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Série Vaga-Lume

Série Vaga-Lume · 2020. 9. 2. · Série Vaga-Lume . NAS ONDAS DO SURFE Edith Modesto 1 - edição - 2000 Editora Ática Literatura Juvenil Literatura Brasileira Nas ondas do surfe

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Série Vaga-Lume

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NAS ONDAS DO SURFE

Edith Modesto

1 - edição - 2000

Editora Ática

Literatura Juvenil

Literatura Brasileira

Nas ondas do surfe e do bodyboarding

Edith Modesto

Como Edith Modesto consegue criar histórias tão apropriadas ao universo juvenil, usando

com desembaraço a linguagem dos jovens e revelando suas emoções mais íntimas?

Simples. Esse foi seu sonho praticamente desde a adolescência. Um sonho que precisou ser

adiado várias vezes. Primeiro porque ela precisou dar conta da criação de

seus sete filhos; depois porque teve de cuidar da própria formação e dedicar-se às atividades

profissionais.

Casada aos 16 anos, Edith recomeçou a estudar quando seu filho caçula fez

6 anos e entrou na escola. Completou o ensino médio junto com seus filhos mais velhos e

formou-se em Letras pela USP. Foi professora nas áreas de Comunicações

e Letras em diversas universidades, deu aulas em cursos de teatro, foi roteirista de vídeos

empresariais, criou uma empresa de comunicação. Até que resolveu afastar-se

por algum tempo de tudo o que fazia e realizar o ambicionado projeto de se tornar autora de

livros juvenis. Deu tão certo que, em apenas um ano e meio, aprontou

quatro romances, dentre os quais este Nos ondas do surfe, que marca sua estréia pela Editora

Ática.

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Atualmente Edith dá aulas na Universidade Mackenzie, em São Paulo, e continua escrevendo,

pensando principalmente em um público muito especial: seus seis netinhos,

que em breve serão leitores de

suas obras.

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Sumário

Prólogo

1 Esse professor é um "gato"!

2 As meninas são bodyboarders

3. Uma outra realidade

4 Um pequeno problema

5 A dúvida de Laureano

6 é Vamos à praia!

7 Os rapazes da Equipe Generation

8 Um fato desagradável

9 O Circuito Paulista de bodyboarding

10 Uma prancha diferente

11amos treinar?

12A inexperiência causa problemas

13 Um encontro inesperado

14 A rivalidade entre surfistas e bodyboarders!

15 Decifrando o código secreto - Marcelo entra pra tribo!

16 Os passeios de sábado à noite

18 Um ídolo do surfe

19 O medo de ser diferente

20. A surpresa

11, A meia verdade

21, E a culpa sobrou pra quem?

23. Agrava-se a rivalidade

24. A especialidade de Marcelo

25. Discussão na aula de matemática

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26. A outra metade do abacaxi

27. Um menino colombiano

28. Nem só de pão vive o homem

29. Como Laureano descobriu o pó

30 A profissão de Joe

31, Como Joe descobriu o pó

32, Sem saída?

33, Um "complexo empresarial" organizado

34, O Triângulo Vermelho monta a armadilha

35, Laureano versus Feng

36 Suzie

37, A chantagem

38. Suzie e Joe

39. Vidas duplas

40. Uma boa idéia

41. Joe desvenda sua verdadeira identidade

42. O que aconteceu com Suzie?

43. O Campeonato Paulista

44. A disputa do título masculino

45. A vez das meninas

46. Vamos comemorar?

47. Suzie fica confusa

48. A decisão

49. Como vencer na Califórnia?

50. A festa da vitória

51. Outra vez?

52. /l of/#tocfe £/os surfistas

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53.4 /ja//£/a c/0 Polícia Federal

54. Sacrifício por amor

55. Os preparativos para a viagem

56. Uma surpresa de última hora

Epílogo

Ao Lauro,

amado companheiro,

com todo o meu carinho.

Ao meu querido filho Renato,

escritor talentoso,

pelo grande incentivo.

Ao meu querido filho Flávio,

que ama o mar

e inspirou grande parte deste livro.

Prólogo

Rosália era uma mulher muito prática. Ela tentava descomplicar tudo e tinha um modo todo

seu de lidar

com o inexplicável. Como sempre dizia aos seus netos:

- Há pessoas cuja vida é em cor-de-rosa. Por exemplo, vocês: são amados... não lhes falta nada.

Já há outras cuja vida é em preto-e-branco.

A avó fazia uma pausa dramática e acrescentava com resignação:

- Assim é, e não adianta nada a gente ficar questionando sobre o porquê disso.

Depois desse "papo cabeça" (de acordo com os netos), Rosália sempre emendava um pequeno

sermão:

- A vocês dois, só falta dar valor ao que já têm! e divertia-se com a cara de tédio dos meninos.

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Do ponto de vista de Rosália, podemos até dizer que esta história é uma parte da vida em cor-

de-rosa de Daniela e Marcelo - seus netos - e da vida em preto-e-branco

de alguns que, por acaso, cruzaram seus caminhos.

1 Esse professor é um "gato"!

Era final de inverno em São Paulo e já estava um calor abafado na 8a C. Um pouco por isso,

apesar de a classe estar lotada, poucos alunos assistiam, de fato, à

aula de português. A maioria cochilava, suspirava, conversava, paquerava, se coçava...

A voz do mestre - nem ele mesmo percebera - estava cada vez mais alta, a fim de superar o

burburinho que vinha do fundão.

Alguns alunos, sentados nas primeiras fileiras, esforçavam-se para acompanhar a matéria. Para

Daniela e suas duas melhores amigas, Helena e Lúcia, era fácil, pois

gostavam da aula quase tanto quanto apreciavam o novo professor.

"Meu Deus, que gato! E ele faz covinha quando sorri..."

O mestre virou-se para a lousa a fim de traçar um esquema.

- Ele não é uma graça? - cochichou Dani, empolgada.

- Muito velho e deve ser casado - respondeu Helena.

Daniela brincou:

- Hum... As uvas estão verdes, né, amiga?

- Como é? As uvas...

- É da fábula A raposa e as uvas, Lena. A raposa queria muito as uvas. Como não conseguiu

pegá-las... pôs defeito, fez pouco caso...

- Não é nada disso, sua chata! Não gosto mesmo de coroa.

Daniela acenou que sim e, olhando para o professor, avaliou consigo mesma:

"Ele deve ter uns 26 anos, se tiver... eu com 14..., mas todo mundo acha que aparento 16! Será

que é muita diferença?"

Mergulhada em sonhos, ela sorriu e nem percebeu que o professor interrompera a aula:

- Vocês aí atrás! Silêncio! Carlos! Sempre você, não é? Eu vou considerar matéria dada, hein?

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"Pode considerar, cara. Essa porcaria de matéria me obriga a ler um monte de coisa chata. E

cada livro grossão

com uma letrinha bem pequenininha!", pensou Carlos,

arrepiado.

Mas logo se compenetrou da necessidade de ouvir o professor. Tinha voltado a estudar e

prometera ao pai que não perderia mais nenhum ano. Afinal, aos 16 anos, já

era para ele estar no ensino médio.

- Hoje, vamos conversar sobre o primeiro dos textos poéticos que nos falam sobre o homem

do século XXI.

"Sei. Não li. Poesia nem é coisa de macho, quanto mais do século XXI", pensou Carlos.

- Na poesia "O homem; as viagens", de Carlos Drummond, quem, chateado da vida na Terra,

começa a viajar para outros planetas? - perguntou o professor, olhando para

as primeiras fileiras de alunos.

- O homem, pró - respondeu Daniela, enrubescendo.

- Isso, Dani.

Carlos arrumou-se na carteira para enxergar melhor Daniela.

"Hum... Essa mina é jeitosinha... mas nerd... metida a saber tudo...", pensou ele.

- E que sentimento perdura no espírito humano depois de conquistar a Lua, os outros planetas

e até o Sol?

- tornou a perguntar o mestre.

- O tédio? - respondeu, timidamente, Lúcia.

- Isso mesmo, Lúcia. Por quê? Por que o homem se chateia na Lua, em Marte, Vênus, Júpiter e

até no Sol?

O silêncio atento que tomou conta da classe evidenciava o interesse dos que conheciam o

texto e a curiosidade dos demais.

"Por que um homem com essa coragem, vitorioso, não estaria feliz?", perguntava-se Carlos, já

arrependido por não ter lido o texto.

- Todos os lugares, planetas, ficam iguais... tudo vira rotina...? - respondeu, hesitando, um dos

rapazes.

- Muito bem! - avaliou o mestre. - Só que aí o homem fica sem saída, não é? Como ele poderá

sentir-se mais feliz?

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O professor fez uma pausa dramática e instigou:

- De acordo com o poeta, o mal do homem não está no desconhecimento que ele tem de

lugares... Vocês concordam?

Silêncio na classe.

- Vamos recordar um trecho do final do poema. E o professor leu em voz alta:

Restam outros sistemas fora

do solar a colonizar.

Ao acabarem todos

só resta ao homem

(estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo:

- E aí? Só resta a viagem do homem para ele mesmo? - perguntou o professor.

Quando Carlos percebeu já tinha falado:

- Sim. Mas, também, em vez de ir estragar os outros planetas, por que o homem não tenta

conhecer, arrumar e preservar o seu, primeiro? Eu, por exemplo, como desportista,

me preocupo com as praias, o mar...

A classe toda, admirada, voltou-se para olhá-lo. Carlos ficou roxo de vergonha. Nesse exato

momento, para seu grande alívio, tocou o sinal, para a saída.

- Continuamos na próxima...

Nem deram tempo de o professor terminar a frase. Foi aquele atropelo, aquele empurra-

empurra, os alunos descendo as escadas aos pulos, ansiosos por liberdade.

Os bedéis gritavam sem nenhum sucesso:

- Calma! É proibido correr...

As três amigas ficavam sempre na classe conversando depois do sinal, enquanto arrumavam

suas mochilas.

Daniela era alta, magra, tinha olhos cor de mel e seus lindos cabelos castanhos com reflexos

dourados estavam compridos, batendo nos ombros. Helena, com sua

pequena

estatura, poderia ser considerada a mais linda das três. Loira, muito clara, tinha cabelos lisos,

curtos, e olhos azuis, herança da avó do norte da Itália. Lúcia,

sem dúvida, tinha um encanto especial. Estatura média, morena cor de jambo, cabelos pretos

e cacheados, olhos escuros, muito vivos e brilhantes.

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- Cês viram o carinha? - perguntou Daniela. Preocupado com as praias... o mar...

- Eu notei - respondeu Lúcia. - Ele disse que é desportista... Qual será o esporte...?

- Deve ser natação. Cês viram os ombros...? - comentou Helena. - Até que ele não é de se jogar

fora!

- Ainda mais agora, depois que descobrimos a sua preocupação com o meio ambiente... -

concordou Daniela, rindo.

2 As meninas são bodyboarders

As três meninas eram amigas inseparáveis. Rosália, a avó de Daniela, tinha uma pequena casa

em Ubatuba - litoral norte de São Paulo -, e elas se conheceram lá.

Estudavam no mesmo colégio desde a 1 série e, quase sempre, passavam as férias juntas.

Um dia, Daniela levou para a praia uma prancha velha - ainda de borracha! - que tinha sido da

sua avó

Rosália. E foi assim que as três meninas interessaram-se pelo

bodyboarding.

Nesse mesmo dia, Daniela perguntou:

- Vó, por que aqueles ficam de pé na prancha, sem pés-de-pato?

- Porque eles praticam surfe, um outro esporte, meu amor.

A avó pensou um pouco e corrigiu-se:

- Aliás, os dois esportes são parentes... Veja que, nos dois, a pessoa tem de correr com a onda:

no surfe, em pé na prancha, sem pés-de-pato; no bodyboarding,

deitado

na prancha, com pés-de-pato.

com o passar do tempo, o interesse das meninas pelo esporte foi crescendo, crescendo, até

tornar-se uma mania, quase uma paixão. Se facilitassem, elas só pensariam

na sensação de liberdade, indescritível, de estar naquele aguão, entre o céu e a terra: ora o

abandono sensual de se deixar levar pela onda, abdicando do poder

de

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escolher para onde, ora o domínio do turbilhão que parecia incontrolável, frente a frente com

o perigo, adrenalina a mil!

Elas acompanhavam tudo o que acontecia no esporte, pela TV e pelas revistas, e os brasileiros

campeões e campeãs mundiais eram seus ídolos. As paredes e as janelas

dos seus quartos pareciam suportes de arte de vanguarda; Tudo era muito colorido, forrado

com reproduções de manobras poderosas e fotos dos nossos superbodyboarders.

Cartazes de surfe, não se viam.

Várias vezes campeãs amadoras - sempre entre as seis primeiras colocadas, pelo menos -, as

meninas, agora, faziam parte de uma equipe profissional treinada por Alberto,

um ex-surfista.

Havia alguns meses, as três amigas conseguiram aquilo que era um sonho quase impossível de

todo desportista brasileiro: um patrocinador forte. O tio de Alberto,

o treinador da equipe, era o gerente da Generation do Brasil, uma das mais fortes marcas

americanas de bodyboarding.

Naquele mês, aconteceria a quarta e última etapa do Circuito Paulista. A competição apontaria

os campeões estaduais em cinco categorias: masculino e feminino de

Amador e Profissional, e Iniciante. A equipe estava muito bem posicionada no ranking da

categoria profissional, principalmente as meninas. O maior sonho delas era,

algum dia, representar o Brasil no exterior.

- Se a gente for bem no Circuito Estadual, você acha que dá pra conseguir uma viagem pra

fora? - perguntou Lúcia.

- Sem participar do Campeonato Nacional? Talvez... um campeonato americano de equipes... A

nossa marca é americana... - respondeu Daniela.

- Nem acredito em tanta sorte, menina - comentou Helena.

- Ha... mas não foi só sorte - retrucou Daniela.

- Não podemos desprezar o nosso esforço... O que já ralamos! Lavramos um tento, como diria

minha vó Rosália.

- Mas você esqueceu o mais importante: o nosso charme! - completou Lúcia, brincando.

- E não é que é importante mesmo? Ainda mais representando uma marca que é também de

roupas esportivas... - concordou Daniela.

E olhando para o relógio:

- To indo. Vou falar com vó Rosália e ligo pra confirmar a que horas a gente vai pra praia.

Certo, manas?

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De longe, Daniela brincou, gritando para as amigas a tradicional saudação dos bodyboarders,

uma espécie de grito de guerra para que nunca abandonassem o esporte:

- Keep bodyboarding!

E ela foi para a saída encontrar-se com Marcelo, seu irmão que estudava na 7 série. Marcelo

tinha 13 anos e praticava surfe. Ou melhor, tentava...

Apesar do orgulho que sentia pelas vitórias da irmã, ele pensava:

"Afinal, bodyboarding é meio esporte de fracote... surfe que é esporte radical... só pra quem é

casca-grossa!"

Mas não confessava. E o medo da reação da irmã e dos amigos dela?

- Nós vamos hoje mesmo, né, Dani? - perguntou ele. - O disksurftá prevendo tempo

bom, com morras e o mo crowd pra amanhã!

- Vou tentar com a vovó, Ma! Cê tem razão! com um tempo lindo desses, as ondas vão estar

demais... Se a gente não madrugar amanhã na praia, nem vai dar pra

treinar,

de tanta gente na água!

3 Uma outra realidade

Na semana anterior, amanhecera um lindo domingo de sol em São Paulo.

Num dos mais aristocráticos bairros da capital, duas privilegiadas famílias da alta sociedade

paulistana divertiam-se à beira da piscina. Os dois homens, sócios

e muito amigos, tomavam uísque e conversavam.

Um deles era ruivo, elegante, freqüentador das altas rodas. Preguiçoso, trabalhava pouco e

não queria se amolar. O outro, bastante caseiro, era barrigudo e já estava

ficando careca. Era muito autoritário e trabalhador. Colombiano, apesar de se ter naturalizado

brasileiro havia muitos anos, ele continuava a estropiar o português

e falava com um forte sotaque espanhol.

Havia bastante tempo, os dois tornaram-se sócios e negócios bem-sucedidos tornaram-nos

proprietários de várias empresas. Entre elas, as mais rentáveis eram as duas

de importação e exportação. Essas empresas tinham sua atividade tão especializada, que só

exportavam e importavam produtos que exalassem um forte aroma, tais como

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café, fumo ou pimenta-do-reino. Era de se estranhar...

Naquele domingo, os dois sócios tentavam resolver um problema:

- Eles querem um empréstimo, somente dois quilos de heroína! Acontece que, quando fomos

avisados, a distribuição já estava organizada como de costume - comentou

o ruivo.

- Empréstimo? Muy estranho...

- Também acho.

- Bueno. Hay que pedir para esperarem Ia nueva remessa, ora! - sugeriu o careca.

- Você sabe que não vai dar! Pode demorar... E, agora que conseguimos o acordo com o

Triângulo Vermelho... Você viu o trabalho que deu pra eles pararem de sabotar

a entrada da nossa mercadoria nos Estados Unidos e na França! Temos de demonstrar boa

vontade!

- S. Entonces no hay otra manera. Vamos enviar a cota de heroína de San Pablo.

Os dois sócios trabalhavam com drogas, porém a especialidade deles não era a heroína, mas a

cocaína colombiana. Havia pouco tempo, começaram a exportar também

heroína,

droga bem mais rentável. Os dois eram os chefes da sucursal brasileira do cartel de Cali, cidade

da Colômbia.

O problema que enfrentavam nesse dia era como atender a um pedido de empréstimo de dois

quilos de heroína para o concorrente: o cartel chinês do Triângulo Vermelho.

4 Um pequeno problema

Depois de decidirem mandar para a Califórnia a cota de heroína de São Paulo, o careca pegou

o celular e chamou Laureano, gerente e braço direito dos dois sócios:

- Laureano, soy yo. Necesito de usted. Venga prontamente a mi casa - e bateu o telefone.

"Esse bosta está no Brasil há muito mais tempo do

que eu e ainda não sabe português. . . Quando será que

vai parar de falar portunhol?", perguntou-se Laureano

irritado.

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Jovem, de boa aparência, ele, que tambêm

era colombiano, orgulhava-se de falar a nossa língua perfeitamente.

Uma hora depois, um mordomo uniformizado

introduziu Laureano na varanda que dava para a picina. O careca levantou-se e pediu-lhe que o

acompanhasse

ao escritório:

- Laureano, tengo um pequeno problema para usted resolver. Necesito alguém que lleve dos

quilos de heroína pura asta Califórnia o mas rápido posible. És

mucho, mucho

importante... Será una delicadeza para nuestros amigos da Ásia...

- Mas... essa é toda a heroína que chegará na próxima semana... - respondeu Laureano,

esmerando-se na dicção para provocar o outro.

- Si - interrompeu bruscamente o careca. - Como usted vai resolver esto, yo no Io sé, ni quiero

saber. Pero, no admito erros, usted sabe. Toda Ia responsabilidad

es suja...

"Mas que desgraçado! Pequeno problema... responsabilidade suja. Eu sei que a

responsabilidade é minha, infelizmente... Sujo é o que você faz... Sempre querendo fazer

bonito à minha custa...", pensou Laureano, abaixando os olhos para que o outro não pudesse

perceber a raiva e a repulsa que sentia.

E era assim mesmo: quando as coisas saíam bem, o mérito era do outro... mas, coitado do

Laureano, se não dessem certo!

O careca, suado, abriu a gaveta da escrivaninha e pegou um papel:

- A encomienda deve ser entregue nos Estados Unidos, neste endereço, en Ias manos de un

emisario dei cartel chinês.

Usted mismo marca Ia data, o mas breve posible! Recuerde-se: su responsabilidad!

Em seguida, o chefão tocou uma campainha e o mordomo entrou para acompanhar Laureano

à saída.

5 A dúvida de Laureano

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No dia seguinte, no elegante escritório da empresa de exportação, na parte nobre da avenida

Paulista, dr. Laureano dava tratos à bola para resolver a contento

o problema apresentado a ele por seu chefe, no final de semana:

"Pequeno problema! Meu Deus! Hoje à noite vou ter de enfrentar aqueles mafiosos orientais:

sempre tão calmos... dissimulados... Preciso explicar muito bem a falta

da heroína no próximo mês em carteados e vários bares prives do bairro oriental, a Hong Kong

paulista! E eles já pagaram pela droga..."

Laureano levantou-se de sua mesa e foi em direção a um quadro dependurado na parede. A

pintura abstrata, como era de se esperar, escondia um cofre. Levou o quadro

até sua mesa, abriu a gaveta e dela retirou uma chave de fenda. Em vez de ir em direção ao

cofre, desprezou-o completamente. Toda a sua atenção estava voltada a

desparafusar a parte de trás da moldura do quadro. Depois de algum esforço, retirou do

esconderijo um disquete.

Sentou-se em frente ao computador e, em poucos minutos, apareceu na tela uma lista de

pequenos traficantes independentes e de transportadores de drogas, com todas

as informações sobre cada um deles: pseudônimo, idade, endereço atualizado, histórico das

atividades passadas e presentes. Laureano imprimiu a lista.

Em seguida, passou a analisá-la, procurando alguém que tivesse o perfil adequado e,

principalmente, a oportunidade de transportar a droga para os Estados Unidos.

Mais da metade da lista já tinha sido vista, quando Laureano chegou ao nome Joe.

"Joe! Ele se encaixa perfeitamente... não tenho outro...", pensou ele, fazendo um círculo em

volta do nome.

E, satisfeito, chamou a secretária para começar o expediente do dia.

6. Vó Vamos à praia!

Ao chegar em casa da escola, conforme tinha combinado com as amigas e para desgosto de

sua mãe, Daniela foi para o telefone, antes mesmo de almoçar:

- Alô! Vó! Já cheguei! A que horas vamos pra praia?

- Já falou com sua mãe?

- Desde ontem, vó!

- Quantos vão?

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- A equipe toda tem de estar lá. Foi tudo combinado com o Alberto. Os rapazes vão ficar com

ele na pousada...

- Isso, já sei. Estou perguntando quem vai no carro

conosco.

- A Lu e a Leninha, como sempre.

- bom. Para não pegar muito sol... Também não é bom viajar à noite... Vamos sair às quatro.

Tudo bem?

- Maravilha, vó! Temos treino amanhã de manhã...

- Cuidado para não esquecer nada. Passo mais cedo para vocês arrumarem as pranchas no

bagageiro. Tchau!

E Rosália desligou, sorrindo.

Professora aposentada, viúva, Rosália adorava seus únicos netos, Daniela e Marcelo, e ficava

feliz por proporcionar-lhes a alegria do esporte e da companhia dos

amigos.

Quando Rosália e o marido construíram a casa de dois quartos e sala em Ubatuba, quase não

se falava em surfe, muito menos em bodyboarding. Eles somente queriam

um lugar bonito e sossegado para passar as férias com a família.

