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Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

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Prefácio

Talvez não exista outra área da matemática que ocupe uma posição tão central como a trigonometria.

– J. F. Herbert (1890)

Este não é um livro-texto de trigonometria – existem muitos deles – nem tampouco um texto mais abrangente sobre a história da trigonometria, coisa que não se encontra muito no mercado. É uma tentativa de apresentar tópicos selecionados de trigonometria sob um ponto de vista histórico e mostrar sua relevância para outras ciências. Isto intensificou meu caso de amor com o assunto, mas também minha frustração com o modo como era ensinado em nossas escolas.

Primeiramente, o caso de amor. No primeiro ano do Ensino Médio tivemos a sorte de ter um excelente professor, jovem e vigoroso, que nos ensinava matemática e física. Ele era um professor muito rígido, mas também era muito solicitado. Ele não toleraria um atraso seu a uma de suas aulas, ou a falta a uma prova – e era melhor você não fazê-lo, pois veria o reflexo disso em seu boletim. Pior seria se você não fizesse seu dever de casa ou fosse mal em uma prova. Tínhamos medo dele, tremíamos quando éramos repreendidos, e ficávamos apavorados se ele falasse com nossos pais. Mas também o respeitávamos e ele se tornou um modelo de vida para muitos de nós. Sobretudo, ele nos mostrou a relevância da matemática para o “mundo real” – especialmente na física. E isso significou aprender um bocado de trigonometria.

O professor e eu mantivemos uma ativa troca de correspondências por muitos anos, e chegamos a nos encontrar várias vezes. Ele era muito firme em suas opiniões, e não importaria o que você dissesse sobre qualquer assunto – matemático ou não – ele poderia iniciar um debate, normalmente fazendo a opinião dele prevalecer. Anos após eu terminar a universidade, ele me fez entender que ele ainda era meu professor. Nascido na China, de uma família que havia fugido da Europa antes da Segunda Guerra Mundial, ele emigrou para Israel e iniciou seus estudos na Universidade Hebraica de Jerusalém, apenas para servir o Exército durante a guerra de independência de Israel. Mais tarde ele passou a lecionar na Universidade de Tel Aviv e, apesar de não ter um Ph.D., recebeu distinção honrosa – um dos dois únicos membros da faculdade a ter essa honra. Em 1989, enquanto ministrava sua aula semanal de história da matemática, teve um mal súbito e morreu instantaneamente. Seu nome era Nathan Elioseph. Lembro dele com muito carinho.

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iv PREFÁCIO

E agora a frustração. No final da década de 1950, na esteira do sucesso soviético no espaço (a nave Sputnik I foi lançada em 4 de outubro de 1957; eu me lembro da data – era o meu vigésimo aniversário) houve uma convocação para remodelar todo nosso sistema educacional, especialmente na área de ciências. Novas idéias e novos programas proliferaram repentinamente, todos no intuito de preencher a perceptível lacuna tecnológica que havia entre nós e os soviéticos (alguns ousaram questionar se essa lacuna realmente existia, mas suas vozes foram sufocadas durante o frenesi generalizado). Aqueles foram os anos dourados da educação científica americana. Se você tinha alguma nova idéia sobre como ensinar algum assunto – e normalmente você não precisava provar muita coisa – você já teria praticamente garantido algum incentivo para trabalhar naquilo. Nasceu então a “Matemática Nova” – uma tentativa de fazer os alunos entenderem o que estavam fazendo, em vez da “decoreba” e memorização excessiva, como estava sendo feito há gerações. Uma quantidade enorme de tempo e dinheiro foi despendida no desenvolvimento de novos meios para se ensinar matemática, com ênfase em conceitos abstratos como teoria de conjuntos, funções (definidas como conjuntos de pares ordenados), e lógica formal. Seminários, oficinas, novos currículos e novos textos foram organizados às pressas, com centenas de educadores disseminando as novas idéias para milhares de professores e pais desorientados. Outros viajaram para o exterior para difundir a nova doutrina em países em desenvolvimento, cuja população mal sabia ler e escrever.

Hoje, após quatro décadas, muitos educadores concordam que a Matemática Nova trouxe mais prejuízos que benefícios. Nossos estudantes podem ter aprendido a linguagem e os símbolos da teoria dos conjuntos, mas tropeçam frente aos mais simples cálculos – com ou sem calculadora. Conseqüentemente, muitos estudantes do Ensino Médio carecem de conhecimentos básicos em álgebra e, sem nenhuma surpresa, cerca de 50% deles são reprovados nos cursos de cálculo nos primeiros semestres do ensino superior. Colégios e universidades estão gastando muitos recursos em programas de aceleração (mais fáceis de engolir quando são denominados com eufemismos como “programa de desenvolvimento” ou “laboratório de matemática”), cujas taxas de sucesso são, no máximo, moderadas.

Dois dos acidentes da Matemática Nova ocorreram com a geometria e a trigonometria. Assunto de importância crucial para ciência e engenharia, a trigonometria foi vítima do chamado para mudanças. Definições formais e um sem-número de palavras com sentido formal – tudo em nome do rigor matemático – substituíram um real entendimento do assunto. Em vez de ângulo, fala-se hoje em medida de ângulo; em vez de definir seno e cosseno em um contexto geométrico – como as razões entre os lados de um triângulo ou as projeções do círculo unitário sobre os eixos x e y – fala-se hoje sobre a função circular com domínio no conjunto dos números reais e imagem em [-1,1]. Notações e linguagem sobre conjuntos perderam toda a discussão sobre o assunto, que de relativamente simples, tornou-se obscuro e de formalismos sem sentido.

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PREFÁCIO v

Tradução livre: [email protected]

Ainda pior, devido ao fato de os estudantes terem falhas em seus conhecimentos básicos de álgebra, o nível e a profundidade dos livros-texto de trigonometria vêm caindo consideravelmente. Exercícios e exemplos são normalmente dos mais simples, não exigindo mais que a simples memorização de umas poucas fórmulas básicas. Assim como os famosos “word problems”1 de álgebra, muitos desses exercícios são enfadonhos e sem inspiração, deixando os alunos com aquela sensação de “ta, e daí?” Raramente é dada aos alunos a oportunidade de encarar um problema realmente desafiador, daqueles deixam os alunos realizados. Por exemplo,

1. Prove que, para qualquer número x,

...8

cos4

cos2

cos ⋅⋅⋅=xxx

x

xsen

Esta fórmula foi descoberta por Euler. Substituindo x = π/2, utilizando o fato de que

cos π/4 = 2/2 e aplicando repetidamente a fórmula do cosseno do arco-metade, chegamos à bela fórmula

...2

222

2

22

2

22⋅

++⋅

+⋅=

π

Descoberta em 1593 por François Viète de um modo puramente geométrico.

2. Prove que em qualquer triângulo,

2

cos2

cos2

cos4γβα

γβα =++ sensensen ,

γβαγβα sensensensensensen 4222 =++ ,

2

3cos

2

3cos

2

3cos4333

γβαγβα −=++ sensensen ,

γβαγβα tantantantantantan =++ .

(A última fórmula leva a algumas conseqüências inesperadas, que serão discutidas no capítulo 12). Estas fórmulas são notáveis por sua simetria; alguns chamam estas fórmulas de “belas” – uma palavra bem gentil para designar algo que injustamente ganhou a reputação de ser chato e técnico. No Apêndice 3, eu juntei mais algumas belas fórmulas, reconhecendo, é claro, que “belo” é um conceito bastante subjetivo.

“Alguns alunos”, disse Edna Kramer em The Nature and Growth of Modern Mathematics (A natureza e o crescimento da matemática moderna), consideram a trigonometria “uma geometria glorificada com a imposição de uma tortura computacional”. Este livro é uma tentativa de mudar essa visão. Adotei uma abordagem

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vi PREFÁCIO

histórica, em parte porque acredito existe um longo caminho a percorrer para reavivar nos estudantes o gosto pela matemática – e ciências em geral. Entretanto, evitei uma apresentação estritamente cronológica dos tópicos, tendo-os selecionado pelo seu aspecto estético ou por sua relevância para outras ciências. Naturalmente essas escolhas revelam minhas próprias preferências; vários outros tópicos poderiam ter sido selecionados.

Os primeiros nove capítulos requerem apenas conhecimentos básicos de álgebra e trigonometria; os capítulos restantes exigem algum conhecimento de cálculo (não mais que Cálculo 2). Muito desse material deve ser acessível aos estudantes secundaristas e universitários. Tendo esse público-alvo em mente, limitei os tópicos à trigonometria plana, evitando inteiramente a trigonometria esférica (embora historicamente esta última tenha sido objeto de estudos primeiro). Algum material histórico adicional – biografias, principalmente – foi incluído em oito “adendos” que podem ser lidos de forma independente dos capítulos principais. Se apenas uns poucos leitores se inspirarem neste trabalho, eu me considerarei recompensado.

Meus sinceros agradecimentos ao meu filho Eyal por preparar as ilustrações; a William Dunham, do Colégio Muhlenberg em Allentown, Pennsylvania, e Paul J. Nahin, da Universidade de New Hampshire, pela leitura completa dos manuscritos; aos funcionários da Editora Universidade de Princeton, pelo preparo meticuloso do livro para impressão; à Biblioteca Pública de Skokie, cujos funcionários me ajudaram enormemente a encontrar fontes bibliográficas raras e fora de catálogo; e por último, mas não menos importante, a minha querida esposa Dália, por me encorajar constantemente a terminar o trabalho. Sem sua ajuda, este livro jamais teria visto a luz do dia.

Skokie, Illinois

20 de fevereiro de 1997

Nota: neste livro são feitas referências freqüentes ao Dictionary of Scientific Biography (“Dicionário Científico de Biografias”. 16 vols.; Charles Coulston Gillispie, ed.; New York: Charles Scribner’s Sons, 1970-80). Para evitar repetições, será usada a abreviatura DSB para referenciar a obra supracitada.

1 “Word problems” são aqueles problemas em que há um enunciado que mostra uma situação em que há um problema a resolver. Remetem aos nossos problemas que envolvem “contextualização”. (N.T.)

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PRÓLOGO

Ahmes, o Escriba – 1650 a.C.

Soldados! Do alto destas pirâmides, quarenta séculos vos contemplam!

– Napoleão Bonaparte no Egito, 21 de julho de 1798

Em 1858, um advogado e antiquário escocês, A. Henry Rhind (1833-1863), em uma de suas viagens ao vale do Nilo, adquiriu um documento que havia sido encontrado alguns anos antes, nas ruínas de uma pequena construção em Tebas (próxima da atual cidade de Luxor) no Alto Egito1. O documento, conhecido desde então como papiro Rhind, mostrou-se uma coletânea de 84 problemas matemáticos tratando de aritmética, álgebra básica e geometria2. Após a morte prematura de Rhind aos trinta anos, o papiro passou a ser propriedade do Museu Britânico, onde está em exposição permanente. Quando encontrado, o papiro media 5,5 metros de comprimento por 32 centímetros de largura, mas quando o Museu Britânico o adquiriu, alguns fragmentos haviam se perdido. Em um extraordinário golpe de sorte, os fragmentos foram encontrados em posse da Sociedade de História de Nova Iorque, e desde então o texto completo está disponível novamente.

O Egito Antigo, com seus lendários tesouros e relíquias, sempre cativou o imaginário dos viajantes europeus. A campanha militar de Napoleão no Egito em 1799, apesar de sua derrota, abriu o país para um exército de estudiosos, colecionadores e aventureiros. Napoleão nutria profundo interesse por cultura e ciência e incluiu entre seus colaboradores, um bom número de estudiosos em várias áreas, entre eles o matemático Joseph Fourier (sobre quem falaremos mais tarde). Esses estudiosos vasculharam o país à procura de tesouros antigos, levando consigo de volta à Europa tudo o que puderam carregar nas mãos. O achado mais famoso foi um grande bloco de basalto desenterrado perto da cidade de Rashid – conhecida na Europa como Roseta – na extremidade ocidental do delta do Nilo.

A pedra de Roseta, que assim como o papiro Rhind, encontra-se no Museu Britânico, traz um decreto baixado por um conselho de sacerdotes egípcios, durante o reinado de Ptolomeu V (195 a.C.), e está escrito em três idiomas: grego, demótico e hieroglífico (escrita pictórica, em figuras). O físico inglês Thomas Young (1773-1829), um homem com interesses diversificados, mais conhecido por sua teoria ondulatória da luz, foi o primeiro a decifrar as inscrições na pedra. Comparando a recorrência de grupos similares de sinais nos três idiomas, ele foi capaz de compilar um dicionário primitivo de palavras egípcias. Seu trabalho foi completado em 1822 pelo famoso egiptólogo francês Jean François Champollion (1790-1832), que identificou o nome de Cleópatra nas

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2 PRÓLOGO

inscrições. O trabalho ímpar de Champollion capacitou estudiosos para decifrar numerosos textos egípcios, escritos em papiro, madeira e pedra, inclusive papiros matemáticos. O maior e mais completo dos textos matemáticos egípcios é o papiro Rhind.

August Eisenlohr, um estudioso alemão, foi o primeiro a traduzir o papiro Rhind para uma linguagem moderna (Leipzig, 1877); uma versão em inglês, de Thomas Eric Peet, surgiu em 1923 em Londres3. Mas a mais completa edição deste trabalho foi completada em 1929 por Arnold Buffum Chase (1845-1932), um americano de negócios, cuja viagem ao Egito em 1910 acabou por transformá-lo em egiptólogo. É por meio dessa edição que o papiro Rhind tornou-se acessível ao público em geral.4

O papiro foi escrito da direita para a esquerda em escrita hierática (cursiva), em contraste com a escrita hieroglífica ou pictórica, mais antiga. O texto está em duas cores – preto e vermelho – e é acompanhado por ilustrações de figuras geométricas. Ele foi escrito por um escriba chamado A’h-mose, chamado normalmente pelos escritores modernos de Ahmes. Mas não é um trabalho original de Ahmes. Ele o copiou de manuscritos mais antigos, o que sabemos pela própria introdução do trabalho:

Este livro foi copiado no ano 33, no quarto mês da estação das cheias, sob Sua Majestade o Rei do Alto e Baixo Egito, ‘A-user-Re’, à semelhança de outro feito nos tempos do Rei do Alto e Baixo Egito, Ne-ma’et-Re. O escriba A’h-mose é quem copia esse texto.5

O primeiro rei mencionado, ‘A-user-Re’, foi identificado como sendo um membro da dinastia Hyksos que viveu por volta de 1650 a.C.; o segundo rei, ‘Ne-ma’et-Re’, era Amenem-het III, que reinou entre 1849 e 1801 a.C. durante o período que é conhecido como Reino Médio. Podemos então determinar as datas do original e de sua cópia com notável precisão: ele foi escrito aproximadamente há quatro mil anos e é um dos mais antigos, e também dos mais extensos, trabalhos matemáticos conhecidos hoje6.

O texto inicia com uma visão abrangente daquilo que o autor pretende oferecer: uma “regra para se chegar ao conhecimento de todas as coisas obscuras, de todos os segredos que as coisas contêm.”7 Embora essa promessa não tenha sido realmente cumprida, o texto do papiro nos dá uma visão de valor incalculável sobre a matemática egípcia antiga. Seus 84 problemas tratam de aritmética, enunciados de álgebra (encontrar um valor desconhecido), medições (cálculo de áreas e volumes), e até mesmo progressões aritméticas e geométricas. Para aqueles acostumados à estrutura formal da matemática grega – definições, axiomas, teoremas e provas – o conteúdo do papiro Rhind pode ser desapontador: não existem regras gerais que se aplicam a uma classe de problemas nem os resultados derivam de forma lógica de fatos previamente estabelecidos. Na verdade, são problemas com exemplos específicos, com o uso de alguns números em particular. A maioria deles é de grandes enunciados (estórias) que tratam apenas de assuntos materiais, do cotidiano, como encontrar a área de um campo ou o volume de um celeiro, ou como dividir um determinado número de pães entre vários homens. Aparentemente a intenção era fazer uma coletânea de exercícios para usar em uma escola de escribas, pois existia

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AHMES, O ESCRIBA 3

[email protected]

uma classe de escribas reais, para a qual eram designadas todas as tarefas literárias – leitura, escrita e aritmética. O papiro contém também um problema de recreação matemática sem nenhuma aplicação prática aparente, obviamente com o intuito de prover entretenimento para o leitor (veja página 9).

O trabalho começa com duas tabelas: uma tábua de divisão de 2 por todos os inteiros ímpares de 3 a 101, e uma tábua de divisão dos inteiros de 1 a 9 por 10. As respostas são dadas em frações unitárias – frações cujo numerador é 1. Por alguma razão, esse era o único modo conhecido pelos egípcios para lidar com frações; a única exceção era 2/3, que era reconhecida como uma fração por si só. Muito esforço e ingenuidade foram gastos no esforço de decompor frações em somas de frações unitárias. Por exemplo, o resultado da divisão de 6 por 10 é dado como 1/2 + 1/10, e a divisão de 7 por 10 era dada como 2/3 + 1/30.8 Os egípcios, claro, não utilizavam nossa notação moderna para frações; eles indicavam o recíproco de um inteiro colocando um ponto (ou um hieróglifo oval) sobre o símbolo do inteiro. Não existia símbolo para adição; as frações unitárias eram simplesmente colocadas uma ao lado da outra, estando implícita a soma.9

O trabalho prossegue com problemas de aritmética envolvendo subtração (chamada de “acabamento”) e multiplicação, e problemas onde é solicitado encontrar uma certa quantidade desconhecida; estes eram conhecidos como problemas de a-rá, porque eles normalmente começavam com a letra “h” (pronunciada “a-rá” ou “rau”), que provavelmente significava “a quantidade” (a ser encontrada). Por exemplo, o problema 30 pergunta: “Se o escriba diz, qual é a quantidade que faz 2/3 + 1/10 ficar 10, diga a ele.” A resposta é dada como 13 + 1/23, seguida de uma prova, e que é de fato a resposta correta.

Em linguagem atual, o problema 30 pede a solução da equação (2/3 + 1/10)x = 10. Equações lineares como essa são resolvidas pela chamada “regra da falsa posição”: escolha um valor conveniente para x, digamos 30, e substitua na equação; o lado esquerdo passa a valer 23, em vez do valor pedido, 10. Como 23 precisa ser multiplicado por 10/23 para chegar a 10, a resposta correta será o valor escolhido multiplicado por 10/23, ou seja, x = 330/23 = 13 + 1/23. Assim, cerca de 3500 anos antes da criação da moderna álgebra simbólica, os egípcios já possuíam um método que os permitia, de fato, resolver equações lineares.

Os problemas 41 a 50 são geométricos por natureza. O problema 41 simplesmente diz: “Encontre o volume de um celeiro de diâmetro 9 e altura 10.” Segue a solução: “Tire 1/9 de 9, ou seja, 1; o resto é 8. Multiplique 8 por 8; isso dá 64; multiplique 64 por 10; isso dá 640 côvados cúbicos.” (O autor multiplicou então o resultado por 15/2 para converter para hekat, a unidade padrão para medir volumes de grãos; um hekat corresponde a 4789 litros).10 Ou seja, para encontrar a área da base circular, o escriba a substituiu por um quadrado de lado igual a 8/9 do diâmetro. Denotando o diâmetro de d, isto equivale à fórmula A = [(8/9)d]2 = (64/81)d2. Se compararmos com a fórmula A = πd2/4, concluiremos que os egípcio utilizavam o valor π = 256/81 = 3,16049, um erro de apenas 0,6% em relação ao valor real. Uma façanha extraordinária!11

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4 PRÓLOGO

◊ ◊ ◊

De particular interesse para nós são os problemas 56 a 60. Tratam dos mais famosos monumentos egípcios. As pirâmides, e todos usam a palavra sekht (veja fig. 1).12 O que esta palavra significa, veremos mais tarde.

O problema 56 diz: “Se uma pirâmide tem 250 côvados de altura e o lado de sua base mede 360 côvados, quanto vale o sekht ?” Segue a solução de Ahmes:

Pegue a metade de 360; isto dá 180. Multiplique 250 até chegar a 180; isto dá 1/2 1/5 1/50 de um côvado. Multiplique 7 por 1/2 1/5 1/50:

1 7

1/2 3 1/2

1/5 1 1/3 1/15

1/50 1/10 1/25

O sekht é igual a 525

1palmos [isto é, (3 + 1/2) + (1 + 1/3 + 1/15) + (1/10 + 1/25)=5

25

1]13

Fig. 1. Problema 56 do papiro Rhind

Vamos analisar a solução. Claramente 1/2 de 360, ou 180, é metade do lado da base quadrada da pirâmide (fig. 2). “Multiplique 250 até chegar a 180” significa encontrar o número x que, multiplicado por 250, seja igual a 180. Isso nos dá x = 180/250 = 18/25. Mas os matemáticos egípcios exigiam que todas as suas respostas fossem dadas em frações unitárias; e a soma das frações unitárias 1/2, 1/5 e 1/50 é, de fato, igual a 18/25. Este número, então, é a razão entre a metade do lado da base e a altura da pirâmide, ou o gradiente (taxa) de inclinação da face lateral. Com efeito, o valor que Ahmes encontrou, o sekht, é a cotangente do ângulo entre a base da pirâmide e sua face lateral.14

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AHMES, O ESCRIBA 5

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Fig. 2. Pirâmide de base quadrada

Duas questões surgem imediatamente: primeiro, por que ele não usou o inverso dessa razão, ou a taxa de inclinação, como nós fazemos hoje? A resposta é que quando construindo uma estrutura vertical, é comum medir o desvio horizontal de uma linha vertical, para cada unidade que cresce em sua altura, isto é, o gradiente de inclinação. Esta prática é comum em arquitetura, em que se mede a inclinação de um muro ou parede, que se supõe ser vertical.

Segundo, por que Ahmes multiplicou o resultado por 7? Por alguma razão, os construtores das pirâmides mediram as distâncias horizontais em “palmos” ou “mãos” e distâncias verticais em “côvados”. Um côvado equivale a 7 palmos. Então o sekht

encontrado, 525

1 , dá o gradiente em palmos por côvados. É claro que, hoje em dia,

pensamos nessas taxas como números puros.

Por que seria a taxa de inclinação tão importante a ponto de merecer um nome especial e ter dedicados quatro problemas a ela nos papiros? A razão é que era crucial para os construtores das pirâmides manter uma inclinação constante das faces laterais em relação ao plano horizontal. Isso parece fácil no papel, mas uma vez que a construção tenha começado, deve-se checar constantemente o progresso da construção, a fim de assegurar que a inclinação prevista está sendo mantida. Isto é, o sekht tem que ser o mesmo em cada uma das faces.

O problema 57 é o inverso: são dados o sekht de uma pirâmide e o lado de sua base, e pede-se para encontrar sua altura. Os problemas 58 e 59 são parecidos com o

problema 56 e leva a um sekht de 54

1 palmos (por côvado), mas a resposta é dada como 5

palmos e um “dedo” (porque existem 4 dedos em um palmo). Finalmente, o problema 60 pede para encontrar o sekht de uma coluna com 30 côvados de altura e base com 15 côvados. Não sabemos se a coluna seria na verdade uma pirâmide ou um cilindro (e nesse caso 15 seria o diâmetro de sua base); em ambos os casos, a resposta é 1/4.

O sekht encontrado no problema 56, de 18/25 (em unidade adimensional), corresponde ao ângulo de 54º 15’ entre a base e a face lateral. O sekht encontrado nos

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6 PRÓLOGO

problemas 58 e 589, quando convertido para unidade adimensional, é (54

1) : 7 ou 3/3,

correspondendo ao ângulo de 53º 8’. É interessante comparar esses valores aos ângulos atuais de algumas das pirâmides de Gizé:15

Quéops 51º 52’

Quéfren 52º 20’

Miquerinos 50º 47’

As figuras são bastante factíveis. Quanto à coluna no problema 60, seu ângulo é muito maior do que esperávamos para uma pirâmide: φ = cot -1 (1/4) = 75º 58’.

Pode parecer absurdo, é claro, atribuir aos egípcios a invenção da trigonometria. Não há em seus registros um conceito de ângulo, de forma que eles não tinham como formular relações quantitativas entre ângulos e lados de triângulos. E além disso (citando Chase) “no começo do século XVIII a.C., e provavelmente mil anos antes disso, quando as grandes pirâmides foram construídas, os matemáticos egípcios tinham alguma noção de semelhança em triângulo retângulo, cujos lados eram uma unidade de medida, um padrão.” Seremos mais justos então se creditarmos aos egípcios um conhecimento rude de trigonometria prática – talvez proto-trigonometria seja uma melhor definição – cerca de dois mil anos antes de os gregos transformarem esse assunto em uma poderosa ferramenta de matemática aplicada.

NOTAS E FONTES

1 O Egito Antigo era dividido em dois reinos, o Alto Egito e o Baixo Egito. Embora as denominações “Alto” e “Baixo” sejam contra-intuitivas, com o “Alto Egito” no sul e o “Baixo Egito” no norte, essa terminologia deriva do curso do rio Nilo, das terras altas da África Oriental para o Mar Mediterrâneo. (N.T.)

2 O papiro também contém três fragmentos de texto não relacionados à matemática, e que alguns autores numeraram como problemas 85, 86 e 87. Estão descritos em Arnold Chase, The Rhind Mathematical Papyrus: Free Translation and Commentary with Selected Photographs, Transcriptions, Transliterations and Literal translations – “O Papiro Matemático Rhind: Tradução Livre e Comentários com Fotografias, Transcrições, Transliterações e Traduções Literais”. (Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics, 1979), pp. 61-62.

3 The Rhind Mathematical Papyrus, British Museum 10057 and 10058: Introduction, Transcription, Translation and Commentary – “O Papiro Matemático Rhind, peças nº 10057 e 10058 do Museu Britânico: Introdução, Transcrição, Tradução e Comentários”. (London, 1923).

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AHMES, O ESCRIBA 7

[email protected]

4 Chase, Rhind Mathematical Papyrus – “Papiro Matemático Rhind”. Esta obra extensa é uma reimpressão, com pequenas mudanças, daquela publicada pelo Mathematical Association of America em dois volumes, em 1927 e 1929. Contém comentários detalhados e bibliografia extensa, assim como inúmeras ilustrações coloridas. Para um esboço da biografia de Chase, veja o artigo “Arnold Buffum Chase” no American Mathematical Monthly, vol. 40 (março de 1933), pp. 139-142. Outras boas fontes sobre a matemática egípcia são Richard J. Gillings, Mathematics in the Time of the Pharaohs – “Matemática no Tempo dos Faraós” (1972; rpt. New York: Dover, 1982); George Gheverghese Joseph, The Crest of the Peacock: Non-European Roots of Mathematics – “A Crista do Pavão – Raízes da Matemática Fora da Europa” (Harmondsworth, U.K.: Penguin Books, 1991), chap. 3; Otto Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity – “As Ciências Exatas na Antigüidade” (1957; rpt. New York: Dover, 1969), chap. 4; and Baertel L. van der Waerden, Science Awakening – “O Despertar da Ciência”, trans. Arnold Dresden (New York: John Wiley, 1963), chap. 1.

5 Chase, Rhind Mathematical Papyrus, p.27. O título de nobreza “Re” é pronunciado “rei”.

6 Outro documento importante, aproximadamente do mesmo período, é o papiro Golonishev ou papiro de Moscou, um pergaminho que tem comprimento próximo ao papiro Rhind, mas apenas um quarto da largura. Contém 25 problemas, mas de qualidade inferior aos do papiro Rhind. Veja Gillings, Mathematics, PP.246-247; Joseph, Crest of the Peacock, PP. 84-89; van der Waerden, Science Awakening, pp. 33-35; e Carl B. Boyer, A History of Mathematics – “História da Matemática” (1968; rev. ed. New York: John Wiley, 1989), pp. 22-24. Referências a outros documentos matemáticos egípcios podem ser encontradas em Chase, Rhind Mathematical Papyrus, p.67; Gillings, Mathematics, chaps. 9, 14 e 22; Joseph, Cresto f the Peacock, PP. 59-61, 66-67 e 78-79; e Neugebauer, Exact Sciences, pp. 91-92.

7 Citado em Garbi, Gilberto Geraldo, A Rainha das Ciências: um passeio histórico pelo maravilhoso mundo da Matemática. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006. Difere ligeiramente do texto original deste autor. (N.T.)

8 Note que a decomposição não é única. 7/10 também pode ser escrito como 1/5 + 1/2.

9 Para uma discussão mais detalhada do uso de frações unitárias pelos egípcios, veja Boyer, History of Mathematics, pp. 15-17; Chase, Rhind Mathematical Papyrus, pp. 9-17; Gillings, Mathematics, pp. 20-23; e van der Waerden, Science Awakening, pp. 19-26.

10 Chase, Rhind Mathematical Papyrus, p. 46. Para uma discussão sobre as medições egípcias, veja também ibid., pp. 18-20; Gillings, Mathematics, pp. 206-213.

11 O valor egípcio pode ser escrito convenientemente como (4/3)4. Gillings (Mathematics, pp. 139-153) mostra uma teoria convincente sobre como Ahmes teria chegado à fórmula A = [(8/9)d]2 e atribui a Ahmes o crédito de ser o primeiro a tentar efetivamente a quadratura do círculo na história.

12 Pronuncia-se “seiket”.

13 Chase, Rhind Mathematical Papyrus, p. 51.

14 Veja, no entanto, ibid., pp.21-22 para uma interpretação alternativa.

15 Gillings, Mathematics, p.187.

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Matemática Recreativa no Egito Antigo

O problema 79 do papiro Rhind diz (fig. 3):1

Inventário casas 7

1 2801 gatos a 49

2 5602 ratos 343

4 11204 trigo 2.301 b

hekat c 16.807

Total 19607 Total 19.607

Qual o significado por trás desses versos obscuros? Evidentemente temos diante de nós uma progressão geométrica cujo termo inicial é 7 e a razão também é 7, e o escriba nos mostra como encontrar sua soma. Mas como um bom professor que quer quebrar a monotonia de uma aula rotineira de matemática, Ahmes embeleza o exercício com uma pequena estória, que poderia ser lida assim: “Havia uma aldeia com sete casas; cada casa tinha sete gatos; cada gato comia sete ratos; cada rato comia sete espigas de trigo; cada espiga de trigo produzia sete hekat de grãos de trigo. Quanto somava isto tudo?”

A coluna da direita mostra claramente os termos da progressão 1, 72, 73, 74, 75 seguida pela sua soma, 19.607 (se o valor incorreto de 2.301 foi um erro do próprio Ahmes ou se ele já constava no documento original nunca saberemos). Mas agora Ahmes dá sua segunda cartada: na coluna da esquerda ele nos mostra como obter uma a resposta de um modo rápido, “engenhoso”; e seguindo o caminho indicado, podemos observar no papiro o método egípcio de se efetuar multiplicações. Os egípcios sabiam que qualquer inteiro pode ser representado por uma soma dos termos da progressão geométrica 1, 2, 4, 8, ..., e a representação é única (esta é precisamente a representação de um inteiro em termos da base 2, com os coeficientes ou “números binários”, sendo 0 e 1). Para multiplicar, digamos, 13 por 17, eles precisavam escrever apenas um dos números, 13 por exemplo, como uma soma de potências de 2, 13 = 1 + 4 + 8, e multiplicar cada potência pelo outro número e somar os resultados:

a A palavra egípcia para “gato” é myw; quando as vogais ausentes são inseridas, a palavra se torna meey’a uw.

b É óbvio que Ahmes cometeu um erro aqui. O valor correto é 2.401.

c Hekat era uma medida para cálculo de volume de grãos

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10 MATEMÁTICA RECREATIVA

Fig. 3. Problema 79 do papiro Rhind

13 x 17 = 1 x 17 + 4 x 17 + 8 x 17 = 17 + 68 + 136 = 221. Isso pode ser feito convenientemente em forma de tabela:

17 x 1 = 17 *

x 2 = 34

x 4 = 68 *

x 8 = 136 *

Os asteriscos indicam as potências a serem somadas. Desta forma, os egípcios eram capazes de efetuar qualquer multiplicação por meio de repetidas dobras e adições. Em todos os documentos matemáticos egípcios conhecidos, esta prática é sempre seguida; isso era tão básico para o escriba egípcio quanto as tabuadas para os alunos de hoje.

Então, de onde vem o número 2.801, o primeiro número na coluna da esquerda do problema 79 ? Aqui Ahmes usa a propriedade das progressões geométricas coma qual os egípcios tinham certa familiaridade: a soma dos n primeiros termos de uma progressão

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MATEMÁTICA RECREATIVA 11

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geométrica que tem o mesmo valor numérico para o primeiro termo e para a razão é igual à razão multiplicada por um mais os primeiros (n - 1) termos; em notação moderna, a + a2 + a3 + ... + an = a(1 + a + a2 + ... + an-1). Este tipo de “fórmula recursiva” permitiu aos escriba egípcio reduzir a soma de uma progressão geométrica em uma outra com menos (e menores) termos. Para encontrar a soma 7 + 49 + 343 + 2.401 + 16.807, Ahmes pensou nela como 7 x (1 + 7 + 49 + 343 + 2.401); uma vez que a soma dos termos dentro dos parênteses é igual a 2.801, tudo o que ele tinha a fazer era multiplicar esse número por 7, pensando em 7 como 1 + 2 + 4. Isto é o que a coluna da esquerda nos apresenta. Repare que esta coluna apresenta apenas três passos, comparando com os cinco passos da solução “óbvia” apresentada na coluna da direita; obviamente o escriba incluiu este exercício como um exemplo de pensamento criativo.

Alguém poderia perguntar: por que Ahmes escolheu 7 como razão? Em seu excelente livro, Mathematics in the Times of the Pharaohs (“Matemática no Tempo dos Faraós”), Richard J. Gillings responde assim a essa questão: “O número 7 é muito comum nas multiplicações egípcias porque, nas duplicações regulares, os três primeiros multiplicadores serão sempre 1, 2, 4, cuja soma é igual a 7.”2 Esta explicação, entretanto, não parece ser tão convincente, pois poderia ser igualmente atribuída ao número 3 (= 1 + 2), ao número 15 (= 1 + 2 + 4 + 8), e de fato para qualquer número inteiro da forma 2n - 1. Uma explicação mais plausível poderia ser a de que um número grande poderia tornar o cálculo muito longo, enquanto um número pequeno poderia não ilustrar adequadamente o rápido crescimento da progressão: se Ahmes tivesse usado 3, a resposta (363) não seria “sensacional” o suficiente para impressionar o leitor.

O surpreendente crescimento de uma progressão geométrica tem fascinado os matemáticos através dos tempos; é até mesmo encontrado no folclore de algumas culturas. Reza uma antiga lenda que o rei da Pérsia ficou tão impressionado com o jogo de xadrez, que resolveu recompensar seu inventor. Quando convocado ao palácio real, o inventor, um pobre camponês de uma área remota do reino, simplesmente pediu um grão de trigo para a primeira casa do tabuleiro de xadrez, dois grãos para a segunda casa, quatro para a terceira, e assim por diante até a sexagésima quarta casa. Surpreso com a modéstia do pedido, o rei ordenou a seus servos que trouxessem alguns sacos de trigo, e eles pacientemente começaram a colocar os grãos de trigo no tabuleiro. Logo ficou claro, entretanto, que nem mesmo todo o estoque de trigo do reino seria suficiente para satisfazer o pedido, pois a soma da progressão geométrica 1 + 2 + 22 + ... + 263 é o incrível número 18.446.744.073.709.551.615 – suficiente para formar uma linha de grãos com a distância de dois anos-luz!

O problema 79 de Ahmes tem grande semelhança com uma antiga rima infantil:

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12 MATEMÁTICA RECREATIVA

As I was going to St. Ives, I met a man with seven wives; Every wife had seven sacks, Every sack had seven cats, Every cat had seven kits. Kits, cats, sacks, and wives, How many were going to St. Ives?

A caminho de Santo Ivo, Encontrei um homem com sete esposas; Cada esposa tinha sete sacos, Cada saco tinha sete gatos, Cada gato tinha sete gatinhos, Gatinhos, gatos, sacos e esposas, Quantos iam a caminho de Santo Ivo?

No famoso trabalho Liber Abaci (1202) de Leonardo de Pisa (“Fibonacci”), há um problema que, exceto pela estória contada, é idêntico ao da rima. Isto levou alguns estudiosos a sugerir que o problema 79 “tem se perpetuado através dos séculos desde os tempos dos antigos egípcios.”3 Ao que Gillings rebate: “Todas as evidências [para esta conclusão] estão aqui diante de nós, o que permite a qualquer um concluir o que quiser. É realmente tentador ser capaz de dizer a uma criança, ‘Aqui está uma rima que tem cerca de dez mil anos de idade! Mas será verdade? Provavelmente nunca saberemos.”4

Progressões geométricas podem parecer distantes da trigonometria, mas no capítulo 9 mostraremos que as duas têm verdadeiramente uma relação bastante íntima. Isto nos irá permitir investigar geometricamente essas progressões e talvez justificar o adjetivo “geométricas” que foi, aparentemente sem motivo, associado a elas.

