídica, em contraposição com o escravo.

Os autores lembram que, na Antigüidade, o conceito não tinha o sentido da

individualidade substancial da personalidade; a primeira referência nesse sentido será

encontrada em Boécio, no século VI.14 

O conceito personalista da pessoa tem origem nos dogmas cristãos, com a noção

de imortalidade da alma individual; mas foi na Reforma protestante que a pessoa,

composta num dado momento do desenvolvimento histórico do indivíduo, encontra sua

enunciação social. No entanto, os autores ressalvam que não pretendem significar com

esta afirmação que a concepção teológica tenha sido responsável pela transformação do

sentido da palavra persona e nem que o desenvolvimento histórico-social do indivíduo

tenha sua origem no cristianismo, tal como concebe Hegel na construção da História

universal; mas, observam, até Hegel a discussão teórico-sociológica do indivíduoacontecia nos limites desses princípios:15 

 A definição do homem como pessoa implica que, no âmbito dascondições sociais em que vive e antes de ter consciência de si, o homemdeve representar determinados papéis com os seus semelhantes.16 

Como resultado dessa representação de papéis e em relação com os seus

semelhantes é que ele se constitui no que é. Os papéis, por outro lado, se definem na

relação: mãe de /, filho de /aluno de /, professor de /, médico de /, paciente de. Isto é,as relações não são, para o indivíduo, algo extrínseco a ele, mas algo intrínseco que o

determina como filho, aluno, doente etc.

12  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).13  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:47).14  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).15  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).16  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:48).

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A pessoa, portanto, é, em primeiro lugar, uma entidade biográfica, uma categoria

social, que só se define na relação com outras pessoas; em segundo lugar, a pessoa é

um ser social: é no contexto social que a “máscara social do personagem” é também

um indivíduo; e em terceiro na relação entre o indivíduo e a sociedade está diretamente

ligada à natureza.

O conjunto desses três momentos do indivíduo, no seu caráter dinâmico, gera leis

que garantem a interação entre indivíduo, sociedade e natureza; cabe à sociologia

observar como acontece essa interação.

Adorno observa que Marx e Engels enfatizaram essa necessidade da sociedade

que têm os homens para a satisfação de suas necessidades vitais na natureza:

... o primeiro pressuposto de toda a História humana é naturalmente a

existência de indivíduos humanos vivos.17 

Para Comte, as influências de certas condições naturais, geofísicas e climáticas

incide diretamente nas condições sociais; nasceu uma subdisciplina da geografia, a

Ecologia. Alguns estudiosos deram um valor absoluto às condições físicas da

convivência humana, desviando o centro da investigação do campo social, relacional

propriamente dito.

A Sociologia Clássica, portanto, está direcionada mais para a totalidade social e

seu movimento do que para o indivíduo.

Adorno e Horkheimer apontam que não é aleatória a

... doutrina do primado necessário do todo sobre a parte, expressa naPolítica de Aristóteles, e que se encontra pouco depois da definição

 formal do zoon politikon, isto é, da natureza social do homem.18 

É na “convivência com outros que homem é homem”, afirmação válida para

Platão e Aristóteles, visto que para esses filósofos é na comunidade da pólis que a

natureza humana se realiza: “O homem não social só poderá ser um animal ou um

deus” 19.

Esta idéia é retomada por Kant quando, numa referência direta à fórmula

aristotélica, considera o homem um “ser destinado à vida em sociedade” e atribuí-lhe

17  Marx, K. e Engels, F. A ideologia alemã, citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:56).18  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:49).19  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:49).

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uma “tendência associativa”. Só em sociedade o homem é capaz de desenvolver todo o

seu potencial natural.

No entanto, as condições para tal desenvolvimento implicam não somente a

convivência enquanto tal, mas uma convivência organizada:

O homem não foi predestinado à vida em rebanho, como os animaisdomésticos, mas em colmeia como as abelhas.20 

Adorno observa que Hegel, embora um crítico rigoroso da filosofia prática de

Kant, está de acordo com Kant no que diz respeito a essa idéia mas, em sua crítica,

aponta o fato de que a filosofia moral de Kant deu muito pouca importância aos

conflitos societários, em favor da subjetividade abstrata da pessoa moral na sua

unicidade.

A filosofia de Hegel contesta a idéia da pura individualidade, em que os

indivíduos seriam seu próprio centro, como em Schlegel, para quem o homem se basta,

tira de si mesmo todo sentido de ser sem qualquer limite imposto pela sociedade, uma

individualidade que não se dá conta do outro, nem na imitação nem na identificação, e

não está subordinada a nenhuma lei universal.

Adorno chama a atenção para uma certa semelhança entre Schlegel e Nietzsche.

Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche apresenta um “indivíduo soberano” que só é

igual a si mesmo,

... que voltou a libertar-se da moral dos costumes, um indivíduoautônomo e super-moral, o homem de vontade própria, extensa eindependente, capaz de cumprir as suas promessas.21 

Para a Sociologia, a sociedade tem prioridade em relação ao indivíduo,

concepção que se origina no momento da Revolução Francesa. É quando Auguste

Comte fala de uma

... impulsividade social da humanidade, em virtude de uma tendênciainstintiva para a vida em comum, independentemente de qualquerdeliberação pessoal e, com freqüência, contrária aos interessesindividuais mais vigorosos.22 

20  Kant, E. citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:50).21  Nietzsche, F. Genealogia da Moral; citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:50).22  Comte, A.; citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956).

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O conceito comteano de indivíduo como categoria da sociedade está próximo de

uma idéia ainda hoje corrente de que o indivíduo é um dado da natureza, tendo como

premissa o fato de que todo homem vem ao mundo como indivíduo, como ser

biológico; portanto, sua natureza social seria secundária.

A natureza biológica é um fato e a sociologia crítica leva em conta esse fator,

para não privilegiar tão somente a comunidade social. No entanto, o conceito de

individuação biológica é muito vago e indeterminado, não possibilitando a expressão

do que os indivíduos efetivamente representam.

A existência natural do indivíduo é mediatizada pelo gênero humano e,

conseqüentemente, pela sociedade; portanto, o indivíduo não é só uma entidade

biológica.

Anteriormente, a linguagem filosófica e a linguagem comum definiam o

indivíduo como “auto-consciência”:

Só é indivíduo aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelececomo norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio.23 

No entanto, a autoconsciência da singularidade do eu não é suficiente por si só

para fazer um indivíduo; o indivíduo é uma auto-consciência social.

Adorno e Horkheimer citam a definição de Hegel para auto-consciência: “a

verdade da consciência do próprio eu”, mas “a sua satisfação só é alcançada numa

outra consciência.” 24 

Nessa relação de uma auto-consciência com outra, o indivíduo aparecerá como

nova consciência, da mesma forma que o universal, a sociedade, como uma unidade

das mônadas, só se fará presente na medida em que “o eu somos nós e nós o eu”.

O trabalho do indivíduo para as suas necessidades tanto é satisfação das

suas necessidades como das dos outros; e a satisfação das suasnecessidades só é conseguida em virtude do trabalho dos outros.25 

Adorno lembra que este motivo reaparece em Marx:

23  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).24  Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956).25  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).

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  27

O homem Pedro só se refere a si próprio como homem através darelação com o homem Paulo, seu semelhante.26 

A crença na independência absoluta do ser individual com relação à sociedade

como um todo é falsa, concluem os autores.

O indivíduo enquanto um ser social é o contrário do ser natural, porque no seu

processo de desenvolvimento ele se distancia paulatinamente das relações naturais, por

estar desde a sua gênese referido à sociedade.

Quanto mais o indivíduo é reforçado, mais cresce a força da sociedade,graças à relação de troca em que o indivíduo se forma.27 

Mas as relações entre indivíduo e sociedade são tensas e conflituosas.

A Sociologia enfatizou a força da sociedade sobre o indivíduo, como um alertacontra a ilusão de que o homem chegou ao que é por sua própria atuação, natureza e

psicologia. Essa visão sociológica mostra uma sociedade que pressiona violentamente

o indivíduo, e as reações individuais são contidas de modo a esconder as

responsabilidades da sociedade, que as colocam como um problema de ordem

psicológica.

Poderíamos pensar que a visão sociológica tende a reduzir o homem a um ser

genérico, ainda que ser genérico de uma organização complexa onde o homem é um

representante impotente dessa sociedade. Mas, evidentemente, o conceito puro de

sociedade é tão abstrato quanto o de indivíduo, portanto a oposição entre sociedade e

indivíduo deve ser considerada com especial atenção. É preciso uma análise das

relações sociais e da configuração que o indivíduo assume nessas relações.

A compreensão da relação entre indivíduo e sociedade tem sido evitada pela

sociologia positivista, com sua concepção de que “o homem só atinge a sua existência

 própria como indivíduo numa sociedade justa e humana.” 28 

Mas, com o advento da concorrência, com a falta de limites das ordens

correlativas e o início da revolução técnica na indústria, se desenvolveu uma dinâmica

social na sociedade burguesa que obriga o indivíduo econômico a lutar

inexoravelmente por interesses de lucro, sem pensar no bem coletivo.

26  Citado em Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:52).27  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:53).28  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:53).

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  28

A ética protestante e o conceito burguês-capitalista de dever reforçam esse tipo

de atuação:

O ideal anti-feudal da autonomia do indivíduo compreendia a autonomiada decisão política dos indivíduos; no contexto econômico, porém,

transformou-se numa ideologia que exigia a manutenção da ordemvigente e o constante recrudescimento da capacidade de realização produtiva.29 

Uma vez interiorizado esse ideal, a realidade se transforma “em aparência e a

aparência em realidade”: surge então a existência absolutamente solitária do

indivíduo, dependente da sociedade, que o tolera e o anula simultaneamente:

O meio ideal da individuação, a Arte, a Religião, a Ciência, retrai-se edepaupera-se como posse privada de alguns indivíduos, cuja

subsistência só ocasionalmente é garantida pela sociedade. 30

 

Assim, a sociedade, que se constituiu como conceito e práxis em função do

desenvolvimento do indivíduo, desenvolve-se à revelia dele, se distanciando cada vez

mais do indivíduo, que ignora esse funcionamento do qual está intrinsecamente

dependente. 31 

1.2 A Constituição do Indivíduo na Classe

Tal hiato entre indivíduo e sociedade será ultrapassado pelo conceito de classe

social, que permite pensar a constituição do indivíduo na classe.

Entre os estudiosos desta questão, em especial os marxistas, não há um consenso

em torno do conceito de classes sociais, nem mesmo na obra de Marx encontramos o

seu significado definido, afirma Ridenti32.

O termo “classe” em Marx, aparece em vários sentidos: tanto num sentido

“genérico-abstrato”, quanto num sentido “específico-particular”. No primeiro, se

29  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).30  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).31  Adorno, T.W. & Horkheimer, M. (1956:55).32  Ridenti, M. (1994:13).

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destacam as determinações comuns e gerais, próprias de cada época; no segundo, “o

 fenômeno específico determinado pela produção capitalista moderna” 33.

Num sentido mais amplo, o termo classe identifica os grandes grupos humanos

que lutam e se relacionam entre si para a produção do sustento próprio, criando

relações de dominação, apropriando-se do excedente gerado para além do mínimo

necessário para a subsistência.

Desta forma, as classes estão presentes em todas as sociedades, não importa se

estruturadas em castas ou estamentos ou nas sociedades de classe modernas. É nesse

sentido, diz Ridenti, que foi formulada a conhecida frase do Manifesto Comunista,

quando se diz que “... a história de todas as sociedades até nossos dias tem sido a

história das lutas de classes.” 

A rigor, só faria sentido falar em classes nas sociedades industriais capitalistas,

quando aparece uma classe burguesa, que detém em suas mãos a propriedade dos

meios de produção. Esta classe investe capital para valorizá-lo mediante a extração de

um “sobre-trabalho” não remunerado, dado pelo emprego de uma classe de

trabalhadores assalariados, “livres”, sem propriedades e sem vínculos com os patrões

ou com a terra ou outros meios de produção.

São trabalhadores obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviverem, só

formam uma classe propriamente dita quando se associam para lutar contra aexploração a que são assujeitados. Neste sentido específico, apareceriam as classes, em

“O Capital”, de Marx.

Seria impróprio, diz Ridenti, pensar, como sugerem alguns autores, a questão da

“classe em si”, porque na realidade isso implicaria pensar questões que dizem respeito

à prática política e à inter-relação entre “classe em si” e “classe para si”; nesse caso,

seria um artifício analítico, porque é impossível fazer uma separação do econômico e

do político. Em “O Capital” e outros livros de Marx, pode-se concluir que seriam três

as “grandes classes”: a “classe dos capitalistas”, proprietários de capital; a “classe

dos proprietários” fundiários, proprietários de terra; e a “classe dos trabalhadores

assalariados”, detentores da força de trabalho. Tais classes têm como rendimentos,

respectivamente, o lucro, a renda da terra e o salário.

33  Ridenti, M. (1994:13).

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Logo, são três as grandes classes ligadas ao modo de produção capitalista; são as

únicas que poderiam ser chamadas de classe em sentido estrito.

Além das três classes em sentido estrito, Marx fala de classes intermediárias e de

transição. Ridenti, citando Ruy Fausto, dá um apanhado das classes sociais fora do

âmbito das três classes básicas, com base em diferentes obras de Marx.

À parte o lumpenproletariado formado por marginais ao sistema produtivo,

mendigos, ladrões, prostitutas etc., que conseguem seus rendimentos de maneira

estranha às relações capitalistas, as classes, fora do âmbito das três principais classes,

seriam:

1. A classe dos camponeses e artesãos, que se formam a partir das relações de

circulação simples, são produtores de mercadoria.

2. A classe de trabalhadores improdutivos, que não estão fora do sistema, mas

não estão ligados à produção simples, fazem parte da “exterioridade no

sistema”. Seus salários são oriundos dos rendimentos do sistema (lucro,

renda fundiária e salário), grupo que Marx chamou de “improdutivos

 políticos”, os assalariados do Estado e os domésticos.

3. A classe dos trabalhadores que estão inclusos no processo produtivo, mas

que excedem a classe dos trabalhadores assalariados por estarem além de

certos limites de qualificação ou de poder no processo de trabalho ou deremuneração.

4. E, por último, o grupo dos profissionais liberais, advogados, médicos,

artistas, etc. O trabalho desses profissionais liberais não implica uma relação

salarial, porque o profissional liberal é dono dos seus meios de produção, ele

presta ou vende serviço.

Sabe-se que o dinheiro funciona como mediação necessária das relações sociais

no capitalismo, é um “equivalente geral que representa a intercambialidade de todasas mercadorias entre si” 34 

As mercadorias se apresentam como tendo valor em si mesmas, valor

representado na relação de troca pelo preço da mercadoria. A relação cambial é

34  Ridenti, M. (1994:87).

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mediadora da troca, desta forma evidencia-se o valor que nunca é o que na verdade é, o

resultado do trabalho social:

 A forma do valor (valor de troca) oculta necessariamente seu conteúdo:as relações sociais de produção, ou relações de trabalho entre classes

opostas, aparecem como relações entre coisas trocadas no mercado eque valem em si mesmas. 35 

As relações sociais no modo de produção capitalista se apresentam sob a forma

de relações naturais entre as coisas.

No modo de produção capitalista a mercadoria assume um caráter místico e

fantasmagórico, que encobre os fundamentos das relações de classe; Marx chamou esse

processo de fetichismo da mercadoria:

... as relações sociais de classe no capitalismo são representadas pelasrelações de troca de mercadorias entre supostos proprietários ‘livres eiguais’ para competir no mercado. 36 

A representação da qual se fala encobre o conflito entre o capital e o trabalho,

que subjaz nas relações de concorrência mercantil, por si só a representação não dá

conta de promover e conciliar os interesses de classe, nem tão pouco gera uma relação

harmoniosa entre capital e trabalho.

Todos os conflitos e competições são mediados por uma instância superior, o

Estado.

O Estado assume uma representação do conjunto da sociedade, não expressando

nunca as incompatibilidades sociais. O Estado se apresenta como “uma forma

autônoma”, neutra e acima dos interesses dos indivíduos que se fazem representar nele.

Ele aparece como uma força superior que está localizada fora dos indivíduos;

Marx chamava a isso “coletividade ilusória”, que paira acima dos interesses

particulares e gerais, fetichismo do Estado.

O Estado não só aparece como representando o bem comum, como também

enquanto o guardião da vontade de todos os cidadãos, mantendo-se acima deles, agindo

de maneira neutra e imparcial, o que o autoriza para resolver as “pendências entre os

35  Ridenti, M. (1994:86).36  Ridenti, M. (1994:88).

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sujeitos de direito, elaborando, julgando e depois executando leis gerais”,

hipoteticamente em benefício da sociedade como um todo.

Cumpre, portanto, a ele, uma função mediadora entre indivíduos-cidadãos-

proprietários, sem distinção de classe.

A execução e formulação das leis que regem o Estado são assumidas pelos

cidadãos que elegem representantes nos poderes legislativo e executivo:

... graças a essa operação ideológica, os membros da sociedade civil semostram aglutinados numa comunidade originária, a encobrir suasdiferenças efetivas. 37 

Isto é, a representação dos cidadãos no Estado é mediada pelos seus

representantes políticos; desta forma está posta a possibilidade de representação de

diferentes indivíduos, de diferentes classes, dentro do Estado.

Existe uma idealização, ou melhor, uma mistificação das classes sociais, quando

se fazem representar no Estado através de partidos, sindicatos ou lideranças isoladas;

cada classe busca priorizar sua individualidade através das organizações que a

representam, negando as bases diferenciais em que se baseiam.

O Estado, portanto, a partir dessa perspectiva, é o resultado dos antagonismos de

uma sociedade civil. O Estado aparece como uma entidade acima de qualquer

diferença, representante do conjunto da sociedade, uma entidade acima de interesses

particulares, como se tivesse vida própria e não fosse o resultado das diferenças de

classe.

Ele é a representação política de uma sociedade civil onde a burguesia é a classe

dominante, que exerce seu poder não só econômico, mas político, cultural, ideológico

etc. Sua hegemonia enquanto classe não é só porque detém o poder político e

econômico, mas porque seus valores e idéias são dominantes e preservados pelos

dominados até quando lutam contra a dominação exercida pela burguesia.Para Marx, uma classe se constitui enquanto “classe para si” quando propõe a

sua organização política através de um processo de conscientização e tomada do poder

político. A representação seria, portanto, parte do processo de vir a ser da classe

enquanto tal “em si” e “para si”. 

37  Gianotti, J. A. (1983:295), citado em Ridenti, M. (1994:92).

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  33

1.3 O Lugar do Negro na Sociedade

A partir das considerações teóricas até aqui apresentadas, gostaria de levantar

algumas questões relativamente ao lugar do negro na sociedade. Para tanto, cito uma

passagem de Schwarcz que aponta para um aspecto que, a meu ver, pode explicar os

fenômenos que pretendo apontar. O título do artigo de Schwarcz, “Ser peça, ser coisa:

definições e especificidades da escravidão no Brasil” já designa aquilo que, penso, está

na gênese da dificuldade da constituição do lugar social do negro:

É conhecido um documento que orienta os proprietários na compra de‘novas peças’ e alerta para o perigo de calotes. Assim aconselha o

 Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades,escrito em 1839 por I.B.A. Imbert: ‘Circunstâncias a que se deveorientar toda a pessoa que deseja fazer uma boa escolha de escravos:

 pele lisa, não oleosa, de bela cor preta, isenta de manchas, cicatrizes ouodores demasiado fortes; com as partes genitais convenientementedesenvolvidas: isto é, nem pecasse pelo excesso, nem pela cainheza; obaixo-ventre não muito saliente; nem o umbigo muito volumoso; peitocomprido, profundo, sonoro, espáduas desempenadas, sinal de pulmõesbem colocados; pescoço em justa proporção com a estatura, carnes rijase compactas; aspecto de ardor e vivacidade: reunidas ter-se-á umescravo que apresentará ao senhor todas as garantias desejáveis desaúde, força e inteligência. 38 

Em função desse passado histórico, marcado pela desumanização que, como

conseqüência, constitui um obstáculo à construção da individualidade social, o negrotem o seu processo de tornar-se indivíduo comprometido. Embora haja um processo

efetivo em o negro buscar constituir-se como tal, tal processo é conturbado, esbarra em

inúmeras dificuldades.

O passado histórico da escravidão é constitutivo desse processo. Pois, como diz

Schwarcz:

... fazer história não é um exercício exclusivo do passado ou nomearheróis em lugar de questões que levem à nossa própria reflexão. A

escravidão existente no Brasil faz parte do passado e do presente, já quese inscreve em nossas religiões mestiças, em nossos costumes e

 preconceitos. 39 

Se o negro, de um lado, é herdeiro desse passado histórico que se presentifica na

memória social e que se atualiza no preconceito racial, vive, por outro lado, numa

38  Schwarcz, L. M. (1996:14).39  Schwarcz, L. M. (1996:28).

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sociedade cujas auto-representações denegam esse mesmo racismo, camuflando, assim,

um problema social que produz efeitos sobre o negro, afetando sua própria

possibilidade de se constituir como indivíduo no social; assim, não se discute o racismo

que, na condição de um fantasma, ronda a existência dos negros.

Se antes de ser indivíduo, o homem é um ser entre semelhantes, que se relaciona

com os outros, enquanto seres iguais, antes de se referir a si mesmo, em que condições

uma mercadoria, uma “peça” pode se auto-referenciar no outro?

Esse processo de desumanização pelo qual passou o negro tem como

conseqüência, conforme apontei, bloquear o processo de constituição da individuação,

na medida em que bloqueia a possibilidade de identificação com os outros nas relações

sociais. A única esfera de identificação possível seria com os outros negros, todos

identificados entre si e pela exterioridade social como não-indivíduos sociais, porque“coisas”, “peças”, “mercadorias” possuídas por aqueles que, estes sim, eram

indivíduos na sociedade.

A instituição da escravidão construiu, para os negros, a representação segundo a

qual eram seres que, pela sua “carência de humanização” (porque portadores de um

corpo negro, que expressava uma “diferença biológica”), inscreviam-se na escala

biológica num ponto que os aproximava dos animais e coisas, seres esses que,

legitimamente, constituem objetos de posse dos “indivíduos humanos”.

O negro não era persona. Não era um cidadão nascido livre, como pessoa

 jurídica; na condição de escravo, não era pessoa; seu estatuto era o de objeto, não o de

sujeito. Assim, o negro foi alijado do corpo social, única via possível para se tornar

indivíduo.

Mais tarde, com a abolição da escravatura e a constituição da República, a

condição jurídica de cidadão foi estendida aos negros. Mas, como inscrever-se, ao nível

das representações, nesse lugar social se, até “ontem”, estava-se excluído dele?

Por outro lado, tal momento coincide com a fase inicial do modo de produção

capitalista no Brasil. Assim, o negro se vê na situação de, ao mesmo tempo em que

adquire o estatuto de cidadão, entrar no registro social da categoria de trabalhador livre,

proprietário de sua força de trabalho que, assim, pode livremente vendê-la no mercado.

Mas, como entrar nesse registro se, até “ontem”, não se pertencia à categoria dos

agentes econômicos, já que se estava catalogado nas outras categorias — mercadoria

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e/ou bem de capital (isto é, instrumento de produção) — em suma, na categoria das

coisas?

Sabemos que só faz sentido falar em classe em sociedades industrializadas. No

entanto, o negro já tinha, na escravidão, um trabalho no campo, além de ser artesão ou

serviçal doméstico. Em tese, estavam dadas as condições para que os negros,

identificando-se entre si pela ocupação de um mesmo lugar social, determinado por sua

condição de “força de trabalho”, se auto-representassem como classe, por contraste

com outros grupos sociais em relação aos quais se diferenciariam pela posição social e

interesse. Mas, na realidade, a emergência de tal tipo de representação de classe era aí

impossível, dado o fato de que faltava aquilo que é sua premissa básica: o estatuto de

indivíduo, persona, que para o negro, enquanto escravo, estava excluído.

A libertação da escravatura não significou para o negro, ingresso na classetrabalhadora; ao contrário, tal processo foi vivenciado como um abandono: abandonado

pelos senhores, ele se tornava um peso, um excedente na estrutura social.

O negro, conseqüentemente, veio a ocupar o que, modernamente, se

convencionou como lumpenproletariado (marginais, mendigos, prostitutas, etc.), grupo

formado por marginais ao sistema produtivo, mesmo atualmente, grande parte da

população negra se encaixa nessa categoria; ou, pelo menos, é assim que, nas

representações sociais, se constitui a imagem da população negra.

Pós o período abolicionista, a grande massa negra, portadora de uma força de

trabalho não qualificada relativamente ao processo industrial, permaneceu literalmente

à margem do processo de socialização porque alijada do processo de produção.

