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Sozinha - Tony Medeiros

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O Anjo e a Lua 

1 – A PEQUENA ISABEL 

Era lua cheia de uma noite de verão.O céu estava estrelado e Isabel observava a lua com seu telescópio,

como fazia todas as noites.

Da janela de seu quarto, ela passava horas observando o céu e os astros que

tanto a fascinavam.

A magia da lua a encantava. De todos os astros, a lua era o que mexia com

seu doce espírito com maior intensidade. Havia algum tipo de vida naquela

luz prateada, pensava ela. Apesar de já entender que o belo satélite não erahabitado, naquele brilho lhe chamava à vida.

O brilho da lua cheia lhe refletia nos olhos claros, inocentes, fazendo

dourar seus cabelos loiros e seu quarto escuro.

Isabel não era uma garota como outra qualquer.

Filha de um casal com estabilidade social e fortes princípios morais, vivera

seus primeiros 8 anos de vida num regime disciplinar sólido, porém não

repressor ou autoritário.Possuía uma personalidade extrovertida e alegre como nenhuma outra

garota de sua idade. Enxergava o mundo de forma singular e até certo

ponto madura, discernindo com facilidade o que lhe faria bem e o que lhe

traria o mal. Isabel estava sempre buscando o bem, a luz e a felicidade, sua

e dos que a cercavam.

Não poucas foram as vezes em que fora excluída do círculo de amigas, que

viam nela uma garota diferente, muito carinhosa e sincera; sincera mais do

que as regras que seus pequenos mundos vazios de intrigas e vaidades

permitiam.

Sua ingenuidade lhe custara muito nesse pequeno mundo, mas seu espírito

vivia à frente de seu tempo a ponto de não guardar as lembranças ásperas

que alguns momentos causavam.

Isabel aprendera a ser sozinha, mas isso não a incomodava e muito menosatrapalhava sua forma de ver a vida.

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Não se podia dizer que Isabel era introvertida ou tímida – excetuando a

dose de introversão e timidez típica das meninas de sua idade – mas

notava-se no seu comportamento uma personalidade independente e

satisfeita com os pequenos e grandes prazeres que a vida lhe

proporcionava.A porta se abriu e a mãe de Isabel entrou no quarto para colocar a menina

para dormir, como fazia todas as noites.

A mãe de Isabel era uma jovem senhora meiga e simpática. Estava trajando

seu hobby de cor branca e com seus cabelos loiros presos pra trás.

Apesar de não aprovar as atividades noturnas da filha, que sempre

ultrapassavam os limites de horário, ficava admirada pelo comportamento

tão autêntico da menina.“De novo nesse telescópio, Isabel...?” – falou a mãe da menina num tom de

repreensão, mas sem arrogância.

Ela se aproximou da filha por trás e a envolveu com seus braços. Pôs-se a

observar a lua e o céu com a filha.

Após alguns instantes observando os astros e satisfeita pela filha se

interessar por coisas menos fúteis que as demais crianças de sua idade,

disse:

“Já passam das onze horas, mocinha. Amanhã cedo você tem aula... vamos

dormir.” – fechou os vidros da janela enquanto a filha foi para cama e se

enfiou sob os lençóis.

A luz da lua continuava iluminando o quarto e os olhos claros da menina.

A mãe de Isabel se sentou na cama e acariciava seu rosto rosado.

“Você é o maior presente que Deus me deu, sabia?” – disse ela emocionada.A menina sorriu e inocentemente perguntou pra mãe:

“Por que a lua parece que tá tão triste, mãe?”

A mulher pensou um pouco e perguntou de volta, curiosa:

“De onde você tirou essa ideia de que a lua está triste, meu anjo?”

“Hmmm, não sei. Ela parece que tá triste.” – deu de ombros a menina.

“Hmmm. Eu não acho que ela esteja triste. Acho que ela está feliz por saber

que tem uma admiradora tão gentil e ‘boózinha’ como você.” – respondeuda maneira mais lógica que conseguira concluir.

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Tocou com o indicador no nariz de Isabel que sorriu, mas não se satisfez

com a resposta.

“O Ariel disse que a lua é um presente de Deus pros homens.”

A mãe da garota mudou o semblante nesse momento, pois não lhe agradava

saber que a filha mantinha amizade com um desconhecido.“Nós já conversamos sobre você falar com estranhos, não foi, Isabel?” –

repreendeu a menina.

“Ele não é estranho mãe; eu já falei que ele trabalha na escola.” – explicou

ingenuamente a garota.

“Sim. Mas prefiro que mantenha amizade só com crianças de sua idade,

tudo bem?” – a mãe rebateu, irredutível.

“Tá bom, mamãe. Ele viajou mesmo...” – consentiu a menina.Sua mãe lhe deu um beijo na testa.

“Dorme com Deus, filha...” – disse ajeitando os lençóis.

A bela senhora estava saindo quando a menina voltou a insistir:

“Mamãe, tem certeza que a lua não tá triste?”

“Isabel!” – replicou a mãe, em função do horário e de sua insistência.

Isabel cobriu a cabeça com o lençol para se esconder da mãe.

A mãe observou a filha mais uma vez, sorriu e fechou a porta com cuidado.

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2 – O ANJO

Isabel não era apenas uma alma iluminada, era uma criatura

escolhida pelo Criador para um plano especial na vida de todos os que

passaram por ela e para todos os que ainda passariam por sua vida.

Isabel era amada pelos seres do céu e amada com o primeiro amor. O

amor sem manchas. O amor único por uma criatura única.

Seu espírito vivia entre os dois mundos que regem a humanidade: o mundo

terreno e o mundo espiritual. O mundo invisível que sabemos existir, mas

que o tempo apaga de nossos corações, deixando apenas as tênues emoçõespassageiras nas poucas vezes que temos tempo para lembrarmos dele e o

mundo que chamamos de real, verdadeiro que oferece diversas

alternativas para afogarmos nossas almas em refúgios temporários com o

objetivo inconsciente de não permitirmo-nos questionar sobre as forças

que regem a vida e as direcionam, entregando assim todas as infinitas

nuances do nosso caminho, ao mero fato de existir uma força aleatória,

irresponsável e injusta, chamada sorte, norteando o caminho de todos.Isabel enxergava e vivia o outro mundo. O mundo onde as coisas realmente

acontecem, e passam a refletir neste outro mundo, o real.

Nesse mundo habitava um ser sobrenatural. Um ser quer fora incumbido

por uma força maior de protegê-la:

“Ariel!”– exclamou a garota contente por ver o amigo de volta.

O anjo Ariel, que somente ela e as poucas pessoas semelhantes a ela,

podiam ver e ouvir, estava no jardim do colégio, no horário do intervalopara conversar com Isabel.

Ariel se abaixou para abraçar sua pequena amiga, sua missão maior, e ela

abraçou-o com força, matando a saudade que vinha sentindo desde que

Ariel partira em sua última viagem.

“Fiquei com saudades de você...” – disse ela olhando seu amigo bem de

perto.

Ariel sorriu e respondeu que também sentiu saudade dela.

“Onde você estava, Ariel?” – perguntou, alheia à realidade da vida dele.

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Ariel não podia revelar o conteúdo de suas tarefas celestiais, pensou um

pouco e respondeu:

“Hmmm... Estava viajando, resolvendo uns problemas do trabalho.”

Isabel, desconfiada, disse:

“Meu pai também viaja pra resolver problemas do trabalho, mas ele nãofica tanto tempo assim fora... E pra onde ele vai tem nome...”

Rindo da situação, ele respondeu:

“É que o meu Pai me manda resolver alguns problemas que às vezes são

muito complicados e por isso eu tenho que ir lá longe resolvê-los, meu

bem...”

A menina desistiu de interrogá-lo.

“Hmmm... Entendi. Mas que bom que você voltou.” – deu-lhe outro abraçoapertado.

Ele ficou em pé e ambos puseram-se a caminhar, um ao lado do outro, pelo

parque esverdeado do colégio, onde minutos atrás ela brincava entretida

com algumas amigas.

“E você... o que andou fazendo?” – perguntou Ariel, com o olhar no sol

radiante.

“Ah, nada de especial. Brincando, estudando...” – respondeu desatenta.

“Isso é especial, ora...” – disse ele sorridente.

“É, mas não tenho ninguém pra conversar como a gente conversa...” –

retrucou ela.

Ele sorriu, ainda olhando o sol.

Uma amiga de Isabel gritou, ao longe:

“Isabel, vem!”Do outro lado das árvores, a amiga de Isabel via sua colega sozinha,

caminhando sem rumo e conversando com o nada.

Isabel dispensou a garota com um aceno e a menina saiu correndo com as

outras.

“Você continua olhando a lua?” – perguntou Ariel.

“Sim... Quase todas as noites. Eu também olho as estrelas, o sol, e o mar,

quando papai me leva pra ver...”“É um ótimo passa-tempo olhar as coisas que Deus fez pra nós...” – disse

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Ariel.

Isabel parou de andar e olhando para Ariel, séria e com semblante

intrigante, perguntou:

“Ariel... alguém mora na Lua?”

Ariel observou-a com olhar sério, pois percebera que aquilo não erasomente uma pergunta vazia; existia um significado naquelas palavras.

Ele se abaixou e ela acompanhou-o com a cabeça, até ele ficar a sua frente

novamente.

“Morar, ninguém mora. Mas os anjos às vezes vão até lá...” – disse Ariel

colocando a mão em seu ombro e sorrindo.

Isabel ficou um minuto em silêncio.

Franzindo o rosto, perguntou:“Vão até lá? Fazer o quê?”

“Pensar... refletir... – fez uma pausa, receoso. – “...e às vezes, chorar...”

“Chorar?“ – perguntou ela com olhar de imensa curiosidade.

Ele balança a cabeça que sim, ainda sorrindo.

Ela fez uma pausa e perguntou:

“...chorar por causa das pessoas ‘maus’?”

Ele sorriu, maravilhado com a evolução daquele ser tão pequeno e sábio.

“Isso. Chorar por causa de tantas maldades que as pessoas fazem”. –

respondeu ele.

Ariel colocou a mão em sua cabeça.

“Mas esse não é o seu caso, não é mocinha?”

Ele ficou de pé e continuaram caminhando.

Depois de alguns instantes refletindo em silêncio, Isabel disse, temerosa:“Ariel, eu não quero ser mau...”

“Você não será, Isabel... Eu não vou deixar.” – prometeu o anjo com a mão

em seu ombro.

Eles sumiram no horizonte, conversando.

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3 – O TEMPO

Alguns anos se passaram e o coração de Isabel não mudou.

A menina de coração ingênuo para as maldades do mundo, continuou

existindo dentro daquela adolescente que exalava o perfume da

feminilidade adulta.

  Isabel vivia a vida de uma adolescente de 17 anos como qualquer

outra, porém o mundo espiritual continuava ao seu redor – com menor

frequência e intensidade – mas sempre a mantendo consciente de que algo

grandioso seria confiado a ela e seu espírito deveria continuar sendo

preparado – ainda que inconscientemente – para poder assumir essamissão e trazer a força maior para milhares de pessoas.

Ela ainda conversava com seu anjo, crendo se tratar apenas de um

grande amigo misterioso.

Sua alma se mantinha distante das coisas erradas e próxima de Deus e isso

mantinha seus olhos abertos e sua espírito lúcido para discernir entre as

coisas da luz e o caminho das trevas.

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4 – A ADOLESCÊNCIA

Toda a quarta Isabel corria no parque próximo à sua casa.

Sempre sozinha, pois não sentia falta de amizades e os pensamentos e

valores das pessoas que conhecia continuavam se distinguindo

profundamente dos seus.

Estava com o rosto molhado de suor e já estranhando seu amigo, Ariel,

estar demorando a aparecer.

Era típico dele aparecer nos momentos em que ela estava recolhida em

suas atividades ou quando estava triste com alguma coisa ou alguém.Desde criança foi assim; seu amigo aparecia do nada e conseguia deixar

nela uma semente de luz que logo germinava e florescia, dando frutos na

sua vida e na vida das pessoas que ela conhecia.

Algum tempo depois ele surgiu ao seu lado, correndo no mesmo ritmo.

“Oi...” – falou olhando pra ela.

Isabel sorriu sem tirar os olhos da pista.

“Oi...” – respondeu com o ar de riso de quem já estava acostumada a prevero futuro.

Apesar do sentimento de felicidade que ela sentia em ver Ariel novamente,

naquela manhã ela estava decidida a esclarecer algumas questões que a

incomodavam a respeito da vida de seu amigo misterioso.

“Parece que você me vigia mesmo, hein...?” – perguntou ela iniciando a

conversa.

Ariel respondeu irônico, sem olhar pra ela:“Hmmm... nem sempre...”

“Como foi a última viagem?” – insistiu Isabel.

“Não muito diferente das outras.” – respondeu ele num tom de voz neutro.

“Não tem nada de novo pra me contar?” – ela insistiu, esperando que ele

mesmo tomasse a iniciativa de explicar melhor no que consistia seu

trabalho e assim poupá-la de insistir em assuntos que ele sempre resistira.

“Não.” – respondeu ele, simplesmente.

Isabel parou de correr e olhou para Ariel com forte expressão de

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insatisfação.

“Mais uma viagem a trabalho: você vai sem data pra voltar, sem me falar o

destino, volta de repente e não tem novidade nenhuma pra me contar."

"Você apenas viaja, volta e diz que está tudo bem.” – disse ela em tom de

voz cansativo, como se estivesse lendo uma lista de erros.Ele ficou imóvel, inexpressivo, olhando a garota.

“É sério, Ariel. Você não trabalha mais na escola, não é? Isso você me falou.

Mas você nunca disse o que tá fazendo agora... e nem como sempre sabe

onde estou... ou descobre algumas coisas tão pessoais a meu respeito.”

Ariel aguardou alguns instantes até que ela se acalmasse.

“Há alguns anos isso não era tão importante.” – falou num tom de

autoridade e lucidez típico de um ser celeste.“Mas agora é.” – respondeu ela, tentando se explicar logo em seguida.

“...minha família nunca me cobrou nada; acho que papai e mamãe nem

lembram de você; mas eu me sinto estranha em confiar tanto em alguém

que quase não me fala de sua vida pessoal.”

“Eu confio em você e me sinto ótima em ter sua amizade, mas eu preciso

saber mais de você.” – olhou pro lado, estendendo o braço em atitude de

alívio por ter finalmente lhe questionado – “e você sabe tudo da minha

vida! Isso é estranho pra mim".

Ariel tocou no rosto de Isabel que se assustou e olhando para ela,

perguntou seriamente:

“Isabel... eu te decepcionei alguma vez durante esses anos?”

Isabel, olhando para baixo, arrependida respondeu:

“Não... ao contrário, você é a única pessoa que não me decepcionou...”Ele, ainda segurando seu rosto, falou com docilidade:

“Quando você era criança, essas coisas eram detalhes que não impediam o

mais importante:”

“...a nossa amizade.” – ambos disseram juntos, sorrindo, confirmando o

pacto silencioso que fizeram há anos atrás.

Mais um instante de indecisão e ela sorrindo olhou pra baixo de novo,

envergonhada.Ariel a confortou:

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“Não se preocupe. Não vou te decepcionar. Mantenha seu coração como o

da pequena Isabel dos anos que se passaram.”

“Me desculpa...” – disse Isabel com a mão na boca.

Eles voltaram a caminhar.

A voz de seu coração ainda tinha de ser atendida. Isabel insistiu uma últimavez, mas agora, muito mais interessada na vida de um grande amigo do que

a curiosidade banal que o receio provocava.

“Qual sua profissão...?” – perguntou ela.

Ele, olhando para o lado e para cima como se estivesse ensaiando o que ia

falar, respondeu:

“Ok... Meu trabalho é cuidar de pessoas.” – olhou pra ela em seguida.

Isabel, sorriu, surpresa:“Você é médico?”

“Não exatamente.” – ele respondeu. – “Cuido das pessoas em todos os

sentidos. Inclusive o que todos chamam de psicológicos.”

“Igual ao que você faz comigo?” – perguntou ela.

Ele confirmou com um sorriso e um sutil aceno com a cabeça.

“E as suas viagens são para cuidar das pessoas, certo?” – ainda curiosa.

“Sim. Nos mais diversos lugares.” – respondeu Ariel.

Ele parou de andar e eles ficaram de frente um para o outro.

Segurando nos braços de sua amiga, ele tentou falar um pouco mais de sua

vida, sem quebrar as regras dos céus.

“São muitas pessoas lá fora que precisam de ajuda. Elas não sabem o

caminho.” – ele disse com olhos de tristeza.

Sorrindo de um jeito meigo, com pena e fascinação ao mesmo tempo – sementender quase nada, mas sendo solidária a ele – comprimindo os lábios,

ela apenas ouvia.

“Coisas que para você são óbvias, para essas pessoas, não fazem o menor

sentido.”

Ela fez que sim com a cabeça ‘obedientemente’, mas ainda sem entender.

Eles voltaram a caminhar.

“As pessoas não têm a mesma natureza dos tempos passados, Isabel... e issoas afasta do bem, sem que percebam.” – ele disse com olhar vazio.

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“Coisas que para você seriam loucuras, para elas se tornaram rotina.”

“...e por isso eu tenho que ir para lugares distantes, cuidar para que essas

pessoas não se destruam” – disse voltando ao tom de voz neutro como

habitualmente.

Ela levantou a cabeça, reflexiva, olhando para frente.Ariel com semblante sério, sem dizer nada, olhou para frente também,

esperando alguma reação da menina.

Parando de caminhar, Isabel se voltou para ele e falou com a voz quase

embargada.

“Eu estou mudando, Ariel... Eu sinto que estou mudando...”

“Eu sei.” – respondeu ele confiante e um pouco lamentador.

Ariel olhou pra baixo, como que escolhendo as palavras pra falar.“Você não pode deixar as boas lembranças do passado darem lugar às

preocupações vazias da adolescência.”

Ela entendeu o que o amigo queria dizer e mesmo sem saber exatamente

que tipo de preocupação poderia prejudicá-la, consentiu, tranquila.

“Estou tentando não me envolver com as vaidades da vida... e sei que isso

está me fazendo bem de alguma forma... Mas algo em mim diz que alguma

coisa está...” – ela fez uma pausa pra achar a palavra certa, voltando a olhar

pra ele.

“...errada...”

Ela ficou de costas pra ele, olhando pro chão, balançando o braço pra frente

e pra trás.

“...não é que esteja errado... é que...” – disse ela após pensar mais um pouco.

“...incompleta...” – conclui Ariel. – “Alguma coisa está incompleta dentro devocê.”

Voltou o olhar pra ele, com a cabeça inclinada e o rosto contorcido de

choro. Como se não quisesse que aquilo estivesse acontecendo.

“É...” – confirmou a menina.

“...eu não quero isso, Ariel...” – disse ela mordendo os lábios para não

chorar.

Isabel caminhou em sua direção e o abraçou.Ele a envolveu num gesto nítido de proteção paternal.

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Ariel entendia a transformação pela qual aquela garota estava passando e

mostrou-lhe a realidade sobre essa etapa de sua vida.

“Você está se transformando numa mulher adulta, Isabel. É natural

começar sentir a ausência de alguém que ainda não conhece”. – tocou seus

cabelos.“Mas eu não preciso de ninguém... só dos meus

pais e da sua amizade.” – respondeu Isabel com voz embargada.

Ele sorriu, admirado da grandeza e ingenuidade daquela garota, mas não

disse nada.

Voltaram e se olhar com sinceridade.

“No momento certo, seu Criador te mandará a pessoa que te completará.

Até lá, não se preocupe com isso e mantenha-se concentrada nas coisas quete fascinavam quando você ainda era aquela garotinha que brincava comigo

de pega-pega nesse parque”. – falou com ternura nas palavras.

Isabel sorriu timidamente, enxugou o rosto e respondeu:

“...e você sempre perdia...” – balançou a cabeça e lançou-lhe um olhar de

malícia.

Ele franziu os olhos como se percebesse a ‘arte’ que ela pretendia fazer.

“E sabe de uma coisa?” – perguntou ela com um sorriso cínico.

“...tem coisas que nunca mudam...” – disse empurrando-o pra trás e fugindo

dele em seguida.

Ariel quase caiu no chão e logo saiu correndo atrás dela.

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5 – ÁZHAZEL

Os anjos não ficavam sempre com seus escolhidos, mesmo porque

existiam muito mais seres humanos no mundo terreno, do que anjos no

Mundo Espiritual.

Fazia parte da missão dos anjos cuidar de vários seres humanos ao mesmo

tempo.

O trabalho do anjo ia muito além de zelar pela integridade física de seus

protegidos. Consistia em moldar seus pensamentos e sentimentos, de

forma que seguissem os caminhos traçados por Deus para suas vidas,evitando caminhos convidativos que as forças do mal apresentavam para

encher-lhes os olhos e embriagar seus corações, para então ceifar suas

almas.

Os anjos às vezes precisavam ficar sozinhos para pensar e tomar

decisões, à semelhança dos seres humanos e principalmente à semelhança

dEle,.

Ao contrário do que o vão pensamento humano acreditava, nãoexistia destino único para cada vida sobre a Terra.

O caminho dos homens poderia sofrer dezenas de alterações no decorrer

da vida; tudo dependia de suas decisões e atitudes. O destino não estava

escrito, mas a consequência de cada decisão, sim.

Uma vez que o ser humano optasse por um determinado caminho,

fatalmente viriam as consequências escritas para aquela decisão e dessas

consequências, homem nenhum poderia escapar.Os anjos então ajudavam seus protegidos a tomarem as decisões certas, de

forma que a cada dia de suas vidas, eles se aproximassem mais de seu

Criador, de forma a um dia poder estar novamente com Ele, como era no

princípio.

As criaturas infernais trabalhavam de forma contrária. Sugeriam e

argumentavam com os homens de forma a conduzi-los pelos caminhos

errados, que fatalmente culminavam em suas mortes espirituais e físicas.

A morte de um ser humano causada pela consequência de uma decisão

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errada, fatalmente o conduziria para as trevas do Mundo Espiritual,

simplesmente porque ele havia feito a vontade do mal, ao ponto de sua

alma passar a ser do anjo negro que o conduzira por aquele caminho

enquanto vivo.

Os caminhos dos seres humanos eram incertos e a guerra pelas almas erasilenciosa e cruel.

Ariel caminhava sozinho pelo parque. As pessoas permaneciam alheias à

sua presença, pois estava na forma que os seres celestes assumem quando

passeiam entre os humanos, ainda que trajado convencionalmente.