E acertaram na escolha. Ubatuba e suas ilhas possuem mais de oitenta praias, cada uma mais

linda que a outra, algumas delas ainda selvagens e de difícil acesso.

com o passar dos anos, as ondas grandes de Itamambuca - uma pequena praia próxima à casa

de Rosália - foram atraindo surfistas e bodyboarders, até que ela

tornou-se

o que é hoje: um dos pontos para surfe e bodyboarding mais famosos do estado, usado para

campeonatos, inclusive profissionais.

7 Os rapazes da Equipe Generation

Na pousada, mal despontara o dia quando Alberto chamou os rapazes:

- Gente! Vamos! O despertador já tocou!

Alberto tinha 22 anos. Era alto, musculoso, de olhos castanhos e cabelos quase loiros de tanto

sol. Calmo, compenetrado, o treinador aparentava mais idade do que

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realmente tinha, talvez porque estivesse sempre muito sério. Mais ainda agora, depois de ter

conseguido o patrocínio para a equipe, pois sua responsabilidade como

treinador aumentara. Além disso, ele estava cursando educação física.

Alberto cuidava com o maior carinho de todos os integrantes de sua equipe: do corpo e do

espírito. Por um

lado, ele planejava os cuidados com o corpo: exercícios adequados e alimentação balanceada

(proteínas, verduras e muito líquido). Além disso, a equipe treinava

natação, esporte de base para quem pratica surfe e bodyboarding, e também as manobras do

esporte, sempre tentando inovar. Por outro lado e não menos importante,

Alberto dava apoio psicológico à turma - uma palavra de incentivo, um conselho - e,

principalmente, sabia escutar com interesse os desabafos dos momentos de crise.

Quando mais novo, tinha sido surfista profissional. Impedido de competir por ter levado um

tiro na perna durante um assalto, ele, que nunca tinha sido bodyboarder,

começou a trabalhar com eles. com o passar do tempo, apaixonou-se pelo bodyboarding, fez

muitos amigos e acompanhou os altos e baixos do esporte.

Conhecido por todos como o Beto dos esponjas, também era o presidente da APB - Associação

Paulista de Bodyboarding - e considerado um dos responsáveis pelo grande

sucesso do BB no último ano.

Meia hora depois de terem-se levantado, com suas pranchas debaixo do braço, os três rapazes

e o treinador já estavam a caminho da praia, conversando, animados:

- O tempo tá demais. Promete ondão - comentou Guigo.

Guigo era claro e musculoso. Preocupava-se em apresentar um visual original e exibia, com

orgulho, um condor em pleno vôo, tatuado no peito, além do cabelo, sempre

com cortes e cores os mais inesperados. Nesse dia seu cabelo, ou melhor, a faixa espetada no

alto de sua cabeça, como a de umpunk inglês, era verde.

- Firmeza, mano! - concordou Luisão. - Parece mesmo que vai dar morras, cara!

Luisão era o mais alto dos três, mulato, quase negro de tanto sol, e de temperamento nervoso

e impulsivo.

Não gostava muito de estudar e, no ano anterior, com esforço, terminara a 6 série. Pensava

seriamente em seguir carreira profissional, por isso dedicava-se com

afinco ao inglês.

Pouco depois, passaram pelo camping:

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- Esse camping é legal! Sempre fiquei aí. Sabe que a pousada vai ficar uma nota? O camping é

menos da metade! - criticou Marco.

- E ficar no camping é um confortão, né? Deus me livre! Eu largo a equipe - brincou Alberto.

- Eu também - concordou Guigo.

- São uns "filhinhos de papai" mesmo... - disse Luisão, com desprezo. - Santo patrocínio, né?

Nunca se viu rabo igual...

Alberto divertia-se. A verdade é que ele tivera de tomar uma atitude para viabilizar o Circuito

Paulista daquele ano. A primeira etapa do circuito valera pontos,

até para o Campeonato Brasileiro. No entanto, tudo parecia ir muito bem, quando houve a

desistência do patrocinador.

com grande esforço e a ajuda dos principais BBs paulistas, Alberto conseguiu convencer a

Generation do Brasil a patrocinar as outras três etapas do circuito,

já que, da sua equipe, prometia ele, provavelmente sairia pelo menos um campeão paulista.

- Conseguimos o patrocínio graças ao nosso poderoso treinador! - sempre ironizava Marco.

Marco era o mais calado, pensativo, e estava cursando o primeiro ano de engenharia. Quando

as pessoas, admiradas, perguntavam como ele conseguira tal façanha, ele

respondia em voz baixa e calma:

- Passei no vestibular porque praticava bodyboarding. O esporte me deu a tranqüilidade para

aproveitar bem tudo o que eu sabia!

8 Um fato desagradável

Pouco depois de os rapazes chegarem, o carro de Rosália estacionou debaixo de uma árvore,

na praia deserta.

Os rapazes logo viram que alguma coisa desagradável devia ter acontecido, pois Daniela veio

chorosa ao encontro deles.

- O que foi? - perguntou Marco, preocupado.

- Minha prancha nova desapareceu.

- Como? - perguntou Alberto, surpreso.

- Não dá pra saber direito - respondeu Rosália. Todas estavam encostadas na parede da

varanda, onde sempre ficam...

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- A minha capa é pra duas pranchas... só a prancha que você trouxe pra teste sumiu! - explicou

Daniela.

- Que coisa estranha! - comentou Alberto.

- O portão fica fechado com o cadeado... não dá pra ver nada da rua... - continuou Lúcia.

- bom... É verdade que é uma porcaria de cerquinha de madeira... - criticou Marcelo, o irmão

de Daniela.

- É. Nunca mais! Devíamos ter deixado as pranchas na sala... mas, quem iria imaginar? -

defendeu-se Daniela.

- As pranchas estavam todas juntas... mas roubaram somente a dela - reforçou Helena.

- Claro! A prancha mais nova! - comentou Rosália.

- Que baita azar! O cara ficou um tempão escolhendo a prancha... e levou logo a dela! -

ironizou Marcelo, rindo para ver se melhorava o clima.

Helena argumentou:

- Minha prancha nova desapareceu.

- Você brinca, mas é estranho, Ma. Uma das minhas pranchas era importada... muito mais

cara... Meu pai trouxe da Califórnia quando voltou das férias... Essa, o

ladrão não quis!

- É. A que desapareceu foi logo aquela que o Beto acabou de trazer pra gente treinar. É pró

final do campeonato... Puxa, adorei aquela prancha... - dramatizou Daniela,

inconformada.

- Havia alguma diferença entre a prancha roubada e as outras? - investigou Rosália.

- Claro, né, vó! - respondeu Daniela. - Essa tem o design novo, personalizado...

com o meu nome e a marca do nosso patrocinador...

- Estranho que o ladrão não tenha levado a capa com as duas... - insistiu Rosália. - Afinal,

Marcelinho tem razão. Ele teve o trabalho de abrir... tirar uma das

pranchas de dentro... Além disso, levar a que tinha marca e nome do dono!

- É isso aí, vó. Que ladrão burro! com a marca vai ser difícil ele usar... vamos pegar logo, logo,

esse desgraçado! - comentou Marcelo.

- Paciência - disse Alberto, tentando acalmar Daniela. - Essas coisas acontecem. Antes isso que

coisa pior... Afinal, deu tempo de testar... ela foi aprovada no

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teste... Faremos outra pra você. Eu trago com as outras pranchas da equipe, na semana que

vem.

E dirigindo-se a todos:

- Gente, não vamos deixar esse contratempo estragar completamente nosso final de semana!

A turma concordou.

Para encerrar o assunto, Alberto consultou Rosália:

- Nem vale a pena dar parte do roubo... o que você acha?

- Pra mim tudo bem. Acho que não vai adiantar nada mesmo... - respondeu ela.

9 O Circuito Paulista de bodyboarding

Com todos mais calmos, Rosália foi caminhar à beira d'água, antes que o sol esquentasse.

Marcelo pegou sua prancha de surfe e correu para o mar.

- Marcelinho! Não abuse, hein! - gritou-lhe a avó.

- Galera! Sete pés... mar lisão... ondas buraco... avaliou Luisão, doido para entrar.

com aquele mar, ideal para bodyboarding, foi um verdadeiro exercício de liderança para

Alberto organizar o treino.

- Calma, gente! Vamos à chamada! - brincou ele. Rindo, o treinador foi apontando para cada

um:

- Primeiro, as damas: Dani, Leninha e Lu.

Todas fizeram uma mesura mal-alinhavada como saudação.

- Agora, os cavalheiros: Guigo, Luisão e Marco. Cada um deles batia na palma da mão de

Alberto:

- E aí, truta!

- Firmeza, meu - respondia ele. - Agora, galera! Disciplina... de colégio de padre!

Todos riram.

- Vamos fazer uma reunião rápida pra conversar sobre coisas importantes, inclusive sobre as

pranchas. Depois, partimos para a preparação física.

A equipe sentou-se em círculo na areia, e Alberto, no centro da roda, fez um resumo dos

acontecimentos importantes do Circuito Paulista, até aquele dia:

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- Turma, estamos a duas semanas da última etapa do Circuito Paulista e muito bem

posicionados! Parabéns!

Todos se entreolharam, satisfeitos.

- Vamos fazer uma retrospectiva - continuou o treinador -, a primeira etapa aconteceu no final

de abril, aqui mesmo em Itamambuca, e foi moleza pras meninas. Conhecem

esse mar como a palma da mão e assumiram a liderança do ranking.

Os rapazes começaram a gritar, em cadência:

- Minas! Minas! Minas!

As três meninas ergueram-se e levantaram os braços em sinal de agradecimento. Alberto

continuou sua exposição, sorrindo:

- Em maio, na Praia do Tombo, Guarujá, no conjunto, os rapazes se saíram melhor e Guigo

ficou na liderança.

Todos gritaram:

- Guigo! Guigo! Guigo!

Guigo ergueu-se e, com a mão na altura do coração, curvou-se, agradecendo.

Mais uma vez, Alberto continuou:

- A terceira etapa, no final de julho, foi em Camburi, São Sebastião.

Luisão escondeu o rosto entre os braços. O treinador olhou para ele e, com condescendência,

aliviou a repreensão:

- Tá certo que a etapa aconteceu num mar antibodyboarding e era dificílimo conseguir alguma

manobra de pressão, mas a ansiedade deu no que deu: Luisão se machucou

com aquela interferência boba e ainda perdeu pontos. A nossa sorte foi que Marco acabou em

segundo.

Alberto fez uma pausa e finalizou:

- A quarta e última etapa será novamente aqui em Itamambuca, daqui a duas semanas.

Teremos de aproveitar os feriados da Semana da Pátria para treinar... todos já

com as pranchas novas...

E, com ênfase, fez a previsão:

- Da nossa equipe sairão os campeões paulistas deste ano, tenho certeza!

Alegres, mas já impacientes, os futuros campeões começaram a levantar-se, dançar, fazer

caretas horríveis e jogar areia uns nos outros.

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- Certo, manos e maninhas, vamos deixar pra comemorar depois... agora vamos sentar... o

tempo tá passando... - pediu Alberto. - Quem deseja comentar alguma coisa

importante?

Daniela levantou o braço.

- Tá com a palavra, Dani.

- A nossa maior dificuldade, acho... to falando pelas meninas, é não poder treinar todos os

dias... - reclamou ela. - Fora o Luisão, que é santista...

- Tá certo que em julho passamos o tempo inteiro dentro d'água... a gente treinava todos os

dias... mas, na maioria das equipes, todos moram em frente à praia...

estamos em desvantagem! - completou Lúcia.

- Ainda bem que temos a Semana da Pátria antes da final - lembrou Daniela.

10 Uma prancha diferente

Alberto mudou de assunto:

- Quero perguntar sobre a prancha nova... parece que passou no teste. Pelo menos os

resultados foram muito bons... Dani está com a palavra.

- Achei demais! Mas todos experimentaram... - e Daniela olhou para a equipe,

interrogativamente.

-Algum comentário, turma?-perguntou o treinador.

- A prancha facilita manobrão, cara! Chega bem até o lip e dá impulso... - avaliou Guigo.

Alberto, satisfeito, respondeu:

- Foi essa a nossa intenção. O bico mais fino facilita chegar até a crista da onda... Desenvolvi

essa prancha na minha oficina, baseado na minha experiência como

atleta e como shaper. Nessa, tentei aliar o desempenho à qualidade.

Fez uma pausa para enfatizar a importância da sua criação:

- Em primeiro lugar, a matéria-prima do bloco e o processo de fabricação são de primeira.

Como resultado, temos um corpo flexível e que nunca amolece na água quente.

- Sabe, cara, uma vez fui pró Ceará, pico de Icaraí... Calor, 40 graus na sombra! Dava pra dobrar

a prancha!

- exagerou Marco.

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- É isso aí, mano. O verão brasileiro derrete até asfalto! - confirmou Alberto, sorrindo, e

continuou: - Depois, aliadas ao material de primeira, as medidas são

personalizadas. Por exemplo, pra Leninha, vulgo Tampinha, chegará uma pranchinha... Pró

Luís, vulgo Luisão, vem um pranchão.

Todos riram.

- Pronto! Já pegaram no meu pé de novo! Por que mamãe não passou fermento em mim? -

brincou Helena, lisonjeada por ter sido alvo da atenção do treinador.

- Além disso - continuou Alberto -, o design básico das pranchas foi criado para imprimir

incrível velocidade e projeção na onda.

Olhou para Guigo:

- Guigo acabou de confirmar isso, lembram? Ah! E cada integrante da equipe ficará com duas

pranchas: uma para ondas pequenas, outra para mar grande.

- Isso é profissional, manos! - comentou Luisão.

- É frescura de quem tem patrocinador pra financiar - brincou Guigo.

- Finalmente - completou Alberto -, o fato de as pranchas serem stringer board... o tubo

interno atravessando a prancha...

- Pensei que com isso a prancha ia ficar muito pesada... - interrompeu Helena.

- O peso é praticamente o mesmo - defendeu Alberto - e, além de reforçar as qualidades

anteriores, acrescenta a da durabilidade: as pranchas ficarão sempre retas

e em excelentes condições de uso. Resumindo: velocidade, força e proteção iradas!

- Nossa, cara! Depois dessa propaganda toda, eu compro! - brincou Luisão.

Guigo resolveu tomar a palavra:

- Pra dizer a verdade, no início, fiquei meio inseguro... essa história de mudar de prancha...

Escolhi a minha com a rabeta que eu estava acostumado... escolhi

as medidas, mas eu nunca tive uma com stringer... essa história de tubo interno atravessando

a prancha... dá mesmo a impressão de que pesa. Depois, a gente acostuma

com uma prancha, aí muda... Vai dar cocô, eu pensei...

- Larga de ser besta, Guigo! Tá querendo "zicá", é? Quando a gente pode ter uma prancha de

design exclusivo e tudo... Claro que é melhor - argumentou Marco.

- Você parece bebé que não aceita trocar o bico da mamadeira! - reforçou Lúcia, rindo.

Aí Guigo ficou ofendido:

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- Pára de tirar sarro da minha cara, Lu! Não se pode falar nada... O que eu quis dizer foi...

parece que vai dar certo.

Alberto resolveu intervir:

- Todos deviam fazer como Guigo. Falar sobre os medos ajuda a fazer eles desaparecerem.

Depois, é como eu disse: se não gostarem, poderão mudar... a gente reestuda...

poderão usar a velha... o que vai mandar são os resultados. O que importa é que a amostra

com a prancha da Dani foi boa, gente!

E então mudou de assunto:

- Esponjas! Vamos lá, coragem! Quase 8 horas! Agora, aquecimento: vamos correr e fazer

abdominais. Depois, água.

- Qual manobra vamos treinar hoje? - perguntou Lúcia.

- Tivemos sorte. Como vocês estão vendo, hoje o mar está irado. Cheio de onda buraco,

formando rampa, fechando... Vamos então tentar o aéreo - respondeu Alberto.

- Só, meu! To doidão pra voar! - gritou Luisão, entusiasmado.

Todos riram. A manobra não era fácil e, apesar de muito treino, nem sempre se saíam bem.

Mas nenhum deles esperava o empurrão que os levaria a resultados incríveis,

ainda naquela manhã.

11 Vamos treinar?

Depois da preparação física, caíram na água. Alberto comentou com Rosália:

- A senhora viu? As ondas estão a cada minuto maiores e lisas... dignas de um pôster! É o

terral.

- Terral? - estranhou ela.

- O vento soprando da terra para o mar, dona Rosália. E tudo isso só pra nós! - completou ele,

mostrando a praia, que continuava deserta.

Todos tentavam o aéreo. Na cabeça de Daniela, ecoavam as instruções de Alberto: "...

velocidade, acelerar a prancha na parede da onda; ir em direção à crista da

onda como se fosse dar uma batida e subir com tudo! No ar, impulsionar a prancha, até

segurá-la acima da cabeça, quase como se fosse um pára-quedas..." Mas seus

pensamentos foram logo abafados por incríveis sensações: um frio na barriga... um arrepio

percorrendo o corpo de cima a baixo... prazer e sensação de poder e liberdade,

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indescritíveis!

Na descida, Daniela também tentou seguir as instruções de Alberto:

"Recoloque a prancha embaixo do corpo e segure-a firme, inclinando-a para cima para não cair

de bico. Tente ficar na linha certa da parede da onda pra não perder

a próxima seção!"

Parecia fácil... mas não era! Ela tinha voado bonito! Como um peixe alado surgindo da espuma

- segundos de surrealismo fantástico - mas, na descida, a prancha escapuliu

de suas mãos... e tudo acabou em ralada ardida!

12 A inexperiência causa problemas

Dolorida, Daniela estava saindo da água para descansar, quando um bando de surfistas,

alegres e barulhentos, entrou correndo no mar.

Marcelo, entusiasmado, foi para o lado das pranchas de fibra. Ele era surfista, queria ficar com

surfistas!

Rosália percebeu e, desviando sua atenção do livro que lia, sorriu com a lembrança de uma

piada maldosa que o neto lhe contara.

"Você quer ver um surfista morto de vergonha, vó? Já no Havaí, com patrocínio, ele é obrigado

a tirar fotos publicitárias pegando onda com um bodyboardl"

Daniela, por sua vez, também viu Marcelo ao lado dos surfistas e ficou um pouco apreensiva

por causa da inexperiência do irmão. Sentou-se na areia, observando. Um

surfista moreno desceu a onda, manobrou e tornou a subir, andando por vários segundos

horizontalmente sobre a crista da onda...

"Nossa! Esses caras são muito bons! Cavada de mestre, em seguida um floater de vários

segundos... Devem ser profissionais...", pensou ela, admirada.

Recostou-se na areia e ficou apreciando a beleza do mar e das evoluções dos surfistas. Mas, de

repente, aconteceu o que ela temia: marinheiro de primeira viagem,

Marcelo acabou cometendo uma intervenção brava!

"Meu Deus! Olha o Ma dando uma rabeada num loiro... Xii! O surfista caiu da prancha... tomou

a maior vaca!"

O surfista loiro era um profissional! Não estava acostumado a se dar mal e, como ela esperava,

saiu, possesso, atrás do menino. Daniela, imediatamente,

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levantou-se

para ir defender o irmão.

Antes que o alcançasse, porém, notou que um rapaz moreno interveio:

- Calma, mano! Não foi por mal! O menino tá aprendendo...

- Falta de respeito, ô meu. Não to aqui pra brincar com criança. To aqui pra treinar... Vê se esse

moleque desaparece da minha frente, senão faço dois dele! - respondeu

o loiro, nervoso.

Em seguida, virou-se e entrou na água. com rápidas remadas, o loiro voltou para o pico em

busca das ondas, sem olhar para trás.

Marcelo, muito constrangido, ficou mudo, agradecendo a Deus por ter mandado um anjo da

guarda de última hora para salvá-lo.

- Como é, meu chapinha! Assustou? O Alemão é boa gente... só é um pouco esquentado... logo

passa... e o rapaz sorriu amigavelmente.

13 Um encontro inesperado

Nesse instante, chegou Daniela. Quando vinha vindo, de longe, reconheceu o surfista moreno.

- Carlos! Você aqui! Não sabia que você surfava... Ele é meu irmão - explicou ela, apontando

para Marcelo, que ia se recobrando do susto.

"Ó quem taí A nerd jeitosinha da minha classe... filinha de papai... sabe-tudo...", pensou Carlos

e cumprimentou, admirado:

- Oi, mana! E o que você faz aqui tão cedo?

O olhar de Carlos, disfarçadamente, avaliou e aprovou Daniela de maio.

- Chegamos ontem à noite. A gente vem todo final de semana... Estamos treinando para o

Circuito Paulista de BB... To aí com toda a equipe e o Beto...

- Alberto? Não brinca. O Beto, treinador dos esponjas? Ele é meu amigo! E você... tão

estudiosa... nunca imaginei que...

Daniela sorriu:

- Tudo tem sua hora, não acha, Carlos? Estudo... passeio... esporte... Há um ano conseguimos

um patrocínio forte...

- Eu ouvi falar sobre a Equipe Generation... só não sabia que você...

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Ele olhou meio sem jeito:

- A gente não tem muito conhecimento do que acontece no seu esporte...

Daniela achou melhor sair daquele terreno delicado:

- Carlos, você acredita que uma das minhas pranchas, novinha, foi roubada? - contou. - Um

mundo de pranchas e o ladrão escolheu logo a minha.

- Nossa! Que ódio... E agora?

- Tenho outras... mas aquela era o modelo das que o Beto vai trazer para a equipe... Pra usar

na final do Campeonato Paulista. Atrapalhou bastante!

Carlos acenou concordando e confessou:

- Sabe, Dani, alguns desses meus amigos também estão no circuito profissional de surfe. Foi

sempre o meu sonho... O problema é que acaba atrapalhando os estudos,

você sabe... - Olhou preocupado para ver a reação dela. - Mas agora eu resolvi entrar no

Circuito Amador da Associação Brasileira de Surfe. Depois, vamos ver. Se

eu for bem, gostaria muito de participar do mundial por equipes, nos Estados Unidos. Os

rapazes estão animados e tenho um primo que estuda na Califórnia...

- Que coincidência! Ontem mesmo eu estava conversando com as meninas... Nosso sonho é a

equipe participar do campeonato, nos Estados Unidos. O Alberto já nos inscreveu,

mas ainda está negociando a grana com o patrocinador. Acho que tudo vai depender dos

resultados do Campeonato Paulista. Se formos bem...

- E os estudos? O esporte não atrapalha você? perguntou o rapaz.

- Não sei... parece que a gente tem de fazer o que gosta. Aí a gente arranja tempo... Eu estou

no Circuito Paulista e, cê sabe, não sou má aluna...

Carlos não quis ficar por baixo e tentou impressionar Daniela:

- bom. Nos estudos, estou tentando me recuperar, mas vou bem no esporte e... também

aprendi com o Beto a fazer pranchas de surfe... Além de surfista, sou shaperl

- Também amador? - brincou ela.