É nesse sentido que pretendo aqui pontuar, simultaneamente, dois aspectos: de

um lado, a dificuldade, para o negro, de construir sua identidade social enquanto negro,

enquanto indivíduo pertencente ao grupo dos negros; de outro, o mesmo tipo de

dificuldade em se constituir como indivíduo no interior do corpo social como um todo,

pelas identificações com seus semelhantes sociais. Tais dificuldades são o subproduto,de um lado, do “não-lugar” social do escravo, cuja identidade não correspondia a um

lugar de sujeito, no corpo social, mas a um lugar de “peça”, objeto; de outro, ao fato

de que, tendo adquirido, pós-escravidão, o estatuto jurídico de cidadão, portanto, o

reconhecimento de seu lugar de indivíduo social, não pôde, por outro lado, identificar-

se com esse lugar no plano sócio-econômico.

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A conseqüência disso é que o negro, no seu processo de tentar se constituir como

indivíduo social, desenvolveu um horror a se identificar com seus iguais, pois estes

representam, para ele, o retorno de um sentido insuportável, que tenta recalcar: a

gênese histórico-social de sua condição de negro, que o remete ao estatuto de “peça”,

em primeiro lugar; ao estatuto de “lumpem” , em segundo lugar.

Como resposta, o negro desenvolve uma identificação fantasmática com a classe

dominante, cujo emblema é o ideal imaginário da brancura. Nesse processo, o negro

talvez reproduza aquilo que segundo Adorno, é o enunciado tácito que a dominação

produz:

(...) os negro, é preciso conservá-los em seu lugar (...)40 

Que lugar é esse? 

40  Adorno, T. W. (1969:157).

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Capítulo II 

 As Representações Sociais

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2.1 A Cultura como Sistema de Significações

As categorias de indivíduo ou de classe, embora se constituam a partir das

estruturas sociais e econômicas, são inseparáveis das formas de representação pelasquais as “mônadas” podem se reconhecer como indivíduos na sociedade e como

membros de uma determinada classe.

É no campo da antropologia que a vida social é pensada como um sistema de

significações, que corresponde à noção de cultura. A cultura funciona como uma grade

que incide sobre um território indistinto, seccionando aí partes e estabelecendo, entre

as partes, contrastes e diferenças de que resulta a constituição do sentido. É o que nos

fala José Carlos Rodrigues em “O Tabu do Corpo”:

(...) essa atribuição de sentido ao mundo só se torna possível porque asociedade é, ela mesma, um sistema estruturado cujos componentesrelacionam-se segundo uma determinada lógica, lógica esta que éintrojetada nas mentes dos indivíduos e, por esse caminho, ‘projetada’,sobre o mundo, na medida em que este, para ser apreendido pelosindivíduos, deve ser representado em suas mentes e, portanto,‘concebido’. 41 

Existe na antropologia, modernamente, uma tendência a visualizar a vida social

como um sistema onde a razão de ser dos elementos que o constituem é significar; asrelações entre esses elementos significantes são produtoras de significação.42 

Segundo Rodrigues, Lévi-Strauss, ao propor, no campo da antropologia, tomar-se

como ponto de referência a teoria saussuriana da linguagem, pôs em jogo uma

concepção da sociedade humana que tem, como principal característica o postulado de

que:

... o comportamento e as relações sociais constituem uma linguagem. 43 

Baseando-se em Lévi-Strauss, Rodrigues diz que a ciência social contemporânea

tem uma orientação mais próxima da sociedade humana, tendo em vista que o objeto

da Lingüística é, entre os fatos sociais, o mais legitimamente humano. 44 

41  Rodrigues, J. C. (1983:43).42  Rodrigues, J. C. (1983:9).43  Rodrigues, J. C. (1983:9).44  Rodrigues, J. C. (1983:9).

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Um dos pontos que fundamenta a teoria de Lévi-Strauss é a de que a atividade do

espírito humano é a de um estruturador inconsciente, como um regulador entre o

homem e o mundo, não para o simples controle da natureza ou dos eventos, mas

porque necessita determinar e sistematizar.

A Cultura, para Lévi-Strauss, é o resultado privilegiado da atividade do espírito

humano, na medida em que consiste

... na substituição do aleatório pelo organizado, assegurando assim aexistência do grupo humano como grupo.45 

A função desse processo de organização que a cultura envolve, diz Rodrigues,

corresponde à necessidade, para o homem, de atribuir sentido, e se manifesta, no

sistema de significações que constituem a estrutura cultural da sociedade como:

O reconhecimento de que em sutis diferenças e nuances de olhar, de posturas, de maneiras de comprimentar, de atividades econômicas, de procedimentos rituais, exprime-se um juízo acerca das relações queexistem entre quem se olha, se comporta, se comprimenta, trabalha ouage e acerca do relacionamento entre estes e outros que não serelacionam diretamente com os primeiros.46 

Para a teoria antropológica de Lévi-Strauss, a organização se funda num conjunto

de normas que se fixam, instituem e estabelecem valores e significações que facilitam

a comunicação dos indivíduos e grupos de um dado terreno comum; de modo que asrelações sociais que aparecem como resultado de uma realidade “objetiva”, só se dão

enquanto tal porque são “concebidas”; enquanto concebidas, não formam uma

realidade “objetiva”, porque só existem na consciência ou inconsciência de um sujeito

particular.

Sendo assim, a sociedade é, fundamentalmente, concebida; não é uma “coisa”, é

uma construção do pensamento, uma entidade com sentido e significação:

 A cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um mapa queorienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social.47 

O conjunto das representações que constituem a cultura está condicionado a uma

lógica, que determina que viver em sociedade é estar “sob a dominação dessa lógica”:

45  Rodrigues, J. C. (1983:10).46  Rodrigues, J. C. (1983:10).47  Rodrigues, J. C. (1983:11).

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  40

os indivíduos se comportam segundo essa lógica, muitas vezes sem ter consciência

disso. Disso resulta que a vida coletiva, assim como a vida psíquica dos indivíduos, se

faz de representações, ou seja, de figurações mentais. Os sistemas de representação

historicamente existentes tiveram sua origem no relacionamento dos indivíduos e dos

grupos sociais entre si, processo que se dá de forma complexa: não corresponde a umarelação causal simples, mecanicista, empírica, mas depende de fatores os mais

diversos.

Quando estabelecidos os sistemas de representação, sua lógica passa a ser

introjetada, pela educação, nos indivíduos, de maneira a estabelecer, nestes,

semelhanças essenciais que a vida no coletivo presume e que constitui a garantia de

homogeneidade para o sistema social: é o que garante o processo de socialização dos

indivíduos.

Os sistemas de representação são, via de regra, pensados como originados da

morfologia social, isto é, das formas da vida social, mas essa relação não é tão direta

quanto possamos ser tentados a pensar.

As criações míticas, artísticas, rituais, as crenças, os valores e os costumes, diz

Rodrigues,

...não têm um caráter instrumental e pragmático, mas sim metafórico e

metonímico, inconscientes no maior número de vezes possível.

 48

 

As representações, segundo Rodrigues, funcionam como redes, cujas malhas

instauram os domínios da experiência para além de um terreno anteriormente

indiferenciado e estabelecem os limites dos comportamentos dos indivíduos e dos

grupos:

... como códigos constituídos, aplicam-se a esses componentes paradecifrá-los pois, ao dividir os domínios da experiência , os sistemas derepresentação estabelecem cortes e contrastes e instituem diferenças.49 

Citando Saussure, Rodrigues reitera que é a diferença que faz o sentido.

Os sistemas de representação, ao funcionarem dessa forma, se transformam em

sistemas de classificação; daí o dito “mundo real” ser inconscientemente construído “a

 partir dos códigos da sociedade”.

48  Rodrigues, J. C. (1983:12).

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  41

A natureza humana não sabe lidar com o caos; o homem tem medo de se ver

frente àquilo que ele não controla, seja tecnicamente ou simbolicamente:

Tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está àmargem das normas, tudo o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é

anômalo, tudo o que é desestruturado, pré estruturado e antiestruturado,tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e previsível e oque está longínquo e fora de nossas preocupações, tudo o que estásimultaneamente em nossa proximidade imediata e fora do nossocontrole, é germe de insegurança, inquietação e terror: converte-seimediatamente em fonte de perigo.50 

Desse modo, a cultura funciona, para o homem, como um escudo que o protege

da possibilidade de ter uma experiência que escape ao estabelecido pelas codificações

do grupo social, defendendo-o do pavor do isolamento e da desordem, dando

legitimidade às estruturas institucionais.

Contraditoriamente, a sociedade precisa de fenômenos que ela mesma rejeita,

pois é através deles que expressa sua positividade, é por contraste com estes fenômenos

que seus conteúdos expressos ganham sentido.

A cultura, portanto, funda a “natureza do homem”, que tem como base as

condições orgânicas e sociais dialeticamente relacionadas:

 Não há comportamento humano fora da Cultura, ou resultante de

qualquer abstração que se faça desta.51 

A cultura se identifica enquanto tal em oposição à natureza, assim como uma

cultura em particular se reconhece como tal em oposição a uma outra cultura. É a

relação dual entre natureza e cultura que traça o perfil de um sistema social e o

estabelece como um bloco significativo. Este bloco significativo tem suas divisões

internas que vão significar outros contrastes e outras oposições. O sagrado e o profano

fazem parte desse bloco, como os mais importantes “articuladores do sentido na

estrutura social”.

O sagrado se faz representar por objetos de interdição; em contrapartida, o

profano é aquilo a que estas interdições se aplicam. A relação que se estabelece com o

sagrado é não permitir que esse entre em contato com o profano:

49  Rodrigues, J. C. (1983:12).50  Rodrigues, J. C. (1983:15-16).51  Rodrigues, J. C. (1983:19).

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Estas duas interdições configuram o que, na literatura etnológica,classificou-se de tabu. O tabu isola tudo o que é sagrado, inquietante,

 proibido, ou impuro; estabelece reserva, proibições, restrições; opõe-seao ordinário, ao comum, ao acessível a todos.52 

Objetos e pessoas tabu exercem uma força e energia extraordinária; sempre

pronta a recair sobre o transgressor que não se armou dos cuidados rituais de conduta

frente ao objeto sagrado.

O sagrado tanto expressa o que é importante positivamente como negativamente

para a estrutura social, pois a ordem dessa estrutura depende do respeito ou temor a

determinadas idéias, coisas, pessoas ou símbolos.

Esta distância entre sagrado e profano não é a única forma de manifestação da

distância social, que se manifesta também no contraste entre o distante e o próximo.

Quando alguém representa o não viável o não desejável, (por exemplo, “burro”,

“vagabundo”, etc.) ele deve ser distanciado, sempre em tons ofensivos.

Da mesma maneira, tons elogiosos aproximam o que é visto como desejável (por

exemplo: “fulano é um anjo”). O sistema de distanciamento é defendido, diz

Rodrigues, por uma série de racionalizações ideológicas (“pureza de sangue”,

“destino”, “ordem das coisas”, “vontade de Deus”, “igualdade de oportunidades”) e

por uma simbologia que lhe credita uma energia especial (mana), própria do sagrado,

de maneira a fazer com que os extremos coincidam com os pólos do sagrado.53 

Desse modo, no dia-a-dia, o indivíduo estabelece um conjunto de tipificações,

que lhe dão uma consciência de “nós” relativamente a um grupo de indivíduos que se

reconhecem como pertencendo ao mesmo grupo, com coisas comuns, até indivíduos

com quem se relaciona vagamente, indiretamente, abstrações anônimas, em relação aos

quais ele não se vê em um “nós”, não se reconhecendo enquanto elemento desse

grupo. A estrutura social supõe o conjunto de tipificações polares.

52  Rodrigues, J. C. (1983:26).53  Rodrigues, J. C. (1983:31).

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  43

2.2 O Corpo enquanto Signo

Essa estrutura social acaba por se reproduzir no corpo humano, de forma a dar-

lhe um sentido em particular, o que certamente irá variar de acordo com os mais

diferentes sistemas sociais:

Como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano ésocialmente concebido. 54 

A análise da representação social do corpo possibilita entender a estrutura de uma

sociedade. A sociedade privilegia um dado número de características e atributos que

deve ter o homem, sejam morais, intelectuais ou físicas; esses atributos são,

basicamente, os mesmos para toda a sociedade, embora possam se nuançar para

diferentes grupos, classes ou categorias que fazem parte da sociedade.

O corpo humano, para além de seu caráter biológico, é afetado pela religião,

grupo familiar, classe, cultura, e outras intervenções sociais. Assim, cumpre uma

função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia ou não da integridade de

uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou de afastamento em relação ao

conjunto de atributos que caracterizam a imagem dos indivíduos em termos do espectro

das tipificações. É assim que, em função da aparência (atributos físicos), alguém é

considerado como um indivíduo capaz ou não de cometer uma transgressão (atributosmorais), por exemplo.

Isto significa que o corpo está investido de crenças e sentimentos que estão na

origem da vida social mas que, ao mesmo tempo, não estão submetidas ao corpo:

O mundo das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamentonatural e material, sem provir diretamente dele.55 

O corpo funciona como marca dos valores sociais, nele a sociedade fixa seus

sentidos e valores. Socialmente, o corpo é um signo e, como diz Rodrigues:

 A utilização do corpo como sistema de expressão não tem limites.56 

54  Rodrigues, J. C. (1983:44).55  Rodrigues, J. C. (1983:46).56  Rodrigues, J. C. (1983:97).

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2.3 A Significação Social do Corpo Negro

A partir das reflexões de Rodrigues, o estatuto do negro na sociedade pode ser

considerado como sendo determinado pelos sentidos que o corpo negro representa, na

rede de unidades significativas que constituem a cultura como estrutura significante.

De fato, os atributos físicos que caracterizam o negro, e mais particularmente a

cor da pele, expressam as representações que, historicamente, associam a essas

características físicas atributos morais e/ou intelectuais que vão corresponder, no

espectro das tipificações sociais, àquilo que se instaura na dimensão do distante, ou

seja, àquilo que expressa o que está além do conjunto dos valores nos quais os

indivíduos se reconhecem. Nessa rede, negro e branco se constituem como extremos,

unidades de representação que correspondem ao distante — objeto de um gesto de

afastamento — e ao próximo, objeto de um gesto de adesão.

Dessa forma, a rede de significações atribuiu ao corpo negro a significância

daquilo que é indesejável, inaceitável, por contraste com o corpo branco, parâmetro da

auto-representação dos indivíduos. Como diz Rodrigues, a cultura necessita do

negativo, do que recusado, para poder instaurar, positivamente, o desejável. Tal

processo inscreve os negros num paradigma de inferioridade em relação aos brancos.

O indivíduo branco pode se reconhecer em um “nós” em relação ao significante

‘corpo branco’ e, conseqüentemente, se identificar imaginariamente com os atributosmorais e intelectuais que tal aparência expressa, na linguagem da cultura, e que

representam aquilo que é investido das excelências do sagrado.

O negro, no entanto, é aquele que traz a marca do ‘corpo negro’, que expressa,

escatologicamente, o repertório do execrável que a cultura afasta, pela negativização.

Vítima das representações sociais que investem sua aparência daqueles sentidos que

são socialmente recusados, o negro se vê condenado a carregar na própria aparência a

marca da inferioridade social. Para o indivíduo negro, o processo de se ver em um

“nós” em relação às tipificações sociais inscritas no extremo da desejabilidade esbarra

nessa marca — o corpo — que lhe interdita tal processo de identificação; ao mesmo

tempo, a cultura incita-o a aderir aos signos da desejabilidade, pela injunção, própria

das estruturas da cultura, que resulta do fato de que os signos desse sistema são

introjetados pelos indivíduos no processo de socialização, como diz Rodrigues.

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Capítulo III 

 As Estruturas daCondição Subjetiva

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Para a psicanálise, o sujeito se define como uma estrutura marcada peladescontinuidade entre consciência e inconsciente. Tal descontinuidade implica que a

dimensão do inconsciente, enquanto tal, escapa à consciência e aos processos

cognitivo-reflexivos que lhe são próprios. Nesse sentido, o sujeito é afetado pelos

processos inconscientes que o habitam e sobre os quais não pode exercer um controle

consciente.

O ponto de vista que pretendo tematizar, neste trabalho, diz respeito justamente a

esse aspecto inconsciente em que o racismo se inscreve, tanto para os brancos quanto

para os negros. E é esse fenômeno que faz com que os conteúdos inconscientes ligados

ao racismo persistam, independentemente da realidade social e política. Ou seja,

mesmo que, no campo social, político e jurídico o racismo possa estar excluído, tal

exclusão opera no plano da consciência dos indivíduos que, enquanto tal, não pode, por

si só, determinar o campo do inconsciente.

A fim de explorar essas questões, torna-se necessário, em primeiro lugar,

explicitar o conceito psicanalítico de sujeito, e os processos que estão em jogo na sua

constituição, de modo a explicitar porque sujeito, desse ponto de vista, é um conceitodiferente de indivíduo ou de ego, noções que predominam nas abordagens das ciências

sociais. É o que se desenvolverá neste capítulo.

Em segundo lugar, trata-se de investigar de que modo o processo de constituição

da dimensão psíquica, no caso do negro, envolve certas configurações de sentido que, a

meu ver, vão determinar formas particulares que caracterizam, para o negro, a condição

subjetiva. Essas questões se desdobrarão no capítulo seguinte.

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3.1 A Concepção Lacaniana de Sujeito: a metáfora do

Nome-do-Pai; a falta; a castração

A concepção lacaniana de sujeito atribui à linguagem um lugar central, a ponto

de pensar o inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem.

Esse vínculo entre linguagem e inconsciente decorre do fato de que é a linguagem

que determina o sujeito enquanto tal, isto é, enquanto determinado por uma

exterioridade que o ultrapassa.

Na origem da constituição do sujeito está o processo que Lacan denomina

metáfora do Nome-do-Pai. Entender a metáfora paterna é antes de mais nada pensar o

objeto fálico como uma função que seria idêntica no homem e na mulher, uma função

mediatizada pelo pai intervindo na relação da criança com a mãe e da mãe com a

criança. O falo, portanto, a partir da concepção lacaniana, é um objeto de natureza

significante, não é um pênis imaginariamente atribuído à mulher, caracterizando uma

mãe fálica, mas é um objeto que significa o fato de que o pai, na situação edipiana, é o

terceiro que institui uma lei, um poder.

Portanto, o falo, para Lacan, é um objeto imaginário que tem sua origem nafantasia das crianças em torno da diferença de sexos que, em princípio, está dada pela

diferença anatômica.

Tal diferença será elaborada psiquicamente pela criança através de uma

construção imaginária, onde a diferença se dá porque existe uma falta, enquanto

conseqüência de uma despossessão, de uma castração.

O falo, portanto, é primordial no processo da metáfora paterna, na medida em que

desempenha um papel estruturante na dialética edipiana, instituindo-se como

significante essencial do desejo na triangulação edipiana. Isto é, o processo do

complexo de Édipo, se dará, respectivamente a partir do lugar do falo no desejo da

mãe, da criança e do pai, dialeticamente sob a forma do ser e do ter.

O falo, portanto, é um elemento significante sempre referido a uma função

simbólica. A primazia do falo na organização genital infantil fez com que Freud, no

texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, de 1923, associasse essa prevalência

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do falo com a problemática da castração. A natureza da organização genital infantil é o

que a diferencia da organização genital definitiva do adulto, pois, se tanto para o

menino quanto para a menina o órgão genital masculino desempenha um papel

marcante, não é, aí, do genital por excelência que se trata, mas do falo. O fato de um

único órgão genital ser tão marcante na evolução sexual infantil explica o carátersimbólico que se situa fora da realidade anatômica, apontando para a falta como

possível de ser subjetivamente representada por esse órgão. Freud deixa claro, então,

que a castração é uma conseqüência de ordem fálica e não anatômica, isto é, uma vez

registrada pela criança a falta de pênis, ela imagina a ausência do pênis como uma

castração e, a partir daí, a criança se depara com a castração relativamente a ela

própria.

Portanto, a natureza do objeto fálico expõe, de um lado a noção de falta (a

ausência de pênis), levando a uma hiper-valorização do objeto fálico que extrapola a

realidade anatômica. Nesse sentido, a descoberta da criança em torno da diferença dos

sexos dá-se a partir da noção de falta, o genital feminino é diferente do masculino

porque lhe falta algo. Por outro lado, o resultado da observação da experiência da

criança que olha outra é elaborado subjetivamente como uma concepção de que algo

que falta supõe um lugar dessa falta.

A criança persiste nesta idéia de que falta algo e, a partir daí, os sexos se

tornaram diferentes para ela. Esta construção imaginária, que coloca uma falta no lugar

do real da diferença, coloca a existência de um objeto imaginário, o falo. Tal objeto é o

que a criança supõe poder existir para todos, naturalmente; a falta, portanto, é que

coloca a criança diante da possibilidade da castração a ela própria.

Todo esse processo é intra-subjetivo, é a relação do sujeito com uma formação

intrapsíquica que tem por base o imaginário do fantasma; daí teremos o processo da

metáfora paterna, isto é, o reinado do falo enquanto objeto imaginário, que será uma

peça importante, fundamental e estruturante na dialética edipiana; o próprio processoedipiano estabelece uma situação simbólica inaugural, que culmina com a metáfora do

Nome-do-Pai. O processo Edipiano, portanto, se dará em torno da do lugar do falo no

desejo da mãe, da criança e do pai, no decorrer de uma dialética e girará em torno do

“ser” e do “ter”. A metáfora paterna, na sua estrutura, está ligada diretamente à

situação edipiana, processo estruturante para o sujeito.

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superego. Daí a postulação lacaniana do recalque originário, que sustentaria a metáfora

paterna no nascimento do inconsciente, o que coloca o inconsciente, ele próprio, como

produto de uma certa ordem significante.

Segundo Dor, essa concepção de organização metapsicológica sobre a origem do

inconsciente estruturado como linguagem tem sua origem nas formulações de Freud;

nos Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud dizia que, “na histeria, o sujeito

consciente está separado de uma parte de suas representações” 62.

Isto deixa claro que Freud pensava o inconsciente totalmente independente da

consciência; por interferência do recalque, esta divisão de ordem psíquica pode ser

pensada já nesse momento como a divisão do sujeito. Em Freud, a noção de divisão

psíquica, ou  Ichspaltung, foi traduzido para o francês como “clivagem du moi”

(clivagem do eu). Essa idéia sustenta a clivagem como interna ao “eu” propriamentedito, ainda que, nesse momento houvesse em Freud também a idéia de uma divisão

entre o “eu” e o “isso” (inconsciente); mas não há dúvidas de que uma parte dos

conteúdos psíquicos do sujeito foge ao controle pela ação do recalque.

Para Lacan, essa divisão ou Spaltung é o que inaugura o sujeito e define a

subjetividade. Através da Spaltung, o sujeito se estrutura de um certo modo psíquico,

que definirá sua maneira de ser na vida.

A Spaltung, para Lacan, não é simplesmente uma divisão intra-sistêmica ouintersistêmica. Para Lacan, a Spaltung institui o aparelho psíquico “num sistema

 plurissistêmico”. A partir desse raciocínio de Lacan é possível colocá-la, diz Dor,

como a “divisão inaugural do sujeito”63 , nascida da subordinação do sujeito a uma

terceira ordem, a ordem simbólica, a ordem que intersecciona a relação do sujeito com

o Real, ligando, para o sujeito, o Imaginário e o Real.

Essa operação acontece no advento do processo da metáfora paterna,

representado por um símbolo de linguagem, o Nome-do-Pai, que nomeia

metaforicamente o objeto primordial do desejo que se tornou inconsciente, o

significante fálico (significante do desejo da mãe). Como resultante do processo da

metáfora paterna, a criança tem acesso à linguagem sem saber o que diz no que fala,

isto é, ao nomear o objeto de seu desejo, lhe dá sentido ou significa o Nome-do-Pai.

61  Dor, J. (1985:100).62  Dor, J. (1985:101).63  Dor, J. (1985:102).

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A linguagem é vista, por Lacan, como uma atividade subjetiva onde se diz algo

muito diferente do que se acredita estar dizendo. Esta diferença é a expressão do

inconsciente no discurso do sujeito. O inconsciente escapa ao controle do sujeito que

fala, pois está separado do sujeito. Desta divisão subjetiva colocada pela ordem dos

significantes resulta que a linguagem regula o inconsciente, mantendo-o num lugar deonde ele sobrevem, independentemente da vontade do sujeito. Lacan enfatiza: “A

linguagem é condição do inconsciente (...) O inconsciente é a implicação lógica da

linguagem: com efeito, não há inconsciente sem linguagem.”64. 

A partir dessa colocação, Lacan deixa claro que só existe sujeito em ser falante,

isto é, que a noção de sujeito se sustenta a partir do acesso à ordem significante que

origina o sujeito estruturando-o a partir de um processo de divisão que faz sobrevir o

inconsciente. Nesta estrutura de divisão do sujeito, o recalque originário é peça

fundamental no aparecimento do inconsciente.