NOTAS E FONTES

1 Arnold Buffum Chase, The Rhind Mathematical Papyrus: Free Translation and Commentary with Selected Photographs, Transcriptions, Transliterations and Literal translations – “O Papiro Matemático Rhind: Tradução Livre e Comentários com Fotografias, Transcrições, Transliterações e Traduções Literais”. (Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics, 1979), p. 136. Utilizei a tradução literal de Chase (em vez de uma tradução livre) a fim de preservar o charme contido na declaração original. Isto obviamente inclui o erro de Ahmes na quarta linha da coluna da direita. Para a tradução livre de Chase, veja a página 59 de seu livro.

2 Richard J. Gillings, Mathematics in the Time of the Pharaohs – “Matemática no Tempo dos Faraós”. (1972; rpt. New York:Dover, 1982), p. 168.

3 L. Rodet, citado em Chase, Rhind Mathematical Papyrus, p. 59.

4 Gillings, Mathematics, p.170.

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1 Ângulos

Um ângulo plano é a inclinação recíproca de duas linhas que se tocam numa superfície plana e que não fazem parte da mesma linha reta.

- Euclides, Elementos, Definição 8.

Existem entidades geométricas de dois tipos: aquelas de natureza estritamente qualitativa, como o ponto, a linha e o plano, e aquelas que podem possuir um valor numérico, ter uma medida. A este último grupo pertencem o segmento de reta, cuja medida é o comprimento; a região de um plano, à qual se associa a área; e a rotação, medida pelo seu ângulo.

Existe certa ambigüidade no conceito de ângulo, que descreve tanto a idéia qualitativa de “separação” entre duas linhas que se intersectam, quanto o valor numérico dessa separação – a medida do ângulo. (Observe que não há relação com o conceito análogo de “separação” entre dois pontos, em que as palavras segmento de reta e comprimento fazem a devida distinção.) Felizmente não precisamos nos preocupar com essa ambigüidade, pois à trigonometria cabem apenas os aspectos quantitativos de segmentos de reta e ângulos.1

Acredita-se que a unidade mais comum para medir ângulos, o “grau”, tenha sua origem com os babilônios. Geralmente é aceito que sua divisão do círculo em 360 graus tenha alguma relação com a duração de um ano, 365 dias. Outra razão pode ser o fato de que um círculo se divide naturalmente em seis partes iguais, cada uma subentendendo uma corda igual ao raio (fig.4). No entanto, não existe nenhuma evidência conclusiva que sustente essas hipóteses, e a exata origem dos 360 graus deverá permanecer desconhecida.2 De qualquer forma, o sistema se ajusta bem ao sistema de numeração sexagesimal (base 60) dos babilônios, que mais tarde foi adotado pelos gregos e usado por Ptolomeu em sua tábua de cordas (veja capítulo 2).

Como um sistema de numeração, o sistema sexagesimal é hoje obsoleto, mas a divisão do círculo em 360 partes sobreviveu – não apenas na medição de ângulos, mas também na divisão de uma hora em 60 minutos e um minuto em 60 segundos.

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14 CAPÍTULO UM

Fig. 4. Hexágono regular inscrito em um círculo

Essa prática está tão enraizada em nosso cotidiano, que nem mesmo o predomínio do sistema métrico decimal conseguiu dissipá-la, e a frase de Florian Cajori em A History of Mathematics (“Uma História da Matemática”, 1893) continua atual: “Não existe hoje uma ameaça de se adotar uma divisão decimal de ângulos, nem mesmo na França [onde o sistema métrico decimal se originou].”3 Apesar disso, muitas calculadoras portáteis possuem a opção grad, em que um ângulo reto é dividido em 100 “grados”, e as partes fracionárias de um grado são contadas de forma decimal.

A palavra grau originou-se com os gregos. De acordo com o estudioso de história da matemática, David Eugene Smith, eles usaram a palavra µοιρα (moira), que os árabes traduziram como daraja (aparentado com o hebraico dar’ggah, um degrau de uma escada ou escala); isto foi vertido para o latim como de gradus, de onde veio a palavra grau. Os gregos chamavam a sexagésima parte do grau de “primeira parte”, a sexagésima parte desta de “segunda parte” e assim por diante. Em latim, o primeiro foi chamado de pars minuta prima (“primeira parte pequena”) e o segundo de pars minuta secunda (“segunda parte pequena”), de onde vieram os nomes minuto e segundo.4

Mais recentemente, o radiano5 (abreviado rad) foi adotado universalmente como a unidade natural para medida de ângulos. Um radiano é o ângulo definido no centro de um círculo por um arco de circunferência com o mesmo comprimento que o raio do círculo (fig. 5). Como um círculo engloba 2π (≈ 6,28) radianos ao redor da circunferência, e cada radiano corresponde a um ângulo central de 1 radiano, temos que 360º = 2π radianos; portanto 1 rad = 360º/2π ≈ 57,29º. A afirmação mais comum é de que o radiano é mais conveniente que o grau porque é um número maior, o que simplesmente não é verdade.6 A única razão para o uso do radiano é que ele simplifica muitas fórmulas. Por exemplo, um arco circular com ângulo igual a θ (sendo θ em radianos), subentende um arco de comprimento dado por s = rθ. Mas se θ estiver em graus, a fórmula correspondente será s = πrθ/180. De forma similar, a área de um setor circular com ângulo θ será A = r2

θ/2 para θ em radianos e A = πr2θ/360 para θ em graus.7 O uso de radianos livra essas fórmulas de um indesejável fator π/180.

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ÂNGULOS 15

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Fig. 5. Ângulo de 1 radiano

Ainda mais importante, o fato de que um ângulo pequeno e seu seno têm seu valor numérico aproximadamente igual – quanto menor o ângulo, melhor a aproximação – permanece verdadeiro apenas se o ângulo for medido em radianos. Por exemplo, usando uma calculadora, vemos que o seno de um grau (sen 1º) é 0,0174524; mas se 1º é convertido para radianos, teremos 1º = 2π/360º ≈ 0,0174533, e o ângulo e seu seno são iguais até a casa dos milésimos. Para um ângulo de 0,5º (novamente expresso em radianos), a concordância vai até os milionésimos, e assim por diante. É este fato,

expresso como 1/)(lim 0 =→ θθθ sen que faz com que a medição de ângulos em radianos

seja tão importante.

A palavra radiano é de concepção moderna; foi cunhada em 1871 por James Thomson, irmão do famoso físico Lorde Kelvin (William Thomson); apareceu pela primeira vez em um exame preparado por ele no Queen’s College em Belfast, em 1873.8 Outras sugestões mais antigas forma “rad” e “radial”.

Ninguém sabe de onde surgiu a convenção de se medir os ângulos no sentido anti-horário. Isso pode ter se originado de nosso familiar sistema de coordenadas: uma “curva” de 90º em sentido anti-horário nos leva do semi-eixo x positivo para o semi-eixo y positivo, mas essa mesma curva no sentido horário nos leva do semi-eixo x positivo para o semi-eixo y negativo. Essa escolha, é claro, é totalmente arbitrária: se o eixo x fosse orientado para a esquerda, ou o eixo y para baixo, a escolha natural poderia ter sido o inverso. Mesmo a palavra “horário”, designando o sentido de rotação, é ambígua: há alguns anos vi um anúncio de um relógio “anti-horário”, que funcionava de trás para frente, mas mostrava as horas perfeitamente (fig. 6). Intrigado, eu comprei um, que está na minha cozinha, onde nunca falha em deixar meus convidados desconcertados, com a certeza de alguma peça está sendo lhes pregada!

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16 CAPÍTULO UM

Fig. 6. Relógio anti-horário

NOTAS E FONTES

1 No entanto, a definição de “ângulo” como conceito sempre foi problemática; veja Euclides, Elementos, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br

2 Sobre o assunto, veja David Eugene Smith, History of Mathematics – “História da Matemática”, (1925; rpt. New York: Dover, 1953), vol. 2, pp. 229-232, e Florian Cajori, A History of Mathematics – “História da Matemática”, (1893, 2nd ed, New York: McMillian, 1919,) pp. 5-6. Alguns estudiosos creditam a divisão em 360 graus aos egípcios; veja, como exemplo, Elisabeth Achels, On Time and Calendar – “Sobre Tempo e Calendários” (New York: Hermitage House, 1955), p. 40.

3 Cajori, A History of Mathematics, p.484.

4 Smith, History of Mathematics, vol. 2, p.232.

5 Em inglês o radiano é chamado de radian, ou ainda de circular measure, que optei por não traduzir. (N.T.)

6 Por exemplo, em Morris Kline, Mathematics: A Cultural Approach – “Matemática: Uma Abordagem Cultural” (Reading, Mass: Addison-Wesley, 1962), p. 500, encontramos a seguinte afirmação: “A vantagem do uso de radianos no lugar de graus é simplesmente por questão de conveniência. Como um ângulo de 90º tem a mesma medida que um ângulo de 1,57 radianos, é muito melhor trabalhar com apenas 1,57 do que com 90 unidades.” Realmente é uma surpresa esta afirmação vir de um matemático tão eminente quanto Kline.

7 Essas fórmulas podem ser provadas facilmente considerando-se proporções: a circunferência de um círculo está para 2π radianos assim como o comprimento do arco s está para θ; assim , 2πr/2π = s/θ, e chegamos a s = rθ. Argumento similar leva à fórmula A = r2θ/2.

8 Cajori, History of Mathematics, p.484.

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2 Cordas

O conhecimento vem da sombra,

e a sombra vem do gnômon.4

- Do Chou-pei Suan-king (circa 1105 a.C.), citado em

David E. Smith, History of Mathematics, vol. 2, p.603

Quando considerados separadamente, segmentos de reta e ângulos comportam-se de maneira simples: dois segmentos de reta, colocados exatamente um após o outro numa mesma reta, formarão um novo segmento que tem o comprimento igual à soma dos comprimentos dos dois segmentos originais; e dois ângulos combinados, lado a lado com um segmento de reta comum, formam um novo ângulo que têm a mesma medida que a soma dos ângulos originais. As complicações surgem quando queremos relacionar os dois conceitos: os degraus igualmente espaçados de uma escada, quando vistos de um ponto fixo, não formam ângulos iguais aos olhos do observador (fig. 7) e, reciprocamente, ângulos iguais, quando projetados em uma linha reta, não delimitam segmentos iguais (fig. 8). A trigonometria plana elementar – grosso modo, a trigonometria do século 16 – preocupa-se com as relações quantitativas entre ângulos e segmentos de reta, particularmente em um triângulo; de fato, a palavra “trigonometria” deriva das palavras gregas trigonom = triângulo, e metron = medida.1

Como já vimos, os egípcios usaram um tipo de trigonometria primitiva já no segundo milênio a.C. na construção de suas pirâmides. Na Mesopotâmia, astrônomos babilônios fizeram registros meticulosos da posição e elevação das estrelas, do movimento dos planetas, de eclipses do sol e da lua, tudo exigindo alguma familiaridade com a medição de distâncias angulares na esfera celeste.2 O gnômon, um dispositivo simples para informar as horas por meio do comprimento da sombra projetada por uma haste vertical, era conhecido pelos antigos gregos antigos, que, de acordo com o historiador Heródoto (circa 450 a.C.), o “importaram” dos babilônios. O gnômon é basicamente um dispositivo analógico para se calcular a função cotangente:

4 Gnômon é a haste vertical que projeta a sombra em um relógio de sol.

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18 CAPÍTULO DOIS

Fig. 7. Incrementos verticais iguais

subentendem ângulos diferentes.

Se h é a altura da haste e s é o comprimento de sua sombra quando o sol está a uma altura de α graus acima do horizonte (veja fig. 9), então s = h cot α, de forma que s é proporcional a cot α. Evidentemente os antigos não estavam interessados na função cotangente em si, mas usar o dispositivo como um contador de horas; de fato, medindo a variação diária do comprimento da sombra ao meio-dia, o gnômon poderia também ser usado para determinar o dia do ano.

A Tales de Mileto (circa 640-546 a.C.), o primeiro de uma longa linhagem de matemáticos e filósofos gregos, é atribuída a medição da altura de uma pirâmide por comparação da sombra desta com a sombra de um gnômon. Como citado por Plutarco em seu O Banquete dos Sete Sábios, um dos convivas disse a Tales:

Ainda que ele [o rei do Egito] já lhe tenha profundo respeito, ele lhe tem admiração em particular pelo invento com o qual, com pouco esforço e sem o auxílio de nenhum instrumento matemático, você encontrou com tanta precisão a altura das pirâmides. Erguendo sua estaca e fixando-a na extremidade da sombra projetada pela pirâmide, dois triângulos são formados pelos raios tangentes do sol, e com isso você mostrou que a razão entre [o comprimento de] uma sombra e de outra é igual à razão entre [a altura de] da pirâmide e da estaca.3

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CORDAS 19

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Fig. 8. Ângulos iguais subentendem

incrementos verticais desiguais

Novamente a trigonometria não está diretamente envolvida, apenas a semelhança entre dois triângulos retângulos. Ainda, esse tipo de “cálculo de sombras” era suficientemente conhecido pelos antigos e poderia se dizer que foi o precursor das propriedades trigonométricas. Depois, alguns métodos simples foram aplicados com sucesso para medir as dimensões da terra, e algum tempo depois, a distância até as estrelas (veja capítulo 5).

A trigonometria na acepção moderna da palavra começou com Hiparco de Nicéia (circa 190-120 a.C.), considerado o maior astrônomo da Antigüidade. Comum a muitos dos estudiosos gregos, a obra de Hiparco é conhecida principalmente através de referências de outros escritores, neste caso o comentário de Teon de Alexandria (circa 390 d.C.) sobre o Almagesto de Ptolomeu. Ele nasceu na cidade de Nicéia (hoje Iznik, no nordeste da Turquia), mas passou a maior parte de sua vida na ilha de Rodes, no Mar Egeu, onde construiu um observatório. Utilizando instrumentos de sua própria invenção, ele determinou a posição de cerca de 1.000 estrelas, em função de suas latitude e longitude celestiais, registrando isso em um mapa – o primeiro mapa estelar detalhado. (Ele pode ter sido levado a iniciar esse projeto depois da observação de uma nova – a explosão de uma estrela que se torna visível onde nenhuma outra era visível antes).

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20 CAPÍTULO DOIS

Fig. 9. Gnômon.

Para classificar as estrelas de acordo com a intensidade de seu brilho, Hiparco criou uma escala em que as estrelas mais brilhantes tinham magnitude 1, e as mais débeis magnitude 6; essa escala, apesar de revisada e aumentado em abrangência, é usada ainda hoje. A Hiparco também é creditada a descoberta da precessão dos equinócios – um lento movimento circular dos pólos celestes a cada 26.700 anos; hoje se sabe que esse movimento aparente é causado por um movimento para trás do próprio eixo da Terra (foi Newton quem explicou corretamente este fenômeno, baseado em sua teoria da gravitação). Ele ainda aprimorou e simplificou o velho sistema de epiciclos, inventado por Aristóteles para explicar o movimento observado dos planetas ao redor da Terra (veja capítulo 7); isto foi uma regressão em relação a seu predecessor Aristarco, que já havia antevisto um universo que o Sol, e não a Terra, estava no centro.

Para ser capaz de fazer seis cálculos, Hiparco precisava de um tabela de razões trigonométricas, mas não tinha como fugir: como não existia tal tabela, teve que construir uma ele próprio. Ele considerava todos os triângulos – planos ou esféricos – como inscritos em um círculo, de modo que cada lada passava a ser uma corda do círculo. Para calcular as várias partes do triângulo, é preciso colocar o comprimento de da corda como uma função do ângulo central, e este se tornou o principal desafio da trigonometria pelos séculos seguintes. Como astrônomo, Hiparco estava interessado principalmente em triângulos esféricos, mas ele deveria conhecer muitas das fórmulas da trigonometria plana, entre elas as identidades (em notação moderna) sen2 α + cos2 α = 1, sen2 α/2 = (1 - cos α)/2, e sen (α ± β) = sen α cos β ± cos α sen β. Estas fórmulas, é claro, foram derivadas com significado puramente geométrico e expressas como teoremas sobre ângulos e cordas em um círculo (a primeira fórmula, por exemplo, é o equivalente trigonométrico do teorema de Pitágoras); voltaremos a algumas dessas fórmulas no capítulo 6. Hiparco escreveu doze livros sobre o cálculo de cordas no círculo, mas todos foram perdidos.

O primeiro grande trabalho de trigonometria a nos chegar intacto foi o Almagesto, de Claudius Ptolemaeus, mais conhecido como Ptolomeu (circa 85 – 165 d.C.).4 Ptolomeu viveu em Alexandria, o centro intelectual do mundo helenístico, mas não se conhecem maiores detalhes de sua vida (ele não tem qualquer parentesco com a dinastia dos Ptolomeu, que governou o Egito após a morte de Alexandre, o Grande, em 323 d.C.).

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Em contraste com a maioria dos matemáticos gregos, que consideravam suas disciplinas como uma ciência pura e abstrata, Ptolomeu foi um pioneiro na matemática aplicada. Escreveu sobre astronomia, geografia, música e possivelmente sobre óptica. Ele compilou um catálogo estelar baseado no trabalho de Hiparco, em que lista e nomeia quarenta e oito constelações; esses nomes são utilizados ainda hoje. Em seu trabalho Geografia, Ptolomeu usou sistematicamente a técnica de projeção de mapas (um sistema de mapeamento da esfera terrestre em uma folha plana), que Hiparco já havia apresentado; seu mapa do mundo conhecido, com as linhas de latitude e longitude, era o mapa padrão utilizado até a Idade Média (fig. 10). Entretanto, Ptolomeu subestimou gravemente o tamanho da Terra, rejeitando a estimativa correta de Eratóstenes de que era muito maior (veja capítulo 5). Esse mapa acabou se tornando uma bênção, para um empolgado Colombo tentar uma viagem marítima para o oeste, da Europa para a Ásia, uma empreitada que culminou com a descoberta do Novo Mundo.

Fig. 10. Mapa-múndi de Ptolomeu.

O grande trabalho de Ptolomeu é o Almagesto, um sumário da astronomia matemática como era conhecida em seu tempo, baseada na suposição de que a Terra estava estática no centro do universo e os corpos celestes se moviam ao seu redor descrevendo órbitas (sistema geocêntrico). O Almagesto é composto de treze partes (“livros”), que recordam os treze livros dos Elementos de Euclides. As semelhanças vão além, pois as duas obras contêm um pouco das descobertas de seus autores; em particular, as duas são compêndios de todo o conhecimento em suas respectivas áreas e são baseadas nos feitos de seus predecessores (no caso de Ptolomeu, principalmente Hiparco). Ambas as obras exerceram influência sobre gerações de pensadores; mas ao contrário dos Elementos, que ainda hoje são o coração da geometria clássica, o Almagesto perdeu muito de sua influência uma vez que o sistema heliocêntrico de Copérnico foi aceito. Como conseqüência, hoje é menos conhecido que os Elementos – uma infelicidade, pois o Almagesto é um modelo de exposição que serviria muito bem de modelo para escritores modernos.

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22 CAPÍTULO DOIS

A palavra Almagesto teve uma evolução interessante: o título original de Ptolomeu, traduzido, era “síntese matemática”, em que as gerações posteriores acrescentaram o superlativo megiste (“o maior, o incrível”). Quando os árabes traduziram a obra para seu próprio idioma, eles pegaram a palavra megiste mas acrescentaram o artigo al (“O/A”), e rapidamente se tornou conhecido como Almagesto.5 Em 1175 a versão árabe foi traduzida para o latim, e desde então se tornou a pedra fundamental do panorama geocêntrico mundial; a obra iria dominar o pensamento científico e filosófico da Europa até o século 16 e iria se tornar a Constituição da Igreja Romana.

◊ ◊ ◊

De especial interesse para nós é a tábua de cordas de Ptolomeu, que é objeto de estudo nos capítulos 10 e 11 do primeiro livro do Almagesto. Sua tabela mostra o comprimento de uma corda em um círculo como função do ângulo central que lhe é subentendido (fig. 11) para ângulos de 0º a 180º, em intervalos de meio grau.

Fig. 11. d = corda α = 2r sen α/2.

Com um pouco de atenção percebe-se que se trata essencialmente de uma tabela de senos: chamando o raio de r, o ângulo central de α, e o comprimento da corda de d, teremos:

2

senrd = (1)

Ptolomeu dividiu o diâmetro do círculo em 120 unidades, o que deixou r = 60 (a razão para essa escolha será esclarecida mais à frente). A equação (1) então se torna d = 120 sen α/2. Então, fora a constante de proporcionalidade 120, temos uma tabela de valores de sen α/2 e conseqüentemente (dobrando o ângulo) de sen α.

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Fig. 12. Uma seção da tábua de cordas de Ptolomeu.

Para calcular sua tabela (tábua), Ptolomeu usou o sistema sexagesimal dos babilônios, o único sistema adequado em seu tempo para trabalhar com frações (o sistema decimal ainda estava a mil anos no futuro). Mas ele o usou em conjunto com o sistema grego, em que a cada letra do alfabeto é atribuído um valor numérico: α = 1, β = 2, e assim por diante. Isso torna a leitura da tábua um tanto enfadonha, mas com um pouco de prática uma pessoa pode se tornar bastante hábil nessa tarefa (fig. 12). Por exemplo, para um ângulo de 7º (expresso pela letra grega ζ), a tábua de Ptolomeu fornece uma corda com comprimento de 7;19,33 (escrito como ζ ιθ λγ, as letras ι, θ, λ, e γ representando 10, 9, 30 e 3, respectivamente), que é a notação moderna para o número sexagesimal 7 + 19/60 + 33/3.600 (o ponto-e-vírgula é usado para separar a parte inteira do número de sua parte fracionária, e a vírgula é usada para separar as partes sexagesimais). Quando escrito em nosso sistema decimal, o número é aproximadamente igual a 7,32853; o comprimento real da corda, arredondado na quinta casa decimal, é 7,32852. Um feito extraordinário!

A tábua de Ptolomeu fornece o comprimento de uma corda com precisão de duas casas sexagesimais, ou 1/3.600, o que é suficiente para a maioria das aplicações mesmo em nossos dias. Além disso, a tábua possui uma coluna de “sexagésimos” que permite fazer a interpolação entre duas entradas sucessivas: isto fornece a média incremental no comprimento da corda de uma entrada para outra, ou seja, o incremento dividido por 30 (o intervalo entre dois ângulos sucessivos, medido em minutos de arco).6 Na construção

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24 CAPÍTULO DOIS

de sua tábua, Ptolomeu usou as fórmulas mencionadas anteriormente e relacionadas a Hiparco, todas elas provadas no Almagesto.7

Agora Ptolomeu mostra como a tábua pode ser usada para resolver qualquer triângulo plano, em que pelo menos um lado é conhecido. Conforme Hiparco, ele considerou um triângulo inscrito em uma circunferência. Mostraremos aqui o caso mais simples, o do triângulo retângulo.8

Fig. 13. Triângulo retângulo inscrito em uma

circunferência.

Seja o triângulo retângulo ABC (fig. 13), reto em C. Sabemos que, pela geometria elementar, a hipotenusa c = AB é o diâmetro da circunferência que passa por A, B e C. Denotando por O o centro da circunferência (isto é, o ponto médio de AB), um conhecido teorema diz que α22 =∠=∠ BACBOC . Suponha que a e c são dados. Primeiro calculamos 2α e usamos a tábua para encontrar a corda correspondente; uma vez que a tábua assume que c = 120, temos que multiplicar o comprimento pela razão c/120. Isto nos dá o lado a = BC. O lado remanescente, b = AC pode agora ser encontrado usando o

teorema de Pitágoras, e o ângulo ABC∠=β pela equação αβ −= o90 . Paralelamente, se

dois lados são conhecidos, digamos a e c, calculamos a razão a/c, multiplicamos por 120, e então usamos a tábua de modo inverso para encontrar 2α e então encontrar α .

O procedimento pode ser resumido na fórmula

α2120

cordac

a = (2)

em que corda 2α é o comprimento da corda cujo ângulo central é 2α . Isto nos leva a uma interessante observação: no sistema sexagesimal (base 60), multiplicar ou dividir por 120 é equivalente a multiplicar ou dividir por 20 no sistema decimal: simplesmente

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CORDAS 25

[email protected]

multiplicamos ou dividimos por 2 e deslocamos a vírgula uma casa para direita ou para a esquerda, respectivamente. A equação (2) exige que nós dupliquemos o ângulo, procuremos a corda correspondente, e façamos a divisão por 2. Fazer isso repetidas vezes torna-se um trabalho enfadonho, de forma que seria uma questão de tempo até que alguém reduzisse esse trabalho tabulando metade da corda como uma função do dobro do ângulo, em outras palavras nossa moderna função seno.9 Este trabalho coube aos hindus.

NOTAS E FONTES

1 Como prova de que as relações entre ângulos e segmentos de reta estão longe de ser simples, considere o seguinte teorema: “Se duas bissetrizes em um triângulo têm o mesmo comprimento, o triângulo é isósceles.” Parecendo enganosamente simples, esta prova pode iludir até mesmo matemáticos experientes.. Veja H.S.M. Coxeter, Introduction to Geometry – “Introdução a Geometria” (New York: John Wiley, 1969), pp. 9 e 420.

2 Para um bom resumo da astronomia babilônia, veja Otto Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity – “As Ciências Exatas na Antigüidade” (1957; 2nd ed., New York: Dover, 1969), capítulo 5.

3 Como citado em David Eugene Smith, History of Mathematics – “História da Matemática” (1925; rpt. New York: Dover, 1958), vol. II, pp. 602-603.

4 Asger Aaboe, em Episodes from the Early History of Mathematics – “Episódios da História Antiga da Matemática” (1964, New York: Random House, 1964) coloca seu nome como Klaudios Ptolemaios, mais próxima da pronúncia grega. Usei a grafia latina Ptolemaeus, mais comum.

5 Smith (History of Mathematics, vol. 1, p. 131) comenta que, como o prefixo “al” significa “o” ou “a” (artigos), falar ‘o Almagesto’ é como falar ‘o o-maior’. Todavia, esse deslize é tão comum que resolvi deixá-lo aqui.

6 Esta coluna é parecida com a coluna de “partes proporcionais” encontrada em tábuas de logaritmos.

7 Para uma completa discussão sobre como Ptolomeu construiu sua tábua, veja Aaboe, Episodes, pp. 112-126.

8 Os outros casos podem ser obtidos dividindo-se o triângulo em triângulos retângulos; veja ibid, pp. 107-11.

9 Torna-se claro no triângulo retângulo ABC (fig. 13), em que a = c senα . Comparando com a equação

(2), temos senα = (corda 2α )/120.

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Plimpton 322: A Mais Antiga Tábua Trigonométrica?

Enquanto os egípcios escreviam seus registros em papiros e madeira e os chineses em cascas de madeira e bambu – todos materiais perecíveis – os babilônios utilizaram tabletes de argila, um meio virtualmente indestrutível. O resultado é que possuímos um número muito maior de textos babilônios que de qualquer outra civilização, e nosso conhecimento de sua história – suas campanhas militares, transações comerciais e realizações científicas – é muito mais rico.

Estima-se que 500.000 tabletes tenham chegado aos museus ao redor do mundo, e entre eles há cerca de 300 que tratam de assuntos matemáticos. Esses são de dois tipos: “textos-tabela” e “textos-problema”, os últimos tratando de uma variedade de problemas algébricos e geométricos. Os “textos-tabela” incluem tábuas de multiplicação e tábuas de recíprocos, juros compostos, e várias seqüências numéricas; eles provam que os babilônios possuíam considerável grau de conhecimento computacional (de cálculo).

Um dos tabletes mais intrigantes a chegar até nós é conhecido como Plimpton 322, que tem esse nome por ser a peça de número 322 da Coleção G. A. Plimpton da Universidade de Columbia, em Nova Iorque (fig. 14). Ele data do antigo período babilônio da dinastia de Hamurabi, por volta de 1800-1600 a.C. Uma análise cuidadosa do texto revela que ele aborda os ternos pitagóricos – inteiros a, b, c tais que c2 = a2 + b2; exemplos desses ternos são (3, 4, 5), (5, 12, 13) e (16, 63, 65). Por causa do teorema de Pitágoras – ou mais precisamente, de seu inverso – tais ternos podem ser usados para formar triângulos retângulos de lados inteiros.

Fig. 14. Plimpton 322.

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28 PLIMPTON 322

Infelizmente, o lado esquerdo do tablete foi danificado e parcialmente perdido, mas vestígios de uma cola moderna foram encontrados na borda, provando que essa parte quebrou após o tablete ser descoberto, e um dia é possível que ainda seja encontrado em algum mercado de antigüidades. Graças a um meticuloso trabalho de pesquisa, o pedaço perdido foi parcialmente reconstruído, e nós podemos ler agora a tábua com relativa facilidade. Devemos lembrar, entretanto, que os babilônios usavam o sistema sexagesimal (base 60) de numeração, e que não possuíam um símbolo para o zero; conseqüentemente, os números podem ser interpretados de diferentes maneiras, e o valor correto para “dígitos” individuais têm que ser deduzidos do contexto.

O texto foi escrito em caracteres cuneiformes (forma de cunha), que foram gravados em um tablete úmido de argila por meio de estilos (estiletes). O tablete era então cozido em um forno ou seco ao sol até endurecer, para se tornar um registro permanente. A tabela 1 reproduz o texto em notação moderna, na qual os “dígitos” sexagesimais (expressos em notação decimal ordinária) são separados por vírgulas.

TABELA 1

NOTA: os números entre colchetes foram reconstruídos.

São quatro colunas, sendo aquela mais à direita fornece simplesmente a seqüência numérica das colunas de 1 a 15. A segunda e a terceira colunas (contando da direita para a esquerda) são intituladas “resolvendo o número da diagonal” e “resolvendo o número do comprimento”, respectivamente; isto é, elas fornecem o comprimento da diagonal e o lado menor de um retângulo, ou ainda, os comprimentos da hipotenusa e de um dos lados

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PLIMPTON 322 29

Tradução livre: [email protected]

de um triângulo retângulo. Vamos nomear essas colunas com as letras c e b, respectivamente. Como exemplo, a primeira linha tem as entradas b = 1,59 e c = 2,49, o que representa os números 1 x 60 + 59 = 119 e 2 x 60 + 49 = 169. Um cálculo rápido então nos dará o outro lado do triângulo como sendo a = √(1692 - 1192) = 120; assim, o terno (119, 120, 169) é um terno pitagórico. Novamente, na terceira linha lemos b = 1,16,41 = 1 x 602 + 16 x 60 + 41 = 4601 e c = 1,50,49 = 1 x 602 + 50 x 60 + 49 = 6649; Logo, a = √(66492 - 46012) = 4800, obtendo o terno (4601, 4800, 6649).

A tábua contém alguns erros óbvios. Na linha 9 encontramos b = 9,1 = 9 x 60 + 1 = 541 e c = 12,49 = 12 x 60 + 49 = 769, que não formam um terno pitagórico (o terceiro número a não seria um inteiro). Mas se substituirmos 9,1 por 8,1 = 481, conseguiremos o terno (481, 600, 769). Isto parece ser apenas um erro de “digitação”: o escriba deve ter se distraído momentaneamente e feito nove marcas na argila ainda mole, em vez de oito; e uma vez secado ao sol, seu descuido passou a ser parte da história registrada. Mais uma vez, na linha 13 temos b = 7,12,1 = 7 x 602 + 12 x 60 + 1 = 25.921 e c = 4,49 = 4 x 60 + 49 = 289, que não formam um terno pitagórico; mas podemos observar que 25.921 é o quadrado de 161, e os números 161 e 289 formam de fato o terno (161, 240, 289). Parece que o escriba se esqueceu completamente de extrair a raiz quadrada de 25921. E na linha 15 encontramos c = 53, enquanto o correto seria o dobro desse número, ou 106 = 1,46, produzindo o terno (56, 90, 106).1 Esses erros nos deixam com a sensação de que a natureza humana não mudou nos últimos 4.000 anos: nosso escriba anônimo não foi mais culpado pela negligência cometida do que um estudante implorando a seu (sua) professor(a) para ignorar “um errinho bobo” na prova.2

A coluna mais à esquerda é a mais intrigante de todas. Seu cabeçalho menciona novamente a palavra “diagonal”, mas o significado exato do restante do texto não está completamente claro. Entretanto, após examinar as entradas, um fato impressionante vem à tona: esta coluna fornece o quadrado da razão (c/a), isto é, o valor de cossec2

α, onde α é o ângulo oposto ao lado a. Vamos fazer a verificação para a linha 1. Temos b = 1,59 = 119 e c = 2,49 = 169. Então (c/a)2 = (169/120)2 = 1,983, arredondado para três casas decimais. A entrada correspondente na coluna 4 é 1,59,0,15 = 1 + 59 x (1/60) + 0 x (1/602) + 15 x (1/603) = 1,983. (Devemos observar mais uma vez que os babilônios não usavam um símbolo para uma “casa vazia” – nosso zero – e então um número poderia ser interpretado de diferentes maneiras; a interpretação correta deveria ser deduzida do contexto. No exemplo dado, assumimos que o primeiro 1 correspondia à parte inteira e não aos sexagésimos). O leitor poderá checar outras entradas nessa coluna e confirmar que elas são iguais a (c/a)2.

Muitas questões surgem: a ordem das entradas na tábua é aleatória ou segue algum padrão oculto? Como os babilônios encontraram esses números em particular que formam ternos pitagóricos? E por que eles estavam interessados nesses números – especificamente, na razão (c/a)2 – em primeiro lugar? A primeira questão é relativamente fácil de responder: se comparados os valores de (c/a)2 linha por linha, descobrir-se-á que eles decrescem de 1,983 até 1,387, ao que parece bastante razoável que a ordem das

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30 PLIMPTON 322

entradas seja determinada por essa seqüência. Além disso, se computarmos a raiz quadrada de cada entrada na coluna 4 – isto é, a razão c/a = cossec α – e então encontrarmos o correspondente ângulo α, descobriremos que α cresce constantemente de 45º a 58º. Então parece que o autor de nosso texto não estava interessado somente em encontrar ternos pitagóricos, mas também em determinar a razão c/a nos triângulos retângulos correspondentes. A hipótese poderá um dia ser confirmada se o fragmento perdido do tablete surgir, e contiver as colunas perdidas de a e c/a.

Para saber como os ternos pitagóricos foram encontrados, existe uma única explicação plausível: os babilônios deviam conhecer o algoritmo para gerar esses ternos. Sejam u e v dois inteiros positivos tais que u > v; então os três números

a = 2uv b = u2 – v2 c = u2 + v2 (1)

formam um terno pitagórico. (se além disso, exigirmos que u e v tenham paridade ímpar – um par e outro ímpar – e que não tenham nenhum fator em comum, então (a, b, c) é um terno pitagórico primitivo. É fácil confirmar que os números a, b e c dados pela equação (1) satisfazem a equação c2 = a2 + b2; o inverso desta afirmativa – de que todos ternos pitagóricos podem ser encontrados desta maneira – é provado em um curso comum de Teoria dos Números. Plimpton 322 então nos mostra que os babilônios não eram apenas familiarizados com o teorema de Pitágoras mil anos antes de Pitágoras, mas também sabiam rudimentos de Teoria dos Números e tinham os recursos para colocar a teoria na prática.3

NOTAS E FONTES

(O material usado nesta seção é baseado em Otto Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity – “As Ciências Exatas na Antigüidade” (1957; rpt. New York: Dover, 1969), chap. 2; veja também Howard Eves, An Introduction to the History of Mathematics – “Introdução a História da Matemática” (Fort Worth: Sauders College Publishing, 1992), pp. 44-47.).

1 Este, contudo, não é um terno pitagórico primitivo, pois pode ser reduzido ao terno (28, 45, 53), mais simples; os dois ternos representam triângulos semelhantes.

2 Um quarto erro ocorre na linha 2, onde o número 3,12,1 deveria ser 1,20,25 produzindo o terno (3367, 3456, 4825). Este erro permanece inexplicado.

3 Para saber como os babilônios utilizavam esses recursos, veja Neugebauer, Exact Sciences, pp. 39-42.

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3 Seis Funções Adultas

É muito difícil descrever com certeza o início da trigonometria... Geralmente se diz que primeiramente havia uma ênfase na astronomia, depois na trigonometria esférica, e finalmente na trigonometria plana.

- Barnabas Hugues, Prólogo ao trabalho Sobre Triângulos, de Regiomontanus.

Um antigo tratado hindu de astronomia, a Surya Siddhanta (circa 400 d.C.), fornece uma tábua com meias-cordas baseada na tábua de Ptolomeu (fig. 15). Mas o primeiro trabalho a se referir explicitamente ao seno como função de um ângulo é a Aryabhatya de Aryabhata (circa 510 d.C.), considerado o primeiro tratado hindu de matemática pura.1 Neste trabalho, Aryabhata (também conhecido como Aryabhata, o sábio; nascido em 475 ou 476, falecido por volta de 550)2 usava a palavra ardha-jya para a meia corda, que às vezes se tornava jya-ardha (“corda-metade”); em pouco tempo ele abreviou para jya ou jiva.