- Mais ou menos - respondeu ele, sorrindo. - Comecei lixando, botando quilha... Agora, já faço

pranchas pra mim e pra alguns amigos.

Dani não conseguia desgrudar os olhos do rapaz, nem esconder sua admiração.

"E eu que pensei que esse cara fosse um boboca..."

- Vocês voltam aqui amanhã? - perguntou ela, mas logo se arrependeu:

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"Que mole escancarado que to dando... vergonhoso... Ele vai pensar que estou a fim dele."

- Amanhã? Às 7 horas estamos chegando.

- Então a gente se vê. Tchau! - despediu-se ela.

- Falou - respondeu Carlos e olhou para Marcelo, que, cansado de esperar a conversa comprida

terminar, estava fazendo um castelo com a areia molhada.

- Vamos, maninho? - convidou Carlos.

- Só, meu! - respondeu o menino. E olhou para a irmã, todo orgulhoso.

Marcelo não tinha a menor idéia, mas Daniela sabia que Carlos estava enfrentando os amigos,

ao levar seu irmão, principiante, de volta ao pico.

14 A rivalidade entre surfistas e bodyboarders

Por causa desse encontro entre surfistas e bodyboarders, aconteceu de, naquela manhã, a

praia de

Itamambuca ser palco de um espetáculo muito interessante. Tanto que Rosália deixou cair o

livro que estava lendo. Admirada com a beleza das evoluções, para ela custava

acreditar que aquela era a equipe cujo desempenho conhecia tão bem:

"Olha só, que danadinhos! Como estão melhorando! Beto deve ser um ótimo treinador!"

No entanto, não era difícil desconfiar do motivo dessa atuação aprimorada. Os BBs estavam

preocupados em não disputar ondas com os surfistas, por dois motivos:

primeiro, para não despertar rivalidades; segundo, por respeito à maior experiência deles.

Afinal, muitos eram profissionais havia mais tempo! Mas, justamente por

perceber que tudo estava contra eles, os BBs sentiram-se provocados e mostraram até o que

não sabiam que sabiam. Voaram de tudo quanto era jeito. Como Marcelo diria:

só dava manobrão!

"Essa turma é casca-grossa!", pensou Carlos, admirado. Mas poucos surfistas concordaram

com o seu

julgamento. com algumas honrosas exceções, os surfistas não deram o braço a torcer. Na

verdade, egoístas, tanto os surfistas como os BBs queriam as boas ondas somente

para eles.

Mais tarde, chegaram outros surfistas, BBs e alguns banhistas:

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- Tá na hora de "vaza", gente! - disse Alberto, chamando a equipe para ir embora.

- Certo, mano. Olha o crowdl O mais complicado agora não é completar o drop, mas desviar

das pessoas boiando no inside - concordou Luisão, em "surfes". Agora mesmo,

quase pego um velho gordo...

Era verdade. com muitas pessoas no mar, ele, por pouco, não pegou um senhor boiando na

parte mais rasa. O surfe e o BB podem ser esportes perigosos para os banhistas.

Sendo assim, satisfeitos com o desempenho da equipe naquela manhã, mas, muito cansados e

sem condições ideais de treino, resolveram ir embora.

15 Decifrando o código secreto

Como de costume, Marcelo sentou-se na frente com Rosália, enquanto as três meninas iam no

banco de trás do carro.

No caminho, o menino, entusiasmado, contou para a avó sobre seu novo amigo.

- Vó! Ele tem 16 anos! O cara detona o lip e mesmo com ondas quebra-coco, cê viu né?,

aquelas ondas que fecham inteira, com força, mais no raso? Ele pega as melhores

e descobre a entrada de minitubos fechadões! E ele tá me ensinando, vó! - completou,

orgulhoso.

- Que bom, Marcelinho! E você viu a equipe da sua irmã, que beleza? Eles voavam de tudo

quanto era jeito! A coisa mais linda...

- É. Eles melhoraram... - comentou Marcelo, um

pouco enciumado.

- Ma, afinal, o que vocês chamam de lip? - perguntou Rosália.

- É a crista da onda, vó - respondeu o menino,

impaciente.

- E esse tal de quebra-coco... o que é mesmo? - tornou a perguntar Rosália, sem se dar por

achada.

- Vó, você não aprende nunca! É a última vez que eu explico. Sabe, shorebreak em inglês? - E

continuou sem esperar resposta. - É a onda ou a seção da onda que quebra

rápido, perto da praia, com muita força, e fecha

inteira.

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- Ahnn..., sei - respondeu, conformada, a avó.

- Mas, viu? Ele tá me ensinando... Ah! E livrou a minha cara, depois que pratiquei uma

interferência boba... O surfista loiro virou uma fera...

Rosália acenava afirmativamente, sorrindo.

- Vó, e cê acredita que, depois disso tudo, ele ainda me levou junto de novo... A tribo odeia

haole...

- Marcelinho! Assim também não! Você está falando grego!

- Vó, eu não sabia que era grego... Pensei que era havaiano...

- É brincadeira, menino! Eu só quero dizer que não entendo o que você está dizendo..., como

antigamente aconteceu com os povos conquistados pelos gregos da Antigüidade.

Eles não entendiam a língua dos conquistadores...

Rosália vislumbrou a fisionomia de enfado do neto e foi para os finalmentes:

- Me desculpe a ignorância - disse com ironia. E completou, um pouco irritada: - O que eu

quero saber é: o que quer dizer

haole!

- É como os havaianos chamam os surfistas estrangeiros que vão ao Havaí, vó... mas, no Brasil,

é como xingam alguém que quer se passar por surfista.

- Entendi. É mais ou menos o mesmo que "prego" para os bodyboarders...

Marcelo olhou para a avó, intrigado.

- Foi Daniela que me explicou - disse Rosália, rindo. - "Prego" é aquele que vai à praia com a

prancha lotada de desenhos escandalosos, bem "cheguei"... só pega

ondas de meio metro... no meio do... - olhou para o neto com ar interrogativo - ... crowd?

Marcelo riu, confirmando com a cabeça.

- Mas... - continuou Rosália - se desagrada aos colegas... alguém inexperiente como você... por

que Carlos os enfrentaria por sua causa?

- Não disse que ele é meu amigo, vó? Foi com a minha cara, ora! - respondeu o menino,

impaciente.

Rosália não se convenceu muito e ficou um pouco preocupada com a história.

16 Maneio entra pra tribo!

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"Afinal, Marcelo só tem 13 anos!", lembrou Rosália. "Que interesse um rapaz de 16 poderia ter

por ele? Estranho..."

Mas logo afastou esses pensamentos da cabeça, dando lugar a outro que a fez sorrir.

"Desde que o Ma resolveu ser surfista, ele tenta falar à maneira deles... Daqui a pouco, lá em

casa vai ser como na Torre de Babel do Velho Testamento... ninguém

vai entender ninguém!"

Nesse momento, Marcelo pediu:

- Vó! O Carlos me convidou pra sair com ele hoje à noite. Na praia... vai ter fogueira, pipoca e

papo de surfe. Não volto tarde...

- Você vai, Dani? - perguntou Rosália, olhando pelo espelho.

Antes que ela pudesse responder, Marcelo se adiantou:

- Imagine, vó. Ela não é da tribo... e também... não foi convidada... - completou o irmão, em

tom de falsa piedade.

- Tudo bem... - respondeu a avó meio a contragosto. - Mas, muito cuidado, viu, Marcelinho?

- Vó, eu não sou mais criança! Que coisa!

No banco de trás, enquanto as amigas trocavam impressões sobre o treino da manhã, Daniela

não falara uma só palavra até aquele momento e continuou calada durante

todo o percurso. Ela pensava:

"Sempre considerei o Carlos um moleque: burro, vagabundo, ignorante, sem respeito... será

que eu estava

enganada? Sua atitude hoje na praia defendendo o Ma... Sua preocupação com o futuro... E

como surfa bem!"

Mesmo sem querer, ela o via:

"As pernas grossas e fortes, equilibrando-se na prancha... os cabelos negros dançando ao

vento... o jogo dos quadris dirigindo a prancha... um deus grego!" As mãos

de Dani já estavam deslizando docemente por aquele peito moreno, musculoso..., quando um

tranco brusco a acordou do devaneio. Tinham chegado.

Dali a pouco, Marcelo, Lúcia e Helena começaram a discutir por causa do banheiro, enquanto

Daniela, deitada na rede, balançava-se: pra lá, pra cá; pra lá, pra cá...

Ela sentia uma aflição funda apertando seu peito. Mudou de posição na rede. Piorou. Agora, a

ansiedade estranha foi invadindo... invadindo... até tomar conta do

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seu corpo todo.

"Ele convidou o Ma para hoje à noite... Que inveja!... Não sei como vou agüentar até amanhã...

Se ele não estiver lá, eu morro!"

E Daniela até assustou-se com a voz da avó:

- Dani! Venha tomar banho pra almoçar! "Não sei o que deu nessa menina hoje..."

17 Os passeios de sábado à noite

A noite, o céu pintou-se de estrelas e, amenizado pela brisa marítima, estava um calor gostoso.

com exceção de Daniela, que continuava esquisita, de acordo com a avó, os jovens,

animadíssimos, não viam a hora de sair. O grande problema das meninas era a maquiagem,

o cabelo, qual roupa escolher...

- Você acha que short, camiseta e sandálias brancos vai parecer uniforme de enfermeira? -

perguntou Lúcia.

- Não. Fica parecendo mais é uniforme de babá respondeu Helena, escondendo o riso.

- Sua chata!

- Gente! Olha meu cabelo! Já tá parecendo espiga de milho! - exclamou Helena, aborrecida. Ela

sentia o maior orgulho de seu cabelo loiro.

- Desse jeito vamos chegar tarde. Vamos, que amanhã ajudo você a fazer um banho de óleo -

respondeu, impaciente, Daniela.

- Nossa! Que deu em você?

Mas Daniela, que sempre confidenciava tudo, tudo, às amigas, fechou-se em copas:

"Se eu falar pra elas do Carlos, vou fazer papel ridículo. Imagine! Quantas vezes criticamos os

imbecis do fundão... ou melhor, como nós mesmas inventamos, os 'indiotas':

uma mistura de imbecis com idiotas. Não vai dar!"

- Posso saber pra onde as menininhas vão? - perguntou Rosália.

- Vamos pró Bar Boate 45 Graus - respondeu Helena.

- Como é? Bar Boate 45 Graus? Qualquer alusão sexual é mera coincidência, né? - comentou

Rosália, rindo.

- Vó! Imagine! É claro que o nome é por causa do calorão que faz aqui!

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- Sabe, dona Rosália, o ponto de agito de Ubatuba, desde o verão passado, é lá - explicou

Lúcia.

O bar funcionava numa mansão, à beira da praia, no centro da cidade, e lotava a partir da

meia-noite. A moçada dançava e se divertia a valer em seus vários ambientes,

com direito até a banho de piscina.

Logo depois que as meninas saíram para ir ao bar, chegou Carlos.

- Tchau, vó! - despediu-se Marcelo.

- bom passeio! Ele traz você pra casa?

- Claro, né, vó - respondeu Marcelo, impaciente. Ele não se agüentava de orgulho por seus

novos

amigos.

18 Um ídolo do surfe

E na praia, os dois encontraram os surfistas sentados na areia, em torno de uma pequena

fogueira.

Marcelo, tendo Carlos do seu lado direito, logo percebeu que, próximo a ele, do lado

esquerdo, sentara-se o Alemão. Como era de se esperar, o menino ficou um pouco

ressabiado. Pouco à vontade, ouvia calado, mas interessadíssimo: "Só rola papo de surfe!",

pensava ele, maravilhado. No entanto, Marcelo ainda não sabia que a reunião

daquela noite era para homenagear um deles.

O herói da noite era o Duda Vasconcelos. Ele voltara em grande estilo às competições,

conforme prometera havia dois anos. Depois de aparecer na mídia contando os

problemas que tivera com drogas e a dificuldade para superá-los, ele sagrara-se campeão

pernambucano Master do ano anterior e ficara em quarto lugar no Circuito

Brasileiro Profissional.

Depois desses feitos, Duda, um rapaz simples e até tímido, tornara-se um ídolo do surfe. Todos

queriam vêlo, saber de sua experiência e ouviam-no com muito interesse

e orgulho.

- Mano! Como você se sente sendo campeão, logo depois da sua volta? Como conseguiu isso? -

perguntou Carlos, representando o grupo.

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- Treinei muito durante o ano todo e comecei a fazer coisas que eu não fazia antes: malhar,

fazer regime balanceado, enfim, continuar a me tratar...

- Você continua pensando no Circuito Brasileiro, né? - perguntou Alemão.

- Esse ano já to começando forte, concorrendo em todos os campeonatos... sinto que estou

com nível pra faturar o Circuito Brasileiro. Além disso, quero manter

o meu título na Categoria Master do meu estado... mas o brasileiro vai ficar difícil - e, olhando

para Carlos. - Está despontando gente que vai me dar trabalho...

Todos riram.

- Puxa, cara... - disse Carlos, encabulado. - Não to com isso tudo... isso falado por você...

- Eu observei, maninho. Você tem um estilo original e irado... Você promete!

Para esconder o orgulho que sentira com os elogios de um de seus ídolos, Carlos perguntou:

- Conta, Duda. A galera quer saber: o que você tem feito além de malhar e o cuidado com o

rango? Não precisa preparo especial? Tanta velocidade... arrepiar nas

ondas!

- Tenho um treinador... mas, sabe? Acho que o meu maior problema não era o físico, nem a

comida... Era nervoso. Muita adrenalina nas baterias... acabava em merda.

- Será que ainda era efeito das drogas que você usou?

- perguntou o Alemão, sem nenhum tato.

Mas Duda não se ofendeu e respondeu com a maior naturalidade:

- Acho que não... é diferente de "fica na lâmpada"... sempre ligado, não sei... Eu era assim,

mesmo antes das drogas... Depois, já tem bastante tempo que parei com

elas... penso que sempre foi ansiedade, insegurança mesmo...

Duda levantou a cabeça e sua voz ficou mais forte:

- Hoje em dia, fiz uma aliança com Deus, gente. Antes de entrar na água e durante as baterias,

eu rezo... essa conversa com Deus me deixa calmo, seguro, e passo

pela bateria como se estivesse num free surf. Sabem? Como se não estivesse competindo?

Ele fez uma pausa, mas os outros permaneceram em silêncio. Carlos disse baixinho a Marcelo:

- Duda e Beto, o treinador da sua irmã, são amigos e já surfaram juntos. Os dois tiveram

problemas: Duda com as drogas e Beto com a perna... Pena que ele não pôde

vir hoje...

Marcelo acenou que sim.

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Duda continuava respondendo às perguntas dos colegas:

- ... eu estou com uma prancha muito boa. Ela corresponde às manobras que quero fazer.

Vocês sabem como uma boa prancha, adequada ao seu tamanho e ao mar, é importante!

Fez outra pausa e voltou ao passado:

- Outra coisa ruim que me acontecia, manos, é que eu só "tomava toco" das gatas... isto é,

levava fora daquelas que valiam a pena... Pra mim, só dava Maria Parafina!

- Aquelas interesseiras, que grudam nos campeões

- cochichou Carlos para Marcelo.

- E mesmo assim - continuou Duda -, quando eu comecei a cair no ranking, elas se foram.

Duda interrompeu-se, por um momento, para continuar com um sorriso, misto de orgulho e

timidez:

- Agora vou dar uma notícia em primeira mão pra tribo. Até o final do ano, to fazendo uns

planos...

vou casar com uma mina... eu gosto muito dela - confessou ele.

Todos bateram palmas e, nos cumprimentos, quase o desmontaram com os tapas nas costas.

19 O medo de ser diferente

Em seguida, a conversa diversificou-se. Um dos rapazes estourou pipocas numa panela de

ferro e a bacia corria de mão em mão. De repente, um outro cheiro sobrepujou

o das pipocas. Marcelo começou a sentir... Era um aroma estranho...

O Alemão aspirou longamente e passou o cigarro para ele:

- Quer fumar um?

Marcelo hesitou. Esperto, sabia que não era um cigarro qualquer; mas, mesmo assim, para não

se sentir inferior, diferente dos outros, ele aceitou. A preocupação

com sua imagem era tanta, que nem percebeu vários surfistas somente passando o cigarro de

maconha adiante, sem nenhum problema.

"Imagine se eles descobrem que não gosto de fumar, nem cigarro comum... vão achar que sou

um bebê!", pensou ele, aflito.

Pressionado por esses pensamentos, Marcelo deu duas pequenas tragadinhas e passou a

droga. No entanto, como não estava acostumado, foi o suficiente. Ele ficou engasgado,

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vermelho, agradecendo ao escuro da noite e fazendo a maior força para não tossir.

Logo, logo, Marcelo sentiu-se alegre, solto... Toda a sua preocupação sumiu e, com ela, seus

reflexos, sentido de direção... discernimento... Sentia como se sempre

tivesse pertencido àquele grupo. Meio atordoado, as vozes pareciam vir de longe... pedaços de

frases...

- As ondas estavam pequenas, mas abrindo uma boa parede pras manobras...

- As ondas estavam show... o tubo veio na hora certa...

- Chegou uma frente fria... eu logo vi que as ondas iam pra mais de 2 metros!

- Em Sunset... Eta praia pra dar susto na gente! Passei o maior sufoco! Perdi minha prancha

num mar grande e imperfeito... séries que chegavam a 15 pés...

De repente, pensamentos estranhos, caindo para o erótico, passaram pela cabeça de Marcelo:

"Nunca pensei que o fogo queimando a lenha pudesse ser tão bonito! A labareda vermelha

lambendo o tronco, abraçando... quente... excitante..."

Como todos precisavam levantar-se cedo para o treino, algum tempo depois despediram-se:

- "Vamo vaza", maninho - chamou Carlos. Marcelo levantou-se cambaleante e rindo sem parar,

o que o desequilibrava ainda mais. Quem disse que conseguia andar em linha reta? Carlos teve

de guiá-lo até a caminhonete.

- Não sabia que essa praia era tão, grande... que vontade de um sorvetão com calda de

chocolate quente... escorrendo... que sede...! - dizia Marcelo.

- Chapadão, hein, amigo? Acho que você nunca tinha puxado um béqui... Só não sei o que sua

irmã vai pensar disso... - comentou Carlos. E pensou: "O pior é que pode

sobrar pra mim!"

Por sorte, quando Marcelo chegou em casa, sua avó e as meninas dormiam profundamente.

Ele entrou e foi direto atacar a geladeira, sem perceber que se esquecera de

trancar a porta da frente.

20 A surpresa

No domingo, Marcelo levantou-se mais cedo do que de costume. Não dormira muito bem,

preocupado com a bobagem que cometera na noite anterior.

"Eu nem gosto de fumar... Só pra não passar por maricás... merda!"

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Pegou um refrigerante na geladeira, umas bolachas e foi para a sala. De repente, estranhou

alguma coisa. Encostada à parede...

"Estou maluco ou... parece a prancha da Dani", pensou.

Levantou-se com a boca cheia de bolacha, chegou perto e custou-lhe acreditar! Era de fato a

prancha roubada da irmã!

Marcelo chegou perto e custou-lhe acreditar! Era de fato a prancha roubada da irmã!

Marcelo disparou pelo corredor afora e, soprando farelos para todos os lados, acordou a irmã

e a avó aos gritos:

- Dani! Vó! A prancha da Dani! O ladrão devolveu! Todas correram para a sala. Examinaram a

prancha:

perfeita!

- Acho que ele nem usou! - comentou Marcelo.

- Que loucura! - exclamou Helena.

- Não deviam ter mexido na prancha! - repreendeu Rosália.

- Por quê? Impressões digitais? - perguntou Lúcia, rindo.

- Você está brincando, mas aqui há pegadas... respondeu a avó, abaixada, examinando o chão.

- E não é que tem mesmo!? - exclamou Daniela, admirada. - Há umas marcas de barro...

- Parecem de ténis... - sugeriu Helena.

- Vamos pegar papel e lápis e colar o desenho dos solados... às vezes... depois vamos ver de

onde pode ser esse barro. Afinal, nem choveu... - sugeriu Daniela.

- Vamos pensar - disse Marcelo. - As pranchas estavam encostadas na parede da sala, onde eu

mesmo as coloquei.

- Isso quer dizer que o ladrão entrou aqui na sala, enquanto a gente dormia - concluiu Lúcia. -

O portão estava com o cadeado e a porta da frente estava trancada...

- Então ele tem a chave dessa porta - declarou Rosália, examinando a fechadura. - Como pode?

Está intacta!

Marcelo assustou-se, pois se deu conta de que se esquecera de trancar a porta. Mas ficou

quieto.

- Ladrão esquisito, não? E destemido! Arriscar-se desse jeito para devolver a prancha... -

comentou Helena.

- Deve ser alguém que consideramos amigo... brincadeira ou maldade... - sugeriu Rosália.

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- Concordo. O roubo, seguido da devolução da prancha, parece brincadeira, mas... isso cheira a

sadismo comentou Daniela. - Alguém que não gosta de mim... quer se

vingar de alguma coisa... me odeia e quer me fazer sofrer... - completou , ameaçando cair no

choro.

- Ou não gosta de nós! Roubar a sua prancha pode ter sido uma escolha ao acaso, Dani. Depois

que roubou, devolveu a prancha, só pra enlouquecer a gente - sugeriu

Lúcia.

21 A meia verdade

Marcelo, preocupado, ouvia tudo calado, até que criou coragem:

- Sabe, gente! Tenho uma coisa séria para dizer. Acho que sei quem foi...

Todos os olhares voltaram-se para ele.

- Foram os surfistas. Eles não gostam de bodyboarders...

- Que idéia, Marcelo! - defendeu a avó. - Carlos, que também é surfista, até intercedeu por

você ontem...

Daniela interferiu, concordando com a avó:

- Isso já é preconceito! E logo de você que se diz um deles, Marcelo?

- E se for uma brincadeira de mau gosto do grupo todo? Os surfistas não gostam mesmo muito

de nós. Todo mundo sabe... Esta casa já é conhecida como "a casa dos bebés..."

- disse Lúcia.

- Uma molecagem...? Até que é uma possibilidade aceitável, acho - disse Rosália.

Na mesma hora, para surpresa geral, Daniela interferiu, defendendo os surfistas:

- Imagine, vó! Eles... eles não são moleques... - titubeou ela. E vendo o espanto de todos,

emendou:

- Pelo menos... nem todos - e sorriu amarelo.

Claro que ela pensava em Carlos. Mas Marcelo, ainda com raiva do que o surfista loiro lhe

fizera, e precisando pôr a culpa

da bobagem que aprontara em alguém, completou

a vingança:

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- Alguns deles, Dani, como aquele Alemão, não só são moleques, como são vagabundos de

praia e maconheiros!

A afirmação surpreendeu a todos.

- É feio presumir alguma coisa e afirmar como verdadeira só para se vingar, Marcelo! -

repreendeu Rosália.

- Você está fazendo igual aos que estamos criticando...