O recalque originário age propositadamente sobre o significante do desejo da mãe

(significante fálico, que se faz representar por vários significantes). Esses significantes

primordiais, como diz Joël Dor65, se prestarão a substituições metafóricas, que serão

seus núcleos inconscientes.

3.3 O Mecanismo do Recalque 

O recalque originário de significantes primordiais é um processo descrito por

Freud em 1915, como um mecanismo que se subdivide em três tempos: o recalque

originário; o recalque propriamente dito ou recalque posterior e o retorno do recalque

nas formações do inconsciente.

O recalque propriamente dito seria uma conseqüência do recalque originário, isto

é, o recalque que incide sobre significantes primordiais relacionados ao desejo da mãe.Sendo o núcleo inconsciente originário de forte atração, Freud diz que o recalque

originário é um processo de contra-investimento, uma vez que “representa a defesa

64  J. Lacan. Préface  in Jacques Lacan, Anika Riffet — Lamaire, 1ª ed. Bruxelas, Dessar, 1970, p. 18;citado em Dor, J. (1985:103).

65  Dor, J. (1985:103).

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 permanente de um recalque originário, mas também a permanência deste último”66 O

contra-investimento é o único mecanismo do recalque originário. O recalcado

originário exerce uma grande atração em outros significantes, acrescentando-se ainda

as forças de repulsão oriundas das instâncias superiores do eu e do super eu.

Nesse sentido, o recalque secundário é aquele cuja função é manter o processo de

divisão do sujeito instaurado pela metáfora paterna; é ele também que institui o

inconsciente como um lugar de significantes organizados a partir do discurso, isto é,

uma organização semelhante à de uma linguagem e que escapa ao controle do sujeito.

Daí Dor67  enfatizar a afirmação de Lacan: “O inconsciente é o discurso do Outro

(discurso do outro do sujeito, que lhe escapa em razão da Spaltung)”.

3.4 A Alienação do Sujeito na Linguagem 

Uma outra propriedade fundamental da subjetividade se inicia a partir da divisão

do sujeito como resultado da ordem significante, “a alienação do sujeito na e pela

linguagem”68, na seqüência do tipo de relação que a linguagem estabelece com a

ordem simbólica. É nesta relação que o sujeito se dá conta da sua não existência

enquanto tal, isto é, de que sua existência só se dá na cadeia significante.

É próprio da linguagem trazer um real através de um substituto simbólico, o queproduz uma cisão entre o real vivido e o que vem significá-lo. Isto é, o substituto

simbólico que significa o real, mas que não é o real propriamente dito, mas somente

aquilo pelo qual o real é representado.

Como diz Dor, o aforismo de Lacan “É preciso que a coisa se perca para ser

representada” mostra que a linguagem tem uma propriedade singular, que se constitui

em representar um real, na ausência desse real enquanto tal, ou, como diz Lacan “pela

 palavra que já é uma presença feita de ausência, a própria ausência vem a se

nomear”69. Nestas circunstâncias, a relação do sujeito com seu próprio discurso se

apoia nesta cisão; isto é, o sujeito não aparece no seu próprio discurso a não ser pelo

66  S. Freud. Die Verdrangung (1915), G. W., X, 248-261, S.E., XIV, 141-158, trad. por J. Laplanche eJ.B.Pontalis: “Le Refoulement”  in  Metapsychologie, Paris, Gallimard, 1968, pp. 45-63; citado emDor, J. (1985:104).

67  Dor, J. (1985:104).68  Dor, J. (1985:106).

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efeito dessa cisão, o sujeito desaparece enquanto tal, e se encontrará representado

exclusivamente como um símbolo.

J.-A.Miller usa o termo sutura como o que “nomeia a relação do sujeito com a

cadeia de seu discurso”, precisando que “ele figura ali como elemento que falta, na

qualidade de um lugar-tenente. Pois, faltando ali, ele não está pura e simplesmente

ausente.” 70.

Há vários exemplos de como alguns símbolos cumprem bem essa função, nos

lembra Joël Dor: o “nome”, o “Eu”, o “quanto a mim”, o “tu”, o “ele”, o “a gente”.

Isto é, no sentido próprio da palavra, pro-nomes que têm a função da representação

simbólica do sujeito no seu discurso.

Portanto, a relação do sujeito com o seu próprio discurso se apóia no fato de que

o sujeito só se presentifica no seu discurso às custas de estar ausente em seu ser

propriamente dito. Essa relação mostra a estrutura de divisão do sujeito e ressalta que o

sujeito, ao ter acesso à linguagem, se perde nela mesma, na linguagem que o criou

(enquanto sujeito).

O sujeito não é a causa da linguagem, mas é causado por ela, isto é, o sujeito, que

tem sua origem na linguagem, se manifesta nela própria como um efeito; efeito de

linguagem que o materializa enquanto tal, ao mesmo tempo que o encobre. Lacan

nomeia esse encobrir como o “fading do sujeito”, que diz respeito ao fato de que osujeito só se apreende através da sua linguagem enquanto representação, como um

disfarce de si mesmo. A alienação do sujeito no seu próprio discurso manifesta a

refenda do sujeito, isto é, o movimento que continuamente reproduz a divisão do

sujeito.

A linguagem é um conjunto de signos que compõem um sistema, isto é, os signos

se opõem de maneira que um significante, numa cadeia significante, só tem sentido em

relação a todos os outros. Joël Dor esclarece que esta propriedade, que Saussure batiza

com a expressão valor do signo, permite entender melhor o conceito lacaniano de

ponto-de-estofo, que funciona como uma substituição desta propriedade da linguagem

que delibera que um significante, numa dada cadeia falada, só tenha sentido a

posteriori, onde o último significante, posto retroativamente, é quem revela o sentido.

69  Lacan, J. “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, Écrits, p.276; citado emDor, J. (1985:106).

70  Citado em Dor, J. (1985:107).

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Se é a ordem significante que faz emergir o sujeito, este não poderia se fazer

presente senão pela linguagem, a partir do advento da metáfora paterna:

O que resulta então é uma conseqüência princeps, que solda a relaçãodo sujeito na ordem de seu discurso: um significante é o que representa

um sujeito para um outro significante. 71

 

Isto é uma conseqüência inevitável da estrutura própria do sistema da língua. Se,

por um lado, o sujeito só aparece no discurso através de um representante, por outro, se

é um significante que o representa como sujeito no discurso, isto só é possível em

relação a outro significante. Daí a idéia de que o sujeito é apreendido como um efeito

do significante, exclusivamente como um efeito.

A esse respeito, comenta Nasio72, o significante não é endereçado a ninguém, o

significante salta de sujeito para sujeito. Isto significa que não pode haver significantesem sujeito, mas o sujeito não causa o significante, ele é antes um efeito de

significante.

A noção de sujeito barrado, elaborada por Lacan, se funda nessa noção de que o

significante representa o sujeito. O sujeito não emerge a não ser “como sujeito barrado

 pela ordem significante, isto é, barrado de si mesmo.”  73. Esse movimento é assim

explicado por Lacan:

O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por este efeito,ele não é causa de si mesmo, ele traz dentro de si o verme da causa que orefende. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhumsujeito no real. Mas o sujeito é o que este significante representa, e elenão poderia nada representar a não ser para outro significante, a que,desde então, se reduz o sujeito que escuta.

 Não se fala, portanto, ao sujeito. Isso fala dele e é aí que ele seapreende, e isto tanto mais forçosamente, portanto antes do simples fatode que isso se enderece a ele, de que ele desapareça como sujeito sob osignificante que se torna, ele não é absolutamente nada. Mas esse nadasustenta-se em seu advento agora produzido pelo chamado feito noOutro ao segundo significante.74 

71  Dor, J. (1985:108).72  Nasio, J.-D. (1992:70).73  Lacan, J. “Position de l’inconscient”, in Écrits, p. 840; citado em Dor, J. (1985:108).74  Lacan, J. “Position de l’inconscient”, in Écrits, p. 840; citado em Dor, J. (1985:108).

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O sentido do signo está subordinado ao ato de simbolização, isto é, à construção

do signo pela associação de um significante a um significado, que só emerge quando

um sujeito participa de sua elaboração: o signo é o que representa a intervenção de um

sujeito. Mas o sentido e o signo passam a ser secundários, visto que o significante tem

a prioridade em detrimento do significado. O significado é sempre secundário narelação com o significante, visto que, no inconsciente, são as substituições significantes

que são determinantes.

A relação do sujeito com seu discurso é, portanto, uma relação em que o sujeito

ignora a significação dos significantes que produz. Uma vez que os significados estão

remetidos ao recalque originário, que por sua vez, a partir da metáfora paterna,

adquirem uma nova representação e assim, sucessivamente, novos significantes que

estarão associados a eles (significados), a refenda do sujeito é quem define, na

existência do sujeito, isto é, do “fala-ser”, como diz Lacan, a total ignorância do

sujeito quanto à cadeia dos significantes.

Dessa divisão do sujeito de que nos fala Lacan resulta, necessariamente, que uma

parte de nossa subjetividade, enquanto sujeito do inconsciente, ou seja, sujeito do

desejo, nos escapa. 

O sujeito não fala por si mesmo, porque ele é representado em seu próprio

discurso. A fala é uma substituição do que estava originalmente posto, que só poderia

vir à tona como um significante substituído, que representa o desejo do sujeito. O

sujeito, portanto, frente a seu desejo, está apartado de si mesmo pela linguagem;

independentemente da vontade do sujeito, o isso se apresenta em seu discurso, sem que

ele possa ter o controle. “O sujeito, na verdade de seu desejo, pode, portanto, ser

colocado como sujeito do inconsciente.” 75 

O sujeito do inconsciente, portanto, não o é senão representado na linguagem,

única forma de expressão do desejo, isto é, do registro inconsciente. A linguagem,

aparece, assim, como o meio pelo qual o sujeito emerge e aquilo que o institui comodiretamente relacionado com a estrutura do discurso.

A estrutura do discurso se subdivide entre o nível do enunciado e o nível da

enunciação. A enunciação é o ato singular, individual de mobilização da língua, o

enunciado é o resultado desse ato de enunciação. Por ser um ato de linguagem, a

75  Dor, J. (1985:114).

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mãe constituem um só ser, e passa a se perceber como um outro, um “Eu”, em relação

à mãe, ao outro, aos outros. A subjetividade vai, assim, sendo delineada através da

aquisição da identidade originária.

O sujeito, portanto, se constitui enquanto estrutura de divisão tanto no campo do

simbólico quanto no campo do imaginário. Tal processo, que determina a construção

da subjetividade, envolve, simultaneamente, a divisão do sujeito na Spaltung, efeito da

ordem simbólica, e a construção de uma unidade imaginária no eu, fenômeno da ordem

do imaginário.

Ambos os processos são inseparáveis da existência do Outro, da alteridade.

Assim, no estádio do espelho, o eu só se constrói enquanto representação imaginária

pelo outro e em relação ao outro. A identificação da criança com sua imagem especular

só é possível quando a criança tem um certo reconhecimento do Outro (a mãe). Isso sóé possível quando a criança percebe que o outro a identifica como tal, facilitando,

assim, seu próprio reconhecimento: é o olhar do outro que confirma a realidade do seu

corpo na imagem do espelho. A subjetividade que vai se delineando na fase do estádio

do espelho representa uma construção imaginária inteiramente submetida à medida do

outro.

No estádio do espelho, quando da aquisição da identidade através de uma

imagem própria, que vem substituir um imaginário anterior em que a imagem de si (da

criança) era inseparável da imagem da mãe, é a partir da imagem de si mesmo como

outro que o sujeito tem acesso à sua identidade, estabelecendo-se, assim, um

movimento subjetivo peculiar.

É como um outro especular (a imagem do sujeito no espelho), fora de si mesmo,

que o sujeito se dá conta do Outro, um outro igual a ele.

O que está assegurado para a criança na fase do “estádio do espelho” é a

conquista da imagem de seu próprio corpo, fundamental na identificação primordial.

Esta identificação primordial, feita pela criança com a imagem do seu próprio corpo,

será responsável pela estruturação do “Eu”, pondo fim ao que o Lacan chama de

“fantasma do corpo esfacelado”.

Na fase anterior ao “estádio do espelho”, a criança não percebe seu corpo como

uma unidade totalizada, mas como algo separado, despedaçado; isto é, há uma

experiência fantasmática do corpo esfacelado. No “estádio do espelho”, a criança

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Isto é, o captar imaginário do eu não acontece pela imagem, mas por algo não

perceptível, é com esse vazio dentro da imagem que o eu se identifica.

Conclui então Nasio:

 A identificação imaginária que dá origem ao eu é mais do que umaseqüência de imagens sucessivas, é fundamentalmente a fusão do eu coma parte furada da imagem do semelhante. 79 

A percepção do Eu é atraída pela parte imaginária do semelhante, ou seja, por

tudo o que, da imagem, é visto como sexual, isto é, o eu só pode ser formado nas

imagens que lhe permitem reconhecer-se e afirmar sua natureza imaginária como ser

sexual.

É nesta relação do Eu, ou, melhor dizendo, do sujeito do inconsciente e do Objeto

(outro), onde um se assemelha ao outro, que se dá o processo de identificaçãofantasística.

3.6 A Fantasia como Constitutiva do Corpo

O processo de identificação fantasística compreende a relação do “objeto a”

(como chamou Lacan o outro) com o sujeito, tendo como motor desse processo a

fantasia.

A fantasia é um produto psíquico, uma formação psíquica, que tem como função

impedir o movimento arrebatador de uma pulsão e evitar que ela alcance o limite de um

possível gozo intolerável. Ela tem, portanto, a função de barrar a entrada da pulsão a

um gozo absoluto e permitir a satisfação parcial da pulsão, evitando, assim, a

destruição do sujeito. Portanto, a fantasia funciona como uma defesa de uma possível

descarga total das pulsões. Mas o “objeto a” não é tão somente uma sobra de energia

pulsional à deriva e na origem das formações psíquicas; é uma tensão de naturezasexual, na medida em que está associado a uma fonte corporal erógena, sempre

presente numa fantasia. O “objeto a”, representará diferentes figuras e terá diversas

nominações, de acordo com a zona erógena do corpo que é valorizada na fantasia.

79  Nasio, J.D. (1980:117).

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O lugar da identificação, na fantasia, resume-se na identificação do sujeito com o

objeto, isto é, na fantasia, o sujeito é o objeto. Ao afirmar isto, Lacan quer dizer que o

agente da fantasia não é o indivíduo, a fantasia não é criação de alguém, ela é resultado

simultâneo da ação do objeto, produzida pela perda do objeto ou corte do significante.

Nasio80  observa que a matriz formal de uma fantasia é composta de quatro

elementos: um sujeito, um objeto, um significante e imagens.

Esses elementos estão ordenados num roteiro preciso e, em geral, perverso, tendo

como mecanismo principal, que organiza a estrutura fantasística, a identificação do

sujeito transformado em objeto. “Na prática, devemos reconhecer que a queda do

objeto produz-se no mesmo movimento da identificação do sujeito com o objeto do

desejo”. 81 Isto é, na fantasia, somos o que perdemos.

A propósito do comentário do Nasio, de que a fantasia tem em geral um roteiro

preciso e perverso, Jacques Alain Miller nos dá alguns esclarecimentos:

 A vergonha do fantasma liga-se ao fato de que em um primeiro nível,geralmente, o fantasma se apresenta em relação de oposição aos valoresmorais do sujeito.

Isto é, o sujeito aí não se reconhece e, em geral, tem muito medo da realização do seu

fantasma:

O fantasma que é fundamentalmente este pequeno tesouro do sujeito é aomesmo tempo a matriz da submissão ao mundo, sendo os limites de todasignificação para ele. 82 

Isto significa que, para o sujeito, não há nenhuma possibilidade de significação

ao longo da vida que não seja atravessada pelo fantasma.

Ao se fazer o objeto que perdeu, o sujeito acaba por vivenciar na fantasia o

“objeto a” como objeto do desejo que vai assumir as mais diferentes formas corporais.

O “objeto a”, na verdade, tem diferentes abordagens no contexto analítico: como

um furo na estrutura, dentro dos conceitos o Um e o Todo; o objeto a também pode ser

visto a partir do ponto de vista energético, como o “mais-gozar”, a partir, é claro, da

80  Nasio, J.D. (1992:128).81  Dor, J. (1985:108).82  Miller, J.A. (1983:.22).

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noção do inconsciente estruturado como uma linguagem, onde o gozo passa a ser uma

categoria.

Mas, certamente, de todas as possíveis significações do objeto a, a que mais me

interessa é a que o considera do ponto de vista do objeto do desejo, núcleo da fantasia,

o que o faz aparecer sob várias formas corporais (mutilação, seio, dor etc.).

Segundo Lacan, o corpo é o lugar do gozo; o lugar onde gozamos, onde percorre

uma multiplicidade fluída de gozos. Entende-se aí gozo não como prazer, mas como o

estado que está para além do prazer, uma tensão excessiva que leva ao esgotamento: se

o prazer é a possibilidade de não perder, o gozo, ao contrário, se coloca ao lado da

perda. O sujeito não se apercebe do gozo, há um sofrimento do corpo, não importa de

que parte; não é possível reconhecer nem medir o grau de sofrimento a que é submetido

o corpo; podemos reconhecer o prazer, mas não a medida do que é perdido: o sujeitoestá excluído do gozo.

Para a psicanálise, portanto, não existe um corpo total: o corpo é sempre uma

parte, ou seja, o gozo localizado acumulado nessa parte, pois o corpo não é uma

unidade física, mas uma unidade significante, que se manifesta como corpo falante e

corpo sexual.

Corpo sexual: sexual porque o corpo está associado a gozo e gozo é sexual, gozo

gerado pelos orifícios erógenos do corpo e, portanto, tudo que se liga ao gozo sesexualiza, seja uma ação, uma palavra, uma fantasia ou um dado órgão do corpo ou

parte do corpo que tenha se convertido em elemento erógeno.

Corpo falante: falante porque ele é apreendido como um conjunto de

significantes “que falam entre si” 83 . O corpo falante não é o corpo gestual que me fala,

mas o que está investido do poder de determinar, sem o conhecimento de quem o

contempla, um ato (por exemplo, o ato de repulsa do racista, que não sabe explicar

porque é racista).

Além de falante ou sexual, o corpo é também uma imagem, como observa

Nasio84. Não a imagem refletida no espelho, mas a imagem que é dada pelo outro, meu

semelhante. A imagem do corpo, propriamente dito, é de fora do corpo que ela é

83  Nasio, J.D. (1992:149).84  Nasio, J.D. (1992:150).

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percebida. Essa imagem vem de fora, dando forma ao corpo sexual e ao gozo do

sujeito.

Portanto, o corpo é visualizado aqui de três pontos de vista que se

complementam. Do ponto de vista real, o corpo é sinônimo de gozo; do ponto de vista

simbólico, o corpo é significante “conjunto de elementos diferenciados entre si e que

determinam um ato no outro”  e como corpo imaginário, “identificado como uma

imagem externa e prenhe, que desperta o sentido num sujeito”. 85 

3.7 A Noção de Objeto: a falta e o gozo

Em psicanálise, a noção de objeto é pensada em correlação à noção de pulsão; o

objeto seria o alvo em que a pulsão cumpriria seu objetivo, a satisfação.

A noção de objeto aparece historicamente na psicanálise no artigo de Freud “Luto

e Melancolia”, no qual Freud escreve que o sujeito faz o luto do “objeto perdido”, ao

invés de dizer da pessoa perdida. Isto se explica porque Freud entendia que a palavra

objeto daria conta de designar os vários significados e sentidos que a pessoa amada

representa para o sujeito.

No entanto, é a partir de uma construção de Lacan, fundada nessa noção de Freud

sobre objeto, que seria possível melhor entender a noção de falta do objeto que aqui

pretendo discutir.Lacan propõe pensarmos a noção de objeto através do que ele denominou objeto

a, a letra a , um símbolo que representa a primeira letra da palavra “outro” (autre, em

francês).

Para Lacan, portanto, existe o outro com a minúsculo e o Outro com a maiúsculo,

que designa o grande Outro, imagens antropomórficas do poder; o outro com a

minúsculo diz respeito ao nosso objeto, o alter-ego (outro-eu).

O objeto a, portanto, seria o outro, não importa sob que representação: umapessoa, um corpo, uma imagem, uma representação simbólica de qualquer ordem.

Em “Psicologia das massas e análise do Ego”86, Freud apontou, entre outros tipos

de identificação, aquele em que se dá a identificação do sujeito com um traço do

objeto, ou seja, com um traço dos seres que amamos ao longo da vida. Tal concepção

85  Nasio, J.D. (1992:151).

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supõe que esse traço corresponde a uma marca que se repete ao longo da história do

sujeito com os sucessivos parceiros, e que nada mais é do que a somatória de traços

que representa o próprio sujeito. Daí a idéia de Lacan de que o sujeito é o traço comum

dos objetos amados e perdidos ao longo da vida, o que ele chamou de traço Unário.

É o que explica Nasio:

O outro amado é a imagem que amo de mim mesmo, o outro amado é umcorpo que prolonga o meu; o outro amado é um traço repetitivo com oqual me identifico. 87 

A partir dessa concepção, Nasio propõe três formas diferentes pelas quais o outro

pode ser definido: a primeira, imaginária: o outro como imagem; a segunda,

fantasística: o outro como corpo; a terceira, simbólica: o outro como traço que

condensa uma história. Essas três possíveis formas de definição do outro não esgotam a

noção do outro, pois nunca é possível identificar quem é o outro escolhido pelo sujeito.

Isto é, não é possível precisar esse lugar não identificável em que aparece o objeto a.

Das três propostas feitas por Nasio para pensar o outro é a fantasística que mais

se aproxima do conceito lacaniano de objeto a: o outro escolhido como parte

fantasística (o outro como corpo) e gozosa de meu corpo, uma extensão de mim de que

não tenho controle, que me escapa.

A partir da teoria lacaniana, Nasio propõe pensar o estatuto formal do objeto a 

para se entender melhor o que seria a idéia de outro como parte gozosa de meu corpo.

Tudo o que chamamos passado, isto é, acontecimentos na história de um sujeito,

ou, numa terminologia lacaniana, significantes, Nasio propõe conceituar a partir do par

S1 e S2: o objeto a se definiria em função dessa rede.

O estatuto formal do objeto a dá conta da relação do objeto a com o conjunto dos

significantes e com o significante do Um. O objeto a corresponde, segundo Nasio, a

algo heterogêneo à rede dos significantes. Isto é, o sistema produz algo que lhe éheterogêneo, estranho e excedente, e essa produção é uma operação semelhante, ainda

que de outra ordem, à da manifestação do significante S1 (o dito).

86  Citado em Nasio, J.D. (1992:94).87  Nasio, J.D. (1992:94).

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No que diz respeito ao objeto, Nasio não nos fala de um elemento externo, mas

de um “excedente” do sistema; portanto, o objeto a é o heterogêneo excedente criado

pelo próprio sistema formal dos significantes.

Como produto excedente, o objeto a é diferente do elemento significante e, nesse

sentido, margeia o conjunto de significantes.

O sistema, portanto, se compõe de dois elementos: um elemento externo (S1) (o

dito) e um produto eliminado (a). O significante externo S1 é absorvido no conjunto dos

significantes, sua natureza é simbólica; ao contrário, o objeto a é de natureza real, é

heterogêneo ao conjunto significante. A ordem simbólica implica que todos os

elementos são homogêneos, todos estão sob a ordem das leis que regem a lógica do

significante; o objeto a contraria essa lógica.

O estatuto formal do objeto a nos dá uma idéia do seu funcionamento. No

entanto, Nasio sugere ainda que seria possível identificar o objeto a com o furo na

estrutura do inconsciente, isto é, com o vazio deixado pelo significante da cadeia

transformado em margem. A idéia de furo, aqui, está subentendida não como um

orifício concreto, mas como um “vazio aspirante”.

É possível imaginar o objeto a como o furo da estrutura e entendermos que ele é

uma força que anima e atrai os significantes e dá firmeza à cadeia. A partir dessa idéia

de objeto como um furo num processo dinâmico, estamos diante da imagem do gozo.A afirmação de Nasio de que o objeto a é o furo na estrutura do inconsciente

implica em três condições: primeiro, o furo é o motor que anima o sistema (causa);

segundo, a força que anima o sistema chama-se gozo (mais-gozar ); terceiro, o gozo,

além de ser a força motriz no interior do furo, é o que mantém o furo.

O furo é então concebido não como, numa visão formal, o buraco na estrutura do

inconsciente, mas como margens (bordas) movidas pelo gozo que produz e cria o furo;

não há furo sem gozo que coloque em movimento as margens. Na vida erógena e,

portanto, na vida psíquica inconsciente, só existem furos criados pela tensão do

movimento; mas tal movimento das margens dos orifícios é o movimento do gozo na

presença de outro corpo, ele mesmo desejante. A partir dessa concepção, que parte da

noção de objeto a como furo, é possível entender que o objeto a é o fluxo do gozo que

circunda a margem dos orifícios do corpo e, portanto, como motor do inconsciente.