Seu interior lhe dizia que o mal estava próximo daquele local e do mal

nunca se devia fugir, sempre enfrentar – desde que apto a isso.

Ele era um anjo, seu papel era proteger seus amados, mas principalmenteenfrentar o mal e mantê-lo distante dos que foram confiados a ele.

Ariel parou por um instante num local semideserto, envolto por árvores.

Ele sentiu no vento a presença do mal: a presença de um demônio.

Apenas movendo os olhos, tentou identificar o ângulo pelo qual a criatura

do mal planejava atacar.

Num único movimento, Ariel virou-se e saltou, voando em cima do

demônio que o atacava.

Ambos chocaram-se no ar e caíram no chão.

Ariel ficou sobre o demônio, segurando-o pelo pescoço.

Ázhazel, um demônio do antigo Israel, havia sido mandado para cumprir

uma missão típica dos demônios no processo de evolução dos escolhidos:

colocar suas almas à prova.

“O que você quer aqui?” – perguntou Ariel com os dentes semicerrados epressionando o pescoço do demônio com toda a sua força.

Ázhazel, sorriu, sem conseguir pronunciar direito as palavras, disse:

“Hora de levarmos o seu presente conosco, meu velho amigo.” 

“Você sabe que não pode tocá-la...” – insistiu Ariel.

O anjo mau empurrou Ariel com a mão esquerda e com a direita deferiu-lhe

um soco no peito que o arremessou a alguns metros de distância.Ariel caiu aos pés de uma imensa árvore, destruindo sua base quase

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completamente.

Ázhazel levantou-se do chão num movimento de levitação, sem se apoiar

em nada e ajeitando seu terno, pôs-se a caminhar em direção ao anjo ferido.

“Basta uma acusação...você sabe disso...” – sorriu Ázhazel, provocando a ira

de Ariel.Ariel levantou-se sem tirar os olhos do demônio, pois sabia que o outro era

traiçoeiro.

“Dessa vez não há acusações.” – falou com convicção.

O anjo mau aproximou seu rosto de Ariel e disse delicadamente:

“Isso é uma questão de oportunidade, querido amigo.”

Ázhazel se afastou sorrindo, exultante com o que enxergava nos olhos de

Ariel: o temor em perder sua maior missão, o coração de Isabel.“Você sabe que temos direito de colocá-la à prova...” – disse Ázhazel,

tranquilo, entrelaçando os dedos calmamente.

Ariel, conhecendo as artimanhas do mal, permaneceu em silêncio,

aguardando suas atitudes.

“Ora, ora, meu amigo... Há quanto tempo você passa por isso?” – começou a

questionar, Ázhazel, caminhando em círculos em volta de Ariel.

Ariel consciente que o maior poder do mal estava na sua capacidade de

argumentar, apenas fechou os olhos em atitude de renúncia ao que estava

ouvindo.

“Você sabe que eles (seres-humanos) são todos iguais: encantam-se pelo

fútil, se escravizam com seus próprios desejos... eles não querem mais

saber dEle... aprenderam a viver sem Ele.”

“Isso não é verdade, Ázhazel.” – respondeu Ariel, voltando-se para odemônio.

“Ainda há sobre a Terra homens que desejam conhecê-Lo e que se farão

dignos disso...” – disse Ariel.

“Se farão dignos !?” – Ázhazel gritou reclinando-se pra frente e estendendo

a mão para o lado como se apontasse a humanidade.

“Ele lhes deu tudo! Ele fez um planeta inteiro só pra eles! Ele os criou pouco

menos que a Ele próprio! E a única coisa que os preocupa é satisfazer aprópria carne com suas paixões idiotas!”

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Ariel reconhecia, dentro de si, que o outro tinha razão. Os homens não

sabiam retribuir a bondade do Criador.

Ázhazel explodiu num acesso de ódio.

“Desde o princípio foi assim! Ele mostra o caminho, a coisa certa a se fazer,

mas eles insistem em atender o que a vaidade do coração pede!” –esbravejava o anjo mau, calando-se em seguida e sorrindo cinicamente.

“...e é aí que nós entramos, meu amigo. É aqui que mostramos pra Ele que

temos mais direitos que essa raça decaída... e um dia as coisas serão como

antes...” – completou ele, explicando o plano principal da legião que

liderava.

Ázhazel, como que tomado por uma alegria incontrolável, olhou para cima

como se estivesse imaginando o céu e com um sorriso macabro, levantandoas mãos abertas como se visualizasse o futuro, disse:

“...então seremos somente nós novamente, Ariel...” – em seguida, voltou ao

tom de voz agressivo de antes – “...e esses macacos malditos nunca mais

interferirão em nossas vidas perfeitas!” – gritou olhando para Ariel com

punho cerrado.

Ambos ficaram em silêncio. 

“Ah. Ariel... lembra-se de quando éramos somente nós e como Ele nos

amava?” – perguntou Ázhazel, numa mudança brusca de temperamento,

quase chorando.

“Ele mudou de ideia, Ázhazel...” – explicou em tom de mansidão.

O outro vociferou, perdendo o controle outra vez:

“Uma vez Ele se arrependeu de criá-los e se arrependerá de novo!”“Ele os ama...” – insistia o anjo numa vã esperança de fazê-lo entender.

“Ele os matou uma vez! Todos eles! Sob as águas!” – apontou pro chão.

Ariel insistiu:

“Mas conservou uma matriz para procriação de homens que fariam a coisa

certa! Um homem que era fiel a Ele, Noé.”

Ázhazel riu uma risada cínica, de zombaria.

“Sim, claro... uma matriz que precisou de centenas de anos para gerar ohumano que daria início à raça eleita! O velho Abraão!”

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Ázhazel deu um passo a frente, encarando Ariel novamente:

“Só que a raça eleita também não quis nada com Ele!"

“Ele precisou de centenas de anos para que essa raça de ingratos estivesse

no estado evolutivo mínimo para gerar o ser humano perfeito... – gritou

anunciando – “...o Filho de Deus!"”Em seguida olhando para Ariel com ódio outra vez:

“...e tudo pra que, Ariel?”

Silêncio. Ariel também sofria por dar sua vida a uma raça que não entendia

o dom maior.

“... para que O matassem...e renunciassem novamente esse amor!” –

completou o anjo mau.

 

Ariel fechou os olhos novamente, triste por ver tanto ódio em um ser que já

fora luz e vida.

“Me diga, Ariel... Nós O teríamos matado?” – perguntou com a mão

direita estendida pra frente cobrando uma resposta simples daquele que

um dia fora seu companheiro de lutas contra as forças do mal.

“Esse amor era nosso, meu velho amigo.” – disse, colocando a mão no peito.

Falava chorando e sorrindo ao mesmo tempo.

“Nosso!”

Ázhazel se afastou e com um semi-sorriso, ajeitando a roupa, continuou a

argumentar.

“Você não vê, Ariel? Todos esses séculos... toda a história se repete:

...eles sofrem e sofrendo O procuram, para que Ele alivie seus sofrimentos...

Quando Ele se deixa encontrar e o problema se acaba... O que eles fazem?Esquecem-se dEle novamente!” – dizia em tom de voz cansativo.

“Eles nunca vão aprender que o princípio da relação com o Criador é o

amor e que o amor é incondicional!” – gritou o anjo mau.

“Pra eles tudo sempre será interesse!”

As árvores eram agitadas pelo vento atrás de Ariel que apenas observava

calado, o anjo se afastar.

“Eles não querem evoluir, Ariel.” – gritou distante o anjo mau.“Querem um Deus papai-noel, que lhes dê presentes quando choram as

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tragédias que eles mesmos provocam!”

Ariel falou em voz baixa, com o espírito, para que Ázhazel ouvisse dentro

dele.

“Eles ainda estão aprendendo, Ázhazel... Estão evoluindo...”

O anjo mau não suportando a intervenção de Ariel em seus pensamentos,caminhou firme em sua direção, gritando em seguida:

“Há quantos séculos eles estão aprendendo, Ariel?!”

“Quantos reinos e povos nós vimos prosperar e perecer em todas as partes

desse Planeta?!"

“E nada muda! Eles continuam desesperados em ter mais e mais e não se

importam se alguém sofre para que consigam o que querem!” – gritou com

os punhos cerrados para baixo.Ariel, mudando a fisionomia como se estivesse com dó do demônio, que

não entende o que há anos ele vem tentando explicar-lhe:

“Ah Ázhazel, você não entende que Ele quer assim? Volte pra nós... você

sabe que ainda existe uma saída para você...

Alguns dos rebelados estão conosco... Ele os perdoou...” – falou balançando

a cabeça, suplicante.

“E é por causa desses covardes que temos que ‘adestrar’ esses desprezíveis

seres depois que morrem para trabalharem conosco.” – mudou

bruscamente o tom de voz outra vez, como se estivesse prestes a contar um

‘segredo’ – “e em troca os poupamos dos tormentos do inferno.” – sorriu.

Eles ficaram em silêncio novamente.

“Ah. Ariel... lembra-se de quando éramos somente nós e como Ele nos

amava?” – perguntou Ázhazel, numa mudança brusca de temperamentooutra vez.

“Ele mudou de ideia, Ázhazel...” – explicou em tom de mansidão.

Eles ficaram em silêncio novamente.

Ázhazel recuperando a lucidez, falava de forma monótona:

“Desista, Ariel. Venha conosco... Traga os seus... Vamos provar pra Ele que

não vale a pena continuar tentando salvar essas infelizes criaturas cegas.”

Os olhos do anjo mau começaram a brilhar e ele falava cheio de esperança:“...o nosso exército não para de crescer, Ariel...

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Em breve seremos em número suficiente para ceifar todas as almas deste

planeta.

Cada um deles terá um dos nossos acompanhando-os, estudando-os,

sugerindo em seus pensamentos o tempo todo o que devem fazer, pensar,

sentir... analisando e descobrindo suas fraquezas e aguardando,pacientemente, o momento certo para ceifarmos sua alma...e quando

estiverem todos conosco, então Ele reconhecerá que não valeu a pena

nenhuma das tentativas até agora para salvá-los, Ariel."

Ele começou a andar pra traz, falando e se afastando.

“...nem mesmo a do Seu Filho!” – gritou ao longe.

Ariel gritou:

“Enquanto houver o perdão sobre eles, haverá esperança, Ázhazel.”O anjo mau sorriu um sorriso de quem não tinha mais esperança de

convencer o outro.

“E quando não deixarmos mais nenhuma vida na terra, Ariel? Hã? O que

vocês farão?”

Ariel sorriu, um sorriso sincero:

“Então os escolhidos estarão conosco, meu amigo.”

“E a sua querida Isabel será um deles...?” – supôs Ázhazel estendendo as

mãos para os lados e balançando-as pra cima e pra baixo como que

encenando.

“Você sabe que sim, por isso está aqui...” – Ariel respondeu satisfeito por tê-

lo pegado em sua própria armadilha.

O anjo mau se recompôs e disse apontando o dedo para o rosto de Ariel:

“Estou aqui pra te avisar que chegou a hora de eu entrar nessa brincadeira,Ariel. Essa moleca será minha... assim como as outras...”

Ariel exclamou sem alterar a voz.

“Ela é diferente!”

O demônio sorriu:

“Você verá, meu amigo...” – deu as costas e saiu caminhando. – ...você sabe

que seu tempo aqui está acabando... ahahah... São as regras, meu velho

amigo... as regras...”O vulto se desfez no ar.

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Ariel permaneceu, pensando.

O momento estava se aproximando.

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6 – AS SEMENTES

O aparelho de TV trocava de canal incessantemente.

Isabel estava na sala, pouco antes de ir dormir, cansada de procurar por

algo que valesse a pena assistir.

Ariel estava de pé atrás da garota, de braços cruzados observando-a na

penumbra.

Ela não podia vê-lo, mas sua mente podia ouvi-lo, crendo serem seus

próprios pensamentos.

“Hora de dormir, moça...” – disse ele brandamente, induzindo-a ao sono.

Piscando pesadamente, ela desligou a TV no controle e o jogou sobre amesa, caminhando em direção as escadas.

Isabel entrou em seu quarto e fechou a porta.

Pendurou o chambre e deitou-se na cama.

Ariel ficou ‘empoleirado’ no encosto da cadeira que estava próxima a cama

da menina.

Era típico dos anjos acompanharem e instruir seus protegidos à noite. Era

típico dos anjos conversarem com seus amados, quando eles dormem eseus espíritos estão mais abertos a absorver pensamentos e sentimentos

bons ou maus; assim como era típico dos demônios atormentarem os seres

humanos que não possuíam proteção espiritual, durante o sono.

Com os braços estendidos sobre o joelho, observando-a com um semi-

sorriso, Ariel disse:

“Está chegando a hora, Isabel.”

“Por uma grande prova você terá de passar para enobrecer ainda mais seucoração e te destacar definitivamente dos que te circundam, subindo um

degrau na evolução da sua preparação.”

No mundo invisível, as leis limitantes não tinham efeito. O anjo,

quando se encontrava em sua forma original, podia se locomover

independente dos objetos que estavam a sua frente.

Em uma fração de segundos ele acendeu ao lado de sua protegida e

reclinando-se, falou ao seu ouvido:

“Tome cuidado com a ilusão, Isabel...”

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“Nem tudo o que maravilha os olhos, faz bem ao coração”.

“O mal nunca se apresenta com sua verdadeira face.”

“A paixão vem do coração, o amor vem do espírito. Por isso você se

apaixonará muitas vezes, mas só amará uma vez.”

“O coração é enganoso. Ilude-nos...”Isabel sentia a presença de proteção de seu anjo e mesmo adormecida,

sorria, virando-se na cama.

“O coração é impaciente... ele quer obter as coisas rápido demais...”

“O espírito sabe a hora certa.”

“A coisa certa na hora errada, torna-se a coisa errada.”

Disse ele, plantando dentro de seu ser a semente certa, para florescer no

momento certo.“Tome cuidado com a vaidade de seu coração, Isabel...”

Fez uma pausa, se afastando dela e endireitando o corpo.

Caminhou em direção à cadeira onde se apoiara minutos atrás.

A cadeira virou-se sozinha de forma que ele pudesse sentar-se de frente

para garota.

Ariel sentia que o desafio estava próximo e sabia que alguns desafios

para que fossem vencidos, não dependiam dele nem de Deus, dependiam

apenas dela própria.

“Ouça a voz do seu espírito, Isabel.”

“...ouça a minha voz”.

A noite continuou envolvendo Isabel e seu anjo permanecera recitando em

seus ouvidos as palavras que seu coração precisava ouvir até o nascer do

sol.

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7 – O ENCONTRO

Sentada no chão e recostada numa árvore, com os cabelos amarrados

pra trás, os pés cruzados, Isabel lia o livro sobre seu colo.

O vento soprou e mexeu em seus cabelos que escapavam de trás e caíam

sobre os olhos. Ela passava-os pra trás da orelha com a mão direita.

Mais algum tempo e ela ouviu um barulho, entre as árvores; uma espécie de

grunhido fino. Levantou-se e guardando o livro na mochila, caminhou até o

lugar de onde parecia vir o som.

Ao adentrar mais no pequeno bosque, viu um jovem abaixado, com a

mochila nas costas, olhando alguma coisa à sua frente, no chão.“Oi...” – ela disse ajeitando a própria mochila.

O jovem não se voltou pra ela. Apenas levantou a mão direita, fazendo sinal

para que ela não falasse alto.

 

Isabel ficou mais curiosa ainda e se aproximou lentamente.

“Me desculpe...” – ela falou meio sem graça, sem entender nada.

Isabel se abaixou pra ver o que o jovem estava olhando. Ela se assustouquando viu tratar-se de um passarinho machucado, imóvel na grama.

“De vagar, por favor, você pode assustá-lo...” – disse Charles, sem olhar pra

ela.

Ela passou a mão esquerda atrás das orelhas novamente para tirar os

cabelos do rosto e se inclinou um pouco mais.

“Meus Deus... o que houve...?” – perguntou ela lamentando.

“Não sei. Tava passando e vi ele aqui...” – respondeu o rapaz.Ela olhou para o jovem – que continuava olhando pra baixo – meio que

admirada e estranhando um rapaz da sua idade se preocupar com o

sofrimento do animal, quando a maioria deles ignoraria a situação.

“Se ele estiver com a asa quebrada, vai morrer de fome aqui...” – falou ele

estendendo a mão lentamente para acariciar o bicho.

Isabel olhou para o bicho e voltou a observar Charles de novo.

Tirando a mochila das costas e colocando no chão ele perguntou:

“Você me ajuda?”

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“O que você vai fazer?” – perguntou ela colocando a sua mochila no chão

para ajudá-lo e se ajoelhando, colocando a palma das mãos sobre as coxas.

“Vou levá-lo pra casa...” – respondeu ele ainda sem olhar pra ela.

“Está falando sério?” – perguntou curiosa.

“O que você faria?” – questionou ele se voltando para ela.Ao vê-la, o rapaz ficou alguns segundos parado, impressionado e em

seguida disse, tentando disfarçar:

“Eu te conheço...”

“Você estuda comigo... digo, na sala ao lado da minha.” – disse apontando

para a cara dela.

Ela balançou a cabeça positivamente, meio sorrindo, meio rindo da reação

dele, meio impressionada com a docilidade dele.Ele abaixou a mão, esquecendo-se dela e se voltou para o bicho de novo.

“E então, me ajuda?” – insistiu ele, levando as mãos para pegar o pássaro do

chão.

“Espera...” – interveio ela, tocando no braço dele e pegando a mochila ao

lado.

Isabel revirou a mochila rapidamente até encontrar seu lenço branco, que

entregou a ele para envolver o pequeno animal.

“Não é o ideal, mas vai esquentá-lo...” – disse ela.

Charles pegou o lenço de sua mão, agradecendo com um sorriso e em

seguida envolveu o pássaro com o pano.

“Assim... Agora podemos te tirar daqui...” – disse ele colocando o pássaro,

envolto no pano, contra seu peito e levantando-se em seguida.

Isabel também ficou de pé e pegou as duas mochilas que estavam no chão.Ambos caminharam até sair do parque avistando o carro do rapaz que

estava estacionado na calçada.

Charles se adiantando se aproximou da porta traseira do carro.

Ele estava com ambas as mãos ocupadas então Isabel abriu a porta para ele.

Ele colocou o pássaro no banco traseiro e o bicho começou a gritar.

Charles pegou o bicho rapidamente outra vez, tentando evitar seu

sofrimento.Os dois trocaram olhares de indecisão e o rapaz tentou novamente ajeitar o

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bicho no banco do carro.

Outra vez o pássaro gritou um grito agudo e desesperado. Isabel meio

indecisa sugeriu:

“Olha, se você quiser eu vou aqui no banco de trás e seguro ele pra você...”

“Você faria isso?” – perguntou ele surpreso.Ela sorriu com ar de felicidade ingênua, tirou o cabelo do rosto e balançou a

cabeça que sim.

Charles entregou o pássaro pra ela com cuidado e pegou sua mochila de

volta.

Isabel sentou-se no banco traseiro e o rapaz fechou a porta delicadamente.

Correndo para a porta do motorista, Charles entrou no carro e jogou sua

mochila no banco do passageiro.Observando a garota pelo retrovisor por alguns segundos o rapaz

perguntou:

“Podemos ir?”

Ela simplesmente balançou a cabeça que sim e ele saiu com o carro.

“Então vamos, antes da chuva...”

A distância que separava o parque da casa de Charles era pequena, mas

para Isabel pareceu uma viagem, pois se sentia incomodada em estar com

um estranho.

Olhava para os lados, no interior do carro, sem ter o que falar.

“Belo carro.” – disse finalmente.

“É... é novo. Ganhei do meu pai, de aniversário.” – ele respondeu

formalmente olhando pelo retrovisor.

Isabel arqueia a sobrancelha confirmando que entendeu a mensagem eolha para os lados, ainda inquieta.

O carro estacionou frente a uma bela casa branca, envolta por um gramado

novo.

Charles saiu do carro e caminhou em direção a porta de trás do carro.

Abriu-a, deu-lhe a mão para ajudá-la sair do carro sem machucar o pássaro.

“Obrigada...” – respondeu ela, tímida.

 Ele sorriu de volta, se inclinou pra dentro do carro para pegar a mochila

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dela e fechou a porta.

Isabel fez que ia devolver o pássaro, mas o rapaz ignorou-lhe, pegando-a

delicadamente pelo braço e conduzindo-a em direção à porta da casa.

“Por aqui...”

Ela ficou sem jeito e o seguiu.Eles entraram e Charles a conduziu até a sala.

“Sente-se aqui...” – pediu o rapaz indicando a sala.

Charles colocou as mochilas sobre o sofá, ao lado de Isabel se afastando em

seguida.

“Eu volto já...” – disse saindo.

Isabel, ainda receosa, ficou olhando o ambiente a sua volta.

Após alguns instantes o rapaz voltou segurando uma cesta de gato.Ela ficou em pé imediatamente, pois queria resolver o problema do pobre

pássaro o mais rápido possível e ir embora.

Charles colocou a cesta sobre o sofá e em seguida pegou nas mãos de

Isabel, conduzindo-as para ajeitar o pássaro entre os panos que estavam

forrando a cesta.

“Assim...” – disse ele, sorrindo.

Ela estava olhando pra ele, sem ele perceber, admirada com o carinho que

ele tinha pelo bicho.

A porta da sala se abriu abruptamente e uma mulher carregando várias

sacolas de compras, entrou meio confusa.

Os dois jovens olharam em direção à porta rapidamente.

A mãe de Charles era uma senhora bonita, bem vestida, de aparência

imponente.“Boa tarde mocinhos...” – disse ela soltando as sacolas de compra sobre a

mesa próxima a sorrindo disse:

“Não me apresenta sua amiga, Charles?” – questionou a mãe do rapaz se

aproximando deles.

Charles olhou surpreso pra mãe e pra Isabel. Lembrou-se que nem o nome

dela ele sabia.

“Claro... essa aqui é a... a...” – disse apontando para a garota, confuso.“...Isabel, muito prazer...” – disse Isabel sorrindo e estendendo a mão para a

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senhora.

“Oi Isabel... Madalena, muito prazer.” – retribuiu a senhora sorrindo e em

seguida mudando as feições quando viu o bicho na cesta sobre o sofá.

Madalena voltou os olhos para Charles, com ar de espanto e sorrindo ao

mesmo tempo. Ajoelhou-se próximo à cesta examinando seu conteúdo.“Mas o que é isso...?” – perguntou enquanto olhava.