O menino ficou ofendido e quis se defender de qualquer jeito:

- Não é nada disso, vó. Alguns são maconheiros mesmo. No dia da reunião na praia... a erva

correu solta... eles até me ofereceram...

Alguns dizem que uma meia verdade chega a ser pior do que uma mentira. Talvez seja mesmo,

pois Rosália ficou fuzilando:

- Que desgraçados! Além de drogados, oferecerem droga para uma criança... - exclamou ela. -

Dá vontade de dar parte à polícia!

- declarou, indignada.

22 í a culpa sobrou pra quem?

Daniela, pasmada, pensou, desiludida:

"Como Carlos me enganou! com aquela cara de anjo, amiguinho, falso com ele só! Quase

fiquei gostando dele... Por isso que

não passa de ano..."

Quanto mais Daniela se achava ludibriada, traída... mais raiva sentia.

Marcelo, que tinha feito uma careta ao ser chamado de criança, pensou:

"Meu Deus! E agora? Como vou sair dessa enrascada?"

- Bem. Hoje não podemos fazer nada... mas isso não vai ficar assim. Na próxima semana,

vamos descobrir quem está fazendo

isso conosco - declarou Rosália.

- Lembrem-se! Temos uma pista!

- Qual? - perguntou Helena.

- Claro! As pegadas que vovó desenhou - lembrou-se Daniela.

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- Sim. E já descobri, comparando com o tênis do Marcelinho - declarou Rosália. - São da marca

Tyke.

- Xii, vó. Furou. Tyke é a marca que mais tem... comentou Marcelo, desanimado.

- Só que há um detalhe que ainda não contei a vocês.

- E Rosália fez uma pausa para valorizar a descoberta: Havia pegadas lá fora também... e de

duas pessoas!

- Como, vó?

- Eram tênis diferentes... pessoas que não estavam juntas. Parece que um se escondia do

outro, como para espiar... algumas

eram pegadas pequenas... acho que de criança.

- Nossa, vó! Lendo pegadas? Cê parece índio! brincou Marcelo.

Todos riram, concordando.

- Mas e essa agora. Uma criança? - estranhou Daniela.

- Isso reforça a hipótese de que é uma brincadeira de mau gosto... - concluiu Rosália, dando o

caso por encerrado.

No entanto, mais tarde, ela surpreendeu-se pensando: "Roubar a prancha num dia... devolver

intacta no outro... Sem nenhum

motivo... Estranho, muito estranho!"

23 Agrava-se a rivalidade

Nessa manhã de domingo, quando o carro de Rosália chegou, Alberto, os rapazes da equipe de

BB e os surfistas já estavam

na praia. Rapidamente, as meninas entraram

na água. Marcelo, ressabiado, ficou com elas.

Assim, quem olhasse para o mar veria dois grupos tão separados, que pensaria haver,

dividindo-os, aquela cordinha de náilon

que delimita as raias nas piscinas olímpicas:

de um lado, os BBS; de outro, os surfistas.

As ondas estavam mais cheias do que no dia anterior, proporcionando momentos para

manobras radicais. Daniela batia no lip

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e girava co a onda, como um parafuso,

já com sua prancha nova, milagrosamente recuperada.

Carlos, que também tinha chegado atrasado, entrou correndo na água para juntar-se aos

companheiros. Na remada, ao passar

próximo a Marcelo, acenou amigavelmente.

O menino, envergonhado, fingiu que não o tinha visto.

Rosália, como de costume, depois de caminhar pela praia, começou a ler.

com o passar do tempo, a ondulação, de boa, tornou-se média, não proporcionando nenhum

exercício radical naquele dia. Como

disse Marcelo:

- Nenhuma onda alucinante está rolando no pedaço, vó. Não dá pra fazer nenhuma manobra

selvagem.

No entanto, só a presença de Duda bastou para animar os surfistas a darem tudo,

aproveitando ao máximo as ondas que apareciam.

Eles rasgavam, davam batidas em série

na parte de trás da onda... Carlos até conseguiu um minitubo e, ao sair dele, aproveitou a onda

até o fim.

De repente, Alemão tentou surfar já atrasado e acabou atrapalhado no degrau da onda.

Marcelo presenciou tudo e,

com a irresponsabilidade própria da idade, riu.

Para quê?

O surfista, mal-humorado com o insucesso da manobra, viu e foi para o lado de Marcelo,

muito ofendido. No momento certo,

bem no fundo, onde se formam as ondas,

o loiro aproximou-se e fez uma interferência clara de remada em cima do menino, inclusive

puxando-lhe a cordinha. Marcelo, ainda inexperiente, tomou um caldo violento!

Bebeu baldes d'água e perdeu a prancha a uma distância respeitável da areia.

Só com muito esforço, ele conseguiu recuperar sua prancha e safar-se do sufoco. Prendendo o

choro, Marcelo, muito assustado,

saiu do mar e foi sentar-se embaixo

de uma árvore, ruminando o ódio.

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Rosália, entretida com a trama interessante do livro que lia, não viu a interferência. Logo

depois do incidente, sem entender

muito bem o que acontecera, ela assistiu

de longe ao esforço do neto para nadar até a praia e recuperar sua prancha. No entanto, como

tudo acabou bem, a avó sentiu

que não era o momento de perguntar nada,

nem de consolá-lo.

A volta para casa foi quase em total silêncio. Quase, porque Rosália ainda tentou quebrar o

gelo:

- Marcelinho? Rosnado como resposta.

- Deixa pra lá - disse ela, sorrindo, e adiou o assunto para uma hora mais favorável.

Lúcia e Helena, cansadas do treino, cochilavam. Daniela, além do cansaço, estava triste por

não ter tido oportunidade de

falar novamente

com Carlos. Marcelo, por

sua vez, nunca se sentira tão mal em toda a sua vida. Era uma mistura de tristeza, vergonha e

raiva; uma sensação

amarga de impotência por não ter podido revidar a covarde vingança do outro, mais poderoso

do que ele.

Durante o almoço, comentaram sobre o treino da manhã e ele acabou desabafando.

Naturalmente, todas sentiram-se um pouco

ofendidas, solidárias

com o caçula.

Como conseqüência, esse novo incidente entre Marcelo e Alemão reforçou a desconfiança em

relação a todo o grupo de surfistas.

E como uma das bases do preconceito

é a generalização, o episódio também serviu para acirrar mais ainda a animosidade dos

bodyboarders contra todos os que praticam

surfe.

24 A especialidade de Maneio

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Depois do almoço, as meninas resolveram subir para São Paulo mais cedo, pois a estrada

estaria mais livre. Na segunda-feira,

a primeira aula era de matemática. Não

podiam perdê-la.

Começaram a arrumar tudo para a viagem de volta. As mulheres, num instante, lavaram a

louça e arrumaram as mochilas, separando

as roupas úmidas num saco plástico

e os pés-de-pato em outro.

Marcelo, como sempre, estava encarregado das pranchas: lavava, secava, colocava-as nas

capas, prendia todas

com cuidado no bagageiro. Como ele mesmo dizia:

- É a minha especialidade!

Vivia brigando com as meninas por causa dos cuidados com as pranchas:

- Mulher é assim mesmo! Vocês ficam horas passando creme nos cabelos, escovando... Mas a

prancha, quando chegam da praia,

largam no sol... nem pra jogar uma agüinha

nelas!

Ele exagerava e as meninas davam o troco:

- Já vai cuidar da namorada, é? Tem biqueira, tem protetor de rabeta... Banhinho de meia hora

quando chega da praia... capinha

acolchoada... Hum...

- Acho que ele até dorme com ela! - e riam. Depois de tudo pronto e as pranchas bem

amarradas, pegaram a estrada para São

Paulo.

25 Discussão na aula de matemática

Segunda-feira, já iniciada a aula, Carlos entrou afobado e foi sentar-se no seu lugar do fundão.

Ao passar por Daniela,

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tocou-lhe o braço e sorriu. Daniela amarrou

a cara e nem sequer olhou para ele. Em seguida cochichou para as amigas:

- Vocês viram? Fingido, sem-vergonha, cafajeste... Age como se nada tivesse acontecido!

Carlos ficou completamente desconcertado. "Vá entender as mulheres... Na praia, tão minha

amiga... agora

faz pouco caso...", pensou ele, e tentou explicar: "Ela deve ter vergonha de mim... eu sou mau

aluno...", e sacudiu os ombros:

"Também, não estou nem aí".

Mas não era verdade e ele sabia disso. A sua maior mágoa era que, depois da conversa

com Daniela na praia, tinha resolvido mudar.

"Como sou burro! Voltei mais cedo... cansado, fiquei até tarde estudando ..."

O professor de matemática estava explicando a noção de conjunto, subconjunto, igualdade e

diferença de conjuntos:

- Classe! Quem me dá um exemplo de subconjunto? - e olhou para os alunos das primeiras

fileiras. Para sua surpresa, no entanto,

um braço ergueu-se no fundão:

- Fale, Carlos!

- Ahn... por exemplo... os bodyboarders (B) são um subconjunto dos surfistas (S), pois B está

contido em S, ou B é parte

de S.

Antes de o professor falar qualquer coisa, Daniela interveio agressivamente:

- Afirmação falsa, pró! Os surfistas é que são um subconjunto dos

bodyboarders!

A classe riu, deixando-a mais furiosa:

- Melhor dizendo, surfistas e bodyboarders são conjuntos disjuntos!

- Tudo bem, gente. Vamos resolver as diferenças em outra hora, fora da aula, tá

bom? - sugeriu o professor, impaciente.

Como o objetivo de Carlos, ao inserir os BBs no conjunto dos surfistas, tinha sido agradar às

meninas, ele ficou muito ofendido.

Mais ainda: sentiu-se derrubado

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por uma rasteira, de cara no chão, em público! Nervoso, machucado em sua dignidade, Carlos

pegou suas coisas e

saiu da sala pisando duro, sob as vaias dos amigos do fundão.

"Quem essa fresquinha pensa que é? Pois foi um surfista que, num dia infeliz, criou essa

porcaria de bodyboarding...", pensou

ele.

A aula continuou, mas Daniela não ouvia mais nada. Apesar de não dar o braço a torcer, seu

coração estava apertado... seus

olhos teimavam em arder e lacrimejar...

"O que está acontecendo comigo? Estou perdendo o controle...", pensou ela, amedrontada.

Por fim, não agüentou mais. Também pegou sua mochila, acenou para as amigas e saiu da sala.

Ao pisar no corredor, as lágrimas

teimaram em escorrer-lhe pelo rosto,

aos borbotões. Pouco depois, um pouco mais calma, mas muito triste, Daniela encaminhava-se

para o banheiro, quando viu Carlos,

de cabeça baixa, encostado na parede

do corredor. Num impulso, ela foi até ele. Carlos ergueu o rosto, olharam-se longamente e,

sem uma palavra, abraçaram-se

ternamente.

- Precisamos conversar - disse Carlos ao seu ouvido, puxando-a pela mão. - Vamos! - e

despencaram escadaria abaixo, sob

o olhar espantado do bedel.

26 A outra metade do abacaxi

Carlos e Daniela sentaram-se no barzinho próximo à escola, de mãos dadas.

- Seu maluquinho! Que história foi essa de vocês oferecerem droga para o Ma? Minha vó está

furiosa...

- Imagine! - interrompeu Carlos. - Eu tenho horror disso. Nem cigarro eu fumo... Quando foi

isso? - perguntou, admirado.

- Na noite da reunião de vocês, na praia.

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- Imagine! Só pra seu conhecimento, a reunião de sábado à noite foi em homenagem ao Duda,

que,

com grande esforço, conseguiu safar-se das drogas... - respondeu

Carlos, nervoso. E acrescentou:

- Um ou outro puxa um... e só. O "béqu" passou, pegou quem quis. Eu to fora! Drogas e

esporte não

combinam, você sabe.

Calou-se, tremendo. Olhou bem nos olhos de Dani e desabafou:

- Vocês estão de má vontade conosco. Já percebi. Por quê?

- Sabe, Carlos, no domingo de manhã, minha prancha reapareceu, dentro da sala da casa da

praia!

- Que loucura! Mas o que temos com isso?

- Pois é. A porta não foi forçada... como se a pessoa tivesse a chave. E havia pegadas de duas

pessoas...

- Duas? - estranhou ele.

- É. Achamos que pra ter a ousadia de entrar dentro da sala... ter cópia da chave... devolver a

prancha... só

pode ser brincadeira maldosa de gente que está sempre por aí... Conseguiu uma cópia da

chave... Qualquer problema ao entrar,

o cara inventaria uma desculpa qualquer...

- Entendi. Aí acharam que foram os surfistas, né?...

- perguntou Carlos, ofendido.

- É. Pra torturar a gente... uma brincadeira sem graça, sádica...

- Ô, amor... - Carlos ficou vermelho de tão sem graça com a confissão - eu seria incapaz de

fazer isso a alguém... quanto

mais a você... Me sinto tão injustiçado...

Daniela comentou, comovida:

- Você, eu sei que não... Mas pode ser gente do seu grupo... aquele surfista loiro é estranho!

- O Alemão? Pode ser, mas... se eles estivessem fazendo isso, eu saberia... Em todo caso, vou

ter certeza, depois falo pra

você.

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- Mudando de assunto... Carlos, vamos falar de nós? O que aconteceu com a gente? -

perguntou Dani, timidamente.

- Não tem explicação... acho que foi o destino. Não queríamos reconhecer que encontramos...

- e Carlos vacilou,

com medo do ridículo.

- A outra metade do abacaxi? - perguntou Dani, sorrindo. - Mas, sabe? Acho que você não me

conhece...

- Acho que conheço você bem mais do que parece... mas pode dizer... vamos!

- Sabe, Carlos, pra mim tem de ser sério... não tem essa de ficar... ou é amizade, ou namoro...

queria que você soubesse...

- Tudo bem. Quando a senhorita deseja que eu vá pedir a sua mão em casamento para dona

Rosália? - perguntou Carlos, rindo.

Dani escondeu o rosto com a mão:

- Você me deixa envergonhada, viu?... Mas fui sincera. Eu sou assim.

- Você já pensou que justamente por você ser assim é que eu gosto de você? Minha certinha...

- disse ele, encostando a mão

dela em seu rosto.

Depois de alguns segundos de silenciosa felicidade, Dani lembrou-se de olhar para o relógio:

- Minha nossa! Precisamos voltar. O intervalo já acabou. Vamos?

E ela completou, preocupada:

- Acabamos perdendo uma parte da aula de matemática...

- Você que nunca perdeu aula nenhuma... - comentou ele, olhando para ela

com malícia.

- Convencido!

- A gente se encontra amanhã na classe... - disse Carlos. - Ai, meu Deus! O esforço para assistir

à aula vai ser maior ainda...

- Prá mim também, seu bobão!

27 Um menino colombiano

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Laureano, o gerente do cartel de Cali no Brasil, era descendente dos chibchas, o povo indígena

mais adiantado culturalmente

que os conquistadores espanhóis encontraram,

quando invadiram a Colômbia.

Bastardo, mestiço de índia com colombiano, ele nascera numa pequena vila, incrustada no

sopé do braço ocidental da cordilheira

dos Andes. Sua cidade natal ficava

próxima à cidade de Cali.

Como ninguém sabia quem era seu pai, Laureano mesmo escolhera seu sobrenome. Um dia,

ouvira alguém falar de um general Rojas,

ex-ditador colombiano: "Rojas, Laureano

Rojas". Achou que combinava, adotou o nome e tinha o maior orgulho dele.

Desde pequeno, ele trabalhava em plantações de milho. Na época do plantio, suas mãos

enchiam-se de calos e sentia as costas

dormentes pelo trabalho de afofar a terra

para receber as sementes. Durante a colheita, suas mãos inchavam e ficavam feridas por

apanhar as espigas e, depois dela,

ficava co os olhos congestionados

com a fumaça que subia da palha seca queimada.

Apesar disso, ganhava tão pouco que seu estômago doía de fome, mesmo

com as folhas de coca que mascava. Desde que perdera a mãe, dormia de favor no celeiro da

fazenda.

Naturalmente, nunca tinha ido à escola... nem tinha amigos.

Ainda menino, Laureano já era tratado como adulto, pois todos ali eram tão pobres e

trabalhavam tanto que não lhes sobrava

tempo, nem disposição, para cuidar de

ninguém além deles mesmos.

28 Nem só de pão vive o homem

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Ainda assim, dessa infância sofrida, restavam ao menino Laureano duas alegrias. A primeira

acontecia aos domingos. Ele vestia

seu poncho colorido, usava um "chapéu

de homem!", que tinha herdado de alguém, sandálias de tiras de couro, e ia à missa na igreja

matriz.

Laureano chegava cedo e sentava-se na mureta do poço, bem no meio da praça, para apreciar

o movimento. Ali, ele sentia-se

gente. Bem vestido, cabelo penteado...

a igreja tão linda, cheia de ouro... ele emocionava-se com os sons celestiais do órgão e do

coral...

"O céu deve ser assim", pensava, tentando lembrar-se do que sua mãe, que era muito

religiosa, tanto lhe falara.

A segunda alegria, ele tinha vergonha de confessar para si mesmo... "será que é coisa de

macho?"... era

cuidar das flores, de suas papoulas coloridas que balançavam ao vento. Entre uma fileira de

milho e outra, ele semeava carreiras

e carreiras de lindas papoulas e cuidava

delas com carinho.

Os patrões tinham a maior parte da fazenda plantada com o arbusto da coca. Mas Laureano,

desde pequeno, plantava milho.

Eles tiravam duas safras de milho e três de papoulas por ano. O milho era usado para consumo

interno: fubá, para fazer broas,

mingau, milho cozido, sopa... As papoulas

eram colhidas e transportadas de caminhão para um pavilhão, a oito quilômetros da

plantação, próximo à sede da fazenda.

Logo que as papoulas eram cortadas, Laureano

semeava outras. Um dia, contaram-lhe que elas eram levadas de avião para outros países!

"Claro", pensou ele. "Isso explica por que os aviões sempre pousam aqui... Não sou só eu que

acho as papoulas lindas."

Tinha uns 10 anos quando, ouvindo uma conversa aqui, outra ali, concluiu que suas papoulas

serviam para alguma coisa proibida.

Quem esclareceu foi um agrônomo que

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veio à fazenda com as sementes da flor e deu assistência técnica aos agricultores.

Pela primeira vez, Laureano foi convidado a participar da reunião: menino de tudo entre

homens feitos! Aquilo encheu-o de

orgulho. As informações, assimiladas em

parte, ficaram por dias ecoando na cabeça dele:

- Pagamos 6 dólares por hectare da plantação de milho, mas o preço subirá para 30 dólares se,

entre as fileiras de milho,

houver a plantação de papoulas - explicava

o doutor.

"Quem vai querer plantar só milho?", pensou Laureano, encantado, pois já ouvira falar do

dólar.

O homem elogiara bastante o clima e o solo da fazenda:

- Aqui temos as condições ideais para o cultivo da papoula! Se vocês seguirem meus conselhos,

poderemos ter até três safras

por ano! - disse ele.

Além disso, o agrônomo dissera algo que custou a Laureano entender:

- Plantações de milho, nuvens baixas e cordilheira alta são o tripé básico da nossa camuflagem.

Precisamos é coordenar a

semeadura da flor

com o tamanho das mudas

de milho...

"Ah! Deve ser proibido plantar flor... porque não dá pra comer!", interpretou o menino, do

ponto de vista da fome constante

que sentia. Laureano também soube que

alguns dos aviões que de vez em quando sobrevoavam a fazenda eram da polícia. Eles

procuravam as papoulas para destruí-las!

"Que maldade!", pensava ele. "Não falta terra pra plantar comida..."

Tão menino, e sempre esfomeado, Laureano já sabia que nem só de pão vive o homem.

29 Como Laureano descobriu o pó

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Depois do dia da reunião com o agrônomo, o menino foi promovido. Saiu da lavoura e foi

incumbido de carregar e descarregar

os caminhões, transportando as flores

para um galpão, próximo à sede da fazenda. Era o laboratório.

Naquela mesma semana, ele tomou conhecimento da existência do pó branco:

- Precioso! Caríssimo! Só empregados de confiança... cuidadosos... podem trabalhar

com ele... Eles ganham muito bem! - diziam os companheiros, troçando de sua ignorância.

Laureano, ingênuo, não sabia bem onde se metera. Ele orgulhava-se de ser um trabalhador e

era muito ambicioso. Além disso,

certamente por não ter ninguém, era leal

aos patrões como um cão de guarda, apesar de seu gênio forte e altivo, herança dos

antepassados.

Esse tipo de pessoa - conhecido como inocente útil

- sempre foi muito valorizado pelas organizações criminosas. O resultado disso foi uma carreira

relâmpago. Em poucos anos,

Laureano Rojas foi promovido a olheiro

do patrão no transporte da droga por avião.

Mais algum tempo e preferiram que ele permanecesse no Brasil. Desse modo, Laureano,

mocinho ainda, tornou-se o braço direito

dos chefões da sucursal brasileira do

cartel de Cali.

Naturalmente, houve um momento em que ficaram claras para ele as intenções de seus

patrões e as terríveis conseqüências

do que faziam. No entanto, aquela foi a única

profissão que aprendera, e quando ele pensou em mudar de vida já era impossível. É sabido

que a máfia não esquece, nem perdoa.

Assim também são os cartéis. O destino

empurrara Laureano para um caminho sem volta.

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30 A profissão de Joe

Quando Laureano veio da Colômbia para tornarse um dos gerentes do cartel, um jovem

brasileiro, conhecido como Joe, tinha

se iniciado no tráfico de drogas.

Como fazia a cada mês, Joe saiu de São Paulo e, por caminhos tortuosos, para despistar, foi

para o Mato Grosso do Sul.

Depois de viajar durante horas, chegou à fronteira do Brasil com o Paraguai. Para mudar de

país, bastavalhe atravessar a

rua. De um lado, ficava uma cidade brasileira;

do outro, uma cidade paraguaia.

Havia um ano que Joe fazia esse trajeto e já conhecia bem, como ele mesmo dizia, os caminhos

e as "bocas".

com a maior desenvoltura e tranqüilidade, ele entrou na loja de aparelhos eletrônicos, do lado

paraguaio, e cumprimentou

o velho magro e sorridente. Depois de alguns

minutos de espera, surgiu um rapazinho dos fundos da loja que lhe entregou um pequeno

embrulho de papel pardo. Joe agradeceu,

despediu-se do velho e atravessou a

rua, de volta para o Brasil.

No início, fora difícil para Joe se impor, principalmente por sua pouca idade, mas logo ele se

tornou um traficante independente

muito respeitado por quem fornecia

a droga. Mesmo quando estava sem dinheiro, conseguia a "mercadoria" que desejava, em

consignação: pagava a droga somente

depois que a vendia.

- Pode entregar a mercadoria que esse "formiga" é novinho, mas de respeito - diziam eles.

