Transcript

I nstituto D ireito P enal C incias C riminais

1 Conferncia Internacional InternationalConference Emoes e Crime Emotions and Crime Filosofia, Cincia, Arte, Direito Penal Philosophy, Science, Art, Criminal Law ACIDENTALMENTE DEMENTES? EMOES E CULPA NAS SOCIEDADES MULTICULTURAIS

Augusto Silva Dias Professor Associado da Faculdade de Direito de Lisboa 1. Sociedades multiculturais e o problema da incomunicao Fumiko Kimura, uma mulher japonesa, de 32 anos de idade, imigrante residente na Califrnia, no dia29deJaneirode1985lanou-senasguasdooceanoPacficocomos seusdoisfilhosde4 anos e de 6 meses. Os filhos encontraram a morte imediata e Kimura sobreviveu graas aco de socorristas. Foi acusada de duplo homicdio do primeiro grau e o seu advogado bateu-se pela semi-imputabilidadedaarguidainvocandotemporaryinsanity,umadefenseprevistano ordenamentojurdiconorte-americano,emespecialnoCdigoPenaldaCalifrnia.Nove psiquiatras confirmaram que Kimura sofria de temporary insanity tendo baseado esta concluso nafrustrao,nosentimentodefracasso,naperdadeauto-estimaenaincapacidadede distinguirasuavidadavidadosfilhos,vendo-oscomoextensesdesiprpria.Aestratgia delineadavingouemsededepleabargaining,aacusaofoiconvoladaemvoluntary manslaughtereKimuraacaboucondenadanapenade1anodepriso,quejhaviacumprido enquantoaguardavajulgamento,eem5anosdeprobationcomaobrigaodetratamento psiquitrico. A factualidade que chegou ao processo e permite explicar ogesto trgico de Kimura revela que elatomaraconhecimentodequeomarido,tambmjapons,atraacomumaamantehtrs anos.Kimuratersentidoumaprofundavergonhaehumilhao:afaltacometidapelomarido significavaaseusolhosqueelaforaincapazdeoconquistaredeproporcionaraosfilhosum ambienteverdadeiramentefamiliar.OsuicdiosurgiunoespritoangustiadodeKimuracomo uma sada para tamanha experincia interior de inadequao e de fracasso. Opragmatismodoadvogado,quecolocouacimadetudoointeressedaclienteemnosofrer umapuniograve,eapresunodecientificidadedosrelatriospsiquitricosproduzidos, conduziram a uma deciso condenatria moderada na apreciao do caso e na pena aplicada. O recursotemporaryinsanitypermitiacomporumasoluoequilibradaqueevitasseimpor mulher mais sofrimento do que aquele que resultava do suicdio falhado e da perda dos filhos. E davarespostadecertomodoaosanseiosdacomunidadejaponesanosEUAqueatravsde

O texto est escrito de acordo com a ortografia antiga. 2 artigosnaimprensacalifornianaedeumapetiocommaisde25.000assinaturasapelavas autoridadesjudiciriasparanoperseguiremcriminalmenteKimuraporqueelaselimitaraa sentireaagirdeacordocomumcdigoculturaldiferentedodasociedadenorte-americana. Noobstante,muitasquestesficaramportadotribunal.Porqueteriaumepisdiode infidelidadeconjugal,nadaextraordinrionoquotidianodageneralidadedassociedades ocidentais,levadoKimuraasentirvergonhaehumilhaotoprofundas?Eporquerazo decidiu arrastar os filhos nessa deciso trgica? No haver uma lgica interna a estas reaces e decises? A filiao cultural de Kimura no contribuir para a explicar? Estas interrogaes no foramverdadeiramenteenfrentadasnoprocessonemrespondidasnasentena.Asoluoda demncia acidental patrocinada pela defesa, legitimada pelos relatrios psiquitricos e adoptada pelasentena,branqueouumaspectodecisivoparacompreenderareacoemocionalde Kimura e o seu comportamento subsequente: a sua identidade cultural. A supresso deste factor nasentenadeve-seaumaatitudedeincomunicaointercultural,quefrequenteem sociedadesmulticulturais,masinaceitvelporqueignoraumaimportantedimensoda identidade das pessoas e comporta uma incorrecta realizao da justia: em termos processuais, constitui uma grave omisso de pronncia. 