“...eu o encontrei no parque próximo daqui, mãe...” – respondeu Charles,

olhando para cesta, assim como Isabel. 

“Você não tinha ido treinar com o time da escola, rapaz?” – ela se levantou,

surpresa.

“Tinha... mas...” – ele tentou se explicar sem resultado.“Você faltou de novo no treino para ficar fazendo o que naquele parque,

Charles...?” – cruzou os braços e perguntou séria, porém, de uma seriedade

de bondade, de quem está realmente preocupada.

“...você sabe como é importante para o seu pai que você jogue no time da

escola não é, filho?” – perguntou ela unindo as mãos como se fosse rezar.

“Eu sei, mãe, mas...” – ele tentou responder, mas Isabel o interrompera.

“Mas eu o convidei para lermos um pouco de poesia antes do treino e não

vimos a hora passar...” – ela disse meio sorrindo, olhando ora pra ele, ora

pra ela, colocando a mão no ombro dele.

“...é isso...” – confirmou ele surpreso. 

“Hmmm... então finalmente você encontrou uma amiga que gosta de

poesias como você?” – disse ao mesmo tempo em que mudava a feição dechateada para quem estava feliz com o resultado da história.

“É... foi isso...” – ele confirmou meio sorrindo, inseguro.

A mãe de Charles olhou pra ele, feliz.

“Bom pelo menos você trouxe uma amiga pra conhecer sua casa..." – disse

tocando em seu rosto e em seguida pegando a cesta de sobre o sofá com as

duas mãos."

“Mãe!” – ele chamou a atenção da mãe, sem arrogância.A bela senhora o ignorou, passando entre os dois e dizendo baixo:

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“Deixa que eu cuido desse 'serzinho' aqui.”

Quando estava um pouco mais distante:

“Leve sua amiga pra tomar um lanche, Charles, ela deve estar com fome.”

Isabel tentou dizer que não era necessário, mas a senhora já havia saído da

vista deles.Eles se olharam com expressão de confusão, tranquilidade e riso, pelo

desfecho do caso.

“Está com fome?” – ele perguntou apontando com os braços para a cozinha,

meio sorrindo, dando passagem a ela.

Isabel olhou com o canto dos olhos pra ele. Pegou a bolsa do sofá, colocou

no ombro com expressão de pesar.

“Eu preciso ir...” – disse ela, educada.Ele soltou os braços bruscamente, como que desistindo da intenção.

“Claro...” – ele respondeu esperando ela ir na sua frente em direção a porta.

Charles abriu a porta dando passagem para Isabel, que deu dois passos

para fora da casa e parou, observando o céu.

Ele se aproximou devagar por trás dela e ficaram juntos olhando a chuva

que começava cair.

“Acho que não dá pra você caminhar nessa chuva...” – disse ele, sem olhar

para ela.

“Acho que vou esperar um pouco...” – ela respondeu da mesma forma, sem

olhar para ele e no mesmo tom de voz.

“Quer tomar o café enquanto espera?”

Ela ficou em silêncio e não respondeu.

“Não tomo café...” – ela respondeu após alguns segundos, ainda sem olharpra ele.

“Chá...? chocolate...? água...?” – perguntou ele com cautela, olhando para ela,

que ainda o ignorava.

Ela continuava imobilizada olhando a chuva.

“Você está bem?” – perguntou ele meio sorrindo.

“Sim... É que o céu mexe comigo...”– respondeu titubeante, ainda sem olhar

pra ele.Como assim? – perguntou estranhando a reação dela.

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Ela se virou pra ele, voltando a falar em tom de voz normal.

“Acho muito bonita a chuva caindo do céu... lenta, perfumada...” – ela sorriu.

Ele olhou a chuva.

“Também acho bonito, mas não há nada como a lua...”

Isabel arregalou os olhos e sorriu.“Minha mãe vive pegando no meu pé porque não vou aos treinos do time da

escola e porque não sei dormir cedo, antes de observar a lua...” – disse

Charles, alheio à reação dela, ainda olhando perdido pra frente.

Ela continuava sorrindo para ele, fascinada.

Ele, dando-se conta de que ela o observava de perto, saiu do ‘transe’ e olhou

pra ela, admirando seu rosto de perto.

“Então... e o chá? O que me diz? Podemos ver meus livros enquanto a chuvanão passa.” – perguntou ele suavemente enquanto olhava nos olhos da

garota.

Ela balançou a cabeça que sim, ajeitou mochila e entraram novamente.

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8 – O INÍCIO

As horas passaram, mas para Isabel era como se o tempo estivesse

mais lento. Ela sentia dentro de si algumas sensações que nunca havia

experimentado. Um certo prazer não físico, que aumentava a cada minuto

que ela falava mais sobre sua própria vida ou ouvia seu novo amigo falar

sobre a vida dele.

Ao cair da noite, ambos maravilhavam-se com o luar.

“Linda não é?” – perguntou ele, tirando os olhos do telescópio, voltando a

olhar pra ela, sorrindo.

Ela balançou a cabeça que sim, sorrindo de volta.“Por que você fez aquilo?” – perguntou ele após se endireitar com ar

pensativo, cerrando os olhos com expressão de dúvida.

Ela arqueou as sobrancelhas com se perguntasse: ‘aquilo o quê?’

“Aquilo com a minha mãe... Por que me defendeu com a história do atraso?”

– ele perguntou, se virando de frente pra ela, de costas para a janela.

Ela levantou os ombros, olhou pro lado e disse:

“Se você tivesse ido ao treino, não teria encontrado o passarinho e não teriasalvado ele. Não achei justo você levar uma bronca depois de uma atitude

correta.”

Ficaram alguns segundos se olhando, até que ela falou:

“Eu não conheço muitos caras que preferem ler no parque, a participar do

treino... e que ainda salvam a vida de um animal...”

“É... acho que eu não existo mesmo...” – disse ele balançando a cabeça de um

lado para o outro, pensativo.“Existe sim...” – disse ela sem malícia.

Isabel nunca se sentira tão à vontade com alguém como se sentia com

Charles.

Ele parecia entender todos os seus pensamentos e isso lhe tranquilizava,

dava-lhe segurança.

Era uma sensação nova para ela. Nunca havia experimentado ter amizade

com alguém com quem se identificasse tanto, além de Ariel.

Os jovens passaram horas conversando e Isabel conhecendo um novo

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mundo.

9 – A DESPEDIDA

Isabel observava um anjinho na vitrine de uma loja e seu termômetro

marcava 10ºC.

Era uma tarde em que o sol banhava os paralelepípedos da pequena ruasemideserta, timidamente.

A menina reclinou-se olhando a vitrine com mais atenção e percebera o

reflexo no vidro que surgira do nada, como já era de costume.

“Não te surpreendo mais, não é?” – perguntou Ariel, em pé atrás da garota,

sorrindo.

“A gente evolui...” – respondeu ela sem mudar a expressão de quem estava

interessada em algo da vitrine.Ele piscou de leve, rindo-se por a garota mencionar uma das verdades do

grande Plano, sem ter a mínima noção disso.

“Eu tô aprendendo com você a ler pensamentos.” – concluiu ela.

“Ah é? E o que eu estou pensando agora?” – ele começou a fazer o jogo dela.

“Hmmm... Está pensando em me pagar um chocolate quente...” – ela disse se

virando para ele e sorrindo meio tímida.

Ariel sorriu de volta e estendeu o braço pra ela. Ambos caminharam juntos

e cortaram a rua em direção à lanchonete.

Uma garçonete carregava uma bandeja com uma xícara fumegante em

direção à mesa colada à janela, onde ambos aguardavam, sentados de

frente para o outro.

A decoração daquele local lembrava muito os antigos trailers-

lanchonete americanos: bancos grandes, almofadados, com encosto, um defrente pro outro.

Isabel agradeceu à garçonete com um sorriso e ela logo se afastou com

expressão de reprovação pelo comportamento estranho da menina

solitária.

Ariel estava do outro lado da mesa, com a mão esquerda repousada no

encosto da poltrona.

“Tem alguma coisa te preocupando, não é?” – perguntou Isabel pegando axícara e levando à boca.

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“Você percebe tudo mesmo hein...?” – ele recolheu o braço de sobre o

encosto da poltrona e levou as mãos unidas por sobre a mesa.

“Aprendi com você a ler olhares...” – respondeu ela colocando as mãos sob a

mesa.

“Preciso viajar.” – disse ele reclinando o corpo por sobre a mesa, receoso,com a voz preocupante.

“Vai demorar de novo?” – perguntou ela com uma sutil expressão de

decepção, pegando a xícara novamente, olhando para a mesma.

“Não muito. Só o suficiente...” – respondeu ele olhando pra ela aguardando

a sua reação.

“Suficiente pra quê?” – ela perguntou ainda mantendo as mãos sob a mesa e

com um leve ar de insatisfação.“Pra você descobrir se está preparada para enfrentar os contratempos

sozinha...” – falou olhando fixo pra ela com aquele olhar meio sobrenatural

que ela entendia se tratar de coisas perigosas.

Estava séria, pensou por um instante sem dizer nada, mas depois disse:

“Não é isso que te preocupa...”

“Às vezes, Isabel, fazemos coisas que não queremos fazer. Às vezes não

temos controle sobre nossas vontades...” – olhou pra baixo rapidamente,

sério, meio confuso mas não inseguro.

Isabel continuava ouvindo, imóvel.

“Nessas horas temos que pensar com a razão, não com o coração.”

“O mal nos induz a certas atitudes que parecem normais, mas podem

mudar o rumo de nossas vidas para sempre.”

“Cabe a cada um dar a última palavra. Ninguém decide por você.” – ele faloucom um tom de voz de sabedoria e misericórdia.

“Isso você me ensinou...” – ela respondeu sóbria, como de costume.

“Você tem que estar preparada para que algumas situações da vida não te

iludam. Não iludam seu coração.” – continuou Ariel.

“Eu estou preparada para enfrentar essas coisas da vida, Ariel. Não sou

mais criança.” – ela olhou pro lado, meio irritada, pois percebeu que ele

estava falando de seu interesse por Charles.Olhou pra baixo e voltou a olhar pra ele.

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Ele sorriu consigo mesmo frente a tanta ingenuidade.

“Mas ainda tem o coração de criança e é isso que importa. E é por isso que

ainda estou com você.” – arriscou o anjo a revelar-lhe o que as regras não

permitiam.

“Você está com ciúme?” – perguntou ela arregalando os olhos.Ariel se afastou um pouco, fechando as mãos como se fosse rezar, ainda

apoiadas na mesa.

“Você sabe que não se trata disso.” – disse inexpressivo.

“Eu só não quero que as coisas se adiantem...” – concluiu Ariel.

“Não vão se adiantar...” – respondeu ela segura, compreendendo ao que ele

se referia.

“Eu sei o que faço.” – ela falou num tom mais meigo, implorando aconfiança do anjo, levando a mão sobre as mãos dele.

Ele reagiu inexpressivo. Piscou de vagar, em atitude de consentimento.

“Você vai pra muito longe?” – perguntou ela receosa, pois sabia que ele não

falava muito sobre seu trabalho.

“Tenho coisas pra resolver fora da cidade. Um mês pelo menos.”

“Posso ir com você?” – perguntou ela num acesso

de ousadia.

“Bem que eu gostaria de cuidar de você lá... Mas não posso te levar... Não sei

direito o que vai acontecer.” – respondeu ele, ciente de que ela estava

brincando, mas ainda assim fazendo questão de explicar-lhe.

Isabel moveu-se para trás, pouco decepcionada, pois já sabia qual seria a

resposta.

“...tem coisas que você tem que resolver sozinha: sem a ajuda de Deus, nemde ninguém... só você e seu desafio...” – ele falou seriamente.

“Olha, não se preocupa, eu não vou te decepcionar.” – disse ela olhando

para a xícara sobre a mesa e voltando a olhar pra ele, como se pedisse

desculpas.

“Não pense assim. Você não pode tomar decisões simplesmente pra me

agradar. Você tem que optar pelo que é certo, por você mesma.” – ele falou

suplicando que ela o atendesse.“Eu não vou tomar nenhuma decisão que depois

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eu me arrependa, Ariel...” – disse a menina.

“Não tome nenhuma atitude que você nunca mais possa voltar atrás,

Isabel.” – corrigiu o anjo, esperançoso de que as coisas seriam diferentes

dessa vez.

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10 – O TEMPO

O tempo passou. A simples amizade com Charles, baseada em

pensamentos e gostos incomuns, se transformara num forte sentimento de

respeito, consideração e preocupação mútuo.

A ausência de Ariel deixava a garota entristecida e a amizade de Charles

preenchia cada vez mais o vazio deixado pelo anjo.

Isabel, aos poucos passou a enxergar a vida de uma forma diferente.

Estava mais despreocupada com as pessoas e mais preocupada consigo

mesma. Começava a sentir prazer nas coisas corriqueiras que as outras

pessoas sentiam e o mundo invisível a sua volta, aos poucos, ia-seapagando.

Seus sonhos às vezes se tornavam em pesadelos e ela acordava assustada,

ligava para Charles e ele a confortava.

Seus pequenos prazeres passaram a ser compartilhados com ele e o

sentimento de admiração aumentava a cada dia.

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11 – O VENENO

Isabel estava dormindo, solitária.

Ariel não estava ao seu lado, pois o momento estava chegando e as

regras tinham de ser cumpridas. Ela estava inquieta, se virando de um lado

para o outro na cama.

A presença do mal podia ser sentida por seu espírito e isso a deixava

angustiada, pois a atmosfera se tornara densa e nauseante.

Ázhazel estava sentado ao lado de sua cama, de pernas cruzadas com as

mãos apoiadas no joelho.

Ele sorria, gostando de vê-la sofrer e sugerindo o que deveria ficar em suamente quando acordasse:

“Não se importe com o que digam, Isabel... As pessoas gostam de impor

regras às outras para que essas não encontrem sua felicidade”.

Isabel se moveu na cama com mais intensidade.

Seu rosto suado, seus músculos tensos refletiam seu sofrimento.

“Charles é um bom rapaz. É amigo seu. Não como o Ariel que te abandonou

e não deu mais notícias.”“Você sabe que ele é o homem da sua vida. Você nunca sentiu isso por

ninguém.”

Os olhos de Ázhazel brilhavam com uma intensidade de excitação e

maldade.

“Você pode confiar nele. Até mesmo mais do que no Ariel. Pois ele tem sua

idade. Vive no mesmo mundo que você. Gosta das coisas que você gosta.”

“Você pode contar pra ele desse vazio que às vezes você sente.”“Ele vai entender.”

Ázhazel sorria na escuridão e falou-lhe por toda a noite. 

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12 – O ESPÍRITO IMUNDO

A chama da vela era levemente agitada pela corrente de ar na sala

escura, sombria.

As vozes das várias senhoras idosas recitando rezas antigas, contribuíam

para o clima mórbido do cenário.

No centro da sala havia um pequeno altar adornado de flores com algumas

estátuas de santos talhadas em madeira escura.

As senhoras sentadas uma ao lado da outra, seguravam seus terços,

rezando no mesmo tom de voz, repetitivamente.

“...ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco...”Na última cadeira havia um lugar vago, aos olhos humanos; aos olhos do

Mundo Espiritual encontrava-se um ser corpulento, que media mais de dois

metros de altura, sentado, também empunhando seu terço e rezando com

as senhoras.

Suas mãos eram maiores que o normal, sua pele marrom transparecia a

textura ressecada, envelhecida. Suas unhas cumpridas e seus dedos

desproporcionais tremiam enquanto escorregava as contas do terço.O ritual continuava sem nenhuma mudança.

O espírito imundo levitara para trás da cadeira onde se encontrava a avó de

Isabel.

Lentamente a criatura levou a mão por sobre a cabeça da velha senhora e

repousou-a dentro dela.

A senhora, sentiu uma pontada no crânio e levou a mão à testa rapidamente

a fim de aplacar a dor incômoda.Uma senhora que estava ao lado da avó de Isabel reclinou o corpo e em

sussurros, perguntou o que estava havendo.

A velha senhora balançou a cabeça, tranquilizando a outra, sem olhar para

ela.

A outra senhora voltou a recostar-se na cadeira, se entregando novamente

às rezas

O espírito ainda estava com as garras na cabeça da velha senhora. A mulher

sentiu um arrepio e começou a transpirar.

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A criatura do mal inclinou a cabeça para o lado esperando uma reação da

velha senhora.

A outra senhora continuava alheia ao sofrimento da amiga, olhando para o

altar no centro da sala.

A avó levou a mão rapidamente à cabeça para aplacar a dor que desta vezveio com muito mais intensidade.

O espírito, impiedoso, movimentou a mão bruscamente, a espera de um

resultado rápido.

A dor superou a capacidade da velha senhora de se manter consciente. Ela

soltou o terço no chão e lentamente tombou pra frente.

O som do corpo da velha senhora contra o chão chamou a atenção de todos

os presentes, que se levantaram rapidamente para acudi-la.Do outro lado da rua, Ázhazel aguardava pacientemente o trabalho de seu

lacaio ser  concluído. Ao longe, com seu terço entre as mãos, ele observava

através da janela da casa a confusão que se instalara repentinamente no

local.

Por detrás da casa, um vulto cortou o céu rapidamente, após cumprir sua

missão.

Ázhazel sorriu satisfeito por ter cumprido mais uma etapa de sua

missão: a avó de Isabel sofrera um derrame.

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13 – O TELEFONEMA

O telefone tocava incessantemente.

A porta da sala se abriu e a mãe de Isabel entrou confusa, tirando os

brincos, apressada em atendê-lo antes que desistissem.

“Alô... – disse ela com seu costume meigo de falar, enquanto terminava de

tirar os brincos.

“Olá... Tudo bem...?” – ela cumprimentou a outra pessoa já estranhando seu

tom de voz preocupado.

Em alguns instantes sua fisionomia transformou-se, ela paralisou o rosto

por alguns instantes em atitude de desespero.Levou a mão à boca ao saber do ocorrido com sua mãe.

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14 - A VIAGEM

A mãe de Isabel, trajando uma roupa social discreta, ajeitava a mala

no carro.

Bateu a tampa do porta-malas e se virou em direção à filha que a aguardava

naquela manhã cinzenta.

Isabel acabara de acordar, e ainda trajava seu hobby quando a mãe a tirara

da cama avisando que teria de viajar naquele momento.

Com as mãos no bolso e expressão de quem se sentia muito cansada, Isabel

abraçou a mãe desejando-lhe boa sorte e mais uma vez se oferecendo para

acompanhá-la.“Não precisa. Eu volto logo, meu amor.” – disse a mãe da garota passando

as mãos em seus ombros a fim de confortá-la.

“O médico disse que ela tem bastantes chances de ficar boa...” – tentava

confortar-se a mulher, assim como à filha também.

Ela beijou a cabeça de Isabel, que fechou os olhos desejando que aquilo

tudo não trouxesse sofrimento para mãe; passou a mão no rosto dela para

tirar os cabelos caídos sobre seu rosto e a avisou:“Seu pai pegará um vôo direto para a casa da vovó, não o espere pro

jantar.”

Sua voz estava embargada, mas a mulher tentava esconder da garota a todo

custo, a sua angústia.

Beijou-a novamente na testa e se afastou caminhando em direção ao

carro.

Isabel cruzou os braços e aguardou que sua mãe saísse com o carro antesde voltar para dentro.

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15 – A DECISÃO

As gostas da chuva rebentavam nos vidros da janela. O reflexo do

relâmpago iluminava toda a sala da casa de Isabel.

Seus olhos, fixos no livro a sua frente, estavam alheios ao mundo ao seu

redor naquele momento em que ela mergulhara em sua imaginação,

ignorando a triste doença da avó, a ausência de seus pais e a solidão que

Ariel a deixara há quase quatro meses.

Ázhazel continuava a segui-la. Observando-a, estudando-a. Estava sentado

no sofá ao seu lado, falando em seus pensamentos.

“Olha você sozinha de novo... Sentindo falta de alguém que agora você jásabe quem é.”

“Você já é uma mulher. Precisa de um namorado. Você ama o Charles. Sabe

que ele é perfeito pra você.”

“O Ariel é ciumento. Não quer que você tenha outros amigos além dele.

Você não precisa obedecê-lo.”

Isabel fechou o livro, repousou-o sobre a perna e ficou pensando consigo

mesma.Ázhazel se levantou do sofá, fazendo o corpo de Isabel se arrepiar. Ela se

encolhera, sentindo frio e solidão.

“O que suas amigas estão fazendo agora?”

“Estão com seus namorados e amigos, se divertindo. E você está aqui,

sozinha, triste, sem ter com quem falar.”

Ela passou a mão no rosto, com sono. Sono de transe que o anjo mau estava

provocando.“Cadê seu protetor? Viajou sem falar pra onde foi... Não liga, não dá

satisfações... Mas vive te controlando. Isso é justo?”

Isabel voltou os olhos para o livro novamente, tentando não ouvir seus

próprios pensamentos.

“Você tem o coração bom, Isabel. Não é por causa de um namorado que

você irá perder sua bondade. Todos namoram, é natural. Todos se amam.” 

“Acabe com essa solidão...”

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Ele moveu a cabeça em direção à porta da sala, sabendo o que iria

acontecer.

Alguém bateu à porta.

Isabel levantou os olhos do livro e olhou em direção a porta, apreensiva.

Bateram de novo.Ázhazel se aproximou de seu ouvido, dizendo:

“É melhor você atender.”

Ela se levantou deixando o livro no sofá.

Olhando pelo olho-mágico, Isabel viu Charles molhado da chuva, tremendo

de frio, aguardando.

“Você vai deixá-lo na chuva? Isso não é certo...”

Ela refletiu por alguns instantes e em seguida girou a maçaneta, abrindo aporta.

“Olá...” – falou ele sorrindo e se esforçando para esconder o tremor causado

pelo frio.

Ela ficou indecisa, olhando para ele.

“Olhe pra ele, está com frio e precisa de você.” – disse Ázhazel ao seu lado.

Isabel fitou-o dos pés à cabeça.

“Peça pra ele entrar logo. Ele pode ficar doente.”

“Entra...” – disse Isabel, insegura.

Charles entrou e Isabel o acompanhou até a sala.

“Me dá seu casaco...” – disse tirando o casaco encharcado do rapaz.

“Ele não tá servindo pra muita coisa mesmo...” – falou sorrindo.