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Mas, do ponto de vista da teoria lacaniana, o objeto a pode ser visto também

enquanto partes do corpo, isto é, não enquanto pedaços do corpo, mas enquanto

fantasias, imagens, “simulacros” que implicam o real do gozo.

Talvez fosse o caso de nos determos ainda um pouco mais na idéia de gozo, antes

de prosseguirmos na concepção que Nasio chamou de estatuto corporal do objeto a.

Leclaire88 nos propõe entender o gozo em correlação com a categoria freudiana

de prazer. Se o prazer é identificável no nível das zonas erógenas, implicando, pelo

princípio do prazer, numa redução de tensão, o gozo é uma categoria estritamente

lacaniana e, “uma forma de experiência completamente insuperável, um mais além de

todo limite”89.

Onde Freud se interroga, no “Além do princípio do prazer” sobre o além do

prazer, Leclaire coloca a possibilidade do gozo.

No “Além do princípio do prazer”, Freud trabalha a noção de pulsão de morte,

para a qual usou o termo de princípio de Nirvana, um estado que aparece em

contraposição com o projeto de vida, um ignorar as diferenças, as tensões, um prazer

absoluto, a pulsão de morte como ato.

Leclaire, por sua vez, coloca o gozo como o mais além de todo limite, e fala da

anulação do limite, isto é, do limite como algo que separa, de um lado, a organização

biológica, de outro, a organização ou não-organização erógena: a perda desse limiteelimina toda erogeneidade possível, o biológico e o erógeno não se diferenciam.

O prazer é, portanto, o exercício da erogeneidade sexual a partir da noção da

diferença das zonas erógenas do corpo. Ao passo que o gozo se evidencia quando esse

limite se desfaz e passa a ser confundido com o objeto.

O funcionamento do prazer é uma espécie de defesa contra o gozo; quando o

gozo (mais-gozar) emerge, não há mais erogeneidade: nesse momento, rompe-se o

limite que viabiliza a organização erógena, isto é, o aparecimento do desejo, do prazer.

Porém, em situações como essa, o limite se impõe entre a necessidade de

conservação e o prazer, ao mesmo tempo que possibilita situar o absoluto do gozo, ou

seja, serve de proteção contra ele. Esse limite acontece entre o erógeno e o biológico,

88  Leclaire, S. (1979).89  Leclaire, S. (1979:138).

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entre o prazer e a conservação, isto é, ele pode ser contra algo que ainda se situa na

erogeneidade, como o gozo, ou do lado do biológico, como a morte.

Quando há quebra ou impossibilidade de fazer com que esse limite intervenha,

teríamos a realização do gozo. Mas sua realização eliminaria qualquer possibilidade de

prazer de vida erógena, assim como qualquer possibilidade de construção psíquica

normal.

Retomemos, portanto, a noção de estatuto do objeto a, partindo da ótica

lacaniana, que supera a ótica do gozo, para outras formas de visualizar o objeto a, a

partir das fantasias, imagens que têm como conseqüência o gozo.

É possível pensarmos, a partir da idéia de fantasia, como partes separadas do

corpo, sob determinadas condições, podem representar “a”.  Para que essas partes se

incluam na categoria de “a”, é necessário que respondam a três condições: uma

condição imaginária e duas condições simbólicas.

A título de uma melhor possibilidade de compreensão dessas condições, Nasio

propõe pensarmos o objeto a sob duas formas particulares, o seio e as fezes, que estão

determinadas por uma remarcável condição imaginária.

São formas que apresentam uma configuração que excede os limites do corpo, ou

seja, pela saliência, pela possibilidade de serem pegas, separadas ou até retiradas do

corpo, enfim, são formas que convidam ao manuseio.

A primeira condição simbólica baseia-se na relação dessas formas do corpo: o

seio que, em particular, trará a primeira experiência de separação significativa para o

sujeito, o desmame, e as fezes, através da defecação, estão diretamente relacionados a

orifícios e partes do corpo, como a boa em relação ao seio e o ânus em relação às fezes.

Essa condição é simbólica justamente porque os componentes que formam esses

contornos de partes do corpo são significantes por onde circulam o fluxo do gozo e sua

permanência.

Outros objetos, no entanto, não são passíveis de serem representados; por

exemplo, a voz e o olhar, que não dependem de uma condição imaginária, estão

diretamente ligados a uma condição simbólica, por serem produzidos por bordas, com

formas particulares de manifestações.

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Nasio91 recorre a Freud a propósito de explicar esse processo de mão dupla, onde

a criança alucina o seio e ao alucinar, se identifica com ele; a criança é o seio que ela

alucina. A criança expressa a relação objetal pela identificação, ela é o objeto. 

90  Nasio, J.D. (1992:104).91  Nasio, J. D. (1992:113).

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Capítulo IV  

O Corpo Negro enquantoCategoria Imaginária e

Simbólica

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Para a psicanálise, o corpo, enquanto tal, é irrepresentável. Impossível de ser

capturado numa representação, o real do corpo permanece, fantasmaticamente, ligado

às experiências arcaicas de despedaçamento, anteriores à fase do espelho.

Se o corpo real corresponde ao lugar do gozo, na dimensão da falta que produz o

objeto a, como vimos nas seções anteriores, é enquanto corpo imaginário e corpo

simbólico que o corpo vai se inscrever na dimensão psíquica.

Corpo imaginário corresponde à imagem totalizadora que a criança conquista na

fase do espelho, e que lhe advém, como vimos, pelo reconhecimento do outro: é nessa

experiência fundadora que se produzem as estruturas de identificação. Se o corpo

imaginário constitui um todo, uma imagem, um continuum de ligações, o corpo

simbólico corresponde a uma forma significante, isto é, a algo que, como parte,

representa, numa relação simbólica, aquilo que, enquanto tal, escapa à representação.Na dimensão simbólica será, portanto, um pedaço, um aspecto do corpo, devidamente

simbolizado, isto é, investido de significação, que emerge como marca de uma

totalização impossível.

É desse ponto de vista que, nesse capítulo, procurarei explorar as dimensões

imaginária e simbólica do corpo negro e que, a meu ver, produzem certas vivências

psíquicas singulares que — é o que pretendo sugerir — constituem, para o negro,

aspectos particulares da sua condição subjetiva.

É dessa perspectiva que tentarei discutir a complexidade do processo do espelho

que, para o negro, produz um processo de identificação com a “brancura” enquanto

 justamente aquilo que, na sua imagem especular, lhe escapa. E é também considerando

a pele negra como significante, do ponto de vista do corpo simbólico, enquanto aquilo

que representa a condição de negro para negros e não-negros, que tentarei explorar os

sentidos que a tal significante se associam, nas redes simbólicas da formação social

assim constituída.

Explorando as dimensões imaginária e simbólica que a experiência de ser

portador de um corpo negro produz, pretendo chamar a atenção para aspectos da

vivência psíquica dos negros que, em geral, não são levadas em conta nas abordagens

sociológicas da condição de negro, mas que, a meu ver, são constitutivas dessa

condição.

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4.1 Imagem do Corpo e Esquema Corporal: o indivíduo e aespécie nas formas de representação do corpo

Françoise Dolto, psicanalista infantil, em seu livro  A imagem inconsciente do

corpo92, estabelece uma distinção entre os conceitos de imagem do corpo e de esquema

corporal, cujos sentidos não raro confundimos. O esquema corporal indica a condição

de representante da espécie do indivíduo, sendo, em geral, o mesmo para todos; já a

imagem do corpo não se define a partir desse inexorável pertencimento genérico à

espécie humana: ela é única a cada um, específica, está ligada ao sujeito, à sua história;

é inconsciente e sustentada no narcisismo.

A imagem do corpo é uma construção imaginária determinada pelo fato de que o

aparelho psíquico se estrutura nas instâncias psíquicas do id, do ego, do superego, tal

como propôs Freud. Para Dolto, o mediador das instâncias psíquicas (id, ego,superego), nas representações metafóricas expressas por um sujeito, é a imagem do

corpo. Nesse sentido, a imagem do corpo estará envolvida em todas as formações do

aparelho psíquico.

Dolto afirma que através das expressões apresentadas nos desenhos e

modelagem, as crianças falam de seus fantasmas. As produções infantis são

“verdadeiros fantasmas representados”, que tornam possível a percepção das

estruturas psíquicas. Tal percepção é possível porque as crianças humanizam suas

criações, isto é, as antropomorfizam e quando falam ao analista, é possível estabelecer

associações entre o que dizem de suas criações, bases de seus fantasmas, na relação

transferencial, e as características pictóricas dessas expressões.

Para as crianças e os psicóticos, que não conseguem falar objetivamente sobre

seus sonhos e fantasmas, como fazem os adultos nas associações livres, a imagem do

corpo é o mediador que lhes permite expressá-los e, para o analista, a forma pela qual

pode percebê-los.

No entanto, diz Dolto:

 A imagem do corpo não é a imagem que é desenhada ali, ourepresentada ali, ou representada na modelagem; ela está por serrevelada pelo diálogo analítico com a criança. 93

 

92  Dolto, F. (1984).93  Dolto, F. (1984:9).

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A imagem do corpo não se relaciona somente com o imaginário, é também da

ordem do simbólico, representando um signo da estrutura libidinal como o cerne de um

conflito, que deverá ter seu entrave desfeito através da palavra da criança. Existe aí

algo a ser dito, a ser “decodificado”, que não está em poder do analista, mas da

criança.

Quanto ao esquema corporal, diz Dolto, “é uma realidade de fato, sendo de certa

 forma nosso viver carnal no contato com o mundo físico”94. Desse modo, as

experiências por nós vivenciadas serão determinadas pelas condições físicas do

organismo, conforme este apresente um estado de integridade ou lesões, passageiras ou

permanentes, de caráter neurológico, muscular ou ósseo, ou sensações fisiológicas

dolorosas, viscerais ou circulatórias.

Problemas orgânicos precoces, mesmo que circunstanciais, resultam emperturbações do esquema corporal, mas por falta ou interrupção das relações do que

Dolto denominou de “imagem falante do corpo”95, podem resultar em modificações

passageiras ou permanentes da imagem do corpo. No entanto, não é incomum a

coexistência de um esquema corporal enfermo e uma imagem sã do corpo.

A simbolização de uma imagem do corpo não enfermo depende da aceitação,

pelos pais, do problema da criança para que, apesar do problema, esta possa ser

reforçada positivamente em suas possibilidades, garantindo a humanização da criança.

Quando, ao contrário, a mãe é incapaz de falar à criança de sua diferença,

enquanto a criança, no decorrer de seu desenvolvimento, vai se dando conta das

diferenças reais entre seu corpo e o corpo das outras crianças, haverá dificuldades para

que a criança passe pelas várias etapas do desenvolvimento.

Em geral, a criança fica impedida de superar a castração oral, constituída pelo

desmame e, conseqüentemente, não terá condições de superar as castrações posteriores,

tornando-se dependente da mãe numa fixação fóbica.

 A imagem do corpo é, a cada instante, para o ser humano, arepresentação imanente inconsciente em que se origina seu desejo.96 

94  Dolto, F. (1984:10).95  Para Dolto, a “imagem falante do corpo” constitui o conjunto das formas verbais em que a imagem

do corpo pode se representar e se expressar.96  Dolto, F. (1984:24).

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de base, a anal, soma-se às duas anteriores acrescentando-lhes os mecanismos de

retenção ou expulsão da parte inferior do tubo digestivo.

Quanto à imagem funcional, segundo componente da imagem do corpo, é a que

possibilita ao sujeito a realização do seu desejo. É através da imagem funcional que as

pulsões de vida, após serem subjetivadas no desejo, buscam alcançar prazer,

objetivando-se na relação com o outro e com o mundo.

Já a imagem erógena, terceiro componente da imagem do corpo, é “associada a

determinada imagem funcional do corpo”, onde se focaliza o prazer ou o desprazer

erótico na relação com o outro.

Esses três componentes da imagem do corpo se articulam de maneira dinâmica,

transformando-se, remanejando-se e metabolizando-se ao longo das vivências do

sujeito e dos limites com que ele se depara sob a forma de castrações que lhe são

impostas, de modo que a imagem de base possa garantir sua “coesão narcísica”. Mas,

para isso, diz Dolto, é necessário que a imagem funcional, permitindo uma ação

adequada, garanta a integridade do esquema corporal; e que a imagem erógena “abra

ao sujeito o caminho de um prazer partilhado, humanizante naquilo que tem como valor

simbólico” 100.

A imagem do corpo é a síntese em constante devir das imagens de base,

funcional e erógena, “ligadas, entre si, através das pulsões de vida”, num atualizarcontínuo para o sujeito ao nível do que Dolto chamou de imagem dinâmica.

A imagem dinâmica é o “desejo de ser” prosseguindo em um advir, a falta que

propulsiona para o desconhecido. Sem uma representação própria, a imagem dinâmica

é a “tensão de intenção”: “A imagem dinâmica expressa em cada um de nós o Sendo,

chamando o Advir: o sujeito no direito de desejar, eu gostaria de dizer ‘desejância’”.  

101 

100 Dolto, F. (1984:44).101  Dolto, F. (1984: 45).

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4.2 A ‘‘Inumanização’’ do Negro

Para entendermos a posição do negro no que se diz respeito às representações

associadas ao corpo, tal como a percebemos hoje, é necessário levarmos em conta a

herança do sistema sócio-econômico escravagista, que não só atribuía ao negro o lugar

de mão-de-obra escrava, com todas as implicações sociais de condições de vida

miseráveis, mas que também construiu teorias que, em última instância, tinham como

objetivo tomar o efeito pela causa, ou seja, atribuir as condições de vida que os negros

efetivamente experimentavam a limites e tendências “naturais”.

Louis Conty102, médico francês radicado no Brasil como professor da Escola

Politécnica, realizou, em 1878, estudos sobre a realidade brasileira dando especial

ênfase à população negra que, na ocasião, vivia o processo que culminou com aabolição. Tal processo, embora lhe tenha atribuído a cidadania, na realidade não a

libertava, pois não lhe garantia as condições necessárias para o exercício dessa

cidadania; e, além disso, não obstante a abolição, permaneceria por tempo

indeterminado o cativeiro psíquico de uma imagem que, com o crivo da ciência,

 justificaria uma “inumanidade”  do negro. Conty cita estudos já feitos anteriormente,

pesquisas científicas que, tendo estudado a conformação do cérebro africano,

pretendiam atestar sua incapacidade mental.

Para esse pensamento “científico”  marcado pelas idéias racistas da época, os

negros africanos, porque seriam oriundos de um continente de terras inférteis, não

conheciam formas de organização social, desconhecendo as idéias de família e

propriedade; portanto, roubavam e matavam para ganhar a vida. Pode-se perceber,

nesse tipo de reflexão, a influência do pensamento naturalista da época.

Os negros, segundo Conty, eram sujeitos afeitos à vagabundagem, recusavam-se

a trabalhar, tinham tendências ao alcoolismo e à marginalidade (resultado de sua

inferioridade racial). Os negros revelavam-se indiferentes em suas relações sociais: nãose importavam com os laços filiais e suas mulheres eram objetos servis; não formavam

famílias, eram por natureza desagregados; conviviam com a violência de modo

indiferente e apático, isto é, como não eram sensíveis aos castigos violentos a que eram

submetidos, não construíam uma consciência moral e ética, o que, para Conty,

102  Conty, L.  L’Esclavage au Brésil, Paris, Guillaumin et Cie, 1981; citado em Azevedo, C.M.M.(1987:76 a 82).

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mostrava que os negros eram potencialmente selvagens, atestando sua incapacidade de

serem cidadãos.

É interessante observar como, nesse pensamento, a diferença de cor, que seria o

traço mais visível, não é o tema central desse discurso que visa descrever as diferenças

da população negra: trata-se antes de por em jogo o conceito de raça que legitimaria,

através de um dado “natural”, alguns comportamentos (determinados pelas condições

de vida na escravidão) que, no entanto, eram explicados não em função das condições

objetivas mas de “disposições inatas”.

Ainda que Conty não faça uma descrição objetiva do “corpo negro”, em seu

discurso está subentendido um esboço deste corpo, que foi se conformando ao longo da

história. Neste esboço, Conty estabelece uma associação direta das características do

corpo negro com valores morais e éticos depreciativos. Esta visão, embora caricata,subsiste ainda, de alguma forma inscrita num dado universo de teorizações científicas,

que deram e ainda hoje dão suporte às representações que fazem parte das construções

imaginárias socialmente elaboradas sobre o negro.

Tomemos, como exemplo, um trecho retirado de uma entrevista com Darrel

Flynn103, que nos diz dessas construções imaginárias sobre o negro:

Folha - Você é incapaz de conviver com as diferenças?

Flynn - Sim, porque eles são uma raça violenta. Você já percebeu que osdentes dos negros são mais parecidos com os de orangotangosdo que com humanos?

O cérebro dos negros é 10 gramas menor do que o dos brancos.Eles têm um osso a mais em cada pé. Eles são diferentes. 

4.3 A Dissociação Narcísica na Imagem do Corpo para o

Negro

Dolto, quando fala da imagem de corpo e esquema corporal, traça diferenças

importantes. O esquema corporal define o indivíduo como representante da espécie,

condição genérica, que, em princípio, é igual para todos.

103  Ku Klux Klan tem horário em TV pública . F.S.P., 12.05.96; trecho de entrevista com Darrel Flynn,apresentador do programa.

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Até que ponto, na medida em que o negro é atravessado pelas representações

depreciativas em relação ao corpo negro, é possível, para ele, a construção de uma

imagem de corpo em que a condição genérica esteja preservada?

Penso que até mesmo o que por herança nos daria um sentimento de humanidade

e pertencimento fica abalado quando muitos negros rejeitam sua conformação física, e

se tornam desejantes de características físicas que os aproximem “do branco”, que os 

“humanizem”.

Não é incomum os negros que lançam mão de cirurgias plásticas numa tentativa

de, via o flagelo corporal, modificar suas características físicas. Não raro as mães

negras, através de métodos deploráveis, tentam modificar as características físicas de

seus bebês, para que não cresçam com seus narizes chatos ou nádegas volumosas.

Por outro lado, a imagem do corpo é individual e estritamente ligada à história do

sujeito. Suporte do narcisismo inconsciente, é simbolicamente o perfil do sujeito

desejante. Que sujeito desejante é o negro, que vê no seu equipamento para satisfação

do desejo, o corpo, desde já um entrave — sua cor? Um corpo que é a negação daquilo

que deseja, pois seu ideal de sujeito, sua identificação, é o inatingível — o corpo

branco.

Não é incomum o sentimento que nós, negros, experimentamos de nunca sermos

suficientemente bons nas relações ou funções sociais por nós assumidas: não bastasermos bons, temos que ser os melhores e exemplares, depositários que somos do

desejo de pais que projetaram em nós o sujeito que foram impedidos de ser.

Estas aspirações que, a princípio, têm origem no desejo dos pais, na verdade

representam, para o negro, a impossível superação do incômodo de sermos portadores

de um “corpo negro”.

Há uma dissonância, aí, entre esquema corporal e imagem do corpo, que se

expressa quando o negro idealiza para si uma imagem de corpo que não corresponde a

seu esquema corporal — quando é este que, teoricamente, daria ao negro o sentimento

de universalidade, de pertencer à espécie humana.

Seu esquema corporal é retaliado pela cor da pele, pelos tipos de cabelo etc., e

essa diferença não é aplacada pelos pais, mesmo quando trabalham uma imagem de

corpo mais saudável, porque seus corpos também estão atravessados pelo mesmo

estigma.

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O que Dolto coloca como “imagem de base”, a “mesmice de ser”, a continuidade

narcísica, para o negro aparece como comprometida, prejudicando sua coesão

narcísica.

Não é difícil para mim, enquanto psicanalista, enumerar situações em que

pacientes, em suas sessões, expressam esses fantasmas. Como M., que me dizia:

“Precisava quando criança tomar vários banhos para tirar a minha sujeira”. Ou C.,

uma secretária negra: “Preciso estar sempre apresentável, e ser eficiente, para que não

me chamem de negra; não suportaria, quando imagino essa situação, sinto meu corpo

rachando e sumindo no chão, como nos desenhos animados”.

4.4 A Imagem do Corpo Enquanto Rosto

Enquanto Françoise Dolto trabalha a imagem inconsciente do corpo, traçando a

diferença entre imagem do corpo e esquema corporal, Sami-Ali trabalha a questão do

corpo a partir da dialética entre o real e o imaginário, psique/soma, para entender a

unidade psicossomática constitutiva do homem a partir do referencial psicanalítico.

Para Sami-Ali, na constituição da imagem do corpo, o rosto e o sexo se destacam

como pontos relevantes. O rosto é “o lugar onde se afirma a dupla identidade sexual e

simbólica do sujeitos”.104 

Mas o rosto só pode ser percebido no plano da visão por um outro, ou pelo

próprio sujeito através do espelho; para o sujeito, só é possível ter acesso direto ao

rosto pelo tato, e não pelo olhar: o rosto é o invisível onde se revela o visível. 

É um fato que o sujeito tem, para si, um rosto que transcende a série de

manifestações que ele possa exibir, mas não se trata da simples possibilidade de um

ser que supera o parecer; trata-se, antes, de uma “ambigüidade radical”, que é o se

apropriar de um rosto que se esboça e passa a ter existência a partir do “ponto de vista

dos outros” 105.

104 Sami-Ali (1977:108).105 Sami-Ali (1977:108).

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remete novamente, no nível da imaginação material, a um outro que nãoé o próprio sujeito. 108 

Ressaltando o fato de que a teoria psicanalítica revelou o segundo momento de

Narciso, Sami-Ali procura esclarecer como a investigação analítica vê essa formulação

e de que maneira os fenômenos de regressão permitem “reconstruir”  a experiência

original do rosto.

A experiência original do rosto não se dá em um “desenvolvimento linear ”, mas

num todo que vai se revelando gradativamente onde, em função do movimento circular,

o fim coincide com o começo.

O rosto, no início, é um dado constitutivo do mundo externo, uma forma

significativa, “mas surpreende por um vazio ao nível da imagem do corpo”. Sem que

haja uma perda da identidade pessoal, nesse vazio da não constituição “o sujeito éaquele que não tem rosto”.  Isto significa o reconhecimento do estrangeiro em si

mesmo: “Ser sem rosto e possuir um rosto que se perde em seguida são duas maneiras

de expressar uma intuição fundamental do ser”. 109 

4.5 A Construção da Imagem do Rosto Próprio pelo Olhar do

Outro

Na tentativa de resgatar os três movimentos lógicos da constituição da imagem

do corpo que o mito de Narciso expressa, Sami-Ali vai descrever a gênese dessa

estrutura no sujeito.

A partir dos 3 meses, quando se instala a visão binocular, a criança passa a ter a

visão do rosto da mãe, sendo a mãe objeto de identificação primária. O rosto da mãe

coincide com o “campo visual imediato”, dificultando o discernimento entre a

experiência de ver e a de ser visto, entre visão e órgão da visão. Trata-se de umprocesso inicialmente caótico, onde não há diferenciação entre sujeito e objeto.

O olhar da criança, portanto, é atraído pelas formas da mãe. Assim, tanto em sua

transposição projetiva como na sua expressão direta, “o olho confunde-se com aquilo

que vê”. Isto se dá devido a um efeito do que Sami-Ali chama de narcisismo material,

108 Sami-Ali (1977:109).

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pelo qual o campo perceptivo se revela idêntico ao próprio sujeito. Assim, a percepção

tátil do seio da mãe se confunde com a percepção visual do rosto da mãe e, nesse

sentido, numa relação de parte a todo, a imagem do rosto da mãe representa o corpo.

Por outro lado, na medida em que não há diferenciação, nesse estágio, entre a criança e

a mãe, a criança toma a imagem do corpo da mãe como própria. Nessa construçãoteórica, Sami-Ali apoia-se em Spitz, que identifica no seio o primeiro objeto tátil110 e

no rosto o primeiro visual, embora sem considerar toda a questão do ponto de vista da

subjetividade.

Inicialmente a criança percebe o rosto do outro — o da mãe — como sendo seu

próprio rosto, o que corrobora as observações que atribuem à criança o rosto visível a

partir do olhar do outro:

 No primeiro tempo do processo de reconhecimento do sujeito ele não temum rosto; no segundo, ele tem o rosto do outro; no terceiro, ele percebeo rosto como sendo outro. 111 

Neste terceiro momento não se trata, para a criança, de uma percepção do outro

em si, ou do outro em relação a ela mesma, mas do outro que se diferencia em relação

a outros: assim, a mãe e o pai, da perspectiva da criança, são percebidos como

estranhos entre si. Esta percepção da criança de que existem outros rostos diferentes do

da sua mãe significa, para ela, pressentir a possibilidade de ela mesma ser um rosto

diferente do da mãe.