2.Cultura e emoes: complementaridade funcional 2.1. Dimenso universal e dimenso cultural das emoes Como exps a abundante literatura nas reas da antropologia, da psicologia social e transcultural edacinciapenal,de1985aestaparte,querareacoemocionaldeslealdadedomarido, quer a deciso de se suicidar, quer ainda a resoluo de levar os filhos consigo, so explicveis luzdaculturaancestraldecertasregiesdoJapo.Kimuraterpraticadoooyako-shinjuou, numa traduo livre, o suicdio de pais e filhos 1. Trata-se de um procedimento ou ritual que visa assumireredimiravergonha,salvarafaceperanteosoutrosedemonstrarapegoeamoraos filhos.Poroutraspalavras,serveparaexprimirecanalizarumconjuntodeemoesedenota uma forte interdependncia pessoal que caracterstica de culturas colectivistas. Atravsdeinmerasexperincias,umsectordapsicologiatransculturalpsemevidnciauma dimensobsicaeuniversaldasemoes.Dessasexperinciasresultaquepessoasdasmais diversasproveninciasculturaisexperimentamalgumasemoesemcomumeexteriorizam essa experincia atravs de expresses faciais e vocais e de respostas fisiolgicas semelhantes. ocasodaraiva,repulsa,medo,alegria,tristezae(paraalgunsautores)surpresa 2.Alguma universalidadepareceexistirtambmemcertosconstituintesbsicos(buildingblocks)das emoes.Porexemplo,aavaliaodequeumasituaopositivaparaalgum(ganharum prmio,acabarumcursosuperior)umaspectoimportantedeumaexperinciaemocional positiva,do mesmomodoqueaavaliaodequeumasituao negativa paraalgum(sofrer 1 Sobre a evoluo semntica do termo shinju (cujo significado originrio era pacto de suicdio entre amantes) e osignificadodeoyako-shinju,v.oestudodospsiquiatrasTAKAHASHIeBERGER,Culturaldynamicsandthe unconsciousinsuicideinJapan,inLEENAARS/LESTER(eds.),Suicide&theunconscious,ed.JasonAronson, 1996, p.250 e s.2 V. MESQUITA/FRIDJA, Cultural variations in emotions: a review, in Psychological Bulletin, vol.112 (1992), n2, p.181 e ss. e 198; NIEDENTHAL/KRAUTH-GRUBER/RIC, Psychology of emotion, ed.Psychology Press, 2006, ps.42, 309 e 327. 3 uma injustia, morte de um ente querido) implica a experincia de uma emoo negativa 3. Por aquiseficaaditadimensouniversaldasemoes.Emtudoomaisas emoessomarcadas por particularidades culturais. O que no surpreende se pensarmos que as pessoas no crescem e vivem em mundos uniformes, mas em mundos da vida muito diversos 4. As emoes so reaces neurofisiolgicas e psicolgicas por meio das quais a pessoa se adapta asituaesdavidasocial 5.Porisso,sofortementeconfiguradaspelaculturadapessoa.As culturassosistemasdesignificado,partilhadospelosmembrosdeumgrupoetransmitidos atravs de geraes, que visam coordenar o comportamento e assegurar a coeso colectiva. As normasculturaisestoassociadasregulaodasemoesporqueestasconstituemum importantefactordemotivaodocomportamento 6.Culturaeemoesso,pois,processos interactivos, que se interpenetram: a cultura influencia o modo como as emoes so expressas e canalizadas e as emoes influenciam o desenvolvimento de significados e prticas culturais 7. Isto no significa naturalmente que as emoes sejam reaces mecnicas ditadas pela cultura. Nada seria mais errado, no s porque as culturas no so sistemas monolticos e imutveis que determinam causalmente o sentir e o agir dos seus membros mas tambm porque as emoes so sempre, em ltima instncia, expresso do indivduo. O que pretendemos afirmar isso sim que h uma componente cultural, colectiva, na vida das emoes. Dito de um outro modo, que h modos culturais tpicos de reagir emocionalmente a certas situaes e de proceder ou agir de acordo com as emoes geradas. E que esses modos colectivos podem influenciar as atitudes e reacespsicolgicasdosindivduos,constituindo,assim,comoumimportanterecursoparaa compreenso destas. 