“Desculpa te incomodar... Meu carro quebrou aqui perto e...” – ele explicou,

se desculpando, ao que ela o interrompeu.“Pensei que seu carro fosse novo...” – ela retrucou, estanhando.

“E é... não sei o que aconteceu...” – ele novamente se explicou.

“Tudo bem... Deixa-me colocar isso pra secar...” – ela disse saindo da sala

em direção à área de serviço.

Charles caminhou pela sala, examinando a casa da garota.

Aproximou-se de um porta retrato sobre a lareira e ficou observando a foto

com calma.Isabel surgiu atrás dele, segurando uma toalha.

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“Trouxe isso pra você se secar...” – disse estendendo a toalha pra ele.

Ele se virou e pegou a toalha de sua mão.

“Você não mudou muito...” – comentou se referindo à fotografia que estava

sobre a lareira.

“É verdade...” – ela respondeu encerrando o assunto.Ázhazel permanecia no ambiente, influenciando os pensamentos de Isabel.

“Eu já vou embora... Só preciso usar seu telefone...” – disse Charles ainda se

secando.

Enquanto ele falava, Isabel estava mergulhada nos próprios pensamentos,

ouvindo, com o coração, as sugestões de Ázhazel.

“Se ele for embora assim, pode ficar doente. Você pode emprestar uma

roupa pra ele. Não há mal nenhum nisso.” – disse o anjo mau, malicioso, emseu ouvido.

“...meu celular está sem bateria e...” – continuava Charles, mas se calara ao

perceber que ela não estava ouvindo.

“Está tudo bem, Isabel...?” – perguntou ele cauteloso.

“Sim. Tá tudo bem. Você precisa se trocar.” – respondeu ela voltando a si.

Isabel caminhava em direção as escadas enquanto o rapaz continuava na

sala olhando os objetos sobre a lareira.

Já no quarto de seu pai, ela abriu o armário a procura de uma roupa para

Charles.

Ázhazel estava ao seu lado, próximo ao seu rosto examinando o menor

sinal de fraqueza que ela apresentasse.

Ela tirou uma camisa e levantou o cabide a fim de visualizar a camisa.

“Você vai levar a roupa pra ele se trocar na sua sala?” – ela ouvia enquantoolhava para a camisa, com o olhar distante.

“Chame-o pra se trocar aqui. É um lugar mais apropriado.” – o mal a

convencera.

Ela abaixou a camisa e a jogou na cama.

No meio da escada, Isabel chamou o rapaz:

“Vem cá escolher uma roupa.” – subiu as escadas em seguida.

Charles a seguiu até o quarto e enquanto ele observava o quarto elaencostou a porta, ficando do lado de fora, esperando no corredor:

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“Usa essa camisa. Tem mais roupa nas gavetas... Tô te esperando aqui.” 

Isabel sentia-se sonolenta, mas de um sono gostoso que não causava mal

estar.

Ela o esperava apoiando as costas na porta do quarto. Seus pensamentosficavam cada vez mais confusos: ela sabia que não deveria manter o jovem

em sua casa na ausência de seus pais, mas aos poucos, não conseguia mais

ver o erro dessa atitude.

No lado oposto de Isabel, estava Ázhazel encostado na parede, de braços

cruzados, sorrindo.

Ao levantar seu dedo indicador o telefone tocou.

Ela olhou assustada em direção ao seu quarto e saiu caminhando.O telefone do quarto de Isabel estava entre as cobertas, sobre a cama e ela

não conseguia encontrá-lo.

Após revirar os travesseiros e lençóis várias vezes, encontrou-o finalmente.

Ao atender, não havia mais ninguém do outro lado da linha. “Isabel...” –

chamou Charles que, já de roupa seca, estava dentro do quarto.

Ela se assustou e, fechando os olhos, colocando a mão no peito, se virou.

“... onde coloco isso?” – ele perguntou mostrando a toalha que usara para se

secar.

Ela pegou a toalha de sua mão e saiu caminhando em direção à porta do

banheiro ao fundo do quarto.

Ele caminhou em direção a estante de livros e pôs-se a olhar um por um,

passando os dedos sobre eles.

Quando olhou para o lado, Charles viu sobre a escrivaninha o antigotelescópio da garota, apontado para o céu.

Ele se aproximou do objeto e colocou o olho no visor.

Isabel saindo do banheiro, o observou usando o aparelho.

“Desculpa. Não resisti...” – disse ele com um sorriso.

“Não tem problema...” – ela respondeu sem muito interesse.

Ela sentou-se na cama, sem saber direito o que deveria fazer: mandá-lo

embora na chuva ou esperar até que passasse, ou ainda, não se preocuparcom isso.

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Isabel colocou as mãos unidas pelas palmas entre as pernas, para aquecê-

las.

“Você também adora a lua, não é...?” – ele perguntou tentando melhorar o

clima entre os dois.

Ela sorriu e em seguida, seu sorriso se tornou triste.“Acho fascinante. Você não?” – ele perguntou, encostando-se na

escrivaninha dela.

“Na verdade, faz muito tempo que não uso esse telescópio...” – ela

respondeu mostrando-se pouco interessada.

Ele puxou a cadeira, sentou-se apoiando braços no encosto.

“Não gosta mais?” – ele perguntou casual.

“Não é que eu não gosto... Eu gosto... mas...” – ela respondeu com jeitomeigo, pacientemente.

Charles, que olhava fixo pra ela desde o começo da conversa, disse com

convicção:

“...mas não tem o mesmo brilho de antes.” – completou ele.

Ela olhou pra ele, assustada por ele ter adivinhado.

“Eu sei como é: o tempo passa e as coisas começam a perder a graça.” – ele

comentou, solidarizando-se com o sentimento da garota.

“Eu também sinto isso...” – ele completou.

“Meus amigos dizem que é frescura... Mas...” – ele disse tirando os braços do

encosto da cadeira e colocando sobre as pernas – “...não sei... eu não sou o

mesmo. Sinto falta de coisas mais sérias... mais verdadeiras...”

Ele balançou a cabeça rapidamente, como que ‘voltando’ de uma visão.

“...não sei explicar direito...” – concluiu.Voltando a olhar pra ela fixamente e falando de forma distinta:

“Eu sinto a falta de alguém.”

“...alguém que você ainda não conhece.” – ela completou identificando-se

com o sentimento de seu amigo.

Charles se levantou da cadeira e sentou-se ao lado dela.

Ela acompanhou-o com os olhos com semblante assustado até ele sentar-se

ao seu lado.“Não... Eu a conheço sim... E daria qualquer coisa

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pra ficar com ela.” – ele falou num tom de voz encantador.

Ázhazel começou a trabalhar no metabolismo de Isabel de forma que suas

sensações físicas se tornassem mais aguçadas. Com a mão sobre sua cabeça

ele a fazia sentir-se cada vez mais sonolenta.

Charles percebera que ela estava com o olhar cansado:“Tá tudo bem?”

“Sim... é que tá me dando um sono...” – respondeu sorrindo e rindo-se ao

mesmo tempo.

Charles se aproximou dela e a envolveu com os braços, um tanto receoso de

sua reação.

“Não se preocupa, eu tô aqui.” – ele tentou convencê-la a permanecer

naquela posição.“Você é mesmo diferente...” – ela comentou, sonolenta, porém, consciente.

“Às vezes você se sente muito só por isso.” – dizia Ázhazel no ouvido do

rapaz.

“Às vezes eu me sinto muito só por isso.” – repetiu o jovem, obedecendo aos

seus pensamentos.

“Você não tem quem o entenda.” – dizia Ázhazel.

“...não tenho quem me entenda.” – repetiu Charles novamente.

“Eu entendo você...” – falou Isabel, sincera, porém ingênua.

“Vocês vivem no mesmo mundo, sabiam?” – sugeriu Ázhazel, com a face

colada na face de Charles.

“Nós vivemos no mesmo mundo, sabia?” – o rapaz falou ainda confortando-

a entre os braços.

Ela não respondeu, apenas fez que sim com a cabeça no ombro dele,sorrindo.

O anjo mau completou a frase:

“...somente vocês dois estão aqui nesse vosso mundo, onde vocês não têm

nada a temer.” – falou ele para Charles.

Charles, repetiu, como que recitando uma poesia.

“...só nós dois estamos aqui nesse nosso mundo, onde não temos o que

temer.”Ela balançou a cabeça de novo, entregando-se ao momento.

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“Confie em mim...” – disse ele olhando em seus olhos, segurando seu rosto

com a mão direita.

“...eu amo você.” – disse Charles com olhar sincero.

Ela sorriu e se entregou ao beijo.

Ambos se beijaram durante muitos minutos e se acariciavam despertandono outro imenso prazer e satisfação.

Ázhazel se aproximou dos jovens e começou a falar no ouvido da garota:

“O amor é bom, Isabel, não pode haver o mal no amor. Então não há o que

temer.”

“Ouça seu coração, Isabel. Ele é puro... nunca te fez fazer a coisa errada.”

A cada frase que o anjo mau dizia, Isabel se sentia menos culpada e maior

era a sensação de liberdade e prazer que se espalhava por seu corpo.“Você é jovem, bonita. Não precisa se comportar como uma freira.”

Não havia mais erro, regras, pecado. Não havia mais Ariel ou limites para as

atitudes. A última palavra era a da jovem Isabel e sua última palavra fora

‘sim’.

Os jovens comungaram seus corpos até o limite das forças.

“Olhe para suas amigas, querida... elas são felizes. Estão sempre sorrindo e

não se culpam por se entregar ao amor... ao prazer.”

Ariel ergueu o rosto suado ao ouvir em seu coração a palavra ‘prazer’,

pronunciada de uma forma maliciosa, carregada de maldade.

Ele estava abaixado, olhando para um homem que acabara de sofrer um

acidente na estrada.

Segurava sua mão trêmula, sangrando e transmitia a ele a energia

necessária para manter seus órgãos vivos até os paramédicos fazerem osprimeiros socorros e tirarem sua vida de risco.

“Isabel...” – falou Ariel ao ouvir o som da voz do mal.

Um homem de branco se aproximou agitado e passou a examinar o homem

estirado ao chão.

Alguém colocou uma máscara de oxigênio nele.

Ariel estava inerte em sua visão e a sensação de desespero começara a

apoderar-se dele.O homem no chão estremeceu chamando a atenção do anjo que voltou a

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olhar pra ele.

Por alguns instantes, Ariel ficou indeciso mas acabou por soltar a mão do

pobre homem e, voltando o rosto para o céu, alçou vôo num gesto

desesperado de salvar a história de sua garota.

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16 – OS FRUTOS

Isabel estava deitada em sua cama olhando para o teto tentando

entender a sensação de amargura e vazio que estava sentindo dentro de si.

Sentou-se na cama segurando o lençol a altura do tórax, pois estava nua.

Olhava para o vazio com olhar triste, percebendo que logo aquele vazio se

transformaria em um sentimento mais forte que a levaria ao

arrependimento.

Ela olhou para Charles que dormia ao seu lado, inerte e tranquilo.

Ariel estava a sua frente, em pé no meio do quarto, observando sua amiga –

ele sabia – pela última vez.A face suada de Ariel e seus cabelos desmanchados acusavam o longo

percurso que tivera que percorrer para tentar chegar a tempo... mas fora

em vão.

As regras permitiam que, agora, ele pudesse observá-la pela última vez,

porém ela nunca mais o veria, nem ouviria sua voz.

O rosto de Ariel transformava-se lentamente, à medida que os

pensamentos lhe brotavam e seu coração enxergava que, mais uma vez, omal havia prevalecido.

Seu olhar de anjo se tornou em terror... em tristeza... por ver tantos anos de

amor e dedicação se perderem em meros minutos fúteis de prazer.

Sua natureza não compreendia isso. Seu espírito imune aos sentimentos

humanos não conseguia entender o que levava os seres humanos a fazerem

trocas que eles mesmos, no fundo, sabiam que não valia a pena.

Os olhos de Isabel se encheram de água ao sentir a presença de Ariel seafastando.

Sua mente não entendia mas seu espírito sabia que ela estava sendo

privada do maior sinal do mundo invisível: a presença de seu anjo. 

O anjo Ariel cerrou os punhos e travou os olhos para conter a revolta que

estava prestes a explodir dentro de si.

Olhou bruscamente para o teto e num ato de desespero, alçou vôo para fora

da casa, da cidade, do planeta.

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Enquanto voava velozmente pela noite, sempre na mesma direção, Ariel viu

as imagens de sua maior missão se passando à sua frente.

Desde quando Isabel passara a enxergá-lo e ouvi-lo, quando ainda criança,

até os últimos momentos em que ele estivera com ela, no parque, na

lanchonete e finalmente naquele quarto, aquela noite. Todos os momentosrepassaram em sua mente em detalhes que só a mente de quem muito

amou conseguiria registrar.

A cada cena que o anjo via, seu coração se entristecia mais, perguntando lá

dentro, por que tudo tinha que ser daquela forma. Por que não havia uma

harmonia perfeita entre as criaturas?

Por que o ser humano trocava a luz de Deus por tudo o que trazia alegria e

não felicidade?Isabel olhou para os lados, sentindo que algo se fora pra sempre.

Ela colocou os pés pra fora da cama, ainda segurando o lençol para cobrir o

corpo e caminhou até a janela.

Olhou a lua e lembrou-se de algo que lhe era muito valioso, mas que não

mais recordava o nome.

Isabel olhou as costas de sua própria mão e pôde ver por alguns segundos a

luz da presença de Ariel se apagando aos poucos.

Impressionada e amargurada, ela apenas entregou-se às lágrimas.

Tocando seu próprio rosto com a mão, Isabel não entendia o que estava

acontecendo, mas seu espírito sabia que a partir daquele momento, a

história de sua vida mudaria para sempre.

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17 - O REENCONTRO

O peso da queda o fez se apoiar com a mão direita no solo lunar.

O anjo estava há milhões de quilômetros da Terra, buscando o silêncio do

universo para refletir sobre toda a Criação.

  Levantou-se devagar e permaneceu imóvel, sem reação, olhando o

nada, desolado.

Virou-se e caminhou para poder observar a Terra.

O reflexo do planeta azul em seus olhos claros fazia-se notar nitidamente.

  Na solidão daquele local, distante de qualquer olho humano, o anjo

podia manifestar sua realidade, perfeita quão criatura celeste e dócil, quãocriatura de Deus: uma lágrima escorreu de seu rosto.

“Eu também estive aqui várias vezes.” – falou Ázhazel em tom de respeito e

sinceridade.

Ariel se voltou para trás, tornando a expressão de desolação em expressão

de prontidão para o combate.

Satanás estava em pé, com os braços estendidos pra baixo, olhando

fixamente para Ariel. Sua expressão era séria, penetrante.“Eu também vinha pra cá quando eles me decepcionavam.” – repetiu ele.

Ao final da frase ele soltou um pequeno sorriso de lamento.

Ázhazel caminhou para o lado e se sentou numa grande rocha. Apoiando

seus cotovelos nos joelhos, com as mão abertas para o céu, sem tirar os

olhos de Ariel em nenhum momento.

“Durante anos eu vim aqui, sentei-me aqui nesta pedra”.

“Sentei-me e lamentei minhas dores causadas por eles.”Fez uma pausa e continuou:

“Eu sempre mostrava o caminho a seguir. Dava os devidos avisos. Os

fortalecia... Mas no final...eles sempre caíam.”

  O anjo mau estendeu os braços para os lados, sem esticá-los, palmas

voltadas pra cima, em gesto de desaprovação repetida.

“Eu os via nascer. Crescer. Conversava com eles, mostrando onde estava o

mal. Eu contava sobre Ele, o que O agradava e o que O desagradava. Mas no

momento do teste final...” – fez uma pausa, com ar de riso – "...eles sempre

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caíam.”

“Durante séculos eu os vi cair, Ariel... Não importava o que eu fizesse... a

estratégia que eu usasse... Às vezes até quebrava as regras para mostrar-

lhes algo sobrenatural que os convencesse a desejar buscá-Lo, conhecê-Lo,

agradá-Lo. Mas não adiantava...Por maiores que fossem meus esforços, no final... Eles sempre caíam e eu

era obrigado a abandoná-los, entregando-os à própria sorte.”

Ariel permanecia inabalável, olhando sério para o anjo mau.

“Então eu refleti durante muitas horas e descobri afinal, o que estava

errado.”

Pausa. Ele esperou que Ariel reagisse.

“Entendi, meu velho amigo, que eles não merecem os céus.” – completou oanjo mau.

“Simplesmente não merecem.”

“Eles não estão evoluídos o suficientes, Ariel. Realmente é uma raça

atrasada. É um protótipo que não deu certo. Mas que Ele insiste em tentar

aperfeiçoar.”

“Eu descobri que estava fazendo o processo inverso do que eu realmente

deveria fazer."

Ao invés de limpar o céu para nós, que somos dignos de estar com Ele, eu

estava contaminando-o com esses seres desprezíveis...” – contorceu o rosto

com nojo do que falava.

Ázhazel caminhou e ficou próximo a Ariel.

“Então...” – fez uma pausa examinando a expressão fúnebre do anjo – “eu

resolvi desistir deles, Ariel...”Ariel moveu os olhos em sentido de surpresa com as revelações do anjo

mau.

“Então decidi parar de ajudá-los. Simplesmente não iria mais acompanhar

suas vidas, aconselhar, proteger, cuidar, amar...” – falou em tom enfadonho

de quem já fez aquilo milhares de vezes.

“E quando eu decidi deixar de obedecê-Lo... senti a presença dEle se

afastando de mim.” – sorriu apontando para a Terra com a palma da mãovoltada para cima. – “...como sua amiguinha está sentindo agora.”

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“Então eu passei a odiá-los, Ariel.” – sua face se tornou sombria refletindo o

ódio que sentia.

“Com a mesma intensidade que eu os amei, eu os odiei por toda ingratidão

e desprezo que tinham para com Ele. E quando esse ódio atingiu seu

ápice...” – fez uma pausa, voltando a sentir o prazer físico que o alimentava.– “eu me libertei.” –sorriu em um tom de voz agudo. 

“Eu me tornei livre, Ariel. Não mais guerra, sangue, ordens, obrigações,

submissões...nada... apenas a liberdade e o mundo ao meu dispor... para eu

retirar dele o que eu quiser, sem medo de sofrer repreendas ou castigos...”

– agora seus olhos brilhavam como nunca Ariel havia visto antes.

“Você sabe o que é isso, meu amigo? Hã? Liberdade? Poder estar emqualquer lugar, durante o tempo que quiser, aparecer para quem quiser,

observar oculto a quem quiser. Amar, Ariel. Eu posso amar e odiar a quem

eu quiser.” – colocou a mão no peito nitidamente emocionado.

“Eu me tornei livre, Ariel. O erro deles não me faz chorar mais. Não sofro

mais porque eles não O querem. Não dói mais aqui dentro quando eles

desistem do que é certo... quando vejo uma princesa como a sua amiga,

virar uma criatura cega e perdida.” – estendeu os braços e lançou um olhar

analítico para o anjo, inclinando levemente a cabeça. 

“Olha pra você... Chorando por uma criatura terrena que não deu ouvidos a

nenhuma das palavras que você falou pra ela durante todos esses anos.” –

falou com piedade, apontando para Ariel com a mão aberta.

Silêncio.  Ariel sabia, em seu íntimo que tudo aquilo fazia um sentido; mas

algo muito maior que aquilo tudo era o que sustentava seu amor pelos

humanos e por sua missão.

Com olhar desolado e o rosto úmido, o anjo permaneceu aguardando o anjo

mau terminar sua investida e deixar-lhe em paz.

“Valeu a pena, Ariel? Dezessete anos de proteção, carinho, atenção e nesse

momento, ela nem sabe mais que você existe... Você foi simplesmenteapagado da mente dela.” – disse ele colando seu rosto no de Ariel.

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Ázhazel afastou-se e olhou fixo nos olhos de Ariel, sorriu ao perceber que

mesmo sem convencer o anjo, conseguiu abalar seu espírito.

“São as regras, meu amigo...” – disse sorrindo e balançando a cabeça.

Mais um instante observou os olhos de Ariel, esperando sua reação.

“É você que sabe...” – levantou as mãos em atitude de desistência.Ázhazel virou-se e pôs-se a caminhar para longe do anjo.

“Ela está viva, Ázhazel.” – falou Ariel convicto daquilo que acreditava.

Ázhazel parou onde estava e sem se voltar para o anjo, permaneceu

ouvindo.

“O amor sabe perdoar, Ázhazel. Sabe esperar.” – disse recobrando suas

forças.

“Você não sabe mais o que é amar.” – gritou Ariel, provocando ira nodemônio – “Você não se lembra mais!”

“...e é por isso que você não consegue mais senti-Lo!” – conclui Ariel.

O anjo mau fechou os olhos profundamente irritado, esforçando-se

imensamente por controlar-se.

Não houve reação de nenhum dos dois.

Ázhazel pôs-se a caminhar novamente e mais uma batalha se encerrara

naquele momento.

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18 – ESPERANÇA

  O sinal do colégio tocou estridente anunciando o fim do dia de aula.

Ao mesmo tempo uma jovem senhora, aparentando seus trinta e poucos

anos estacionou seu carro na porta do colégio. Estava acompanhada de seu

marido. Um senhor pouco mais velho que ela cuja imagem também

transmitia integridade e respeito.

  As crianças saíram correndo portão a fora, procurando seus pais e

despedindo-se umas das outras, meio à confusão de mochilas e lancheiras.

  Ísabel saiu do carro e se aproximou do portão do colégio

aguardando a pequena Nicole do lado de fora.A pequena Nick tinha 6 anos agora; de olhos claros como os da mãe e

cabelos negros como os do pai, saíra caminhando calmamente como era

típico de seu temperamento sereno e alegre.

Conversava com algum amiguinho que Isabel não conseguiu avistar quem

era.

Ao se aproximar, viu a mãe e correu em sua direção para abraçá-la.

“Oi meu, amor... Por que foi a última a sair?” – perguntou Isabelabraçando a filha bem forte.

“Ah, mãe eu tava falando com meu amigo...” – a menina explicou passando o

dedo pela alça da mochila em seu ombro.

“Que amigo, filha?” – perguntou a mãe enquanto conduzia a filha pela mão

até o carro.

“Ah... o nome dele é muito difícil de lembrar, mas ele é muito legal. Ele

sempre me ajuda.” – respondeu a menina entrando no carro e dandogrande beijo no rosto do pai.

Isabel entrou no carro e se foram.