Aqui começa uma interessante evolução etimológica que leva à nossa palavra moderna “seno”. Quando os árabes traduziram a Aryabhatiya para seu próprio idioma, eles mantiveram a palavra jiva no original, sem tradução de seu significado. Em árabe – assim como em hebraico – as palavras geralmente são compostas apenas de consoantes, e a pronúncia das vogais ocultas fica conhecida pelo uso comum. Então jiva poderia também ser pronunciada como jiba ou jaib, e jaib em árabe significa seio, dobra ou baía. Quando a versão árabe foi traduzida para o latim, jaib foi traduzida como sinus, que significa seio, dobra ou curva (em mapas lunares, regiões que lembram uma baía ainda são descrita como sinus). Encontramos a palavra sinus nos escritos de Gerardo de Cremona (circa 1114-1187), que traduziu muitos dos antigos trabalhos gregos, incluindo o Almagesto, do árabe para o latim. Outros escritores continuaram, e logo a palavra sinus – ou seno na versão em português – tornou-se comum nos textos matemáticos através da Europa. A abreviação sin foi usada pela primeira vez por Edmund Gunter (1581-1626), um ministro inglês que se tornou professor de astronomia no Gresham College em Londres. Em 1624 ele inventou um dispositivo mecânico, a “escala Gunther”, para cálculos com logaritmos – um precursor da conhecida régua de cálculo – e a notação sin (bem como tan) apareceu pela primeira vez em um desenho descrevendo seu trabalho.3

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32 CAPÍTULO TRÊS

Fig. 15. Uma página da Surya Siddhanta.

Notações matemáticas freqüentemente tomam rumos inesperados. Na mesma época em que Leibniz se opôs ao uso por William Ougthred do símbolo “×” para indicar multiplicação (por causa de sua semelhança com a letra x), Carl Friedrich Gauss (1777-1855) se opôs à notação sen2

φ para o quadrado de sen φ:

sen2 φ é odioso para mim, ainda que Laplace tenha feito uso disso; deveria haver o receio

de que sen2 φ possa se tornar ambíguo, o que não deveria ocorrer nunca... escrevamos

então (sen φ)2, mas não sen2

φ, que por analogia poderia significar sen (sen φ).4

Não obstante a objeção de Gauss, a notação sen2 φ sobreviveu, mas sua preocupação com

a confusão com sen (sen φ) não era sem razão: hoje as aplicações repetidas de uma função

para diferentes valores iniciais são objeto de pesquisa ativa, e expressões como sen (sen ... (sen φ) ... )) aparecem rotineiramente na literatura matemática.

As outras cinco funções trigonométricas têm uma história mais recente. A função cosseno, à qual hoje dedicamos a mesma importância que à função seno, surgiu primeiramente da necessidade de se calcular o seno de ângulos complementares.

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SEIS FUNÇÕES ADULTAS 33

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Aryabhata os chamou de kotijya e os usou de modo muito parecido como se usavam as tábuas trigonométricas modernas (até as calculadoras portáteis tornarem-nas obsoletas), colocando na mesma coluna os senos dos ângulos de 0º a 45º e os cossenos dos ângulos complementares. O nome cosseno originou-se de Edward Gunter: ele escreveu co.sinus, que depois foi modificado para cossinus por John Newton (1622-1678), um professor e autor de livros de matemática (nenhum parentesco com Isaac Newton) em 1658. A notação abreviada cos foi usada pela primeira vez em 1674 por Sir Jonas Moore (1617-1679), um matemático inglês.

As funções secante e cossecante surgiram algum tempo mais tarde. Foram mencionadas pela primeira vez, sem nomes especiais, nos trabalhos do estudioso árabe Abul-Wefa (940-998), que foi também um dos primeiros a construir uma tábua de tangentes; mas foram de pouco uso até que as tábuas de navegação foram construídas no século 15. A primeira tábua de secantes impressa apareceu no trabalho Canon Doctrinae Triangulorum (Leipzig, 1551) de Georg Joachim Rhæticus (1514-1576), que estudou com Copérnico e se tornou seu primeiro discípulo; neste trabalho todas as seis funções trigonométricas aparecem pela primeira vez. A notação sec foi sugerida em 1626 pelo matemático francês Albert Girard (1595-1632), que passou a maior parte de sua vida na Holanda. (Girard foi o primeiro a compreender o significado de raízes negativas em problemas geométricos; ele também supunha que um polinômio tinha tantas raízes quanto seu grau, e foi um dos primeiros defensores do uso dos parênteses em álgebra.) Para

sec A ele escreveu sec

A , com notação similar para tan A, mas para sen A e cos A ele escreveu A e a, respectivamente.

As razões da tangente e cotangente, como vimos, se originaram do gnômon e da sombra calculada. Mas o tratamento dessas razões como funções de um ângulo começou com os árabes. A primeira tábua de tangentes e cotangentes foi construída por volta de 860 por Ahmed ibn Abdallah al-Mervazi, comumente o conhecido como Habash al-Hasib (“o calculista”), que escreveu sobre astronomia e instrumentos astronômicos.5 O astrônomo al-Battani (conhecido na Europa como Albategnius; nascido em Battan, Mesopotâmia, circa 858, falecido em 929) criou uma regra para encontrar a elevação do sol acima do horizonte em termos do comprimento s da sombra projetada por um gnômon vertical de altura h. sua fórmula (circa 920),

ϕ

ϕ

sen

senhs

)º90( −=

é equivalente à fórmula s = cot φ. Observe que nessa expressão ele utilizou somente a expressão seno, as outras funções não eram conhecidas por um nome. (Foi por meio do trabalho de al-Battani que a função de meia-corda dos hindus – nosso seno moderno – e tornou conhecida na Europa.) Baseado nessa regra, ele construiu uma “tábua de sombras” – essencialmente uma tábua de cotangentes – para cada grau de 1º a 90º.

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34 CAPÍTULO TRÊS

O nome moderno “tangente” não havia feito sua estréia até 1583, quando Thomas Fincke (1561-1646), um matemático holandês, o utilizou em seu Geometria Rotundi; até então os escritores europeus usavam os termos tirados da projeção da sombra: umbra recta (“sombra reta”) para a sombra horizontal projetada por um gnômon vertical, e umbra versa (“sombra reversa”) para a sombra horizontal projetada por um gnômon preso a uma parede. A palavra “cotangens” (sic) foi primeiro usada por Edmund Gunter em 1620. Várias abreviações foram sugeridas para essas funções, entre as quais t e t co por William Oughtred (1657) e T e t por John Wallis (1693). Mas o primeiro a usar consistentemente tais abreviaturas foi Richard Norwood (1590-1665), um matemático e pesquisador inglês; em um trabalho de trigonometria publicado em Londres em 1631 ele escreveu: “Nesses exemplos s será usado para seno: t para tangente: sc para complemento do seno [isto é, o cosseno]: tc para complemento da tangente: sec para secante. Observamos que mesmo hoje não existe conformidade em relação a notações, e textos europeus freqüentemente usam “tg” para tangente e “ctg” para cotangente.

A palavra “tangente” vem do latim tangere, tocar; sua associação com a função tangente pode ter sua origem na seguinte observação: em uma circunferência com centro em O e raio r (fig. 16), seja AB a corda subentendida pelo ângulo central 2α, e OQ a bissetriz deste ângulo. Trace uma linha paralela a AB e que seja tangente à circunferência em Q, e prolongue OA e OB até intersectar esta linha em C e D, respectivamente. Temos

αsenrAB 2= , αtan2rCD = ,

mostrando que a função tangente é relacionada à linha tangente assim como a função seno é relacionada com a corda. De fato, essa construção forma a base das seis funções trigonométricas no círculo unitário.

Fig. 16. AB = 2r sen α, CD = 2r tan α

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SEIS FUNÇÕES ADULTAS 35

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◊ ◊ ◊

Por meio das traduções árabes dos clássicos gregos e hindus, o conhecimento de álgebra e trigonometria se difundiu gradualmente pela Europa. No século 8, a Europa foi apresentada aos numerais hindus – nosso sistema decimal moderno – através dos escritos de Mohammed ibn Musa a-Khowarizni (circa. 780-840). O título de seu grande trabalho ’ilm al-jabr wa’l muqabalah (“a ciência da redução e do cancelamento”) foi transliterado em nossa palavra moderna “álgebra” e seu nome acabou se desenvolvendo nas palavras “algarismo” e “algoritmo”. O sistema indo-arábico não foi aceito de imediato pelo público, que preferiu aderir aos antigos numerais romanos. Os estudiosos, entretanto, falavam das vantagens do novo sistema e o defendiam com entusiasmo, e as disputas entre os “abacistas”, que calculavam com o bom e velho ábaco, e os “algoristas”, que faziam o mesmo simbolicamente com papel e caneta, tornou-se um lugar-comum na Europa Medieval.

Foi principalmente por causa da exposição de Leonardo Fibonacci dos numerais indo-arábicos em seu trabalho Liber Abaci (1202) que o sistema decimal finalmente encontrou seu lugar na Europa. As primeiras tábuas trigonométricas usando o novo sistema foram calculadas por volta de 1460 por Georg Von Peuerbach (1423-1461). Mas foi seu discípulo Johann Müller (1436-1476), conhecido como Regiomontanus (porque ele nasceu na cidade de Königsberg, que em alemão significa “a montanha do rei) quem escreveu o primeiro tratado geral de trigonometria atualizado. Em seu De triangulis omnimodis libri quinque (“sobre triângulos de todo tipo em cinco livros”, circa 1464)6 ele desenvolveu o assunto começando com conceitos básicos de geometria e chegando à definição da função seno; ele então mostrou como resolver qualquer triângulo – plano ou esférico – usando tanto o seno de um ângulo quanto o seno de seu complemento (o cosseno). A lei dos senos é expressa aqui de forma verbal, e é a regra para encontrar a área de um triângulo, A = (ab sen γ)/2. Curiosamente a função tangente está ausente, possivelmente porque o foco principal do trabalho é a trigonometria esférica, em que a função seno é dominante.

De triangulis foi o mais influente trabalho de trigonometria de seu tempo; uma cópia dele chegou a Copérnico, que o estudou a fundo (veja pág. 40). Todavia, mais um século se passaria até que a palavra “trigonometria” aparecesse no título de um livro. Esta honra coube a Bartholomäus Pitiscus (1561-1613), um clérigo alemão cujo interesse principal era a matemática. Seu livro, Trigonometriae sive de dimensione triangulorum libri quinque (Sobre trigonometria, ou, sobre as propriedades dos triângulos, em cinco livros), apareceu em Frankfurt em 1595. Isto nos leva ao início do século 17, quando a trigonometria começou a tomar as características analíticas que permaneceriam desde então.

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36 CAPÍTULO TRÊS

NOTAS E FONTES

1 The Aryabhatiya of Aryabhata: An Ancient Indian Work on Mathematics and Astronomy, traduzido para o inglês por Walter Eugene Clark (Chicago: University of Chicago Press, 1930). Neste trabalho (p. 28) o valor de π é dado como 3,1416; ele está expresso de forma verbal como uma série de instruções matemáticas, uma característica comum da matemática hindu. Veja também David Eugene Smith, History of Mathematics – “História da Matemática”, (1925; rpt. New York: Dover, 1953), vol. 1, pp. 153-156, e George Gheverghese Joseph, The Crest of the Peacock: Non-European Roots of Mathematics – “A Crista do Pavão – Raízes da Matemática Fora da Europa” (Harmondsworth, U.K.: Penguin Books, 1991), pp. 265-266.

2 Em 1975 a Índia batizou seu primeiro satélite com seu nome.

3 Para uma história detalhada da notação trigonométrica, veja Florian Cajori, A History of Mathematical Notations – “História das Notações Matemáticas”, (1929; rpt. Chicago: Open Court, 1952) vol. 2, pp. 142-179; veja também Smith, History of Mathematics, vol. 2, pp. 618-619 e 621-623. Uma lista dos símbolos trigonométricos, com seus autores e datas, pode ser encontrada em Vera Sanford, A Short History of Mathematics – “Breve História da Matemática” (1930; rpt. Cambridge, Mass. Houghton Mifflin, 1958), p. 298.

4 Correspondência entre Gauss e Schumacher, como citado em Robert Edouard Moritz, On Mathematics and Mathematicians (Memorabilia Mathematica) – “Sobre Matemática e Matemáticos”, (1914; rpt. New York: Dover, 1942), p. 318

5 Smith, History of Mathematics, vol. 2, pp. 620; Cajori, entretanto, credita a al-Battani a construção da primeira tábua de cotangentes (A History of Mathematics – “História da Matemática”, (1893, 2nd ed., New York: McMillian, 1919, p. 105).

6 Tradução para o inglês com introdução e notas de Barnabas Hughes (Madison: University of Wisconsin Press, 1967).

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Johann Müller, codinome Regiomontanus

Não é uma coincidência que a trigonometria até o século 16 tenha sido desenvolvida principalmente pelos astrônomos. Aristarco e Hiparco, que fundaram a trigonometria como um ramo distinto da matemática, eram astrônomos, como era Ptolomeu, o autor do Almagesto. Durante a Idade Média, astrônomos árabes e hindus, notavelmente Abul-Wefa, al-Battani, Aryabhata e Ulugh Beg de Samarcanda (1393-1449), absorveram a herança matemática grega e a expandiram enormemente, especialmente a trigonometria esférica. E quando essa herança combinada passou pela Europa, foi novamente um astrônomo quem estava na vanguarda: Johann Muller (veja fig. 17).

Muller nasceu em Unfinden, próximo à cidade de Königsberg, na baixa Francônia, em 1436 (esta não é a Königsberg mais famosa – hoje Kaliningrado – na Prússia Oriental). Diferentes versões de seu nome sobreviveram: Johannes Germanus (porque ele era alemão – germânico), Johannes Francus (porque a Francônia era conhecida também como França Oriental), e Johann von Kunsperk, em homenagem à cidade de Königsberg. Mantendo a prática dos estudiosos de seu tempo ele adotou um nome latino, Regio Monte, uma tradução literal da palavra alemã “Königsberg” (“a montanha do rei”), e em pouco tempo ficou conhecido como Regiomontanus. Mesmo esse nome, entretanto, existe em várias versões: o cientista francês Pierre Gassendi (1592-1655), que escreveu a primeira biografia definitiva de Regiomontanus, refere-se a ele como Joannes de Monte Regio, que tem uma sonoridade bem francesa.1

Regiomontanus passou seus primeiros anos estudando em casa. Com doze anos, seus pais o mandaram para Leipzig para iniciar sua educação formal, e após a formatura se mudou para Viena, recebendo o grau de bacharel desta Universidade aos quinze anos. Lá conheceu o matemático e astrônomo Georg von Peurbach (1423-1461), com quem estabeleceu estreita amizade. Peuerbach estudou com o cardeal Nicolas de Cusa (1401-1464), mas rejeitava a idéia corrente de que a Terra deveria girar ao redor do sol. Ele era um admirador de Ptolomeu e planejava publicar uma versão correta do Almagesto, baseado nas traduções latinas existentes. Ele também tomou para si a responsabilidade de preparar uma nova e mais precisa tábua de senos, usando os recém-adotados numerais indo-arábicos. O jovem Regiomontanus logo se viu sob a influência de Peuerbach, e a ligação entre eles praticamente passou a ser de pai para filho. Mas então Peuerbach morreu repentinamente, antes de completar 38 anos. Sua morte prematura deixou seus trabalhos incompletos e seu discípulo em estado de choque.

Em seu leito de morte Peuerbach confiou a seu aluno a tarefa de completar a tradução do Almagesto. “Isto se tornou uma promessa sagrada para o órfão estudante”, escreveu Gassendi em sua biografia de Regiomontanus.2

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Fig. 17. Uma representação de Regiomontanus

Regiomontanus dedicou-se completamente à tarefa, aprendendo grego, para que pudesse ler Ptolomeu no original. No decurso de seu trabalho, ele se interessou por antigos manuscritos gregos e latinos, e os adquiria onde quer que fosse; entre seus troféus estava um manuscrito incompleto de Diofanto, descoberto por ele em 1464. Ele mantinha amizade com muitos estudiosos, entre eles um cretense, George de Trebizond (Georgius Trapezuntios, 1396-1486), uma autoridade em Ptolomeu que traduziu o Almagesto e os comentários de Teon para o latim. A amizade, todavia, azedou quando Regiomontanus criticou Trebizond por sérios erros em sua interpretação dos comentários, chamando-o de “o mais imprudente e distorcido tagarela”.3 Essas palavras, por sua vez, teriam conseqüências terríveis.

Suas várias viagens o levaram à Grécia e à Itália, onde ele visitou Pádua, Veneza e Roma. Foi em Veneza, em 1464, que ele terminou o trabalho pelo qual é mais comumente lembrado, Sobre Triângulo de Todo Tipo (veja adiante). Além de todas essas atividades, Regiomontanus era também um astrólogo praticante, não vendo nenhuma contradição entre esta atividade e seu trabalho científico (o grande astrônomo Johann Kepler faria o mesmo dois séculos mais tarde). Por volta de 1467 ele foi convidado pelo rei Matias Hunyadi Corvino da Hungria para trabalhar como bibliotecário na recém fundada biblioteca real de Budapeste; o rei, que acabava de retornar vitorioso de uma guerra com os turcos e trazia consigo alguns livros raros como espólio de guerra, encontrou em Regiomontanus o homem ideal para se encarregar desses tesouros. Logo após a chegada de Regiomontanus, o rei caiu doente, e seus conselheiros previam sua iminente morte. Regiomontanus, entretanto, usou suas habilidades astrológicas para “diagnosticar” a doença como uma mera fraqueza do coração causada por um recente eclipse! Surpreso e agradecido, o rei recuperou-se e concedeu muitas recompensas a Regiomontanus.

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Tradução livre: [email protected]

Regiomontanus retornou à sua terra natal em 1471 e se estabeleceu em Nuremberg, perto do local de seu nascimento. Esta cidade, conhecida por sua longa tradição em ensino e comércio, havia acabado de abrir uma gráfica, e Regiomontanus viu as oportunidades que isso ofereceria para a divulgação de trabalhos escritos sobre ciência (havia poucos anos que Johann Gutemberg tinha inventado a imprensa de tipos móveis). Ele fundou sua própria gráfica e estava pronto para embarcar em um ambicioso projeto de impressão de manuscritos científicos, mas esses planos foram cortados por sua morte repentina. Ele havia fundado também um observatório astronômico, equipado com os melhores instrumentos que os afamados artesãos de Nuremberg puderam produzir; isso incluía esferas armilares4 e dispositivos para medir distâncias angulares entre objetos celestiais.

Regiomontanus foi o primeiro a publicar livros de matemática e astronomia para uso comercial. Em 1474 ele imprimiu suas Efemérides, tábuas listando a posição do sol, da lua e de planetas, para cada dia entre 1475 e 1506. Este trabalho trouxe-lhe grande aclamação; Cristóvão Colombo tinha uma cópia dele em sua quarta viagem ao Novo Mundo, e a usou para prever o famoso eclipse lunar de 29 de fevereiro de 1504. Os nativos recusaram-se por um tempo a fornecer água e comida aos homens de Colombo, e ele os advertiu que Deus poderia puni-los e retirar a luz da lua. Sua advertência foi inicialmente ridicularizada, mas quando na hora apontada o eclipse começou, os nativos aterrorizados imediatamente se arrependeram e se submeteram.

Em 1475 o Papa Sisto IV convocou Regiomontanus a Roma para ajudar na revisão do velho calendário juliano, que estava muito fora de sintonia com as estações do ano. Relutantemente, ele deixou suas muitas responsabilidades e viajou para a Cidade Eterna. E lá, em 6 de julho de 1476, ele morreu subitamente, um mês após eu quadragésimo aniversário. A causa de sua morte não é conhecida: alguns atribuem a uma peste, outras à passagem de um cometa. Existem, entretanto, rumores persistentes de que Regiomontanus tenha sido envenenado pelos filhos de Trebizond, que nunca esqueceram suas críticas acentuadas à tradução de seu pai dos comentários de Teon no trabalho de Ptolomeu.5 Quando a notícia de sua morte tornou-se conhecida, Nuremberg entrou em luto oficial.6

◊ ◊ ◊

O trabalho mais influente de Regiomontanus é seu De triangulis omnimodis (Sobre triângulos de todo tipo), um trabalho dividido em cinco partes (“livros”), modelado como os Elementos de Euclides (fig. 18). Nesse trabalho ele organizou de forma sistemática a herança do conhecimento de trigonometria dos estudiosos árabes e hindus. O Livro I começa com a definição de conceitos básicos: quantidade, razão, igualdade, círculo, arco e corda.

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Fig. 18. Capa de Sobre Triângulos de Todo Tipo

(Nuremberg, 1533).

A função seno é introduzida de acordo com a definição hindu: “Quando o arco e sua corda são bipartidos, chamamos a meia corda de seno direto do meio-arco.” Logo depois vem uma lista de axiomas, seguido por cinqüenta e seis teoremas que tratam de solução geométricas para triângulos planos. Muito deste material trata mais de geometria do que de trigonometria, mas o teorema 20 apresenta o uso da função seno para resolver um triângulo retângulo.

Trigonometria propriamente dita começa no Livro II, com o enunciado da lei dos senos; assim como todas as outras regras, ela é definida de forma literal, sem uso de símbolos, mas a formulação é tão clara como a de qualquer livro-texto que encontramos hoje. A lei dos senos é usada para resolver os casos ALA (um lado e dois ângulos) e LAL (dois lados e um ângulo) de um triângulo oblíquo. Aqui aparece pela primeira vez, mas de forma implícita, a fórmula da área de um triângulo em termos de dois lados e do ângulo que eles formam: “Se a área de um triângulo for dada, juntamente com o produto escalar de dois lados, então ou o ângulo oposto à base se tornará conhecido, ou [aquele ângulo] juntamente [com seu] ângulo [exterior] será igual a dois ângulos retos.”7 Em formulação moderna isso quer dizer que da fórmula A = (bc sen α)/2 pode-se encontrar tanto α quanto (180º - α) se a área A e o produto de dois lados b e c forem dados. Estranhamente, Regiomontanus nunca usou a função tangente, embora lhe fosse familiar a tábua de tangentes de Peuerbach de 1467 e, claro, o uso desta pelos árabes, em conjunto com a projeção de sombras.8

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Tradução livre: [email protected]

Os três livros restantes tratam de geometria esférica e trigonometria, ambas ferramentas necessárias à astronomia. Como expresso em sua introdução, o principal objetivo de Regiomontanus em Sobre Triângulos foi prover uma introdução matemática à astronomia. Com palavras que parecem ter sido retiradas de um texto moderno, ele alerta seus leitores para que estudem cuidadosamente o livro, pois o entendimento do assunto tratado é um pré-requisito para o conhecimento dos céus:

Você, que pretende estudar assuntos grandiosos e maravilhosos, que tem curiosidade sobre o movimento das estrelas, necessita ler estes teoremas sobre triângulos... Pois ninguém pode ignorar a ciência dos triângulos e alcançar um conhecimento satisfatório das estrelas... O aluno iniciante não deve se assustar, nem se desesperar... E se algum teorema vier a apresentar alguma dificuldade, poderá sempre consultar os exemplos numéricos como auxílio.9

Regiomontanus terminou de escrever Sobre Triângulos em 1464, mas o trabalho não foi publicado até 1533, mais de meio século após sua morte. Por meio de Georg Joachim Rhæticus (1514-1576), o principal astrônomo matemático na Alemanha durante a primeira metade do século 16, o trabalho chegou até Nicolau Copérnico (1473-1543). Rhæticus visitou Copérnico em 1539 e se tornou seu primeiro discípulo; apesar de Rhæticus ser cerca de quarenta anos mais jovem que Copérnico, os dois estudaram juntos, com o primeiro ensinando matemática ao segundo. (Foi devido à insistência de Rhæticus que Copérnico finalmente concordou em publicar seu grande trabalho, De revolutionibus, no qual ele expõem seu sistema heliocêntrico.) Ele presenteou Copérnico com uma cópia autografada de Sobre Triângulos, que o grande mestre estudou com afinco; esta cópia sobreviveu e traz nas margens numerosas anotações manuscritas de Copérnico.10 Mais tarde, Tycho Brahe (1546-1601), o grande observador astronômico holandês, usou o trabalho como base para calcular a posição da famosa nova em Cassiopéia, cuja aparição em 1572 ele teve a felicidade de testemunhar. O trabalho de Regiomontanus se tornou então o alicerce matemático que ajudou os astrônomos a modelar nossa nova visão do Universo.

◊ ◊ ◊

Em 1471, Regiomontanus propôs o seguinte problema em uma carta a Christian Roder, um professor da Universidade de Erfurt: “Em que ponto no chão uma estaca perpendicular suspensa parece maior [isto é, subentende o maior ângulo visual possível]?” Este é considerado o primeiro problema de extremos na história da matemática desde a Antigüidade.11

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Fig. 19. Problema de máximos de

Regiomontanus: a que distância x o segmento

AB subentende o maior ângulo θ ?

Na figura 19 seja a estaca representada pelo segmento de reta vertical AB. Seja OA = a, OB = b e OP = x, em que P é o ponto no solo no qual o ângulo BPA∠=θ é máximo. Seja OPA∠=α , OPB∠=β . Temos

αβ

βαβαθ

cotcot

1cotcot)cot(cot

+=−=

axbx

bxax

//

1)/)(/(

+=

xba

ab

ba

x

)( −+

−=

Poderíamos estar inclinados a diferenciar esta expressão, a fim de encontrar o valor de x que a minimiza (uma vez que cot θ diminui para 0º < θ < 90º, o máximo valor de θ significa o mínimo valor de cot θ). Mas Regiomontanus viveu duzentos anos antes da invenção do Cálculo, então vamos nos restringir aos métodos elementares. Vamos usar um teorema de álgebra que diz: a média aritmética de dois números positivos u e v nunca será menor que sua média geométrica, e as duas médias serão iguais se, e somente se, os

dois números forem iguais. Simbolicamente, uvvu ≥+ 2/)( , com a igualdade

acontecendo somente se u = v.12 Colocando u = x/(a-b), v = ab/(a-b)x, temos

uvvu 2cot ≥+=θ

ba

ab

xba

ab

ba

x

−=

−⋅

−=

2

)(2

em que a igualdade ocorre se, e somente se, x/(a-b) = ab/(a-b)x, isto é, quando abx = .

O ponto pedido está localizado a uma distância igual à média geométrica entre as alturas do ponto inicial e do ponto final da estaca, medidas verticalmente a partir do solo.

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Tradução livre: [email protected]

Fig. 20. Solução geométrica do problema de

Regiomontanus.

Este resultado fornece uma interessante interpretação geométrica. Usando régua e compasso, construa a circunferência passando por A e B e tangente à horizontal (fig. 20). Um conhecido teorema diz que OA.OB = (OP)2, isto é, ab = x2 e conseqüentemente

abx = . Paralelamente, podemos facilmente nos convencer de que a circunferência que

passa por A, B e o ponto P procurado, deve ser tangente à horizontal; para isso, intersecte a horizontal em dois pontos R e S (fig. 21), e o ângulo subentendido em qualquer ponto P entre R e S deverá ser maior que o ângulo em R ou S (com P sendo agora um ponto interior do círculo), de forma que é suposto que o ângulo em P seja máximo. Assim, o problema de Assim, o problema de Regiomontanus pode ser solucionado por uma simples construção geométrica.13

Fig. 21. Prova da solução geométrica.

Podemos apenas especular o que estimulou Regiomontanus a propor esse problema. Ele pode ter se originado de um problema de arquitetura ou perspectiva: encontrar a posição mais favorável para observar uma janela de uma construção alta. Perspectiva – a técnica de desenhar objetos de acordo com sua aparência para os olhos – era então uma novidade, introduzida pelos renascentistas italianos Filippo Brunelleschi (1377-1446) e Leone Battista Alberti (1404-1472). (O afamado artista Albrecht Dürer, o

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maior autor em perspectiva, nasceu em Nuremberg no ano em que Regiomontanus se estabeleceu por lá.) Esta rapidamente se tornou a doutrina central das artes, e a justaposição de duas disciplinas aparentemente alheias uma à outra – arte e geometria – estava em sintonia com o ideal renascentista de universalismo. É bem possível que Regiomontanus tenha proposto seu problema em resposta à consulta de um artista ou arquiteto.

NOTAS E FONTES

1 Veja Regiomontanus on Triangles – “Sobre Triângulos, de Regiomontanus”, traduzido para o inglês por Barnabas Hughes com introdução e notas (Madison: University of Wisconsin Press, 1967), pp. 11-17, de onde sua curta biografia foi adaptada. Veja também David Eugene Smith, History of Mathematics – “História da Matemática”, (1925; rpt. New York: Dover, 1953), vol. 1, pp. 259-260. A única biografia moderna de Regiomontanus está em alemão, Leben und Wirken des Johannes Muller von Königsberg genant Regiomontanus – “Vida e Obra de Johann Muller de Königsberg, conhecido como Regiomontanus” (Munich: C. H. Beck, 1939).

2 Como citado em Hugues, Regiomontanus on Triangles, p. 13.

3 Ibid., p.14.

4 Antigo instrumento de astronomia que representa o conjunto da esfera celeste e o movimento dos astros. O globo central representa a terra e os vários anéis concêntricos (armilas) os corpos celestes. Há uma seta que aponta para o pólo. (N.T.)

5 A história de sua morte por envenenamento é contada por Gassendi, na biografia de Regiomontanus, de 1654, e evoca ecos do alegado envenenamento cometido por Antonio Salieri a seu arqui-rival, Mozart.

6 O humanista francês Pierre de la Ramée (1515-1572) atribuiu a Regiomontanus a invenção de um mecanismo voador que poderia deixar a mão de uma pessoa, voar baixo por um recinto, e retornar à mão da pessoa, e uma “águia” que era capaz de deixar a cidade, encontrar um viajante que se aproximava, e acompanha-lo de volta à cidade. (Hugues, Regiomontanus on Triangles, p. 17). Essas estórias são, sem dúvida, um exagero, mas elas refletem a alta estima que cabia a Regiomontanus pelos seus conterrâneos. Nas palavras de Ramée, “Tarento tem seu Arquitas, Siracusa seu Arquimedes, Bizâncio seu Proclos, Alexandria seu Ctesibius, e Nuremberg Regiomontanus... Os matemáticos de Tarento e Siracusa, de Bizâncio e Alexandria se foram. Mas entre os mestres de Nuremberg, o prazer dos estudiosos, é o matemático regiomontanus.”

7 Ibid., p.133.

8 Ibid., pp.4-7.

9 Ibid., pp. 27-29.

10 Ibid., p.9.

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Tradução livre: [email protected]

11 Heinrich Dörrie, 100 Great Problems os Elementary Mathematics: Their History and Solution – “100 Maiores Problemas de Matemática Elementar: Suas Histórias e Soluções”, traduzido para o inglês por David Antin (1958; rpt. New York: Dover, 1965), pp. 369-370. Mudei ligeiramente o enunciado para tornar a leitura mais fácil.

12 Este teorema vem do fato de que o quadrado de um número real nunca será negativo; então

vuvuvu +−=−≤ 2)(0 2 . Movendo o termo uv2− para o lado esquerdo e dividindo por 2, obtemos

o resultado desejado. A igualdade ocorre se, e somente se, 0=− vu , isto é, u = v.

13 Não fui capaz de descobrir se Regiomontanus realmente forneceu uma solução para seu problema. De acordo com Florian Cajori, A History of Mathematical Notations – “História das Notações Matemáticas”, (1929; rpt. La Salle Ill: Open Court, 1951, vol. 1, p. 95), as correspondências entre Regiomontanus e cientistas amigos, durante o período 1463-1471, estão preservadas na Biblioteca Pública de Nuremberg.

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4 A Trigonometria se Torna Analítica

A análise de seções angulares envolve segredos aritméticos e geométricos que até o presente momento não foram desvendados por ninguém.

- François Viète

Com o grande matemático francês François Viète (também conhecido pelo seu nome em latim, Franciscus Vieta, 1540-1603), a trigonometria começou a assumir sua característica analítica moderna. Dois desenvolvimentos tornaram esse processo possível: o advento da álgebra simbólica – para a qual Viète foi quem mais contribuiu – e a invenção da Geometria Analítica por Fermat e Descartes na primeira metade do século 17. A gradual substituição da incômoda álgebra verbal da matemática medieval por expressões simbólicas concisas – uma álgebra literal – facilitou muito a escrita e a leitura de textos matemáticos. Ainda mais importante, capacitou os matemáticos a aplicar métodos algébricos a problemas que, até então, tinham sido abordados de modo puramente geométrico.

Com Viète, a trigonometria experimentou a segunda mudança mais importante: a admissão de processos infinitos. Em 1593 ele descobriu o famoso produto infinito

...

2

222

2

22

2

22⋅

++⋅

+⋅=

π

(Viète usou a abreviação etc no lugar das reticências). Foi a primeira vez que um processo infinito foi escrito explicitamente como uma fórmula matemática, o que marcou o início da Análise moderna.1 (Mostraremos a prova do produto de Viète no capítulo 11.)

Na Inglaterra, três indivíduos fizeram contribuições substanciais para a trigonometria na primeira metade do século 17. A invenção dos logaritmos por John Napier (1550-1617) auxiliou enormemente os cálculos numéricos, particularmente em trigonometria.2 William Oughtred (1574-1660) foi o primeiro a tentar um uso sistemático de símbolos trigonométricos: em seu trabalho Trigonometria, ou A Maneira de Calcular os Lados e Ângulos de Triângulos, pelas Leis Matemáticas, demonstrado (Londres, 1657), ele usou as abreviações s, t, se, s co, t co e se co para seno, tangente, secante, cosseno (“complemento do seno”), cotangente e cossecante, respectivamente.3

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48 CAPÍTULO QUATRO

(Contrastando com seu longo título, o trabalho em si contém, além das tábuas, apenas trinta e seis páginas de texto.) E o trabalho de John Wallis (1616-1703) sobre séries infinitas foi um precursor imediato das descobertas de Newton na mesma área. Wallis, mais que qualquer outro em seu tempo, percebeu que métodos sintéticos em matemática poderiam abrir caminho para métodos analíticos: ele foi o primeiro a tratar as seções cônicas como equações quadráticas, no lugar de objetos geométricos, como os gregos haviam feito. (Wallis foi também o primeiro matemático de renome a escrever sobre história da matemática, e ainda introduziu o símbolo ∞ para o infinito.) Sua fórmula mais famosa é o produto infinito

...

7

6

5

6

5

4

3

4

3

2

1

2

2⋅⋅⋅⋅⋅⋅=

π

que juntamente com o produto de Viète figura entre as mais belas fórmulas na matemática. Wallis chegou a esse resultado com uma corajosa intuição e complexos processos de interpolação que poderiam levar a paciência de um leitor moderno ao limite;4 no capítulo 12 chegaremos a seu produto por um caminho mais curto e elegante.

◊ ◊ ◊

Existe ainda outra razão para o surgimento da Geometria Analítica na primeira metade do século 17: o contínuo surgimento de leis matemáticas para descrever o mundo físico ao nosso redor. Enquanto os inventores da trigonometria clássica estavam interessados principalmente em aplicá-la aos céus (e, por conseguinte, com predominância inicial da trigonometria esférica sobre a plana), a nova era tinha seus pés plantados firmemente no mundo mecânico da vida diária. A descoberta de Galileu de que todo movimento pode ser dividido em duas componentes perpendiculares – e que essas componentes poderiam ser tratadas de forma independente uma da outra – imediatamente fez da trigonometria algo indispensável para o estudo do movimento. A ciência da artilharia – e no século 17 ela era considerada uma ciência – estava preocupada principalmente em encontrar o alcance de um projétil disparado por um canhão. Essa distância, na ausência de resistência do ar, é dada pela fórmula R = (v0

2 sen 2α)/g, onde v0 é a velocidade do projétil ao sair do canhão, α é o ângulo do disparo em relação à horizontal, e g a aceleração da gravidade (cerca de 9,81 m/s2). Essa fórmula mostra que para uma velocidade qualquer, o alcance depende somente de α: ele encontra seu valor máximo quando α = 45º e diminui simetricamente acima e abaixo de 45º. Esses fatos, é claro, eram sabidos de forma empírica há muito tempo, mas suas bases teóricas eram novas nos tempos de Galileu.