- Um confortão! - dizia o vendedor para Joe. Pra você vendo em consignação, rapaz! Você nem

precisa mais de capital de giro!

E era verdade. Ele nem precisava mais empatar dinheiro... Pegava a droga, vendia, depois

pagava o fornecedor e ficava com

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o lucro! Era facilidade para impressionar

qualquer um.

com o pacote dentro da pasta, Joe entrou no lava-rápido da esquina e, como sempre,

escondeu a droga num compartimento já

preparado, dentro do tanque de gasolina

do seu carro. Em seguida, comprou um lanche, pegou a estrada e, atravessando o Mato Grosso

do Sul, seguiu para o Pontal

do Paranapanema. Depois, para fugir de rotas

muito conhecidas, atravessou para o norte do Paraná. Voltaria depois para São Paulo,

atravessando a divisa entre os dois

estados num ponto menos perigoso.

No entanto, risco sempre havia, principalmente porque Joe gostava de trabalhar sozinho. De

vez em quando, passava por sua

cabeça associar-se a alguém - "pelo menos

eu teria um outro carro na frente, um batedor, para me avisar de algum perigo..." -, mas nunca

quisera ligar-se a outro

"formiga", muito menos a cartéis. "Gosto

de ser independente...", pensava, e acabava desistindo dos sócios.

Toda vez que fazia a sua "viagem de negócios", Joe calculava o tempo para chegar à divisa

entre o Paraná e São Paulo depois

da meia-noite. A essa hora, a menos que

houvesse uma equipe da Polícia Federal fazendo barreira

- o que acontecia raramente -, a pequena cidade por onde passava era uma porta aberta para

a entrada no estado de São Paulo.

O único patrulheiro rodoviário estava sempre dormindo. Ele tinha licença superior para isso.

Covardia? Nada disso. Juízo!

Eles sabiam o que acontecia naquela rodovia:

contrabando, drogas, carros roubados. Não tinham viatura, armamento, transmissor-

receptor... mas lhes sobrava amor à vida.

Quem poderia criticá-los?

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Mesmo assim, Joe suava frio por horas até chegar ao seu destino, porque sempre havia o

perigo das barreiras dos federais.

Em São Paulo, Joe vendia a cocaína, quase pura, a um distribuidor, que acrescentava à droga

tudo quanto era pó branco...

até pó de vidro! A droga e, naturalmente,

o lucro multiplicavam-se por três!

31 Como Joe descobriu o pó

Pouco tempo antes, Joe era um adolescente sensível, talvez um pouco inseguro, que gostava

de brincar com o perigo.

A primeira vez aconteceu numa reunião com amigos. Um deles ofereceu e ele experimentou

cheirar o pó branco. A sensação de

euforia e segurança foi indescritível!

Semanas depois, estava deprimido por problemas familiares - tinha um relacionamento difícil

com o pai

- e pelas notas baixas na escola. Lembrou-se do pó mágico e procurou o amigo. Ficou surpreso

ao saber que os papelotes eram

vendidos na favela, próxima à escola.

Era cheirar o pó e ele criava alma nova. Sua energia aumentava... É verdade que se tornava

irrequieto, porém a depressão

desaparecia. Sob o efeito da droga, ele

planejava inúmeras coisas que solucionariam todos os seus problemas, mas... no dia seguinte,

de nada se lembrava.

Um ano depois - somente um ano! -, já tinha perdido tudo, até sua identidade: seus

documentos eram todos falsos... outro

nome, outros pais, outra idade...

Joe nem sabia mais como acabara viciado em cocaína. Para se sentir melhor, sempre dizia para

si mesmo: "Eu só cheiro! E

paro na hora que quiser!".

Mas não parava.

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Depois de alguns meses, ir à escola, nem pensar! Vivia num estado de excitação tão violento

que não conseguia ficar sentado

numa sala de aula. Um sofrimento indescritível!

Por isso, não havia mesada que chegasse... Sem a droga, agora 5 gramas por dia (!), não

agüentava... era uma ansiedade insuportável!

A quantidade de droga de que ele precisava vinha aumentando a cada dia... até que,

desesperado, Joe, a exemplo do tal amigo,

começou a "viajar a negócios".

Um dia, houve um mal-entendido com os traficantes e, por causa de três dias de atraso no

pagamento da droga, ele quase foi

morto. Nesse tipo de empreendimento,

um pequeno erro é pago com a vida!

32 Sem saída?

Como um cão ferido, Joe ficou caído na sarjeta, lavado em sangue, até que policiais o levassem

para o pronto-socorro de

um grande hospital. Lá, não conseguiu

esconder o vício, embora nada tenha falado sobre o tráfico. Todo o tempo, Joe implorava para

que nada contassem a sua família.

No hospital, ajudaram-no com remédios e ele passava os dias fraco, sonolento, apesar de estar

comendo melhor. com o tempo,

os médicos tornaram-se seus amigos e

aconselharam-no a continuar o tratamento para se livrar definitivamente da droga. Foi por

eles que Joe soube de um serviço

do governo que tratava de viciados.

Sem alternativa, no dia de sua alta do hospital, Joe aceitou ser encaminhado para a Divisão de

Prevenção e Educação do Departamento

Estadual de Narcóticos, em São

Paulo. Lá, uma equipe de psicólogos fez tudo para ajudá-lo e orientou sua família. Assim, com

o auxílio de remédios, muito

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sofrimento e coragem, ele conseguiu libertar-se

do vício.

Joe retomou sua identidade... reconquistou seus amigos, reconstruiu sua vida. Voltou a

estudar, começou a trabalhar. A família

orgulhava-se dele.

Sua história parecia um roteiro dramático com final feliz. Isso até Joe descobrir que libertar-se

do vício é dificílimo,

mas com grande esforço ainda dá para conseguir;

libertar-se do tráfico é quase impossível!

33 Um "complexo empresarial organizada"

Um dos principais trabalhos de Laureano, já como gerente de Cali no Brasil, era criar diferentes

sistemas para enviar drogas

do Brasil para o exterior. Alternar

tipos de estratégia era um importante recurso de segurança. Nesse dia, por exemplo, Laureano

tinha de tratar de

uma importante remessa de cocaína para o exterior.

Dessa vez, a carga ilícita iria por um longo e tortuoso trajeto, em duas etapas, até chegar ao

seu destino final.

Uma empresa paulista - fantasma, claro - encomendara 20 toneladas de tabaco do sul do

Brasil. Caminhões partiriam de uma

cidade do Rio Grande do Sul, na semana seguinte,

com o carregamento de fumo pedido por ela.

Por outro lado, no Maranhão, ficava a outra empresa, também fantasma, especializada em

exportação.

Estradas ruins, cuidados com a fiscalização... os caminhões fariam uns 300 quilómetros por dia,

se tanto, levando uns 15

dias até chegar à pequena cidade no Maranhão,

com as 20 toneladas de tabaco. Ali, como a empresa tinha outro nome, para desnortear a

fiscalização as notas fiscais seriam

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trocadas e os caminhões iriam pela Belém-Brasília,

evitando os postos de fiscalização, para uma pequena cidade do estado de Tocantins, próxima

de onde ficava a fazenda dos

traficantes para quem Laureano trabalhava.

Na fazenda, depois do transporte em avião particular, a cocaína colombiana já estaria

esperando a chegada dos caminhões.

A droga seria camuflada entre as camadas

de fumo e seguiria para o porto de Santos com destino aos Estados Unidos. Lá, a cocaína seria

entregue para uma importadora

fantasma.

com a heroína, a estratégia era quase a mesma, mas o lucro era mais de três vezes maior. Por

isso o interesse do cartel

de Cali para começar a trabalhar também

com ela.

No "complexo empresarial", que era imenso e muito bem organizado, respeitava-se a

hierarquia. Todo o trabalho baseava-se

em planejamento, competência, dedicação

e confiança mútua. Justamente aí é que estava a dificuldade de ceder a heroína para o

Triângulo Vermelho:

"Primeiro, uma remessa para o exterior fora do esquema! Depois, desta vez não é explicar

para o cliente um simples atraso.

A partida, já paga, não será entregue!",

pensava Laureano, muito preocupado.

34 O Triângulo Vermelho monta a armadilha

Depois do jantar, Laureano foi de táxi para o bairro oriental, muito apreensivo. Mandou o

carro parar na esquina e caminhou

até um pequeno bar. Logo que entrou,

um dos garçons, reconhecendo-o, já o acompanhou

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aos fundos, onde uma passagem camuflada levava a um grande salão de jogo, repleto. A

maioria dos freqüentadores era formada

por japoneses, chineses e coreanos. No

entanto, o fato de haver ocidentais entre eles, mesmo em minoria, incomodou-o:

"A heroína já deve estar atingindo outro tipo de consumidor. Isso é mesmo coisa do

demônio!", pensou ele. "Alastra-se como

a peste..."

A única explicação que Laureano dava para o fato de nunca ter usado drogas, apesar de tê-las

tido sempre à mão, era seu

anjo da guarda, que ele confundia sempre

com sua falecida mãe. Laureano lembrava bastante os mafiosos dos filmes italianos: ele

respeitava a família e, por incrível

que pareça, dizia-se religioso.

Ele atravessou o salão. Um oriental imenso, parecendo um lutador de sumo, revistou-o e

entrou no escritório para avisar

o chefe da chegada de Laureano.

O sr. Feng, o velho chinês, estava ao telefone e fez um gesto brusco de desagrado pela

interrupção. Imediatamente o grandalhão

saiu da sala e pediu que Laureano

esperasse. O chinês continuou a conversa:

- Como? A heroína deste mês pode não ser entregue? - perguntou, preocupado. - E os

clientes...

- Escute bem a nossa estratégia, Feng - explicou uma voz impaciente, do outro lado da linha. -

Pedimos ao pessoal de Cali

dois quilos de heroína para serem entregues

nos Estados Unidos, em data próxima. Achamos que, na falta de alternativa, eles vão querer

nos entregar a cota de pó da

sua zona.

- Pois acertaram. Parece que Laureano, o homem de Cali, acabou de chegar... está esperando

para ser recebido por mim...

A voz interrompeu-o bruscamente:

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- As ordens são as seguintes: em primeiro lugar, finja que aceita colaborar, de maneira que ele

não desconfie de nada. Em

segundo lugar, o mais importante: você

deve providenciar para que a heroína nunca chegue aos Estados Unidos.

- Nunca chegue... Ah! Entendo. Esse será o motivo...

- Sim. O motivo para tirar Cali da jogada, evitando derramamento de sangue. Você conhece o

nosso código de honra...

- Sim... se não cumprir a palavra, fica desgraçado para sempre...

- Isso mesmo. O general aceita que o cartel de Cali continue a trabalhar com a cocaína, mas ele

não tem nenhum interesse

em dividir a heroína com eles. Se Cali

não conseguir levar a heroína, não terão cumprido um acordo fechado conosco e não terão

moral para exigir mais nada! Caem

fora do negócio da heroína e nada poderão

reclamar.

O homem do Triângulo Vermelho fez uma pausa e continuou a explicar:

- O boicote que fizemos a eles não deu certo... quase desencadeou uma guerra... não temos

interesse em massacres... perdem-se

homens dos dois lados.

- Entendido. Para impedir a entrega da heroína, preciso saber como Cali pretende levá-la para

os Estados Unidos... - comentou

Feng.

- Sim, você disse bem: "preciso saber". Isso quer dizer que você terá de descobrir. Nós

informaremos tudo que soubermos,

mas essa operação está sob sua inteira responsabilidade.

O homem fez uma pausa e continuou:

- Lembre-se bem, Feng. Para eles, você é um simples cliente do cartel de Cali! Não deixe que

descubram que trabalha para

o Triângulo Vermelho. E a voz repetiu em

tom pouco amigável:

- Lembre-se! É muito importante! A heroína não deve chegar à Califórnia! - e desligou.

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35 Laureano versus Feng

O velho chinês ficou pensativo por um momento e, em seguida, encaminhou-se para a porta.

Ao ver Laureano, Feng curvou-se

educadamente e, com um gesto, convidou-o

a entrar. Parecia cena de filme oriental, pois

o velho chinês tinha a cabeça branca, barbicha, era muito alto, magro, e estava vestido a

caráter.

- Como sempre, é uma imensa honra para nós receber tão ilustre visitante. Sente-se, por favor.

Aceita chá?

- disse ele.

Laureano cumprimentou com um aceno de cabeça, estendeu a mão e pegou o chá.

- Ha... - pigarreou. - Fui mandado aqui, senhor Feng, para pedir-lhe um grande favor.

Precisamos dos dois quilos de heroína

que chegarão para os senhores na próxima

semana.

Os olhos do velho Feng estreitaram-se ainda mais e ele falou baixinho e pausado, acariciando

de leve a barbicha rala:

- Os cavalheiros sabem que essa encomenda já foi paga por nós, com antecedência... nossos

clientes ficarão muito decepcionados...

nada, nada

bom para os negócios!

Laureano percebeu que a situação estava difícil, para não dizer perigosa.

"Se eu não conseguir por bem, terá de ser por mal... Estourar esses pontos não vai ser

bom pra ninguém", pensou ele.

No entanto, Laureano devia sua ascensão hierárquica dentro da organização no Brasil - de um

reles "mula" a gerente - às

suas qualidades de diplomata. A intimidação

ficaria para depois. "Espero não precisar... ainda mais que estou sozinho..." Ele pensou

rapidamente, respirou fundo e gastou

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todo o seu poder de sedução persuasiva.

- Sei que é estranho, fora de nossos padrões de conduta... Eu gostaria de explicar-lhe, pois é

uma situação excepcional

- pediu Laureano.

O velho chinês fez um sinal para que ele continuasse.

- Trabalhar com heroína é um negócio novo para o cartel de Cali - lembrou ele.

Feng acenou afirmativamente e Laureano continuou:

- Os negócios de Cali com heroína dependem de que o Brasil fique como corredor de

exportação da droga, preparada na Colômbia...

- Sim, sim. A heroína de Cali - interrompeu Feng, impaciente.

- ... e que é exportada para a Europa e para os Estados Unidos - completou Laureano.

Feng acenou afirmativamente, outra vez.

- Gostaria de explicar-lhe também - acrescentou Laureano - que nossos negócios com heroína

estiveram em perigo no ano passado,

porque o general Ling, o maior proprietário

das plantações de papoula na Ásia...

- Birmânia, Laos e Tailândia - interrompeu Feng.

- Sim, o cartel do Triângulo Vermelho - disse Laureano e completou: - Como eu ia dizendo, eles

estavam sabotando a entrada

da nossa heroína nos Estados Unidos e

na França...

Ao perceber a fisionomia estranha do chinês, Laureano interrompeu seu discurso:

"Madre de D/os/ Acho que esse cara é do Triângulo Vermelho!", pensou ele, dando um sorriso

sem graça e tentando consertar:

- Há alguns meses, selamos a paz! O Triângulo Vermelho doou trinta mil mudas de papoula à

Colômbia, como um desagravo...

Hoje, trabalhamos em grande harmonia...

Laureano, já desconcertado, observava o outro, tentando perceber a receptividade de seus

argumentos, mas, dali para a frente,

a fisionomia de Feng tornou-se impenetrável.

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Sendo assim, o rapaz fez uma pausa, para dar maior ênfase, e concluiu:

- Agora, o Triângulo Vermelho nos pede um pequeno favor... Não temos como dizer não...

Contamos com nossos parceiros e ficaremos

gratos ao senhor...

Feng curvou a cabeça e, afagando a barbicha, foi curto e fino:

- Pode contar conosco. É uma honra colaborar, mas, como retribuição, a nossa próxima cota

deverá vir com

20% a mais de pó.

Laureano, sem alternativa, acenou que sim. Feng fez uma pausa e observou:

- Espero que essa mudança de esquema não nos comprometa junto aos nossos clientes... Uma

curiosidade: como pretendem enviar

a droga?

- Bem. Como é uma pequena quantidade, pensei num "formiga"... Eles são independentes e

estão acostumados a traficar pequenas

quantidades de droga...

- E a coca...?

- A entrega de coca será como sempre, senhor Feng. Pronta entrega. Basta telefonar...

Feng deu-se por satisfeito; sem uma palavra, levantou-se, curvou-se educadamente e

acompanhou Laureano até a porta.

36 Suzie

Imediatamente após Laureano ter saído, Feng voltou à sua mesa e apertou um pequeno botão

escondido debaixo do tampo. Em

poucos segundos, uma porta lateral abriu-se

e por ela entrou Suzie.

Suzie era uma mocinha linda... quase uma criança! Pequenina e delicada no seu tshi pão de

seda azul, seus cabelos lisos

e negros estavam soltos, emoldurando um

rostinho sério de olhos brilhantes e amendoados. Ela parou próximo à porta e curvou-se

respeitosamente.

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- Aproxime-se, Suzie - ordenou o chinês.

A menina andou graciosamente em direção a Feng. A cada três passos curvava-se novamente,

numa deferência que, de qualquer

outra pessoa, pareceria humilhante. Mas

não vinda de Suzie. Seu porte era elegante e seus passos leves como os de uma princesa. Seus

cumprimentos tinham o ritmo

e a suavidade de uma coreografia de bale.

- Tenho uma missão importante para você - disse o velho. - Você viu e ouviu esse homem de

Cali que acabou de sair daqui?

- Sim, meu senhor. Como sempre, eu observava pelo visor...

Feng interrompeu Suzie:

- Então sabe que ele foi encarregado de planejar a entrega de dois quilos de heroína para o

Triângulo Vermelho, na Califórnia.

Só que a heroína não deve chegar lá,

de jeito nenhum!

Suzie ficou surpresa, mas nem piscou.

- Só não entendi quem de Cali vai levar a droga...

- comentou ela.

- Um pequeno traficante independente que Laureano escolherá - respondeu Feng, já irritado.

- Ele também não disse como esconderão a droga...

- Você sabe que o telefone dele está grampeado... Descobrir isso faz parte do seu trabalho,

menina! - interrompeu, com um

sorriso perverso, o velho Feng.

- Depois de interceptar a heroína, o que farei com ela, senhor? - perguntou Suzie.

- Traga para nós, de preferência - respondeu Feng com ironia. - Mas nem pense em deixá-la ser

entregue.

com o mesmo sorriso sádico, Feng abriu a gaveta, retirou dela um pequeno revólver prateado

e o pousou delicadamente sobre

a mesa. Em seguida, olhou fixamente para

Suzie.

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Para satisfação do velho chinês, a ameaça embaçou levemente o brilho dos olhinhos

amendoados de Suzie. Feng tornou a guardar

o revólver na gaveta e avisou:

- Outra coisa! Não queremos mortes. Se houver alguma, não deveremos ter nada com isso.

- Si... sim, meu senhor.

E Suzie foi se afastando lentamente de costas, enquanto fazia outra série de reverências.

37 chantagem

No dia seguinte, quando Joe menos esperava, tocou o telefone:

- Joe!

Ao ouvir o apelido, que tantas vezes havia amaldiçoado, ele estremeceu.

- Aqui quem fala é o doutor Laureano. Lembra-se de mim?

"Imagine se dá pra esquecer...", pensou Joe, assustado. - Si... sim - engasgou-se ele.

- Tenho uma ótima notícia, Joe! Escolhemos você para uma missão muito importante. Vai

montar na grana, seu rabudo! - exclamou

Laureano, fingindo estar empolgado.

"Maravilha! Todo o meu esforço lá se vai por água abaixo... Eu não mereço!", pensou Joe,

desesperado. E fez uma última tentativa:

- Doutor, eu parei há mais de um ano... Laureano hesitou por alguns segundos:

"E agora?... Mas não tem outro melhor... não tenho saída!", pensou ele e continuou como se

não tivesse ouvido:

- Preste atenção: quando eu avisar, você vai receber uma mercadoria. Você só terá de levá-la

para a Califórnia! Fácil, fácil!

- disse ele com voz sedutora e persuasiva.

O telefonema era em código, mas Joe, ex-traficante, entendeu na hora: "É transporte de

droga. A diferença é que de 'formiga'

fui rebaixado a 'mula'! Agora, só sirvo

pra transportar 'farinha'. Desgraçados!"

- Como vou fazer...? - tentou perguntar. O tom de voz de Laureano tornou-se áspero:

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- Sei que você tem possibilidade e oportunidades de viajar pra lá. Estou lhe dando tempo para

planejar. Lembre-se: pagamos

muito bem, mas não admitimos erros!

Joe logo percebeu que não tinha saída: "Imagine o que me farão se eu disser não...", pensou

ele, apavorado.

- Logo você receberá todas as informações para a entrega - disse Laureano, mais calmo.

Joe, muito deprimido, desligou e passou a noite em claro. Virava e revirava-se na cama,

pensando:

"Tenho de levar a droga para a Califórnia... mas como?"

38 Suzie e Joe

Joe almoçava no barzinho de sempre, absorto em seus pensamentos. Continuava preocupado

em resolver o problema do transporte

da droga para a Califórnia. Levar, sem

ser preso e, muito importante, sem se sujar com os amigos e, principalmente, com sua família.

Quase impossível!

"Pobre da minha mãe!", pensava ele, e seus olhos se encheram de lágrimas.

De repente, procurando distrair-se, Joe foi atraído por um par de olhos escuros, amendoados.

"Estranho... Acho que já vi essa menina... Ela deve trabalhar por aqui... Que gracinha... meio

novinha demais..."

Joe resolveu arriscar. Foi até a mesa dela e perguntou, com um sorriso:

- Esse lugar está vago?

A menina acenou afirmativamente e pensou aliviada:

"Até que enfim! Há mais de três dias que venho aqui! Acho que ele não desconfiou de nada.

Vai ser moleza!"

Havia dias que Suzie seguia Joe, obedecendo às ordens do velho Feng. Em sua cabecinha

ecoava ainda a voz desafinada do chinês:

"A heroína não deve chegar à Califórnia! De jeito nenhum!"

- Posso? - perguntou Joe e sentou-se. - Parece que já conheço você... Não é cantada, não... -

disse ele sorrindo. - Tenho

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certeza de que já a vi.

- Ahnn... Você vem almoçar sempre aqui...? - perguntou ela.

- Sim, mas... acho que já vi você... em algum outro lugar.

"Xii... ele pode ter me visto no cassino do Feng alguma vez... E agora?"

- Meu nome é Joe - apresentou-se ele. - Trabalho com esportes e venho sempre almoçar aqui.

Mas como visito clientes... -

explicou - devo ter visto você numa dessas

visitas... Você é inesquecível...

- Exagerado! - respondeu ela sorrindo. - Meu avô tem uma lojinha no bairro oriental... Às

vezes, ajudo no balcão...

"Meu Deus! Foi lá que a vi, em alguma entrega de droga!", pensou ele, preocupado.

- O que me impressiona é como esse mundo é pequeno! - comentou Suzie.

- Não. O mundo é grande - afirmou Joe. - Foi a força do destino... - completou, sorrindo.

Suzie riu, e perguntou:

- Você sabe que Força do destino é o nome de uma ópera? De Verdi, um compositor italiano...