A pequena Nick ajoelhou-se no banco de trás e acenou para Ariel, que

estava do lado de fora, atrás do carro, acenando para ela.  O carro deslizou avenida a fora e o anjo Ariel via a pequena

Nick se afastar, enquanto sua maior missão, se tornava realidade outra vez.

 

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SozinhaEstava escuro e uma faixa da luz da lua entrava pela janela

iluminando o quadro na parede do ateliê, mergulhado na escuridão.Uma pequena mesa de telefone e um aparador com um espelho

grande denunciavam que se tratava não somente de um ambiente detrabalho, mas de um refúgio, onde sua dona ficava sozinha com seuspensamentos.

As pinturas espalhadas pelas paredes do ateliê, pintadas não somentecom as mãos, mas com a alma, falavam de dois mundos que existiam namente da pintora: um mundo semi-iluminado, onde o lado negro choravasentimentos e pensamentos tristes e o lado que refletia a luz da esperança,que falava de uma criança feliz e ingênua, morando num corpo de uma

mulher adulta, de rosto claro, cabelos longos avermelhados e coraçãoperdido. As cortinas se levantaram com a força do vento gelado que entroupela janela e anunciaram uma presença invisível. Sob a fresta da porta deentrada, um facho de luz que vinha do corredor invadiu o ateliê. A porta seabriu e uma mulher trajando um vestido de festa entrou, trancando a portae tirando as sandálias em seguida.

Ela caminhou lentamente até a secretária eletrônica e logo percebeuque não havia nenhuma mensagem para ela.

Sentou-se na banqueta que estava frente ao espelho e acendeu oabajur sobre o aparador.

Através do espelho a garota passou a observar seu próprio rosto,impressionou-se com o reflexo que viu no espelho.

Quantas vezes Isabel sentou-se diante do espelho de seu ateliê depintura, após uma festa, e examinou a própria face, sentindo aquelasensação de não conhecer a mulher à sua frente.

A luz amarelada do abajur realçava ainda mais as sombras de seu

rosto, dando-lhe um ar de distância da realidade, como nas suas pinturas,onde sempre havia uma garota, hora feliz, de bem com o mundo, horatriste, amargurada pela maldade e superficialismo das pessoas, sempre àsombra da solidão. Isabel olhou para sua direita e por alguns instantesexaminou um de seus quadros: uma garotinha brincando com folhas secasnum bosque. Na sua plenitude jovial, a garotinha ainda acreditava naspessoas; acreditava na sinceridade das palavras alheias e principalmenteno sentimento que as pessoas diziam ter por ela. O mundo era um lugarbom para se viver, na realidade daquela garota.

Isabel sorriu um sorriso tímido, mas dentro de si percebera o quanto

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lhe fazia bem ‘desenhar’ seus sentimentos em telas brancas, que de algumaforma, influenciariam de forma positiva, as pessoas que compraríamos seusquadros.

Passou a observar o quadro à sua esquerda: uma jovem cigana,pintando uma tela colorida; cores quentes e traços firmes, que refletiam ovalor da missão de quem se comunica através das cores. A jovem cigana eraela própria, há alguns anos atrás. Desde criança Isabel amava a pintura edentro de si algo lhe dizia que os quadros falavam diretamente no íntimode quem os contemplava.

Isabel voltou a olhar seu reflexo no espelho e lembrou-se que jápassava das 3 da madrugada. Seu corpo precisava descansar. Ela iria tirar amaquiagem, tomar banho e deitar-se. Levaria consigo, ao mundo dossonhos, a mesma esperança de encontrar o que procurava, no mundo edentro de si, no dia que estava por vir.

Pegou sobre o aparador o removedor de maquiagem e o algodão; commovimentos leves, passou a remover a maquiagem do rosto.

Enquanto limpava o rosto e olhava a si própria no espelho, fixou suaatenção no próprio olhar. Como era belo o seu olhar. Como era vivo o verdede seus olhos. Mas essa intensidade nas cores não conseguia esconder ajanela de seu espírito; de seu triste espírito que se escondia, sentindo-se

vazio e, muitas vezes, perdido; fora de seu próprio mundo.Baixou lentamente a mão que limpava o rosto e começou a refletir osmotivos que faziam seu coração ser tão triste. Deteve seu olhar nacorrentinha dourada que trazia no pescoço, que segurava um pingente naforma de um rosto de uma santa e lembrou-se de quando era criança e suamãe ensinou-lhe a acreditar que os santos intercediam a Deus por aquelesque neles cressem.

Quantas vezes ela rezou para sua santa protetora ajudá-la a se livrar

daquela tristeza inexplicável, mas mesmo assim, Deus nunca respondera?Ela tocara com a ponta dos dedos a imagem da correntinha,entendendo que, sua angústia também vinha do fato de não conseguir maiscrer em nada do que cultivava no passado.

Por que após tantos anos de rezas e tradições, da fé nos santos esacramentos, aquele vazio de sua alma permanecia e aumentava cada diamais. Por que aquela santinha, cuja imagem ela trazia pendurada nopescoço, não ouvia suas rezas e intercedia a Deus por ela para que aquela

sensação de solidão e amargura não fosse embora para sempre? Por queesse vazio dentro de seu coração? Por que aquela sensação de não versentido em nada do que seus amigos valorizavam tanto?

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O prazer se esvaía, no mundo de Isabel. As coisas não tinham brilhopor si só e portanto, não valia a pena buscar esse prazer.

Quantas vezes mais ela ainda viria de uma festa se sentindo umaestranha num mundo de pessoas cegas e fúteis, que se divertiam com tãopouco e sentiam-se realizadas com coisas tão inúteis como bebida, música eenvolvimentos amorosos momentâneos?

Seu olhar sobre o mundo, sua forma de encarar a vida, lhe conduziapor uma estrada solitária, na qual somente ela caminha. Para não se tornarainda mais solitária, Isabel mantinha-se sorridente e satisfeita entre os quese diziam seus amigos, mas dentro de si, ela sabia que a vida era mais querefúgios em bebida, música e sexo.

Para um mal invisível, pensava, somente uma solução invisível. Aúnica solução que ela conhecia era a religião, mas Deus se calara para ela hámuitos anos.

Naquela noite ela não queria deitar com o rosto molhado de lágrimas.Apesar de não ter se divertido na festa que estava ainda há pouco e saberque seu lugar não era com aqueles que se diziam seus amigos, ela nãoestava disposta a passar mais uma noite rezando com aquela correntinhanas mãos, esperando que a noite lhe trouxesse o sono e a paz.

Voltou a tirar a maquiagem com o algodão e bloqueou a própria

mente de qualquer pensamento de tristeza que viesse lhe incomodar.Atrás de Isabel, encostada na parede do lado escuro do cômodo,estava uma mulher que trajava um terno preto e gravata vermelha, debraços cruzados, observando-a.

Seu rosto, emoldurado por longos cabelos ondulados e negros,transmitia uma determinação e força, poucas vezes vista em sereshumanos.

Apesar de seus trajes se assemelharem a trajes masculinos, seu rosto

era o limiar entre a docilidade feminina e a crueldade de um espíritoobcecado.A mulher observava a garota como um pai, oculto, observa seu filho

se preparando para fazer uma travessura e ingenuamente não percebe queestá sendo controlado.

A mulher caminhou lentamente em direção à Isabel e parou atrásdela, observando-a através do espelho.

Seu olhar cor de mel possuía o brilho gélido do cinismo de quem tudo

conhece sobre a vida e tem o poder de manipular os pensamentos alheios,através da simples palavra.

A mulher aproximou lentamente o rosto da orelha da garota e disse:

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“Mais uma noite de diversão...” – em seguida ficou ereta outra vez,aguardando a reação da garota.

Isabel parou de limpar o rosto e pôs-se a observar-se no espelhooutra vez.

“...mais uma noite de tortura.” – disse a mulher encostando a boca noouvido da garota outra vez e voltando à posição anterior em seguida.

Com a voz carregada de ironia, ela passou a falar como queprovocando a garota.

“Enquanto todos riam e dançavam, você só sentia vontade de saircorrendo e chorar.”

Isabel inclinou levemente a cabeça para o lado como quepressentindo a dor que seu coração sentiria, uma vez que aquela sensaçãode amargura estava lhe dominando aos poucos. A mulher continuou:

“Mas você não fugiu. Permaneceu lá, sorrindo, “feliz”; deixando seusamigos contentes com sua presença ‘encantadora’.”

A voz da mulher se tornava mais forte em sua mente e ela sabia quenão conseguiria mais bloqueá-la.

“E mesmo que fugisse, você sabe que esse vazio que te atormenta, teacompanharia, não é?”

A mulher colocou as mãos sobre os ombros da garota que

permanecia observando apenas a própria imagem no espelho, sem reação.“Essa dor invisível que você não sabe explicar... Esse embrulho noestômago que te faz sentir tanto ódio e amargura...” – ela sorriu sutilmente,como que se deliciando com a dor da garota.

“É impossível se esconder de si mesma, não é, criança?” – faloudemonstrando sua superioridade, não somente pela experiência queadquiriu com tantos anos seguindo a garota e influenciando seuspensamentos com ideias destrutivas, mas principalmente por se tratar de

um ser acima das limitações humanas.Os olhos de Isabel ficaram marejados e ela sentia-se caminhando porum corredor de morte, como se aquilo tivesse que acontecerindependentemente de sua vontade, pois poderia ser a vontade de Deus.

A mulher continuou:“Olhe para os amigos que estavam com você agora há pouco...eles

apenas usufruem o que você pode oferecer: oportunidades, prazer...Ninguém se importa com você!”

A mulher passou a falar num tom de voz mais áspero, cobrando umareação da garota.

“Até quando sua vida será apenas aquilo que os outros querem ver

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em você? Todos que você conhece já te fizeram chorar... Inclusive suafamília." – sorriu novamente, com a certeza de quem sabe exatamentesobre o que está falando.

A mulher caminhou e ficando ao lado da garota, tocou o espelho, numgesto teatral de deslumbramento. Com a outra mão repousada sobre oombro da garota, acariciava seu rosto pelo espelho, enquanto questionava:

“Quem te vê? Para que serve a tua beleza?”“Serve para te usarem... Como já fizeram tantas e tantas vezes.”“Quem olha pra você e te enxerga como um ser vivente? Pensante...?“Quem entende que você tem uma alma e um coração?”A mulher conhecia as marcas que os antigos relacionamentos de

Isabel haviam deixado em seu coração, em especial no último em que apobre garota fora traída da forma mais vil que um ser humano pode serenganado.

“Quem entende que você não é apenas carne? É só isso que elesenxergam... E não se importam com o que você sente."

“Não importa que você esteja sofrendo! O que importa é que tuacarne esteja sempre bela e perfumada.”

“Quanto tempo ainda você viverá com essas pessoas?!” – gritoufinalmente a mulher.

Uma lágrima escorreu do rosto da garota.Ela ouvia aqueles pensamentos em sua mente e entendia em seuíntimo que se tratava de verdades que ela não podia negar ou evitar, mas

por que a solução para sua dor tinha de ser tão dolorosa? Por que asaída para encontrar a paz tinha que ser tão assustadora? Por que em seuspensamentos ela também não ouvia algo que lhe desse esperança e lhemostrasse o caminho certo a seguir, sem necessitar tomar aquela decisãotão triste?

A mulher caminhou para trás da garota outra vez e continuou seusutil ataque:“Outra vez você passou a noite esperando o homem que te tiraria

dessa vida de sofrimento inexplicável, mas...” – olhou para o espelho, egargalhou discretamente – “...ele não apareceu.”

Esperou um instante até mais uma lágrima cair do rosto de Isabel emudando completamente o semblante, continuou assumindo uma posturaagressiva:

“E ele nunca irá aparecer... Sabe por quê? Porque ele não existe.Ninguém nunca te amará. Você é muito esquisita pra ser amada.”

Isabel olhava-se mas não enxergava sua beleza. Via-se como alguém

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diferente, por fora e por dentro; de uma diferença negativa que a tornavainferior às outras garotas. A pobre garota estava presa em um mundo cinzaonde nada mais parecia valer a pena.

Abaixou a cabeça e mais lágrimas escorreram por seu rosto.“Qual o sentido da sua vida?” – perguntara a mulher, sabendo que

esse era um dos questionamentos que rondavam o coração da garota.“Afinal pra quê você existe? Quem se importaria com sua partida?”A mulher sorriu um sorriso contido e tocou com a mão esquerda no

cabelo da garota.A garota olhou novamente no espelho e se entregou por completo aos

pensamentos destrutivos.Levando as mãos sobre os ombros da garota outra vez, a mulher fê-la

sentir frio. Um frio inexplicável e aterrorizante. A garota se abraçoutentando se aquecer e a mulher continuou seu espetáculo de crueldade:

“Você pode se libertar desse sofrimento. Pode viver livre dessasolidão, dessa tristeza. Mas carregando essa carcaça humana – passou aexaminar o corpo da garota com o olhar, de cima a baixo – “...essa cascafísica, tão pesada...tão desajeitada... você jamais poderá viver a liberdadeque tanto precisa.”

A garota toca seu próprio rosto entendendo que é chegado o

momento de tomar a atitude que tanto lhe assusta.“Está na hora de terminar o que você começou quando ele teabandonou...” – a mulher escorregou ambas as mãos pelos ombros dagarota e dando um passo pra trás, indicou a mesa do telefone.

Isabel olhou para a mesa de telefone e um tanto receosa levantou-se ecaminhou até lá; abriu a primeira gaveta e por longos instantes observou apequena arma no interior.

Com a mão trêmula pegou a arma e ficou observando-a por mais um

instante, até que a mulher repousou a mão sobre seu ombro e conduziu-ade volta ao espelho.Isabel, alheia ao auxílio da outra, caminhou com a arma repousada

sobre o tórax e voltou a olhar-se no espelho.O reflexo de seu rosto molhado e seu vestido vermelho, assemelhava-

se a uma pintura gótica.A mulher ficou novamente atrás da garota e percebeu sua hesitação

em usar o instrumento, então continuou a falar-lhe na mente:

“A morte é a libertação para toda essa dor!”“A morte é o novo começo; é a porta de entrada para o novo mundo

que você sempre sonhou, onde não há sofrimento, lágrimas ou dor...”

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“Ser sua própria dona. Não seguir regras! Ser finalmente livre!!!” –esbravejou como se anunciasse a grande solução para a vida de Isabel.

Isabel sente em sua cabeça a vibração do grito e deixa mais lágrimascaírem.

“Venha experimentar ser você mesma, aqui onde nós vivemos.”“Venha sentir a vida, como você a sentia quando era criança... Venha

sentir o calor do amor de pessoas que sabem que você merece ser ouvida,amada, protegida...” – continuou a outra, enganando o coração da garota.

A mulher pegou a mão da garota que segurava a arma e a conduziupara a cabeça dela.

“Eu te dou tudo isso. Venha para mim.” – sussurrou, afastando aprópria mão do punho da garota.

A mulher voltou a repousar as mãos sobre os ombros da garota,aguardando-a puxar o gatilho.

A garota fechou os olhos com força e encostou o dedo no gatilho.Dentro de si, ela reuniu forças para puxá-lo. Seu dedo trêmulo se recusou aobedecer ao que seu coração já determinara: sua própria destruição.

Meio a tempestade de pensamentos e sentimentos tristes, a garotasentiu uma presença no ambiente em forma de uma luz que veio do cantoda sala, próximo a entrada. Mesmo sem entender, sentiu o peso do seu

coração diminuir e por isso se esforçou para crer que poderia ser aresposta pra sua dor.Ela abriu os olhos devagar e olhou para o lado enquanto

involuntariamente abaixava a arma.Após alguns segundos procurando no ambiente aquilo que lhe trazia

tanto bem estar interior, sem distinguir nada de novo no ambiente, elavoltou a observar-se no espelho.

Uma figura masculina fica atrás da garota, onde a mulher estava e a

observa através do espelho.A sensação de paz invadia seu espírito aos poucos e sem entender omotivo, a garota desejou soltar a arma no aparador. O fez e aguardou.

Um homem se aproximou de Isabel e apoiou-se nos próprioscalcanhares, ficando ao seu lado. Em seu olhar, o ele exprimia uma grandecompaixão pela jovem e para confortá-la ainda mais, deixou que suapresença de luz a iluminasse, mesmo que temporariamente, antes decomeçar a falar-lhe, sem voz:

“Houve um tempo em que você não se preocupava com o que aspessoas pensavam de você”.

“Nesse tempo você não fingia ser quem não era apenas para

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satisfazer às pessoas”.“Você vivia cada minuto da vida intensamente, sem se preocupar com

o que os outros iriam pensar de você”.“Você preferia fechar os olhos pra maldade dos outros, perdoar e

esquecer”. – dizia o homem, tentando fazê-la recordar de uma época hámuito esquecida.

Sentindo-se pouco mais recuperada, a garota levantou os olhoslentamente para olhar-se no espelho.

“Lembra de quando alguns meninos zombavam do seu peso?” – aorecordar-se dessa época, a garota sorriu um sorriso triste.

“Você não se importava. – continuou ele. – E não se importava porquenão era sua obrigação ser bonita pra eles.”

“Nesse tempo seu coração era puro como o de criança... você era umacriança.”

“Lembra-se de como seu rosto era no passado?”Isabel levou sua mão ao rosto, recordando-se de suas feições no

passado enquanto o homem continuou:“Você continua com os mesmos olhos da menina de 10 anos que

enxergava o lado belo da vida, ignorando o que era mau. Seus olhos são osmesmos, o que mudou foi seu olhar.”

Ao recordar-se de como ela própria observava as coisas no passado,de forma simples e nada lhe fazia mal, a Isabel sentiu uma imensa saudadede sua infância e derramou mais lágrimas ainda.

“Volte a olhar o mundo com os olhos de criança. Faça-se criançanovamente e você voltará a crer na vida e você voltará a ser feliz”. – disse ohomem, levantando-se e caminhando para trás da garota novamente.

O tom de voz do homem era tão confiante quanto o da mulher,porém, sua voz transmitia um sentimento de nobreza.

“No passado, suas amigas se pareciam com você: elas eram leais esinceras. Elas sentiam como você e pensavam como você. Você nãoprocurava suas amigas: elas vinham até você porque a vida aproxima aspessoas semelhantes... as pessoas que têm os mesmos sonhos.”

Apesar de ver-se tantas vezes na mesma situação, o interesse daquelehomem em ajudar seus protegidos permanecia tão intenso como daprimeira vez.

“Os verdadeiros amigos não precisam ser procurados. Eles te

encontram. Porém, a paz que sua alma está buscando, não se encontra nosamigos e nem na diversão.”

Sabendo da constante solidão que Isabel sentiu durante sua vida,

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recordou-lhe que haveria o momento certo para que o verdadeiro e únicoamor de sua vida a encontrasse:

“Não se sinta solitária. Você tem muitos sentimentos bons dentro devocê e a vida te trará uma pessoa que mereça esses sentimentos; essapessoa será seu grande amor.”

A garota sorriu discretamente, como que confortada. E elecompletou:

“Mas não o procure. Não procure alguém pra te fazer feliz. Aguarde omomento em que ele entrará na sua vida para você o fazer feliz”.

A garota tirou o cabelo do rosto, numa atitude nítida de recuperaçãode seu bem estar emocional. Novamente os motivos para sua existênciacomeçavam a fazer sentido. Estava sentindo na própria carne a sensação deestar bem consigo mesma.

O homem continuou aconselhando-a:“E enquanto ele não vem, prepare-se para quando ele vier.“Cultive dentro de você os sentimentos e pensamentos nobres,

porque isso vai aproximar o caminho de vocês dois.”  Por mais respostas que o homem lhe fizesse, ele sabia que a

pergunta que sempre atormentara Isabel, como também a maior parte deseus antigos protegidos, era o sentido de sua própria vida.

“O sentido da vida é muito simples.”“A vida que você tem, foi dada pelo Criador. Junto com a vida que Eledá pra cada um,

Ele dá uma missão. Cada ser humano sobre a Terra tem uma missãodiferente e única”.

“Descubra qual é sua missão e como cumpri-la e esse será o sentidoda sua vida.”

“Através da sua missão, torne-se uma pessoa melhor a cada dia.”

A garota olhou pra baixo por um instante e depois observou as telas àsua volta e fixou o olhar na tela à sua esquerda, identificando sua missão.Pintar.

“Resgate os seus sonhos do passado. Eles são sua missão.Ela sorriu satisfeita, pois percebera que estava no caminho certo.Isabel voltou-se a olhar no espelho, porém, agora ela via uma imagem

de um ser humano que entendia o motivo de sua própria existência e issoera refletido em seu olhar.

O homem não estava mais atrás dela. A sensação de bem estarcontinuava, apesar de mais frágil.

Através do espelho ela observou a arma sobre o aparador,

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lembrando-se do que estava prestes a fazer.“A coragem para destruição não é um sentimento nobre. Destruir é

sempre mais fácil do que criar e por isso, a destruição não é boa. Adestruição não exige esforço. A criação sim.” – disse o homem em suamente.

O alívio de Isabel parecia ter chegado, mas dentro de seu coração elasabia que a força da voz feminina era maior do que simples pensamentos enão bastaria ignorá-la.

A mulher se aproximou dela por trás e abaixou-se até encostar a bocaem sua orelha.

Apontando para um dos quadros na parede, ao lado da garota, eladisse:

“Olhe a menina do quadro... Ela é feliz..."“Você gostaria de ser feliz como ela? Você acha que pode ser feliz com

essa vida que você tem?Olhou para a arma sobre o aparador e completou:“Pra que esperar tanto tempo para se livrar dessa dor?”Em seguida, a mulher conduziu a mão da garota até a arma e em

seguida até o tórax.A dor no peito voltou de repente e Isabel sentia novamente um desejo

inexplicável de chorar.“Assim...” – sussurrou a mulher se afastando de Isabel e aguardandoque ela finalmente colocasse um fim à própria vida.

O homem se aproximou por trás e observando Isabel através doespelho, pacientemente soprou em seus pensamentos suas verdades:

“Não tente adiantar o seu fim, pois somente Deus pode fazer isso.”“Se você se destruir, sua dor jamais acabará. Ela será sua eterna

companheira.”

“Não ouça seus pensamentos de autodestruição... Eles não são seus.”Isabel estava ouvindo ambas as vozes em sua cabeça e a cada minutosua confusão aumentava.

Os dois lados pareciam ter uma força descomunal sobre sua vontadee a consciência de que nenhum dos dois pensamentos tinha origem em simesma, começara a surgir.