Outro ramo da matemática estudado vigorosamente nos séculos 17 e 18 foi o das oscilações. As grandes viagens marítimas da época demandavam técnicas de navegação

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A TRIGONOMETRIA SE TORNA ANALÍTICA 49

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

cada vez mais apuradas, o que por sua vez dependia da disponibilidade de relógios com precisão cada vez maior. Isto levou cientistas a estudar a oscilação de pêndulos e molas de vários tipos. Alguns dos maiores nomes da época estavam envolvidos nesses estudos, entre os quais Chistiaan Huygens (1629-1695) e Robert Hooke (1635-1703). Huygens descobriu o pêndulo cicloidal, cujo período de oscilação independe da amplitude, enquanto o trabalho de Hooke sobre molas elásticas formou a base para os modernos relógios de corda. Em outro nível, as crescentes habilidade e sofisticação na construção de instrumentos musicais – da madeira e de metais para órgãos e instrumentos de teclas – motivaram cientistas a estudar a vibração de corpos que emitem sons, tais como cordas, membranas, sinos e tubos de ar. Tudo isso enfatizou a função da trigonometria de descrever fenômenos periódicos e resultou numa transferência da ênfase em trigonometria computacional (a compilação de tábuas) para as relações entre funções trigonométricas – a essência da trigonometria analítica.

◊ ◊ ◊

Em seu trabalho Harmonia mensurarum (Harmonia da medição), publicado postumamente em 1722, o matemático inglês Roger Cotes (1682-1716) mostra uma fórmula equivalente a (em notação moderna)

)log(cos φφφ senii +=

em que i = √-1 e “log” significa o logaritmo natural (logaritmo na base e = 2,718…). Esta fórmula, é claro, é equivalente à famosa fórmula de Euler eiϕ = cos ϕ + i sen ϕ, publicada em 1748 em seu grande trabalho, Introductio in analysin infinitorum. Também em 1722 Abraham De Moivre (1667-1754) produziu – ainda que de forma implícita – a fórmula

φφφφ nseninseni n +=+ cos)(cos ,

que é a base para se encontrar a enésima raiz de um número, real ou complexo. Ela carrega, de qualquer forma, a autoridade de Euler e seu Introductio para incorporar completamente os números complexos à trigonometria: com ele, a trigonometria se tornou verdadeiramente analítica. (Voltaremos à função dos números complexos na trigonometria no capítulo 14.)

Esses desenvolvimentos afastaram de vez a trigonometria de sua conexão original com o triângulo. O primeiro a definir funções trigonométricas como números puros, em vez de razões em um triângulo, foi Abraham Gotthelf Kästner (1719-1800) da Alemanha; em 1759 ele escreveu: “Se x denota o ângulo expresso em graus, então as expressões sen x, cos x, tang x, etc. são números, com correspondência em todos os ângulos.”5 Hoje, é claro, damos um passo além e definimos a própria variável independente como um número real, em vez de um ângulo.

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50 CAPÍTULO QUATRO

◊ ◊ ◊

Praticamente desde seu início, o Cálculo Diferencial e Integral foi aplicado a inúmeros problemas de Mecânica, primeiro à Mecânica discreta (o movimento de uma partícula ou sistema de partículas), e depois à Mecânica contínua. Entre os problemas considerados nessa última, na segunda metade do século 18, o principal era o das cordas ou vibrantes. Este problema tem excitado os matemáticos desde tempos remotos por causa de sua associação com a música. Pitágoras, no sexto século a.C., já havia descoberto algumas leis que governam as vibrações de uma corda; isto o levou a construir uma escala musical baseada em princípios matemáticos. Todavia, uma investigação completa do problema exigia métodos que não estavam disponíveis nem mesmo a Newton e Leibniz, chamados equações diferenciais parciais (equações em que uma função desconhecida e suas derivadas dependem de duas ou mais variáveis independentes). Para a corda vibrante a equação pertinente é ∂2u/∂x2 = (1/c2)(∂2u/∂t2), em que u = u(x,t) é o deslocamento do equilíbrio de um ponto à distância x de uma das extremidades no tempo t, e c é uma constante que depende dos parâmetros físicos da corda (sua tensão e densidade linear).

O esforço para resolver essa famosa equação, conhecida como equação da onda unidimensional, envolveu as melhores mentes matemáticas daquele tempo, entre as quais a família Bernoulli, Euler, D’Alembert e Lagrange. Euler e D’Alembert expressaram suas soluções em termos de funções arbitrárias representando duas ondas, uma se movendo pela corda para a direita e outra para a esquerda, com velocidade igual à constante c. Daniel Bernoulli, por outro lado, encontrou uma solução envolvendo uma série infinita de funções trigonométricas. Como essas duas soluções para o mesmo problema pareceram tão diferentes, a pergunta que surgiu é se elas podiam ser conciliadas, e se não, qual delas era mais geral. Esta questão foi respondida pelo matemático francês Jean Baptiste Joseph Fourier (1768-1830). Em seu trabalho mais importante, Théori analytique de la chaleur (Teoria analítica do calor, 1822), Fourier mostrou que quase toda a função, quando feita periódica em um dado intervalo, pode ser representada por uma série trigonométrica da forma

...3cos2coscos)( 3210 ++++= xaxaxaaxf

...32 321 ++++ xsenbxsenbxsenb ,

em que os coeficientes ai e bi podem ser encontrados por f(x) calculando-se certas integrais. Esta série de Fourier é em alguns aspectos mais geral que a familiar expansão de Taylor para uma função em séries de potência. Por exemplo, enquanto as séries de Taylor podem ser aplicadas apenas a funções contínuas e que possuem derivadas contínuas, as séries de Fourier podem existir mesmo se f(x) for descontínua. Retornaremos a essas séries no capítulo 15.

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A TRIGONOMETRIA SE TORNA ANALÍTICA 51

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O teorema de Fourier marca um dos grandes feitos da Análise no século 19. Ele mostra que as funções seno e cosseno são essenciais para o estudo de todos os fenômenos periódicos, simples ou complexos; elas são de fato os blocos que constroem todos esses fenômenos, da mesma forma que os números primos são os blocos que constroem todos os inteiros. O teorema de Fourier foi mais tarde generalizado para funções não-periódicas (nesse caso a série infinita se torna uma integral), e também para séries envolvendo funções não-trigonométricas. Esses desenvolvimentos provaram ser de importância crucial para diversos ramos da ciência, da Óptica e Acústica à Teoria da Informação e Mecânica Quântica.

NOTAS E FONTES

1 Achados recentes indicam que os hindus poderiam conhecer vários processos infinitos envolvendo π, antes de Viète; veja George Gheverghese Joseph, The Crest of the Peacock: Non-European Roots of Mathematics (Harmondsworth, U.K.: Penguin Books, 1991), pp., 286-294.

2 Veja meu livro, e: The Story of a Number (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1994) [edição brasileira e: a Estória de um Número, editora Record, 2003], caps. 1 e 2.

3 No entanto, veja na página 33 o pioneirismo do uso desses símbolos. Veja ainda Florian Cajori, William Oughtred: A Great Seventeenth-Century Teacher of Mathematics (Chicago: Open Court, 1916), pp; 35-39. Cajori observa que as tábuas no livro de Oughtred usa uma divisão centesimal do grau (ou seja, em cem partes), uma prática que foi renovada em nosso tempo com o advento das calculadoras portáteis.

4 Veja A Source Book in Mathematics, 1200-1800 ed. D. J. Struik (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1969), pp. 244-253.

5 David Eugene Smith, History of Mathematics (1925; rpt. New York: Dover, 1953), vol. 2, p. 613. Kästner foi o primeiro matemático a escrever um trabalho inteiramente voltado para a história da matemática (em 4 volumes; Göttingen, 1796-1800).

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François Viète

É uma infelicidade que os nomes de muitos daqueles que ajudaram a desenvolver a matemática até atingir a forma que tem hoje, tenham desaparecido completamente dos currículos atuais. Entre esses podemos mencionar Regiomontanus, Napier e Viète, que fizeram, todos, contribuições substanciais à álgebra e à trigonometria.

François Viète nasceu em Fontenay Le Comte, uma pequena cidade no oeste da França, em 1540 (não se sabe o dia exato). Ele estudou primeiro Direito e depois se envolveu na política, tornando-se membro do Parlamento da Bretanha (região administrativa no noroeste da França). Como era prática entre os homens instruídos de seu tempo, ele latinizou seu nome para Franciscus Vieta; mas diferentemente dos outros – como Regiomontanus – a versão latina não foi adotada universalmente. Usaremos aqui o francês Viète.

Durante sua vida, Viète praticou a matemática apenas em seu tempo livre, mais como uma recreação intelectual que uma profissão. Ele não estava sozinho nesse costume: Pierre Fermat, Blaise Pascal e René Descartes fizeram todos grandes contribuições à matemática em seu tempo ocioso, enquanto oficialmente ocupavam uma variedade de posições políticas, diplomáticas e, no caso de Descartes, militares. Viète iniciou sua carreira científica como tutor de Catherine de Parthenay, filha de uma proeminente figura militar, para quem escreveu diversos livros. Como sua reputação cresceu, ele foi convocado a servir o monarca Henrique IV em sua guerra contra a Espanha. Viète mostrou-se um expert em decifrar códigos do inimigo: uma mensagem secreta ao monarca espanhol Filipe II, por seu posto avançado, foi interceptada pela França e entregue a Viète, que conseguiu decifrá-la. Os espanhóis, espantados por ver seu código quebrado, acusaram a França de usar feitiçaria, “contrária às práticas da fé cristã.”1

O trabalho mais importante de Viète é seu In artem analyticam isagoge (Introdução à Arte Analítica; Tours, 1591), considerado o primeiro trabalho sobre álgebra simbólica. Nesse trabalho, é apresentado um sistema de notações que é muito próximo daquele que usamos hoje: ele denotou quantidades conhecidas por consoantes e desconhecidas por vogais. (O costume atual de usar a, b, c, etc. para constantes e x, y, z para incógnitas foi introduzido por Descartes em 1637.) Ele definiu uma equação como “uma comparação entre uma magnitude desconhecida com outra, determinada” e forneceu as regras básicas para a resolução de equações – mover um termo de um lado para outro da equação, dividir a equação por um fator comum, e daí por diante. Ele chamou seu método de ars analytice e sua nova álgebra de logistica speciosa (literalmente, a arte de calcular com espécies, isto é, quantidades gerais), para distingui-la da velha logistica numerosa. Essa transição da álgebra verbal para a simbólica é considerado um dos mais importantes desenvolvimentos na história da matemática.

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54 FRANÇOIS VIÈTE

Viète aplicou as regras da álgebra a qualquer quantidade, aritmética ou geométrica, e com isso enterrou a antiga distinção entre números puros e entidades geométricas. Em outros aspectos, entretanto, ele foi especialmente conservador. Por exemplo, ele sempre insistiu em tornar uma equação dimensionalmente homogênea: em lugar da equação moderna mx = b2 ele escreveria “M em A aequatur B quadratus”, com o significado de que uma dada quantidade M (representada por uma consoante) multiplicada por uma quantidade desconhecida A (uma vogal) é igual ao quadrado de um número dado B. Isso mostra que ele ainda era adepto da visão dos gregos antigos de que operações entre números eram geométricas por natureza; uma vez que o produto de dois números representa a área de um retângulo que tem esses dois números como lados, pode-se igualmente equacionar a área de um quadrado cujo lado é dado. (Atualmente, é claro, tratamos quantidades algébricas como números puros, adimensionais.) Também é interessante notar que Viète usava os símbolos modernos + e – para adição e subtração, mas para igualdade ele usava a descrição verbal “aequatur”. Para A2 ele escreveu A quadratus e para A3, A cubus (ainda que mais tarde ele tenha abreviado para Aq e Ac). Torna-se claro que Viète não poderia se libertar totalmente das amarras da álgebra verbal. Seu trabalho refletiu a época em que viveu – um período de transição do velho mundo para o novo.

◊ ◊ ◊

De particular interesse para nós são as contribuições de Viète para a trigonometria. Seu primeiro trabalho sobre esse assunto surgiu em 1571 sob o título Canon mathematics seu ad triangula cum appendicibus. Aqui ele mostra o primeiro tratamento sistemático no mundo ocidental dos métodos para resolução de triângulos planos e esféricos, usando todas as seis funções trigonométricas. Ele desenvolveu as três fórmulas de transformação de soma de arcos para produtos (ou seja, sen α + sen β = 2 sen (α + β)/2 · cos (α - β)/2, com fórmulas similares para sen α + cos β e cos α + cos β), das quais John Napier pode ter tirado a idéia de logaritmos, uma vez que as fórmulas permitem (quando usadas suas inversas) reduzir o produto de dois números à soma de dois outros números. E ele foi também o primeiro a declarar a lei das tangentes em sua forma moderna: (a+b)/(a-b) = [tan (α+β)/2]/[tan (α-β)/2], em que a e b são dois lados de um triângulo e α e β são os ângulos opostos (veja página XXX).

Viète foi o primeiro matemático a aplicar sistematicamente métodos algébricos à trigonometria. Por exemplo, fazendo x = 2 cos α e yn = cos nα, ele obteve a fórmula de recorrência

yn = xyn-1 – yn-2 ,

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FRANÇOIS VIÈTE 55

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que, quando traduzida de volta para a trigonometria, se torna

cos nα = 2 cos α · cos (n-1)α – cos (n-2)α .

Agora é possível expressar cos (n-1)α e cos (n-2)α em termos de cossenos de múltiplos cada vez menores de α; continuando o processo, chegar-se-á a uma fórmula expressando cos nα em termos de cos α e sen α. Viète era capaz de fazer isso para todos inteiros n até 10. Ele era tão orgulhoso desse feito que exclamou: “A análise de seções angulares envolve segredos aritméticos e geométricos que até o presente momento não foram desvendados por ninguém.”2 Para avaliar sua façanha, devemos dizer que as fórmulas gerais expressando cos nα e sen nα em termos de cos α e sen α foram descobertas por Jacob Bernoulli em 1702, mais de cem anos após o trabalho de Viéte.3

A habilidade de Viète em aplicar transformações algébricas à trigonometria lhe foi muito útil em um encontro famoso entre Henrique IV e o embaixador holandês na França. Adraen van Roomen (1561-1615), professor de matemática e medicina em Louvain (Bélgica), publicou em 1593 um trabalho intitulado Ideae mathematicae, que continha uma análise dos mais proeminentes matemáticos vivos de seu tempo.4 Nem um único matemático francês sequer foi mencionado, estimulando o embaixador holandês a desdenhar dos feitos científicos franceses. Para provar isso, ele presenteou Henrique IV com um problema que aparecia em seu Ideae – com um prêmio oferecido para aquele que o resolvesse – e gabou-se de que certamente nenhum matemático francês conseguiria chegar à solução. O problema era resolver a equação do 45º grau

...300.1294545 39414345 −+−+− xxxx

cxxx =+−+ 45795.3634.95 35 ,

em que c é uma constante.

Henrique chamou Viète, que imediatamente encontrou uma solução, e no dia seguinte encontrou mais vinte e duas. O que aconteceu é descrito por Florian Cajori em seu A History of Mathematics:

Viète, que já havia feito investigações similares, percebeu imediatamente que aquele “terrível” problema era simplesmente a equação pela qual c = 2 sen θ era expressada em termos de x = 2 sen (θ /45); como 45 = 3 · 3 · 5, seria necessário apenas dividir um ângulo em cinco partes iguais, e depois dividi-lo duas vezes em três partes – uma divisão que poderia ser efetivada por equações correspondentes do quinto e do terceiro graus.5

Para seguir a linha de raciocínio de Viète, vamos primeiro observar um problema mais simples. Suponha que tenhamos que resolver a equação

0133 =+− xx .

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56 FRANÇOIS VIÈTE

Reescrevemos a equação como 1 = 3x – x3 e fazemos a substituição x = 2y:

3432

1yy −= .

Se tivermos olhos bem aguçados, poderemos reconhecer a similaridade entre esta equação e a identidade

ααα 3433 sensensen −= .

De fato, podemos fazer com que as duas equações coincidam se escrevermos 1/2 = sen 3α e y = sen α; nesta nova forma, o problema passa ser o de encontrar sen α, dado que sen 3α = 1/2, e então 3α = 30º + 360ºk, em que k = 0, ±1, ±2,… , e α = 10º + 120ºk. Assim, y = sen (10º + 120ºk), e finalmente x = 2y = 2 sen (10º + 120ºk). Entretanto, como a função seno tem um período de 360º, é suficiente considerar apenas os valores k = 0, 1, 2. Nossas três soluções são

...347,0º1020 == senx ,

...532,1º13021 == senx ,

e

...879,1º25022 −== senx .

Com uma calculadora podemos checar facilmente que são realmente as três soluções. Dessa forma uma identidade trigonométrica nos ajudou a resolver uma equação puramente algébrica.

Agora, uma coisa é resolver uma equação cúbica usando trigonometria, outra bem diferente é resolver outra de grau 45. Como então Viète encontrou suas soluções ? Em um trabalho intitulado Responsum (1595) ele descreveu seu método, que iremos sumarizar aqui em notação moderna: seja

c = 2sen 45θ, y = 2sen 15θ, z = 2sen 5θ, x = 2sen θ.

Nossa tarefa é encontrar x = 2sen θ, dado c = 2sen 45θ. Faremos isso em três estágios. Novamente começaremos com a identidade sen 3α = 3sen α – 4sen3α. Substituindo α = 15θ e multiplicando por 2, temos

c = 3y – y3 (1)

Agora, substituímos α = 5θ e temos

y = 3z – z3 (2)

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FRANÇOIS VIÈTE 57

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E agora usamos a identidade

αααα 5

16

13

16

5

8

55 sensensensen +−= .6

Multiplicando por 32, substituindo α por θ e expressando 2sen 3θ em termos de x = 2 sen θ, temos

x5 = 10x – 5(3x – x3) + z,

Que após simplificações se torna

z = 5x – 5x3 + x5. (3)

Se agora fizermos a substituição inversa, ou seja, a equação (3) na equação (2) e depois a (2) na equação (1) e expandirmos, teremos exatamente a equação de Van Roomen!

Viète então dividiu o problema original em outros três mais simples. Mas por que ele encontrou apenas vinte e três soluções, quando sabemos que a equação original deve ter quarenta e cinco soluções (todas reais, como sugerido pela interpretação geométrica do problema: dividir um ângulo qualquer em quarenta e cinco partes iguais)? A razão é que, no tempo de Viète, ainda era comum a prática de se tratar com o comprimento da corda de um ângulo, em vez de seu seno, como as básicas funções trigonométricas (veja capítulo 2); e como não existem comprimentos negativos, ele teve que rejeitar todas as soluções negativas como soluções sem sentido. O conjunto completo de soluções é dado por

xk = 2 sen (θ + 360ºk/45), k = 0, 1, 2, ..., 44;

(assumindo que 45θ ≤ 180º, pois de outra forma sen 45θ por si só já seria negativo) e desses, apenas os vinte e três primeiros são positivos, correspondendo aos ângulos do primeiro e segundo quadrantes.

◊ ◊ ◊

Entre as diversas outras contribuições de Viète, podemos mencionar sua descoberta da relação entre as raízes de uma equação quadrática ax2 + bx + c = 0 e seus coeficientes (x1 + x2 = - b/a e x1·x2 = c/a), ainda que sua rejeição às raízes negativas o tenha impedido de declarar a descoberta como uma regra geral; o desenvolvimento de um método numérico para aproximação de soluções de equações algébricas; e sua descoberta do famoso produto infinito para π que leva seu nome (veja página 47). Muitos de seus trabalhos foram originalmente impressos apenas para uma circulação restrita; eles foram reunidos, editados, e publicados em 1646, mais de quarenta anos após a morte de Viète, pelo matemático holandês Frans van Schootem (1615-1660).7

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58 FRANÇOIS VIÈTE

Durante seus últimos anos, Viète estava envolvido em uma áspera discussão com o matemático alemão Christopher Clavius (1537-1612), sobre a reforma do calendário que havia sido ordenada pelo papa Gregório XIII, em 1582. Os duros ataques de Viète a Clavius, que era o conselheiro do papa nessa matéria, fizeram-lhe vários inimigos e resultou na rejeição de sua nova álgebra por parte de seus adversários. Vale a pena também dizer que Viète se opôs sistematicamente ao sistema de Copérnico, tentando aprimorar o velho sistema geocêntrico de Ptolomeu. Vemos aqui o conflito interior de um homem que foi um inovador de primeira grandeza, e um conservador profundamente enraizado no passado. Viète morreu em Paris em 13 de dezembro de 1603 aos 63 anos. Com ele, a álgebra e a trigonometria começaram a tomar a forma que conhecemos hoje.8

NOTAS E FONTES

1 W.W. Rouse Ball, A Short Account of The History of Mathematics (1908; rpt. New York: Dover, 1960), p. 230.

2 Florian Cajori, A History of Mathematics (1893, 2nd ed., New York: McMillian, 1919,) p. 138 [edição brasileira – Uma História da Matemática, Editora Ciência Moderna, 2007].

3 Essas fórmulas eram

...cos!2

)1(coscos 22 +⋅

−−= − αααα sen

nnn nn

e

...cos!3

)2)(1(cos

!1331 +⋅

−−−⋅= −− ααααα sen

nnnsen

nnsen nn

4 Nesse trabalho o valor de π é fornecido com dezessete casas decimais, algo notável para a época.

5 Cajori, History of Mathematics, p.138.

6 Esta identidade pode ser obtida da fórmula sen 5α = 5sen α – 20 sen3α + 16sen5α substituindo sen3α por (3sen α – sen 3α)/4 e resolvenso para sen5α.

7 A família van Schooten produziu três gerações de matemáticos, sendo que todos nasceram e viveram em Leyden: Frans sênior (1581-1646), Frans junior, mencionado acima, e seu meio-irmão Petrus (1634-1679). Dos três, o mais proeminente foi Frans junior, que editou a edição latina de La Géométrie, de Descartes; ele ainda escreveu sobre perspectiva e defendeu o uso de coordenadas tridimensionais no espaço. Ele foi professor do grande cientista holandês Christiaan Huygens.

8 Não existe biografia de Viète em inglês. Fragmentos de sua vida e de seu trabalho podem ser encontrados em Ball, Short Account, pp. 229-234; Cajori, History of Mathematics, pp. 137-139; Joseph Ehenfried Hofmann, The History of Mathematics (New York: Philodophical Library, 1957), pp. 92-101; e no DSB.

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5 Medindo o Céu e a Terra

A ciência da trigonometria foi de certo modo uma precursora do telescópio. Ela trouxe objetos distantes no interior do compasso e tornou possível ao homem, pela primeira vez, penetrar de maneira quantitativa nos confins do espaço.

- Stanley L. Jaki, The Relevances of Physics (1966).

Desde seus primeiros dias, a geometria tem sido aplicada a problemas práticos de medição – encontrar a altura de uma pirâmide, ou a área de um campo, ou o tamanho da Terra. De fato, a própria palavra “geometria” vem do grego geo (terra) e metron (medir). Mas a ambição dos primeiros cientistas gregos ia mais longe: utilizando a geometria simples, e mais tarde a trigonometria, eles tentaram estimar o tamanho do universo.

Aristarco de Samos (circa 310-230 a.C.) é considerado o primeiro grande astrônomo da história. Enquanto muitos de seus antecessores baseavam suas idéias do cosmos em princípios estéticos e mitológicos, Aristarco baseou suas conclusões inteiramente nas observações que lhe eram disponíveis. Por exemplo, ele apontou que o movimento dos planetas poderia ser mais bem estimado se considerarmos que o sol, e não a Terra, está no centro do universo – isso cerca de dois mil anos antes de Copérnico propor seu sistema heliocêntrico.1 A maioria dos escritos de Aristarco se perdeu, mas um trabalho, Sobre as Dimensões e as Distâncias do Sol e da Lua, um tratado de astronomia matemática, sobreviveu. Nesse trabalho, ele desenvolveu um método geométrico para determinar a razão entre as distâncias do sol e da lua para a Terra.

Seu método, conhecido como “dicotomia da lua” (do grego dichotomos, dividir em duas partes), é baseado no fato de que no exato momento em que metade do disco lunar aparece iluminada pelo sol, o que acontece duas vezes durante o ciclo lunar, as linhas imaginárias que partem da Terra para a lua, e da lua para o sol, formam um ângulo reto (fig. 22). Segue que, se conhecemos o ângulo LTS, podemos, em princípio, encontrar as razões entre os lados do triângulo TLS, e em particular a razão TS/TL. Ari starco diz que o ângulo LTS é “menor que um quadrante por um trigésimo de quadrante”, ou seja,

LTS∠ = 90º – 3º = 87º. Pela trigonometria moderna, segue que TS/TL = sec 87º = 19, 1.

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60 CAPÍTULO 5

Fig. 22. Método de Aristarco.

Aristarco, é claro, não tinha tábuas trigonométricas à sua disposição, e então ele tinha que contar com um teorema que, em notação moderna, diz: Se α e β são dois ângulos agudos e α > β, então (sen α)/(sen β) < α/β < (tan α)/(tan β).2 Daí ele concluiu que TS/TL é maior que 18:1 mas menor que 20:1.

Essa estimativa da razão TS/TL é muito menor que o valor correto, por volta de 390. O motivo para essa distorção é que o método de Aristarco, que parece legítimo em princípio, lamentavelmente não era prático de se implementar. Em primeiro lugar, é extremamente difícil determinar exatamente o momento da dicotomia, mesmo com telescópios modernos; e segundo, é particularmente difícil medir o ângulo LTS – deve-se olhar diretamente para o sol, que pode já ter se posto no momento da dicotomia. Além disso, como LTS∠ é muito próximo de 90º, um pequeno erro em sua determinação pode levar a um grande erro na razão TS/TL. Por exemplo, se LTS∠ fosse 88º em vez de 87º, TS/TL seria 28, 7, enquanto para 86º seria 14, 3. De qualquer forma, o método de Aristarco marca a primeira tentativa de se estimar as dimensões de nosso sistema planetário baseada na medição real de quantidades observáveis.

Aristarco também estimou a razão entre as dimensões do sol e da lua. Durante um eclipse total do sol, a lua cobre completamente o disco solar – mas por pouco tempo – não mais que sete minutos, e normalmente muito menos que isso.3 Isso quer dizer que os tamanhos aparentes do sol e da lua, vistos da Terra, são aproximadamente iguais (perto de meio grau de arco medido na esfera celeste). Então a razão entre os diâmetros reais desses corpos deve ser aproximadamente a mesma que entre suas distâncias para a Terra. Aristarco concluiu então que o diâmetro do sol tem valor entre 18 e 19 vezes o diâmetro da lua. A razão correta está por volta de 400.

Agora, uma coisa é estimar a razão entre as distâncias de dois objetos distantes, e outra bem diferente é estimar suas distâncias e dimensões reais. Aqui o fenômeno da paralaxe tem função crucial. É uma experiência comum quando um objeto aparente mudar sua posição – visto contra um pano de fundo distante – quando o observador muda sua própria posição, ou quando visto simultaneamente por dois observadores em lugares diferentes. Se a distância entre os dois observadores é conhecida (o comprimento da linha de referência) então, medindo-se o deslocamento angular aparente da posição do objeto (o ângulo de paralaxe), pode-se encontrar a distância para o objeto, usando trigonometria simples. O método da paralaxe é a base para a topografia, mas quando aplicado às

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MEDINDO O CÉU E A TERRA 61

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enormes distâncias entre corpos celestiais, sua precisão fica limitada: quanto mais distante o objeto, menor o ângulo de paralaxe e maior a incerteza na estimativa de sua distância.

Porque a lua está relativamente perto de nós, seu aparente deslocamento de posição, visto por dois observadores posicionados em locais diferentes da Terra, apesar de parecer pequeno para os padrões terrestres, é considerável em escala astronômica. Para ter algum efeito prático, os dois observadores devem estar tão distantes um do outro quanto possível – preferencialmente em pontos opostos na Terra. Entretanto, durante a rara ocorrência de um eclipse total do sol, mesmo uma pequena mudança na posição do observador pode ser a diferença entre a escuridão total e um eclipse parcial. Isso foi mostrado de forma dramática durante o eclipse de 24 de janeiro de 1925, que passou exatamente sobre Nova York e foi assistido com céu claro por milhões de pessoas. Para determinar o limite exato da sombra da lua, observadores foram posicionados em cada esquina entre a 72ª e a 135ª Avenidas em Manhattan, e instruídos a reportar se eles viram a coroa solar – visível apenas durante a totalidade, quando o disco solar é completamente coberto pela lua – ou apenas uma estreita lua crescente, indicando que o eclipse foi parcial. “O resultado foi claro: o limite da sombra da lua passou entre a 95ª e 97ª avenidas, definindo uma precisão de algumas centenas de metros para uma sombra projetada de uma distância maior que 100.000 km.”4

O primeiro a usar a paralaxe lunar para estimar a distância para a lua foi Hiparco e Nicéia, de quem já falamos no capítulo 2. Hiparco estudou cuidadosamente os antigos registros babilônicos de eclipses desde os século 8 a.C., e com isso adquiriu um conhecimento completo sobre o movimento do sol e da lua. Por uma feliz coincidência, um eclipse solar ocorreu não muito longe de sua terra natal apenas alguns anos antes de seu nascimento; este eclipse, recentemente identificado como sendo o de 14 de março de 189 a.C., foi total perto de Helesponto (o estreito de Dardanelos, na atual Turquia), enquanto em Alexandria apenas 4/5 do disco solar foram cobertos pela lua. Como o sol e a lua subentendem um ângulo de aproximadamente meio grau de arco da esfera celeste, o deslocamento aparente da posição da lua deveria ser de 1/5 disso, ou por volta de 6 minutos de arco. Combinando essas informações com a latitude e a longitude das duas localidades e a elevação do sol e da lua no momento do eclipse, Hiparco foi capaz de calcular a menor e a maior distância para a lua como sendo 71 e 83 vezes o raio da Terra, respectivamente. Ainda que essas estimativas sejam maiores que os valores corretos 56 e 64, elas estão na ordem de grandeza correta, e podem ser consideradas um feito notável para sua época.5

◊ ◊ ◊

Hiparco estimou a distância para a lua em termos de raios terrestres. Para expressar essa distância em unidades mais comuns, deve-se conhecer o tamanho da Terra. A idéia de que a Terra é esférica é atribuída a Pitágoras; se ele teve essa idéia a partir da

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62 CAPÍTULO 5

observação de uma evidência (por exemplo, do fato de que durante um eclipse lunar parcial, a Terra sempre projeta uma sombra circular na lua) ou, como era mais comum, a partir de princípios estéticos e filosóficos (pois a esfera é a mais perfeita de todas as formas), não se sabe. Mas uma vez que se estabeleceu a idéia de que a Terra é esférica, esforços foram despendidos a fim de determinar seu tamanho. O crédito pela execução dessa façanha vai para o brilhante matemático e geógrafo do século segundo a.C., Eratóstenes de Cirene (circa 275-194 a.C.).

Eratóstenes era amigo de Arquimedes, o grande cientista da Antigüidade, a quem endereçou vários de seus trabalhos. Como muitos dos estudiosos de antigamente, Eratóstenes trabalhava em diversas disciplinas. Ele preparou um mapa celeste que incluía 675 estrelas, e determinou o ângulo de inclinação do equador da eclíptica (o plano da órbita da terra ao redor do sol) – cerca de 23,5º. Ele sugeriu adicionar ao calendário um dia extra a cada quatro anos para manter a sintonia com as estações, uma idéia na qual o calendário juliano mais tarde se baseou. Na matemática, ele inventou o famoso “crivo” para encontrar números primos, e propôs uma solução mecânica para o problema da duplicação: encontrar o lado de um cubo cujo volume seja igual ao dobro do volume de um cubo dado. Eratóstenes também escreveu poesia e crítica literária, e foi o primeiro a preparar uma cronologia científica dos principais fatos históricos desde a guerra de Tróia. Seus amigos o apelidaram “Beta”, possivelmente porque eles o ranquearam em segundo, após Arquimedes; mas essa desconsideração não impediu Ptolomeu III, rei do Egito, de convocá-lo para dirigir a grande biblioteca de Alexandria, o maior repositório de obras cultas da Antigüidade. Na velhice ele ficou cego, e pressentindo que seus anos produtivos haviam acabado, ele morreu uma “morte de filósofo”, de inanição voluntária.

No ano de 240 a.C., Eratóstenes realizou a façanha pela qual é mais comumente lembrado: o cálculo do tamanho da Terra. Era sabido que ao meio-dia do solstício de verão (o dia mais longo do ano)a, os raios solares iluminavam diretamente o fundo de um poço profundo na cidade de Siena (hoje Assuã) no Alto Egito; ou seja, naquele dia o sol estava exatamente a pino ao meio-dia. Mas em Alexandria, mais ou menos ao norte de Siena, naquele momento o sol estava a um qüinquagésimo de um círculo (ou seja, 7,2º) do zêniteb, medido pela sombra de uma estaca vertical (fig. 23). Eratóstenes assumiu que o sol está tão distante da Terra que seus raios nos chegam praticamente paralelos; então a diferença entre a elevação do sol em dois locais diferentes pode ser devido à esfericidade da Terra. Como a distância entre Alexandria e Siena era de 5.000 estádios (medida pelo tempo que um mensageiro do rei levava para ir de uma cidade à outra), a circunferência da Terra deveria ser de 50 vezes essa distância, ou 250.000 estádios.

a No Hemisfério Norte, 21 de junho (N.T.)

b Ponto superior da esfera celeste, segundo a perspectiva de um observador na superfície da Terra (isto é, o exato ponto acima de sua cabeça). O ponto diametralmente oposto chama-se nadir. (N.T.)

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Fig. 23. Medição da circunferência

da Terra, por Eratóstenes.

Infelizmente, o tamanho exato de um estádio, a unidade de distância geográfica na era grega, não é conhecido; estimativas variam de 185 a 225 metros, a medida menor referindo-se ao estádio romano, usado mais tarde. A circunferência da Terra encontrada Poe Eratóstenes está então entre 46.000 e 56.000 quilômetros, enquanto os valores corretos são de 40.003 km para a circunferência polar (nos meridianos) e 40.075 km para a equatorial.6 Eratóstenes chegou incrivelmente perto e, fazendo isso, ele usou a ciência da geometria em seu sentido literal: medir a terra.

◊ ◊ ◊

A histórica viagem de Fernão de Magalhães, de circunavegação do globo (1519-1522), deu a primeira prova de que a Terra é aproximadamente esférica. Mas desde então cientistas logo começaram a suspeitar que a Terra pudesse ser, na verdade, achatada; a questão era: a Terra seria achatada nos pólos (um esferóide oblato) ou no equador (um esferóide prolato)? Não era apenas um assunto acadêmico: com a era das explorações em pleno curso, tornava-se crucial aos navegantes a capacidade de determinar sua posição no mar – sua latitude e longitude – com suficiente precisão. E isso dependia de se saber o comprimento de um grau de latitude medido ao longo de um meridiano (um “grau meridional”). Fosse a Terra uma esfera perfeita, um grau teria o mesmo comprimento em todos os lugares, sem levar em consideração a latitude. Mas se a Terra fosse oblata, o comprimento de um grau iria crescer ligeiramente em direção aos pólos, e se fosse prolata, o comprimento então diminuiria. Determinar a forma exata da Terra – e de forma mais geral, de qualquer superfície curva – desenvolveu-se na ciência da Geodésia. Alguns dos maiores matemáticos dos séculos 18 e 19 atacaram esse problema, entre eles Newton, Euler e Gauss.