- disse ela, certa de que ele

nunca ouvira falar.

- Sei, já ouvi. Meu pai... origem italiana, sabe? Ele adora. A música é linda, mas tão trágica! -

respondeu ele.

- Não mais do que Madame Butterfly, de Puccini...

- respondeu ela, para testá-lo.

- É verdade. Pobre Butterfly, que foi enganada pelas falsas promessas do seu amado e morreu

de amor lembrou ele.

Suzie, admirada, retrucou:

- Só que Butterfly era japonesa e crédula... e eu sou chinesa e desconfiada - comparou ela,

brincando.

- E ele era americano e safado, e eu sou brasileiro e cheio de boas intenções - completou Joe,

já um pouco arrependido do

significado escondido daquela conversa:

"Que declaração de interesse descarada!", pensou ele, preocupado.

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Mas, pega de surpresa, com um doce olhar ela o aceitou. E naquele breve instante, como dois

jovens comuns, eles riram.

39 Vidas duplas

No dia seguinte, enquanto almoçavam juntos, Suzie contou-lhe que trabalhava como

secretária em uma empresa cujo escritório

ficava próximo dali. Disse que morava

com o avô chinês, bastante idoso, e era mestiça de chinesa com brasileiro. Somente a última

informação era verdadeira. Mas

Joe acreditou em tudo.

Além da beleza e da inteligência de Suzie, a sua delicadeza, herança da ascendência oriental,

acabou de conquistar Joe.

Em pouco tempo, ela, apesar da pouca idade,

revelou-se uma grande mulher: inteligente, sensível, carinhosa...

Quase sem perceber, Joe apaixonou-se por ela e torturava-se:

"Em que péssimo momento a mulher da minha vida foi aparecer! Como poderei levar essa vida

dupla, sem perdê-la?", perguntava-se.

"A única sorte é que o avô dela é

um velho chinês muito tradicional e não aceita de forma alguma um relacionamento da neta

com alguém de outra raça..."

Pelo menos era o que Suzie lhe dizia, e Joe acreditava piamente. Sendo assim, encontravam-se

às escondidas e ele não precisava

apresentá-la aos amigos. "Quanto mais

cuidado, melhor!", pensava ele.

Apesar das aparências, Suzie, no íntimo, travava uma batalha. Depreciava o rapaz o tempo

todo, mas ele não saía de sua cabeça:

"Moço bobo! Todo romântico... A que isso pode levar? Nem me conhece... Há muito tempo

aprendi com o

velho Feng a não misturar negócios com sentimentos..." E afastava o rapaz do pensamento.

Mas ele voltava:

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"Joe é diferente dos outros ocidentais que conheço: gentil, educado... culto..." E logo após:

"Imagine! Um banana! Não suporto

homem de coração mole."

Naquela noite, foram ao cinema. Joe segurou a mãozinha de Suzie com todo o carinho. Em

certo momento, a perna do rapaz roçou

a dela. Suzie quase perdeu o fôlego.

Um arrepio passou-lhe pelo corpo...

"É uma resposta somente física", explicou ela para si mesma. "Tomara que esse negócio se

resolva logo... essa intimidade

já está ficando irritante!"

Era fácil para Suzie explicar o porquê da excitação com a proximidade de Joe. Era jovem...

hormônios em atividade máxima...

Por outro lado, ela percebia-se vivendo

um paradoxo e ficava amedrontada: sempre tão auto-suficiente... agora, a simples presença

do rapaz fazia com que ela se

sentisse alegre, protegida e segura, como

nunca se sentira antes.

Depois do cinema, foram para a casa de Joe, e Suzie descobriu que ele também adorava

música popular brasileira. Trocaram

idéias sobre os cantores, sobre as letras...

Ouviram MPB juntos até tarde da noite. Qualquer tentativa de algo mais íntimo, Suzie vetava

em nome de sua educação tradicional,

respeito ao avô etc. Mas nada impediu

que se despedissem com um terno e demorado beijo.

Suzie sabia que era impossível qualquer relacionamento verdadeiro entre eles e tentava se

enganar:

"Estou só representando... é só teatro!", dizia-se ela. Pelo menos era como pretendia que

fosse, pois o que sentira com

aquele beijo, por exemplo, não confessava

nem para si mesma.

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"Sempre trabalhei assim, friamente: nada de amizade... nem amor, nem ódio. Faço o melhor

para os negócios e pronto", raciocinava,

policiando-se.

E agora? Ela sabia que qualquer afeto por Joe mudaria tudo. Em vez de tomar uma decisão

profissional, ela enfrentaria um

trágico impasse.

Afinal, era a vida dele pela dela! Se Joe não entregasse a heroína na Califórnia, certamente ele

pagaria com a vida. Mas,

ao contrário, se ele entregasse a droga,

Suzie é que seria morta.

40 Uma boa ideia

Na madrugada do sábado em que sumira a prancha de Daniela, Joe estivera em Ubatuba,

numa velha construção usada para guardar

barcos de pesca.

Ele acabara tendo uma idéia para resolver o problema do transporte da heroína para a

Califórnia. A prancha de Daniela tinha

sido roubada para testar sua eficácia.

Suzie, que seguira o rapaz até Ubatuba sem que ele de nada desconfiasse, também estava lá.

Havia tempo, ela espiava por

uma fresta da parede de pau-a-pique, esburacada,

a princípio sem entender o que ele fazia.

De onde estava, acompanhava todos os movimentos do rapaz. A luz do candeeiro iluminava

parte da prancha de BB que estava

presa numa espécie de torno.

Gravado nela, lia-se Equipe Generation e, em letras menores, Daniela.

Suzie viu quando Joe tirou de uma sacola um pequeno saquinho de pó branco e misturou-o

com um pouco d'água. Em seguida,

ele pegou uma seringa veterinária, aspirou

o líquido espesso e voltou-se para o bodyboard. Aí, ela entendeu tudo.

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"Olha que idéia! Burro ele não é. Vai colocar um pouco do pó dentro do cano interno que

atravessa a prancha... um pouco

só em cada uma para não pesar... Como a heroína

nem chegou, deve ser um teste, com um pó qualquer!"

Era justamente esse o plano de Joe. com todo o cuidado, ele injetou a mistura, tapou o

pequeno orifício e começou a lixar

a prancha a fim de não deixar nenhum vestígio.

Pouco depois, deu o serviço por terminado. Joe guardou as ferramentas na sacola e, para

surpresa de Suzie, tirou a roupa.

Já viera de maio.

"Ai, Deus! Será que ele vai testar a prancha na água, agora?", pensou ela, desanimada. Não

deu outra. Suzie escondeu-se

atrás das moitas, quando ele passou a caminho

do mar.

As ondas estavam de bom tamanho e ele, por alguns momentos, esqueceu os graves

problemas que enfrentava. Já estava amanhecendo,

quando Joe, satisfeito com o teste,

concluiu que a heroína só sairia do springer se a prancha fosse quebrada. "Melhor,

impossível!", pensou ele, aliviado.

Na madrugada do domingo, ele voltou à casa de barcos para fazer o serviço inverso. Tirou o pó

de dentro da prancha e não

deixou nenhum vestígio da operação.

Suzie não entendeu nada. "O que esse cara pensa que está fazendo?", perguntava-se ela.

Quando, finalmente, Joe foi embora da praia, Suzie seguiu-o de longe. Ele andava devagar,

preocupado, esgueirando-se por

entre muros, com medo de ser visto, pois

já era dia claro. Suzie, curiosa, criticava: "Onde será que ele pensa esconder a prancha?

Imagine! E quando forem várias?",

pensou ela.

Até que Joe entrou na pequena viela onde ficava a casa de praia de Rosália.

Nesse momento, Suzie entendeu todo o plano:

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"Nossa! Que cara esperto! Ele vai devolver a prancha pra menina! O teste deu certo, e agora

ele tem certeza de que a própria

equipe pode transportar a heroína para

os Estados Unidos!"

Suzie continuava a não querer, ou não poder, confessar a si mesma que simpatizava com Joe:

"Criativo, inteligente, culto..."

Mas logo afastava esses pensamentos:

"Uma besta. Quem mandou se meter nessa?"

Joe avaliou a casa de Rosália: tudo quieto, silêncio absoluto. Depois do roubo da prancha de

Daniela, o portãozinho ficara

trancado.

Ele pulou a cerca, subiu pé ante pé os degraus para a varanda e experimentou a porta da

frente. Enquanto isso, Suzie, bem

escondida, espiava.

A porta, que Marcelo esquecera de trancar quando chegou da reunião na praia, abriu-se sem

nenhum esforço. Joe sorriu ao

perceber a facilidade, entrou e recolocou

a prancha de Daniela, junto às outras, encostada à parede da sala.

Ao descobrir o plano de Joe para levar a droga, foi a vez de Suzie ficar preocupada:

"Duzentos gramas da droga por prancha, no máximo, senão a prancha fica pesada e podem

desconfiar... dez pranchas, no mínimo,

para transportar os dois quilos...

Não vai dar. vou ter de roubar a heroína e trocá-la por um pó qualquer antes de ele colocá-la

nas pranchas...", planejou

ela.

41 Joe desvenda sua verdadeira identidade

No dia seguinte, já em São Paulo, Joe foi acordado, bem cedo, pelo toque estridente do

telefone.

- Alô! Joe! A sua encomenda chegou!

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- Alô! Ãhn? - perguntou Joe, sonolento.

- Joe! É Laureano.

"Pronto! É aquele desgraçado do cartel..."

- Sim? Doutor Laureano? Pode falar.

- Venha ao escritório hoje às 15 horas para pegar as duas latas de leite em pó que você

encomendou.

- Tudo bem.

- Aí conversaremos pessoalmente sobre os detalhes.

Tchau.

Joe desligou e segurou a cabeça entre as mãos, desanimado. Ele sabia ser dificílimo sair dessa

situação sem perder a vida.

Já tinha pensado em tudo. Sendo assim,

resolveu ir em frente com seu plano de levar a droga dentro dos springers das pranchas.

Na hora do almoço, Joe, mais uma vez, encontrou-se com Suzie na lanchonete. Sua fisionomia

tensa já levantou a suspeita

da moça.

"A droga deve ter chegado...", pensou ela.

- Preocupado, meu bem? - perguntou, passando a mão carinhosamente na cabeça de Joe.

Esse gesto de carinho bastou para arriar a defesa do rapaz, já tão minada pelo medo de perder

tudo o que tinha construído

e, principalmente, pelo medo de perder

Suzie. Os olhos de Joe encheram-se de lágrimas.

- Meu bem! O que foi? - perguntou ela, aflita. Nesse momento aconteceu algo muito estranho.

A

Suzie independente, calculista e fria perdeu definitivamente a batalha para a outra Suzie, a

que aparecera desde que ela

havia conhecido Joe. Continuava corajosa

sim, mas ao mesmo tempo frágil, carinhosa e sensível.

Joe, descontrolado, começou a soluçar, chamando a atenção dos vizinhos de mesa. Suzie

levantou-se e puxou-o pelo braço:

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- Venha, querido. Vamos para a sua casa. Pegaram um táxi e, em poucos minutos, chegaram.

As mãos de Joe tremiam ao abrir a porta. Mal entraram, caíram um nos braços do outro e

perderam a conta do tempo em que

assim ficaram. A cabeça de Suzie fervilhava:

"Preciso salvá-lo! Preciso salvá-lo! Meu Deus! Nunca pedi nada. Me ajude desta vez. Preciso

salvar da vergonha e da morte

o homem que eu amo".

- Suzie, preciso contar-lhe uma coisa - disse ele, com voz trêmula.

Levou-a até o sofá e, olhando-a bem dentro dos olhos, disse:

- Nunca falei nada por medo de perdê-la... agora não tenho outra alternativa...

Joe fez uma pausa, abaixou o rosto e vomitou as palavras:

- Meu nome não é Joe. É Alberto. Já fui viciado em cocaína e acabei traficando. Larguei a

droga. Há um ano que não tenho

mais nada com isso, mas, há alguns dias,

o cartel me ordenou que levasse dois quilos de heroína para a Califórnia. Se eu não levar,

certamente serei morto.

Alberto aguardou alguns segundos e, lentamente, ergueu os olhos. Suzie chorava

silenciosamente.

- Jamais abandonarei você - disse ela, num fio de voz. Enxugou o rosto com as mãos e

continuou: - Se é assim, você leva

a droga pra Califórnia... não tem outro

jeito... e fica livre deles.

- Você acha mesmo, Suzie?

- Sim. Eles vão acabar esquecendo você... - afirmou ela, sem muita convicção.

Ele completou, com os olhos brilhando:

- E nós ainda seremos muito felizes!

Suzie acenou afirmativamente, tentando esconder toda a angústia e o medo que sentia.

Alberto criou alma nova e pegou as

mãozinhas dela entre as suas:

- Suzie, sou um ex-surfista. Levei um tiro dos traficantes, na perna, o que me impossibilitou de

surfar. Apaixonado pelo

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esporte como eu era, comecei a pegar onda

de esponja e agora sou treinador de uma equipe de bodyboarding.

- Alberto? - confirmou ela, como se já não soubesse. - Gosto do seu nome.

- Meus amigos me chamam de Beto, Beto dos esponjas - contou ele. Sorriu e, por mais de uma

hora, desvendou-lhe o seu passado

em detalhes: a família, a escola, o

vício, o tráfico, o hospital... Em seguida, abriu-lhe o coração: - Minha família está muito bem...

me apoiou

sempre... eu os amo muito... eles nem sonham que eu esteja passando por isto tudo!

E, com um fundo suspiro, ele concluiu:

- Suzie, minha mãe não pode saber... de jeito nenhum. Ela já sofreu muito...

- Calma, meu bem. Vai dar tudo certo. Você vai ver

- disse ela. E, abaixando o tom de voz: - Como você pretende levar a droga para a Califórnia?

Naturalmente, ela fez a pergunta para que ele não desconfiasse de que ela já sabia de tudo.

Mas a resposta dele a surpreendeu:

- É melhor que você não saiba de nada, amor. Você entende, né? Não quero que corra nenhum

risco. Você não sabe de nada,

não tem nada com isso...

E, mais tranqüilo, ele continuou:

- A minha vida, atualmente, anda muito complicada, mas... você tem razão. Acho que eles vão

acabar me

esquecendo - mentiu ele - e, se Deus quiser, logo eu acerto as coisas.

E, antes que ela pudesse responder, ele brincou:

- Se você ainda me quer, Suzie - e ele esboçou um sorriso -, eu juro que enfrento o seu avô.

Em seguida, Alberto olhou para ela com um olhar matreiro e concluiu:

- Afinal, você já é mestiça mesmo... misturar um pouco mais não vai fazer muita diferença, não

é?

- Engraçadinho! - respondeu Suzie. E, apesar de tudo, os dois riram.

42 O que aconteceu com Suzie?

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De repente, Alberto olhou o relógio e exclamou:

- Meu Deus! Eu tenho de me encontrar com um cara às 3 horas!

E, instintivamente, ele olhou para os lados e abaixou o tom de voz:

- vou pegar uma encomenda.

Suzie acenou afirmativamente e pensou: "Como ele é ingênuo! Foi o mesmo que me contar

que vai pegar a droga..." E aconselhou:

- Então vá, meu bem, senão você chega atrasado! Levantaram-se, e Alberto avisou:

- Infelizmente, só iremos nos ver na próxima semana. Amanhã, chegarão as novas pranchas da

equipe e

sexta-feira desço para a praia. Tenho muito serviço... Na segunda que vem, a gente almoça

juntos, tá?

- vou morrer de saudade - disse ela e despediu-se com um beijo.

Suzie preparou-se para segui-lo. Como aquele sempre fora o seu trabalho, foi fácil como tirar

doce de criança.

Tudo aconteceu como ela imaginara. No dia seguinte, Alberto levou a droga e as pranchas para

a sua oficina. Havia duas pranchas

para cada um, já com a marca do

patrocinador e o nome do dono.

O rapaz vestiu um macacão de trabalho e pacientemente começou a injetar a droga dissolvida

dentro de cada uma delas.

Suzie foi embora, pois percebeu que esse era um trabalho demorado. No caminho, pensava:

"Não entendo por que já não roubei a droga! Agora, preciso roubar as pranchas, antes que ele

as leve pra praia..."

Mas a verdade é que ela, angustiada, não sabia o que fazer:

"Coitados... se esforçaram tanto por esse campeonato... estão na reta de chegada..."

Durante dois dias, Alberto voltou à oficina e Suzie assistia a tudo acontecer, sem tomar

nenhuma iniciativa. Estava paralisada.

Quando as pranchas ficaram prontas, Alberto arrumou-as na carroceria da caminhonete e

cobriu-as com um encerado grosso,

desses que se usam para proteger cargas

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em caminhões. As pranchas estavam prontas para viajar para Ubatuba e, se tudo ajudasse,

para a Califórnia.

De acordo com o teste feito com a prancha de Daniela, a heroína estava muito bem guardada.

A diferença de peso das pranchas

era insignificante, ninguém notaria

nada. E, para tirar a droga, só quebrando-as uma a uma.

O único problema que restava a Alberto agora era conseguir que a equipe fosse mesmo

competir na Califórnia. Isso ainda dependia

do desempenho deles no campeonato,

e o pior é que disso dependia a sua vida!

43 O Campeonato Paulista

Depois de grande expectativa e muito treino, chegara a final do Campeonato Paulista. com

mais de cinqüenta competidores

inscritos, o campeonato prometia

ser um sucesso.

A equipe da Generation estava muito motivada e treinara um final de semana e durante toda a

Semana da Pátria com as novas

pranchas. Todos tinham manobras originais

no bolso do colete e rezavam por boas ondas.

Na sexta-feira, como o dinheiro era curto, competidores, seus pais e amigos ajudaram o

carpinteiro a demarcar os espaços

e a construir os palanques de madeira na

praia: dos juizes, dos patrocinadores. Havia até uma pequena arquibancada para os pais. O

palanque da premiação foi todo

enfeitado com faixas e cartazes destacando

o patrocinador.

Carlos trabalhou lado a lado com seus amigos boáyboarders. Muitos outros surfistas

esqueceram as rivalidades e interessaram-se

em assistir à competição.

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No sábado, chegaram à praia bem cedo. A competição iria começar com as fases masculinas -

amador e

profissional. Ansiosos, os rapazes analisaram as condições do mar.

Luisão, que correra na frente, voltou gritando:

- Turma! Ondas pequenas para médias!

- Que droga! - exclamou Guigo - Logo hoje!

- Mas formação perfeita, mano! - completou ele, satisfeito.

Os outros competidores estavam chegando e, em volta de cada um deles, formavam-se

pequenos grupos.

- Que responsa, meu Deus! Cês viram? Vamos enfrentar os principais nomes do bodyboarding

paulista! constatou Marco.

- Eu já tinha olhado a lista de inscrições - respondeu Guigo. - Vamos ter de dar tudo!

- É isso aí! - concordou Luisão.

- Fiquem sossegados que nós estaremos torcendo por vocês - prometeu Helena.

- E nosso santo é forte! - completou Daniela.

Suzie descera para Itamambuca para assistir ao campeonato. Sua fisionomia estava tensa e

seus olhinhos amendoados estavam

a cada dia mais tristes. Alberto, preocupado

com o campeonato, nada notou. com o maior orgulho, ele apresentou-a aos integrantes da

equipe e à sua família. Todos ficaram

encantados com a menina.

Daniela, que já tinha conseguido recuperar o prestígio de Carlos junto à avó, também

apresentou Carlos a seus pais:

- Pai, mãe, este é Carlos, um amigo meu. Colega da escola... e ótimo surfista.

- Muito bom rapaz - sussurrou Rosália para a filha, mas todos ouviram.

Ficou um clima estranho, até que os pais de Daniela entenderam tudo, entreolharam-se e

sorriram. Todos riram.

com uma platéia animadíssima, Alberto, como presidente da Associação Paulista, abriu o

evento, com algumas palavras. Primeiro,

os agradecimentos de praxe, com

ênfase no patrocinador. A seguir, ele aproveitou para fazer um veemente apelo à platéia:

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- O crescimento do BB depende dos patrocinadores! Só comprem de marcas que invistam no

nosso esporte!

Depois, ele fez um rápido histórico do bodyboarding no Brasil. No final, usou seu mote

preferido, num momento emocionante:

- Falou bodyboarding, falou Brasil!!!

A praia lotada, com muito orgulho, repetiu suas palavras. Em seguida, gritos, assobios e muitas

palmas.

- Vocês sabem que, no profissional feminino, as seis primeiras colocadas no mundial

costumam ser brasileiras? - informou

Rosália à filha e ao genro.

- Fazem um bonitão lá fora! E é cada mina linda!

- comentou Marcelo.

44 disputa do título masculino

Começou a competição com baterias de 20 minutos cada uma. Guigo, Luisão e Marco caíram

em chaves diferentes e foram derrotando

seus oponentes um a um, até chegarem

à bateria final.

- Cês viram que, em cada bateria, eles começaram procurando ondas menores...

- É. Queriam retornar rápido para onde se formam as ondas... - explicou Helena.

- Sim - confirmou Lúcia. - Beto falou sobre isso.

- Agora, já que o mar foi subindo, eles seguiram a estratégia combinada. Nas últimas baterias,

estão procurando ondas maiores

para grandes manobras - constatou Daniela.

- O Bob, do Guarujá, está na frente do Marco. Agora é a bateria final... Ai que nervoso! -

exclamou Helena, roendo as unhas.

Todos torceram para que Marco vencesse Bob, mas uma péssima escolha de ondas atrapalhou

o rapaz, logo

de saída. Ansioso, Marco estava esperando as ondas um pouco atrasado em relação à linha

onde elas se formavam e começou

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a remar junto com Bob. Logo que percebeu,

abandonou a onda, mas, mesmo assim, os juizes, com grande severidade, julgaram que ele

cometera uma interferência de remada

e Marco perdeu pontos.

Luisão usava as duas bordas da prancha, trocandoas nos momentos mais críticos, e arrancou

aplausos da platéia, quando bateu

no lip e rodou na vertical, num back

flip perfeito.

Marcelo, sentado com seus pais e Rosália, torcia muito. Nesse momento, toda a rivalidade

entre os dois esportes - surfe

e bodyboarding - sumiu, diante da amizade

que tinha pela irmã e pelos amigos.

- Vó! Olha isso! Guigo tá dando um showl Cê viu o aéreo?

Guigo e Luisão, num dia feliz, colocaram, como se não fosse nada, as mais sensacionais

manobras já vistas numa final paulista.

Não deu outra! Guigo sagrou-se campeão paulista, com Luisão como vice e o guarujaense em

terceiro. Marco ficou em quarto

lugar.

Lá pelas 16 horas, com a fase profissional masculina encerrada, chegou o momento de os

rapazes torcerem pelas meninas.

45 A vez das meninas

O mar já tinha dado uma subida considerável e ficou para as meninas aproveitarem as

perfeitas direitas que, ironicamente,

quebravam no canto esquerdo da praia.