Ela olhou pra baixo, chorando, pensando baixinho como aquelaestava sendo a pior de suas crises e o quanto seu coração desejava que a

noite acabasse e com ela, seu sofrimento tivesse fim.“Desde criança você me ouve... Não vai deixar de ouvir agora...” –

disse a mulher em sua mente.

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“Olhe para o espelho...” – instruiu a mulher brandamente, mas com otom de confiança comum às suas ordens.

Isabel levou a cabeça pra cima e ainda de olhos fechados, numaatitude de confusão mental, passou as mãos cerradas nas têmporas,tentando repelir àquela voz.

“Olha pro espelho!” – bradou impaciente.Isabel abriu os olhos abruptamente e olhou para sua imagem no

espelho, agora quase totalmente desfigurada por causa da maquiagemborrada.

“De quem é este rosto no espelho? Esse reflexo não é seu. Você nemsabe quem você é.” – atacou a mulher, sabendo que a forma mais fácil deinduzi-la à morte era anulando sua própria identidade.

A garota tocou o próprio rosto e em seguida estendeu a mão paratocar o espelho.

O tempo estava passando e a manhã estava chegando. Com a luz dodia, a oportunidade de levar Isabel à morte, se findaria e a mulherdemonstrara a cada minuto mais irritação e impaciência.

“A sua alma precisa de liberdade - argumentava - precisa respirar.Você precisa viver num lugar onde a vida vale a pena.”

“E o caminho para a vida...é a morte.” – finalizou ela com um sorriso

frio no rosto, sentindo que estava prestes à colher os frutos de seu trabalho.Mais alguns longos minutos se passaram e Isabel permanecia naencruzilhada da vida e da morte.

A mulher, consciente de que seu tempo estava acabando, passou ausar outra estratégia, pois entendia que se não a conduzisse à morte pelosentimento de acreditar que seria feliz no outro mundo, a levariasimplesmente pela falta de motivos de continuar viva:

“Você é feia!” – gritou em seu pensamento.

O homem, numa tentativa de trazê-la à lucidez novamente, contraatacava com suas verdades:“Sua forma física não é o mais importante. O mais importante é

manter seu espírito belo.”“Ninguém te ama!” – gritou outra vez a mulher sem desistir do

confronto.“Quem te amar de verdade, vai amar seu espírito, não sua carne.” –

disse ele, ainda mantendo o controle.

“Nem Deus ouviu suas orações!” – finalizou a mulher, sabendo quequando o ser humano se sente desprotegido, não tem mais interesse navida.

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“Deus nunca pôde receber suas orações. Você usava intermediáriosque nunca poderiam te ajudar.” – explicou o homem.

Isabel então entendeu que nenhuma das longas e tristes noites emque passara rezando para sua santa protetora, teve algum significado paraDeus, pelo simples fato de que as regras não permitiam que houvesseintermediários entre o homem e Deus.

“...mas eu ouvi suas orações... e vim te ajudar, criança.”O ápice da dor chegou ao coração de Isabel. Mais que a amargura por

saber que tantos gritos ficaram no vazio, era a tristeza em finalmenteentender que aquele espírito maligno em forma de mulher, a enganaradurante tantos anos, induzindo-lhe a acreditar que, ao levar em seupescoço uma espécie de símbolo da sua fé, permaneceria protegida.

O homem, feliz por ver a luz do entendimento descer sobre a menteda garota, aproximou-se novamente dela e em seu último ato de resgatedaquele pobre espírito machucado pelas mentiras do tradicionalismo,argumentou:

  “A alma se torna triste quando fica distante de quem a criou:Deus. E essa distância traz a dúvida, o medo e a insegurança.

“Busque se encontrar com Deus... converse com Ele. Conheça-O. Nãotente se achegar a ele através de pessoas que já não vivem nesse mundo,

pois o único que pode conduzir-lhe até Ele é seu Filho.”“Ele não pode te ajudar enquanto você não decidir buscá-Lo. Tenhacerteza que, o que Ele mais deseja, é te ajudar, pois Ele te ama. Por isso Eleme mandou aqui. Por isso estive com você durante todos esses anos e sóme afastava quando você preferia não me ouvir.”

Era chegado o momento em que Isabel decidiria o caminho queseguiria.

O homem falou-lhe pela última vez, como as regras ditavam, e agora

somente ela mesma poderia decidir entre continuar ou desistir.“Você não precisa mais viver nessa prisão.“Ainda há uma saída.” – levantou-se devagar e se afastou da garota.A mulher, em pé atrás da garota, também sabia que não poderia mais

estender seu trabalho na mente dela. Apenas mais uma argumentação e adecisão ficaria por conta dela.

“A felicidade nessa vida não existe!” – disse com a voz insegura.“Por que esperar para fazer o que você já deveria ter feito há muito

tempo?”“A felicidade está aqui comigo. Venha buscá-la. Agora!” – finalizou.Isabel, lentamente levou a arma até a cabeça. Seu dedo tremia e as

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suas lágrimas desciam em excesso em todo seu rosto.Mais alguns instantes e os quadros na parede foram iluminados por

uma fração de tempo pela luz que o tiro produziu.Isabel finalmente decidiu seu caminho e sabia, que a partir daquela

noite, não tornaria atrás.Seu caminho seria o mesmo até o final.Isabel permaneceu olhando para o espelho, ouvindo o eco que o tiro

produzira há pouco e dentro de seu coração um desejo incontrolável derepudiar aquela voz feminina nascia. Uma revolta que vinha do desejo denunca mais ser escrava de nenhum pensamento que destruísse seuinterior. Um ódio profundo pela sensação de submissão àquilo que lhehumilhava, diminuía, desanimava.

Junto com essa revolta, Isabel sentiu nascer dentro de si uma vontadeimensa de viver e, independente do mundo podre que a cercava, buscarseus sonhos e crer que a vida ainda valia a pena, pois Deus a conduzia paraseu destino e junto dele, a plenitude das suas realizações a aguardavam,uma por vez... pouco a pouco.

A mulher apareceu ao seu lado com o rosto molhado do sangue queescorria pelo buraco que o tiro fizera em sua testa.

Como num pesadelo, Isabel ouviu sua voz falando nitidamente em

sua mente:“Não é assim que você se livra de mim, criança.”Ela entendera agora que, o primeiro passo para a libertação daquele

espírito de opressão, era a revolta em saber que ele a dominava e oprofundo e sincero desejo de se livrar dele.

Então, tomada de revolta e determinação,Isabel fechou os olhos e disse:“Vai embora e não volte mais.”

A expressão da mulher mudou bruscamente. Como era possívelaquela garota tão jovem e sem conhecimento das coisas do invisível saberde sua existência e ainda saber que detinha o direito de rejeitá-la?

“O quê...?” – perguntou ela, desfazendo rapidamente o sorriso.Com a voz mais firme, Isabel repetiu:“Vai embora e não volte mais.”A mulher não acreditava. Sorriu um sorriso amargo e aguardou que a

garota desanimasse e voltasse a mergulhar no poço de tristeza que

costumava ficar por longas semanas.“Vai embora e não volte mais.” – repetiu Isabel enfática.Sua determinação passara a ser maior que qualquer pensamento ou

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sensação que a mulher pudesse lhe transmitir para fazê-la desistir.Indignada com a descoberta da garota de ter entendido seu direito

obrigá-la a se afastar de seus pensamentos, disse quase desesperada:“Você não pode fazer isso com...” – antes de terminar essa frase,

Isabel abriu os olhos e afastando com toda força do seu coração todo equalquer pensamento de desânimo ou de possibilidade de continuarsentindo aquela presença maligna, ela repetiu pela última vez:

“Vai embora e não volte nunca mais!”Quando um ser humano decide rejeitar a força do mal e se apega com

seu Criador para mantê-la distante, o mal é obrigado a se afastar e não temmais chance de tornar a ele. Assim diziam as regras.

A mulher sentiu a determinação na voz da garota e viu sua atitude dearrancar do pescoço a corrente com a imagem, deixando cair ao chão emseguida.

Quando a corrente caiu no chão e a pequena imagem se fez empequenos pedaços, a mulher sentiu que não restava mais nada a fazer. Abatalha estava perdida e ela teria que buscar outra alma passiva e iludidapelo mundo para atormentar.

Num acesso de ódio, a mulher cerrou os dentes manchados de sanguee avançou no rosto da garota, como se tentasse mordê-la. Fez um ruído

como um animal, mas não podia tocá-la.Num único movimento, a mulher saiu da presença da garota eabandonou sua vida definitivamente.

A nuvem de peso e amargura se desfez no ar por completo.O mesmo local, a mesma luz, o mesmo ar, os mesmos objetos e a

mesma garota estavam ali, mas algo mudou. Nem mesmo Isabel conseguiaentender o que de tão diferente estava acontecendo, pois nada mudara aosseus olhos, no entanto, dentro de si, surgia uma nova consciência, uma nova

personalidade, uma nova mulher.Isabel olhou a sua volta e não distinguiu nada. Abraçou os própriosbraços e sorriu pra si mesma, sem se preocupar com nada.

Sentia uma forte sensação de alívio e tranquilidade. Até mesmo seusmovimentos estavam mais leves e precisos.

Ela voltou a olhar para o espelho e passou a tirar o resto damaquiagem do rosto.

A cada movimento ela se lembrava de um aspecto da sua vida e como

ela poderia ser boa, se assim ela própria o quisesse.Todas as aflições que lhe incomodavam minutos atrás pareciam tolas

agora. Agora ela era maior que seus problemas. Agora ela sentia forças para

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lutar e superar suas dificuldades.Isabel sentia que estava viva por motivos aquém de seu

conhecimento, mas isso não tornava sua existência menos importante, aocontrário, seu desejo de explorar sua missão nesse mundo veio em seucoração como uma avalanche, que se tornava naquele momento um desejoincontrolável de viver.

Ao fundo da sala, o homem olhou mais uma vez para aquela jovemque finalmente, escolhera o caminho certo.

Estava orgulhoso por saber que ela fora a responsável por suadecisão final, não ele.

Mais uma vida fora preservada. Menos uma alma estava nas mãos domal. Menos um escravo que também se tornaria um ceifador de almas, casoa decisão final fosse a errada.

Ele poderia agora assumir sua nova missão, satisfeito com a última.A partir dali, Isabel não precisaria mais dele, pois ela finalmente

havia tomado a decisão de não se deixar guiar pelas vozes estranhas de suamente. Ela havia se decidido a ouvir apenas os pensamentos lógicos e quepossuíssem coerência.

Outro ser tomaria conta de Isabel. Um que conhecesse mais que ohomem o processo de busca pelo prazer da vida e principalmente, que

ensinasse a Isabel a grande importância que todo ser vivente tem sobre aterra.O homem se foi da mesma forma que chegou à casa de Isabel.

Sutilmente.Isabel sorriu um sorriso breve e voltou a tirar a maquiagem com

movimentos precisos sobre o rosto.O rosto dela agora estava limpo, iluminado, renovado. Seus olhos

brilhavam um verde diferente; claro, límpido.

Uma última vez ela olhou-se no espelho e percebeu, depois de tantosanos, o quanto seu rosto era mais bonito sem a maquiagem.Ela entendeu, naquela imagem refletida no espelho, o quanto ela era

amada por Deus e o quão bela Ele a fizera. Isso já seria o suficiente paraacordar todas as manhãs amando a própria existência, mas ela sabia quemuito mais a vida iria lhe dar.

Isabel se levantou, apagou o abajur e se foi.O ambiente ficou escuro outra vez e a pintura da menina feliz voltou a

ser iluminada pela luz da lua.

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O Crisântemo de Gelo 

Ando por um corredor escuro. Não sei onde vai dar e não me

preocupo com isso.

Sei que algo mudou desde a última vez em que estive aqui. Sempre algomuda, mas não posso vê-lo. Apenas sinto.

Não vejo nada, mas sei que você está aí.

Apesar de não te ver, te sinto e sei que te amo.

Continuo a caminhar; pouco antes de te encontrar, volto ao mundo. O

mundo que todos chamam de real e eu chamo de ilusão.

Sinto medo de te perder. Sento-me na cama. Sinto o líquido escorrendo pela

face. Nada disso adianta."Todo sofrimento é uma forma de purificação.”

Gostaria de ser puro, acho que nunca serei. Não sou digno de pureza.

Levanto-me como todos os dias e desço para tomar café. Minha casa ainda

está vazia. Como ontem. Como antes de ontem. Como sempre...

Gosto da solidão porque nela fico em contato comigo mesmo. O eu

verdadeiro e não o que vendemos para o mundo.

Estou cansado por dentro.Minha alma está cansada.

Vivo a cada dia como se já estivesse nesse mundo há centenas de anos.

Enxergo a realidade das outras pessoas como se já estivesse cansado de ver

as mesmas histórias se repetirem milhares de vezes, à minha frente. Isso

me afasta ainda mais do que todos chamam de comum, tradicional. Isso me

afasta cada vez mais do que deveria ser a forma correta de viver; a forma

segura.

Vivo em dois mundos ao mesmo tempo e estou à beira da loucura. Isso me

deixa feliz, quando estiver louco, não mais saberei o que é a loucura, então

tudo ficara normal. Normal como a vida distorcida de um dependente.

Não quero pensar nisso. Tomo uma ducha, café, me troco e saio.

Estou cansado por dentro. Caminhar me alivia.

Passo por um mendigo e deixo todo o meu dinheiro com ele. Sinto-me bempor fazer isso.

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Caminho até uma viela. Passo por ela e desço um barranco. Logo em frente

eu encontro o que procuro. Meu templo de paz. Uma igreja velha e

abandonada há muito.

"Não se ouvem mais os lindos cantos de louvor. Não se sente mais a

harmonia, o calor..." – apenas a solidão. Há muito tempo ninguém maisentra lá para louvá-Lo. Eu entro. Eu gosto de lá; mesmo sendo um lugar

vazio, empoeirado, triste, eu gosto de lá.

Há um homem lá dentro; um homem cujo amor poderia ajudar-me. Eu o

amo e converso com ele.

Há muito tempo ele está lá. Braços abertos. Cabeça reclinada.

Eu gostaria de ter estado lá para impedir que fizessem tudo o que fizeram

com ele. Mas seria errado.Eu digo que o amo e ele sorri; gosto de vê-lo sorrir.

Eu gostaria de ter estado lá para ter tomado o sangue de sua coroa de dor.

Banharia minha alma com o líquido do seu suplício.

"Homem insano!" – gritariam.

Eu não me importaria; eu não me importo com o que dizem.

Um vento gelado faz meus cabelos voarem. A sacra solidão me entende.

Sabe porque estou triste. Entende o meu amor pelos outros e pela pessoa

do meu sonho. Entende a dor do mundo que está sob as minhas costas por

eu ter escolhido e trilhado outro caminho na vida. Nunca poderei

manifestar esse amor por todos; por ninguém; não tenho essa capacidade.

Eu beijo os pés do meu Amigo e me despeço. Ele diz que me admira e eu

sorrio.

Saio e volto para casa. O dia está nublado; um pálido sol ilumina-me. Parono meio da rua para observá-lo. É tudo tão estranho.

"Os cometas e os raios cairão sobre os corpos. Como iremos nos salvar, se

enquanto deveríamos estar construindo um abrigo para as nossas almas,

estávamos correndo atrás de tolices?”

As pessoas não podem me ver. Estão cegas demais, trancafiadas em seus

pequenos mundos, vivendo em função de seus pequenos objetivos, que aos

seus próprios olhos parecem grandes feitos.Passo por elas sem ser percebido.

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Ninguém se importa; também não me importo. Apenas caminho.

Se eu pudesse, ficaria invisível para sempre. Nunca mais falaria com

ninguém, só com o meu Amigo e com a menina dos meus sonhos.

Continuo andando e não olho para os lados.

Chego em casa, entro no quarto e deito-me.Gostaria de te ver novamente. Sei que não vou suportar durante muito

tempo. Mergulho em pensamentos.

Tento descobrir o sentido da minha vida; o sentido da vida de todos. Tento

ultrapassar esse abismo que existe entre minha alma e a vida comum, como

eu deveria optar em viver.

Não entendo o que é a vida comum; cheia de regras que esfriam as pessoas;

matam aos poucos.O sol está mais forte, um raio penetra pela fenda da janela.

"Seria bom se você estivesse comigo.”

Compartilhar uma dor diminui sua intensidade, quando o outro ser

entender essa dor.

Os minutos não cessam; estar sóbrio é difícil.

Não quero mais pensar em você, fico triste.

Tomo dois comprimidos; meu refúgio. Durmo.

Vejo o negrume à minha frente.

Não sinto medo, não sinto nada. Dormindo sou invulnerável.

Vejo novamente o corredor, sinto que algo mudou.

Atravesso a porta e me deparo com um campo de flores.

Agora está tudo claro. Uma brisa adocicada me acerta. Contemplo a

imensidão do campo.Estou feliz, calmo, sereno...

Olho para uma árvore e você está lá, sentada. Cabelos negros e pele clara;

linda vestida de branco.

Aproximo-me para falar-lhe. Você está olhando o infinito celeste. Pego na

tua mão, ela é macia, há um pequeno sinal nela. Passo meu dedo sobre ele e

você me olha. Seus olhos são quentes e serenos.

Não dizemos nada. Não é necessário; o silêncio fala por nós."De que adiantam juras de amor, se apenas os lábios as fazem, mas não a

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alma?”

Você não me ama, só me admira; mas não me importo com isso, estou perto

de você e isso basta.

Continuamos olhando para o campo. O mundo está em paz agora; nada de

mal está acontecendo. Eu lhe pergunto o que sentes ao olhar o campo deflores.

"Tristeza.”

"Por quê?”

"Quando o vento sopra, as flores vão na mesma direção; isso me faz

lembrar a humanidade.”

"Por que estás tão solitária?”

"Devo aguardar.”"O quê?”

"Há coisas sobre as quais não devemos ter consciência.”

O céu fica escuro, enche-se de nuvens; as flores e nossos corpos são

banhados pela grossa chuva. As flores agitam-se com o vendaval.

Você continua imóvel, olhando.

"O que você sente ao ver a fúria de Deus?”

"Alegria." - você diz.

"Por quê?”

"Só assim serão perdoados.”

"Quem?”

"Vocês.”

"Eu também?”

"Você é diferente.”"Eu sei...”

"E isso é bom.”

"Por quê?”

"Você pode enxergar a alma das pessoas, saber o que elas sentem. Entender

a ingenuidade de todos, a sede inútil de riquezas.

Deus confia em você. Sabe que sua riqueza foi conquistada sem ganância;

sabe como você se sente e tem compaixão de você.”"E tu, tens compaixão de mim?”

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"Tenho afeto por você.”

"Eu te amo...”

Você chora; deixa uma gota de lágrima atingir o solo. Nasce então, um

crisântemo, que ao soprar do vento, se congela.

Eu o tiro do solo e o coloco em seu cabelo, você fecha os olhos para aplacaras lágrimas.

Agora seus cabelos estão molhados e a chuva celeste se mistura com suas

lágrimas.

Eu me ajoelho em sua frente e lhe abraço com forca, somos apenas um; um

corpo, uma existência, uma comunhão suprema.

O tempo passa em nosso mundo muito rapidamente.

Agora você dorme. Já te vi dormindo outras vezes, mas quando se ama, aúltima vez é sempre a primeira.

O crisântemo continua em seu cabelo.

Estou de pernas cruzadas ao teu lado, velando o teu sono. Sou seu guardião.

Passo a mão em seu rosto. Quero te proteger das maldades da vida. Mas

aqui, em nosso mundo, não existe nenhum mal que te atormente.

O que enclausura seu espírito em sofrimento é a consciência de que o lado

de lá é tão distante dos pensamentos e sentimentos que fazem bem à vida

dos seres humanos; e o quanto vivemos anestesiados do verdadeiro

significado da vida. Sinto essa dor, como você, mas tenho que estar nos dois

mundos e conviver com os dias comuns tão amargos para nós, que vemos a

realidade que existe por trás da realidade.

Observando você dormindo, percebo o quanto tenho medo de te perder.

Somente a visão de seu rosto tranquilo, nobre, doce, já me compensa asmarcas que a vida tem deixado em meu coração.

Não tenho medo de ninguém neste momento, só de nós...

Não há mais chuva, mas as nuvens persistem.

Um raio dourado bate em seu rosto.

Seu rosto é meu rosto; acordo...

Sorrio.

Te vi. Toquei-te. Amo-te, sempre te amei."Menina dos meus sonhos, tu és...”

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Não sei. Não há como te descrever. As sensações têm muito mais força que

a realidade.

Quando estou no êxtase da alma, em paz comigo e com o mundo, não

importam os acontecimentos externos; o ser humano é assim; sua dor

nasce e morre dentro de si.Em nosso mundo, amor, a paz é infinita. Meu espírito se conforta em sentir

a magia que o céu possui. Entendo que o descanso eterno daqueles que vão

para o lado bom da existência não consiste em viver num ambiente que

proporcione prazeres como o conhecemos aqui nessa vida, mas na

plenitude dos sentimentos e emoções, como quando somos crianças e as

pequenas alegrias proporcionam grandes êxtases de felicidade, pois nos

atemos ao que vemos e sentimos, e sentimos com plenitude e humildade decoração.

Passaram-se muitas horas enquanto eu dormia.

“Meu mundo imperfeito é mais seguro do que o dos que estão acordados e

não sentem mais nada no coração.”“Menina dos meus sonhos, nosso mundo é mais real e mais seguro, não é?”Gostaria de te ajudar; dar-te as estrelas, te enfeitar com as cores do arco-

íris, mostrar-te a maravilha dum pôr-do-sol.Eu posso lhe dar e fazer tudo isso. Eu possuo a capacidade para isso.

Construí um império durante a metade da vida para isso... Você sabe.

Você sente. Mas não quero trocar nada contigo. A vida me mostrou que o

princípio do amor é a entrega sem a troca. A compensação é o sentimento

de felicidade por saber que o ser amado está feliz. O mundo nos conduz a

buscar recompensas do ser amado. No princípio não era assim. Os corações

se subverteram com a evolução da raça.

Na passada era do romantismo, da sinceridade, das músicas que envolviam

um casal cujo sentimento era sempre simples e puro, todos apenas queriam

encontrar pessoas semelhantes a si próprias.