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64 CAPÍTULO 5

O primeiro passo na análise geodésica é selecionar uma linha-base de comprimento conhecido, e então medir os ângulos entre esta linha e as linhas que partem das extremidades da linha-base para um ponto distante. Para regiões relativamente pequenas – uma cidade, por exemplo – pode-se ignorar a curvatura da Terra e considerar a região plana. Calcula-se então a distância de cada extremidade para o ponto distante, usando a Lei dos Senos (o caso LAA). Essas distâncias podem agora ser usadas como novas linhas-base e o processo é repetido, até que toda a região seja coberta por uma rede de triângulos. Este processo é conhecido como triangulação; ele fornece um esqueleto no qual os detalhes topográficos na superfície – montes, rios, lagos, cidades e estradas – são depois sobrepostos para formar um mapa completo.7

O método da triangulação foi sugerido pela primeira vez em 1533 pelo matemático holandês Gemma Frisius (1508-1555).8 Foi utilizado em grande escala por outro holandês, Willebrord van Roijen Snell (1581-1626),9 que em 1615 analisou uma distância de cerca de 130 km na Holanda, usando uma rede de 33 triângulos. Mas foi na França que ocorreu o primeiro esforço sistematizado governamental de triangulação em 1668, conduzido por Abbé Jean Picard (1620-1682), um dos fundadores do Observatório de Paris. Como linha-base ele escolheu um trecho de 11 km ao longo da rodovia que liga Paris a Fontainbleau; a partir desta linha a triangulação poderia virtualmente cobrir toda a França. Para melhorar a precisão de suas medições, Picard utilizou um novo tipo de quadrante (um instrumento para medir ângulos verticais) em conjunto com um telescópio com finas listras de referência substituindo os dois furos para visada. Combinando suas medições de superfície com a determinação astronômica das latitudes das extremidades de sua linha-base, Picard chegou ao valor de 110,5 km para o grau de latitude em Paris. Ele então estendeu suas medições para o litoral francês, o que resultou em uma descoberta inesperada: a costa oeste do país teve de ser deslocada 1½º ao leste da linha do meridiano que passa por Paris, o que fez o monarca Luis XIV exclamar: “Sua jornada custou-me uma grande porção de meu reino!”10

Após a morte de Picard em 1682, o trabalho continuou por mais um século, pelas mãos de quatro gerações de uma notável família de astrônomos, os Cassini. Giovanni Domonico Cassini (1625-1712) nasceu na Itália e lecionou na Universidade de Bolonha, mas em 1668, como resultado dos insistentes esforços de Picard, ele deixou seu posto e se tornou chefe do recém fundado Observatório de Paris. Alterando seu nome para Jean Dominique, ele fez contribuições significantes para a astronomia: a determinação dos períodos de rotação de Marte e Júpiter, o primeiro estudo da luz zodiacal (um brilho difuso que aparece perto do sol nascente ou poente), a descoberta de quatro satélites de Saturno e uma lacuna escura nos anéis de saturno (conhecida como Divisão Cassini), e a medição da paralaxe de Marte em 1672, com a qual ele foi capaz de calcular – usando as leis de Kepler para o movimento planetário – a distância da Terra para o sol em 140 milhões de quilômetros, a primeira determinação dessa distância a chegar perto dos corretos 150 milhões de quilômetros. Incrivelmente, ele foi também um dos últimos astrônomos profissionais a se opor ao sistema heliocêntrico de Copérnico, e ele

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permanecia convencido de que a Terra era um esferóide prolato, apesar da quantidade de evidências em contrário.11

Na porção final de sua vida Cassini se dedicou cada vez mais à geodésia e à cartografia, utilizando sua experiência com astronomia. Em 1679 ele concebeu um novo mapa-múndi, o planisphère terrestre, usando uma projeção na qual todas as direções e distâncias a partir do Pólo Norte eram mostradas corretamente; ela é conhecida como projeção azimutal eqüidistante (veja capítulo 10). O gigantesco mapa de Cassini, com pouco mais de 7 metros de diâmetro, foi desenhado no terceiro andar do Observatório de Paris; ele se tornou um modelo para os futuros cartógrafos e foi reproduzido e publicado em 1696.

Mas Cassini não descansou sobre seus louros. Com 70 anos ele retomou a triangulação da França com vigor renovado, auxiliado por seu filho Jacques (1677-1756). Seu objetivo: estender a triangulação até os Pireneus e, quem sabe, cobrir toda a Europa com uma rede de triângulos. Como objetivo secundário, eles esperavam descobrir se a Terra era oblata ou prolata.

O velho Cassini morreu em 1712 com 87 anos. Seu filho percebeu que o problema somente seria resolvido pela comparação do comprimento de um grau em latitudes bem distantes uma da outra, e ele sugeriu que fossem enviadas expedições para a região equatorial e para o Ártico, a fim de resolver a questão de uma vez por todas. Não era apenas um interesse teórico sobre a forma da Terra que estava sendo discutido, mas todo o prestígio da França estava em jogo. Newton havia antecipado que a Terra seria achatada nos pólos, baseando seus argumentos na interação entre a força gravitacional da Terra sobre si mesma e a força centrífuga ocasionada pela rotação em seu próprio eixo. Na França, todavia, as idéias de Newton sobre gravitação – especialmente sua noção de “ação à distância” – foram rejeitadas em favor da teoria dos vórtices de Descartes, que sustentava que a atração gravitacional era ocasionada por gigantescos vórtices que giravam como redemoinhos em volta de um fluido que permearia todo o espaço. “A forma da Terra se tornou cause célèbre, o assunto científico mais debatido naqueles dias, com o orgulho nacional francês e britânico em disputa.”12

As evidências, ainda que indiretas, tendiam a apoiar Newton. Primeiro, o planeta Júpiter visto até de um pequeno telescópio mostra um achatamento considerável nos pólos; e aqui na Terra, medições da aceleração da gravidade obtidas do período de um pêndulo oscilante, mostram um valor ligeiramente menor no equador em relação aos pólos, indicando que o equador está mais distante do centro da Terra que os pólos.

Seguindo a sugestão de Jacques Cassini e com as bênçãos do novo monarca, Luis XV, a Academia Real de Ciências – o equivalente francês da Real Sociedade na Inglaterra – autorizou em duas expedições em 1734, uma para a Lapônia, na fronteira entre a Suécia e a Finlândia, e outra para o Peru, próximo à linha do equador. Sua missão: realizar uma completa triangulação de suas respectivas regiões e determinar o comprimento de um grau em cada local.

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66 CAPÍTULO 5

A primeira expedição foi chefiada por Pierre Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), que iniciou sua carreira no exército francês e mais tarde se tornou matemático e físico (ele foi o primeiro a formular o Princípio da Mínima Ação, que depois ele usou para “provar” a existência de Deus). Como admirador de Newton e o único a apoiá-lo no continente, ele estava ansioso para se juntar à empreitada que, ele esperava, poderia provar que seu mestre estava certo. Indo com ele estava outro matemático francês, Alexis Claude Clairaut (1713-1765), um jovem prodígio que havia estudado Cálculo com 10 anos e publicou seu primeiro trabalho aos 18 (a equação diferencial xy’ – y = f(y’), em que f é uma função dada de derivada f’, foi nomeada em sua homenagem). A expedição para o Peru foi chefiada por um geógrafo, Charles Marie de La Condamine (1701-1774), e também incluiu um matemático, Pierre Bouger (1698-1758). A participação de tantos matemáticos do primeiro escalão, em expedições de campo a países remotos, estava em consonância com a longa tradição francesa de produzir eminentes cientistas que também serviram seu país no serviço militar e civil. Encontraremos mais alguns deles no capítulo 15.

As duas expedições encontraram inúmeras dificuldades. A equipe da Lapônia enfrentou tempestades de neve e teve que forçar seu caminho sobre pântanos congelados, que descongelaram quando a primavera chegou. No verão, seu maior inimigo eram os mosquitos. Para a equipe do Peru foi ainda pior: não bastasse o desconforto causado pela altitude nos Andes, enfrentaram ainda doenças e uma série de acidentes que resultaram na morte de vários membros. Para piorar, surgiu uma desavença entre os líderes da expedição, que retornaram separadamente para casa. Apesar disso, as duas expedições cumpriram suas tarefas: elas determinaram o comprimento de um grau em 111,11 km na Lapônia e 109,95 km no Peru (fig.24). Combinados com o valor de Picard de 110,5 km em Paris, seus resultados provaram, sem sombra de dúvida, que a Terra é um esferóide oblato. Newton estava certo – de novo.

E agora os Cassini voltam à cena. Enquanto as duas expedições faziam seu trabalho no exterior, Jacques Cassini e seu filho César François (1714-1784) completaram a triangulação da França, usando uma rede de dezoito linhas-base e quatrocentos triângulos. Faltava agora transformar essa rede em um mapa real, e esta tarefa foi completada por Jean Dominique Cassini IV (1748-1845), bisneto do fundador da dinastia. Seu mapa de 11 x 11 metros, foi publicado em 182 folhas numa escala de 1:86.400 e mostrava não apenas traços topográficos, mas também a localização de castelos, moinhos de vento, vinhedos e – esta era a época da Revolução Francesa – guilhotinas. O quarto Cassini recebeu muitas honras por seu feito – e foi então preso e julgado por um tribunal revolucionário, quase não salvando sua vida. Sua reputação foi finalmente resgatada por Napoleão Bonaparte, e ele morreu em 1845, aos 97 anos.

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Fig. 24. Medindo um grau de longitude. O mapa mostra parte da rede de triangulação feita pela

expedição Maupertuis à Lapônia. De uma gravura de 1798 (da coleção do autor).

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68 CAPÍTULO 5

O exemplo geodésico francês estava agora sendo seguido pelo restante da Europa, e em meados do século 19, a maior parte do continente estava perfeitamente triangulada e mapeada. A tarefa então cruzou o oceano e foi para a Índia, a jóia da coroa do Império Britânico, onde um grande projeto de triangulação, conhecido como a Grande Análise Trigonométrica, foi posto em prática de 1800 a 1913. Patrocinado pela Companhia das Índias Orientais, a grande empresa comercial que administrava o país de seus escritórios em Londres, o trabalho começou próximo a Madras, na costa sudoeste da baía de Bengala e finalmente chegou ao Himalaia no extremo norte.

O capitão William Lambton, que chefiou os trabalhos de 1802 até sua morte, estava determinado a atingir seu objetivo com precisão inédita. Seu enorme teodolito, pesando meia tonelada, foi construído em Londres de acordo com suas instruções e despachado para a Índia, sendo interceptado na rota por uma fragata francesa. Numa ocasião, esse monstruoso instrumento foi suspenso até o topo do Grande Templo de Tanjore, para que desse aos analistas uma visão mais clara do terreno. Num momento um cabo se rompeu e o instrumento foi ao chão e quebrou-se. Incansável, Lambton isolou-se em seu acampamento e nas seis semanas seguintes consertou ele mesmo o equipamento.

Em 1806 Lambton começou a executar o trabalho com um objetivo ainda maior que o da triangulação da Índia: determinar a forma da Terra. Para isso, ele percorreu uma linha ao longo do meridiano 78º do cabo Comorin, no extremo sul do subcontinente, até a região da Caxemira ao norte, uma distância de cerca de 2.900 km. Seus homens encontraram diversos perigos: o calor intenso na Índia Central, a densa vegetação na qual os tigres se camuflavam, a ameaça sempre presente da malária, e os nativos irritados, convencidos de que os estrangeiros estavam atrás de suas mulheres.

Após a morte de Lambton, o levantamento continuou com seu assistente George (mais tarde Sir George) Everest (1790-1866), que se tornaria o pesquisador-geral da Índia. Everest mantinha e até ultrapassava o alto padrão de seu predecessor. Para compensar a falta de referências naturais nas vastas planícies da Índia Central, ele construiu uma série de torres que poderiam ser vistas ao longe, muitas delas de pé ainda hoje. Para evitar o calor e a neblina no interior do país, ele ordenou a seus topógrafos que trabalhassem à noite, contando com fogueiras acesa no topo de suas torres como sinalização. Durante o dia ele usou um heliógrafo – um espelho especialmente projetado cuja luz do sol refletida poderia ser vista a uma distância de 80 km. O cuidado meticuloso de Everest com os detalhes teve uma recompensa: quando a expedição atingiu o sopé do Himalaia, sua posição real diferia daquela calculada na triangulação em apenas 18 cm num total de mais de 800 km !

Durante sua jornada, Everest fez uma descoberta que é debatida ainda hoje: ele concluiu que a grande massa das montanhas do Himalaia desviava a direção do fio de prumo. Essa anomalia gravitacional foi a primeira indicação do que hoje se chama “mascon” (do inglês mass concentration – concentração de massa – sendo que o termo foi aplicado primeiramente à lua), cuja exata natureza e distribuição está hoje sendo mapeada por satélites.

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Fig. 25. Instrumentos de topografia do século 19.

Após a saída de Everest em 1843, o projeto continuou sob a direção de seu assistente, Capitão Andrew Waugh. E agora o poder da trigonometria para medir objetos distantes encontrava seu ponto alto – literalmente. Reza a lenda que, num dia de 1852, o calculista-chefe da expedição, Radhath Sikdar, também um matemático, irrompeu no escritório de Waugh exclamando: “Senhor, eu descobri a montanha mais alta do mundo.” O anúncio oficial foi protelado até 1856, para que se checasse e re-checasse a altitude do topo do Pico XV, como o Monte Everest havia sido temporariamente nomeado (ele também é conhecido pelo seu nome tibetano Chomolungma, “deusa mãe do mundo”). Calculando a média de várias leituras feitas a uma distância de cerca de 160 km, foi encontrada a altitude exata de 29.000 pés (8.839 m); mas temendo que um número exato pudesse parecer forjado, os topógrafos acrescentaram arbitrariamente dois pés, e até 1954 a altitude oficial do pico mais alto do mundo permaneceu como sendo de 29.002 pés (8.840 m) acima do nível do mar. Hoje o valor oficial é de 29.028 pés (8.848 m).13

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70 CAPÍTULO 5

Enquanto os franceses estavam ocupados triangulando a Europa e os britânicos mapeando seu império, Friedrich Wilhelm Bessel (1784-1846) estava na Alemanha preparando uma triangulação dos céus. Iniciando sua carreira como contador, ele foi autodidata em matemática e astronomia, e oas vinte anos recalculou a órbita do cometa Halley, levando em conta a perturbação gravitacional exercida pelos planetas júpiter e Saturno sobre o cometa. Os feitos de Bessel chamaram a atenção do principal astrônomo alemão da época, Heinrich Olbers, que lhe assegurou uma cadeira no Observatório de Lilienthal. Sua reputação como hábil observador astronômico, assim como um teórico de primeira grandeza, levaram à sua indicação em 1809 para o cargo de diretor do Observatório Real da Prússia em Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia)c, posição que ele ocupou até sua morte.14

Por volta de 1800 o tamanho do sistema solar conhecido estava praticamente estabelecido (ainda que os planetas Netuno e Plutão não tivessem sido descobertos)d, mas as dimensões do universo ulterior eram uma história bem diferente: ninguém tinha a menor idéia de quão longe estavam as estrelas fixas. O método da paralaxe, tão útil na determinação da distância dos objetos do sistema solar, era falho quando aplicado às estrelas fixas: nenhuma estrela mostrava qualquer deslocamento mensurável de sua posição, mesmo usando a maior linha-base disponível – o diâmetro da órbita da Terra em volta do sol. De fato, a ausência de paralaxe era tomada pelos gregos como a mais forte evidência para compor o seu quadro de um Universo em que uma Terra estática permanecia fixa em seu centro. Copérnico interpretou o fato de forma diferente: para ele, a ausência de qualquer paralaxe perceptível indicava que as estrelas estavam tão distantes de nós, que qualquer deslocamento em sua posição, durante o movimento da Terra ao redor do sol, seria muito pequeno para ser detectado por nossos olhos.

Quando o telescópio foi inventado em 1609, teoricamente tornou-se possível observar a paralaxe de algumas estrelas mais próximas, mas todas as tentativas haviam falhado. Uma razão para isso é que os astrônomos estavam observando apenas para as estrelas mais brilhantes no céu, assumindo que seu brilho indicaria que elas também eram as mais próximas. Isto seria verdade se todas as estrelas tivessem o mesmo brilho intrínseco – a mesma emissão de luz – como as luzes da iluminação pública de uma avenida. Mas por volta de 1800, os astrônomos sabiam que as estrelas diferiam grandemente em seu brilho intrínseco, e conseqüentemente seu brilho aparente não poderia ser usado como parâmetro na estimativa de sua distância relativa. A procura se virou então para as estrelas com grande movimento próprio – o movimento real de uma estrela em relação ao céu distante (em oposição ao movimento aparente, que ocorre meramente em relação ao movimento próprio do observador). Foi corretamente assumido que um grande movimento próprio indicaria que a estrela está relativamente próxima.

c Lembre-se de que não é a mesma Königsberg de Regiomontanus (N.T.).

d Netuno f oi desc oberto em 1846. Plutã o f oi de sc oberto em 1930 e “rebai xado” para pla ne ta-anã o e m 2007. (N.T.)

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Fig. 26. Paralaxe estelar.

Logo uma candidata foi encontrada – a estrela 61 na constelação Cisne. Essa estrela de quinta grandeza mal é vista a olho nu, mas era sabido que tinha um movimento próprio considerável – 5,2 segundos de arco por ano, ou cerca de um diâmetro da lua a cada 350 anos. Bessel direcionava agora todos os seus esforços para essa estrela. Após 18 meses de observação intensa, ele anunciou em 1838 que Cisne-61 tinha uma paralaxe de 0,314 segundos de arco (para comparação, o diâmetro aparente da lua tem cerca de meio grau de arco, ou 1.800 segundos de arco).

Na figura 26, seja S representando o sol, T1 e T2 a Terra em posições opostas em sua órbita ao redor do sol, e E a estrela em questão. Por convenções astronômicas, a paralaxe anual é definida como sendo a metade do deslocamento angular da posição da

estrela, em relação ao movimento da Terra ao redor do sol, ou seja, o ângulo EST1∠=α

no triângulo retângulo T1SE. Chamando a distância para a estrela de d e o raio da órbita da Terra de r, temos que sen α = r/d, ou

αsen

rd = .

Substituindo os valores r = 150.000.000 km = 1,5 x 108 km e α = 0,314” = (0,314/3600)º, chegamos ao valor d = 9,85 x 1013 km. Como as distâncias estelares são normalmente expressas em anos-luz, temos que dividir o valor pela velocidade da luz, 3 x 105 km/s, vezes o número de segundos em um ano, 3.600 x 24 x 365. Isto nos fornece

d = 10,1 anos-luz.

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72 CAPÍTULO 5

As dimensões do Universo além do nosso sistema solar tornaram-se conhecidas. A paralaxe da Cisne-61 já foi refinada para 0,294”, resultando em uma distância de 11,1 anos-luz. Logo outras paralaxes estelares foram medidas com sucesso, inclusive a de Alfa Centauro que, a 4,3 anos-luz, é nosso vizinho celestial mais próximo além do sol.15 O método foi aplicado para estrelas a até cerca de cem anos-luz de distância, mas para distâncias maiores a precisão diminui rapidamente. Felizmente, outros métodos, baseados nas características físicas das estrelas, tem sido desenvolvidos com o intuito de se estabelecer uma escala de distâncias estelares confiável.

Em 1844 Bessel fez uma segunda descoberta épica: ele apontou seu telescópio para Sirius, a estrela mais brilhante no céu, e descobriu que seu movimento próprio exibia um padrão levemente ondulatório. Ele atribuiu corretamente a influência gravitacional a uma companhia invisível que girava ao redor de Sirius. Essa companhia, Sirius B, foi descoberta em 1862 pelo fabricante de telescópios Alvar Graham Clark (1832-1897).

Perturbações gravitacionais ocuparam a mente de Bessel durante um bom período de sua vida. Este assunto representa um dos mais difíceis problemas na Mecânica Celeste, e para tratar dele, Bessel introduziu certa classe de funções conhecida como funções de Bessel. Elas são soluções da equação diferencial x2y” + xy’ + (x2 – n2)y = 0, em que n ≥ 0 é uma constante (não necessariamente um inteiro). A natureza da solução depende grandemente de n: para n = 1/2, 3/2, 5/2, ..., elas podem ser escritas em termos das funções x, sen x e cos x; de outra forma, elas só podem ser expressadas como séries infinitas e são então consideradas funções “não-elementares”. A equação de Bessel apresenta várias aplicações: por exemplo, as vibrações de uma membrana circular – como a de um tambor – são governadas pela equação de Bessel com n = 0.16

Já próximo do fim de sua vida, Bessel voltou-se novamente para o problema das perturbações gravitacionais. Um dos mais intrigantes mistérios astronômicos da época eram as anomalias no movimento do planeta Urano: todas as tentativas de explicar essas anomalias como sendo causada por planetas conhecidos – em particular Júpiter e Saturno – haviam falhado. Bessel corretamente atribuiu à existência de um desconhecido planeta “transuraniano”, mas ele morreu alguns meses antes que esse planeta, Netuno, fosse descoberto.

Bessel foi um dos últimos grandes cientistas a se sentirem igualmente à vontade na teoria e na prática (em seu caso, técnicas de observação). Matemáticos irão se lembrar dele pelas funções de Bessel, mas seu maior feito foi nos ter dado a primeira evidência concreta de quão vasto o espaço interestelar realmente é. Com ele, a atenção dos astrônomos começou a se deslocar do sistema solar para além de suas fronteiras.

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NOTAS E FONTES

1 Veja Sir Thomas L. Heath, Aristarchus of Samos: The Ancient Copernicus (1932; rpt. New York: Dover, 1981), e Greek Astronomy (1932; rpt. New York: Dover, 1991).

2 Isto vem do fato que para 0º < x < 90º, o gráfico para (sen x)/x é decrescente, enquanto o de (tan x)/x é crescente; ou seja, (sen α)/α < (sen β)/ β e (tan α)/α > (tan β)/ β.

3 Em 1995 me juntei a um grupo de astrônomos em uma expedição para a Índia para observar o eclipse total de 24 de outubro. Do momento em que olhamos diretamente a linha central da sombra da lua, a totalidade durou meros 41 segundos.

4 Citado por Bryan Brewer, Eclipse (Seattle: Earth View, 1978), p.31.

5 Veja Albert van Helden, Measuring the Universe: Cosmic Dimensions from Aristarchus to Halley (Chicago: University of Chicago Press, 1985), p.11. Veja também o artigo de Toomer sobre Hiparco no DSB.

6 Muito se debateu sobre o tamanho de um estádio. Algumas fontes dizem ser igual a 1/15 de milha, ou 161 metros, o que levaria a circunferência da Terra a 40.200 km. Parece, entretanto, que esse comprimento do estádio foi “acertado” para que o valor da circunferência fique mais próximo do valor moderno. Citando B. L. van der Waerden em Science Awakening (New York: John Wiley, 1963), p. 230: “Como não sabemos realmente o comprimento exato de um estádio, podemos dizer mais corretamente que a ordem de grandeza [da circunferência da Terra] está aproximadamente correta”. Veja também David Eugene Smith, History of Mathematics (1925; rpt. New York: Dover, 1958), vol. 2, p. 641.

7 A narrativa que segue é baseada nas seguintes fontes: Lloyd A. Brown, The Story of Maps (1949; rpt. New York: Dover, 1979); John Noble Wilford, The Mapmakers (New York: Alfred A. Knopf, 1981); e Simon Berthon e Andrew Robinson, The Shape of the World (Chicago: Rand McNally, 1991).

8 Seu verdadeiro nome era Gemma Regnier, mas ele ficou conhecido como Gemma Frisius por causa do local de seu nascimento, Friesland. Em 1541 ele se tornou professor de medicina na Universidade de Louvaine. Seu livro de aritmética (Antuérpia, 1540) foi muito popular e chegou a não menos que sessenta edições. Ele também escreveu sobre geografia e astronomia e sugeriu o método para determinar a longitude pela diferença da hora local entre dois lugares. Seu filho Cornelius Gemma Frisius (1535-1577) continuou o trabalho de seu pai e trabalhou como professor de medicina na mesma Universidade.

9 Ele foi professor de matemática em Leyden onde sucedeu seu pai. Ele trabalhou astronomia, física e trigonometria esférica e é mais conhecido pela sua lei de refração em óptica.

10 Somente em 1913 a França reconheceria o meridiano de Greenwich como sendo o principal (zero), em troca do “reconhecimento” pela Inglaterra do sistema métrico.

11 A sonda espacial Cassini, lançada pela NASA em outubro de 1987 para uma viagem de sete anos até Saturno, foi batizada em sua homenagem.

12 Citado de Berthon e Robinson, Shape of the World, p. 101.

13 Surpreendentemente, em sua autobiografia, Nothing Venture, Nothing Win (New York: Coward, NcCann & Geoghegan, 1975), Sir Edmund Hillary, que juntamente com o sherpa Tenzing Norgay, foi o primeiro a escalar o Monte Everest em 1953, ainda contava a altitude da montanha como 29.002 pés – mais de vinte

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74 CAPÍTULO 5

anos após ela ter sido oficialmente modificada. Em 1994, uma equipe topográfica chinesa, auxiliada por um satélite GPS, marcaram a altitude como 29.023 pés (8.846 m).

14 Veja o artigo de Walter Fricke sobre Bessel no DSB.

15 Atualmente, Alfa Centauro é um sistema estelar tríplice, cuja componente de brilho mais débil, Próxima Centauro (descoberta em 1915), está atualmente a 4,2 anos-luz de distância. Cisne-61 hoje é a 90ª estrela em ordem crescente de distância do sol. Veja o artigo “Our Nearest Celestial Neighbors,” de Joshua Roth e Roger W. Sinnot, Sky & Telescope, outubro de 1996, pp. 32-34.

16 Para n = 0 e 1 as funções de Bessel – denotadas por J0(x) e J1(x) – exibem certas similaridades com cos x e sen x, respectivamente; por exemplo, J0(0) = 1 e J1(0) = 0, e ambas as funções possuem um gráfico oscilante. Entretanto, suas amplitudes diminuem quando x cresce, e suas raízes não estão igualmente espaçadas ao longo do eixo x, o que explica porque o som de um tambor é diferente do de um violino (veja capítulo 15). Para detalhes, veja qualquer livro sobre equações diferenciais ordinárias.

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Abraham De Moivre

Abraham De Moivre nasceu em Vitry, na província de Champagne, França, em 26 de maio de 1667, em uma família protestante. Cedo demonstrou interesse em matemática e a estudou – secretamente – nas várias escolas religiosas por que passou. Em 1685 Luís XIV revogou o Édito de Nantes – um decreto de 1598 que garantia liberdade religiosa aos protestantes franceses – e seguiu-se um período de repressão. De Moivre ficou preso por dois anos antes de ir embora para Londres, onde permaneceria o restante de sua vida. Ele estudou matemática por conta própria, tornando-se muito proficiente. Por pura sorte, ele se encontrava na casa do conde de Devonshire, onde trabalhou como tutor, no momento em que Isaac Newton apareceu com uma cópia do Principia, seu grande trabalho na Teoria da Gravitação. De Moivre pegou o livro, estudou-o por conta própria, e concluiu que seria mais trabalhoso estudá-lo do que esperava (é um texto difícil mesmo para leitores modernos). Mas estudando assiduamente – ele costuma arrancar páginas do volumoso livro para poder estudar entre as sessões de tutoria – ele não apenas leu todo o livro, mas acabou se tornando um expert nele, tanto que Newton, em seus últimos anos, transferia para De Moivre questões originalmente direcionadas a ele próprio: “Procure o Sr. De Moivre; ele conhece essas coisas melhor que eu.”

Em 1692 ele conheceu Edmond Halley (o que deu nome ao famoso cometa), que ficou tão impressionado com sua habilidade matemática, que levou à Real Sociedade o primeiro trabalho de De Moivre, sobre o “método das fluxões” de Newton (isto é, Cálculo Diferencial). Por meio de Halley, De Moivre tornou-se membro do círculo de amizades de Newton, que também incluía John Wallis e Roger Cotes. Em 1697 foi eleito para a Real Sociedade, e em 1712 foi apontado como membro da comissão que iria resolver a amarga disputa entre Newton e Leibniz sobre a propriedade da invenção do Cálculo. Ele foi também eleito para as academias de Paris e Berlim.

Apesar desses sucessos, De Moivre não foi capaz de assegurar uma cadeira em uma Universidade – sua origem francesa foi uma das razões – e mesmo as tentativas de Leibniz em sua defesa não tiveram sucesso. Levou uma vida miserável como tutor de matemática, e pelo resto de sua vida lamentaria ter que perder seu tempo atendendo seua alunos de casa em casa. Passava seu tempo livre em cafés e tavernas em St. Martin’s Lane, Londres, onde respondia todo tipo de questões matemáticas enviadas por clientes ricos, especialmente sobre suas chances de ganhar em jogos de azar.

Quando envelheceu acabou se ornando letárgico, e necessitava de longas horas de sono. De acordo com uma fonte, ele declarou que a partir de certo dia, ele iria precisar de vinte minutos a mais de sono a cada dia. No 72º dia – 27 de novembro de 1754 – quando o tempo adicional de sono havia acumulado vinte e quatro horas – ele morreu; a causa oficial foi registrada como “sonolência”. Ele tinha 87 anos, juntando-se a uma longa linhagem de distintos matemáticos ingleses que viveram bem além dos 80: William

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76 ABRAHAM DE MOIVRE

Oughtred, que morreu em 1660 aos 86, John Wallis (m. 1703 aos 87), Isaac Newton (m. 1727 aos 85), Edmond Halley (m. 1742 aos 86), e em nossa época, Alfred North Whitehead (m. 1947 aos 86) e Bertrand Russel, que morreu em 1970 aos 98. O poeta Alexander Pope prestou-lhe um tributo em An Essay on Man:

Who made the spider parallels design,

Sure as Demoivre, whitout a rule or line ?

◊ ◊ ◊

A obra Matemática de De Moivre cobriu principalmente duas áreas: a teoria das probabilidades, e álgebra e trigonometria (consideradas um campo unificado). Em probabilidade ele estendeu o trabalho de seus predecessores, em particular Christiaan Huygens e vários membros da família Bernoulli. A generalização de um problema proposto inicialmente por Huygens é conhecida como Problema de De Moivre: sejam n dados, cada um com f faces, encontre a probabilidade de que num lançamento a soma das faces seja um número dado.1 Suas várias investigações nesse campo aparecem em seu livro “A Doutrina das Probabilidades” (The Doctrine in Chances: or, a Method of Calculating the Probability of Events in Play – London, 1718); contém inúmeros problemas sobre lançamento de dados, retirada de bolas de diferentes cores de uma urna, e questões relacionadas a seguros de vida e pensão por morte. Também está declarada (embora ele não tenha sido o primeiro a descobrir) a regra para encontrar a probabilidade de eventos compostos. Um segundo trabalho, A Treatise of Annuities upon Lives (London, 1725 e 1743), trata da análise de estatísticas de mortalidade (que Halley havia iniciado anos antes), a divisão de pensão entre vários herdeiros, e outras questões de interesse de instituições financeiras e companhias de seguro.

Na teoria de probabilidades freqüentemente encontramos a expressão n! (lê-se n fatorial), definida como 1 · 2 · 3 · ... · n. O valor de n! cresce rapidamente com o crescimento de n; por exemplo, 10!=3.628.800 enquanto 20!=2.432.902.008.176.640.000. Para encontrar n!, é preciso encontrar primeiro (n – 1)!, que por sua vez exige que se conheça (n – 2)!, e por aí continua, fazendo com que o cálculo direto de n! para um grande valor de n consuma muitíssimo tempo. Seria desejável então que se tivesse uma fórmula de aproximação que poderia estimar n! para n muito grande por um cálculo simples. Em um papel escrito em 1733 e revelado a apenas alguns amigos, De Moivre desenvolveu a fórmula

n

necnn −

+

≈ 2

1

! ,

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ABRAHAM DE MOIVRE 77

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Em que c é uma constante e e a base dos logaritmos naturais.2 Entretanto, ele não foi capaz de determinar o valor numérico dessa constante; esta tarefa coube a James Stirling

Scot (1692-1770), que encontrou π2=c . A fórmula de Sirling, como é conhecida hoje, também tem muita participação de De Moivre; é usualmente escrita na forma

nn ennn −≈ π2! .

Por exemplo, para n = 20, a fórmula fornece 2,422786847 × 1018, comparado com o valor correto (arredondado) 2,432902008 × 1018.

O terceiro grande trabalho de De Moivre, Miscellanea Analytica (London, 1730), trata, além de probabilidade, de álgebra e trigonometria analítica. Um grande problema daquela época era o de fatorar um polinômio como x2n + pxn + 1 em fatores quadráticos. Este problema surgiu em conexão com o trabalho de Cote sobre decomposição de expressões racionais em frações parciais (conhecidas então como “séries recorrentes”). De Moivre completou o trabalho de Cote, deixado incompleto pela morte repentina deste (veja página XXX). Entre seus vários resultados, encontramos a seguinte fórmula, conhecida também como “propriedade de Cote para o círculo”:

x2n + 1 = [x2 – 2x cos π/2n + 1] [x2 – 2x cos 3π/2n + 1]

... [x2 – 2x cos (2n - 1)π/2n + 1].

Para obter essa fatoração, precisamos apenas encontrar (utilizando o teorema de De Moivre) as 2n diferentes raízes da equação x2n + 1 = 0, ou seja, os 2n valores

complexos de n2 1− , e então multiplicar os fatores lineares correspondentes em pares conjugados. O fato de que expressões trigonométricas aparecem na fatoração de expressões puramente algébricas como x2n + 1 impressiona qualquer estudante que encontra uma dessas fórmulas pela primeira vez; nos tempos de De Moivre, impressionou até mesmo os matemáticos profissionais.

◊ ◊ ◊

O famoso teorema de De Moivre,

φφφφ nseninseni n +=+ cos)(cos ,

foi sugerido por ele em 1722, mas nunca foi declarado explicitamente em seu trabalho; que ele o conhecia, entretanto, está claro devido à fórmula correlata

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78 ABRAHAM DE MOIVRE

nn nseninnsenin /1/1 )(cos2

1)(cos

2

1cos φφφφφ −++= ,

que ele já havia encontrado em 1707 (De Moivre a derivou dos valores positivos de n; Euler a demonstrou em 1749 para qualquer n real).3 Ele a usava freqüentemente na Miscellanea Analytica e em inúmeros artigos que publicou no Philosophical Transactions, o jornal oficial da Real Sociedade. Por exemplo, em um artigo publicado

em 1739 ele mostrou como extrair as raízes de qualquer binômio da forma ba + ou

ba −+ (ele chamava o último de “binômio impossível”). Como um exemplo

específico, ele mostra como encontrar as três raízes cúbicas de 270081 −+ (em notação

moderna, i)330(81+ ). A discussão é mais verbal que simbólica, mas é precisamente o método que encontramos hoje em qualquer livro-texto de trigonometria: escreva

i)330(81+ na forma polar como )(cos θθ senir + , em que 22 )330(81 +=r =

21219261 = e º68,3227/)310(tan81/)330(tan 11 === −−θ . Então calcule a

expressão ]3/)º360(3/)º360[cos(3 ksenikr +++ θθ para k = 0, 1 e 2. Temos

2121)21()21(21( 2/13/12/33 === e θ/3 = 10,89º, e então as raízes são

21 cis (10,89º + 120ºk), em que “cis” significa cos + i sen. Usando uma tabela ou uma calculadora para calcular senos e cossenos, chegamos às três raízes pedidas:

2/))3(9( i+ , i)32(3+− , e 2/))35(3( i−− . De Moivre comenta:

Existem muitos autores, e entre eles o eminente Wallis, que haviam pensado que as equações cúbicas referentes ao círculo, poderiam ser solucionadas pela extração da raiz cúbica de uma quantidade imaginária, como 270081 −+ , sem observar uma tábua de senos, mas isso é pura ficção, e uma fuga da questão. Dessa forma, o resultado sempre irá retornar à mesma questão que foi originalmente proposta. E a coisa não pode ser feita de modo direto, sem o auxílio de uma tábua de senos, especialmente se as raízes forem irracionais, como tem sido observado por muitos outros.4

De Moivre certamente deve ter ficado surpreso porque as três raízes resultaram em números complexos irracionais “simples”, mesmo não sendo θ nenhum ângulo “especial” como 15º, 30º ou 45º. Ele dizia que era “ficção” (isto é, impossível) encontrar a raiz cúbica de um número complexo sem uma tábua de senos; e para evitar qualquer mal-entendido, ele repete a declaração novamente no final: “E a coisa não pode ser feita de modo direto, sem o auxílio de uma tábua de senos, especialmente se as raízes forem irracionais.” Naturalmente, ele estava certo para o caso geral: para encontrar as três raízes cúbicas de um número complexo z = x + iy, temos que expressá-lo em sua forma polar,

z = r cis θ, em que 22 yxr += e θ = tan-1 y/x; em seguida, calculamos 3 r e θ/3, então – usando uma tábua de senos – encontramos cos θ/3 e sen θ/3, e finalmente

kcisr º120)3/(3 +θ , para k = 0, 1 e 2. Ironicamente, entretanto, o exato exemplo que De Moivre usou para ilustrar o procedimento pode ser resolvido sem o auxílio de uma tábua ! Vejamos como.

Page 84: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

ABRAHAM DE MOIVRE 79

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Desejamos encontrar as três raízes cúbicas de z = x + iy = i)330(81+ = r cis θ,

em que r = 2121 e θ = 27/)310( . Desta última equação (ou pelo cálculo direto de x/r)

encontramos cos θ = 49/)219(2121/81 = . Usaremos agora a identidade cos θ = 4 cos3

θ/3 – 3 cos θ/3 para encontrar o valor de cos θ/3; fazendo x = cos θ/3, temos

xx 3449/)219( 3 −= , (1)

ou

0219147196 3 =−− xx . (2)

A substituição )219/(xy = reduz esta equação a

01147396.333 3 =−− yy . (3)

Esta nova equação não possui radicais, mas seu primeiro coeficiente parece demasiado grande. Isto só acontece, entretanto, porque 157 é divisível por 21 3 333.396 é divisível por 213. Escrevendo z = 21y, a equação se torna

01736 3 =−− zz , (4)

uma equação bem mais simples, cujas três raízes são 1/2, -1/3 e -1/6 – todos números racionais ! Substituindo de volta, temos y = z/21 = 1/42, -1/63 e -1/126, e finalmente

x = cos θ/3 = y)219( = 14/)213( , 7/)21(− , e 14/)21(− . Para cada um desses

valores encontramos o valor de sen θ/3 pela identidade 3/cos13/ 2 θθ −±=sen ;

teremos 14/)7(3/ =θsen , 7/)72( , e 14/)75(− (o último é negativo porque o ponto correspondente está no 3º quadrante do plano complexo). Ainda temos

21)2121( 3/13 ==r . As três raízes procuradas então serão

( )[ ] ( )ii 392

114/714/21321 +=+ ,

( )[ ] ii 337/727/2121 +−=+− ,

e

( )[ ] ( )ii 3532

114/7514/2121 −−=−− ;

elas são mostradas na figura 27.