É nesse sentido que Sami-Ali contesta a proposição de Spitz, segundo o qual a

angústia do oitavo mês — quando a criança reage mal diante de estranhos — se deve a

uma vivência de perda do primeiro objeto. Para Sami-Ali, ao contrário, o horror que a

criança manifesta diante do rosto estranho mostra a experiência da alteridade, quando a

criança se dá conta de que há outros rostos, estranhos, diferentes do rosto da mãe e,

nesse sentido, da possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, vale

dizer, um rosto estranho. Assim, diz Sami-Ali: “A angústia do oitavo mês quandoocorre, revela essa dupla constituição do outro como outro e do sujeito como outro em

relação a esse outro”  112. É nesse sentido que, na dimensão da alteridade, isto é, da

109 Sami-Ali (1977:111).110  Spitz, R. De la naissance à la parole. Trad. fr. PUF, Paris, 1968, pp.52-53 e 62; citado em Sami-Ali

(1977:119).111 Sami-Ali (1977:120).112 Sami-Ali (1977:120).

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existência de outros indivíduos que são distintos dele próprio, o estranho se revela para

o sujeito, não somente no outro, mas como implicando o próprio sujeito.

“Diferença do rosto desconhecido relativamente ao rosto da mãe, diferença do

rosto desconhecido em relação ao rosto do sujeito”113: através de que mediação se dá,

para o sujeito, a aquisição de um rosto que lhe falta no primeiro tempo? Essa mediação

se dá através do processo de projeção, que dependerá da evolução individual,

resultando na formação de um “espaço delimitado por um dentro e um fora”  114, fora

que não mais será o do rosto da mãe que a criança pôde antes confundir com o seu,

mas que será o de um rosto que é capaz de tornar-se outro, porque não mais se

confunde com o seu.

A angústia do oitavo mês se dá no momento em que a identificação do rosto dá

lugar a uma projeção; e, nesse momento, se estabelece simultaneamente a diferença e adistância em relação a um outro self:

 Daí decorre a profunda identidade entre o familiar e o estranho revelada por um sentimento de inquietude sempre que se opera a objetivaçãoincerta do rosto do outro que foi, de início, o rosto do sujeito. 115 

É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si

garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe se vê afetada

pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no

estranho. É esse processo que Sami-Ali chama de “angústia de despersonalização”.

Num primeiro momento, o sujeito ainda não atingiu sua identidade corporal,

portanto é incapaz de construir objetos idênticos a si mesmo. Quando, numa situação

vivenciada pela criança como ameaçadora, atenuada a sensação de angústia de perda

do objeto primordial, “o outro se manifesta ao mesmo tempo como sujeito e objeto”.

Essa ambigüidade, diz Sami-Ali,

...é sinal de que está se efetuando uma projeção para criar umaimperceptível distância com relação ao rosto do outro e, assim, permitirque o sujeito se constitua como outro em relação a si mesmo. 116 

113 Sami-Ali (1977:120).114 Sami-Ali (1977:121).115 Sami-Ali (1977:121).116 Sami-Ali (1977:121).

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Somente quando essa experiência se dá é que a criança adquire a noção do

estranho enquanto duplo de si mesma.

Sami-Ali destaca três variáveis que marcam a complexidade do processo de

distanciamento da criança que levará da identificação à projeção da figura materna.

Primeiro, a criança consegue viver de maneira menos aterradora a experiência de

expulsão das próprias fezes assimiladas como parte de seu corpo ou parte da mãe, sem

que isso represente, para ela, uma separação definitiva. Segundo, se estabelece a visão

binocular como resultado de uma projeção sensorial, como conseqüência de uma

motricidade ocular. Terceiro, através do sonho em forma de pesadelo a criança

vivencia e elabora a problemática da ausência e da presença. É esse o quadro que, em

torno do oitavo mês, norteia a organização psicossomática como um todo.

A partir desse processo, a criança passa a reconhecer no rosto da mãe um outrocom o qual ela, anteriormente, se identificou, o que produz um sentimento estranho e

inquietante em que a criança percebe a distância entre si mesma e o outro (mãe): “sou

e não sou o rosto do outro”  117. Estranho que é o outro em relação ao outro, isto é, o

próprio sujeito. Ao projetar seus impulsos, a criança disporá das noções de estranho e

ruim, de familiar e bom. Aqui bom e ruim se relacionam à elaboração da criança em

relação à presença e à ausência da figura materna, representando uma clivagem do

sujeito e do objeto.

Para Sami-Ali é sob esse fundo que se dá para a criança a experiência do espelho:

se, de um lado, ela dá acesso, para o sujeito, à identidade enquanto rosto, essa, uma vez

atravessada pela dimensão da alteridade, produz uma vivência ambivalente, o

sentimento de possuir um rosto (enquanto um dentro) e, ao mesmo tempo, não possuí-

lo (enquanto um fora).

A experiência do espelho, segundo Sami-Ali, coloca desde o início o sujeito em

contraposição com o outro, um outro que ainda não é o próprio sujeito.

Sami-Ali faz referência àquilo que Wallon chama de “realismo das imagens”118,

a experiência em que a criança, que já tem o rosto da mãe mas ainda não seu próprio

rosto, vivencia a aquisição da imagem de seu rosto. Ocorre uma perfeita seqüência

117 Sami-Ali (1977:124).118 H. Wallon, 1934. Les origenes du caractère chez l’enfant . PUF, Paris, 1970, p. 226; citado em Sami-

Ali (1977:125).

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coordenada das aparências visuais, das sensações táteis e cinestésicas: assim, o sujeito

se reconhece na imagem refletida do espelho.

Aparentemente, ele consegue coincidir consigo mesmo mas, na realidade, há uma

ruptura completa com o que ele é. A imagem reflexa não coincide com a representação

da criança enquanto sujeito, representação essa que se formou na relação com o

“outro”. 

Portanto, a existência do sujeito só é possível de apreensão como uma entidade

visual do outro, isto é, da posição do outro. Fora da imagem reflexa do espelho, o

sujeito volta a ser o outro que ele era antes da imagem refletida e que nunca deixou de

ser. Esse mecanismo se dá em função do desenvolvimento do processo de projeção

que, ao se repetir, permite ao sujeito superar seus pontos de fixação.

4.6 O Rosto Próprio Enquanto Estranho

O reconhecimento de si no espelho conforma uma projeção, não realizada em

função das dificuldades em se reconhecer. No entanto, a proximidade da imagem

objetivada em relação ao sujeito suscita, a princípio, um sentimento de estranho

inquietante em relação ao duplo especular. Um sentimento muito próximo do que a

criança vivenciou no momento em que inicialmente ela percebe o rosto da mãe, com o

qual ela se identificou, como podendo ser o outro. Portanto, o mal-estar que a princípio

a criança sente diante do desdobramento do sujeito no espelho prenuncia o início de

uma projeção que interrompe a identificação primordial com o rosto do outro: “sou

outro diferente do outro, logo sou eu mesmo” 119.

Mas esse  “eu mesmo”  que o espelho reflete, numa realidade virtual, é, no

entanto, novamente um outro. A experiência do espelho, portanto, se caracteriza por

um processo de desidentificação do rosto da mãe, para um processo de identificaçãocom o rosto do próprio sujeito. Entre esses dois processos toda sorte de percepção

possível pode ocorrer, do familiar ao estranho, que vão aparecer sob várias formas de

afetos, do medo ao constrangimento. Sentimentos como o que nos descreve S. Freud,

em texto de 1919, o Estranho,  em que relata o equívoco de que foi vítima quando,

pensando ter entrado em sua cabina um estranho durante uma viagem, se precipita para

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mostrar-lhe o seu desagrado pela invasão, quando percebe que o estranho que pretendia

expulsar nada mais era do que seu próprio rosto refletido no espelho da porta de

comunicação. Diz Freud: “Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua

aparência” 120.

Sami-Ali lança mão de um conceito de Lacan, “a assunção jubilatória”, para

explicar que a criança da fase do espelho, dependente da mãe para se alimentar, em

processo de desenvolvimento de suas funções motoras, está longe de colocar em ação

todo o processo dialético da identificação com o outro. No entanto, dá-se aí o

deslanchar de um longo processo de projeção que tem como objetivo formar, em sua

diferença, o rosto do outro com o qual a criança se identificara de início:

 A assunção jubilatória adquire então uma tríplice significação: é a

culminância da separação primordial entre o dentro e o fora; é asuperação do estranho inquietante primitivamente ligado à percepção doduplo; e é a confirmação do primado absoluto dessa mesma percepção.  

121 

Por ser a experiência do espelho derivada do duplo e não ao contrário, por mais

eventual que ela possa ser, não deixa de ser uma experiência onde a criança vivencia a

perda da sua subjetividade enquanto rosto, isto é, a perda do rosto que ela imaginara

ter.

4.7 A Construção da Imagem do Corpo no Negro: Injunçãoou sobreposição do racismo?

As proposições teóricas de Sami-Ali podem, a meu ver, lançar nova luz às

discussões em torno da condição subjetiva do negro.

O modo como a condição do negro costuma ser pensada pode ser exemplificadapelo comentário de Jurandir Freire Costa, quando afirma que

... ser negro é ser violentado de forma constante e contínua e cruel, sem pausa ou repouso por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os

119 Sami-Ali (1977:125).120 Freud, S. (1969:309).121 Sami-Ali (1977:131/132).

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ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.122 

Para Jurandir Freire é a violência racista que, como um peso insuportável, se

impõe ao negro, através de uma “norma psico-sócio-somática”123, criada e imposta por

uma classe dominante branca. A violência exercida pelo branco, diz Freire, reside no

fato de que as reações racistas se baseiam na destruição da identidade do negro.  

À medida que o negro se depara com o esfacelamento de sua identidade negra,

ele se vê obrigado a internalizar um ideal de ego branco. No entanto, o caráter

inconciliável desse ideal de ego com sua condição biológica de ser negro exigirá um

enorme esforço a fim de conciliar um Ego e um Ideal, e o conjunto desses sacrifícios

pode até mesmo levar a um desequilíbrio psíquico: isto é, o ideal de ego negro, diz

Jurandir Freire, contraria o que denomina “regras das identificações normativas ouestruturantes” 124.

Esse fato — o processo singular pelo qual o funcionamento do ideal do ego se dá

para o negro — pode ser explicado, segundo Jurandir Freire, se considerarmos os

processos pelos quais as regras das identificações normativas ou estruturantes atuam.

Tais regras permitem ao sujeito ultrapassar a fase inicial do desenvolvimento psíquico,

tendo sua identidade delineada por uma dupla perspectiva:

 A perspectiva do olhar e do desejo do agente que ocupa a funçãomaterna; a perspectiva da imagem corporal produzida pelo imaturoaparelho perceptivo da criança. 125 

Trata-se, aqui, da fase do processo de construção da identidade do sujeito que

chamamos de narcísica, imaginária ou onipotente. Através desse processo, a criança

tem acesso ao mundo da linguagem, diz Jurandir Freire, da cultura, onde a mãe deixa

de ser a única referência e definição de sua identidade; acontece a introdução do pai, e

de todos outros sujeitos, sejam partes da família ou da sociedade como um todo.

Dessas relações o sujeito apreende o que lhe é ou não de direito expressar, o que lhegarante a existência em grupo numa dada comunidade histórico-social. Diz Freire:

122  Costa, J. F. (1984:104).123 Costa, J.F. (1984:104).124 Costa, J.F. (1984:105).125 Costa, J.F. (1984:105).

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 As identificações normativo-estruturantes, propostas pelos pais aos filhos, são a mediação necessária entre o sujeito e a cultura.126 

Essas mediações a que se refere Jurandir acontecem através das “relações físico-

emocionais” no seio familiar e do “estoque de significados lingüísticos que a cultura

 põe à disposição dos sujeitos”. O ideal de ego seria, portanto, o resultado de todo esse

processo, no intercâmbio das relações parentais e sociais, onde se encontra a origem da

identidade do sujeito, em que coexistem um investimento erótico do seu próprio corpo

e do pensamento, permitindo-lhe uma via de acesso harmoniosa nas relações sociais.

Para o negro, no entanto, esta via de acesso está impedida, afirma Freire, pois o

modelo de ideal de ego ao qual o negro tem acesso, em troca de suas “antigas

aspirações narcísico-imaginárias”, está muito além do humanamente possível,

psíquica e historicamente:

O modelo de identificação normativo-estruturante com o qual ele sedefronta é o de um fetiche: o fetiche do branco, da brancura. 127 

A “brancura” vista da perspectiva do olhar do negro oprimido é, como afirma

Freire, uma qualidade transcendental: para este olhar negro, prevalece a brancura,

acima das falhas do branco. A brancura se contrapõe ao mito negro. A ideologia racial,

portanto, se funda e se estrutura na condição universal e essencial da brancura, como

única via possível de acesso ao mundo.Embora o negro saiba que sua condição é o resultado das atitudes racistas e

irracionais dos brancos, o ideal de brancura permanece. Diz Freire: “a brancura

transcende o branco” 128.

A “brancura”  passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética,

majestade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o branco encarna todas as virtudes, a

manifestação da razão, do espírito e das idéias: “eles são a cultura, a civilização, em

uma palavra, a humanidade”

129

.A partir dessas considerações, Jurandir Freire conclui que é a partir do momento

em que o negro se confronta com o racismo que se produz, para ele, esse desejo

126 Costa, J.F. (1984:105).127 Costa, J.F. (1984:106).128 Costa, J.F. (1984:106).129 Costa, J.F. (1984:106).

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inatingível, em conseqüência de suas condições, tanto históricas quanto étnica e

pessoal.

O que significa, do ponto de vista da condição subjetiva do negro, o desejo de

brancura? Na medida em que o desejo se põe, imaginariamente, como a tentativa de

recuperar um momento original mítico, de plenitude, o desejo de brancura supõe, para

o negro, a negação de sua condição própria, a negritude — desde a origem.

É desse modo que o “desejo do embranquecimento”, afirma Jurandir Freire,

significa o desejo de sua própria morte, do desaparecimento do seu corpo, assim “o

sujeito negro ao repudiar a cor, repudia radicalmente o corpo” 130.

Nos depoimentos analisados por Neusa Santos131, fica claro que é com embaraço,

desprezo, vergonha e hostilidade que os sujeitos apresentados por ela nos estudos de

caso se referem aos atributos físicos próprios a sua condição de negros: “beiço grosso” 

do negro, “nariz chato e grosso”  do negro, “cabelo ruim”  do negro, “bundão”  do

negro, “primitivismo sexual do negro”, etc. Sem dúvida, conclui Freire Costa, um dos

traços marcantes que a violência racista estabelece via preconceito de cor é uma 

“relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo”. 132 

A identidade do sujeito depende em grande parte do corpo ou imagem corporal

eroticamente investida, isto é, a identidade depende da relação que o sujeito cria com o

próprio corpo. É assim que Jurandir Freire conclui que:

 A partir do momento em que o negro toma consciência do racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo-próprio”. 133 

É em função dessa consciência que o sujeito negro passa a controlar, observar e

vigiar o corpo que “se opõe à construção da identidade branca”  que foi obrigado a

desejar. É aí que o sofrimento pela consciência da diferença do seu corpo em relação

ao corpo branco faz emergir a negação e o ódio a seu próprio corpo: corpo negro.

Eu diria, no entanto, que esta condição é mais que uma injunção, como quer

Freire. Trata-se, a meu ver, de algo que ultrapassa os limites do imposto, mas que se

caracteriza como o que proponho chamar de sobreposto.

130 Costa, J.F. (1984:107).131 Souza, N.S. (1983).132 Costa, J.F. (1984:107).133 Costa, J.F. (1984:108).

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Negar e anular o próprio corpo não torna o sujeito “outro”, visto que só

existimos como sujeito em relação ao outro, à alteridade; portanto, ser sujeito é ser

outro e ser o outro é não ser o próprio sujeito.

O que somos nós, os negros?

Ser branco significa uma condição genérica: ser branco constitui o elemento não

marcado, o neutro da humanidade. Se considerarmos o processo de construção do

corpo imaginário, a partir do referencial da psicanálise e, mais especificamente, das

proposições de Sami-Ali, podemos supor que, se nada de extraordinário ocorrer na

evolução do indivíduo, ele se tornará um sujeito a partir do outro, da alteridade,

experimentará, eventualmente, o sentimento de “estranho inquietante”, diante de uma

experiência inesperada, como a de ser, inesperadamente, refletido em um espelho ou

em uma superfície refletora qualquer, experimentando sentimentos de medo econstrangimento, para em seguida se recompor, reconhecendo-se e não se repudiando,

na certeza de que será confirmado enquanto sujeito pelo olhar do outro.

Para os negros, no entanto, o estranho inquietante é mais do que o

reconhecimento de um eventual outro — estranho — em si mesmo: é o reconhecimento

de sua condição de não ser; é o reencontro de um rosto que um processo desrealizante

imaginariamente negara. Ser negro não é uma condição genérica, é uma condição

específica, é um elemento marcado, não neutro.

O “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social, que se

expressa dentro de um campo etno-semântico onde o significante “cor negra” encerra

vários significados. O signo “negro” remete não só a posições sociais inferiores, mas

também a características biológicas supostamente aquém do valor das propriedades

biológicas atribuídas aos brancos. Não se trata, está claro, de significados

explicitamente assumidos, mas de sentidos presentes, restos de um processo histórico-

ideológico que persistem numa zona de associações possíveis e que podem, a qualquer

momento, emergir de forma explícita.

Se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica o negro que se

confronta com o olhar do outro que mostra reconhecer nele o significado que a pele

negra traz enquanto significante?

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Resta ao negro, para além de seus fantasmas, inerentes ao ser humano, o desejo

de recusar esse significante, que representa o significado que ele tenta negar, negando-

se, dessa forma, a si mesmo, pela negação do próprio corpo.

Jurandir Freire nos expõe todo um mecanismo em que deixa muito claro que é

por intermédio de algo imposto, a partir de um momento em que a experiência do

racismo se dá de modo consciente para o sujeito negro, que se desencadeia, para esse

sujeito, o processo de autodestruição, destruição do seu corpo próprio, corpo negro.

Este é o processo que Freire qualifica como uma injunção. A meu ver, no entanto, esse

fenômeno corresponde antes a uma sobreposição, pois o encontro com o racismo

enquanto experiência consciente vem se sobrepor a um real de recusa do corpo negro

que corresponde a uma lembrança arcaica. O que quero dizer é que, ao contrário do que

afirma Freire, não há, para o negro, um momento mítico, original, anterior ao encontro

com a dimensão social mais ampla na qual o racismo se manifesta: para o sujeito negro

esse encontro se sobrepõe à lembrança arcaica de um encontro anterior, a partir do qual

suas estruturas narcísico-imaginárias se determinaram.

Como afirma Jerusalinsky:

 A criança existe psiquicamente na mãe muito antes de nascer, e aindamais, muito antes de ser gerada.134 

O bebê negro, está claro, não é menos desejado que o bebê branco, para sua mãeque, inconscientemente, deseja o filho. Mas a criança do projeto e do desejo da mãe

certamente não está representada no pequeno corpo negro, que o olhar materno,

inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja,

para si, a brancura.

Isto se explica porque o eixo central do processo que constitui o sujeito não está

na satisfação nem na frustração das suas necessidades; para o sujeito humano, não há

nenhum mecanismo genético que possa garantir esse processo. A operação que o

define se situa, ao contrário, em outro nível — o do significante.

 As falas fundadoras, que envolvem o sujeito, são tudo aquilo que oconstitui, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura da comunidade, que oconstitui não somente como símbolo, mas no seu ser. São leis denomenclatura as que determinam, ao menos até um certo ponto,, ecanalizam as alianças a partir das quais os seres humanos copulam

134 Jerusalinsky, A. (1984:40).

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entre si e acabam por criar, não só outros símbolos, mas também seresreais que, ao chegarem ao mundo, logo possuem essa pequena etiquetaque é seu nome, símbolo essencial do que lhe está reservado. 135 

Isto significa que todo ato da mãe para com a criança é parte de um discurso,

discurso que se expressa em todos os movimentos e atitudes do outro com quem acriança se identifica, e no qual se manifesta o desejo materno:

Sendo que esse desejo se articula no que falta à mãe: o falo, esse ficasendo o orientador dessas identificações que utilizam o imaginário comosignificante. 136 

Partindo das proposições lacanianas, e entendendo “falo” como o que representa

o poder (a plenitude, a felicidade), ao transpor essas proposições para a situação da

mãe negra cuja “falta”  se expressa enquanto desejo de ser “branca”, portanto, do

desejo desse poder que ela não detém, que lhe falta, vemos que a criança negra sofreria

na relação original sua primeira avaria, pois o que a constitui como sujeito nesse

momento original — o desejo da mãe — já estaria impregnado de um significado que é

negado no discurso da própria mãe.

Assim, não dispondo de qualquer possibilidade de disfarce da diferença que o

constitui, o negro passa por um processo identificatório forjado no desejo do que seria

ser “branco”; projeta, portanto, o branco que nunca será por condição biológica.

Está posta, assim, uma dualidade fundamental, no que tange à estrutura psíquica

do negro: uma dupla lacuna se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o real

de sua condição de negro, enquanto tal, não é reconhecido, é negado e se nega. Que

processo se daria, então, na elaboração do imaginário de alguém nessas condições?

O negro sofre do medo permanente da perda da sua imagem, tal qual ele a

mantém em sua representação imaginária: a de branco, mantida por um ideal de

brancura.

Entre o que o olhar do outro reflete para o sujeito negro e a imagem que o negro

tem de seu próprio corpo negro, há, na verdade, uma coincidência. O que o olhar do

outro lhe mostra, desse modo, é o que, no seu desejo, o sujeito negro recusa: o fato de

135 Lacan, J. (1978:31).136  Lacan, J.  Las formaciones del inconciente. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970, p. 99; citado em

Jerusalinsky, A. (1984:10).

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que ele é a encarnação do significado “negro”, na medida em que ele traz no corpo o

significante “negro”.

4.8 A Criança Negra e o Espelho

A partir das reflexões até agora desenvolvidas, pode-se pensar a singularidade

que a experiência do espelho comporta para a criança negra.

Como para qualquer criança, é na experiência que Lacan denominou o “estádio

do espelho” que se produz a experiência de domínio do corpo como uma totalidade, em

substituição àquilo que anteriormente era vivenciado em pedaços. Mas, a

particularidade que a experiência do espelho, na criança negra, envolve, diz respeito ao

fato de que o fascínio que essa experiência produz é acompanhado, simultaneamente,

por uma repulsa à imagem que o espelho virtualmente oferece. Nesse movimento, a

assunção jubilatória de que falava Lacan é necessariamente acompanhada de um

processo suplementar que envolve a negação imaginária do semblante que a imagem

especular oferece, pois a criança negra reluta em aderir a essa imagem de si que não

corresponde à imagem do desejo da mãe.

Ao tomar-se pela imagem, ela conclui que “aquela imagem é ela”; mas, nãoreconhecendo ali a imagem do desejo da mãe, a criança se vê, desde então,

inconscientemente mobilizada a procurar, nessa imagem, o que a reconciliaria com o

desejo materno.

A mãe negra, como já foi observado, ama seu bebê, mas nega, ao mesmo tempo,

o que a pele negra representa, simbolicamente. Tal dualidade vai marcar a experiência

do espelho na criança negra, caracterizando seu processo de identificação: coincido

com o que, da minha imagem, corresponde ao desejo materno; não coincido com o que,

dessa mesma imagem, contraria o desejo materno.

Nesse movimento, produz-se um mecanismo complexo de identificação / não

identificação, que reproduz, para a criança negra, as experiências do adulto negro: o

fato de sua identificação imaginária ser atravessada pelo ideal da “brancura”. Para

reconciliar-se com a imagem do desejo materno — a brancura — a criança negra

precisa negar alguma coisa de si mesma.

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O que Lacan chamou de identificação primordial com uma imagem ideal de si

mesmo, na experiência da criança negra ocorre de forma conturbada, porque a imagem

que o espelho lhe dá exige, para ser introjetada, uma operação suplementar de

idealização: é preciso projetar nessa imagem um ideal de “brancura” para afastar dela

o componente de rejeição que a pele negra envolve, no desejo materno.

4.9 A Relação Persecutória com o Corpo Negro

Para Sami-Ali, no processo de despersonalização o sujeito vivencia uma

alternância entre perder a recuperar a sensação de ter um corpo, o que acarreta uma

angústia que se refere ao medo de perder a forma humana, na possibilidade de uma

possessão que o faria se transformar em um animal ou algo inominável. Daí resulta um

imenso pavor da loucura, estado permanente da angústia de despersonalização.

Desencadeia-se, então, para o sujeito, uma ânsia desesperada por estar em relações

transferencialmente positivas.