Os garotos e garotas, no alvorecer dos sentimentos, esperavam que a

bondade da vida lhes trouxesse pessoas cuja forma de pensar, de agir, fosse

muito semelhantes às suas próprias. Duas pessoas enxergando o mundocom os mesmos olhos. Um único coração vivendo em dois corpos diferentes

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e completando-se a cada dia. Encontrar um pouco de si próprio em outra

pessoa era o início de uma caminhada misteriosa e empolgante, para

descobrir cada vez mais as virtudes do companheiro ou companheira, que

logo se tornaria alguém único em suas vidas.

A sensação de conhecer a outra pessoa há muito tempo, apesar do contatorecente, era a energia que conduzia todas as atitudes de carinho e respeito,

permeados de confiança e certeza de que aquela relação só frutificaria em

bons momentos e sentimentos.

Nessa época, os jovens casais se completavam por encontrarem a si

mesmos dentro do olhar do outro. Era como se namorassem com eles

próprios. Isso os levava à plenitude do sentimento de carinho e os

realizava. Isso tornava as relações duradouras, que resultavam em famíliasfelizes... pessoas felizes e com belas histórias de vida; histórias dignas e

inspiradoras.

O tempo passou e, em seu cargo imutável de senhor das realidades, capaz

de contradizer qualquer situação e romper qualquer parede sólida das

decisões humanas ou da crueldade da alma, o tempo trouxe aos corações

dos jovens uma nova visão da realidade: a vida já não é mais amiga poeta

dos que a vivem, pois as pessoas optaram em crucificarem-se a cada dia.

Assim, ao contrário de antes, os jovens corações aguardam que a vida lhes

traga apenas alguém, cuja forma de ver o mundo seja apenas aceitável e

talvez compatível com os seus precários valores.

O coração aguarda um outro coração que lhe ajude a viver a vida com

menos peso e pesares.

A esperança de encontrar a si próprio no outro, se perdeu na tormenta dotempo, e hoje, os corações apenas aceitam quem lhes entenda parcialmente

ou quem, cujos defeitos, não lhes incomode profundamente.

Os jovens corações não se permitem mais acreditar no romance, na

fidelidade completa, inclusive na fidelidade nos pensamentos. Deixaram a

docilidade das relações morrerem antes mesmo de começarem, pois a

dúvida, a desconfiança, é constante em toda parte dos corações.

O “buscar uma alma semelhante à sua” deu espaço a buscar um corpo quelhe agrade.

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A história de amor que os jovens casais se propunham a construir com o

passar do tempo, durante o namoro, agora dá lugar à malícia, cuja

confiança para o prazer físico, surge desde o início da relação.

Os jovens conhecem os corpos, antes de conhecerem o coração.

A sinceridade não é mais requisito principal para que a garota passe aconfiar e a confiança não é necessária, pois não haverá reciprocidade na

relação.

O findar de um namoro, causava angústia, tristeza e dor; hoje, é como um

trocar de roupas - que inclusive gera mais dúvidas e insegurança do que o

fim de um grande amor.

O sentimento é secundário e o prazer do corpo, a prioridade.

O resultado dessa nova forma de pensar, de amar, é um mundo com casaisde corações cheios de malícia e paixão; vazios de amor e fidelidade.

Jovens vidas que se unem pelos valores errados e constroem um castelo

sustentado pelos alicerces errados. O tempo passa e o encanto se esvai... a

paixão é afogada pela realidade e esses alicerces ruem e se tornam mais

lembranças, que logo serão esquecidas, pois a vida sempre traz uma vitrine

de paixões para serem compradas e usadas até se desgastarem novamente.

Optei em não mais viver nesse mundo. O meu mundo é mais seguro e com

minha menina ainda existe vida para os corações. A minha loucura destrói

menos a vida.

A vida nos ensina a sermos pacientes. Aprendi o tempo das flores com você.

Cada etapa, por sua vez.

Meu mundo agora está distorcido.

Imagens num turbilhão. Pensamentos imperfeitos. Pessoas conhecidas,porém diferentes.

“Sim... O nosso mundo é melhor...”

Tenho que sair.

Minha mente está confusa.

Meu corpo está leve.

As imagens estão turvas.

Minha alma está cansada.Minhas pálpebras pesam.

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Estou cansado por dentro.

Olho no meu rosto ao me pentear. Quase perco o sentido quando olho fixo

nos meus olhos. Meus cabelos molhados não são castanhos, são negros.

Os estrondos das pancadas não cessam até eu sentir o líquido vermelho

escorrer por entre meus dedos. Há vestígios brilhantes em minhas mãos.Seria este o ápice da loucura?

Enrolo uma faixa na mão, ela logo fica vermelha.

A vaidade destrói a personalidade; mas que personalidade há de ter um

louco?

Saio.

Para onde vou?

Não sei, apenas vou. Vou como uma criança que caminha com a ajuda daenfermeira pelo corredor do hospital, sem ter consciência de onde levará

tal caminho.

Mas quando ela vê que a dor lhe aguarda ansiosa, pula, grita, mas por fim

aceita; aceita as carícias dos dedos gélidos da senhora dor e aprende a

entendê-la e a familiarizar-se com quem estará contigo por toda a vida, em

diversas formas e intensidades, mas com toda certeza, por toda a vida. Já é

tarde demais, ela não confia mais em seus pais que lhe garantiram que não

precisava temer.

Estou caminhando novamente. Gosto de ver as pessoas.

Se não tomar cuidado, posso cair. Tudo gira. Uma sensação boa.

Por um milésimo de segundo, esqueci de ti, de tua existência.

Estou cansado por dentro; tenho medo de não suportar durante muito

tempo e agora já é noite.“Lua, de infinito fulgor, porque estás tão calada? Foram as dores do mundo?

Foi a dor da solidão? Sua busca está te consumindo? Tenha esperança... Sua

missão está sendo cumprida com louvor. Não muitos lembram de ti, mas

ainda há os que te entendem, mesmo sem palavras, sem consciência disso;

mas te agradecem por você ajudá-los a entender que tudo é maior do que

se vê, do que se pensa, do que se vive.”

Estou me sentindo melhor. Faltam poucos metros para chegar em casa.O farol de um carro me tira a visão por alguns segundos, mas logo ele

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mergulha na escuridão. O ruído de seu motor se desfaz no ar, como um

grito de desespero silenciado subitamente por uma sensação de horror,

dor, raiva e finalmente, a paz.

O vento está mais forte agora.

A lua não para de me olhar.Onde estará você agora? No que estará pensando?

Passo num lugar e compro um maço de cigarros. Serão as únicas luzes da

madrugada que está por vir.

Chego em casa, bato a porta, que produz um som semelhante a uma breve

despedida da rua escura.

Agora estou no sofá. Fumo no escuro e ouço gravações antigas.

Observo como a minha sala está intacta, silenciosa. Há vários mesesninguém toca nos móveis além de mim.

Meu Deus, o que está acontecendo? Por que sinto a necessidade de me

isolar durante tanto tempo?

Meu pensamento adquiri a força de uma voz e posso ouvi-lo mesmo sem

mover os lábios.

Agora eu sinto um certo medo de dormir.

Sonhando sou imortal, mas ao te ver, sou como o crisântemo de gelo.

O crisântemo está a minha frente agora e brilha na escuridão, como a lua

que continua a me olhar.

Quero tocar na flor...

“É bom te ver novamente,” você diz.

Acho que não estou no seu mundo, mas você está no meu.

“Não quero te esquecer”, digo.Você percebe o tom amargurado de minha voz e percebo em seu olhar que

você tem dó de mim.

Então me lembro de que não posso me integrar ao seu mundo e nem você

ao meu. Uma barreira impenetrável.

Vamos conversar...?”

Você sorri e diz que sim, vamos conversar.

“Como foi seu dia?” pergunto como se essa pergunta fizesse algum sentido.Você sorri e não responde; sabemos que não existe esse tipo de coisa no

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seu mundo.

“Por que você veio até mim?”

“Senti sua falta...” - só então percebo que realmente significo algo para você.

“E o nosso mundo?” - pergunto.

“Continua belo. Belo e feliz.”“Nosso mundo é a vida, amor...”

“Ninguém consegue entender a grandeza dessa vida.”

“Só nós a vemos.”

“É uma riqueza pertencente somente aos que conseguem penetrar em

nosso mundo.”

“Os loucos?”

“Os loucos são as criaturas mais felizes da terra, pois nunca terão acapacidade de gerar o mal, nem nunca ofenderão ao Criador. Os loucos são

condenados à felicidade eterna após esta vida.”

“Eu sou louco?”

“Pergunte ao seu Amigo.”

“Ele sabe me responder?”

“Ele sabe de tudo.”

“E você?”

“Há coisas que nem os anjos sabem responder.”

“Por que tudo é tão complicado?”

“Nada é complicado, o homem torna as coisas assim.”

“Eu devo voltar a se como todos?”

“Busque...”

“Buscar o quê?”“O sentido da vida. O sentido de tudo. O verdadeiro. Você deu apenas o

primeiro passo”

“Já não é tarde para isso?”

“Criaturas com três séculos de existência conseguiram encontrar o sentido

da vida.”

“Eu gostaria de ficar ao seu lado para sempre.”

Você sorri. Tira o crisântemo do cabelo e o joga para mim. Eu o pego.“Eu gostaria de fazer parte do seu mundo.”

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“O seu mundo precisa de você.”

Você diz essa frase num tom longínquo e minutos após, some. Deixa-me na

escuridão. Mas agora eu tenho o crisântemo de gelo entre as mãos, fruto do

teu sofrimento, um pedaço de você.

Passo a madrugada pensando no que conversamos.Logo o sol começa a sangrar além das manchas cinzentas da cidade.

Todos acordam e eu durmo. O inferno recomeça lá fora e eu volto ao

mundo dos sonhos.

Estou novamente aqui, o corredor continua escuro... Caminho sem pensar

em nada. Quando me dou conta, estou na velha igreja. Olho para a parede e

vejo que a cruz não está mais lá!

Viro-me e vejo meu Amigo. Agora não há mais sangue em seu rosto nem emseu corpo. Ele veste uma roupa longa, fosforescente.

Por trás dele há o vazio daquele lugar.

Vazio que fala ao meu espírito como nunca havia sentido antes. Uma

atmosfera em desequilíbrio com o que sou.

Ele se aproxima e não diz nada. Observo seu olhar e entendo que há algo a

ser dito. Não há necessidade de palavras para os que acordaram da

realidade mórbida.

“Onde está ela está?” – pergunto.

“Ela não mais está conosco, filho.”

“Onde ela está?”

“Ela foi para um lugar aonde você nunca chegará enquanto vivo.”

“Ela voltará?”

“Sim.”Fico em silêncio enquanto contemplo a face de meu Amigo. Então me

recordo das perguntas que quero fazer-lhe.

“Senhor, eu estou louco?”

“Não; você é abençoado.”

“Então, qual o sentido da minha vida?”

“A vida de todos, filho, só tem um sentido, buscar a Verdade.”

“Mas onde eu posso encontrá-la?”“Dentro e fora de si.”

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“Mas, como?”

“Cumprindo o que a vida lhe pediu para ser cumprido.”

“O que a vida me pede?”

“Há uma voz que fala ao seu coração desde a sua juventude. Faça silêncio e

ouça-a. Ela lhe pede para fazer o que satisfaz o seu espírito, sem machucaros que estão à sua volta. Doe-se.”

“O que...?”

“Um sorriso sincero; um consolo aos desconsolados; um beijo na face dos

solitários, para mostrar a eles que não estão sós.”

“O que um ser angustiado pode oferecer aos outros, Senhor?”

“A angústia.”

“Por que eu sou assim, Mestre, por que eu não volto a viver como todos?”“Você está em uma das mais difíceis jornadas, filho. Jornada que muito

poucos fazem. Preferem se integrar ao mundo comum, tendo o valor como

mestre.”

“O que eu encontrarei no fim dessa jornada?”

“Encontrará a ti mesmo e junto, a mais perfeita paz.”

“Há momentos, Mestre, que prefiro ficar com a pessoa que amo, e nunca

mais acordar para o mundo.”

“Você é indispensável para a existência terrestre, filho; todos vocês o são.

Se não existisse a necessidade de sua existência, você simplesmente não

existiria.”

“Por que tudo parece ser tão misterioso?”

“Uma das mais belas maravilhas é o mistério; e se fosse oferecido aos

homens os conhecimentos de Deus, eles os usariam em benefício próprio.”“Senhor, Tu disseste que devo doar-me; quero doar a minha vida para a

menina dos meus sonhos.”

“Ela não necessita mais dela do que você.”

“Nós nunca poderemos viver juntos?”

“As coisas nunca são as mesmas para sempre, filho, lembre-se disso.”

Ele se vai. Viro-me e olho a cruz, ele está lá novamente, mas agora não

parece sofrer tanto quanto antes.Desperto.

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O dia está muito bonito lá fora.

Vou até o parque; como fazia quando pequeno em domingos quentes.

Sento-me na grama banhada pelo sol.

Tenho certeza de que não estou sonhando, pois existem vários garotos a

minha frente jogando bola; senhoras trabalham com as mãos sentadas nosbancos; babás passeiam com carrinhos pelo parque; velhos com seus livros

de poesia; jovens conversam sentados no chão em círculos; e nos meus

sonhos não existe ninguém, só eu e a minha princesa.

Fico observando a todos, e tento esquecer que não te verei durante algum

tempo. Ficar sem ti seria o mesmo que ter um corpo sem alma.

Eu não sei para onde você foi, mas anseio por te ver novamente.

“A mim, reles mortal, dominado por sentimento mais forte que a própriavontade, cabe apenas esperar.”

Enquanto isso a minha vida segue em frente. Não posso me entregar.

Continuo a observar a felicidade dos outros e penso como tudo poderia ser

assim, domingos dourados de paz.

O mais humilde ocupar o mais nobre trono e conduzir a todos com o

equilíbrio perfeito; os amigos poderiam a amar o que somos; que o beijo

não fosse uma arma para fazer uma alma sofrer e o demônio sorrir; e que

todos nós não o crucificássemos todos os dias.

Mas isso não é o real. O real é a morte que ronda os corações e os inebria a

pouco a pouco, até os transformarem em máquinas de sentimento.

O real não aguarda o levantar-se de uma queda para logo em seguida atacar

novamente. O tempo não cessa. A vida não cessa. Nada cessa. O ciclo

sempre recomeça e assim foi comigo.As coisas nos aparecem como sonhos bons que parecem ser eternos, mas

nos esquecemos que a eternidade também é finita; então acordamos,

ficamos com medo e nunca mais nos permitimos sonhar. Assim foi com

você.

Passaram-se oito meses, que para mim pareceram ser uma eternidade.

Faz muito tempo que não te vejo. Muita coisa mudou. Muita coisa no

mundo e em mim.De dia não tenho tempo para quase nada, mas à noite... As noites não

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mudaram. Fico triste em saber que você está tão longe e ao mesmo tempo

está comigo.

As noites talvez nunca mudarão; sempre sentirei sua falta.

Guardo o crisântemo até hoje.

“A única lembrança que tenho de ti, meu sonho bom, minha menina.”Foi difícil suportar a vida sem você durante esse tempo todo.

Sempre me deito tentando dormir antes que as lembranças me dominem;

mas é quase impossível.

Sinto saudade do nosso mundo, amor, nunca mais estive lá.

Vez ou outra vou até meu templo de paz conversar com meu Amigo. Ele me

mostra as coisas que estão acontecendo em toda parte; então percebo que

já não há maldades nesse mundo que já não tenham sido praticadas.Ninguém percebe até onde nossa loucura nos trouxe.

Eu sou forte, posso suportar. Sempre suportei; mas às vezes, ao me ver só,

tendo a mim mesmo como único apoio e tendo o mundo vazio como

companhia, sinto-me fraco, então rezo e imploro para lhe ver de novo.

“Meu sonho azul, minha princesa; és tudo o que dou valor em minha vida e

por que me deixas tão triste e por que me fazes tão mal...?”

O meu Amigo me mostrou o caminho da Verdade, percebi que a vida é

como a busca do horizonte: caminhamos até nossos pés sangrarem, nossos

corpos doem, ficamos fracos, mas temos o conforto de saber que a cada dia

estamos mais perto dele.

Aprendi que devemos viver como se cada dia fosse o último. Nosso e dos

que nos rodeiam, só assim perceberemos o quanto a vida é valiosa.

Mas não sou perfeito, nunca te esquecerei.Mas não quero falar disso.

Minha noite de ontem foi uma corrida atrás do vento. Uma escuridão

eterna, sem magia das luzes, sem campos, sem maravilhas. Uma noite

normal, calma. Uma noite como a de todos. Uma noite como a de qualquer

ser humano comum.

É bom sentir-se vivo...

A princípio foi apenas uma chuva de neve; e a neve se transformou emvestígios de imagem e os vestígios se transformaram em sonho. Meu

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primeiro sonho desde que abandonei meu vício.

Estou em uma praia do nosso mundo.

Há montanhas ao longe. Existem dois sóis se pondo ao longe. A imagem

encanta.

Também há coqueiros na areia e pedras grandes banhadas pela água domar.

Um vento calmo flutua, anunciando a paz. Mas não essa paz que estou

vendo, sentindo. A verdadeira paz. Essa tem de ser conquistada.

Sinto-me extremamente feliz por estar aqui de novo. Apesar de não mais

odiar o meu mundo, sinto-me melhor aqui.

Começo a caminhar na areia... Sinto que logo te encontrarei.

O sentimento de alegria é frágil, superficial... perde-se com facilidade ante afrieza da realidade. Um êxtase traiçoeiro.

A imagem que vejo agora dilacera meu coração.

Você está sentada na areia. Seu vestido branco flutua com o vento. Você

está contemplando um ser desconhecido. Um habitante do seu mundo.

Ele está em pé à sua frente. Suas asas são douradas e brilham. Seus olhos

têm cor de fogo. Percebo que você fica maravilhada com apresença de algo

tão estranho.

Ele ajoelha à sua frente e segura a sua mão.

Eu corro em sua direção. Corro para destruir aquele ser.

Minha fúria é minha arma; não posso te perder. Ainda tenho você dentro de

mim e agora que te vi, percebo o quanto ainda preciso estar ao seu lado,

mesmo sabendo que nunca poderia ter-te para mim.

Não quero que isso aconteça, não posso permitir.Corro e sinto o impacto no meu corpo. Há uma barreira, uma parede

invisível que me impede de chegar até você. Recebo um choque que me faz

perder o equilíbrio e tombo na areia branca.

Minha boca sangra; meu rosto e minhas mãos estão sujos de areia. Meu

corpo treme.

Aquela sensação de estar vivendo um pesadelo começa a dominar meu

coração.Atirado no chão, sem poder ultrapassar a barreira que separa os nossos

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mundos, eu desisto. Vejo-te subir no cavalo prateado daquele ser. Um ser

vivo com um chifre de diamante, logo abaixo de seu único olho cor-de-rosa.

O cavalo alça voo e vocês desaparecem. Fico sozinho. Então percebo o que é

estar sozinho também no coração. Enquanto você estava distante, mas

ainda estava com seus pensamentos em mim, eu te sentia. Minha almaestava confortada por haver um elo entre nós... mas agora, que não estamos

próximos e nem seu coração lembra de minha existência, então a

intensidade da solidão é muito maior, verdadeira, sinto também, definitiva.

Tiro forças da esperança de resgatar-te. Levanto-me e corro em sua direção

novamente.

A descarga de energia dessa vez é mais forte. Sou atirado longe e todo o

meu corpo sangra.Ainda no chão, me apoio na areia. Cravo os meus dedos nela. O sangue se

mistura com as lágrimas.

Entendo que você não quer ser resgatada. Entendo que nunca mais te verei.

É difícil acreditar, mas, te perdi seu coração, então nunca mais você será

minha. Não me movo.

Sinto as gotas da chuva rebentarem nas minhas costas e o mar chora

comigo.

A chuva se converte em sangue e cai sem piedade sobre minha vida.

Um pássaro branco pousa sobre mim. Ele passa sua cabecinha na minha

mão; me consola, chora comigo.

Tudo ao redor está vermelho, a areia está banhada de sangue, o mar, as

pedras, meu corpo, minhas roupas e minha alma.

Sinto tanto frio... Por sua culpa...“Eu te entendi, te cuidei... Ah, como lhe quis tanto bem... Fui teu verdadeiro

amigo, te fiz companhia e chorei contigo. Ah, como lhe quis tanto bem...”

Levanto-me. Minha roupa está suja e meu corpo dói. As gotas vermelhas

continuam escorrego pelos meus cabelos e pela minha face. Como sinto

frio...

Fico olhando para o horizonte. Digo em voz baixa, apenas para mim e para

meu pequenino companheiro que está em meu ombro:“E agora? De que serve a vida sem inspiração para vivê-la?”

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A chuva continua.

Meu peito arde.

E tudo continua...

“Adeus mundo perfeito. Adeus, meu sonho bom...”

Acordo.Estou transpirando muito.

Sento-me na cama para conseguir respirar. Levanto-me após alguns

minutos e caminho até a minha mesa. Observo que a caixa em que

guardava o crisântemo caiu e a flor se fez em pedaços.

Ajoelho-me e recolho os seus cacos na palma de minha mão; fecho-a com

força.

Sei que tudo acabou e agora começo a sentir-me diferente.Meu renascimento começou neste sábado de sol.

Com a luz do sol entrando pela minha janela, veio também a benção de

quem evoluiu.

Troco-me e vou tomar café.

Na mesa, percebo o silêncio que domina o ar, então digo uma palavra. Uma

palavra qualquer eu digo, sem sentido, apenas para ouvir a minha voz.

Dou um sorriso bobo.

Sei que agora sou imortal também acordado. Nenhum sentimento mais

tomará conta da minha alma, apenas a paz.

Sinto-me feliz por saber que consegui conhecer a mim mesmo e que minha

jornada chegara ao fim.

Sinto-me bem, está tudo bem agora.

Saio na rua, vou para o parque. Depois ligarei para alguém, qualquer colega,tomaremos algo e conversaremos.

Caminho pela rua e me encontro com um vizinho meu. Ele me pergunta se

me sinto bem nesta manhã e lhe respondo que sim. Verdadeiramente me

sinto bem.

Sei que não sou mais o mesmo. A cada etapa da vida mudamos e nos

tornamos outra pessoa; mas a transição é sempre dolorosa. Não existem

ganhos nesta vida, apenas trocas. Constantemente trocamos dores porvirtudes, por evolução; esse é o princípio da vida.

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O dia passa tranquilo e chega a noite.