É claro que o modo “natural” de se manipular o problema seria o de se resolver a equação (1) diretamente, usando a fórmula que leva o nome do italiano Girolamo Cardano (1501-1576), mas que na verdade foi desenvolvida de forma independente por dois outros italianos, Scipione del Ferro (circa 1465-1526) e Nicolo Tartaglia (circa 1506-1557).5

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80 ABRAHAM DE MOIVRE

Fig. 27. As três raízes de 81 + √-2700.

A fórmula de Cardano é análoga à familiar fórmula quadrática para a resolução de equações do segundo graua, mas é consideravelmente mais complicada. Ela é baseada no fato de que qualquer equação cúbica em sua forma normal y3 + ay2 + by + c = 0 (em que o coeficiente do primeiro termo = 1) pode ser reduzida à forma x3 + px + q = 0 (sem termo quadrático), pela substituição y = x – a/3, de forma que teremos p = b – a2/3 e q = 2a3/27 – ab/3 + c. Como a equação (1) também não tem termo quadrático, precisamos apenas dividi-la pelo coeficiente de seu primeiro termo, chegando a x3 + px + q = 0, em que p = –3/4 e q = – (9√21)/196. A fórmula de Cardano agora requer

o cálculo das quantidades P = 3 32 27/4/2/ pqq ++− e Q = 3 32 27/4/2/ pqq +−− .

Substituindo os valores de p e q nessas expressões teremos, após consideráveis

simplificações, P,Q = ( )3 770216314

1i±− . Precisamos então encontrar a raiz cúbica

dos números complexos ( )i7702163 ±− , e para tanto iremos expressá-la na forma

polar R cis φ. Temos R = [ ] ( )227702163 +− = 343 e φ = ± tan-1 ( ) ( )2163/770 =

± tan-1 ( ) 27/310 – exatamente o mesmo ângulo que havíamos encontrado no primeiro cálculo! Foi isto que De Moivre quis dizer com sua enigmática declaração, “Dessa forma, o resultado sempre irá retornar à mesma questão que foi originalmente proposta”.

Poderia um matemático do calibre de De Moivre negligenciar o fato de que seu próprio exemplo poderia ser resolvido sem usar uma tábua de senos ? Aparentemente sim. Mesmo Einstein uma vez ignorou a possibilidade de que o denominador em uma de suas equações poderia ser zero. Isto foi em 1917, quando ele aplicou sua teoria da relatividade geral a questões cosmológicas. Um jovem astrônomo russo, Aleksander Friedmann, observou que este equívoco aparentemente sem grande importância, implicava em, nada menos, na conclusão de que o universo estava se expandindo !6

a No Brasil a fórmula para resolução da equação do 2º grau é conhecida como “fórmula de Bhaskara”. Na verdade, Bhaskara a copiou de outro matemático hindu, chamado Sridhara. Na literatura estrangeira não existe referência a Bhaskara, como no original deste livro (N.T.).

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ABRAHAM DE MOIVRE 81

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

NOTAS E FONTES

1 Florian Cajori, A History of Mathematics (1893, 2nd ed, New York: McMillian, 1919) p. 230 [edição brasileira – Uma História da Matemática, Editora Ciência Moderna, 2007].

2 Este papel também traz a primeira declaração da fórmula para a distribuição normal. Veja David Eugene Smith, A Source Book in Mathematics (1929; rpt. New York: Dover, 1959), pp. 566-568.

3 Desta relação e de sua correlata,

nn nseninnseninseni /1/1 )(cos2

1)(cos

2

1φφφφφ −−+= ,

temos, após adições, nnseninseni /1)(coscos φφφφ +=+ , e daí o teorema de De Moivre segue

imediatamente. Para a prova de Euler de que a fórmula é válida para qualquer n real, veja Smith, pp. 452-454.

4 Ibid., pp. 447-450. Duas das raízes que aparecem aqui, i)35(2/3 +− e 2/)3(3 i+− , estão claramente

erradas, provavelmente por um erro de impressão.

5 A história da equação cúbica é longa e repleta de controvérsias e intrigas. Veja David Eugene Smith, History of Mathematics (1925; rpt. New York: Dover, 1953), vol. 2, pp. 454-466; Victor J. Katz, A History of Mathematics: An Introduction (New York: HarperCollins, 1993), pp. 328-337; e David M. Burton, History of Mathematics: An Introduction (Dubuque, Iowa: Wm. C. Brown, 1995), pp. 288-299.

6 Roanld W. Clark, Einstein: The Life and Times (1971; rpt. New York: Avon Books, 1972), p.70.

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6 Dois Teoremas da Geometria

É a glória da geometria o fato de que, a partir de poucos princípios, sermos capazes de realizar tanto.

- Sir Isaac Newton, prefácio ao Principia.

A proposição 20 do livro III dos Elementos de Euclides diz:

Em todo círculo o ângulo que é feito no centro é o dobro do ângulo que está na circunferência, tendo cada um destes ângulos por base a mesma porção da circunferência.1

Em linguagem mais comum, a proposição diz que um ângulo inscrito em uma circunferência (isto é, um ângulo cujos vértices estejam sobre a circunferência) é igual à metade do ângulo central que subentende a mesma corda (fig. 28). Dois corolários deste teorema seguem imediatamente: (1) Dada uma circunferência, todos os ângulos inscritos que subentendem a mesma corda são iguais (veja a proposição 21 de Euclides; veja fig. 29); e (2) Todos os ângulos inscritos que subentendem o diâmetro são ângulos retos (fig. 30). Diz-se que esse último resultado foi demonstrado por Tales (embora os babilônios já soubessem disso mil anos antes dele) e pode ser um dos primeiros teoremas a ter uma demonstração.

Este simples teorema, com seus dois corolários, é um tesouro escondido da informação trigonométrica, e teremos várias ocasiões para usá-lo no decorrer deste livro. Vamos usá-lo aqui para provar a lei dos senos. A figura 31 mostra um triângulo ABC inscrito em uma circunferência com centro O e raio r. Nós temos γ22 =∠=∠ ACBAOB .

Trace a bissetriz de AOB perpendicular a AB. Então sen γ = (c/2)/r, e c/sen γ = 2r = constante. Uma vez que a razão c/sen γ é constante (isto é, tem o mesmo valor, independentemente de c e γ), teremos

r

sen

c

sen

b

sen

a2===

γβα. (1)

Esta prova não é apenas um modelo de simplicidade, ela também fornece a lei dos senos em sua forma completa; a prova mais comum, baseada na divisão de um triângulo em dois triângulos retângulos, ignora completamente a expressão 2r.

Page 89: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

84 CAPÍTULO 6

Fig. 28. Proposição 20 do livro II dos

Elementos de Euclides.

Fig. 28. Proposição 21 do livro II dos

Elementos de Euclides.

Fig. 30. Todos os ângulos inscritos

que subentendem o diâmetro são

ângulos retos.

Page 90: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

DOIS TEOREMAS DA GEOMETRIA 85

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Fig. 31. A lei dos senos: o caso

acutângulo.

Na figura 31 o ângulo γ é agudo, o que significa que o centro da circunferência está dentro do triângulo. Se γ for obtuso (fig. 32), o centro estará fora do triângulo, de forma que o arco AB é maior que a metade da circunferência. Então o ângulo interno do triângulo AOB em O é γ’ = 360º – 2γ. Trace novamente a bissetriz perpendicular de O até AB: temos que sen γ’/2 = (c/2)/r. Mas sen γ’/2 = sen (180º – γ) = sen γ, e então novamente chegamos a c/sen γ = 2r, como anteriormente.

Fig. 32. A lei dos senos: o caso

obtusângulo.

Nós podemos retirar ainda mais informações desse teorema. A figura 33 mostra o círculo unitário e um ponto P sobre ele. Seja 2θ o ângulo entre OP e semi-eixo x positivo. Então θ=∠ORP , em que R é o ponto com coordenadas (–1,0). Aplicando a lei dos senos ao triângulo ORP, teremos RP/sen (180º – 2θ) = OP/sen θ. Mas sen (180º – 2θ) = sen 2θ e OP = 1, e RP/sen 2θ = 1/sen θ, de onde teremos

sen 2θ = RP sen θ. (2)

Page 91: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

86 CAPÍTULO 6

Fig. 33. Prova geométrica da

fórmula para o dobro de um

ângulo.

Agora trace a bissetriz perpendicular OS de O a RP; no triângulo retângulo ORS temos cos θ = RS/RO = (RP/2)/RO = RP/2, então RP = 2 cos θ. Substituindo na equação (2), temos

sen 2θ = 2 sen θ cos θ, (3)

que é a fórmula do seno do dobro de um arco. Novamente, traçando a perpendicular PQ de P até o eixo x, teremos

cos 2θ = OQ = RQ – RO = RP cos θ – 1

= (2 cos θ) · cos θ – 1 = 2 cos2 θ – 1, (4)

que é a fórmula do cosseno do dobro de um arco. Finalmente, tendo demonstrado as fórmulas para o dobro de um arco, podemos chegar às fórmulas do arco-metade simplesmente substituindo 2θ por φ.

Retornemos por um momento para a nossa prova da lei dos senos. Como três pontos não colineares determinam uma única circunferência, toso triângulo pode ser inscrito em exatamente uma circunferência. Então, podemos tratar os ângulos do triângulo como ângulos inscritos e os lados como cordas da circunferência. Assim a lei dos senos é realmente um teorema sobre circunferências. Se atribuirmos o valor 1 ao diâmetro da circunferência circunscrita e a chamarmos “círculo unitário”, então a lei dos senos pode ser expressa simplesmente como

a = sen α, b = sen β, c = sen γ,

ou seja, cada lado de um triângulo inscrito em um círculo unitário é igual ao seno do ângulo oposto (fig. 34). Podemos, de fato, definir o seno de um ângulo como o comprimento da corda que ele subentende em um círculo unitário, e esta definição pode ser tão boa quanto a definição tradicional do seno como a razão entre dois lados de um triângulo retângulo. (E de fato pode ter a vantagem de que o ângulo pode variar de 0º a 180º - o dobro da amplitude no triângulo retângulo.)

Page 92: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

DOIS TEOREMAS DA GEOMETRIA 87

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Fig. 34. Lei dos senos no “círculo

unitário”.

Como vimos no capítulo 2, esta foi a interpretação que Ptolomeu usou em sua tábua de cordas.

◊ ◊ ◊

No Almagesto de Ptolomeu encontramos a seguinte proposição, conhecida como teorema de Ptolomeu:2

O retângulo contido nas diagonais de um quadrilátero qualquer inscrito em uma circunferência é igual à soma dos retângulos contidos nos pares de lados opostos.3

Qual é o significado dessa sentença obscura? Para começar, os gregos interpretavam um número como o comprimento de um segmento de reta, e o produto de dois números como a área de um retângulo cujos lados tenham os números dados como comprimento. Então, “O retângulo contido nas diagonais” significa a área de um retângulo cujos lados são diagonais de um quadrilátero inscrito, com interpretação similar para “os retângulos contidos nos pares de lados opostos.” Encurtando, “um retângulo contido em” significa “produto”. O teorema de Ptolomeu pode então ser formulado desse modo: Num quadrilátero inscrito em uma circunferência, o produto das diagonais é igual à soma dos produtos dos lados opostos. Em referência à figura 35, isto significa que:

AC · BD = AB · CD + BC · DA (5)

Como esse teorema não é tão conhecido como outros da geometria elementar, vamos mostrar a demonstração de Ptolomeu: Usando um dos lados, digamos AB, como o lado inicial, construímos o ângulo ABE igual ao ângulo DBC. Agora os ângulos CAB e CDB também são iguais, com corda BC em comum.

Page 93: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

88 CAPÍTULO 6

Fig. 35. Teorema de Ptolomeu.

Então os triângulos ABE e DBC são congruentes, tendo dois pares de ângulos iguais. Assim AE/AB = DC/DB, e temos

AE · BD = AB · DC. (6)

Se agora adicionarmos o ângulo EBD aos dois lados da equação DBCABE ∠=∠ , teremos EBCABD ∠=∠ . Mas os ângulos BDA e BCE também são iguais, tendo a corda AB em comum. Então, os triângulos ABD e EBC são congruentes, e AD/DB = EC/CB e então

EC · DB = AD · CB. (7)

Finalmente, somando as equações (6) e (7), teremos (AE + AC)·DB = AB ·DC + AD · CB; substituindo AE + EC por AC, teremos o resultado desejado (note que os lados não são segmentos orientados, ou seja, BD = DB, etc.).

Se fizermos com que o quadrilátero ABCD seja um retângulo (fig. 36), então todos os quatro vértices formam ângulos retos e, conseqüentemente, AB = CD, BC=DA, e AC = BD. A equação (5) então diz que

(AC)2 = (AB)2 + (BC)2 (8)

que é o teorema de Pitágoras! Esta demonstração do mais celebrado teorema da matemática aparece como a de número 66 das 256 provas no clássico livro de Elisha Scott Loomis, The Pythagorean Proposition.4

Fig. 36. O teorema de Pitágoras.

Page 94: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

DOIS TEOREMAS DA GEOMETRIA 89

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Qual é a importância trigonométrica do teorema de Ptolomeu? Para o caso especial em que ABCD é um retângulo, AC é o diâmetro de nosso “círculo unitário”, então AC = 1. Além disso, denotando o ângulo BAC como α, temos AB = cos α, BC = sen α. A equação (8) então se torna

1 = cos2 α + sen2 α,

que é o equivalente trigonométrico do teorema de Pitágoras. E ainda não acabou. Seja ABCD um quadrilátero qualquer no qual uma diagonal, digamos AC, coincida com o diâmetro (fig. 37).

Fig. 37. Prova geométrica de sen (α +β) = sen α cos β + cos α sen β.

Então ABC∠ e ADC∠ são ângulos retos. Seja α=∠BAC , β=∠CAD . Temos então

BC = sen α, AB = cos α, CD = sen β, AD = cos β, e BD = sen (α + β), e então pelo teorema de Ptolomeu,

1 · sen (α + β) = sen α · cos β + cos α · sen β,

que é a fórmula do sena da soma! (A fórmula do seno da diferença, sen (α – β) = sen α · cos β – cos α · sen β, pode ser obtida considerando um quadrilátero qualquer em que um lado coincide com o diâmetro; veja fig. 38.)

Fig. 37. Prova geométrica de sen (α –β) = sen α cos β – cos α sen β.

Page 95: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

90 CAPÍTULO 6

Assim, é possível que a mais importante fórmula da trigonometria já fosse conhecida por Ptolomeu, que a teria utilizado com sucesso para calcular sua tábua de cordas; e também é bem possível que ela tenha sido descoberta por Hiparco, dois século e meio antes. O velho provérbio ainda é verdade: “Não há nada de novo sob o sol.”

NOTAS E FONTES

1 Euclid, The Elements, traduzido para o inglês com introdução e comentários por Sir Thomas Heath (Annapolis: St. John’s College Press, 1947), vol.2, pp.46-49 [edição em português na internet: Elementos de Euclides, Portal Domínio Público: www.dominiopublico.gov.br].

2 Tobias Dantzig, em seu livro The Bequest of the Greeks (New York: Charles Scribner’s Sons, 1955), p. 173, sugere que o teorema pode ter sido descoberto por Apolônio, que viveu três séculos antes de Ptolomeu.

3 Euclid, The Elements, vol.2, pp. 225-228.

4 Loomis, The Pythagorean Proposition (1940; rpt. Washington, D.C.: The National Council of Teachers of Mathematics, 1968), p. 66. Nenhuma das 256 demonstrações é baseada em trigonometria: “Não existem provas trigonométricas [do teorema de Pitágoras], porque todas as fórmulas da trigonometria são elas próprias baseadas na verdade do teorema de Pitágoras... A trigonometria é porque o teorema de Pitágoras é” (p. 244). Entre as provas, existe uma (número 231) proposta por James A. Garfield em 1876, cinco anos antes de ele se tornar presidente dos estados Unidos.

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7 Epiciclóides e Hipociclóides

A teoria dos epiciclos [do movimento dos planetas], na clara definição dada por Ptolomeu, sobressai como o mais desenvolvido produto da astronomia antiga.

- Anton Pannekoek, A History of Astronomy.

Na década de 1970, surgiu um intrigante brinquedo educacional que rapidamente se tornou uma febre: o espirógrafo. Ele consiste em um conjunto de pequenas “rodas” de plástico, de tamanhos variados, com dentes em suas bordas interna e externa (fig. 39). Havia pequenos buracos em cada roda, a diferentes distâncias do centro. Posiciona-se um dos anéis em uma folha de papel, coloca-se uma das rodas em contato, de forma a encaixar os dentes, e coloca-se a ponta de uma caneta em um dos pequenos buracos. Ao mover a roda ao redor do anel, uma curva é traçada no papel – uma hipociclóide se a roda se mover na parte interna do anel, ou uma epiciclóide se ela se mover na parte externa do anel (os nomes vêm dos prefixos gregos hipo = sob, e epi = sobre). O formato exato da curva depende dos raios do anel e da roda (cada um expresso em termos do número de dentes em sua borda); mais precisamente, da razão entre os raios.

Vamos encontrar as equações paramétricas da hipociclóide, a curva descrita por um ponto em um círculo de raio r que rola sem deslizar na parte interna de um círculo fixo de raio R (fig. 40). Seja O e C os centros dos círculos fixo e móvel, respectivamente, e P um ponto do círculo móvel. Quando o círculo móvel gira um ângulo φ no sentido horário, C descreve um arco de ângulo θ no sentido anti-horário em relação a O. Assumindo que o movimento começa quando P está em contato com o círculo fixo no ponto Q, escolhemos o sistema de coordenadas com origem em O e eixo x passando por Q. As coordenadas de P em relação a C são (r cos φ, –r sen φ) (o sinal de menos na segunda coordenada ocorre porque φ é medido no sentido horário), enquanto as coordenadas de C em relação a O são ((R – r) cos θ, (R – r) sen θ). Então as coordenadas de P em relação a O são:

x = (R – r) cos θ + r cos φ, y = (R – r) sen θ – r sen φ (1)

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92 CAPÍTULO 7

Fig. 39. Espirógrafo.

Fig. 40. Gerando uma hipociclóide.

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EPICICLÓIDES E HIPOCICLÓIDES 93

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Mas os ângulos θ e φ não são independentes: com a continuidade do movimento, os arcos do círculo fixo e do círculo móvel que estão em contato (arcos QQ’ e Q’P na fig. 40) devem ser de igual medida. Esses arcos medem Rθ e r(θ + φ), respectivamente, e então temos Rθ = r(θ + φ). Usando esta relação para expressar φ em termos de θ, teremos φ = [(R – r)/r]θ, e as equações (1) se tornam

x = (R – r) cos θ + r cos [(R – r)/r]θ ,

y = (R – r) sen θ – r sen [(R – r)/r]θ. (2)

As equações (2) são as equações paramétricas da hipociclóide, o ângulo θ sendo o parâmetro (se o círculo móvel girasse com velocidade angular constante, θ seria proporcional ao tempo decorrido desde o início do movimento). A forma da curva depende da razão R/r. Se essa razão for uma fração reduzida m/n (sem divisor comum), a curva terá m extremidades, e estará completamente traçada após mover n vezes o círculo móvel ao redor da extremidade interna. Se R/r for irracional, a curva nunca se fechará, embora executar várias vezes o movimento faça com que a curva quase se feche.

Para alguns valores de R/r a curva resultante poderá nos surpreender. Por exemplo, quando R/r = 2, as equações (2) se tornam

x = r cos θ + r cos θ = 2r cos θ,

y = r sen θ – r sen θ = 0. (3)

O fato de que sempre tenhamos y = 0 significa que P se move ao longo do eixo x apenas, traçando o diâmetro interno do anel para trás e para a frente. Então podemos usar duas circunferências de razão 2:1 para traçar uma linha reta. No século 19, o problema de se converter movimento circular para retilíneo e vice-versa era crucial para a construção de máquinas a vapor: o movimento de vai-e-vem do pistão tinha que ser convertido para a rotação das rodas. A hipociclóide 2:1 foi uma das numerosas soluções propostas.

Ainda mais interessante é o caso R/r = 4, para o qual as equações (2) se tornam

x = 3r cos θ + r cos 3θ ,

y = 3r sen θ – r sen 3θ. (4)

Para obter a equação retangular da curva – a equação com as coordenadas x e y de P – precisamos eliminar o parâmetro θ entre as duas equações. Normalmente isto iria requerer tediosas manipulações algébricas, e a equação resultante – se ela puder ser obtida, de qualquer maneira – pode ser muito complicada. Mas neste caso um par de identidades trigonométricas vêm nos ajudar – as identidades cos3 θ = (3 cos θ + cos 3θ)/4 e sen3

θ = 3 sen θ – sen θ)/4. 1 As equações (4) então se tornam

x = 4r cos3 θ, y = 4r sen3 θ. (4)

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94 CAPÍTULO 7

Extraindo a raiz cúbica de cada equação, elevando ao quadrado e somando, finalmente encontramos

x2/3 + y2/3 = (4r)2/3 = R2/3. (5)

A hipociclóide descrita pela equação (5) é chamada de astróide; tem o formato de uma estrela (daí o nome) com quatro “pontas” localizadas em θ = 0º. 90º, 180º e 270º. A astróide possui algumas propriedades notáveis. Por exemplo, todas as suas tangentes compreendem um mesmo comprimento entre os eixos, sendo R este comprimento. E inversamente, se um segmento de reta de comprimento fixo igual a R e extremidades sobre os eixos x e y puder assumir todas as posições possíveis, o envelope (contorno) formado por todos esses segmentos de reta – a tangente a cada um deles – será uma astróide (fig. 41).

Fig. 41. Astróide formada por suas

tangentes.

Assim, a região ocupada por uma escada apoiada em uma parede, podendo ocupar todas as posições possíveis, tem o formato de uma astróide. Surpreendentemente, a astróide é também o envelope da família de elipses x2/a2 + y2/(R – a2) = 1, sendo R a soma dos semi-eixos maior e menor da elipse (fig. 42).2

Fig. 42. Astróide formada por elipses

tangentes.

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EPICICLÓIDES E HIPOCICLÓIDES 95

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

A equação cartesiana da astróide (equação 5) faz com que seja particularmente fácil calcular algumas propriedades métricas dessa curva. Por exemplo, usando a fórmula do Cálculo para encontrar o comprimento de um arco, é possível mostrar que a circunferência da astróide é igual a 6R (e para nossa surpresa, apesar do envolvimento de círculos para gerar a astróide, sua circunferência não depende da constante π). A área delimitada pela astróide é 3πR2/8, ou três oitavos da área do círculo fixo.3

◊ ◊ ◊

Em 1725 Daniel Bernoulli (1700-1782), membro da venerável família Bernoulli de matemáticos descobriu uma bela propriedade da hipociclóide conhecida como teorema da dupla geração: um círculo de raio r rolando no interior de um círculo fixo de raio R gera a mesma hipociclóide que aquela gerada por um círculo de raio (R – r) rolando no interior do mesmo círculo fixo. Se chamarmos a primeira hipociclóide de [R, r] e a segunda de [R, R – r], o teorema diz que [R, r] = [R, R – r]. Observe que os dois círculos móveis são complementares em relação ao círculo fixo: a soma de seus diâmetros equivale ao diâmetro do círculo fixo (fig. 43).

Fig. 43. Teorema da dupla geração de

Bernoulli.

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96 CAPÍTULO 7

A fim de provar esse teorema, vamos aproveitar uma simetria peculiar nas equações (1). Substituindo r’ = R – r nessas equações, teremos

x = r’ cos θ + (R – r’) cos φ, y = r’ sen θ – (R – r’) sen φ.

Mas os parâmetros θ e φ estão relacionados pela equação (R – r) θ = rφ. Utilizando essa equação para expressar θ em termos de φ, teremos θ = rφ/(R – r) = [(R – r’)/r’] φ. As equações (1) então se tornam

x = r’ cos [(R – r’)/r’] φ + (R – r’) cos φ ,

y = r’ sen [(R – r’)/r’] φ – (R – r’) sen φ , (6)

As equações (6), exceto pelo fato de que r’ substitui r, são muito similares às equações (2). De fato, podemos fazer com que sejam idênticas, apenas alterando a ordem dos termos em cada equação:

x = (R – r’) cos φ + r’ cos [(R – r’)/r’] φ,

y = – (R – r’) sen φ + r’ sen [(R – r’)/r’] φ,

A primeira dessas equações é exatamente idêntica à primeira das equações (2), com r’ substituindo r e θ e φ trocados.4 Mas a segunda equação ainda traz uma incômoda troca de sinais: queríamos o primeiro termo positivo e o segundo negativo. Aqui novamente um par de identidades trigonométricas vêm nos ajudar, as identidades cos (– φ) = cos φ e sen (– φ) = – sen φ. Vamos então mudar nosso parâmetro mais uma vez, substituindo φ por ψ = – φ; isto não afeta os termos da primeira equação, mas troca os sinais dos termos da segunda equação:

x = (R – r’) cos ψ + r’ cos [(R – r’)/r’] ψ,

y = (R – r’) sen ψ – r’ sen [(R – r’)/r’] ψ, (7)

que são idênticas às equações (2). Isto completa a prova.5

Como conseqüência deste teorema temos, por exemplo, [4r, r] = [4r, 3r] – ou, equivalente, [R, R/4] = [R, 3R/4] – mostrando que a astróide descrita pela equação (5) também pode ser gerada por um círculo de raio 3R/4 rolando na parte interna de um círculo fixo de raio R.

◊ ◊ ◊

As equações paramétricas da epiciclóide – a curva gerada por um ponto em um círculo de raio r rolando na parte externa de um círculo fixo de raio R – são análogas às da hipociclóide (equações (2)):

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EPICICLÓIDES E HIPOCICLÓIDES 97

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x = (R + r) cos θ – r cos [(R + r)/r]θ ,

y = (R + r) sen θ – r sen [(R + r)/r]θ. (8)

A presença de (R + r) no lugar de (R – r) é auto-explicativa, mas observe o sinal negativo no segundo termo da equação em x; ele é devido à rotação do círculo móvel e do movimento de seu centro, que estão agora na mesma direção.

Assim como a hipociclóide, a forma da epiciclóide depende da razão R/r. Para R/r = 1 as equações (8) se tornam x = r (2 cos θ – cos 2θ), y = r (2 sen θ – sen 2θ), e a curva resultante, com a forma de um coração, é chamada de cardióide (fig. 44). Ela tem uma única extremidade, localizada no ponto de contato entre P e o círculo fixo. Sua circunferência mede 16R e sua área 6πR2. 6

Mais um caso deve ser considerado: um círculo de raio r rolando na parte externa de um círculo de raio R tocando-o internamente (fig. 45). 7 Este caso é similar ao da hipociclóide, exceto pelos rolamentos dos círculos fixo e móvel que estão invertidos. As equações paramétricas neste caso são

x = r cos φ – (r – R) cos θ, y = r sen φ – (r – R) sen θ.

(note que agora r > R) em que θ e φ são relacionados pela equação (r – R)θ = rφ. Expressando θ em termos de φ e fazendo a substituição r’ = r – R, essas equações se tornam

x = (R + r’) cos φ – r’ cos [(R + r’)/r’] φ ,

y = (R + r’) sen φ – r’ sen [(R + r’)/r’] φ. (9)

As equações (9) são idênticas às equações (8), exceto que r é substituído por r’ e θ por φ.

Fig. 44. Cardióide.

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98 CAPÍTULO 7

Fig. 45. Um círculo maior rolando na

parte externa de um círculo menor,

tocando-o internamente.

A curva subseqüente é então idêntica à epiciclóide gerada por um círculo de raio r’ = r - R rolando na parte externa de um círculo de raio R tocando-o externamente. E, reciprocamente, a última epiciclóide é idêntica à curva gerada por um círculo de raio r = R + r’ rolando na parte externa de um círculo fixo de raio R tocando-o internamente. Este é o teorema da dupla geração das epiciclóides. Se introduzirmos os símbolos { } e ( ) para designar as epiciclóides “externas” e “internas”, respectivamente, o teorema diz que {R, r} = (R, R + r) (retiramos o apóstrofo sobre o r). Então para a cardióide temor {R, R} = (R, 2R).

◊ ◊ ◊

O estudo das epiciclóides remonta aos gregos, que os utilizaram para explicar um intrincado quebra-cabeça celestial: o casual movimento retrógrado dos planetas, quando vistos da Terra. Na maior parte do tempo, o movimento dos planetas no Zodíaco ocorre de oeste para leste; mas ocasionalmente os planetas parecem suspender seu movimento, inverter o sentido do movimento para leste-oeste, parar novamente, e finalmente retomar seu curso normal. Para a mente estética dos gregos, a única curva imaginável pela qual os corpos celestes poderiam se mover era a circunferência – o símbolo da perfeição. Mas um círculo não admite um movimento retrógrado, e os gregos assumiram então que os planetas se moviam na verdade segundo um pequeno círculo, o epiciclo, cujo centro, por sua vez, se move ao longo de um círculo principal, o deferente (fig. 46). Quando nem mesmo este modelo podia descrever adequadamente o movimento aparente dos planetas, eles adicionavam mais e mais epiciclos, até que o sistema ficou tão abarrotado de epiciclos que se tornava inviável.

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EPICICLÓIDES E HIPOCICLÓIDES 99

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Fig. 46. Epiciclos planetários. De uma gravura de 1798 (coleção do autor).

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100 CAPÍTULO 7

Ainda assim, o sistema realmente descrevia os fatos observáveis com boa aproximação, e foi a primeira tentativa realmente matemática de explicar o movimento dos corpos celestes.

Foi somente quando Copérnico publicou sua teoria heliocêntrica, em 1543, que a necessidade dos epiciclos desapareceu: com a Terra orbitando o sol, o movimento retrógrado foi imediatamente explicado como sendo conseqüência do movimento relativo do planeta, visto de uma Terra móvel. E então quando o astrônomo dinamarquês Olaus Roemer (1644-1710), famoso por ter sido o primeiro a determinar a velocidade da luz, resolveu estudar as curvas cicloidais em 1674, não havia nenhum interesse em corpos celestes, mas um problema bem mundano – o funcionamento de engrenagens mecânicas.

Com os modernos computadores e calculadoras gráficas, é possível traçar mesmo as mais complexas curvas em segundos. Mas há apenas uma ou duas gerações, essa tarefa só era possível com o uso de dispositivos mecânicos; de fato, inúmeros instrumentos engenhosos foram inventados para desenhar famílias específicas de curvas (figs. 47 e 48). 8

Fig. 47. Elipsógrafo. Do catálogo de Keuffel & Esse, 1928.

Freqüentemente esses dispositivos envolviam mecanismos altamente complexos, mas existia certo fascínio em ver as engrenagens se movendo e traçando a curva esperada; você podia, literalmente, ver a máquina trabalhando. Com o mundo mecânico cedendo passagem à era da eletrônica, a eficiência triunfa sobre os custos da intimidade científica.9

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EPICICLÓIDES E HIPOCICLÓIDES 101

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Fig. 48. Elipsógrafo. Do catálogo de instrumentos matemáticos de F. W. Devoe, circa 1900.

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102 CAPÍTULO 7

NOTAS E FONTES

1 Essas identidades são obtidas pela solução das fórmulas de ângulo-triplo cos 3θ = 4 cos3

θ – 3 cos θ e sen 3θ = 3 sen θ – 4 sen3 θ para cos3 θ e sen3 θ, respectivamente.

2 Para provar isso, considere um ponto fixo P(x, y) em um segmento de reta de comprimento R, cujas extremidades estão livres para se mover ao longo dos eixos x e y (fig. 49). Se P divide o segmento de reta em duas partes de comprimentos a e b, temos cos θ = x/a, sen θ = y/b. Elevando ao quadrado e somando, teremos x2/a2 + y2/b2 = 1, a equação de uma elipse com semi-eixo maior a e semi-eixo menor R – a. Então, quando se permite que o segmento de reta assuma todas as posições possíveis, o ponto P irá traçar a elipse (este é o princípio do dispositivo que traça elipses, mostrado na fig. 47). Para diferentes posições de P ao longo do segmento de reta (isto é, quando a razão a/b assume diferentes valores, enquanto o valor de a + b é mantido constante) diferentes elipses serão traçadas, cujo envelope comum será a astróide x2/3 + y2/3 = R2/3.

3 Para outras propriedades da astróide, veja Robert C. Yates, Curves and Their Properties (1952; rpt. Reston, Virginia: National Council of Teachers of Mathematics, 1974), pp. 1-3.

4 Observe que estamos livres para substituir um parâmetro pelo outro, cuidando para que o novo parâmetro faça com que x e y cubram a mesma gama de valores que o parâmetro antigo. Neste caso, especificamente, isto é assegurado pela periodicidade das funções seno e cosseno.

5 O teorema da geração dupla pode também ser provado geometricamente; veja Yates, Curves, pp. 81-82.

6 A familiar forma polar da equação da cardióide, ρ = r (1 – cos θ), quando a extremidade da cardióide se encontra na origem (aqui θ denota o ângulo polar entre o semi-eixo x positivo e o segmento OP; este não deve ser confundido com o ângulo θ que aparece nas equações (8)). Para propriedades adicionais da cardióide, veja Yates, Curves, pp. 4-7.

7 Eu estou em débito com Robert Langer da Universidade de Wisconsin – Eau Claire por ter chamado minha atenção para este caso.

8 Veja H. Martyn Cundy e A. P. Rollett, Mathematical Models (London: Oxford University Press, 1961), capítulos 2 e 5.

9 O visitante do Museu da Ciência e Indústria em Chicago irá encontrar um interessante conjunto de engrenagens mecânicas, modestamente posicionado junto a uma das escadas e quase ofuscado pelas atrações maiores que enchem as monstruosas salas do museu. Movendo uma pequena manivela com a mão, é possível ativar as engrenagens e observar o movimento subseqüente – uma silenciosa recordação de uma era passada.

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Maria Agnesi e Sua “Bruxa”

Ainda hoje, as mulheres constituem apenas cerca de dez por cento do número total de matemáticos nos Estados Unidos;1 este número é ainda menor ao redor do mundo. Nas gerações passadas, o preconceito social tornava praticamente impossível a uma mulher seguir carreira científica, e o número total de mulheres matemáticas até o século XX pode ser contado nos dedos das mãos. Três nomes vêm à tona: Sofia Kovalevskaya [Sonya Kovalevsky] (1850-1891) da Rússia, Emmy Noether (1882-1935), nascida na Alemanha, tendo emigrado para os Estados Unidos, e Maria Agnesi da Itália.2

Maria Gaetana Agnesi (pronuncia-se “Anhési”) nasceu em Milão em 1718, onde passou a maior parte de sua vida.3 Se pai, Pietro, próspero professor de matemática na Universidade de Bolonha, encorajou-a a estudar ciências. Para promover a educação de Maria Gaetana, ele montou em sua casa uma espécie de “salão cultural”, para onde iriam convidados de toda a Europa, muitos deles especialistas em vários campos. Diante desses convidados, a jovem Maria demonstrava seus talentos intelectuais, oferecendo-lhes uma variedade de assuntos que seriam defendidos num debate. Os assuntos incluíam lógica, filosofia, mecânica, química, botânica, zoologia e mineralogia. Nos intervalos, sua irmã Maria Teresa, que era compositora e harpista, entretinha os convidados com sua música. A cena lembra Leopold Mozart expondo os talentos musicais do jovem Amadeus nos salões dos endinheirados de Salzburgo, com a irmã de Mozart, Nannerl, tocando ao fundo. Maria Gaetana era também versada em línguas: aos cinco anos ela já era fluente em francês, e aos nove ela traduziu e publicou em latim um longo manifesto defendendo a educação superior para mulheres. Ela ainda aprendeu grego, alemão, espanhol e hebraico, sendo capaz de defender suas teses na língua nativa de seus convidados. Mais tarde ela juntou 190 de suas teses e as publicou em um livro, Proportiones Philosophicae (1738); infelizmente, nenhum de seus pensamentos matemáticos foi incluído nesse trabalho.