2.2. Culturas colectivistas e individualistas Seaculturainfluenciaomodocomopercebemosomundoereagimosemocionalmentes situaesdavida,essainflunciavariadeacordocomascaractersticasdacultura.Aeste respeito,pesquisasnasreasdapsicologiasocialetransculturalapontamnosentidoda 3Nestesentido,MESQUITA/HAIRE,Emotionandculture,inEncyclopediaofAppliedPsychology,vol.I,ed, Elsevier Inc., 2004, p.733. 4Istonosignificademodoalgumumadefesadoparticularismooudorelativismomoral,nemumaposio cptica perante estruturas normativas universalisantes, mas apenas o reconhecimento de que o primeiro nvel dohumano,noqualageneralidadedasemoesirrompem,particular,cultural.ComoafirmaCLIFFORT CLL81Z-sehumanotornar-seindivduoeissoprocessa-sesoborientaodepadresculturaisede The interpretationofcultures,ed.BasicBooks,1973,p.49.S MA8lA lL8nAnuA PALMA, O princpio da desculpa em Direito Penal, ed. Almedina, 2005,p.147. 5 V. MATSUMOTOe al., Mapping expressive differences around the world: the relationship between emotional displayrulesandindividualismversuscollectivism,inJournalofCross-culturalPsychology,vol.39(2008),n1, p.58. 6Nestesentido,v.MATSUMOTOeal.,Mappingexpressivedifferencesaroundtheworld,p.58;TUNICK, ,inPunishment&Society,vol.6(2004),p.399,sublinhandoaconexoentreanossa filiaoculturaleomodocomopercebemos,pensamoseatribumoscausalidade,incluindoacausalidade moral. 7Nestesentido,v.NIEDENTHAL/KRAUTH-GRUBER/RIC,Psychologyofemotion:interpersonal,experientialand cognitive approaches, ed. Psychology Press, 2008, p.312. 4 diferenciaoentreculturascolectivistaseindividualistas 8.Trata-sedemodelosheursticos construdosapartirumasriedeexperinciasrealizadascompessoasdeorigemasitica, europeiaenorte-americanaqueprocuramsistematizaromodocomoessaspessoassenteme agem. Na hora de os convocar convm no ignorar as suas limitaes: os modelos culturais no pretendemsignificarquehapenasdoismodosdeexperimentaremoes,abrindoaportaa ulterioresdiferenciaesecontextualizaesculturais 9,nem,muitomenos,quetodasas pessoas pertencentes ao mesmo universo cultural reagem emocionalmente e actuam da mesma forma.Esclarecidoesteponto,soapontadassculturascolectivistas,brevitatiscausa,asseguintes caractersticasprincipais:1.Fomentodainterdependnciaentreosindivduosedeobjectivos internos aogrupo 10; 2.Incentivo conformidade com as regras culturais do grupo e prescrio de sanes que reforam essa conformidade; 3. Promoo de emoes envolventes (engaging), quefacilitamacoesoeaharmoniadogrupo,edesincentivodeemoesdissolventes (disengaging),queameaamacoesodogrupo;4.Desenvolvimentodeummaiornmerode emoesnegativasdoquepositivasnoscontactoscomoutrosgrupos,oquecria simultaneamentemaiordistanciamentoefortaleceaidentidadeinternadogrupo;5. Predominncia da vergonha como emoo moral, judicativa, na vida emocional dos membros do grupo 11; 6. Tendncia para a ritualizao das emoes 12. No difcil perceber como a conduta de Fumiko Kimura se inscreve nestas coordenadas. Apesar devivernosEUAh14anos,asuadecisoreflecteostraosdeumaidentidadecultural colectivistaprpriadasuaorigemasitica.Aadesoprticadooyako-shinjudenunciaa vergonharesultantedaassunodofracassocomoesposaecanalizaritualmenteodesejode, atravsdosuicdio,seredimiraosolhosdosoutros.Masdenunciatambmumaforte interdependncia, quer no modo como encara o papel da mulher quer na relao com os filhos, concebendo-os,nocomopessoasautnomas,mascomoextensesdame 13.Meefilhos 8Sobreestadistinov.oestudodeMATSUMOTOeal.,Mappingexpressivedifferencesaroundtheworld, passim;NIEDENTHAL/KRAUTH-GRUBER/RIC,Psychologyofemotion,p.314ess.;MESQUITA/HAIRE,Emotion and culture, p.735, considerando que os modelos culturais formam um contexto de compreenso e de previso de respostas emocionais. 