Helena e Lúcia impressionaram pela agressividade nas ondas. Mesmo assim, Dani fez a maior

média do dia, deixando Lúcia e

Helena empatadas em segundo lugar, com

uma BB santista, na bateria em que todas se classificaram.

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A última bateria aconteceu às 17 horas e valeu a pena para as pessoas que resistiram à fome e

ao cansaço. Lúcia esforçou-se

muito, mas, para tristeza das paulistanas,

a BB de Santos foi melhor do que ela.

De repente, formou-se uma grande onda para Helena. Era uma onda decisiva e, na beira

d'água, Alberto, Carlos e os rapazes

da equipe se entusiasmaram:

- Leninha! Olha a onda! - gritou Guigo, como se desse para ela ouvir.

- Graças a Deus! Ela entrou bem na onda... se posicionou bem... - analisou Alberto, tentando

manter a calma.

- Essa vai ser muito buraco! - admirou-se Marco.

- Não! A cavada foi boa. Acho que rende um tubo!

- comentou Alberto.

- Nossa! Ela tá precisando atrasar... vai mais pra trás, pelo amor de Deus! - gritou Luisão.

- Entubou! - berrou Guigo, e os cinco começaram a pular de alegria.

- Achou a saída do tubo... tá acelerando... pegou a outra seção da onda... Não acredito! -

exclamou Luisão.

- É campeã!!!

- Agora é a Dani - comentou Carlos. - Ela precisa da sorte para aparecer uma onda como essa:

irada, com muito power...

Deus estava do lado da equipe, pois foi só Carlos falar...

- Olha que onda! - exclamou Alberto. - Lá vai Dani... Pegou bem a onda... boa velocidade...

Marcelo, em pé na arquibancada, para espanto dos pais, começou a narrar como se fosse

futebol:

- A onda formou um bowll Dani usa a mesma linha de onda do el rollo, mas antes de bater no

lip já se prepara para o ARS,

minha gente! com a onda em pé, ataca o

lip, sem furá-lo, e joga-se no ar, girando até ficar de cabeça para baixo. É demais! Coloca o

corpo levantado na prancha

e começa um giro de 360 graus; aterrissa

na parede da onda e dá continuidade ao giro.

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Emocionado, ele gritou:

- Pai! Não acredito! Foi um air roll spinl Essa manobra vai render um dez!

Todos comemoraram entusiasmados. Logo depois, perguntaram a Rosália:

- Você entendeu aquilo tudo que o Marcelo falou?

- É assim mesmo. Não dá pra entender - comentou Rosália. - E olha que eu estudo essa

"língua" há anos... - disse rindo.

- Só eles entendem.

- Mas que foi bonito, foi-comentou o pai, orgulhoso. Marcelo, de pé na arquibancada, gritava:

- Dani! Dani! - e completou: - Mãe! A Dani vai para o topo do pódio! Tenho certeza!

Enquanto esperavam a pontuação final, Rosália explicou para a filha:

- Se Dani for campeã, vai ser a primeira vez que uma menina de São Paulo ganha o

campeonato.

- É difícil pra gente que mora longe da praia. Que droga! - comentou Marcelo.

- Mas você vê que a força de vontade supera qualquer empecilho, né? - comentou a avó.

- Empe... o quê? - perguntou ele, franzindo a testa.

- Dificuldade, menino! - respondeu Rosália, rindo. E comentou com a filha:

- Essas crianças de hoje não têm nenhum vocabulário! Marcelo, que odiava ser chamado de

criança, virou

a cara para as duas. Poucos minutos depois, perguntou:

- E aí, vó, se a Dani ganhar, eles não vão poder negar o patrocínio para a competição por

equipes na Califórnia, não acha?

- Acho que sim, Ma - respondeu Rosália. - Mesmo porque há a possibilidade de a equipe

representar bem o Brasil lá fora.

Eles estão demais!

No dia seguinte, no jornalzinho de Ubatuba saiu a foto de Alberto, Daniela e Guigo, em

destaque. No texto, comentavam:

BB de São Paulo ganha o Circuito Paulista

Pela primeira vez, uma concorrente de São Paulo torna-se campeã (...) Essa última etapa do

campeonato, em Itamambuca, foi

a que teve o menor índice de invasão na

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área de competição de todo o Circuito Paulista. Também não ocorreu nenhum tipo de tumulto

(...)

46 Vamos comemorar?

Alberto foi vitorioso! Conseguiu que os campeões paulistas daquele ano - das categorias

profissionais masculino e feminino

- fossem da Equipe Generation. Mas, também,

e o mais importante, ele conseguiu reerguer o Campeonato Paulista, derrubado pela falta de

patrocínios!

Muito cansados, mas felizes, resolveram adiar a comemoração para a próxima semana:

garoupa assada à moda dos índios.

- Queremos comemorar na praia! - disse Daniela.

- Comer na areia? Que falta de conforto! - criticou Alberto. Na verdade, ele queria

impressionar Suzie: "Ela não está acostumada

com essas coisas..."

- Larga de ser desmancha-prazer, cara! - exclamou Guigo, rindo.

- Não existe receita melhor: braseiro num buraco na areia... só sal. A garoupa assa na própria

gordura, embrulhada em folhas

de bananeira... Hum... que delícia!

- comentou Lúcia.

- Podemos trazer arroz branco já pronto - sugeriu Helena.

- Eu peço pra vovó fazer o pirão - completou Daniela.

- Tá bom, manos. Vocês são todos "naturetes" mesmo... - concordou Alberto, pensando: "A

Suzie pode achar a receita original

e a maneira de comer pitoresca... Ainda

mais que os orientais gostam de peixe..."

Alberto estava mais tranqüilo. com a vitória da equipe, nada o impediria de conseguir do tio,

que era o gerente da Generation

do Brasil, a viagem para a Califórnia.

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Já em São Paulo, Alberto marcou uma reunião com os patrocinadores. Foi muito festejado

pelos prémios conseguidos e foi fácil

conseguir a viagem da equipe. Eles

iriam representar o Brasil num campeonato americano por equipes!

De volta a sua casa, Alberto telefonou para Laureano.

- Doutor Laureano! Aqui é o Joe.

- Sim. Como vai o nosso negócio? - perguntou Laureano.

- A farinha vai para a Califórnia dentro de alguns dias, doutor, sem nenhum risco.

E contou-lhe sobre a viagem da equipe.

- Parabéns, Joe! Eu sempre confiei no seu taco respondeu Laureano, satisfeito. - Se tudo correr

bem, logo que você voltar,

além da vitória na competição, receberá

a grana - disse ele, bancando o engraçadinho.

- Obrigado - respondeu Alberto, pensando com raiva:

"Eu quero mais é que vocês me esqueçam pra sempre!"

47 Suzie fica confusa

Depois de uma noite maldormida, Suzie levantou-se triste, mas menos preocupada. Dizem que

a noite é boa conselheira e ela

teve uma idéia para tentar resolver o problema

da heroína. No entanto, continuava com muito medo, pois, por ajudar Alberto, as

conseqüências para ela poderiam ser terríveis.

Durante a noite, ela se lembrou do que ele lhe contara sobre a divisão especial da Polícia

Federal. Eles tinham ajudado

Alberto, logo que ele saíra do hospital;

trataram-no bem e tornaram-se seus amigos... Sem eles, dificilmente Alberto teria largado as

drogas.

De manhã, Suzie resolveu:

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"Beto está em perigo de vida! vou pedir ajuda a eles", pensou. Reuniu toda a sua coragem e

pegou o telefone:

- Alô! É do Departamento Estadual de Narcóticos?

E Suzie, apresentando-se como amiga de Alberto, pediu urgência pela gravidade do caso. Por

intermédio do diretor da Divisão

de Prevenção e Educação, ela conseguiu

marcar um encontro com os agentes antidrogas, para o dia seguinte, às 15 horas.

Depois dessa conversa, Suzie, muito tensa, saiu para almoçar com Alberto. Mal entrou no

barzinho, ele veio ao seu encontro.

Seus olhos brilhavam de alegria:

- Consegui a viagem para a Califórnia! - contou ele.

- Eu me orgulho muito de você - confessou a menina, abraçando-o.

Já sentados em sua mesinha de sempre, ele não conseguia falar de outra coisa:

- Já pensou a alegria da equipe, quando souber? O que eles ralaram... Mas valeu! Eles

merecem!

- Você também! - exclamou ela.

- Eu fico até envergonhado... Depois de tanta bobagem que fiz na vida... - respondeu, com

modéstia, Alberto.

- Não se condene, meu bem. Isso é passado. Lembre-se: você conseguiu dar a volta por cima!

Alberto sorriu, pensativo, e disse:

- Como eu tenho sorte! Cê viu? A vitória da equipe... a viagem e, o mais valioso, você gosta de

mim! No final da semana,

vamos comemorar a vitória! Peixe à moda

dos índios... Ah! E você é a convidada de honra completou ele, orgulhoso.

Mas, logo em seguida, o medo de perder tudo, como uma sombra, desceu sobre Alberto:

- Suzie, você reza pra ir tudo bem na viagem pra Califórnia? É muito importante! Mais do que

você possa imaginar...

- Claro, meu bem - respondeu ela. - Mas isso tem um preço.

Ele olhou-a interrogativamente:

- Eu também preciso de reza pra amanhã à tarde explicou ela.

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- O que é? Senão, não rezo! - perguntou o rapaz.

- Seu curioso - respondeu ela, sorrindo. - Depois eu conto.

No dia seguinte, Suzie encaminhou-se para a Polícia Federal, com a esperança de que eles

tivessem uma idéia para salvar

Alberto.

Ela sabia muito bem que a polícia não tinha grande chance ao enfrentar o cartel. Sabia

também que, ao impedir que a heroína

chegasse à Califórnia, ela tinha assinado

uma sentença de morte para Alberto. Como a polícia poderia defendê-lo da vingança de Cali?

Certamente, Laureano mandaria matá-lo e, mesmo assim, o gerente de Cali também seria

castigado pelo insucesso da missão

que lhe confiaram.

Quanto a ela mesma, Suzie tentava enganar-se:

"A polícia não saberá nada de mim, portanto não correrei risco algum", tranqüilizava-se. "Pelo

contrário, vou ajudá-la...

O Triângulo Vermelho nunca descobrirá que

fui eu..."

De repente, porém, já sentada no banco do ônibus, Suzie ouviu, como se tivesse sido soprado

por alguém:

"Suzie, entregue-se! Entregue todos: Laureano e o velho Feng! Só assim você terá chance de

salvar Alberto!"

Suzie balançou a cabeça assustada, passou a mão na testa - como para espantar os demônios -

e ajeitou-se no banco.

"Não adianta. Nada poderá salvar Alberto", justificou-se ela.

Em seguida, Suzie forçou-se a olhar pela janela as vitrines das lojas e os transeuntes que

passavam apressados.

48 A decisão

Ao entrar no prédio do Departamento Estadual de Narcóticos, Suzie encaminhou-se para a sala

do diretor. Seu coração batia

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acelerado, mas logo acalmou-se, pois foi

muito bem recebida pelos agentes.

Logo que Suzie começou a falar de Alberto, os policiais lembraram-se dele e ficaram

consternados.

- Chantagem? Nós temos tido boas notícias dele. Ia indo tão bem...

- Os senhores sabem que, no último campeonato de bodyboarding, os campeões paulistas são

da equipe que ele treina? - informou,

orgulhosa, Suzie.

- Coisa difícil de acontecer... São poucos os que se safam... Eu tinha certeza de que esse rapaz

teria a coragem suficiente

para largar as drogas e vencer... - era

o comentário geral, entre os agentes.

De repente, Suzie ouviu-se dizendo:

- Senhores! Eu tenho uma proposta para fazer! Todos os olhares voltaram-se para ela:

- Eu entrego Feng, o gerente do Triângulo Vermelho, e todos os seus comandados; entrego

também Laureano, um dos gerentes

do cartel de Cali, e ainda entrego dois

quilos de heroína...

Os agentes, estupefatos, entreolharam-se e voltaramse para Suzie, desconfiados:

- Mas... como...?

Suzie, com coragem, completou:

- Entrego todos e a droga, mas... há duas condições: primeiro, os senhores comprometem-se a

diminuir a minha pena; segundo,

Alberto deve ser preservado. Ninguém,

a família, os amigos, deve saber que ele esteve envolvido nisso. Mesmo porque eu é que fiz

tudo!

Depois de alguns segundos, Suzie quebrou o silêncio que descera sobre a sala. Em voz baixa,

quase inaudível, como se estivesse

falando de outra pessoa, contoulhes

sua triste história: sua infância... seu trabalho, desde pequena ligada às drogas... explicou-lhes

a rivalidade entre os

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dois cartéis e como Alberto estava sendo

chantageado para levar a heroína para a Califórnia.

Suzie só não lhes contou qual o motivo que a fizera entregar-se. Mas era fácil descobrir. Os

agentes - já conquistados pela

simpatia e pela delicada beleza da garota

-, embora acostumados com tragédias semelhantes, emocionaram-se. Perceberam logo que

Suzie sacrificavase por amor.

Imediatamente, eles concordaram com as condições e prometeram fazer tudo o que

pudessem para ajudá-la. Além do mais, não

era sempre que conseguiam prender a alta

hierarquia do tráfico, sem falar da do jogo clandestino.

- Vamos combinar o dia da batida no bar do velho Feng - disse o delegado-chefe do

Departamento de Repressão às Drogas. -

Faz tempo que estamos atrás dele! Agora

chegou a nossa vez!

Combinaram tudo. Suzie prometeu que arranjaria um encontro no bar, entre os dois

traficantes, com Laureano entregando cocaína

a Feng.

- Assim matamos dois coelhos com uma só cajadada - disse um dos agentes, rindo.

- Posso fazer isso, sim - concordou ela. - Mas prefiro num final de semana. Beto volta de

Ubatuba sempre na segunda de manhã.

- Tudo bem. Domingo, às 22 horas - definiu o diretor.

E declarou:

- Vamos pegar todos, de uma só vez!

De um telefone público, Suzie ligou para Laureano. Ela estava, de fato, decidida a salvar

Alberto:

- Doutor Laureano? Aqui é Suzie, secretária do sr. Feng.

- Pois não, senhorita.

- Precisamos "daquilo". A quantidade de costume. O sr. Feng pede para que a entrega seja

feita no domingo às 22 horas, por

favor.

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- Domingo, às 22 horas - repetiu Laureano, tomando nota, e pensou: "Mas que desaforado

esse chinês! Ele se acha o máximo!

Até marca hora!"

- Tudo bem, senhorita. Diga ao sr. Feng que tudo bem - respondeu ele.

49 Como vencer na Califórnia?

Após uma longa semana de espera, na sexta-feira, depois das aulas, todos foram para a praia.

Suzie prometera a Alberto que iria participar da peixada. Mas somente no sábado à tarde ela

alugou uma caminhonete e desceu

para Ubatuba.

Carlos conquistara a família de Daniela de tal modo que Rosália o convidara para ficar na casa

de praia junto com eles.

Marcelo não se agüentava de contente. Carlos

tornara-se seu ídolo. E Daniela estava exultante.

- A comemoração da nossa vitória no Campeonato Paulista vai ser demais! - diziam os

integrantes da equipe, ao convidar os

amigos.

Sábado, a equipe amanheceu na praia. Como sempre, sentaram-se na areia para ouvir as

instruções do treinador:

- Turma, eu me vejo obrigado a dizer que vocês...

Alberto parou e olhou para eles, um por um. A equipe, em silêncio, esperou, sentindo que

vinha coisa importante:

- ... são uma tribo de cascas-grossas! - terminou ele, rindo.

Felizes, todos começaram a falar ao mesmo tempo, a se abraçar, a jogar areia uns nos outros...

Até que um começou a bater

palmas para Alberto e, como se tivessem

ensaiado, todos o acompanharam. Alberto, muito comovido, agradeceu:

- Nem sei o que dizer, maninhos. Só posso repetir muito obrigado! O mérito foi de vocês...

Parou alguns segundos para se recompor da emoção:

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- Galera, vamos lá! Não podemos fazer feio... lembrou Alberto. - Agora é para mostrar lá fora...

para os gringos!

Voltaram a se sentar para ouvir as instruções do treinador:

- Gente! Para ir bem em qualquer campeonato, temos dois tipos básicos de preocupação: o

primeiro tipo acontece dentro d'água.

Você vai escolher o lugar, a onda,

as manobras mais adequadas... Você vai tomar cuidado para não cometer interferências. O

segundo tipo de preocupação acontece

fora d'água.

- Fora d'água... Já sei! - interrompeu Guigo. - Os exercícios físicos, alimentação adequada...

dormir bem...

- Cuidar bem dos cabelos... da pele... Por exemplo, os da Leninha estão parecendo espiga de

milho... - brincou Lúcia.

- Evitar bebida alcoólica... - completou Marco, rindo.

- Drogas... - acrescentou Luisão, rindo mais ainda.

- Já sabemos disso tudo, Beto - reclamou Daniela.

- Os senhores permitem que eu fale? - respondeu o treinador, impaciente - É importante!

No mesmo momento eles fizeram silêncio e Alberto continuou:

- Fora d'água, além de bons BBs, vocês devem ser ótimos competidores!

A equipe olhou para Alberto sem entender.

- vou explicar - disse ele. - Um bom competidor é aquele que conhece, com detalhes, as regras

do campeonato e sabe usá-las

a seu favor. Ele sabe o que os juizes

esperam dele!

- Por exemplo? - perguntou Helena.

- Por exemplo, vou falar do Marco. Todos olharam para o colega.

- O Marco não é um BB radical. Mas, com o seu estilo, menos dinâmico do que o do Luisão, o

Marco tem a possibilidade de

conquistar mais pontos pra nós do que o

Luisão, lá na Califórnia.

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- Não entendi! - reclamou Luisão, ofendido.

- Luisão! Todos nós adoramos seu estilo... aliás, lembra o do Guigo - defendeu-se Alberto. -

Mas, agora, precisamos ter

calma para não cometer erros durante as baterias

e devemos fazer aquilo que os juizes americanos mais valorizam.

- Como vamos saber o que eles mais valorizam? perguntou Lúcia.

- A nossa estratégia vai ser a seguinte. Em primeiro lugar, nós já temos as regras. Estou

traduzindo e vou distribuir uma

cópia para cada um de vocês. Em segundo

lugar, logo que chegarmos lá, antes de a competição começar, vou sentar-me com um

organizador, ou juiz, e tentar saber quais

os critérios que estão sendo adotados

para pontuar as manobras.

- O mar muda a toda hora... - comentou Guigo.

- Isso mesmo! Precisamos saber o que os juizes estão valorizando mais naquele momento.

Esquerdas? Tubos? E se não aproveitar

a onda até o final, perde ponto?

- Meu pai disse - interrompeu Helena - que o mar na Califórnia não dá onda tão boa...

- Bem lembrado, Helena. Lá, como no Nordeste... Quem está acostumado a pegar onda ruim

sai sempre com vantagem nas competições.

Vocês já observaram como os nossos

BBs e surfistas do Nordeste estão se destacando?

Depois disso, fez um gesto encerrando a conversa.

- bom, gente. Vamos trotar na beira d'água por uns cinco minutos e, depois, vamos fazer os

exercícios de alongamento.

50 A festa da vitória

O dia passou rápido e a equipe só saiu da praia às

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15 horas. Estavam estafados e precisavam descansar, antes de começar a preparar a

comemoração da noite.

Alberto e os rapazes passaram o resto da tarde limpando as garoupas, presente dos amigos

que faziam caça submarina. Às 20

horas, os peixes já deveriam estar no braseiro.

Dani, Helena e Lúcia passaram a tarde ensaiando uma surpresa para Alberto.

Finalmente, chegou o momento tão esperado. A noite começou com reggae, preparando o

clima de balada. Logo que a maioria

dos amigos chegou, eles tocaram música havaiana.

Daniela, Helena e Lúcia, vestidas de havaianas, fizeram uma homenagem a Alberto e dançaram

a hula, dança típica do Havaí.

Foram aclamadas pela platéia. Em seguida,

a surfmusic animou a festa até o final.

- O peixe está delicioso! - era o comentário geral. Rosália, orgulhosa da neta, conversava um

pouco

com cada um.

No meio da festa, Lúcia começou a procurar Daniela e Carlos. Achou-os sentados a um canto,

conversando sobre a viagem à

Califórnia.

- Estou tentando, meu bem - dizia Carlos. - Como minhas notas melhoraram... quem sabe?

Nesse momento ele foi interrompido por Lúcia:

- Eu estava procurando vocês. Dani, cê sabe por que o Alberto está triste? - perguntou ela.

- Você também percebeu? Era o que eu e Carlos estávamos comentando, agora mesmo. Cê

percebeu que a Suzie não chegou? Ele

está preocupado.

- Só não pôde vir... não é nada grave - acalmou-as Carlos.

Eles nunca iriam imaginar que Suzie estava em Ubatuba.

Aproveitando que todos tinham ido para a festa, havia poucos minutos Suzie tinha forçado a

porta da casa de Rosália. Ela

entrou na sala e, cuidadosamente, escolheu

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as pranchas que iam para a Califórnia. De uma em uma, arrumou-as na carroceria da

caminhonete.

Em seguida, foi para a hospedaria. Ela tinha ficado lá, na semana do campeonato. O gerente

roncava em sua cadeira na portaria...

e, mesmo que acordasse, ela arrumaria

uma desculpa, pois ele a conhecia.

Calmamente, Suzie arrumou as pranchas dos rapazes ao lado das pranchas das meninas na

caminhonete e pegou a estrada para

São Paulo.

A festa só terminou a altas horas da madrugada, quando Suzie já estava longe. Rosália, as

meninas e Marcelo foram embora

antes. Carlos, Alberto e os rapazes da equipe

ficaram para arrumar tudo e limpar a praia.

51 Outra vez?

Quando Rosália estacionou em frente de casa, Marcelo, o único acordado, logo percebeu que

alguma coisa anormal havia acontecido:

- Vó! A porta da casa está escancarada!

- Meu Deus! Entrou ladrão! - exclamou Rosália. As meninas acordaram e, antes de saírem do

carro,

Marcelo correu para a casa. Logo depois, apareceu na varanda e gritou:

- Vó! Dani! Sumiram todas as pranchas novas!!

- Não acredito! - exclamou Rosália.

Daniela, ainda estremunhada, só conseguia murmurar:

- E agora? A nossa viagem para a Califórnia... Lúcia e Helena começaram a chorar

desconsoladamente.

- Depois de tanto esforço...

- A gente tá quase lá...

- Como vamos competir sem as nossas pranchas? Só uma semana! Não dá mais tempo de

treinar com outras... - comentou Daniela,

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desanimada.

Rosália telefonou para a hospedaria. Os rapazes tinham acabado de chegar da praia:

- Alberto! Roubaram todas as pranchas!

- Não pode ser! - respondeu ele, desesperado. E pensou: "Querem a heroína! Mas como

souberam?"