Por volta do quatorze anos, ela já resolvia problema complicados em geometria analítica e física. Aos dezessete, ela começou a desenvolver seus comentários acerca do trabalho de Guillaume de L´Hospital, Traité analytique des sections coniques; infelizmente, seus comentários jamais foram publicados. Já nessa época ela estava farta da exposição pública de seus talentos; ela se retirou da vida pública para dedicar-se inteiramente à matemática. Ela passou os dez anos seguintes escrevendo sua maior obra, Instituzioni analytiche ad uso della gioventu italiana (Instituições analíticas para uso da juventude italiana). Esse trabalho foi publicado em 1748 em dois volumes muito grandes, com o primeiro tratando de álgebra e o segundo de análise (ou seja, processos infinitos). Seu objetivo era mostrar uma completa e integrada apresentação desses assuntos como eram então conhecidos (devemos lembrar que em meados do século dezoito o Cálculo ainda estava em um estágio de desenvolvimento, e novos procedimentos e teoremas eram constantemente adicionados). Agnesi escreveu seu livro em italiano, ao invés de latim, a linguagem escolar da época, a fim de que se tornasse acessível a tantos “jovens italianos” quanto possível.

Page 109: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

104 MARIA AGNESI E SUA “BRUXA”

A Instituzioni trouxe imediato reconhecimento a Agnesi e foi traduzido em vários idiomas. John Colson (f. 1760), professor lucasianoa da Universidade de Cambridge, que em 1736 publicou a primeira exposição completa do Método das Fluxões e Séries Infinitas de Newton (seu cálculo diferencial), traduziu o livro de Agnesi para o inglês. Esse trabalho ele fez já em idade avançada, aprendendo italiano especificamente para essa tarefa, “de modo que a juventude britânica recebesse os benefícios da obra tanto quanto a juventude italiana”. Sua tradução foi publicada em Londres em 1801.

Em reconhecimento a seus feitos, o papa Bento XIV, em 1750, indicou Agnesi como professora da Universidade de Bolonha. Mas ela nunca ensinou realmente lá, sendo a indicação meramente honorária. Após a morte de seu pai em 1752, ela gradualmente foi deixando as atividades científicas, dedicando seus anos remanescentes aos trabalhos religiosos e sociais. Ela também cuidou dos vinte e um filhos de seu pai (de três casamentos) e direcionou sua educação, ao mesmo tempo em que cuidava dos pobres de sua comunidade. Ela morreu em 1799 em Milão, aos 81 anos.

◊ ◊ ◊

É irônico que o nome de Agnesi seja hoje lembrado principalmente por uma curva que ela investigou, mas não foi a primeira a estudar: a bruxa de Agnesi (ou feiticeira de Agnesi). Seja um círculo de raio a e centro em (0, a) (fig. 50).

Fig. 50. A Bruxa de Agnesi. 

                                                            a  A cátedra de professor lucasiano da Universidade de Cambridge foi criada por Henry Lucas em 1663. Já foi ocupada, entre outros, por Isaac Newton, Charles Babbage, George Stokes, Paul Dirac e, atualmente (2008) é ocupada pelo físico Stephen Hawking. (N.T.)

Page 110: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

MARIA AGNESI E SUA “BRUXA”      105 

Eli Maor                                                                  Tradução livre: [email protected] 

Uma reta que passa por (0, 0) corta o círculo no ponto A e se estende até cortar a reta horizontal y = 2a no ponto B. Trace uma linha horizontal por A e uma vertical por B, de modo que essas retas se encontrem em P. A bruxa é o lugar geométrico dos pontos P quando a reta OA assume todas as posições possíveis.

É mais fácil encontrar a equação da bruxa em termos do ângulo θ entre OA e o eixo y. Sejam as coordenadas de P iguais a (x, y). Na figura 50 vemos que º90=∠OAC , sendo OC o diâmetro do círculo; no triângulo retângulo OAC temos então OA = OC cos θ = 2a cos θ. Sejam R e S os pés das perpendiculares por A e B sobre o eixo x, respectivamente; então no triângulo retângulo OBS temos OS = x = BS tan θ = 2a tan θ, e no triângulo retângulo OAR temos AR = y = OA cos θ = 2a cos2 θ. As equações paramétricas da bruxa então serão

x = 2a tan θ, y = 2a cos2 θ. (1)

Para encontrar a equação em coordenadas retangulares, precisamos eliminar θ das equações (1). Usando a identidade 1 + tan2 θ = 1/cos2 θ para expressar y em termos de x, teremos

22

3

48

axay+

= (2)

Diversas conclusões seguem da equação (2). Primeiro, quando x → ±∞, y → 0, mostrando que o eixo x é a assíntota horizontal da bruxa. Segundo, com auxílio do cálculo, pode-se demonstrar que a área entre a bruxa e sua assíntota é 4πa2, ou quatro vezes a área do círculo gerador.4 Também pode ser mostrado – tanto diretamente da equação (2) como das equações paramétricas (1) – que a bruxa tem dois pontos de inflexão (pontos onde a curva muda sua concavidade), localizados em θ = ± π/6. Esse cálculo é direto, mas um tanto longo e iremos omiti-lo.5

Conforme já foi mencionado, a “bruxa” não se originou com Agnesi; ela já era conhecida por Pierre Fermat (1601-1665), e Luigi Guido Grandi (1671-1742), professor de matemática na Universidade de Pisa, que deu à curva o nome versiera (do latim vertere, verter, girar). Aconteceu, entretanto, que uma palavra italiana quase homófona, avversiera, significa “mulher do demônio”, ou “demônia”. De acordo com D. J. Struik, “Algum esperto na Inglaterra traduziu a palavra como ‘bruxa’ (witch), e o trocadilho bobo ficou amavelmente preservado na maioria dos livros em inglês”.6 Então a versiera de Grandi tornou-se a bruxa de Agnesi. De qualquer maneira, permanece um mistério por que essa curva em particular, que raramente aparece em alguma aplicação, tenha interessado aos matemáticos por tanto tempo.7 O estranho nome da curva pode ter alguma relação com o fato, ou talvez tenha sido o modo encontrado por Agnesi para tornar a curva conhecida.

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106 MARIA AGNESI E SUA “BRUXA”

NOTAS E FONTES

                                                            1  Este número é baseado no Anuário AMS-IMS-MAA, notícias do American Mathematical Society, 1993.

2  Uma boa fonte sobre mulheres cientistas é Marylin Bailey Ogilvie, Women in Science – Antiquity through the Nineteenth Century: A Biographical Dictionary with Anotated Bibliography (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1988). Veja também Lynn M. Osen, Women in Mathematics (1974; rpt. Cambridge, Mass: MIT Press, 1988), e Women of Mathematics: A Bibliographical Sourcebook, ed. Louise S.Grinstein e Paul J. Campbell (New York: Greenwood Press, 1987).

3  Os detalhes biográficos neste capítulo foram adaptados do DSB, vol.1, pp. 75-77. Veja também Ogilvie, Women in Science, pp. 26-28.

4  Isso segue da fórmula

20

12

04|)2/(tan82 aaxadxy π== ∞−∞

∫ ,

em que tan-1 é a função inversa da tangente (ou arcotangente); usamos o fato de que a bruxa é simétrica em relação ao eixo y.

5  Propriedades adicionais da bruxa podem ser encontradas em Robert C, Yates, Curves and their Properties (Reston, Va.: National Council of Teachers of Mathematics, 1974), pp. 237-238.

6  A Source Book in Mathematics: 1200-1800 (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969), pp. 178-180. De acordo com esta fonte, o primeiro a usar a palavra “bruxa” com esse sentido pode ter sido B. Williamson em seu Integral Calculus (1875). Yates (em Curves, p. 237) tem uma versão diferente para a evolução do nome “bruxa”: “Parece que Agnesi confundiu a palavra italiana antiga ‘versorio’ (o nome dado à curva por Grandi), que significa ‘livre para se mover em qualquer direção’, com ‘versiera’, que significa ‘duende’, ‘mulher do demônio’, ‘bicho-papão’, etc.”

7  A curva tem aplicação na teoria das probabilidades como a distribuição de Cauchy f (x) = 1 / π(1 + x2), cuja equação, à exceção das constantes, é idêntica à da bruxa.

Page 112: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

   

8 Variações Sobre um Tema, por Gauss

A solução de um problema de astronomia [proposto pela Academia Francesa de Ciências em 1735], no qual diversos matemáticos eminentes têm dispendido o tempo de meses... foi resolvido pelo ilustre Gauss em uma hora.

- Florian Cajori, citado em R. E. Moritz, On Mathematics and Mathematicians, p. 155.

Esta é uma história sobre o grande matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855), que ainda um garoto, teve delegada pelo seu professor a tarefa de somar os números de 1 a 100, e que quase imediatamente forneceu a resposta correta, 5.050. Para o surpreso professor Gauss explicou que simplesmente notou que escrevendo os números duas vezes, de 1 até 100 e depois de 100 até 1, e somando os números verticalmente, cada par era igual a 101. Como há uma centena desses pares, temos 100×101 = 10.100, e como cada par foi somado duas vezes, a resposta é a metade dessa soma, qual seja 5.050.

Como muitas das histórias sobre pessoas famosas, esta pode ou não ter acontecido de verdade; todavia, o que realmente importa é a lição que podemos tirar dela – a importância de procurar padrões. O padrão nesse caso é o de escada, em que o que se soma em uma ponta, subtrai-se na outra ponta:

S = 1 + 2 + 3 + ··· + n

S = n + (n – 1) + (n – 2) + ··· + 1

2S = (n + 1) + (n + 1) + (n + 1) + ··· + (n + 1) = n(n – 1) n termos

S = n(n +1)/2 (1)

Eu me lembrei da estória sobre Gauss enquanto um dia folheava um manual de seqüências e séries, onde encontrei a seguinte fórmula de somatório:1

2/sen

2/)1(sen2/sensen3sen2sensenα

αααααα +⋅=+⋅⋅⋅+++

nnn (2)

Page 113: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

108 CAPÍTULO OITO

Não tendo nenhuma pista de como provar essa fórmula, comecei a procurar um padrão. O que me intrigava era a similaridade bem formal entre as equações (1) e (2); realmente, multiplicando os dois lados da equação (1) por α teremos Sα = n(n +1)α/2; ou seja,

α + 2α + 3α + ··· + nα = n(n + 1)α/2.

“Multiplicando” esta última equação por “sen” e procedendo como se “sen” fosse uma quantidade algébrica ordinária, temos

sen (α + 2α + 3α + ··· + nα) = sen n(n + 1)α/2.

Se no lado esquerdo abrirmos os parênteses, e no lado direito multiplicarmos e dividirmos por um segundo “sen” (espremendo o “sen” entre n e (n + 1)) e depois por α/2, chegaremos à equação (2) !

Obviamente, executamos a operação matemática imaginária sen, e ainda assim chegamos à fórmula correta. Poderemos, então, provar a equação (2), abordando a equação (1) de maneira similar à de Gauss ?

Seja

αααα nS sen3sen2sensen +⋅⋅⋅+++=

αααα sen2sen)1(sensen ++⋅⋅⋅+−+= nnS . Somando os termos verticalmente em pares e utilizando a fórmula da soma para produto sen α + sen β = 2 sen (α + β)/2 · cos (α – β)/2, teremos

2S = 2[sen (1+ n)α/2 · cos (1 – n)α/2 + sen (1 + n)α/2]

· cos (3 – n)α/2 + ··· + sen (n + 1)α/2

· cos (n – 3)α/2 + sen (n + 1)α/2 · cos (n – 1)α/2]

= 2 sen (n + 1)α/2 · [cos (1 – n)α/2 + cos (3 – n)α/2 + ···

+ cos (n – 3)α/2 + cos (n – 1)α/2].

Para nos livrarmos dos incômodos termos 1/2, 3/2, … que aparecem nos termos em cosseno, vamos multiplicar a última equação por sen α/2 e utilizar a fórmula do produto para soma sen α · cos β = (1/2)[sen (α – β) + sen (α + β)]; teremos

2S sen α/2 = sen (n + 1)α/2

· [sen nα/2 + sen (1 – n/2)α + sen (–1 + n/2)α

Page 114: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA, POR GAUSS      109 

Eli Maor                                                                  Tradução livre: [email protected] 

+ sen (2 – n/2)α + ··· + sen (–2 + n/2)α

+ sen (–1 + n/2)α + ··· + sen (1 – n/2)α

+ sen nα/2].

Mas sen (–1 + n/2)α = –sen (1 – n/2)α, o que é similar para os outros termos; a expressão entre colchetes é portanto uma “soma telescópica”, em que todos os termos, exceto o primeiro e o último (que são iguais), se cancelam. Temos então

2S sen α/2 = 2sen (n + 1)α/2 · sen nα/2

ou

2/sen

2/sen2/)1(sen α

αα nnS ⋅+=

que é a formula que queríamos provar.

Uma fórmula análoga para o somatório de cossenos pode ser demonstrada de modo similar:2

αααα ncos3cos2coscos +⋅⋅⋅+++

2/sen

2/sen2/)1(cos α

αα nn ⋅+= (3)

Se dividirmos a equação (2) pela equação (3), teremos a bela fórmula

ααααααα

nnn

cos2coscossen2sensen2/)1(tan

+⋅⋅⋅+++⋅⋅⋅++

=+ (4)

Mas este não é o final da estória. Seguindo o raciocínio de que toda fórmula trigonométrica é derivada da geometria, observemos a fig. 51. Partindo de origem (que aqui chamamos de P0), traçamos o segmento P0P1 de comprimento unitário, formando o ângulo α com o semi-eixo positivo x. Em P1 traçamos um segundo segmento de comprimento unitário formando um ângulo α com o primeiro segmento e, conseqüentemente um ângulo igual a 2α com o eixo x. Continuando dessa maneira n vezes, chegaremos ao ponto Pn, cujas coordenadas iremos chamar de X e Y. Evidentemente, X é a soma das projeções horizontais dos n segmentos, e Y é a soma das projeções verticais, de forma que temos

αααα nX cos3cos2coscos +⋅⋅⋅+++= (5)

αααα nY sen3sen2sensen +⋅⋅⋅+++=

Page 115: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

110 CAPÍTULO OITO

Fig. 51. Construção geométrica da soma S = sen α + sen 2α + ∙∙∙ + sen nα +.

Agora os pontos Pi compõem um polígono regular inscrito em um círculo de centro O e raio r. Cada segmento Pi-1Pi subentende um ângulo α em O, e então o segmento P0Pn subentende o ângulo (nα) em O. Mas esse segmento é a diagonal entre os pontos P0 e Pn ; vamos chamar o esse segmento de d. No triângulo isósceles P0OPn temos

d = 2r sen nα/2,

enquanto no triângulo isósceles P0OP1temos

1 = 2r sen nα/2.

Eliminando-se r dessas duas equações, teremos

2/sen2/sen

ααnd = .

A fim de encontrar as projeções horizontal e vertical do segmento P0Pn , precisamos encontrar o ângulo que este forma com o eixo x. Este ângulo é (α + β), em que β = nPPP 01∠ . O ângulo β subentende a corda P1Pn no círculo inscrito e é, portanto, igual a metade do ângulo central subentendido pela mesma corda, ou seja, (n – 1)α/2. Então α + β = α + (n – 1)α/2 = (n + 1)α/2. Assim,

X = d cos (n + 1)α/2 = 2/sen

2/sen2/)1(cos α

αα nn ⋅+

e (6)

Y = d sen (n + 1)α/2 = 2/sen

2/sen2/)1(sen α

αα nn ⋅+

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VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA, POR GAUSS      111 

Eli Maor                                                                  Tradução livre: [email protected] 

Se substituirmos as expressões para X e Y da equação (5) nas equações (6), chegaremos às equações (2) e (3).

Se pensarmos em cada segmento Pi –1Pi como um vetor de Pi –1 até Pi , então o segmento P0Pn será seu vetor-soma. As equações (2) e (3) dizem então que a soma das projeções (horizontais ou verticais) de cada segmento em particular é igual à projeção (horizontal ou vertical) de seu vetor-soma. Isto mostra que a projeção é uma operação linear – uma operação que obedece à lei distributiva p(u + v) = p(u) + p(v), em que p() significa “projeção de” e u e v são dois vetores quaisquer. A projeção – como todas as operações lineares – comporta-se exatamente como uma multiplicação comum.

Nós podemos utilizar o “método de Gauss” das somas para provar outras fórmulas trigonométricas de soma. Alguns exemplos:

αααααα

sensen )12(sen5sen3sensen

2 nn =+−+⋅⋅⋅+++ (7)

αααααα

sen22sen )12(cos5cos3coscos nn =+−+⋅⋅⋅+++ (8)

nnnnn 2/cot /sen/2sen/sen ππππ =+⋅⋅⋅++ (9)

1- /cos/2cos/cos =+⋅⋅⋅++ nnnn πππ (10)

⋅⋅⋅++++ )12/(3cos)12/(cos nn ππ

(11) 21 )12/()12(cos =+−+ nn π

As duas últimas são casos especiais das equações (3) e (8), respectivamente; elas são notáveis porque o resultado de suas somas independe de n.

As somas trigonométricas foram estudadas pelo matemático húngaro Lipót Fejér (1880-1959) em conexão com seu trabalho sobre a soma das séries de Fourier, um assunto que veremos no capítulo 15.

NOTAS E FONTES

                                                            1  Summation of Series, selecionado por L. B. W. Jolley (1925; rpt. New York: Dover, 1961), série nº 417.

2  Ambas as fórmulas podem ser demonstradas tomando-se as partes real e imaginária da soma da progressão geométrica eiα + e2iα + ··· + eniα, em que i = √-1; veja Richard Courant, Differential and Integral Calculus (1934; rpt. London: Blackie & Son, 1956), vol. 1, p.436 [edição brasileira – Cálculo Diferencial e Integral, editora Globo, 1966].

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9

Se Ao Menos Zenão Soubesse !

Um, Dois, Três... Infinito.

- Título de um livro de George Gamow.

Pode o espaço ser dividido infinitamente, ou existe a menor unidade do espaço, um átomo matemático que não pode mais ser dividido? Será o movimento contínuo, ou uma sucessão de instantâneos que, como nos antigos filmes, estão eles próprios estáticos? Questões como essas foram motivo de debates acalorados entre os filósofos da Grécia Antiga, e eles são debatidos ainda hoje – como na busca sem fim pela última partícula elementar, aquele bloco do qual supostamente toda a matéria é feita.

O filósofo grego Zenão de Eléia, que viveu no século 5 a.C., resumiu essas questões em quatro paradoxos – ele os chamava de “argumentos” – cujo propósito era demonstrar as dificuldades fundamentais inerentes à noção de continuidade. Num deses paradoxos, conhecido como o paradoxo da “dicotomia”, ele propôs mostrar que o movimento era impossível: para que um homem correndo possa ir do ponto A até o ponto B, ele precisa cobrir primeiro a metade da distância entre A e B, e então metade da distância remanescente, e metade desta, e daí por diante, ad infinitum (fig. 52). Como isso envolve um número infinito de passos, Zenão argumentou, o corredor nunca chegará a seu destino.1

É fácil formular o paradoxo de Zenão em termos atuais. Seja a distância entre A e B igual a 1; para cobrir primeiro metade da distância, e metade da distância remanescente, e continuando assim, o corredor irá cobrir uma distância total dada pela soma:

1/2 + 1/4 + 1/8 + 1/16 + ...

Esta soma é uma progressão geométrica infinita, ou série, com razão igual a 1/2. Quanto mais termos adicionarmos, mais o valor da soma cresce e se aproxima de 1. Esse valor nunca será igual a 1, nem tampouco exceder 1; mas podemos fazer com que a soma fique tão próximo de 1 quanto quisermos, simplesmente adicionando mais e mais termos. Em linguagem moderna, a soma se aproxima do limite 1, quando o número de termos tende a infinito. Dessa forma, a distância total percorrida é exatamente 1; e uma vez que os intervalos de tempo que o corredor leva para cobrir as distâncias parciais (assumindo que ele mantém velocidade constante) também seguem a mesma progressão, ele percorrerá a distância total em um tempo finito. Isso define o “paradoxo”.

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114 CAPÍTULO DEZ

Fig. 52. O paradoxo do corredor.

Os gregos, entretanto, não concordavam com esse tipo de raciocínio. Eles não podiam aceitar o fato – que hoje é tão óbvio para nós – que a soma de infinitos números pode ter um valor finito. Eles não tinham dificuldade em somar cada vez mais termos à progressão até se atingir a precisão necessária, mas pensar em estender esse processo até o infinito lhes causava grande angústia intelectual. Isso por sua vez os levou a seu horror infiniti – seu medo do infinito. Incapazes de lidar com isso, os gregos barraram o infinito de seu sistema matemático. Ainda que eles tivessem uma compreensão intuitiva do conceito de limite – evidenciado pela quadratura da parábola por Arquimedes – eles se recusavam a levar seu pensamento para o infinito.2 Como resultado disso, os paradoxos de Zenão permaneceram como fonte de irritação e embaraço para geração de estudantes. Frustrados por sua falha em resolver satisfatoriamente os paradoxos, eles se voltaram para razões filosóficas e mesmo metafísicas, e deste modo tornando a questão ainda mais confusa.3

◊ ◊ ◊

Praticamente não existe ramo da matemática em que as progressões geométricas – finitas ou infinitas – não dêem as caras. O primeiro caso em que as encontramos é na

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SE AO MENOS ZENÃO SOUBESSE ! 115

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Aritmética, na forma de dízimas periódicas, que nada mais são do que progressões geométricas disfarçadas; por exemplo, a dízima periódica 0,1212... é apenas uma abreviação da série infinita 12/100 + 12/1002 + 12/1003 + ··· . Progressões geométricas estão no coração da matemática financeira, resultado do fato de que o dinheiro investido a um certa taxa cresce geometricamente com o tempo. Em Cálculo, somos apresentados às séries de potências, e a mais simples delas é a progressão geométrica infinita 1 + x + x2 + ···, freqüentemente usada para testar a convergência de outras séries. Arquimedes de Siracusa (ca. 287 – 212 a.C.) engenhosamente utilizou uma progressão geométrica para encontrar a área de um segmento parabólico – uma das primeiras quadraturas de um segmento curvo.4 E os modernos fractais, aquelas intrigantes curvas auto-replicantes que serpenteiam indo e voltando, nada mais são que uma aplicação do princípio da auto-similaridade, do qual a progressão geométrica é o caso mais simples (fig. 53). O artista holandês Maurits C. Escher (1898-1972), cujos desenhos matemáticos intrigaram uma geração inteira de cientistas, usou progressões geométricas na maioria de seus quadros; mostramos aqui um deles, intitulado Menor e Menor (fig. 54).

Fig. 53. Construção da curva do floco de neve: comece com um triângulo eqüilátero,

construa um triângulo eqüilátero menor sobre o terço médio de cada lado, retirando o terço

médio original a fim de obter uma Estrela de Davi – como na figura. Repita o processo com a

nova figura para obter uma nova com 48 lados. Continuando dessa maneira teremos uma

figura que, no limite, se aproxima de uma estranha curva conhecida como curva do floco de

neve (também conhecida como curva de Koch, em homenagem a seu descobridor, o

matemático sueco Helge von Koch [1870-1924]). O perímetro e a área dessa figura crescem

em progressões geométricas de razões 4/3 e 4/9, respectivamente. Como essas razões são,

respectivamente, maior e menor que 1, o perímetro tende para infinito, enquanto a área

tende para 8/5 da área do triângulo original. A curva do floco de neve é a primeira “curva

patológica” conhecida; essa curva não é contínua em nenhum ponto, e, por conseguinte,

não possui derivada em nenhum ponto. Atualmente essas curvas auto-replicantes são

chamadas de fractais.

Page 121: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

116 CAPÍTULO DEZ

Fig. 54. Menor e Menor (1956), de M. C. Escher

◊ ◊ ◊

Uma concepção errônea comum entre estudantes de matemática (indubitavelmente alimentada por expressões incorretas encontradas em livros populares) é que a grande obra de Euclides, os Elementos, trata apenas de Geometria. De fato, a Geometria ocupa grande parte da obra, mas também contém um extenso tratado sobre Aritmética, Teoria dos Números, e a Teoria das Progressões. Todo o livro VIII e partes do livro IX são dedicados às “proporções contínuas”, ou seja, números que formam uma progressão geométrica (o assunto favorito dos gregos, desde que Pitágoras descobriu que os intervalos musicais correspondem a proporções simples entre comprimentos de cordas).

A proposição 35 do livro IX define em palavras como encontrar a soma de uma progressão geométrica:

Se tantos números quantos se queira estiverem em proporção contínua, e se subtrai ao

segundo e ao último o primeiro, então o excesso do segundo está para o primeiro como o

excesso do último está para a soma de todos antes dele.

Traduzido para linguagem moderna, se os termos de uma progressão são a, ar, ar2, ..., ar

n e a soma de “todos antes desse” é igual a S, então (ar – a) : a = (ar

n - a) : S ;

simplificando o produto do meio pelo produto dos extremos, chegamos à conhecida fórmula para a soma dos n primeiros termos de uma progressão geométrica,

1

)1(

−=

r

raS

n

,5 (1)

Page 122: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

SE AO MENOS ZENÃO SOUBESSE ! 117

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Euclides utilizou então esse resultado par provar (proposição 36 do livro IX), uma elegante propriedade dos números: se a soma da progressão 1 + 2 + 22 + ... + 2n – 1 é um número primo, então o produto entre este primo e 2n – 1 é um número perfeito. Um inteiro positivo N é perfeito quando é a soma de todos seus divisores inteiros menores que N; os primeiros números perfeitos são 6 = 1 + 2 + 3 e 28 = 1 + 2 + 4 + 7 + 14. Uma vez que a soma da progressão 1 + 2 + 22 + ... + 2n – 1 é 2n – 1, a proposição diz que 2n – 1 · (2n – 1) é perfeito sempre que 2n – 1 for primo. Assim, 6 é perfeito porque 6 = 2 · 3 = 22 – 1 · (22 – 1) e 28 é perfeito porque 28 = 4 · 7 = 23 – 1 · (23 – 1). Os dois próximos números perfeitos são 496 = 16 · 31 = 25 – 1 · (25 – 1) e 8128 = 64 · 127 = 27 – 1 · (27 – 1). Estes quatro eram os únicos números perfeitos conhecidos pelos gregos. 6

E aqui foi onde mais longe os gregos foram. Eles fizeram uso efetivo da equação (1) em seu desenvolvimento da Geometria e da Teoria dos Números, fazendo n crescer arbitrariamente (“tantos números quantos se queira”); mas eles não deram o passo crucial para fazer n realmente crescer além de todas as fronteiras – deixá-lo tender ao infinito. Não tivessem se limitado por este tabu auto-imposto, poderiam ter antecipado a descoberta do Cálculo em dois mil anos.7

Hoje, com o conceito de limite firmemente estabelecido, não mais argumentamos que se r é um número cujo valor absoluto é menor que 1 (–1 < r < 1), então se n → ∞, o termo rn na equação (1) tende a zero, e então no limite temos S = – a/(r – 1), ou de forma equivalente

r

aS

=

1 , (2)

que é a conhecida fórmula da soma de uma progressão geométrica infinita.8 Então a série do paradoxo de Zenão, 1/2 + 1/4 + 1/8 + 1/16 + ···, tem somo (1/2)/(1 – 1/2) = 1, e a dízima periódica 0,1212··· = 12/100 + 12/10.000 + ··· tem soma (12/100)/(1 – 1/100) = 12/99 = 4/33. Podemos utilizar a equação (2) para provar que toda dízima periódica é igual a uma fração, isto é, um número racional.

◊ ◊ ◊

E agora a trigonometria entra em cena. Iremos mostrar que toda progressão

geométrica infinita pode ser construída geometricamente, e sua soma encontrada

graficamente, utilizando apenas réguaa e compasso.

9 Nosso ponto de partida é o fato de que a soma de uma progressão geométrica infinita com razão r converge para um limite quando –1 < r < 1. Por sua vez, qualquer número entre –1 e 1 é o cosseno de exatamente

a Lembrar que se trata de uma régua não graduada, que em inglês é chamada de “straightedge”, em contraste com a régua graduada, chamada de “ruler” (N.T.).

Page 123: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

118 CAPÍTULO DEZ

um ângulo entre 0º e 180º; por exemplo, 0,5 é o cosseno de 60º, e –0,707 (mais precisamente, – √2/2) é o cosseno de 135º. (Observe que a função seno não tem o mesmo comportamento: existem dois ângulos, 30º e (180º – 30º) = 150º, cujo seno é 0,5 , e nenhum ângulo entre 30º e 180º cujo seno seja –0,707). Vamos então escrever r = cos α, ou o seu recíproco, α = cos –1 r, e manter o ângulo α como dado.

Fig. 55. Construção geométrica da série S = 1 + cos α + cos2 α + ···.

Sobre o eixo x seja a origem P0 e o ponto x = 1 em P1 (fig. 55). Em P1 traçamos uma linha formando o ângulo α com o semi-eixo positivo x, e ao longo desta marcamos o segmento P1Q1 de comprimento unitário. A partir de Q1, traçamos uma perpendicular ao eixo x, encontrando este em P2; temos P1P2 = 1 · cos α = cos α e então P0P2 = 1 + cos α . Agora repetimos o processo: em P2 traçamos uma linha formando o ângulo α com o semi-eixo positivo x e ao longo desta marcamos o segmento P2Q2 igual em comprimento a P1P2 (usando um compasso com centro em P2 e abertura igual a P1P2). A partir de Q2, traçamos uma perpendicular ao eixo x, encontrando este em P3; temos P2P3 = cos α · cos α = cos2 α e então P0P3 = 1 + cos α + cos2 α . Continuando dessa maneira, à primeira vista parece que teríamos que repetir o processo por infinitas vezes. Mas, como mostraremos agora, os dois primeiros passos são suficientes para determinar a soma da

série inteira.

Primeiro, os triângulos retângulos P1Q1P2, P2Q2P3, e demais assim são equivalentes, tendo o mesmo ângulo α; conseqüentemente os pontos Q1, Q2, ··· necessariamente estão na mesma reta m. Afirmamos que o ponto de intersecção de m com o eixo x marca a soma S da série inteira, e denotaremos então esse ponto de P∞ . Para provar isso, observamos que os segmentos P1Q1 = 1, P2Q2 = cos α, P3Q3 = cos2 α, e daí por diante formando uma progressão geométrica de razão cos α (a mesma da progressão original). Caminhando um passo para trás nessa progressão, temos P0Q0 = 1/cos α = sec α. Os triângulos (não-retângulos) P0Q0P∞, P1Q1P∞, ··· são todos equivalentes; tomando os dois primeiros desses triângulos, temos P0P∞/ P0Q0 = P1P∞/ P1Q1, ou

1

1

sec

−=

SS

α

.

Page 124: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

SE AO MENOS ZENÃO SOUBESSE ! 119

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Voltando o fator 1/sec α para cos α e resolvendo a equação em S, teremos S = 1/(1–cos α) = 1/(1 – r), mostrando que o segmento P0P∞ é a soma da série inteira. Repetimos: é suficiente construir os dois primeiros pontos Q1 e Q2; eles determinam a reta m, cuja intersecção com o eixo x determina o ponto P∞.

Essa construção não provê apenas uma interpretação geométrica de uma série geométrica, ela também permite que observemos o que acontece quando variamos a razão r. As figuras 56 e 57 mostram a construção para α = 60º e 45º, para os quais r = 1/2 e √2/2, respectivamente; as somas correspondentes são 1/(1 – 1/2) = 2 e 1/(1 – √2/2) = 2 + √2 ≈ 3,414. Variando r, e com ele α, os pontos P0 e P1 permanecem fixos, mas todos os outros pontos irão se mover ao longo de suas respectivas retas. Para α = 90º (isto é, r = 0), Q1 estará exatamente acima de P1, de forma que traçando uma perpendicular a partir dele até o eixo x, nos trará de volta a P1: a série não irá progredir mais, e sua soma será S = P0P1 = 1. Diminuindo o valor de α de 90º a 0º, a reta m se torna cada vez menos inclinada; ao mesmo tempo, os pontos P2, P3, ··· movem-se para a direita, bem como P∞: a soma da série se torna maior. Se α → 0º, a reta m se torna horizontal, e seu ponto de intersecção com o eixo x avança para o infinito: a série diverge.

Fig. 56. A construção para α = 60º.

Fig. 57. A construção para α = 45º.

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120 CAPÍTULO DEZ

Fig. 58. O caso em que α é obtuso.

Se a razão r é negativa, α estará entre 90º e 180º. Começando novamente em P1 (fig. 58), traçamos uma reta que forma com o semi-eixo positivo x o ângulo (obtuso) α; isto nos leva ao ponto Q1, com P1Q1 = 1. Traçamos agora uma perpendicular de Q1 até o eixo x, onde se encontram em P2 (observe que P2 está agora à esquerda de P1); temos P1P2 = cos α. (um número negativo) e assim P0P2 = 1 + cos α. A partir de P2 traçamos uma reta formando o ângulo α com o semi-eixo positivo x; observe que uma vez que o segmento P1P2 está orientado para a esquerda, a reta estará orientada para baixo. Nessa reta marcamos o segmento P2Q2, de comprimento igual a P1P2. A partir de Q2 traçamos uma perpendicular ao eixo x, encontrando este em P3 (observe que P3 está à direita de P2); temos P2P3 = cos2 α (um número positivo), e P0P3 = 1 + cos α + cos2 α. Procedendo dessa forma, teremos triângulos retângulos cada vez menores, cada um aninhado dentro daquele que o precede em dois passos. Todos esses triângulos são equivalentes.

Segue que, como antes, os pontos Q1, Q2, ··· estão em uma mesma reta m, cujos pontos de intersecção com o eixo x nos dão uma a soma de uma série completa. Chamando este ponto de P∞, observamos que esse ponto está à direita dos pontos P2n e à esquerda dos pontos P2n+1: a série aproxima sua soma alternadamente por cima e por baixo, dependendo se tivermos somado um número par ou ímpar de termos. As figuras 59 e 60 na página seguinte mostram a construção para α = 120º e 150º (isto é, r = – 1/2 e –√3/2, respectivamente), para os quais a série converge para 1/(1 + 1/2) = 2/3 ≈ 0,666 e 1/(1 + √3/2) ≈ 0,536.

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SE AO MENOS ZENÃO SOUBESSE ! 121

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Fig. 59. A construção para α = 120º.

Fig. 60. A construção para α = 150º.

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122 CAPÍTULO DEZ

Agora vamos variar novamente o ângulo α, desta vez aumentando de 90º a 180º. A reta m fica cada vez menos inclinada, entretanto com inclinação negativa. Ao mesmo tempo os pontos P2n irão se mover para a esquerda em direção a P0, enquanto os pontos P2n+1 irão se mover para a direita em direção a P1. Com α → 180º (isto é, com r → – 1), os pontos Q2n+1 irão se agrupar acima de P0 e os pontos Q2n se agruparão abixo de P1, de forma que a reta m irá assumir aproximadamente uma posição simétrica em relação ao segmento P0P1, intersectando-o logo à direita do ponto x = 1/2. E este é, de fato, o valor para o qual a fórmula S = 1/(1 – r) tende quando r → – 1. Ao mesmo tempo, entretanto, os pontos P2n irão se agrupar próximo a P0 (isto é, próximos a x = 0), enquanto os pontos P2n+1 irão se agrupar próximos a P1 (x = 1), mostrando que a série tende a oscilar entre 0 e 1.

Quando α = 180º (ou seja, r = – 1) a situação muda repentinamente, com todos os pontos Q2n+1 se fundindo em P0 (assim como os pontos P2n), ao passo que os pontos Q2n se fundem com P1. A reta m irá então se fundir com o eixo x, intersectando-o em infinitos pontos, tornando impossível determinar o ponto P∞. A princípio essa situação parece contraditória, uma vez que para α = 180º nossa série se torna 1 – 1 + 1 – + ···, cujas somas parciais oscilam entre 0 e 1. Mas não é bem assim. A série pode na verdade ter valor igual a qualquer número arbitrário, o que mostra simplesmente que a série não coneverge e que sua soma não possui significado.10

O comportamento aparentemente bizarro da série 1 – 1 + 1 – 1 + – ··· gerou muita controvérsia no início do século 18. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), co-inventor do Cálculo juntamente com Newton, questionou se, uma vez que a soma poderia ser 0 ou 1 com igual probabilidade, seu valor “verdadeiro” poderia ser sua média, ou seja, 1/2, em concordância com a fórmula S = 1/(1 – r) quando r = –1. Tal argumento descuidado pode hoje nos parecer incrível, mas na época de Leibniz os conceitos de limite e convergência não eram ainda compreendidos, e séries infinitas eram tratadas de maneira puramente manipulativa, sendo uma extensão das somas finitas ordinárias.

Abordando essa série, Leibniz – que era um filósofo por princípio – deve ter pensado como Zenão, seu predecessor em dois mil anos. Fosse Zenão conhecedor de nossa construção, é possível que lhe tivesse sido mais fácil aceitar o fato de que uma soma infinita de números pode ser finita. E as conseqüências seriam profundas, não tivessem sido os gregos tão teimosos em barrar o infinito em seu mundo, o curso da matemática poderia ter sido alterado para sempre.