9Nestesentido,muitoclaramente,MESQUITA/LEU,Theculturalpsychologyofemotion, inKITAYAMA/COHEN (eds.), Handbook of Cultural Psychology, ed. Guilford Press, 2007,p.735. 10V.KITAYAMA/MESQUITAKARASAWA,Culturalaffordancesandemotionalexperience:engagingans disengaging emotions in Japan and United States, in Journal of Personality and Social Psichology, vol.91 (2006) n5, p.891, caracterizando como interdependentes as culturas asiticas, por estimularem a harmonia social, os deveres para com o colectivo e a simpatia. 11 Sobre a vergonha e a culpa como emoes morais, isto , que implicam um juzo ou valorao negativa sobre a pessoa ou algum trao do seu carcter, v. NIEDENTHAL/KRAUTH-GRUBER/RIC, Psychology of emotion, p.96 e ss.Notamestesautoresqueorespeitopelaautoridadeeaharmoniadogrupo,caractersticosdasculturas colectivistas,estoassociadosaumatendnciaparaexpressarvergonhav.p.315;emsentidoanlogov. MESQUITA/FRIJDA,Culturalvariations in emotions, p.183e s. assinalando a relaoentre vergonha eculturas da honra. 12Sobreafunodosrituaisv.AUGUSTOSILVADIAS,Fazsentidopuniroritualdofanado?Reflexessobrea punibilidadedaexcisoclitoridiana,inRevistaPortuguesadeCinciaCriminal,ano16(2006),p.10ess.; MESQUITA/FRIJDA,Culturalvariationsinemotions,p.197,afirmandoqueosrituaissocomportamentos institudosqueremovemanecessidadedeexporasprpriasemoesindividuaiseoferecemaoportunidade de as expandir de um modo socialmente a 13 Neste sentido, v. RASHMI GOEL, Can I call Kimura crazy? Ethical tensions in the cultural defense, in Seattle Journal for Social Justice, vol.3 (2004) n1, p.448 e s. 5 formamumaunidadeincindvelquepartilhaumdestinocomum.Adesonraeavergonhada mecontaminaosfilhos, tornando-osalvodeostracismoediscriminao social.Deix-lospara trs nestas circunstncias significaria juntar ao fracasso como esposa o fracasso como me. Da que o oyako-shinju seja compreendido como suicdio de me e filhos e no como homicdio dos filhos.Acompreensodofactocomohomicdiopressupeumaperspectivadosfilhoscomo sujeitosautnomos,comosucedenasculturasindividualistas,enocomosereshumanos unidosmepelodestino.Vistocomoextensodaauto-lesodaprpriavida,osacrifcioda vida dos filhos surge como obrigao decorrente do papel de boa me 14. NopodiasermaioradisparidadedevaloraesdoacontecimentoentreoDireitoPenalda Califrnia ou de um pas europeu e o cdigo tico-cultural atravs do qual Kimura pensava e se decidiu a agir. luz do Direito Penal da Califrnia, Kimura censurada precisamente porque no reconheceu os seus filhos como pessoas autnomas, que merecem viver as suas prprias vidas, por mais miserveis que fossem a seus olhos. Isto , o comportamento devido, esperado e cuja faltasecensura,noimplicaravidadosfilhosnadecisodesesuicidar,respeitaroseu estatuto de pessoas autnomas, fazendo precisamente aquilo que segundo o seu cdigo cultural significariaromperaligaocomeles,deix-losparatrs,mercdamfortuna;emsuma, proceder como uma m me. Nas palavras dos psiquiatras YOSHIMOTO TAKAHASHI e DOUGLAS BERGER 15 re me e filhos que provoca o oyako-shinju ... a me suicida no pode deixar os filhos sobreviver sozinhos; ela prefere mat-los porque acredita queningumnomundotomariacontadelesmelhordoqueelaequemelhorparaeles 2.3. Emoes e identidade pessoal