Em seguida, gritou:

- Guigo! Roubaram todas as pranchas das meninas! Largou o telefone e, com o coração

disparado, saiu

correndo. Os rapazes não entenderam nada. Mas Alberto

sabia que havia uma grande probabilidade de que as pranchas dos rapazes também tivessem

desaparecido.

Ao constatar que isso tinha acontecido, ele voltou, completamente aturdido, e começou a

andar de um lado para o outro, como

uma fera na jaula.

- Calma, Beto! Calma! O que é isso? - disse Guigo, assustado.

- A gente acaba dando um jeito... - consolou Luisão.

- Arrumamos outras... - sugeriu Marco.

Alberto sentara-se de cabeça baixa. De vez em quando, olhava para os amigos, calado, com um

olhar vazio. De repente levantou-se

e saiu andando pelo acostamento

da estrada.

"Eu já estou perdido mesmo... agora preciso pensar na equipe. Eles não podem pagar pelo que

não devem...", pensava ele.

"O que posso fazer, meu Deus?"

Guigo, Luisão e Marco resolveram ir para a casa de Rosália, consolar as meninas. Ao chegarem

lá, só encontraram desânimo

e tristeza.

De repente, Daniela teve a idéia:

- Carlos! Se a Generation fornecer a matéria-prima, o Beto poderia fazer outras pranchas para

viajarmos... iguais às outras...

Isso se você ajudar. Você ajuda? -

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pediu ela.

- Imagine! - interferiu Lúcia. - Menos de uma semana... não dá de jeito nenhum...

Daniela olhou para Carlos, pedindo socorro.

- Calma, Dani. com os surfistas ajudando, conseguiremos até em menos tempo... - prometeu

ele. - vou já tratar disso com

a tribo.

52 A atitude dos surfistas

Carlos nem precisou usar de seu prestígio entre os surfistas.

Foi só explicar a situação:

- Bons profissionais... um problemaço...

- A equipe do Beto dos esponjas...? Eu conheço ele... gente fina...

- Vão representar a gente lá fora... Foram roubados, quase às vésperas de viajar para o

campeonato... - explicava Carlos.

- Que sufoco, cara!

- Estão precisando de ajuda, manos! Beto orienta a gente... Eu já tenho experiência...

Imediatamente, a generosidade característica dos jovens, o sentimento de união da classe

esportiva e o amor pelo país falaram

mais alto.

- Estamos aqui pra ajudar, maninho! Deixa com a gente!

Imediatamente, Carlos foi atrás de Alberto para lhe dar a boa notícia. Encontrou-o na

hospedaria, desesperado.

- Mano! Anime-se, cara! Nós vamos ajudar! A partir de segunda-feira, os surfistas estarão

"shapeando" junto com vocês! Vamos

nos encontrar na sua oficina... Todos

nós juntos...

Carlos parou de falar, impressionado com a palidez do amigo.

- Você tá parecendo um fantasma! Calma, maninho! Pra tudo se dá um jeito!

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- Obrigado, amigo. Vocês vão morar pra sempre no nosso coração - disse Alberto, comovido.

- Também não estamos pedindo vocês em casamento, não... - brincou Carlos. - Tchau. A gente

se encontra na praia.

No domingo, Alberto já sonhava com o impossível: "Se Cali não descobrir agora que a droga

sumiu, até pode ser que eu consiga

acompanhar a equipe... Se não der para

eu ir, tenho certeza de que Carlos assume o meu lugar. Ele é novinho, mas entende de surfe...

é esperto, pode orientar a

equipe..."

Em Suzie, Alberto mal tinha coragem de pensar:

"Por que será que ela não veio para a comemoração da nossa vitória, como prometeu? Até

parece que adivinhou! Não posso nem

pensar... o tamanho da desilusão que a

coitadinha vai ter..."

53 A batida da Policia Federal

Era difícil saber qual dos dois, Suzie ou Alberto, estava metido em situação mais complicada.

Suzie, mal chegara da praia, já levara as pranchas para a polícia. Na mesma hora em que

Alberto, em Ubatuba, estava em situação

difícil por causa delas, em São Paulo

o problema de Suzie era ainda maior.

Caiu a noite. Na frente do bar de Feng, o clima estava tenso. A Polícia Federal, à paisana, de

tocaia, esperava.

Laureano chegou e nada percebeu. Em poucos minutos, Suzie apareceu na porta do bar e fez o

sinal combinado. Os policiais

renderam os porteiros e entraram. Sempre

seguindo Suzie, disfarçadamente, os agentes federais passaram pela porta secreta que dava

para o cassino. Ainda era cedo,

por isso havia poucos clientes. Os federais

desarmaram os seguranças e escoltaram os assustados jogadores até a rua.

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Logo que Laureano chegou, ele foi introduzido no escritório do velho chinês.

Feng levantou-se e foi ao seu encontro:

- Que honra para mim recebê-lo! - saudou o chinês, conduzindo-o até sua mesa.

- A honra é minha, senhor Feng.

- O que o traz à minha humilde casa? - perguntou o velho.

Laureano não entendeu. Colocou sobre a mesa do chinês as duas latas de pó e disse:

- A sua encomenda...?

Olhou fixamente para o velho chinês e interrompeu-se, ao mesmo tempo que um alarme

disparou dentro de sua cabeça.

Feng levantou-se, assustado.

Nesse exato momento, ouviu-se um grande estrondo. A porta do escritório veio abaixo e

entraram dezenas de policiais armados.

O velho chinês levantou as mãos, desistindo

de pegar o pequeno revólver de prata que guardava na gaveta.

Laureano estava sentado de costas para a porta. Logo que viu o velho chinês levantar-se

assustado, ele, por instinto, já

pegara o pequeno revólver que sempre

trazia escondido no tornozelo, e foi num relance que tudo aconteceu.

Num segundo, Laureano virou-se e atirou para o alto. Em resposta, veio uma saraivada de

balas e ele caiu. Ficou claro para

todos que o colombiano preferira a morte

a ser preso.

O velho Feng e seus auxiliares foram todos levados pela Polícia Federal. Seriam julgados e a

pena de Feng, principalmente,

não seria nada leve.

No entanto, de modo algum esses traficantes entregariam outros do Triângulo Vermelho ou

dariam alguma informação sobre a

operação fracassada. Eles sabiam que o cartel

chinês não perdoaria a traição. Seriam condenados à morte em meio às piores torturas!

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Por outro lado, também não receberiam visitas. Quem iria incriminar-se, visitando-os na

prisão?

Suzie combinara com os policiais que iria entregarse na segunda-feira à tarde. Precisava, antes,

falar com Alberto...

54 Sacrifício por amor

A segunda-feira amanheceu cinza, como se quisesse combinar com o coração de Suzie. Ela

resolveu o destino de suas poucas

coisas e, em seguida, arrumou-se com

capricho. Ia encontrar-se com Alberto para almoçar, no lugar de sempre.

O coração de Alberto não estava nem um pouco mais alegre do que o dela. Ele pensava que,

mais hora, menos hora, teria uma

morte trágica. Por isso, escolhera tomar

uma atitude drástica: resolvera terminar tudo com Suzie. Ela ficaria protegida e sofreria

menos, pensava ele.

Quando Suzie chegou, Alberto já a aguardava. Porém, antes que ele pudesse falar qualquer

coisa, Suzie já foi dizendo que

tinha uma coisa muito importante para dizer-lhe,

em particular.

- Mas... o que eu tenho a dizer também é muito importante! Mais, tenho certeza! - tentou ele.

com sua mãozinha, Suzie fez menção de tapar a boca do rapaz.

- Por favor, vamos até a sua casa - pediu ela.

A voz e a maneira como Suzie falara assustaram-no e os dois ficaram no mais absoluto silêncio,

até lá. Alberto não sabia

mais o que pensar:

"Será que ela soube do roubo das pranchas? Mas como?"

E, incoerentemente, pensou no que mais temia:

"Será que ela desistiu de mim?"

Quando chegaram, Suzie pediu-lhe que se sentasse e contou-lhe, resumidamente, seu

passado. Em seguida, confessou que tinha

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roubado as pranchas e explicou-lhe o acordo

que tinha feito com a Polícia Federal.

Alberto, boquiaberto, ouvia.

Ela tirou de dentro da bolsa uma folha de jornal daquele dia e mostrou-lhe a manchete:

Presos chefões do tráfico internacional

A Polícia Federal estourou um importante ponto de drogas no Bairro Oriental, em São Paulo.

Dois chefões da droga foram presos

(...) 2 quilos de cocaína pura foram

apreendidos (...) A polícia descobriu

que os traficantes tentavam levar, escondidos dentro de pranchas de surfe, 2 quilos de heroína

para a Califórnia (...)

- Você vê, amor... eles confundiram os esportes... as pranchas...

Naquele momento, para ele, isso era ultra-secundário. Alberto demorou um pouco para

entender o que tinha acontecido... mas,

logo depois, ficou muito abalado e, em

seguida, bravíssimo!

- De jeito nenhum! Não aceito isso! Então, vamos nos entregar juntos! - gritou.

Suzie esperou que ele se acalmasse e disse:

- De jeito nenhum digo eu! Por que você vai estragar a sua vida sem necessidade?

- Por que você tem de se sacrificar por mim? - retrucou ele.

- Não é nada disso! Você foi chantageado... não tinha mais nada a ver com drogas... foi

vítima...

Nesse momento, Suzie fez uma pausa, pois percebeu que com aquele tipo de argumentação

não iria convencê-lo. Pensou alguns

segundos e mudou de estratégia:

- Amor! Se nós dois formos presos, quem vai me visitar, hein?

O rapaz olhou, surpreso, para ela.

- E o mais importante de tudo - continuou ela -, quem vai ganhar dinheiro e arrumar tudo para

nos casarmos daqui a três

anos?

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Alberto, vermelho de nervoso, levantou a cabeça. Ele não podia acreditar!

- Você vai ficar somente três anos? - quis confirmar.

- com redução da pena por bom comportamento, sim. E como vou me comportar como uma

santa...

Alberto, ainda inconformado, sorriu tristemente:

- Estranho. Eu não sou vingativo, mas a morte de Laureano me deixou aliviado!

- Pois eu adoro pensar que aquele chinês desgraçado está preso! - retrucou ela. - Espero que

morra lá!

- É. Mas eu que conhecia os dois... Por incrível que pareça, apesar de os dois estarem

envolvidos com drogas... participarem,

por dinheiro, da destruição de outras

pessoas...

E Alberto sentiu um aperto no coração, lembrando que ele também fizera isso!

- Sabe - continuou, constrangido -, eles eram diferentes! Laureano tinha alguma coisa...

- Como eu? - perguntou ela, com ironia. Alberto, muito sério, pensou um pouco e completou:

- Você sabe que é diferente. Às vezes, o destino coloca as pessoas em becos de difícil saída.

Alguns têm a sabedoria e a

coragem para encontrar essa saída. Como

você!

Pensou um pouco mais e acrescentou:

- Outros são mais burros e covardes. Como eu. Nascem com tudo... mas não têm consciência

disso. Se não fosse você... Você,

sim, foi corajosa! Eu poderia ter o mesmo

fim de Laureano! Já pensou nisso?

Suzie, aflita, tentou mudar de assunto. Ela sabia que ele tinha alguma chance de escapar, mas

não era certeza.

A sorte de Alberto era que, além dela mesma, somente Laureano sabia quem fora encarregado

de levar a heroína para a Califórnia...

E Laureano estava morto. Por outro

lado, Suzie... ela viveria para sempre com uma espada sobre sua cabeça.

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- Vamos pensar em coisa mais alegre, meu bem! pediu ela. - Por exemplo, a viagem para a

Califórnia. Tenho certeza de que

farão bonito lá.

Nesse momento, ela se lembrou:

- Meu Deus! E as pranchas?! Os federais quebraram todas... E agora?

- Calma, meu bem - respondeu Alberto. - Você não vai acreditar! Carlos pediu... Os surfistas

vão ajudar a gente a fazer

pranchas novas!

- Que bom! Mas dá tempo? - perguntou ela, preocupada.

- com todo mundo trabalhando, dá - respondeu ele.

- Então, hoje você não vai fazer falta e podemos passar o resto do dia juntos! - sugeriu ela,

tentando esconder a tristeza.

Afinal, eram suas últimas horas de liberdade.

55 Os preparativos para a viagem

Viajar ao exterior para competir é o sonho de todo desportista, mas é muito difícil conseguir.

Principalmente, para quem

está no começo da carreira, como os integrantes

da Equipe Generation.

Sabe-se que, nos dias que antecedem uma viagem internacional, temos de tomar uma série de

providências práticas muito aborrecidas.

No entanto, a euforia que tomou

conta dos integrantes da equipe desde que tiveram a boa notícia, em vez de diminuir com os

preparativos para a viagem, transformou-se

numa atarefada excitação.

Eles mal dormiam e só conversavam sobre a viagem:

- Foi duro convencer o velho... A sorte é que minhas notas estão demais!... Nem acredito que

também vou... - comentava Carlos.

- Que bom! Assim já vamos com torcida organizada - brincava Guigo.

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Daniela não se agüentava de contente e esnobava:

- vou competir nos Estados Unidos... Meu namorado vai me acompanhar...

Lúcia nunca tinha andado de avião. Tinha vergonha de confessar aos amigos, mas morria de

medo! Talvez por isso mesmo, ela

só falasse da mãe:

- Gente! Minha mãe está apavorada! Diz que sou muito jovem para viajar sozinha. Sozinha...

Imagine! Diz que é perigoso...

- Isso não é nada! - exclamou Daniela. - Pois não é que meu pai está morrendo de medo dos

terremotos?

- Terremotos??? - perguntaram em coro, rindo muito.

Daniela ficou um pouco ofendida. Não gostou que ridicularizassem seu pai:

- Vocês não sabem que na Califórnia tem uma fenda... tem perigo de terremoto sim, seus

ignorantes! Em São Francisco, por

exemplo, vive dando...

- Meu Deus! - exclamou Lúcia. - Ainda mais essa!

- Gente, primeira viagem é assim mesmo! - disse Helena, a única da equipe que já viajara para

o exterior.

- vou contar uma coisa. Mas é segredo, hein! A primeira vez que viajei para a Europa, fiquei

admirada ao ver que as pessoas

lá eram como nós! Elas também tinham

dois olhos, um nariz, uma boca... O que eu esperava... não sei.

Carlos tomou a palavra:

- Turma! Estou preocupado com uma coisa... Todas as atenções voltaram-se para ele.

- Tá certo que lá acabou o verão, mas... o suor... O Alberto avisou que os homens só poderão

levar bagagem de mão! Vai ser

difícil não ficar fedido o tempo todo...

mesmo com desodorante. com tão pouca roupa...

- Que bobagem é essa? - perguntou Helena, curiosa.

- Pra compensar o excesso de bagagem das meninas... Depois de um segundo de surpresa, as

garotas caíram de tapas em cima

de Carlos.

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- Engraçadinho! - disse Daniela, furiosa.

- Até, maninhas! - despediu-se Carlos. - Deixa eu ir... preciso "shapear"... Tá todo mundo lá

comendo pó e eu aqui no papo

mole.

Pensou um instante e completou:

- Aliás, as menininhas podiam ajudar a lixar, não?

- Imagine! - respondeu Daniela. - Temos mil coisas pra fazer! Só arrumar as malas...!

- Malas? Mas faltam cinco dias! - exclamou Carlos, admirado. E completou: - Essas mulheres...

O dia de tirar o passaporte foi uma festa, apesar da fila imensa que tiveram de enfrentar. Os

meninos tinham tirado as fotos

ali perto mesmo, numa máquina automática

de retratos. Mas as meninas mostravam suas fotos uma para a outra... comparavam... Tinham

tirado em fotógrafos, como se

as fotos fossem para books de modelos.

- Elas já estão treinando para quando ficarem famosas! - comentavam os rapazes, rindo.

- O meu cabelo não ficou bem como eu queria reclamava Daniela.

- E essa data escondendo minha blusa nova - dizia Lúcia, inconformada. - Os números

estragaram toda a foto!

No dia seguinte, pretendiam comprar roupas:

- Será que na BB Store, aonde sempre vamos, as roupas de inverno estão transadas...? -

perguntou Lúcia.

- Roupas de inverno? - debochou Helena. - Vamos derreter de calor, Lúcia!

- Nossa! É mesmo. Se aqui estamos no início da primavera, lá ainda não começou o frio! -

lembrou a menina, sem graça. -

As estações são ao contrário...

- Que bom! - exclamou Helena. - Se lá ainda está quente, vamos exibir nossas curvas...

- Que curvas? - disse Marcelo, que ouvia tudo, morrendo de inveja da viagem. E fez com a mão

como se fosse um binóculo.

As amigas entreolharam-se e desataram a rir. Helena era magrinha... parecia uma tábua!

O dia anterior à viagem foi uma loucura. Depois de muita discussão, ficou combinado que cada

um iria ao aeroporto com seus

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pais. As pranchas iriam todas juntas

na caminhonete de Alberto.

50 Uma surpresa de última hora

No entanto, na véspera da viagem, anoiteceu e as pranchas não tinham ficado prontas. Ainda

faltavam os últimos retoques

em algumas delas e os surfistas ficaram

encarregados disso.

Na pequena oficina de Alberto, o trabalho era muito bem organizado. Cada um dos rapazes foi

escalado para fazer o que sabia

melhor e a mesma prancha passava de mão

em mão, até o acabamento final. A prancha era

desenhada no bloco, cortada, moldada, lixada... Cobertos de pó, eles trabalhavam brincando:

- Deus me livre! Como esponja dá trabalho...

- Que mal eu fiz a Deus pra entrar nessa fria?

- Fria? Gelada!

- A culpa toda é do Tom Morey! Quem mandou um surfista inventar essa porcaria de prancha?

- Isso é covardia! - dizia Guigo. - Vocês sabem que nós não podemos nos defender...

- Estamos nas mãos deles, né? - concordava Marco, inteirinho branco de pó.

Tarde da noite, Alemão sugeriu:

- Acho que o Beto, o Carlos e a equipe devem ir para casa agora. Afinal, vão ter de estar no

aeroporto cedinho...

Ficou combinado, então, que Alberto deixaria a caminhonete e os surfistas levariam as

pranchas para a casa dele, logo que

ficassem prontas.

Mas o que já se esperava, aconteceu! Ao raiar do dia, as pranchas ainda não tinham chegado!

Tocou o telefone e Alberto,

já nervoso, recebeu um recado curto e grosso:

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- Alô! Beto! Pode ir. As esponjas vão para o aeroporto. Pode ficar sossegado! - Alguém soltou

uma risada cavernosa e bateu

o telefone.

Alberto não gostou nada da história. Ficou muito preocupado, mas, considerando o adiantado

da hora, teve de ir direto para

o aeroporto.

Quando todos se encontraram lá, o grupo de BBs chamava a atenção pela alegria. Os pais

ajudavam no que podiam: guardavam

lugar na fila, acompanhavam a pesagem da

bagagem, marcavam os lugares no avião...

A partir de uma certa hora, ninguém comentava, mas todos estavam preocupados: nada de as

pranchas chegarem! Carlos acalmava

a equipe, sem confessar que ele mesmo

estava um pouco nervoso:

-Já vão chegar, gente! O trânsito deve estar pesado... Até que Rosália não agüentou mais e foi

falar com Alberto em particular:

- Beto, as pranchas novas... estão com os surfistas... será que não tem perigo... alguma

brincadeira de mau gosto...

- Eu também estou preocupado, dona Rosália! Não sei o que pensar... Afinal, avião não

espera... mas eles tão fazendo o maior

favor... Em último caso, vocês despacham

as pranchas pró nosso endereço...

Nesse momento, ouviu-se uma música alta e um grande tumulto formou-se no saguão de

espera do aeroporto.

Todos queriam ver o que era aquilo e formou-se uma pequena platéia que assistiu,

boquiaberta, ao desfile de um cortejo inesperado!

Na frente, uma pequena banda com

bastante percussão. Em seguida, dois jovens com uma grande faixa homenageando a Equipe

Generation. Seguindo-os, uma pequena

comitiva de surfistas, cada um deles

com duas pranchas de bodyboarding embaixo do braço!

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Certamente, nesses dias, o que cada um desses jovens viveu foram momentos únicos, que

ficariam marcados para sempre em suas

vidas.

- Isso, sim, é história pra eles contarem para os netos! - comentou Rosália, comovida.

A platéia assistiu, boquiaberta, ao desfile de um cortejo inesperado!

Epílogo

Três anos depois, Suzie foi libertada e a polícia ofereceu a ela o seu serviço de proteção a

testemunhas. Infelizmente,

nunca mais ela teria uma vida completamente

sossegada.

Alberto, a conselho da Polícia Federal, estava estudando a possibilidade de morarem em outro

país, uma tentativa para escaparem

da vingança dos cartéis.

Ele estava cada vez mais apaixonado e organizara uma linda festa de noivado como surpresa

para ela. Todos os seus amigos

- surfistas e bodyboarders - e suas famílias

foram convidados. Todos pensavam que Suzie acabara de chegar de uma viagem de estudos

ao exterior.

Apesar de a Generation ter sido desclassificada numa das fases do campeonato americano, os

jovens nunca mais esqueceriam

a viagem para a Califórnia.

Lúcia, Helena e Daniela eram cada vez mais amigas e continuavam a competir. Carlos e Daniela

ainda namoravam e se gostavam

cada vez mais.

Quase todos os jovens presentes estavam estudando para o vestibular. Mesmo assim,

continuavam com o esporte, pois entendiam

como ele é importante para a saúde física

e mental das pessoas, principalmente nessa época de tanto estresse.

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Luisão concretizara seu sonho e era campeão internacional de bodyboarding. Viera do Havaí,

onde estava morando, especialmente

para a festa dos amigos.

Carlos, bem posicionado no ranking profissional, já era um dos orgulhos do surfe "brasuca".

Guigo colecionava prêmios, e era considerado uma das promessas do nosso bodyboarding no

exterior.

Marco ainda praticava o esporte, mas resolvera largar as competições. No último ano de

engenharia, ele precisava de mais

tempo.

Marcelo, para orgulho de Rosália, estava muito bem posicionado no ranking, e competindo

pelo campeonato estadual de surfe.

Rosália continuava se esforçando para aprender "surfes" e, de acordo com o neto, logo tiraria

o diploma!

Apesar do grande esforço, a Polícia Federal não conseguira desbaratar completamente as

organizações criminosas de Cali,

nem do Triângulo Vermelho, no território

brasileiro. Mesmo assim, o sacrifício de Suzie valeu a pena, não só para salvar seu amor, mas

também pela grande quantidade

de drogas que deixou de entrar no nosso

país por um certo tempo.

Os livros mais lidos do Brasil

Como é, gostou da história que acabou de ler?

Quanta surpresa, não?

É, na Vaga-Lume só tem livro legal.

Quem lê um quer ler outro e não pára mais.