É o caso de se perguntar se tal processo de despersonalização não é algo que o

negro, guardadas as devidas proporções, vivencie de uma forma crônica, e que,

estranhamente, não o leva a suas últimas conseqüências, ou seja, à loucura. Pode haver

algo mais complexo do que ser portador de um corpo negro, portanto, marcado pelos

significados a ele associados, a partir do que conhecemos a respeito da gênese da

imagem do corpo? Lembremos que é num processo inconsciente que esta gênese se

dará, como resultante de um duplo processo identificatório e projetivo: “ser o sujeito

sendo concomitante o outro e ser o outro não sendo o próprio sujeito”137.

Evidentemente, no confuso processo por que passam os negros, ser sujeito no

outro significa não ser o real do seu próprio corpo, que deve ser negado para que sepossa ser o outro. Mas esta imagem de si forjada na relação com o outro — e no ideal

de brancura — não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo

próprio, mas é, por este, negada, estabelecendo-se aí uma confusão entre o real e o

imaginário. Essa confusão despersonaliza e transforma o sujeito num autômato: o

sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro.

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tais ameaças racistas não se cumprirão, o pavor não desaparece, porque ele traz no

corpo o significado que incita e justifica, para o outro, a violência racista.

É justamente porque o racismo não se formula explicitamente, mas antes

sobrevive num devir interminável, enquanto uma possibilidade virtual, que o terror de

possíveis ataques (de qualquer natureza, desde física a psíquica) por parte dos brancos

cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe

inexoravelmente.

Ainda que lançando mão de um arsenal racional lógico o negro possa

desconsiderar tais ameaças racistas que parecem grotescas, absurdas, totalmente

incabíveis legalmente — já que criminosas em termos de direitos civis — é mais forte

que ele: ele acaba sempre por sucumbir a todo um processo inconsciente que, alheio à

sua vontade, entrará em ação.

4.10 A ‘‘Vergonha de Si’’ e os Processos Auto-destrutivos no

Negro

Quando o processo de despersonalização de que nos fala Sami-Ali é levado às

últimas conseqüências, o indivíduo sofre a perda da condição de sujeito e, como

correlativamente, sofre uma quebra no processo de simbolização: ocorre, então, a perda

do simbólico, que implica na impossibilidade de elaboração de qualquer situação do

seu cotidiano.

Tal forma extrema a que pode levar o processo de despersonalização depende,

está claro, da constituição psíquica estrutural do sujeito, que o torna mais ou menos

vulnerável à possibilidade de uma cisão psíquica. No entanto, independentemente

disso, tal experiência pode ser dar, enquanto fenômeno descontínuo e fugaz, paraqualquer sujeito, pois os processos psíquicos não são excludentes entre si, e podem

ocorrer concomitantemente na estrutura da psique.

139 Sami-Ali (1977:34).

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Essas considerações se aplicam identicamente ao conceito de vergonha que

pode levar ao ódio de si, proposto por Radmila Zygouris 140, que pode funcionar tanto

como uma etapa intermediária antes da possibilidade de instauração propriamente dita

do processo de despersonalização, como pode funcionar como processo pontual,

eventualmente experimentado pelo sujeito em função das experiências vividas.

A vergonha, diz Zygouris, não habita o recém-nascido: esse sentimento começa a

existir a partir da percepção do que ela denomina o julgamento moral do outro, e

produz, como conseqüência para o sujeito, um estado de angústia.

Zygouris estabelece uma correlação entre o sentimento de vergonha de si e a

experiência original da angústia:

 A angústia nasce do medo de perder o objeto amado ou de sua espera

devastadora, a vergonha é uma decadência social, ainda que o ‘social’seja reduzido à sua mais simples expressão: um olhar que julga! Esseolhar pode ser o da própria mãe desde os tempos primordiais de umaparente idílio, mas que não lhe pertence: esse olhar que julga já é ainstância à qual a mãe se submeteu e que a criança percebe comoestrangeira ao território de ambas. 141 

Zygouris aponta aí a origem da primeira experiência do sentimento de exclusão,

da primeira sensação de “derrota do bom para si em proveito do bem para o outro”.

Para Zygouris, não importa qual tenha sido a causa, nem qual o objeto da

vergonha de si, nem se se trata de vergonha por um outro: sempre será vivida como

vergonha de si mesmo.

Mesmo que se pense a origem da vergonha como oriunda das feridas narcísicas,

ou de dificuldades com o ideal do eu, nenhuma dessas considerações leva em conta que

a vergonha demanda uma “vingança”  (reparação), e quando ela não acontece, a

vergonha jamais será esquecida.

Toda situação onde a vergonha se faz presente é uma situação deviolência real ou simbólica, violência feita ao psiquismo, e emconseqüência da impossibilidade de uma resposta eficiente, ao própriocorpo. 142 

140 Zygouris, R. (1995).141 Zygouris, R. (1995:166).142 Zygouris, R. (1995:167).

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É nesse sentido que na vergonha de si há um aspecto pulsional que lhe dá

fundamento corporal. Assim, a vergonha de si aparece como um desastre visceral, que

não pode ser esquecido, que demanda o tempo todo um agir que não pode acontecer,

levando o sujeito a uma sensação de impotência.

A vergonha tem sua origem no social, mesmo que ela tenha ocorrido no seio

familiar; coloca o sujeito em confronto com a violência e a impossibilidade de reagir.

Ela desencadeia a angústia e se apodera do corpo, provocando o rubor, o suor e o

desejo de desaparecer. É impossível esquecê-la porque ela está inscrita no sujeito, não

só como uma representação, uma lembrança de dor, mas “como uma experiência

traumática inscrita no próprio corpo” 143.

A experiência de vergonha e a pulsão agressiva que se apresenta,

simultaneamente a uma angústia, são, diz Zygouris, tanto uma quanto a outra, comoafetos em estado bruto, como pura pulsão, que prescindem dos valores linguageiros,

pois na medida em que esses afetos não produzem uma resposta adequada, o espaço

simbólico de vida, que se orienta pelos valores que a linguagem instaura, sofre uma

desestruturação.

Quando colocado em uma situação em que vê seu objeto de amor — e esse

objeto pode ser, em função do princípio narcísico, a imagem de si — atacado pelo

outro, insultado, o sujeito é atacado ele mesmo, e deve reagir, em função de sua pulsão

agressiva.

Mas quando essa situação desencadeia, para o sujeito, a vergonha de si, é

impossível a reação da pulsão agressiva, uma vez que o sujeito, nesse caso, se vê numa

situação de impotência, e a pulsão agressiva, ao invés de se externalizar em direção ao

outro, encontra como saída o próprio corpo do sujeito.

O sujeito é, assim, duplamente atingido: em seu objeto de amor, do qualsempre é apenas parcialmente separado; e em sua capacidade de

resposta, sofrendo desse modo a violência da pressão da pulsão contra si próprio — seu corpo, sua face, seu nome”. 144 

No processo de vergonha de si a denominação é a figura por excelência, pois

comumente a denominação marcada pelo sentido da vergonha — como ocorre nos

casos exemplares do insulto ou da injúria — ocupa, no discurso que produz a ofensa, o

143 Zygouris, R. (1995:166).

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lugar do nome próprio do sujeito. Dessa forma, a denominação proferida pelo outro

reduz o sujeito a não ser mais nada, resultando, para ele, na perda simultânea do nome

próprio e da identidade.

Tal denominação faz com que aquele que é seu objeto se veja ameaçado de

exclusão. Diz Zygouris que, se “por vezes isso diga respeito ao imaginário não diminui

em nada a ferida, que não é imaginária quando toca ao mesmo tempo no real do corpo

e no simbolismo do nome próprio” 145.

O nome próprio é o signo que representa o próprio sujeito, que o diferencia do

outro. Diz Zygouris:

 Meu nome me separa de ti, mas também graças a ele você pode mechamar. Se a ofensa vier nesse mesmo lugar, então tudo pode

desmoronar... ‘Sinto vergonha’”.

 146

 

A categoria de vergonha de si, a meu ver, permite contemplar de modo bastante

apropriado um fenômeno que, no caso dos negros, constitui uma experiência central,

espécie de marca por excelência na qual se manifestam os processos de racismo e

exclusão.

Refiro-me, aqui, às formas de denominação ofensiva a que o negro é,

comumente, exposto no espaço social, e que, longe de serem uma experiência

específica do indivíduo, se associam ao extenso repertório de designações depreciativasque, historicamente, marcaram os negros (de que Conty, por exemplo, é um

representante, como vimos na seção 2).

Quando o negro é designado, por exemplo, como “macaco”, quando, numa

situação de tráfego, ouve alguém que, dirigindo-se a ele, diz “macacos não deveriam

dirigir”, a vergonha o invade.

O negro ensaia uma resposta, mas o impacto da situação o paralisa. A fantasia,

no entanto, é a de poder dar uma resposta à altura e se vingar do agente dessa situaçãode humilhação.

A designação “macaco”  vem ocupar o lugar de seu nome próprio, pois toda

denominação ocupa o lugar do nome próprio do sujeito.

144 Zygouris, R. (1995:168).145 Zygouris, R. (1995:170).146 Zygouris, R. (1995:171).

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  101

Não conseguindo se ver incluído, o negro acaba por se excluir, como única

alternativa para eliminar aquilo que é impossível de ser eliminado. Somente os

processos auto-destrutivos podem significar, para ele, a eliminação daquilo que exclui

seu próprio corpo, sua própria condição de sujeito.

Na sociedade atravessada por uma história de racismo e discriminação persiste,

mesmo que silenciosamente, o pressuposto de que o negro deverá agir de acordo com

certos estereótipos do comportamento do negro que habitam o imaginário social, ou

seja, o negro deverá agir sempre com paciência e moderação; não é suposto estar

sujeito às emoções inerentes ao humano — ódio, raiva, amor — das pessoas ou do

grupo. Deverá se contentar com empregos que nada exijam de inteligência e pelo qual

lhe paguem um salário de subsistência; ele se sentirá feliz em viver e criar sua família

em habitações inadequadas.

Quando o negro percorre uma trajetória social que não corresponde aos

estereótipos sociais da condição negra, não é incomum que ela acabe por se destruir

como se não se desse conta de seu próprio sucesso. Ainda que sua autodestruição

pareça um contra-senso, ela faz sentido no interior de uma lógica em que a “mancha

negra” da qual ele é o portador deverá ser destruída. Isto faz do negro alguém que está

fadado a estar sempre aquém dos padrões idealizados pela sociedade branca.

Na realidade, o significado do percurso do negro socialmente bem sucedido não

pode ser dissociado daquela luta para se sentir incluído (de que tratamos na seção

anterior). Em tal trajetória, o negro acaba sempre por se sentir, de alguma forma,

despossuído dos sentidos desse processo, que, para ele, sempre aparecerá como a

realização do desejo do outro. Em meio a esse processo, o negro acaba por não

conseguir discernir bem quais seriam suas próprias expectativas.

A alienação que resulta de um longo período histórico de subordinação e

humilhação faz com que os negros padeçam de um terrível sentido de inferioridade,

que chega até mesmo ao ódio, em relação à sua condição de “pessoa negra”.

São inúmeros os exemplos de negros que, embora tenham alcançado um lugar

social de destaque (realizando, assim, a inclusão), mesmo assim se empenham, num

processo auto-destrutivo, em “apagar”  as marcas do corpo negro, seja pela

modificação de suas características biológicas (o que pode incluir até mesmo a cor da

pele, por meio de branqueamento artificial), seja pelo seu “apagamento”  psíquico,

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num gesto onipotente de negação de sua própria condição física de negro (como, por

exemplo, se mostra na declaração: “Eu não sou um negro, sou Pelé”).

O negro é afetado, ele próprio, pelos estereótipos sociais que o territorializam

negro na periferia da sociedade, na subcultura, na pobreza, ao mesmo tempo que é

compulsoriamente atraído pelos lugares e valores sociais estereotipicamente marcados

como “brancos”: os lugares de poder, de status, de segurança, de cultura e, até mesmo,

de beleza são vistos como possessões brancas. Desse modo, a construção de sua

própria identidade, para o negro, é sempre atravessada pela frustração.

No imaginário social produzido pela sociedade branca e escravocrata, o negro

funcionou como significante catalisador dos fantasmas e perversidades dessa mesma

sociedade, que, exteriorizando esses núcleos internos que aterrorizam, construiu

representações em que tais horrores são presentificados no corpo negro.

É assim que, a representação da sexualidade do negro, para tal imaginário,

coloca-o na dimensão da violência selvagem (o estupro, por exemplo), ou na dimensão

do gozo invejado (na figura de uma extraordinária potência sexual do homem negro ou

da sensualidade exacerbada da mulher negra).

A essas imagens sociais, obviamente, o negro não está imune e seu efeito é

confundir e perturbar o sujeito que, na sua tentativa desesperada de não ser a

presentificação do “mal”, adere de forma fantasmática aos valores “brancos”, pelanegação de suas características étnicas que chega, no limite, como vimos, à negação de

seu corpo próprio.

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Capítulo  V  

 A Condição de Negro Vivida como Privação

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  104

5.1 A Categoria Freudiana de Romance Familiar

Para Freud, o crescimento do indivíduo necessariamente passa pelo “libertar-se

da autoridade” dos pais; processo doloroso, esse movimento de liberação é essencialpara o equilíbrio do indivíduo, que será proporcional ao quanto conseguir se liberar. O

progresso da sociedade se baseia na oposição entre gerações que se sucedem; mas há

alguns indivíduos, segundo Freud, “uma classe de neuróticos”, cujo modo de ser é

claramente determinado pela falha desse processo.

Para a criança, os pais representam a “autoridade única e a fonte de todos os

conhecimentos”147, o que provoca na criança, nos seus primeiros anos de vida, um

desejo de se igualar aos pais (“isto é, ao progenitor do mesmo sexo”

), ser como seu paiou sua mãe. No entanto, o desenvolvimento intelectual da criança dá-lhe a

possibilidade de descobrir, gradativamente, a que categoria pertencem seus pais: em

suas relações sociais, é inevitável o conhecimento de outros pais, que ela acaba por

comparar aos seus e, dessa forma, poderá questionar qualidades que, num primeiro

momento, ela considerara insuperáveis.

As frustrações cotidianas que as crianças experimentam no convívio com os pais

dão-lhes suporte para criticá-los, já que, na comparação com outros pais, a criança se

dá conta de que em alguns aspectos os outros se mostram mais interessantes do que os

seus:

 A psicologia das neuroses nos ensina que, entre outros fatores,contribuem para esse resultado os impulsos mais intensos de rivalidadesexual.148 

A criança, que se sente descuidada pelos pais, experimenta um sentimento que,

sem dúvida, serve de base para que passe a rivalizar com os pais. Em função da

existência de outros irmãos e irmãs, a criança sente-se prejudicada em sua cota deamor, imagina não estar recebendo dos pais o amor que tem que ser compartilhado

pelos irmãos e irmãs. Freud aponta que, mais tarde, na adolescência, essa vivência trará

a idéia, ao adolescente, de ter sido uma criança adotada ou de que um dos pais possa

ser padrasto ou madrasta.

147 Freud, S. (1969:243).148 Freud, S. (1969:243).

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  105

Não é incomum que alguns indivíduos que não desenvolveram neurose acentuada

se recordem de que, em momentos de conflito com os pais, reagiram respondendo-lhes

que tal tratamento só era possível porque ele fora adotado. Os impulsos hostis contra o

pai são mais acentuados no menino do que na menina, os meninos tendem a querer se

livrar do pai, de forma mais acentuada do que das mães, e vice-versa com as meninas,embora Freud observe que nas meninas a imaginação tende a se revelar mais fraca:

Esses impulsos mentais da infância conscientemente lembradosconstituem o fator que nos permite entender a natureza dos mitos.149 

Freud denomina “romance familiar do neurótico” o conjunto das representações

ligadas a esse processo de afastamento em relação aos pais. Uma vez ultrapassada essa

fase, o “romance familiar do neurótico” quase sempre é esquecido e raramente se

constitui numa lembrança consciente, que pode ser revelada pela psicanálise.

O romance familiar é produto de uma “atividade imaginativa estranhamente

acentuada”, que é uma característica essencial dos neuróticos e de pessoas

relativamente inteligentes. A atividade imaginativa que se ocupa das relações

familiares aparece na criança nas brincadeiras até o período anterior à puberdade. Os

devaneios, que são comuns até depois da puberdade, são um exemplo da atividade

imaginativa.

Esses devaneios correspondem a “realização de desejos e uma retificação da vidareal.”  150  Têm dois objetivos principais: um erótico e um ambicioso — embora o

objetivo erótico esteja comumente oculto sob o último.

Nesse período de grande atividade imaginativa, a criança se dedica a libertar-se

dos pais, que já não ocupam mais um lugar de alta estima, e os substituir por outros,

“em geral de uma posição social mais elevada”: 

 Nessa conexão ela lançará mão de quaisquer coincidências oportunas de

sua experiência real, tal como quando trava conhecimento com o senhorda Casa Grande ou com o dono de alguma grande propriedade, se morano campo, ou com algum membro da aristocracia, se mora na cidade.151 

149 Freud, S. (1969:244).150 Freud, S. (1969:244/245).151 Freud, S. (1969:245).

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  106

São acontecimentos que fazem brotar a inveja da criança, que se expressa na

fantasia de que seus pais sejam substituídos por outros de melhor origem;

evidentemente, a forma dessas fantasias, que são conscientes nesse período, depende

da capacidade criadora e do material de que a criança dispõe para inventar.

Independentemente das fantasias serem próximas da realidade, esse estádio se dá

numa época em que a “criança ainda ignora os determinantes sexuais da procriação.” 

152 

Quando finalmente a criança vem a conhecer a diferença entre os papéisdesempenhados pelos pais e pelas mães em suas relações sexuais, [e]compreende que ‘pater semper incertus est’, enquanto a mãe é‘certíssima’.153 

A partir dessa aquisição, o romance familiar “sofre uma curiosa restrição”: o paipassa a ser o ponto duvidoso, enquanto a mãe não é colocada em dúvida, já que a

origem materna passa a ser indiscutível.

Nesse segundo estádio (sexual) do romance familiar, dá-se a influência de um

outro motivo que não está presente no primeiro estádio (assexual). A essa altura, como

a criança conhece os processos sexuais, ela se imagina em “relações e situações

eróticas”: sendo a mãe o objeto de acentuada curiosidade sexual, ela funciona como

causa do desejo de imaginá-la em “situações de secreta infidelidade e em secretos

casos amorosos.” 154  As fantasias infantis que, a princípio, eram assexuadas, passam a

ser sexuadas, mantendo-se a vingança e a retaliação, que eram bem evidenciadas no

primeiro estádio. Segundo Freud, as crianças neuróticas, que sofreram punições por

suas traquinagens sexuais, se vingam dos pais através dessas fantasias. As crianças

mais novas lançam mão dessas histórias imaginativas, para destituir seus irmãos dos

seus respectivos lugares junto a seus pais, atribuindo à mãe tantos romances fictícios

“quantos são os seus competidores”.

Há variações nesses romances familiares, onde o herói e autor é legitimamentereconhecido, enquanto os irmãos são declaradamente bastardos. O curso dos romances

familiares pode variar de acordo com a demanda interna da criança; por exemplo, uma

criança pode eliminar o grau de parentesco que o une a uma irmã por quem se sente

152 Freud, S. (1969:245).153 Freud, S. (1969:245).154 Freud, S. (1969:245).

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sexualmente atraído. Sob essa aparente indecência infantil se esconde a “primitiva

afeição da criança por seus pais, a infidelidade e a ingratidão são apenas aparentes”  

155 

Ao olharmos de maneira mais detalhada esses romances imaginativos, a criança

conserva qualidades de seus pais verdadeiros que são atribuídas aos pais aristocráticos;

não se trata de descartar seus pais verdadeiros, mas melhorá-los.

Todo esforço de substituição de seus pais verdadeiros via romance é a expressão

da sua saudade dos dias em que ela pensava seu pai como o homem mais forte e nobre

e “sua mãe a mais linda e amável das mulheres.”  156  A fantasia da criança representa

um lamento pelos dias felizes que ela perdeu: desconhece o pai do presente, para

reconhecer aquele “pai em que confiava nos primeiros anos de sua infância.” Nessas

fantasias são expressas a supervalorização que a criança faz dos pais nos seusprimeiros anos de vida.

5.2 Gênese do Mito da Brancura no Romance Familiar do

Negro

Se todo indivíduo, no processo psíquico de construção da dimensão subjetiva,

vivencia esse processo de afastamento em relação aos pais que se manifesta no

romance familiar, para a criança negra esse processo põe em jogo de modo decisivo os

sentidos associados à pele negra e, nesse movimento de desqualificação dos pais que o

romance familiar envolve, o que se manifesta, para a criança negra, é a emergência do

ideal da brancura.

Pode-se dizer que, mesmo antes da fase em que o romance familiar se manifesta,

isto é, naquela fase em que a criança adere totalmente a seus pais, imbuídos, para ela,

de uma aura de perfeição, a experiência d criança negra comporta uma singularidade, já

que ela se confronta, desde os primórdios, com o ideal da brancura presente em seus

próprios pais. Na medida em que a brancura representa, na fantasia dos negros e dos

brancos, um estado “mais perfeito” do que aquele que é próprio da condição de negro,

155 Freud, S. (1969:246).

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a criança negra é, desde sempre, confrontada com o fato de que a figura de seus pais é

marcada por uma autoridade e uma perfeição “diminuídas”. A criança negra é aquela

cujos pais aparecem, desde sempre, para ela, como fragilizados pelo desejo inacessível

da brancura.

Nesse momento inicial, anterior ao distanciamento que o romance familiar

expressa, a criança deseja assemelhar-se totalmente aos pais. Para a criança negra, essa

identificação ilimitada da fase inicial já envolve a identificação com a fragilização que

afeta os pais negros, decorrente de um imaginário de falta de saber, de poder, os quais

constituem sentidos associados à brancura; mas tal fragilidade é também decorrente do

medo e da desconfiança que as experiências de discriminação produziram para seus

pais. É nesse sentido que, no capítulo anterior, procurei chamar a atenção para o fato de

que a discriminação se manifesta, para o negro, muito antes de qualquer experiência

social de discriminação: é com os efeitos desta, enquanto já inscritos na psique de seus

pais negros, que a criança primeiramente se confronta.

Quando a criança atinge certo conhecimento ela se depara, por comparação, com

a categoria social em que estão incluídos seus pais; ela se depara, nesse momento,

com a vergonha de pais que são “diminuídos” em relação a outros pais, que não só

possuem qualidades e atributos que superam às de seus pais, como são o que até

mesmo seus pais desejariam ser.

Se é normal que, nos processos de frustração que as crianças experimentam na

relação com seus pais, a comparação e a crítica sejam inevitáveis, para a criança negra

os outros pais são mais do que interessantes em relação aos seus pais: não há

comparação ou semelhança possível com o modelo valorizado de pais brancos; começa

aí o sentimento de vergonha em relação ao que os pais negros representam.

É nesse momento que, no romance familiar da criança negra, seus pais serão

responsabilizados por serem a causa de uma incomensurável infelicidade que a afeta,

aquela de possuir um corpo negro.

A isso se acresce o sentimento de disputa com os irmãos (quando esses existem):

pais que estão bem longe de serem ideais, e que ainda, por vezes, dividem o mínimo

que poderiam lhe dar com outros filhos.

156 Freud, S. (1969:246).

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É assim que, para a criança negra, o mecanismo de atribuir aos pais a condição

de falsos pais, pela fantasia de que fora adotada, se dá como conseqüência de uma

dupla frustração: não podem ser verdadeiramente meus esses pais que não me amam

como deveriam, porque dão o amor que a mim caberia a outros e também porque

impuseram, a mim, uma condição insuportável: ser negro.

Essa é a gênese da separação da criança negra de seus pais: o próprio romance

familiar, período de fantasias, de devaneios, e de retificação da dura realidade da

discriminação que aparece como infligida a ela, em princípio, pelos próprios pais,

estruturando, para a criança negra, o mito de que a condição do branco é superior à

sua. O mito da brancura nasce nessa fase onde a capacidade de exagerar os fatos ou

personagens reais é remarcável. São ideais ou representações fantasísticas, mas que

aparecem para a criança negra como reais.

Representações da brancura enquanto mito, idealizações simplificadas do que é

ser branco, ilusórias, sem dúvida, mas que passam a representar um significado que

passará a ter decisivo papel em seu comportamento.

A criança negra começa por ir mais além do desejo de querer ser branca; passa a

tentar se assemelhar ao branco no vestir, no cabelo, etc. Desde que ser branco, para a

criança negra, se constitui como um mito, ela passa a viver a ilusão da imagem da

perfeição absoluta, a utopia da brancura.