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SE AO MENOS ZENÃO SOUBESSE ! 123

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NOTAS E FONTES

1 Uma variação do paradoxo diz que para que o corredor vá do ponto A para o ponto B, ele precisa antes atingir o ponto médio C entre A e B; mas para atingir C, ele precisa primeiro atingir o ponto médio D entre A e C, e daí por diante.

2 Para entender as causas desse medo, veja meu livro, e: The Story of a Number (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1994) [edição brasileira e: a Estória de um Número, editora Record, 2003], pp. 43-47.

3 Ainda hoje alguns pensadores se negam a considerar os paradoxos de Zenão como propostos; veja os artigos “Resolving Zeno´s Paradoxes” de William I. McLaughlin, Scientific American, April 1995. Veja também Adolf Grünbaum, Modern Science and Zeno´s Paradoxes (Middletown, Conn: Wesleyan University Press, 1967).

4 Veja o capítulo “Quadrature of the Parabola” em Thomas L. Heath, The Works of Archimedes (1897; rpt. New York: Dover, 1953)

5 Uma prova moderna consiste em escrevre S = a + ar + ar2 + ... + ar

n-1, multiplicando essa equação por r ,

e subtraindo o resultado da equação original: todos os termos, exceto o primeiro e o último, serão cancelados, chegando a (1 – r)S = a – ar

n , de onde chegamos a S = a(1 – rn)/(1 – r) = a(rn – 1)/(r – 1).

6 Observe que 2n – 1 não é primo para todo primo n; por exemplo, 211 – 1 = 2047 = 23 · 89 é composto, e consequentemente 211 – 1 · (211 – 1) = 2.096.128 não é perfeito. Primos da forma 2n – 1 são chamados primos

de Mersenne, em homenagem a Marin Mersenne (1588-1648), o monge francês da Ordem dos Mínimos; até 1996 apenas trinta e quatro primos de Mersenne eram conhecidos, sendo o maior deles igual a 21.257.787 – 1 , um número de 378.632 dígitos descoberto naquele ano (N.T. Em 2006 já haviam 44 primos de Mersenne conhecidos, sendo o maior igual a 232.582.657 – 1, com 9.808.358 de dígitos. Para tanto, usa-se o cluster de computadores chamado GIMPS - Great Internet Mersenne Prime Search). Como todo primo de Mersenne gera um número perfeito, suas histórias estão intimamente ligadas.

Necessariamente , a fórmula 2n – 1 · (2n – 1) produz apenas números perfeitos pares. Em 1770 Leonhard Euler provou o inverso da proposição 36: Todo número perfeito par necessariamente é da forma 2n – 1 · (2n – 1), em que 2n – 1 é primo. Não se sabe se existem números perfeitos ímpares, nem se os números perfeitos são infinitos. Para maiores detalhes, procure um bom livro de Teoria dos Números.

7 Veja Heath, Works of Archimedes, cap. 7, “Anticipations by Archimedes of the Integral Calculus”.

8 Uma prova comum (embora não muito rigorosa) da equação (2) consiste em escrever S = a + ar + ar2 +

ar3 + ··· = a + r(a + ar + ar

2 + ···) = a + rS, de onde temos S(1 – r) = a ou S = a/(1 – r).

9 O material subseqüente é baseado em meu artigo “Geometric Construction of the Geometric Series” no International Journal of Mathematics Education in Science and Technology, vol. 8, nº 1 (Janeiro, 1977), pp. 89-96.

10 Para mostrar isso, seja a e b dois números quaisquer tais que a + b = 1. Nossa série então se torna (a + b) – (a + b) + (a + b) – (a + b) +– ···. Vamos chamá-la de soma S. Deslocando os parênteses uma posição para a direita, obtemos agora a série S = a + (b – a) – (b – a) + (b – a) – (b – a) +– ···. Agora coloque b – a =c. Então S = a + c – c + c – c +– ···. Podemos somar esta última série de duas maneiras, dependendo de como arranjamos os parênteses: S = a + (c – c) + (c – c) + (c – c) + ··· = a, ou S = a + c – (c – c) – (c – c) – (c – c) – ··· = a + c = a + (b – a) = b. Então a ´serie pode ter tanto a quanto b como sua soma, e assim como a escolha de 1 para a e b foi totalmente arbitrária, S pode assumir qualquer valor. Isto, naturalmente, apenas mostra que as somas parciais não convergem para um valor fixo, e então a série diverge (ainda que não seja para o infinito).

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10 (sen x)/x

Chamo nosso mundo de Planolândia não por ser

assim que o chamamos, mas para deixar sua natureza

mais clara a vocês, meus ditosos leitores, que têm o

privilégio de viver no espaço.

- Edwin A. Abbot, Planolândia (1884).

Estudantes de Cálculo logo se deparam com a função (sen x)/x em seus estudos,

quando é mostrado que 0lim →x (sen x)/x = 1; este resultado é então usado para definir as

fórmulas de diferenciação (sen x)’ = cos x e (cos x)’ = – sen x. Feito isso, entretanto, a função rapidamente é esquecida, e o aluno raramente irá vê-la de novo. É uma pena, pois essa função aparentemente simples não apenas possui propriedades notáveis, como também surge em diversas aplicações, algumas vezes de forma inesperada.

Observemos, para começar, que a função é definida para todos os valores de x, exceto 0; mas também sabemos que para x cada vez menor, a razão (sen x)/x – sendo x medido em radianos – tende a 1. Esse fato nos dá um exemplo simples de singularidade

removível: podemos simplesmente definir o valor de (sen x)/x como 1, e esta definição irá assegurar a continuidade da função próximo de x = 0.

Chamemos nossa função de f (x) e a desenhemos para diversos valores de x; o gráfico resultante é mostrado na figura 61. Duas características fazem esse gráfico distinto do gráfico da função g (x) = sen x: primeiro, ele é simétrico sobre o eixo y, isto é, f (– x) = f (x) para todos os valores de x (na linguagem da álgebra, f (x) é uma função par, chamada assim porque as funções mais simples com essa propriedade são da forma y = x

n para valores pares de n). Em contraste, a função g (x) = sen x tem a propriedade de que g (–x) = – g (x) para todo x (funções com essa propriedade são chamadas funções

ímpares, por exemplo y = xn para valores ímpares de n). Para provar que f (x) = (sen x)/x

é par, simplesmente observamos que f (– x) = sen (– x)/ (– x) = (– sen x)/ (– x) = (sen x)/x = f (x).

Segundo, diferentemente do gráfico de sen x, cujas oscilações estão confinadas ao intervalo de –1 a 1 (isto é, a senóide tem constante de amplitude 1), o gráfico de (sin x)/x apresenta oscilações amortecidas cuja amplitude decresce constantemente quando |x| cresce. De fato, podemos pensar em f (x) como uma senóide espremida entre dois envelopes y = ± 1/x.

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126 CAPÍTULO DEZ

Fig. 61. O gráfico de (sen x)/x.

Desejamos agora localizar os pontos extremos de f (x) – os pontos onde a função assume seu valor máximo ou mínimo. E aqui uma surpresa nos aguarda. Sabemos que os pontos extremos de g (x) = sen x ocorrem em todos os múltiplos ímpares de π/2, isto é, em x = (2n + 1)π/2. Poderíamos então esperar que o mesmo seja verdade para os pontos extremos de f (x) = (sen x)/x. Este, todavia, não é o caso. Para encontrar o ponto extremo, derivamos f (x) usando a regra do quociente e igualamos o resultado a zero:

0

sencos)('

2=

−=

x

xxxxf . (1)

Se essa razão é igual a zero, então o próprio numerador deve então ser igual a zero, e temos x cos x – sen x = 0, de onde temos

xx =tan . (2)

Infelizmente a equação (2) não pode ser resolvida por uma fórmula, da mesma forma que, digamos, uma equação quadrática; ela é uma equação transcendental, cujas raízes podem ser encontradas graficamente como sendo os pontos de intersecção dos gráficos de y = x e y = tan (x) (fig. 62). Vemos que há um número infinito desses pontos, cujas coordenadas em x chamaremos de xn. Quando x cresce em valor absoluto, esses pontos se aproximam rapidamente das assintotas de tan x, isto é, (2n + 1)π/2; estes, é claro, são os pontos extremos de sen x. Isto era esperado, uma vez que quando |x| cresce, 1/|x| decresce a uma taxa decrescente, de forma que sua influência na variação de sen x diminui consideravelmente. Os primeiros valores de xn são dados na tabela 2.

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(sen x)/x 127

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Fig. 62. As raízes de tan x = x.

O comportamento peculiar dos pontos extremos de (sin x)/x tem forte contraste com outro tipo de oscilação amortecida, aquela representada pela função e –x sen x. Aqui os pontos extremos são deslocados para a esquerda por uma constante de π/4 em relação àqueles de sen x, como o leitor pode facilmente verificar.

Tabela 2

Tendo explorado a forma geral do gráfico de f (x), a próxima questão de interesse é encontrar a área sob o gráfico, a partir de, digamos, x = 0 até outro x. Esta área é dada pela integral definida

∫x

dtt

t

0

sen.

Em que denotamos t a variável de integração , para distingui-la do limite superior x. A fim de resolver essa integral, poderíamos primeiro tentar encontrar a integral indefinida, ou antiderivada (ou primitiva)a, de (sen x)/x. Ora, que tentativa fútil! É um daqueles casos

a O termo em inglês é antiderivative. A partir desse ponto será usado o termo “primitiva”. (N.T.)

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128 CAPÍTULO DEZ

curiosos do Cálculo que as primitivas de muitas funções aparentemente simples não possam ser expressas em termos de “funções elementares”, isto é, polinômios e razões entre polinômios, funções trigonométricas e exponenciais e suas inversas, e qualquer combinação finita entre essas funções. A função (sen x)/x pertence a este grupo, assim

como (cos x)/x, ex/x, e 2x

e . Isto, é claro, não significa que as primitivas dessas funções não existam – significa apenas que elas não podem ser expressas numa “forma simples” em termos de funções elementares. De fato, a integral acima, considerada como uma função de seu limite superior x, define uma nova função “de ordem superior” conhecida como seno integral e denotada por Si (x):

Si (x) = ∫

x

dtt

t

0

sen.

Ainda que não possamos expressar Si (x) em termos de funções elementares, podemos, todavia, computar seus valores e plotá-los em um gráfico (fig. 63). Isto é feito escrevendo a função seno como uma série de potências, sen x = x – x

3/3! + x5/5! – + ···, dividindo cada termo por x, e então integrando termo a termo. O resultado é

Si (x) = x – x3/3 · 3! + x5/5 · 5! – + ···,

Uma série que converge para todo x.

Fig. 63. O gráfico de Si (x) = ∫x

dtt

t

0

sen .

Page 134: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

(sen x)/x 129

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Se deixarmos o limite superior x crescer indefinidamente, a área sob o gráfico terá um limite? A resposta é sim; pode ser mostrado que este limite é igual a π/2 1. Em outras palavras,

Si (∞) = ∫

=0

.2/sen

πdxx

x (3)

Esta importante integral é conhecida como integral de Dirichlet, em homenagem ao matemático alemão Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805-1859). Um subproduto inesperado dessa integral é obtido substituindo sen x por sen kx, em que k é uma constante, e fazendo então a substituição u = kx. Encontramos para a nova integral o valor de π/2 ou –π/2 , dependendo se k é positivo ou negativo (no segundo caso o limite superior se torna –∞, de forma que uma nova substituição v = –u resultará em –π/2). Teremos então o seguinte resultado:

(2/π) ∫∞

<−

=

>

=0 0para1

0para0

0para1sen

k

k

k

dxx

kx. (4)

Mas a expressão à direita, considerada como uma função de k, é a “função sinal”b mostrada na figura 64. Temos aqui um dos mais simples exemplos da representação de uma função por uma integral; a necessidade dessa representação freqüentemente surge na matemática aplicada. A integral à esquerda é conhecida como fator de descontinuidade de

Dirichlet.

Fig. 64. O gráfico de sgn (x).

b Normalmente vemos a representação da função sinal como sgn (x) ou sign x , sendo que a primeira será mantida nessa tradução. (N.T.)

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130 CAPÍTULO DEZ

◊ ◊ ◊

Das muitas ocorrências da função (sen x)/x, iremos considerar uma tirada da Geografia. Aprendemos cedo na escola que a Terra é redonda, embora tenha levado muitos séculos antes de que esse fato fosse universalmente aceito (os últimos crentes numa terra plana finalmente se renderam quando imagens tiradas de naves espaciais mostraram a Terra redonda). De fato, para os não-iniciados, não é imediatamente óbvio que vivemos em um mundo redondo – certamente muitas de nossas experiências cotidianas poderiam ser explicadas de forma mais natural se baseadas em uma Terra plana. Apenas indiretamente, principalmente por meio de observações astronômicas, que sabemos que a Terra é redonda.

Em seu clássico romance matemático Planolândia, Edwin A. Abbott descreve o mundo de duas dimensões, criaturas como formigas que podem se mover para frente e para trás e para a esquerda e direita, mas para cima e para baixo. Se esses “planolandenses” habitassem nossa Terra, eles poderiam não ter ciência de sua esfericidade: de seu ponto de vista a Terra pareceria plana como um tampo de mesa. Mas um dia eles decidem explorar seu mundo, buscando descobrir os fundamentos de sua geometria. Começando pelo Pólo Norte e usando uma corda esticada como compasso, eles descrevem círculos ao redor do pólo com raios cada vez maiores. Eles medem então a circunferência de cada círculo e as expressam em termos de seus raios. De volta para casa, passam a testar o que eles aprenderam na escola – que a razão entre a circunferênciac e o raio de um círculo é a mesma para todos os círculos, por volta de 6,28. Para círculos pequenos eles encontram, para seu deleite, que realmente parece ser o caso. Mas à medida que os círculos crescem, o que era certo se transforma em dúvida, e depois decepção: nossos planolandenses concluem que a razão circunferência-para-círculo não é constante, depois de tudo.

Para entender a razão disso, vamos tirar vantagem do privilégio garantido a nós, humanos, de sermos criaturas tridimensionais: nós sabemos que nosso mundo é redondo. Vamos chamar o raio da Terra – assumindo ser uma esfera perfeita – de R. Para encontrar a circunferência de um círculo ao redor do Pólo Norte, precisamos conhecer seu raio, e isso depende da latitude geográfica do círculo. Se, por maior simplicidade, medirmos a latitude não a partir do Equador, como é feito em Geografia, mas a partir do pólo Norte, então o raio de um círculo de latitude θ é r = R sen θ (veja fig. 65), e sua circunferência é

c = 2πR sen θ. (5)

Este resultado, é claro, é totalmente satisfatório para nós tridimensionais, mas para nossos habitantes bidimensionais é totalmente desprovido de sentido. Eles não têm idéia de que vivem em uma superfície curva, e se alguém lhes dissesse que seu mundo plana é na verdade esférico, eles ficariam realmente confusos. Para eles, uma grandeza como R, tirada da terceira dimensão, não sendo passível de uma medição direta, é tão sem sentido

c Aqui “circunferência” significa “perímetro”. (N.T.)

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(sen x)/x 131

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quanto para um estudante do Ensino Fundamental encontrar o volume de uma “esfera” quadridimensional.

Fig. 65. Círculo de latitude θ no

globo.

Para fazer com que a fórmula tenha sentido, precisamos expressá-la em termos de variáveis que nossos moradores possam medir. De fato, a variável mais importante, do ponto de vista deles, é o raio do círculo, medido na superfície da Terra. Vamos denotar esse raio pela letra grega ρ (rô). Se medirmos θ em radianos, teremos ρ = Rθ, e então R = ρ/θ. Substituindo essa expressão na equação (5), teremos

c =

θ

θπρ

sen2 . (6)

Logo, a circunferência não depende apenas do raio, mas também da latitude.

Antes de contemplar as conseqüências dessa fórmula, poderíamos conjecturar como nossos moradores poderiam medir a latitude θ sendo que eles ignoram a esfericidade de seu mundo. Eles poderiam ter um indício observando o céu sobre eles: poderiam observar, como os marinheiros em tempos remotos observaram, que a esfera celeste inteira parece rotacionar uma vez a cada 24 horas ao redor de uma estrela que parece permanecer imóvel – a Estrela Polar d. Além disso, a altura da estrela polar acima do horizonte decresce rapidamente ao viajar em direção ao sul; de fato, o ângulo θ entre a Estrela Polar e o zênite – o ponto na esfera celeste diretamente acima do observador – é proporcional à distância ρ para o Pólo Norte (como segue da equação ρ = Rθ).

d A Estrela Polar tem esse nome porque aparenta permanecer sempre fixa no firmamento num ponto coincidente com a projeção do eixo da terra. A atual estrela polar do norte é a Polaris da constelação de Ursa Menor. Como essa estrela é muito brilhante, é (ou foi) bastante usada para navegação. A atual estrela polar do sul é a Sigma Octantis, que por ser muito pálida, é preterida pela constelação do Cruzeiro do Sul como referência. Uma curiosidade: na bandeira do Brasil a Sigma Octantis representa a capital Brasília, pois todas as outras estrelas giram em torno dela. (N.T.)

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132 CAPÍTULO DEZ

E agora nossos habitantes estão prontos para pôr à prova o que aprenderam em suas aulas de Geometria. Para pequenas latitudes (distância angular a partir do Pólo Norte), eles irão observar que a razão c/ρ realmente aparenta ser constante, ou perto disso, como mostra a tabela 3.

Tabela 3

Nota: usando a equação (6), todos os ângulos devem ser primeiro convertidos para radianos (1º = π/180 radianos)

Seus agrimensores poderiam primeiro desprezar as pequenas discrepâncias em relação à constante devido a erros de medida, mas rapidamente se tornaria claro que a razão c/ρ não é constante, mas decresce com θ, como mostrado na tabela 4. (O 4 na última linha reflete o fato de que a distância do pólo ao equador é exatamente um quarto da circunferência do equador.)

Tabela 4

Tivessem nossos moradores estendido a tabela – isto é, para o hemisfério sul – a razão c/ρ continuaria a decrescer, até chegar a zero em 180º (o Pólo Sul). Ainda inconscientes de que seu mundo é redondo, eles teriam perdido qualquer fé remanescente naquilo que eles aprenderem sobre a constância da razão circunferência-raio.2 Mas talvez algum planolandense mais astuto pudesse interpretar essas medidas de forma diferente e concluir que o mundo em que eles vivem é na verdade curvo. Este sagaz planolandense poderia entrar para a história como o descobridor da terceira dimensão.

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(sen x)/x 133

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Podemos de fato traçar um mapa-múndi da forma como os planolandenses deveriam vê-lo. Conhecido como um mapa eqüidistante azimutal, ele mostra todas as distâncias em “linha reta”, a partir de um ponto fixo pré-selecionado localizado no centro do mapa, para qualquer outro ponto no globo. (Uma “linha reta” entre dois pontos de uma esfera é um arco de círculo máximo ligando-os – o círculo passando pelos dois pontos e com centro no centro da esfera [fig.66]; ele representa a menor distância entre dois pontos.) A figura 67 mostra um desses mapas centrado em São Francisco; vemos que a rota direta de São Francisco para Moscou passa pelo Pólo Norte, e que Moscou está mais próxima de São Francisco do que o Rio de Janeiro. Observe que África, Antártica e Austrália aparecem extremamente distorcidas, tanto na forma como no tamanho; isso se deve ao círculo de raio ρ centrado em um ponto fixo tem circunferência 2πρ no mapa, enquanto no globo sua circunferência é 2πρ (sen θ)/θ, em que θ tem o mesmo significado que na figura 65, mas com o ponto fixo substituindo o Pólo Norte. Os círculos concêntricos ao redor do ponto fixo são então exagerados pela razão 1:[(sen θ)/θ], ou θ/sen θ, em relação a seu tamanho verdadeiro no globo. Este fator de “exageramento” cresce com θ e se torna infinito quando θ = 180º, isto é, no antípoda do ponto fixo (seu ponto oposto no globo). Em um mapa eqüidistante azimutal, toda a borda externa representa o antípoda do ponto central; ela marca a fronteira do universo de nossos planolandenses – o ponto mais distante que eles podem alcançar em qualquer direção. Eles descobrem que seu universo, ainda que ilimitado, é finito.

Fig. 66. Arco de círculo máximo.

Page 139: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

134 CAPÍTULO DEZ

Fig. 67. Mapa-múndi eqüidistante

azimutal centrado em São

Francisco.

NOTAS E FONTES

1 A prova não é elementar; veja Richard Courant, Differential and Integral Calculus (1934; rpt. London: Blackie & Son, 1956), vol. 1, pp. 251-253 e 444-450 [edição brasileira – Cálculo Diferencial e Integral, editora Globo, 1966]; para uma prova alternativa utilizando integração no plano complexo, veja Erwin Kreyszig, Advanced Engineering Mathematics (New York: John Wiley, 1979), pp. 735-736.

2 Um situação similar ocorre com a área de um “círculo” de raio ρ (na verdade, uma calota esférica). Essa área é dada por A = 2πRh, em que h é a altura da calota (a distância de sua base até a superfície da esfera). Então h = R(1 – cos θ) = 2R sin2(θ/2), e então A = 4πR2sen2(θ/2) = 4π(ρ/θ)2sen2(θ/2) = πρ2{[sen (θ/2)] / (θ/2)}2. Um “fator de correção” de {[sen (θ/2)] / (θ/2)}2 é dessa maneira necessário se quisermos encontrar a razão A/ρ2.

Page 140: Trigonometric Delights - Português (145 Páginas)

11 Uma Fórmula Notável

O protótipo de todos os processos infinitos é a

repetição. Na verdade, nosso próprio conceito de

infinito deriva de nossa noção de que o que foi dito ou

feito uma vez sempre pode ser repetido.

- Tobias Dantzig, Número: A Linguagem da Ciência.

Nós não terminamos ainda com a função (sen x)/x. Folheando um dia um manual de fórmulas matemáticas, eu me deparei com a seguinte equação:

⋅⋅⋅⋅⋅=

8cos

4cos

2cos

sen xxx

x

x. (1)

Como eu não tinha visto essa fórmula antes, esperava que sua demonstração fosse bem difícil. Para minha surpresa, ela se mostrou bem simples:

2/cos2/sen2sen xxx ⋅=

2/cos4/cos4/sen4 xxx ⋅⋅=

2/cos4/cos8/cos8/sen8 xxxx ⋅⋅⋅=

⋅⋅⋅=

Após repetir esse processo n vezes, temos

2/cos...2/cos2/sen2sen xxxx nnn ⋅⋅⋅= .

Vamos multiplicar e dividir o primeiro termo deste produto por x (assumindo, é claro, que x ≠ 0) e o reescrevemos como x · [(sen x/2n)/( x/2n)]; teremos então

n

n

n

xxxx

xxx 2/cos...4/cos2/cos

2/

2/sensen ⋅⋅⋅⋅

⋅= .

Observe que nós invertemos a ordem dos termos remanescentes do produto (até agora finito). Se agora fizermos n → ∞ enquanto mantemos x constante, então x/2n → 0 e a expressão entre colchetes, sendo da forma (sen α)/α, tenderá a 1. Assim, teremos

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136 CAPÍTULO ONZE

=

=1

2/cossenn

nxxx ,

em que ∏ significa “produtório”. Dividindo ambos os lados por x, chegaremos à equação (1).

A equação (1) foi descoberta por Euler1 e representa um dos poucos exemplos de um produto infinito em matemática elementar. Uma vez que a equação é válida para todos os valores de x (inclusive x = 0, se definirmos (sen 0)/0 como 1), podemos substituí-lo, por exemplo, por x = π/2:

...16/cos8/cos4/cos

2/

2/sen⋅⋅⋅= πππ

π

π. .

Agora sen π/2 = 1 e cos π/4 = (√2)/2. Utilizando a fórmula do ângulo-metade

)2/cos1(2/cos xx += para cada um dos termos restantes, teremos, após uma rápida

simplificação,

...

2

222

2

22

2

22⋅

++⋅

+⋅=

π .

Esta bela fórmula foi descoberta por Viète em 1593; para estabelecê-la ele utilizou um argumento geométrico baseado na razão entre as áreas de polígonos regulares de n e 2n lados inscritos no mesmo círculo.2 A fórmula de Viète é um marco na História da Matemática: foi a primeira vez que um processo infinito foi escrito explicitamente como uma sucessão de operações algébricas. (Até então os matemáticos tinham o cuidado de evitar qualquer referência direta a processos infinitos, preferindo dizer que se tratavam de processos finitos que podiam ser repetidos quantas vezes se desejasse.) Adicionando as reticências ao final de seu produto, Viète, num lance corajoso, declarou o infinito como a alma da Matemática. Isto marcou o início da Análise Matemática, no sentido moderno da palavra.

À parte sua beleza, a fórmula de Viète é singular porque nos permite encontrar o número π por repetição usando quatro das operações básicas da aritmética – adição, multiplicação, divisão e raiz quadrada – todas aplicadas ao número 2. Isto pode ser feito até mesmo numa calculadora científica mais simples:

2 √x M ÷ 4 × 2 M+ RM √x M ÷ 2

(em algumas calculadoras mais antigas as operações de memória M, RM e M+ são marcadas como STO, RCL e SUM, respectivamente). A cada iteração você pode ler a aproximação corrente de π pressionando a tecla 1/x imediatamente após × na seqüência de teclas mostrada acima; pressione então 1/x novamente para iniciar a próxima iteração. É fascinante observar os números no display se aproximando gradualmente do valor de π;

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UMA FÓRMULA NOTÁVEL 137

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

após a nona iteração temos 3,1415914 – valor correto em cinco decimais. Uma calculadora programável, com certeza, irá acelerar as coisas consideravelmente.

É instrutivo examinar a equação (1) do ponto de vista da convergência. Observamos, em primeiro lugar, que a convergência dos produtos parciais para seus valores-limite é monotônica; isto é, cada termo adicional nos leva mais próximo do limite. Isto porque cada termo é um número menor que 1, fazendo com que o valor dos produtos parciais diminua continuamente. É um contraste marcante com a série infinita para (sen x)/x,

⋅⋅⋅−+−+−=

!7!5!31

sen 642 xxx

x

x , (2)

que se aproxima de seu limite alternadamente de cima e de baixo. A convergência, além disso, é muito rápida, ainda que seja um pouco mais lenta que a da série. A Tabela 5 compara as taxas de convergência das equações (1) e (2) para x = π/2:

Tabela 5 Série Infinita Produto Infinito

Nota: Todos os números foram arredondados para quatro casas decimais

A razão para a rápida convergência do produto infinito pode ser vista na figura 68. No círculo unitário marcamos os raios correspondentes aos ângulos θ/2, (θ/2 + θ/4), (θ/2 + θ/4 + θ/8), e assim sucessivamente. Esses ângulos formam uma progressão geométrica infinita cuja soma é θ/2 + θ/4 + θ/8 + ··· = θ. Agora, começando pelo eixo x, tomamos a projeção ortogonal de cada raio no próximo raio. Os comprimentos dessas projeções são 1, cos θ/2, cos θ/2 · cos θ/4, cos θ/2 · cos θ/4 · cos θ/8, e assim por diante. Vemos que após apenas alguns passos as projeções se distinguem muito pouco de seu valor final.

Seguindo o princípio de que toda identidade trigonométrica pode ser interpretada geometricamente, nos perguntamos qual o significado geométrico que podemos dar à equação (1). A resposta é dada na figura 69.

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138 CAPÍTULO ONZE

Fig. 68. Convergência do produto infinito ∏∞

=1

2/cosn

nx .

Fig. 69. Demonstração geométrica da fórmula xxxn

n /)(sen2/cos1

=∏∞

=

.

Começamos com um círculo de raio r0 centrado na origem. A partir do eixo x marcamos o ângulo θ, que intersecta o círculo no ponto P0. Conectamos P0 com P1, cujas coordenadas são (–r0, 0) e chamamos o segmento P1P0 de r1. O ângulo OP1P0, tendo seu vértice no círculo em P1 e subentendendo o mesmo arco que θ, é igual a θ/2.

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UMA FÓRMULA NOTÁVEL 139

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Aplicando a Lei dos Senos no triângulo OP1P0, temos

)º180(sen)2/(sen10

θθ −=

rr . (3)

Mas sen (180º – θ) = sen θ = 2 sen θ/2 · cos θ/2; substituindo na equação (3) e resolvendo para r1, temos r1 = 2r0 cos θ/2.

Traçamos agora um segundo círculo, tendo P1 como centro e r1 como raio. Temos

4/02 θ=∠ POP , e a repetição dos passos recém aplicados ao triângulo P1P2P0 levará a

r2 = 2r1 cos θ/4 = 4r0 cos θ/2 · cos θ/4, em que r2 = P2P0. Repetindo este processo n vezes, teremos um círculo com centro em Pn e raio rn = PnP0 dado por

nn

n rr 2/cos...4/cos2/cos2 0 θθθ ⋅⋅⋅= . (4)

Agora n

n POP 2/0 θ=∠ , e a Lei dos Senos aplicada ao triângulo OPnP0 nos dará

r0/(sen θ/2n) = rn/sen (180º – θ); então

nn

rr

2/sen

sen0

θ

θ= . (5)

Eliminando r0 e rn entre as equações (4) e (5), teremos

nnn 2/cos...4/cos2/cos2)2//(sen)(sen θθθθθ ⋅⋅⋅= . (6)

Com n crescendo indefinidamente, o ângulo 0POPn∠ aproxima-se de zero e então se

torna indistinguível de seu seno; em outras palavras, o arco cujo raio é rn tende à perpendicular de P0 ao eixo x. Então a equação (1) é a manifestação trigonométrica do teorema de que um ângulo inscrito em um círculo tem a mesma medida de que a metade do ângulo central que subentende o mesmo arco, repetido várias vezes para todos os ângulos cada vez menores inscritos em círculos cada vez maiores.3

NOTAS E FONTES

(Este capítulo é baseado em meu artigo, “Um Notável Identidade Trigonométrica”, Mathematics Teacher, vol. 70, nº 5 (maio 1977), pp. 452-455.)

1 E. W. Hobson, Squaring the Circle: A History of the Problem (Cambridge, England: Cambridge University Press, 1913), p.26.

2 Veja Petr Beckmann, A History of π (Boulder, Colo: Golem Press, 1977), pp. 92-96.

3 Uma prova da equação (1) baseada em considerações físicas é dada no artigo mencionado acima.

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Jules Lissajous e Suas Figuras

Jules Antoine Lissajous (1822-1880) não figura entre os gigantes da História da Ciência, mas seu nome é conhecido dos estudantes de Física por intermédio das “figuras de Lissajous” – padrões formados quando duas vibrações ao longo de linhas perpendiculares se sobrepõem. Lissajous ingressou na École Normale Supérieure em 1841 em mais tarde se tornou professor de física no Lycée Saint-Louis em Paris, onde estudou vibrações e acústica. Em 1855 ele desenvolveu um método ótico simples para estudar vibrações compostas: ele anexou um pequeno espelho a cada um dos objetos vibratórios (dois diapasões, por exemplo) e direcionou um feixe de luz para um dos espelhos. O feixe foi refletido primeiro para o outro espelho e dali para um grande anteparo, onde formou um padrão bidimensional, o resultado visual da combinação das duas vibrações. Essa idéia simples – um precursor dos modernos osciloscópios – foi uma inovação à época de Lissajous, pois até aquele tempo o estudo do som dependia tão-somente do processo de ouvir, isto é, do ouvido humano. Lissajous literalmente tornou possível “ver o som”.

◊ ◊ ◊

Seja cada vibração um movimento harmônico simples representado por uma onda senoidal; sejam a e b suas amplitudes, ω1 e ω2 as freqüências angulares (em radianos por segundo), φ1 e φ2 as fases, e t o tempo. Temos então

)sen(),sen( 2211 ϕωϕω +=+= tbytax . (1)

Com a progressão do tempo, o ponto P cujas coordenadas são (x, y) irá traçar uma curva cuja equação pode ser encontrada eliminando-se t entre as equações (1). Uma vez que as duas equações contêm seis parâmetros,1 a curva normalmente é um tanto complicada, exceto em alguns casos especiais. Por exemplo, se ω1 = ω2 e φ1 = φ2, teremos

)sen(),sen( ϕωϕω +=+= tbytax ,

Em que retiramos os índices sob os parâmetros. Para eliminar t das equações, observamos que x/a = y/b e então y = (b/a)x, a equação de uma linha reta. Da mesma forma, para ω1 = ω2 e uma diferença de fase igual a π chegamos à reta y = – (b/a)x. Para ω1 = ω2 e uma diferença de fase igual a π/2 temos (fazendo φ1 igual a zero)

tbtbytax ωπωω cos)2/sen(),sen( =+== .

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142 JULES LISSAJOUS

Dividindo a primeira equação por a e a segunda por b, elevando os resultados ao quadrado e somando, temos

1

2

2

2

2

=+b

y

a

x,

Que representa uma elipse com eixos ao longo dos eixos x e y (além disso, se a = b, a elipse se torna um círculo). Para uma diferença de fase arbitrária, a curva será uma elipse inclinada, cujos exemplos anteriores são casos especiais (com as retas y = ± (b/a)x sendo elipses degeneradas). Se deixarmos as diferenças de fase variarem continuamente, a elipse irá mudar lentamente sua orientação e formato, passando (no caso em que a = b) da circunferência x2 + y2 = 1 para as retas y = ± x e voltar (fig. 70).

Se as freqüências não forem iguais, a curva será muito mais complexa. Por exemplo, quando ω1 = 2ω2 (musicalmente falando, quando as duas vibrações estão separadas por uma oitava), temos

)2sen(),sen( ϕωω +== tbytax ,

Em que novamente eliminamos os índices e fizemos φ1 = 0. O tipo de curva que teremos depende agora de φ. Para φ = π/2 temos

tbtbytax 2cos)2/2sen(),sen( ωπωω =+== .

Utilizando a identidade cos 2u = 1 – 2 sen2 u e eliminando t das duas equações resulta em

y = b[1 – 2(x/a)2]. Esta equação representa um segmento parabólico em que o ponto P move-se em vaivém ao longo do tempo. Para outros valores de φ a curva pode ser um segmento fechado (fig. 71).

Uma outra observação é digna de ser mencionada. Enquanto a razão entre as freqüências ω1/ω2 for um número racional, a curva – não importa quão complexa seja – eventualmente irá repetir a si mesma, fazendo com que o movimento seja periódico.2 Mas se ω1/ω2 for irracional, o ponto P nunca irá repetir o mesmo caminho, resultando em um movimento não-periódico. Entretanto, com o passar do tempo, a curva gradualmente irá preencher o retângulo definido pelas retas x = ±a, y = ±b (fig. 72).

◊ ◊ ◊

O trabalho de Lissajous foi elogiado por seus contemporâneos e discutido pelos físicos John Tyndall (1820-1893) e Lord Rayleigh (John William Strutt, 1842-1919) em seus clássicos tratados sobre acústica. Em 1873 ele foi agraciado com o prêmio La Cazea por seus “belos experimentos” e seu método foi exibido na Exposição Universal de Paris em 1867.

a Prêmio máximo da Academia Francesa de Ciências (N.T.).

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JULES LISSAJOUS 143

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Fig. 70. Figuras de Lissajous: o caso ω1 = ω2.

Mas aparentemente não há nada de novo sob o sol: as figuras de Lissajous haviam sido descobertas muito antes pelo cientista autodidata americano Nathaniel Bowditch (1773-1838), que as produziu em 1815 com um pêndulo composto.3 Uma variação desse dispositivo, em que o movimento de dois pêndulos é combinado e traçado em um papel pela ponta de uma caneta anexada a um dos pêndulos, tornou-se um demonstração de ciência popular no século dezenove (fig. 73); as figuras subseq6uentes eram chamadas de “harmonogramas”, e sua incrível variedade nunca falhou em impressionar os espectadores (fig. 74).4

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144 JULES LISSAJOUS

Fig. 71. Figuras de Lissajous: o caso ω1 = 2ω2.

Fig. 72. Figuras de Lissajous para o caso em que ω1/ω2 é irracional.

Fig. 73. Harmonógrafo. De um livro de ciências do século dezenove.

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JULES LISSAJOUS 145

Eli Maor Tradução livre: [email protected]

Fig. 74. Harmonogramas.

A novidade no método de Lissajous foi que ele deixou o método mecânico e contou com o agente da luz, muito mais eficiente. Nisso ele foi um visionário, profetizando nossa era eletrônica moderna.

NOTAS E FONTES

1 Na verdade, cinco parâmetros são suficientes, uma vez que apenas a fase relativa (isto é, a diferença de fases) realmente importa.

2 O período será o mínimo múltiplo comum dos dois períodos individuais.

3 Florian Cajori, A History of Physics (198, ed. Rev. 1928; rpt. New York: Dover, 1962), pp. 288-289.

4 Em 180 meu colega Wilbur Hoppe e eu construímos um pêndulo composto como parte de um workshop de modelos matemáticos na Universidade de Wisconsin – Eau Claire. Os padrões mostrados na figura 74 foram produzidos com esse dispositivo.