Deitado na cama eu me sinto em paz, porque agora não mais tenho medo

de dormir. Fecho os olhos e descanso.

Estou livre. Renovado para recomeçar.

Estou livre. Da liberdade que liberta de dentro pra fora. Do espírito para ocorpo.

Estou livre. De mim mesmo, do mal, das coisas do mundo.Estou livre... Para sempre.

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Você Acredita que sou um Anjo? 

Fria era atmosfera que envolvia aquele local. As estátuas dos santoscom seus semblantes petrificados observavam o jovem, que meio à solidão,rezava ajoelhado, apoiando os cotovelos no banco da igreja.

O ruído dos passos que passaram a ecoar na porta principal, nãodespertou sua atenção, tamanha a sua angústia.

O jovem rezava absorto em sua culpa, seu autoflagelo religioso, embusca do caminho, que desde sua infância ansiava por encontrar, Umcaminho que lhe desse a certeza de estar seguindo a luz da bondade,através de atitudes que despertassem o olhar de Deus e este o acolhesse,ainda em vida, no grupo dos escolhidos; aqueles que estão no mundo para

fazer o bem e após a morte, finalmente terão suas almas recolhidas naeterna paz e plenitude de espírito.Há muitos anos a rotina se repetia; ele se recolhia nas tardes

ensolaradas naquele santuário praticamente abandoando e olhava para ossantos suplicando ajuda. Seu coração há muito aguardava uma intervençãosobrenatural; algo que realmente confirmasse em seu coração estar nocaminho certo; o caminho do bem.

O ruído dos passos não cessou. Passos firme que aumentavam

lentamente, até que a mulher parou ao seu lado e ficou observando-o. Semdizer uma só palavra, ela sentou-se no banco logo atrás do jovem e passoua olhar para o altar, inexpressiva, aguardando mais alguns instantes atédizer:

“Ele já ouviu suas preces”.A mulher ganhou a atenção do jovem, que lentamente tirou o rosto úmidode entre as mãos e passou a observá-la, receoso.Ela continuou imóvel, olhando para frente, como se ele não estivesse ali. Ele

voltou a rezar, ignorando-a.“Já pode parar. Ele já ouviu suas preces.” – repetiu ela.

Desistindo da oração, ele sentou-se e ficou a espera de alguma explicação ejustificasse aquela atitude invasiva.Ela não reagiu imediatamente; aguardou até ele virar-se para ela e encará-la, impaciente e nitidamente incomodado.

“Por que vocês fazem sempre essa cara?” –pela primeira vez a estranha olhou para ele, firme, enérgica.

Ele continuou observando-a, sem reação.“Vocês rezam pedindo, pedindo... e quando nós vimos resolver o

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problema, vocês não nos dão crédito.”“Quem é você?” – ele questionou, considerando que qualquer diálogo

não poderia ocorrer antes dessa questão ser esclarecida.“Sou um anjo.” – ela explicou num tom sutilmente irônico, de quem já

esperava uma reação típica, pois já observara esta mesma reação centenasde vezes.O jovem sorriu, pensando tratar-se de uma brincadeira e voltou-se para oaltar outra vez.

“Qual o problema? Anjos sempre têm que ser homens?”O jovem não respondeu.

“Por que vocês humanos nunca acreditam naquilo que nãoconseguem explicar?”Visivelmente irritado com a situação, ele se virou outra vez para a mulher ea afrontou em sua resposta:

“Porque seres humanos são racionais e só acreditam no que pareceser racional.”Ela não respondeu, como que contendo a força de uma resposta à alturadaquela afirmação, incoerente, do rapaz. Olharam-se por um instante atéque ela sorriu e respondeu meneando a cabeça:“Hmmm... Então te parece racional tirar uma vida por alguns trocados? Te

parece racional usar a tecnologia para salvar milhares de vidas e destruirmilhões? Te parece racional sentir prazer com os vícios, consciente dadestruição do próprio corpo? Te parece racional destruir seu própriomundo por motivos egoístas?”Ela aguardou uma resposta, já sabendo que esta viria em forma deesquivamento.Ele permaneceu observando-a, sem reação, até que novamente tentou pôrfim a conversa.

“Bom... eu nunca fiz nada disso.”“A sua raça faz! Você também faria se estivesse na mesma posiçãodas pessoas que praticam essas coisas!”Ela deu por encerrada esta etapa da conversa e voltou a olhar para asestátuas no altar.Ele a observou por mais uns instantes, tentando compreender o que estavase passando, mas desistiu, apenas rebatendo, sem argumentar sua posiçãonaquela breve discussão:

“Não faria não.” – e virou-se pra frente.Em seguida o jovem se levantou e estava caminhando pelo estreitocorredor de bancos em direção à porta da igreja, quando ela o interrompeu:

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“Não vá ainda.”Ele parou e, estando em pé ao seu lado, observou-a impaciente.

“Atenda seu telefone antes.” – ela apontou para o bolso da jaquetaque ele usava e com confiança inabalável, voltou a olhar para frente.O jovem sorriu, já acreditando que aquilo seria uma brincadeira de maugosto e respondeu-lhe:

“Meu telefone não está tocando.”Seu telefone tocou.Ele o atendeu em movimentos rápidos, com semblante curioso. Do outrolado da linha, ele ouviu a voz da mulher perguntando:

“Agora você acredita que sou um anjo?” 

Assustado ele jogou o telefone no chão e se afastou da mulher.Ela se levantou num movimento comum, mas que de alguma formainspirava um poder fora do comum e assumindo uma postura determinada– como se anunciasse que as apresentações estavam encerradas e era horade começar a falar do que interessava – ela se aproximou dele, tocou seuombro, a fim de demonstrar um gesto de confiança e pôs-se a explicar-lhe.

“Ouça... precisamos ser rápidos. Você veio até este lugar para pedirque ele – apontou para o altar – lhe ensinasse a ser bom e agora você foiagraciado com o dom de ser um de nós. Você aprenderá o trabalho que

fazemos com os seres humanos na terra; eu mesma te ensinarei tudo”.Ainda divido entre permanecer atônito ou desconfiado das intenções dela,o jovem balbuciou:

“...e depois?”“Depois você será um anjo, como eu e continuará meu trabalho.” –

completa, animada.O jovem lança um olhar perdido, tentando digerir toda a situação e senta-senovamente.

A mulher senta-se ao seu lado e ainda sozinhos meio aos bancosempoeirados, ela continua a lhe explicar como tudo funciona.Anjo e protegido caminhavam lado a lado pela calçada de uma rua

movimentada.As roupas dela, apesar de pretas, justas que eram, reluziam da cabeça aospés. Sua forma de caminhar também refletia a determinação e aobjetividade de quem sabe exatamente para onde está indo, com queintenção e por qual caminho.

O rapaz tentava acompanhá-la, com uma postura o mais ágil possível,porém claramente via-se que sua inexperiência de vida, ingenuidade e atébanalidade na forma de viver, gritava-lhe no jeito de ser, dos pés à cabeça e

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até em seu respirar.Vez por outra ele fazia alguma pergunta a ela, que respondia

prontamente, mas de forma seca, sem brilho nem detalhes.Ao longe, as pessoas observavam um jovem caminhando sozinho, falandopara o nada.Mais alguns minutos de caminhada e ela começou um discurso formal,quase decorado, instruindo-o.

“Na maioria das vezes, nós anjos não sabemos o futuro; não sabemoso que irá acontecer. Porém, em alguns casos, podemos prever algunsminutos do futuro, para podermos tomar a decisão certa.”

Há um quê de aflição em sua voz, como se ela estivesse agoracorrendo contra o tempo.

“Alguns acontecimentos da vida dos humanos, nós não podemosevitar. Mesmo que pareçam acontecimentos ruins para eles, sãonecessários para evitar que algo pior aconteça.”A mulher para bruscamente e olha para o jovem fixando-se em seus olhos.

“Alguns sacrifícios podem ser evitados... Outros não.” – ela dissecomo se fizesse uma apresentação do que estava para acontecer e emseguida olhou para uma pequena multidão de pedestres que estavaatravessando a avenida.

“Aquele homem... – ela aponta para um senhor vestindo calça de sarjamarrom e uma camiseta amarrotada, com um gorro na cabeça – ...ele seráatropelado.”O homem estava atravessando a avenida alguns metros atrás da multidão eparecia estar muito nervoso, ao ponto de não perceber que o farol depedestres já estava fechado e os carros voltavam a dominar a avenida.

O jovem saiu correndo e se jogou sobre o homem, alguns segundosantes de um carro velho passar em alta velocidade. Ambos caíram no chão,

próximo à calçada, que logo se encheu de curiosos para entender o queacabara de acontecer. Com um olhar fixo, assustado, como o de quem foidespertado de um transe, o homem se levantou bruscamente, empurrandoo jovem e a todos os que ele encontrou em sua frente, abrindo espaço parasair correndo daquele lugar, sem se dar a chance de entender o queaconteceu.

“O senhor está bem?! Volte...” – o jovem ainda tentou se comunicarcom o anônimo que já estava longe de todos em alguns segundos.

“Você age rápido.” – disse a mulher que agora estava atrás do jovem,interrompendo sua última visão da quase vítima do atropelamento queacabara de se misturar à multidão.

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Dentro de uma farmácia comum, a mulher caminhava por entre asprateleiras, observando detalhadamente as embalagens dos remédios àmostra.De forma casual, ela pegava as caixas, examina e devolvia na prateleiraoutra vez. O jovem caminhava atrás dela, aguardando instruções.

“Em nosso trabalho, nunca devemos aparecer para os humanos. Elesnão podem nos ver, se assim o quisermos.”

“Quando há necessidade de intervenção física, usamos alguém queesteja próximo do protegido. Falamos no ouvido deste e ele sem saber querecebeu uma sugestão, executa a tarefa que executaríamos se nosdeixássemos sermos vistos”.

A mulher se virou e entregou a ele uma caixinha de medicamento.“Mas nem sempre há seres humanos por perto – continuou ela –

então, temos que aparecer e fazer o trabalho da forma mais “casual”possível, para não levantarmos suspeitas de quem somos de verdade.”

Ela moveu a cabeça para o lado do caixa e passou a observar umaidosa que estava no caixa da farmácia pagando sua compra.O jovem caminhou até o caixa e aguardou, a fim de entender a situação epoder interferir, conforme as instruções do anjo.A velhinha revirava a bolsa em busca do seu dinheiro. Atrapalhada, retirava

algumas notas amassadas e as colocava sobre o balcão.A atendente pegou as notas, as colocou em ordem e constrangida, avisou avelhinha:

“Não é o suficiente, senhora.”A senhora voltou a revirar a bolsa e colocou mais algumas moedas sobre obalcão.A atendente separou as moedas, contando-as com o dedo indicador e aindamais constrangida, comunicou outra vez:

“Ainda não é o suficiente, senhora. Sinto muito.”A outra demonstrou uma profunda amargura e afastou com a mão acaixinha de remédio que estava sobre o balcão, ajeitando em seguida abolsa para ir embora.Quando estava recolhendo suas notas, o jovem deu um passo à frente,segurando uma nota a colocou sobre o balcão.

“A senhora deixou cair.” – falou para a idosa, poupando-a doconstrangimento de aceitar esmola de um estranho.

“Obrigada, filho”. – A velhinha sorriu, agradecendo e rapidamentecolocando a pequena caixa na bolsa para retirar-se em seguida, sem olharpara traz.

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A atendente também sorriu, satisfeita com o final da história.Era noite enquanto o anjo e o jovem caminhavam até um beco escuro

e em silêncio, puseram-se a aguardar. Apesar da inquietação, o jovem seesforçou por não questionar o que estaria para acontecer. As poucas horasna companhia daquela mulher já fora o suficiente para ele se convencer deque ela sabia o que estava fazendo e ele deveria continuar seguindo suasinstruções e nada mais. Mulher de poucas palavras aquela.

“Observe aquele carro”. – ela apontou para um carro grande, velho,que estava estacionado do outro lado da rua, em frente a uma casa térrea,onde, só então o jovem percebera, acontecia uma festa.

Uma garota aparentando não muito mais de 15 anos saiu pela portada frente da casa e conversava animadamente com outra garota, queparecia tê-la conduzido até a calçada para despedir-se.

“A garota que está saindo...” – continuou o anjo enquanto as garotasse demoravam na despedida – “...ela mora com o padrasto. Ele bebe e batenela quase todas as noites. Hoje ele tem um motivo a mais para beber; seusamigos o levaram para um bar, depois do trabalho, para comemorar seuaniversário e ele vai chegar em casa mais embriagado do que nunca. Seessa menina chegar antes dele, ela apanhará novamente e ele vai violentá-la.”

O rosto do jovem transtornou-se e sua mente pôs-se a imaginar comoatrasar a chegada da garota por algum tempo.“Os pneus...”   – ele ouviu em sua mente a instrução, como se alguém

houvesse sussurrado em seu ouvido.Sem olhar para a mulher, ele correu até o carro e rapidamente pôs-se aesvaziar os pneus do carro da garota.

O sol ao longe mostrava seus primeiros raios. O jovem observava um

amanhecer diferente, depois de tantos acontecimentos estranhos, mas

satisfatórios.Eles estavam sobre um viaduto que já começava a se tornar movimentado,

invadido por carros e pedestres sempre atrasados e impacientes.

Dentro de si, o jovem sentia-se muito mais confiante e havia aprendido a

confiar na mulher; afinal de contas ela era realmente um anjo e ele estava

prestes a ser um também.

O clima daquela manhã lhe dizia que seu treinamento estava no fim e

movido pela autoconfiança de seus êxitos, ousou perguntar:

“E agora, o que?”

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Após observá-lo um pouco com um leve ar de satisfação por sua mudança

de postura, ela respondeu seriamente:“Existem regras que devemos seguir. Regras que existem desde a

fundação do mundo. Dessas regras nem mesmo os anjos podem fugir.

Seja qual for sua origem, humana ou celeste, você está sujeito a elas.”O jovem permanecia quieto, aguardando.“Uma dessas regras diz respeito ao que chamamos de sacrifício. Você

não pode obter algo grande, sem perder algo menor. Para toda conquista,deve haver um sacrifício.”“Para conquistar uma condição melhor na sua evolução, você deve abrirmão de algo de que depende agora.”Ele esperou que ela traduzisse esse princípio do mundo celestial, mas em

face de seu silêncio, comprometeu-se:  “Estou disposto a entregar qualquer coisa para ser um anjo.”A mulher permaneceu imóvel, em silêncio, observando-o, como queincitando-o a expor com mais intensidade sua coragem e desprendimento.

“Me diga o que tenho que fazer...” – pediu o jovem, determinado aabrir mão de qualquer coisa para obter a condição celeste.

“Nós anjos não somos visíveis. Você ainda possui um corpo.” – eladisse, inexpressiva, aguardando sua reação.

O jovem demonstrou surpresa por um breve momento, mas logo serecordou do vislumbre da grandeza do que almejava obter e em seguida adeterminação de ir até o fim com a busca que iniciara alguns dias atrás.  Sem dizer palavra, caminhou até a beira do viaduto, subiu noparapeito e antes que pudesse chamar a atenção de alguém, abriu os braçose saltou.

A igreja continuava vazia e silenciosa. Apenas um pequeno grupo depessoas estava sobre o altar, velando o corpo do jovem que repousava

dentro do caixão, emoldurado por crisântemos, demonstrando em seusemblante a mais profunda tranquilidade.  Seu espírito estava um pouco mais distante do altar e observava aspessoas se lamentarem sobre seu corpo, discretas, contidas.

A mulher surgiu e faz-se notar, tocando em seu ombro, despertando-o daquela triste cena.Eles caminharam até os primeiros bancos da igreja, afastados do pequenogrupo.

A tranquilidade que agora dominava os simples movimentos damulher era impressionante. Até mesmo seu olhar e sua voz pareciam ter

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ganhado outra essência, como se ela estivesse muito mais satisfeita erealizada que em todas as horas em que estiveram juntos.

“Agora eu sou um anjo?” – perguntou o rapaz.“Ainda não.” – respondeu ela.Ao ouvir sua resposta, ele deu dois passos pra trás, como que

entrando em desespero e passou a justificar-se:“Mas... eu fiz tudo o que você mandou. Entreguei meu corpo... O que

mais é preciso? O que ainda falta?”“Falta uma aliança. Não existe fidelidade sem um selo... um pacto.”“Estou aqui. Vamos fazer o pacto...” – respondeu ele, um pouco mais

sereno.  A mulher se voltou para ele em movimentos precisos e olhandodentro de seus olhos, perguntou, solenemente:  “Você quer fazer aliança comigo?”

“Sim, eu quero.” – respondeu ele, sem deixar-se tempo parahesitação.

“Você me será fiel e continuará meu trabalho sobre a terra?” – elaperguntou.

“Sim.”A mulher retirou de seu sobretudo um punhal e num movimento

exaustivamente ensaiado, cortou o pulso do jovem e em seguida cortou oseu próprio pulso, encostando os dois cortes de maneira firme.O jovem não sentiu dor e ficou observando os sangues se misturarem,pingando no chão da igreja.Sem desgrudar os pulsos, a mulher aproximou sua boca do ouvido dojovem e sussurrou:

“Eu te nomeio um anjo das trevas a serviço de satanás, por toda aeternidade.”

O jovem sentiu um profundo mal-estar, olhou para os sanguesvertendo em sua frente e não conseguiu raciocinar direito. A sensação quedominava sua consciência era a mesma de quem estava tendo um pesadelo,instantes antes de acordar, com o terror ao seu encalço, mas sem ter oprivilégio de poder acordar. Ele sentia a realidade espremer-lhe o coração esentencia-lo à impossibilidade de voltar atrás.

Ele puxou o braço de volta pra si e deu dois passos para trás, seafastando da mulher. Sentindo o que parecia ser o início de uma revolta

misturada com terror e decepção, ouvindo dentro de si vozes que sua novanatureza impunha-lhe possuir, o jovem passou a encará-la a espera deexplicações.

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A mulher também o encarou, mas de forma casual, como que jáesperando aquela reação.

Ela envolveu o pulso em um lenço que havia tirado do sobretudo esorrindo lhe perguntou:

“Se sentindo enganado?”“Isso não é verdade!” – ele gritou, já ciente que a presença de ambos

era invisível para os demais.A mulher terminou de ajeitar o lenço e passou a explicar-lhevagarosamente:

“Você aceitou trabalhar para as trevas. A escolha foi unicamente sua.Eu não te obriguei a nada.”

“Eu não trabalhei para o mal. Nós ajudamos pessoas... nós salvamosvidas!” – ele defendia-se.

Ela caminhou se aproximando outra vez e colou seu rosto no dele:“Vidas? Quais vidas?”Ele se esforçou para manter-se firme:“O homem que seria atropelado... a garota da festa... a senhora da

farmácia...”  Ela examinou todos os cantos do seu rosto, com o olhar eperguntou:

“Tem certeza, rapaz?”Lentamente a mulher repousou uma das mãos em sua cabeça etomado por um turbilhão de imagens e sensações já vividas, o jovempassou a rever todas as situações em que ele ajudara as pessoas, porém,enxergava também o que ocorrera depois de sua intervenção na vida delas.O homem que fora salvo do atropelamento, logo depois de se afastar daavenida, entrou em uma galeria e assaltou uma loja, baleando uma mulhergrávida.

A senhora que saiu da farmácia com os comprimidos, chegou em casa etomou todos de uma única vez, tombando sobre a cama, à espera da morte.A menina que saíra da festa, só percebeu que seus pneus estavam vaziosdepois de rodar algumas centenas de metros e ao procurar ajuda no meioda madrugada, deparou-se com bandidos que a mataram antes de levar seucarro.A cada nova situação visualizada, o jovem transpirava e contorcia o rosto,sentindo as mesmas dores das vítimas.

A mulher finalmente tirou a mão de sua cabeça e ele despertou do transerapidamente. Atônito, envergonhado e transtornado, ele começou a chorar:

“Não é justo... Você me mandou fazer tudo.”

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Ela balançou a cabeça negativamente e rebateu:“Você fez tudo o que quis  fazer... eu não pedi para você tomar

nenhuma atitude.”  Ele refletiu por alguns instantes e foi obrigado a admitir para simesmo a verdade. A mulher não lhe orientara a fazer nada, apenas oinduzira, de forma sutil e maliciosa.Aterrorizado pela autoacusação de destruir as vidas que ele pretendiaproteger, o jovem apelou para seu último argumento:

“Você também é responsável Você estava comigo!”Como quem dá uma bronca em uma criança inconformada, a mulher

esclareceu-lhe o que é considerado como ‘verdade’, em seu mundo.“Você tomou a decisão de salvar o assaltante daquele atropelamento.

Eu avisei que em algumas situações não devemos intervir.”“Você optou em atrasar a volta da garota para casa.”“Você  usou o seu próprio dinheiro para acelerar a morte da velha

suicida.”Ela fez uma pausa enquanto ele lançava um olhar perdido para todos

os lados, digerindo o que era a real face dos acontecimentos e quando elevoltou a olhá-la, agora com ódio, ela completou:

“Eu não mandei você fazer nada.” – e sorriu.

Ele ainda a odiava com o olhar e ela, imune a qualquer tipo de ataquedo jovem rapaz, desdenhando:“Vocês humanos... sempre procuram culpar alguém por seus

fracassos.”Ela se recompõe e fica aguardando alguma outra reação do jovem,

como se já soubesse das “etapas” pelas quais os seres humanos passamtodas as vezes que são induzidos àquele ritual.Ele passou a respirar fundo, mas logo percebeu que sua raiva de nada

adiantaria. Sentou-se no banco da primeira fileira da igreja e chorouamargurado.Numa última tentativa de rejeitar seu destino, falou-lhe:

“Você não pode me obrigar a fazer o que você quer, eu não tenho umacordo com você.”

A mulher sorriu e levantou o braço esquerdo, mostrando o lençoensanguentado que estancou o corte feito no ritual que ambos selaram, hápouco.

“Uma aliança...” – ela disse calmamente.O rapaz abaixou a cabeça, derrotado, enquanto a mulher deu as costas paraele e caminhou devagar por entre os bancos, em direção à porta da igreja.

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Uma garota de cabelos loiros estava rezando, sentada no últimobanco da igreja.

Ela ouviu os passos que ecoaram no ambiente quando alguém entroupela porta e caminhou até ela, sentando-se no banco logo atrás do seu.

“Já pode parar. Ele já ouviu suas preces.” – disse o jovem rapaz,ajeitando seu sobretudo preto.