Nesse contexto fantasioso, os pais negros são substituídos pelos brancos; eles,

que já não tinham um lugar muito seguro de estima, serão trocados por outros que não

só têm uma posição social, na maioria das vezes, superior à dos pais negros, mas

representam o que elas e seus pais gostariam de ser. Instaura-se aqui a inveja do

branco, como aquele que detém algo que lhe falta: a brancura.

A criança negra, ao amadurecer mais, se dá conta dos determinantes familiares,

ou seja, da estrutura de família e de sua história.

Na maioria das vezes, ela desconhece o pai, quando não foi abandonada pelo pai

e pela mãe. Isto a coloca no limite do que a discriminação, que ela já pressentiu,

representa enquanto isolamento. Mas, supondo que ela tenha mãe, como para qualquer

outra criança, nessa fase os processos sexuais se fazem evidentes. Mas, para ela, as

fantasias sexuais com a mãe e o desejo de exclusividade vão estar comprometidos por

essa mãe que, ao exibir o corpo negro, remete ao que ela, a essa altura, já aprendeu a

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O negro, contrariamente ao imigrante, que fez uma “escolha” de buscar uma

nova oportunidade de trabalho a fim de prosperar numa terra distante, foi capturado,

aprisionado, estrategicamente animalizado pelo traficante que o colocava em

condições de perda de identidade.

Expatriado, sem referências pessoais, apartado de sua língua e alheio aos

costumes locais, via-se despossuído de sua humanização que somente as estruturas do

sistema cultural garantem.

No novo ambiente sócio-cultural em que aportou, o negro era visto como um bem

pessoal de seu senhor, podendo ser alugado, penhorado, vendido, hipotecado: era

comparável aos animais e objetos: 

Entendido como uma propriedade, uma peça ou coisa, o escravo perdia

a sua origem e sua personalidade para se transformar em um servus non habet personam: um sujeito sem corpo, antepassados, nomes, ou bens próprios.

Como nos diz Schwarcz, sem nome: o nome que lhe era dado não era

reconhecido enquanto tal pelo senhor que antes o desnomeara: ao receber o nome do

senhor, isso não significava, para o negro, a pertença a uma linhagem, mas

simplesmente a identificação da sua pertença, enquanto objeto, ao senhor.

Portanto, o nome que o negro recebeu, não representava o vínculo familiar, mas a

condição de ser posse de outrem: não era um nome, era uma marca.

A única memória da saga familiar que resta para o negro é a que se inicia após a

diáspora, isto é, a partir da escravidão. Ele perdeu sua origem histórica, seu nascimento

se dá na diáspora, um nascimento do qual ele surge despossuído do próprio nome e da

própria linhagem.

Após a diáspora, a história da construção da família negra é confusa; uma vez

tratados como peça, coisa, eram marcados com ferro em brasa, como animais para

serem identificados. Excluídos da condição de sujeitos sociais, não poderiam constituir

família: os negros se acasalavam, tinham crias que eram vendidas; a propósito, havia

negros ditos reprodutores, cuja função era procriar para a venda.

Assim, o acesso do negro às instituições e instâncias sociais foi sempre tardio.

Isso implicou a construção mais lenta, para as populações negras, de certos padrões

sociais, por exemplo, o casamento.

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O homem negro não tinha uma mulher, mas sim uma fêmea, que poderia

inclusive ser usada pelo senhor. Isto colocava o homem negro na condição de não

poder criar vínculos com uma mulher a fim de formar com ela uma linhagem,

descendentes. Isto dificultou a construção de um sentimento de pertencimento a uma

linhagem, fator determinante no processo de identificação.

5.3 A Condição de Negro como Falta

Como vimos no Capítulo III a dimensão da falta é constitutiva da estrutura

psíquica. O sujeito, para a psicanálise, é marcado pela incompletude, é não-todo,

porque clivado pela divisão psíquica que o constitui e assujeitado à exterioridade do

sistema simbólico. A falta, por outro lado, é inseparável do desejo: porque atravessado

pela falta, o sujeito é sujeito de desejo.

A dimensão da falta produz, para o sujeito, o objeto: o objeto representa aquilo

que falta, aquilo que, se o sujeito o possuísse, poderia obturar a falta. Assim, ao longo

da existência, o sujeito, movido pelo desejo, buscará sempre, na dimensão do objeto a,

o ideal da completude que lhe é, constitutivamente, impossível.

Lacan propôs estabelecer algumas distinções no que respeita à noção de falta. a

falta se manifesta, para o sujeito, sob três formas específicas: a castração, a frustração

e a privação. Em cada um dos três casos, há uma diferença quanto à natureza da falta e

ao caráter do objeto. 157 

Os três tipos de falta vão se manifestar no processo de constituição da estrutura

psíquica numa dialética em que a criança se confronta com a falta sob a figura da

frustração e da privação, num primeiro momento, para encontrar, num terceiro

momento, a falta enquanto castração. Embora haja, nessa dialética

frustração/privação/castração uma dinâmica constitutiva da estrutura psíquica, as três

diferentes figuras da falta vão também se manifestar, ao longo da existência, nasvivências do adulto.

A frustração se define como a falta imaginária de um objeto real. É nesse sentido

que, diz Lacan, a intervenção paterna confronta a criança com a ausência da mãe, o que

é vivido por ela:

157 Dor, J. (1985:83).

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Como uma frustração, ato imaginário que se refere a um objeto bastantereal, a mãe enquanto objeto da necessidade da criança.158 

Já a privação se caracteriza pela falta real de um objeto simbólico. É assim que,

para a criança, a intervenção paterna representa também a figura da privação, pois, para

ela, “(...) o pai, pura e simplesmente, intervém como privador da mãe (...)”159.

Tudo se passa, para a criança, como se o pai privasse, isto é, impingisse uma

falta real à mãe, na medida em que a obriga a se apartar do bebê, que corresponderia ao

objeto de desejo da mãe e, nesse sentido, a um objeto simbólico.

É num terceiro momento que a criança se confrontará com a falta enquanto

castração, que se define como a falta simbólica de um objeto imaginário.

A castração não designa a mutilação dos órgãos sexuais masculinos, mas uma

experiência psíquica inconsciente vivida pelas crianças em torno dos cinco anos de

idade. Essa experiência pontua o fato de que, pela primeira vez, a criança reconhece,

ainda que dentro de um quadro de grande angústia, a diferença anatômica entre os

sexos. Até o momento em que se desencadeia o processo de castração a criança se via

numa ilusão onipotente, onde o pênis, tanto para o menino como para a menina, é visto

como um atributo universal; o menino imagina que o pênis lhe permitirá concretizar

todos os seus desejos sexuais em relação à mãe, mas acaba por aceitar que o mundo se

compõe de homens e mulheres e que o seu corpo tem limites.

O menino se vê, portanto, tendo que aceitar a lei de proibição, imposta pelo pai,

para salvar o seu pênis (ameaças dos adultos aos meninos pequenos, de que perderão

seus pênis caso os manipulem), renunciando à mãe como uma parceira sexual.

Com o reconhecimento da lei paterna e a renúncia à mãe, tem fim o amor

Edipiano. A crise causada por todo esse processo é estruturante, porque o menino se

torna capaz de assumir sua falta e seu próprio limite.

Na menina, a experiência da castração é diferente, apesar de apresentar doispontos em comum com a do menino. O ponto de partida, para ambos, é o mesmo:

ambos atribuem a todos os seres humanos um pênis. O segundo ponto comum é a

importância da mãe; a diferença, nesse ponto, se dá ao nível da separação: o menino se

158 Lacan, J. Les formations de l’inconscient, citado em Dor, J. (1985:85).159 Lacan, J. Les formations de l’inconscient, citado em Dor, J. (1985:85).

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separa com angústia da perda do pênis e a menina com ódio, pela descoberta de que a

mãe é castrada.

Se no menino o complexo de castração termina com a renúncia ao amor pela

mãe, na menina abre-se o caminho para o amor edipiano pelo pai. No menino, o Édipo

termina com a castração; na menina, a castração possibilita a introdução no Édipo.

O principal ponto do complexo de castração, seja ele pontuado pela angústia ou

pelo ódio é a separação entre a criança e a mãe. O complexo de castração, portanto, faz

parte da evolução sexual infantil, uma experiência inconsciente que se repete ao longo

da vida, em que os sujeitos, ainda que ao preço da dor, acabam por admitir que há

limites para a realização do desejo.

Assim, quando se diz que, na castração, estamos diante da falta simbólica de um

objeto imaginário é porque aquilo que falta, na castração, é o falo enquanto

representação da ausência de limites na realização do desejo. Mas, tal possibilidade de

ausência de limites é imaginária, não existe enquanto tal: ninguém, na verdade, é

portador do falo. Desse ponto de vista, trata-se de um objeto imaginário. Mas, a falta

de tal objeto imaginário tem um caráter simbólico, na medida em que seu efeito é

inscrever o sujeito na dimensão simbólica da formação social.

É a partir dessa dimensão da falta que as concepções lacanianas põem em jogo

que proponho considerar o modo como o negro vivencia sua condição de negro. Vimos,na seção anterior, no que respeita à figura do romance familiar, de que modo os

sentidos associados à condição de negro são elaborados pela criança nesse momento de

separação da posição anterior de adesão irrestrita às figuras do pai e da mãe. Nesse

processo em que, como ensina Freud, a criança naturalmente vai experimentar

sentimentos de desqualificação dos pais, para a criança negra tal desqualificação se

define, necessariamente, como a desqualificação da condição de negros de seus pais.

Quanto ao fato — aparentemente contraditório — de que ela, criança, é também

negra, vimos, no capítulo anterior, o modo como a criança negra se vê confrontada,

desde a fase do espelho, com a experiência dupla de introjeção do ideal da brancura,

enquanto objeto de desejo da mãe e com a constatação, de caráter dissociante para a

criança, de não corresponder a esse objeto de desejo.

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É em função de todas as considerações até aqui levantadas em relação às

experiências psíquicas associadas à condição de negro que proponho pensar que tal

condição é vivida, pelos negros, sob essa figura particular da falta que é a privação.

Como observamos anteriormente, há algo que se pode denominar as experiências

fundadoras de frustração, privação e castração, enquanto movimentos constitutivos do

processo edipiano e, enquanto tal, estruturantes da psique. Mas observamos também

que, ao longo da existência, o sujeito, que necessariamente convive com a falta, irá

experimentá-la sob configurações variadas que corresponderão às formas de frustração,

da privação e da castração.

Sem dúvida, a castração corresponderia à forma mais “elaborada” da falta, na

medida em que, aqui, nem a falta nem o objeto são da ordem do real. Mesmo assim,

muitas das experiências de falta do adulto são vividas no plano da frustração (fracassode um projeto, por exemplo) ou privação (perda de um ente querido, por exemplo).

Ora, o negro, para além de inúmeras experiências de confronto com a falta que,

como qualquer sujeito, vivencia, carrega ininterruptamente a experiência de viver sua

condição de negro como falta: falta da brancura.

A condição de existência do negro se define a partir da noção de não ser branco,

ser negro é não ser branco; ser branco, e tudo quanto possa representar essa condição é,

portanto, o objeto do desejo: aquilo que falta.Ser branco é a condição que conteria a possibilidade da não rejeição do olhar do

outro e, portanto a possibilidade de se ver, no outro, reconhecido como igual.

Mas, ser branco é um diferencial representado pela cor da pele, um real palpável,

um “corpo branco”.

“Ser branco”, tanto quanto “ser negro”, para além da tonalidade que reveste o

corpo dos seres humanos, representam “valores”, significados. Para além do branco,

está a brancura, e tudo quanto esta condição de branco “simbolicamente” representapara o negro.

Assim, se a brancura, o objeto que falta, para o negro, é um objeto simbólico, sua

falta é real, porque se manifesta como algo que falta no próprio corpo, uma parte, um

pedaço.

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A brancura, portanto, é o objeto buscado pelos negros em seu processo de

privação, é o objeto simbólico.

A brancura é um desejo materno, uma condição imaginária, que vai se juntar a

duas condições simbólicas: a cor da pele (zona erógena), e a relação do sujeito com a

mãe, que mantém a dupla demanda do desejo de brancura, condições que fazem

emergir a cor da pele como “objeto”.

A tentativa de realização desse desejo materno de brancura é que mantém o negro

enquanto sujeito no gozo; como todo sujeito, o negro está excluído do gozo, isto é, ele

não sabe porque deseja a brancura.

Como já vimos, nosso desejo se mantém diante do desejo do outro, é o desejo da

mãe que o negro tenta manter, o desejo da brancura.

Quando o limite do corpo real negro simboliza essa impossibilidade, a saída, no

imediato, são experiências que vão da mutilação ao processo de branqueamento do

corpo físico. Qualquer possibilidade de adaptação do corpo, de forma harmônica, é

drasticamente quebrada pela realização no concreto do desejo materno, quebrando,

assim, o equilíbrio psíquico. Como a brancura não pertence nem à mãe e nem ao filho,

só pode existir a baixa-estima e a negação da condição de negro, porque o grande

Outro, o espelho em que o negro vai se mirar pela primeira vez, também o nega.

O desejo de brancura persiste, ainda que de modo contraditório e ambivalente,apesar da dor pela consciência de não preencher o que, imaginariamente, responde ao

requisito básico da “brancura”.

É assim que a cor da pele passa a ser um objeto da realidade psíquica.

Imaginariamente o negro se vê e deseja ser o branco que jamais será, pois onde essa

brancura deveria se fazer visualizar, está a cor negra, uma pele negra, marcada por tudo

o que ela representa, um significante que recorta e inscreve, por contraste, o objeto

simbólico do desejo do negro: a brancura; contrariando a condição do objeto simbólico

do desejo, ser negro é a não condição de toda ordem, um real marcado pela falta do

objeto simbólico.

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Capítulo  VI 

Estudos de Casos

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O  sintoma nos informa de algo que não sabíamos a nosso respeito; à parte o

sofrimento que nos causa, pode, no contexto de nossa história, funcionar como algo

revelador. Por outro lado, invariavelmente, os sintomas dos pacientes nos implicam, a

nós, os analistas. Quando nos fala de seu sofrimento o paciente nos faz participante

dele, estabelecendo o que chamamos de transferência analítica. Segundo Lacan, o

paciente supõe que o analista sabe algo ao seu respeito que ele próprio desconhece; e,

mais do que isso, que está na origem e causa de qualquer coisa que lhe venha a

acontecer: é o que Lacan denominou o sujeito suposto saber.

Pensar a questão analítica, quando se fala de negros, não exclui as questões

sociais, econômicas, políticas e culturais que estão na raiz da categoria “negro”,

enquanto produto de uma sociedade hegemonicamente branca, em que tal categoria sepõe em relação de contraste com a categoria “branco”. Mas, na medida em que esse

contraste se sustenta no eixo inferioridade x superioridade, é possível indagar sobre o

modo como se dá, para o negro, enquanto sujeito, a vivência desse processo.

O negro é atravessado pelas construções desse imaginário centrado na

inferioridade do negro, que têm como efeito, para ele, desde o auto-desprezo até à

autodegradação, por colocarem em cheque sua inteligência, beleza e potencial. O negro

se vê, muitas vezes, paralisado e aprisionado nesse lugar imaginário, o que faz com que

padeça de uma necessidade constante de aprovação por parte dos brancos com quem

convive, de um medo contínuo de gestos de racismo que possam vir daqueles brancos

em relação a quem ele não é um igual.

No entanto, quando decido investigar as formas pelas quais os sentidos de que o

corpo negro é investido aparecem na clínica, me vejo diante de um impasse: teria eu

condições de refletir sobre questões que me falam tão de perto, com o distanciamento

necessário para entender que processo é esse que se dá numa relação analítica, paciente

negro — analista negra ou paciente não negro — analista negra, quando se é, ao

mesmo tempo, analista e negra?

No limite, permanece o medo de romper a tênue linha da sensibilidade de ser

humano e me expor personagem de meu próprio drama pessoal, perdendo de vista a

sensibilidade do analista que trabalha com os sintomas que falam do paciente, mas

também dele, que escuta.

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Em psicanálise nunca falamos de corpo físico, mas do corpo que fala e do corpo

sexual. No entanto, percebo que meu corpo físico, que é investido de um significante

peculiar, a cor negra, funciona como um evocador de significações; uma expressão, um

sentimento não controlável pelos que me procuram, um significante que se liga a outros

significantes. No setting, a anulação da presença do meu corpo negro nunca acontece,ao contrário do que ocorre fora do setting. Isto é, embora seja a minha cor um fator de

imediata percepção do paciente que me procura, seja qual for a reação esboçada pelo

paciente, ela sempre será entendida dentro dos parâmetros analíticos, nunca como uma

agressão à minha pessoa, mas antes como uma forma de expressão de seus fantasmas.

Os pacientes que me procuram vêm por indicação de outros profissionais ou

analistas que me conhecem; eles não sabem da minha cor, e estão sob a influência de

quem os indicou, computando a minha eficiência enquanto analista. Quando se

deparam com a minha presença física, acontece o inesperado. Relatarei, aqui, três

casos diferentes em que se pode verificar como essa presença física envolve

significações160. Não tenho a intenção de tecer considerações extensas a respeito do

modo como conduzi ou venho conduzindo tais casos, mas apenas circunscrever

algumas das formas em que o significante  “corpo negro”  se associa a outros

significantes. Num primeiro momento farei uma breve descrição de cada caso, seguida

de comentário e de uma tentativa de análise.

6.1 Caso nº 1

Uma senhora branca, que hoje é minha paciente, durante a primeira entrevista

demandava análise, a princípio, para seu filho de onze anos. Colocou sua queixa em

relação à criança: falava de um menino birrento, insatisfeito, extremamente apegado a

ela, embora fosse bom aluno; um menino que não tinha muitos amigos e que, diante dequalquer proposta, sempre dizia “não”; cedendo à insistência dela, acabava por gostar

do que lhe era proposto fazer. 

Tinha horror de vê-la sair, para trabalhar ou passear, sem a companhia dele. Ele

não conhecera o pai, que morrera quando ele tinha cinco meses. Guardava muitas

160  Para assegurar o sigilo sobre a identidade de meus pacientes, utilizo nomes fictícios.

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fotografias do pai em seu quarto, por quem nutria um amor muito grande. Dava muito

trabalho em casa, relutava para tomar banho, e quando brigava com ela, quebrava as

plantas da casa.

•  Senhora Santos: Fui casada durante quatro anos, minha relação era muito

difícil com o pai dele, mas quando ele nasceu tudo parecia um conto de fadas.

Um certo dia, depois de ter vindo almoçar em casa, saiu para o trabalho e

nunca mais voltou. Encontrei-o no necrotério. De lá para cá tenho saído

compulsivamente com muitos homens, e nunca encontrei um companheiro e não

me casei mais. 

Durante seu relato, essa senhora me olhava muito fixamente. Quando terminou,

perguntei-lhe quem ela achava que precisava de análise. Mostrou-se constrangida, se

levantou, me pediu para marcar outra entrevista; disse que, caso não pudesse vir, me

telefonaria.

No dia marcado para a entrevista, ela veio e, um pouco constrangida, me

cumprimentou e disse:

    Você me desculpe pelo outro dia, não pude deixar de me impressionar, você

era negra. 

Perguntei-lhe, então:

— Era negra? 

Respondeu-me:

     Me sinto envergonhada por ter pensado isso, não tem nada a ver com você,

eu é que tenho uma história negra, nos últimos tempos me comporto como

uma garota de programa. Penso que não falei para você o que me trouxe

aqui; meu filho sempre dorme na minha cama e há uns quinze dias acordei à

noite com ele se masturbando ao meu lado. Não é meu filho que precisa deanálise, sou eu. 

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Comentário:

É interessante observar como a verdadeira causa que trouxe a senhora Santos a

meu consultório — alguma coisa ligada à sexualidade de seu filho que a implicava —

só emergiu na segunda entrevista, desencadeada por uma associação, manifesta no

discurso da senhora Santos, a partir de minha condição de negra, que lhe causou uma

reação de estranhamento, espécie de recusa de minha presença, eu, enquanto negra,

naquele lugar de analista, quando da primeira entrevista. A senhora Santos menciona

esse fato, se desculpando e, imediatamente, quando diz “eu é que tenho uma história

negra”, marca, no próprio significante lingüístico, as relações que subjazem na sua

fala: eu, que sou branca, tenho uma história negra/de negra. Que história é essa? É oque ela significa em seguida, quando, assumindo que quem precisa de análise é ela,

estabelece um vínculo entre os comportamentos do filho e os dela, referidos na

entrevista anterior (sair compulsivamente com muitos homens): nesse sentido, a

“história negra”  aparece como povoada dos sentidos de desregramento e

permissividade sexual. Sentidos que estão vinculados ao significante “corpo negro” no

imaginário social.

Análise:

Evidentemente o que aconteceu por ocasião daquela primeira entrevista, foi a surpresa da

senhora Santos e seu estranhamento por se deparar com uma analista negra.

Ao falar da sua vergonha em não me aceitar como analista, porque essa é uma função,

em geral, não atribuída aos negros, a senhora Santos reproduz um princípio, de que é possível

 julgar a integridade de alguém pela sua aparência. Isto é, seria impossível que eu, uma negra,

pudesse ser uma analista, visto que os negros estão destinados a trabalhos geralmente braçais,

que não envolvam capacidade intelectual.

Seu constrangimento, no entanto, não era só em função de ter posto minha capacidade de

ser analista em jogo. Mas certamente, como ela mesma disse “tenho uma história negra”,

significa que ela associou ao significante cor negra o suposto desregramento e permissividade

sexuais, que teriam os negros no imaginário social.

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Isto é, o que até então era uma representação do imaginário social aparecia, agora,

também como sua, de si mesma, como se ela tivesse sido, de alguma forma, contaminada desse

significante que, até então, na sua fantasia, pertencia aos negros. Uma vez que, na condição de

branca, ela estaria livre de qualquer desequilíbrio dessa ordem, como se a condição de branca

pudesse lhe assegurar um equilíbrio do exercício de sua sexualidade.

Para encobrir a sua dificuldade com a sua própria história, ela coloca em xeque a

competência da analista negra.

No decorrer do processo analítico que, a despeito de suas hesitações iniciais, pode ser

levado adiante, a Sra. Santos revelou não só o seu receio de que pudesse vir a ser comparada

com essas representações do negro no imaginário social, mas também o medo de que viesse a

ser considerada sem qualificação pela sua conduta permissiva com relação ao filho em fase de

adolescência.

Apesar do que se colocou, a princípio, como um ponto de dificuldade, o significante

corpo negro da analista foi o que permitiu um gancho para elaborar a realidade de seu

desregramento e permissividade sexual, facilitando-lhe a entrada em análise.

6.2 Caso nº 2

A senhora Oliveira, de uma família de negros, procurou-me por indicação de um

médico pediatra, e marcou uma entrevista para ela e o marido, porque queriam falar a

respeito da filha: uma menina de seis anos com sérios problemas de relacionamento

com outras crianças, que não se adaptava à escola.

Quando chegaram, abri-lhes a porta, cumprimentei-os e me apresentei; não

obstante, me disseram:

    Queremos falar com a psicanalista! 

Respondi:

— Sou eu.

Se desculparam e foram embora. Dias depois a mãe telefonou e marcou nova

entrevista. De volta ao consultório, se desculpou, dizendo que havia ficado muito

confusa e começou seu relato:

     Minha filha é a primeira deste casamento, porque tenho um filho do primeiro

casamento, e outro menino dois anos mais novo. Mariana é uma criança

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difícil, insatisfeita, briguenta e com dificuldade de se relacionar com as

 pessoas (crianças e adultos).

Perguntei:

— Dificuldade de ser negra?

A senhora Oliveira fez uma pausa repentina como se tivesse levado um susto.

Continuou seu relato, dizendo:

     Não entendo porque Mariana não consegue se dar bem com os amigos, ela

está sempre limpinha, estuda no Colégio X, trabalho para dar-lhe um certo

conforto, compro as roupas da Pakalolo e, mesmo assim, não entendo porque

ela agride as amigas, é muito chorona. No recreio, na escola, não brinca com

as amiguinhas, sai correndo para encontrar o irmão; a professora achaestranho, porque eles se abraçam como se estivessem um longo tempo

separados, ficam todo o recreio juntos e brincam sozinhos.

Sei que temos dificuldades em casa, temos uma situação financeira estável,

meu marido é umbandista e freqüenta uma escola de samba. Eu não gosto,

digo a ele que isso é coisa de preto, sempre nos agredimos muito por isso.

 Mariana e os irmãos assistem a tudo. Essas coisas do meu marido não são

um bom exemplo para elas. 

Perguntei, então:

— A religião dos brancos é que é boa para eles?

A senhora Oliveira começou a chorar e disse:

    Você não sabe como é difícil ser negro, como a gente sofre quando não se

comporta como se deve, eu gostaria muito que Mariana...

Eu a interrompi e disse:

— Fosse uma menina branca?

    Tudo seria mais fácil.

Apesar da resistência da senhora Oliveira, ela trouxe Mariana para uma

avaliação, pois era uma exigência do colégio.

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Comentário:

Não tem sido fácil trabalhar com essa mãe o horror da negritude. É muito difícil

para Mariana ser o que ela não é, uma menina branca. Dizer a negros que eles são

negros não é tarefa fácil, a senhora Oliveira não reconhece, em Mariana, uma menina

negra. Projeta na filha seu desejo de brancura, a partir de sua vivência de que ser negro

é muito ruim, e que não é possível existir a não ser se pensando como branco. A

menina, é claro, se vê exposta a essa cisão, que expressa nos comportamentos

agressivos. Penso que o caso da senhora Oliveira e Mariana mostra uma das

manifestações daquilo que discuti anteriormente, relativamente à construção da

imagem do corpo no negro como marcada, desde a origem, pelo olhar da mãe onde a

recusa do corpo negro é significada. Na ludoterapia com Mariana, usei bonecos

representativos da família, ou seja, negros. Mariana não os aceitou de pronto, dizia queeram feios. Disse-lhe que eles eram iguais a ela e a mim, ao que ela me respondeu

meio hesitante: “Ah, bom, eles são bonitos”. Penso que não há outra forma, nesse

momento, senão mostrar-lhe o próprio corpo, como num espelho, buscando uma

identificação por imagem semelhante, na intenção de que ela possa ver sua própria

imagem de maneira menos destrutiva. Creio que posso significar, para Mariana, a

negra que ela não precisa ter medo de ser.

Análise: 

Desde o primeiro momento, minhas intervenções foram em função do que já

estava claro para mim: que uma das dificuldades que apresentava aquela senhora e, por

conseqüência, aquela família, era com relação ao fato de ser negra: o quanto era difícil

aceitar essa condição, mostrou-se no momento em que ela a viu representada em mim,

em espelho e no quanto isso foi aterrador, a ponto de que não foi possível para essa

mãe, no primeiro momento de nosso encontro, sequer prosseguir no processo normalde uma primeira entrevista, a fim de se desencadear a busca de uma queixa fonte da

possível causa do sofrimento que, via de regra, sabemos que não expressa o verdadeiro

problema.

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em relação a outras crianças ou, como último recurso, o choro, em que se expressa

como vítima impotente diante do invencível.

Não era possível, para Mariana, ter em seu pai um modelo de dignidade e força

do “ser negro”, pois ela assistia constantemente aos ataques de sua mãe contra seu pai,

 justamente por ele ser um negro minimamente identificado com suas raízes culturais.

Tudo quanto esse pai fazia era, segundo a mãe, “coisa de negro” e as “coisas de

negro” não eram boas. Sendo ela própria negra, era, portanto, o produto direto do mal.

Mariana encontra, portanto, uma dificuldade em transpor sua fase edipiana, visto

que esse pai é incansavelmente desvalorizado por essa mãe. Mariana não mostrava a

menor admiração pelo pai, cuja autoridade era questionada todo o tempo e, não raro,

com certa violência verbal e física.

Num momento posterior, a partir de uma intervenção minha, a Sra. Oliveira se

desestrutura: dá-se conta, nesse momento, de que seu discurso não lhe assegura a

“brancura” e, entre soluços, fala da dor de ser negra; mas parece guardar a ilusão de

que o comportamento (“como a gente sofre, quando não se comporta como se deve”)

pode vir a ser uma porta de acesso à brancura.

O seu desejo de que Mariana fosse uma menina branca se expressa em seu dizer

(“tudo seria mais fácil”). Frustrada no seu desejo de uma filha que não fosse “negra”,

a Sra. Oliveira protesta por Mariana não corresponder ao seu desejo de que ela aomenos, se engajasse nessa busca da “brancura”, como a própria mãe tem feito,

inscrevendo-se, num eterno processo de privação que não pode jamais ser elaborado de

uma falta que é, antes de tudo, simbólica, porque todo o seu esforço em tentar ser,

ideologicamente, um “ser branco” não a liberta do significante “corpo negro”.

Fica, para Mariana, a difícil tarefa de ter que se haver com a sua negritude.

Mariana relata, em algumas sessões, momentos de convivência com o pai, e de

como ela o vê como alguém desprovido de autoridade e, nesse sentido, como ocupandoo mesmo lugar que ela.

Nos poucos momentos em que sai com o pai que, escondido da mãe, a leva ao

samba, Mariana parece achar divertido e diz que o pai é bom sambista, mas que a mãe

diz sempre que samba é coisa de negro, e que quem gosta de pular é saci-pererê.

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Ela acrescenta, sinalizando aí uma experiência vivida como uma transgressão: “É

bom que minha mãe não saiba que fomos ao samba senão nós vamos apanhar”.

Tranqüilizo-a, dizendo que o espaço terapêutico pertence a ela e não à mãe dela.

Ao que me responde: “Que bom que você gosta de samba, você não tem cara de saci-

 pererê, e não é linguaruda”.

Difícil tem sido o caminho de Mariana para aceitar sua negritude; ainda que eu

possa ser uma imagem semelhante menos destrutiva, e até valorizada enquanto

profissional, não sou a sua mãe nem a sua família, que, no limite, são a base de sua

formação, enquanto sujeito.

6.3 Caso nº 3

Maíra é uma jovem de 25 anos, negra. Procurou análise em função de sua

dificuldade de ter amigos; dizia-se muito solitária, não tinha namorado e não conseguia

ter um bom relacionamento com sua família.

Trabalhava como secretária bilingüe, numa multinacional, e fazia pós-graduação

em administração de empresa.

Cresceu num bairro de classe média. Na escola onde estudara havia, além dela,

uma outra criança negra.

    Eu tinha vergonha de falar com ela, ela era negra. 

Respondi:

— Ela era a única negra?

    Eu não me sentia negra e fazia de tudo para não me lembrar disso, cresci

ouvindo minha avó falar que temos que casar com pessoas mais claras, para

clarear a família. Só me aceitei negra depois que entrei para a militância domovimento negro. 

Costumava dizer durante suas sessões que ela não tinha mais vergonha de ser

negra, mas que os negros eram mal vistos, porque eles não ajudavam muito, eram

vagabundos, não gostavam de trabalhar, andavam sujos e eram ignorantes.

    Os negros não podem ir para frente, eles não gostam de trabalhar. 

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Respondi:

— Você é vagabunda?

     Não, eu trabalho.

— Você pensa que é a única negra que trabalha?

     Não...

— Você conhece a história do seu povo?

     Já li algumas coisas, mas a verdade é que eu não gosto de ler coisas sobre a

escravidão, nunca prestava atenção na aula de história quando se tratava

disso, sentia meu rosto enrubescer.

Passado um ano de análise, Maíra mudara de emprego, conseguia se relacionar

melhor com as pessoas e dialogava melhor com a família.

Na nova empresa conheceu, durante uma recepção, um executivo estrangeiro que

estava temporariamente no Brasil.

Era um moço branco e, apesar de todo o seu medo, aos poucos se viu apaixonada

e teve início um namoro bem sucedido, que culminou com a decisão de casamento.

Maíra, porém, vivia presa de inúmeros receios: temia que o noivo pudesse se

queixar de seu cheiro, tomava vários banhos quando ia se encontrar com ele; embora o

noivo também falasse português, ela só conversava em inglês com ele; foi-lhe muito

difícil apresentá-lo à família, embora soubesse que a família aceitaria com alegria tal

casamento — pois tinha como lema o clareamento — e, da parte do noivo, nada havia

que pudesse indicar uma reação negativa perante sua família.

Quando o noivo escreveu para a família dele, no estrangeiro, comunicando sua

decisão de se casar e enviando fotografias da noiva, a família reagiu rapidamente,

dizendo-lhe que pensasse bem, que não moraria no Brasil definitivamente e que lheseria difícil viver com uma mulher negra em seu país de origem. Tal situação foi muito

difícil para Maíra, mas o noivo manteve a decisão, sem se deixar abalar pela reação da

família.

O casamento foi marcado, os preparativos estavam em curso quando Maíra

começou a emagrecer de modo surpreendente, tanto que o figurinista, após inúmeros

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ajustes, disse-lhe que não era mais possível ajustar o vestido de noiva, pois a

modelagem já estava prejudicada.

Aos prantos, Maíra diz:

     Não consigo parar de emagrecer, o que a família dele vai dizer?

Respondi:

— Me parece que não terão nada a dizer, pois até lá você já terá desaparecido;

agora, como você fará para sumir também com a sua família? Eles também

estarão lá, presentes, no casamento.

Maíra levou um choque e interrompeu seu choro. Uma semana depois, disse-me

que havia parado de emagrecer. Disse ainda que havia se dado conta de que não era

com a família do noivo que estava se casando, e que sabia que teria que se prepararpara uma guerra, que estava apenas começando.

Comentário:

Maíra era uma negra que, na verdade, não conseguia se perceber como tal, ainda

que às vezes aparecesse, em seu discurso, influenciado pela militância, como alguém

que aceitava sua condição de negra. Sua imagem de corpo era a de um corpo branco,produto do desejo de sua mãe que tentou, através das escolas e dos ambientes sociais

que lhe proporcionara, manter esse desejo que, por vezes, era verbalizado no discurso

familiar como busca de clareamento. Maíra sempre tivera muita vergonha de si,

vergonha que ela imaginava já ter ultrapassado, mas que, por ocasião dos preparativos

do casamento, emergiu, produzindo no real, sob a forma do emagrecimento intenso,

uma dos efeitos desencadeados pela vergonha de si, o desejo de desaparecer. Não se

dava conta de que, em seu discurso, havia dois planos paralelos e incongruentes: um

discurso de auto-aceitação enquanto negra, e um discurso pejorativo e de

desvalorização em relação aos negros e, portanto, em relação a si própria, uma garota

negra. Suas dificuldades de relacionamento com a família estavam ligadas ao fato de

que eles eram a presentificação do corpo negro, corpo negro que ela havia aprendido,

com eles próprios, que tinha que ser negado e esquecido.

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Análise:

Quando Maíra relata sua vergonha em falar com a única criança negra, além dela,

na escola onde estudara, evidencia-se toda a sua dificuldade em ser um negra.

Como ela mesma verbalizara, ela não se sentia negra, e tudo fazia para não se

lembrar disso.

Dizia que, a partir de sua militância no movimento negro, ela havia adquirido

uma consciência de ser negra, o movimento havia dado a ela a oportunidade de poder

se ver como cidadã, que deveria lutar pelos seus direitos, como qualquer outro cidadão.

O que Maíra não poderá compreender, pela mediação do movimento negro, é que

ela não havia superado o horror à sua própria negritude.

Não tinha amigos porque temia não ser “branca” o suficiente para bem se

relacionar, e não podia ter amigos negros porque “eles não ajudavam muito”, isto é,

não correspondiam minimamente aos seus requisitos de “brancura”. Visto que os

negros, como ela se referia aos seus iguais, eram, via de regra, sujos, vagabundos e

ignorantes.

Maíra crescera ouvindo de sua avó que era preciso se casar com pessoas mais

claras para clarear a família, isto é, no seu inconsciente esta afirmação assumiu a

conotação de um processo de “limpeza” necessário para que o negro se tornasse maisinteligente e trabalhador. Já que, como ela dizia “os negros não podem ir prá frente,

eles não gostam de trabalhar”.

Ao intervir, perguntando-lhe se ela era vagabunda, ela pareceu confusa, como se

eu houvesse apontado para ela uma conseqüência da sua condição de negra, da sua cor.

Após alguns segundos de reflexão, respondeu-me: “Não, eu trabalho”; como se

ela fosse uma exceção à regra de uma gente que não tem por hábito o trabalho.

Maíra, enquanto militante do movimento negro, fazia semblante de uma negracom propósitos politicamente corretos, mas não se mostrava muito à vontade diante da

história do seu povo; percebeu que tinha vergonha dessa história que conta os horrores

da escravização.

Não adquirira um senso crítico dessa história; além da vergonha, marcou-lhe o

desprezo pelo negro, pelo quanto era visto, e ainda hoje o é, como um ser inferior.

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A vergonha que Maíra imaginava fazer parte de uma longínqua aula de história

perdida na sua infância se mostrava presente em seu discurso, “Os negros não podem

ir prá frente, eles não gostam de trabalhar”.

Ao longo do processo analítico, Maíra parecia se dar conta do quanto ela repetia

valores que lhe foram passados via seu romance familiar, e de como ela os mantinha.

Costumava dizer-me que ficava envergonhada diante de tal consciência, mas

aliviada pelo fato de ter oportunidade de descobrir isso com uma negra.

Ao que eu respondia-lhe: “para lembrar-lhe de que você, também, é negra”.

Dizia-me: “Parece mais doido ouvir isso de uma negra, os brancos nunca dizem

nada disso, eles exigem que sejamos, no mínimo, parecidos com eles, para nos

respeitar, já falei pra minha mãe, pára com essa mania de ser branca, nós somos

negros e gente”.

Na ocasião, Maíra estava lendo o romance “Homem Invisível”, de Ralph Ellison,

e comentou: “provavelmente os brancos racistas ririam muito de mim se pudessem me

 perceber intimamente, veriam que eu saí exatamente como eles esperavam que todos os

negros fossem, com um horror a si mesmos.”

Maíra se repetia inúmeras vezes, “negro é gente”, como se não pudesse ter

garantia de ser um “ser humano”, como se o fantasma da história do seu povo, de ter

sido um dia “desumanizado”, sempre lhe rondasse.

Quando de sua mudança de emprego, conheceu um executivo estrangeiro com

quem começou a namorar, namoro que desencadeou uma longa história de sofrimento

psíquico e físico para ela.

Embora Maíra estivesse, há um tempo razoável, na tentativa de elaboração de sua

negritude, seu medo de ser uma negra permanecia enraizado.

Esse medo começou a aparecer quando, antes dos encontros marcados com o

namorado, se mostra muito ansiosa, dizia suar muito e ficar mal cheirosa. Começava

então um ritual interminável de higiene pessoal, repetidos banhos que pudessem limpá-

la de sua marca, a cor negra. Não conseguia falar português com ele, embora ele

demandasse dela que falasse português, porque ele poderia aprender melhor a língua do

país.

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Maíra se via numa situação onde sentia uma angústia ante a um perigo real, o de

que a família de seu noivo pudesse acabar com seu casamento, em função de ser ela

uma negra.

Já com todos os preparativos para o casamento correndo, há dois meses da

chegada da família do noivo, não havia o que pudesse diminuir o seu sofrimento,

embora o noivo fizesse repetidos esforços em assegurar-lhe que ele havia escolhido a

ela para se casar e que não se importava com o que pensava sua família.

Durante uma de suas sessões, desesperada, pois tinha problemas com seu vestido,

que não podia mais ser ajustado, chorando, dizia que não conseguia mais parar de

emagrecer, “o que a família dele diria a esse respeito?”

Ao que lhe respondi: “Me parece que não terão nada a dizer, pois até lá você já

terá desaparecido; agora, como você fará para sumir também com a sua família? Eles

também estarão lá, presentes no casamento”.

Era evidente que esse emagrecimento todo representava uma vontade

inconsciente de desaparecer, de “dar sumiço” em seu “corpo negro”.

Do que Maíra não se dera conta é que isso não garantiria também o

desaparecimento de sua família e, conseqüentemente, do povo negro como um todo.

Sempre haverá negros que irão lembrá-la de sua condição de negra.

O impacto da minha fala fez com que Maíra pudesse parar de chorar a pena que

tinha de si mesma, por ser uma negra, que teria que se fazer respeitar, a despeito da

história do seu povo e da sua história familiar.

Estava se casando com o noivo, era um processo complicado, era difícil não vê-lo

como um representante dessa família que a rejeitava, tinha claro que alguma coisa que

ela denominava como acima de suas forças começaria a partir do casamento, e disse:

“Sei que tenho que me preparar para uma guerra, que está apenas começando”.

Na guerra que Maíra começou a travar a partir do casamento, ela percebe que,

antes de poder vir a convencer quem quer que seja de sua integridade, era ela quem

precisava, acima de tudo, convencer-se a si mesma.

Seu processo de auto-estima, que lhe permitiria se ver como negra e, ao mesmo

tempo, íntegra, era algo a se consolidar; falava do medo de não dar conta disso, afinal,

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dizia, não teve tempo de fazer isso antes do casamento, teria que fazê-lo na situação de

casada.

Maíra se dá conta de que não se apaga o passado histórico do seu povo, que

imputa um peso a cada negro e que, por mais dolorida que essa história possa ser, para

ela, não é ignorando-a, negando-a pela via da negação de seu corpo negro, que ela iria

enfrentar todas as dificuldades que esse significante lhe trará, sempre.

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Considerações F inais 

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Nas escadarias do Lincolm Memorial, Washington, em 28 de agosto de 1963,

num dado trecho do seu famoso discurso, “Eu tenho um sonho!”, Martin Luther King

Jr. disse:

Eu tenho um sonho, de que meus quatro filhos um dia viverão em umanação em que não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo deseu caracter! Eu tenho um sonho hoje!”161 

Trinta anos após o assassinato do pastor Luther King, no dia 4 de abril de 1968,

importante líder negro na luta pelos direitos civis dos negros americanos e,

conseqüentemente, também para os negros de todas as nações, a força de sua

mensagem política em prol da convivência pacífica e igualitária e da cooperação entre

as pessoas de todas as raças não morreu no ideal de muitos, não só na sociedade

americana, mas em inúmeras outras, onde quer que a diáspora dos negros tenha

produzido um significativo contingente populacional, e mesmo na própria África negra,

quer em um função de uma experiência colonial que tenha inscrito, para os próprios

negros africanos, os significantes da dominação branca, quer em função de uma

vivência dessas significações culturais, “brancura” x “negritude” que, mesmo

independente da experiência da colonização, se colocam hoje para todos os países

africanos que se inscrevem (ou tentam se inscrever) como nações autônomas e

independentes.

No entanto, é triste constatar que o objetivo de Luther King, três décadas

passadas, está tão distante de se realizar, não importa onde.

Ainda que a qualidade de vida dos negros, sejam eles americanos ou outros,

tenha conhecido melhoras, continuamos, na média, mais pobres e com menos

possibilidades de acesso à educação e aos bens sociais do que o restante da população,

como mostram as pesquisas. 162 

Em alguns lugares do mundo, os negros têm conseguido ascender a postos que

lhe asseguram uma melhor condição de vida; isso, no entanto, não é uma regra.

No geral, a sua condição de trabalhador ainda é inferior à dos brancos como um

todo, seus rendimentos médios, mostram as pesquisas em vários países, ainda são

161  Luther King Jr., M. (1963:68).162 F.S.P., 04.04.98, “Situação social dos negros melhorou”. 

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inferiores aos dos brancos. Não existe ainda uma representação política dos negros que

os represente enquanto membros de uma determinada classe ou, talvez, enquanto um

grupo, um segmento social que se auto-represente enquanto tal.

Imersos em tentativas de ações políticas que possam minimizar as diferenças que

sofrem, os negros, especialmente os americanos que, efetivamente, engajaram-se na

luta envolvendo as chamadas ações afirmativas, desde os anos 70. No entanto, na

atualidade as ditas ações afirmativas estão sendo questionadas, por negros e brancos,

nos Estados Unidos, ou mesmo em outros lugares, em função de pesquisas que

apontam que, infelizmente, os lugares onde as ações afirmativas acabaram, as

participações dos negros caíram em grande porcentagem.

Divididos entre a necessidade de políticas como essa de ações afirmativas, em

função da necessidade de garantir, para a população negra, alguns canais de acessosocial, os negros são confrontados, por outro lado, com a crítica de estarem

promovendo um racismo às avessas. Por outro lado, quando se constata que tais saídas

institucionais parecem não serem suficientes para garantir um novo quadro social, o

quê fazer?

São questões complexas que trazem em seu âmago a questão da igualdade versus

a diferença.

A propósito dessa discussão Carone chama a atenção para o fato de que aafirmação da igualdade como um princípio básico formal da democracia, em que todos,

teoricamente, seriam iguais em direitos e obrigações, postos em termos constitucionais

funciona apenas como uma peça de retórica, isto é, não funciona, porque:

 A igualdade é considerada um princípio  formal da democracia, o queeqüivale a dizer que todos são iguais em direitos e obrigações em termosconstitucionais. No entanto, o seu caráter formal (não-substantivo)significa que a democracia deixa em aberto e não decidido o problemada estrutura concreta da sociedade (...) 163 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Assembléia

Geral das Nações Unidas, rejeita as práticas de discriminação e exclusão por origem,

raça, etnia, sexo, idade, credo religioso, convicção política ou orientação sexual e se

põe como um texto de lei que proíbe essas práticas discriminatórias, no qual se

163 Carone, I. (1998:174).

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reconhecem, simbolicamente, todas as nações signatárias. Mas tal gesto simbólico não

é capaz de garantir o fim da discriminação, que sobrevive nas construções imaginárias.

O negro, situado no vácuo entre duas culturas, a dominante e a sua, de origem

(mesmo que perdida, em termos de memória histórica — pelo menos parcialmente),

vê-se sempre desvalorizado, porque avaliado em termos de um padrão que pertence à

cultura dominante e, em função deste, classificado como inferior. O direito à diferença,

nesse sentido, não se pratica. A igualdade na diferença, pelas injunções sócio-culturais

que estão aquém dos registros jurídico-políticos, não se garante.

Viñar, citando estudos de Pierre Clastres com tribos indígenas sul-americanas,

aponta como os indígenas, ao se referirem aos membros de outras tribos, eram sempre

depreciativos nos termos. 164 

Viñar observa que Clastres denomina etnocentrismo esse fenômeno

... de uma xenofobia em que sociedades primitivas, porque ela nos tentaa propor origens precoces, talvez constitucionais ou genéticas, para oódio e para a rejeição das diferenças.165 

Esta afirmação aponta para a realidade da condição humana, que se mostra

preconceituosa por natureza, o que nos deveria colocar em alerta para a necessidade de

lutar para inscrever, simbolicamente, o respeito à diferença. Já que a tendência do ser

humano, ao se constituir como “si mesmo”, é não ser capaz de fazê-lo sem aeliminação, num gesto imaginário, daquilo que corresponderia ao outro.

Não podemos nos esquecer, no entanto, de que, para além da possibilidade de

caracteres constitucionais da condição humana que estão na gênese da recusa da

diferença, temos as representações ideológicas construídas para salvaguardar

 justamente valores instituídos, na medida em que tais valores corroboram interesses

determinados que podem se beneficiar daquelas representações que mapeiam o “eu” e

o “outro”, o “próximo” e o “distante”, o “desejável” e o “recusável”.

Atenta, e inexoravelmente afetada por tudo quanto diz respeito a essa questão,

pela minha condição de negra, tentei, com esse trabalho, construir uma reflexão em

torno de uma situação particularmente complexa, que é aquela vivenciada pelo negro.

164 Viñar, M. N. (1994:7).165 Viñar, M. N. (1994:7).

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Inúmeros trabalhos têm contribuído para lançar luz sobre a condição do negro,

seja pelas investigações historiográficas que dão conta da gênese e institucionalização

da condição de escravo, da origem das representações imaginárias ligadas à figura do

“negro” e, por contraste, à construção do ideal da “brancura”, seja por aqueles

estudos que, debruçando-se sobre a situação atual da população negra, procuramexplicar tal situação em função dos determinantes históricos e das injunções culturais

que seriam os responsáveis por um certo lugar social que, na atualidade, identifica o

negro na sociedade.

Minha tentativa, neste trabalho, foi a de trazer uma contribuição de outra ordem

para esse campo. Enquanto psicanalista, me propus explorar o modo como a realidade

sócio-histórico-cultural do racismo e da discriminação se inscreve, na psique do negro.

Isto é, debrucei-me sobre a questão de como se dá, para o negro, esse processo de se

constituir enquanto sujeito, na medida em que é afetado, desde sempre, por tais

sentidos. Enquanto psicanalista e, particularmente enquanto negra, minha escuta

sempre foi posta nessa direção.

Parece que as estruturas de poder e dominação não são alheias às psicanálises

praticadas nos consultórios.

A literatura de que lancei mão para a realização desse trabalho é tão heterogênea

quanto a natureza da questão que me propus e foi necessário lançar mão de construções

teóricas advindas de diferentes campos para poder circunscrever o objeto que me

propus investigar.

Penso que a contribuição deste estudo não é a de servir de argumento contra a

ação política dos negros, mas antes a de alertar para o fato de que tal ação política pode

vir a ser comprometida e limitada pela falta de consciência, da parte dos negros, do

processo de formação, em sua própria psique, das representações imaginárias e

simbólicas do corpo negro.

A ação política pode vir a fracassar, por exemplo, pela sobrevivência,

inconsciente, do mito da brancura nas próprias formas em que ela, a ação política, se

expressa.

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R eferências

Bibliográficas 

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