Humaspectonarelaoentreemoeseidentidadeculturalqueimportavincaraqui.As culturas,nosentidoantropolgicoquelhesconferimos,nosoblocosmonolticosque determinamasemoeseasacesdaspessoascomosedemarionetassetratasse.A identidadepessoalcomplexa,frutodasdiversasfiliaescolectivasedosdiversospapeis sociais que cada um desempenha, e a identidade cultural apenas uma das suas dimenses. As reaces emocionais e comportamentais so filtradas pela complexidade nica que cada sujeito .Significaisto,desdelogo,queaexplicaodetaisreacesnodispensaaapreciaoda mundivivncia individual.Nem toda a gente socializada segundo o mesmo cdigo cultural reage eprocededomesmomodo.AorigemjaponesadeKimuranoimplicavaporsis necessariamenteamortedosfilhos:muitasmesjaponesasquepassamporprovaes semelhantes no cometem oyako-shinju 16. Muitas conseguem optar por outra via e divergir ou romper mesmo com os imperativos da prpria cultura.Kimuranopodiafazeromesmo?Nolheeraexigvelque,vivendoh14anosnosEUAao tempodosfactos,cuidasseegerisseassuasemoesdeoutramaneira?Arespostaaestas questespassapelaapreciaodasuaexperinciadevida,designadamentedaexperinciade contactoscomrealidadesculturaisdiferentes,doseugraudeintegraonaculturanorte-americanaedasoportunidadesdeintegraoqueasociedadededestinolheproporcionou.A anlisedestesfactorespermite-nosperceberqueresistnciaspodiaKimuraoporvergonhae 14 Neste sentido, v. RASHMI GOEL, Can I call Kimura crazy?, p.447 e s. 15 V. Cultural Dynamics and the unconscious in suicide in Japan, p.252. 16 V. MOODY-ADAMS, apud TUNICK,, p.397 e ss. 6 humilhao que a deslealdade e o abandono do marido lhe causaram e relao entre estas e a sortedosfilhos.Podiaelacontrolaraintensidadedestasemoesesobretudosepararoseu destinododosfilhos,encarando-oscomofinsemsimesmosepoupando-ossuadeciso trgica?SegundoTAKAHASHIeBERGER 17,apesardeKimuravivernosEUAhalgumtempo, permanecia japonesa no seu modo de pensar e no seu estilo de vida, isolada de contactos com a culturanorte-americana.Noconduzia,nofalavabemingls,notrabalhava,nosabianada dos negcios do marido e no tinhapassatempos ou amigos fora do crculo estreito da famlia: desse t-la detido na altura da A falta de contactos, de experincias culturais diversas e provavelmente a falta de oportunidades deintegraonasociedadededestino,ditaramemKimuraumavidaemocionalfechada, homogneaefortementepermevelaosimperativosdasuaculturadeorigem.Estestraos biogrficos, juntamente com a sua identidade cultural, explicam a incapacidade de Kimura gerir deoutromodoassuasemoeseadecisodooyako-shinju.ComosublinhaMARKTUNICK 18, mesmoquesejacorrectaaideiadequeaspessoaspodemromperoudivergirdasuacultura, processosdesocializaoqueenvolvemeducao,habituaoecoeroeatravsdosquaisa 3. Emoes e culpa 3.1. Justificao (em sentido amplo) e exculpao AsacesculturalmentemotivadasquecaemnaaladadoDireitoPenalesosujeitas apreciao da responsabilidade criminalno relevam todas no plano da culpa. O factor cultural poderelevartambmemsededejustificaoemsentidoamplo(abrangendoaatipicidadeda conduta) 19.Assimsucedequandoestemcausaumproblemadedelimitaodedireitos 20, mais concretamente, quando se trata de apurar se a aco praticada est coberta pelo direito prpriacultura,umdireitoacolhidoemvriosdiplomasdeDireitoInternacional 21,eseisso podeconstituirumarazoparaagirluzdoDireito.Servedeexemploocasodomuulmano queabateclandestinamenteumanimal,segundooritualreligioso,comoformadeadquirir carne halal. Nestas situaes, o quadro afectivo-emocional relacionado com a filiao religiosa e culturaldosujeitonodesaparecedecena,maspadronizadoedecertomododiludono problema da extenso e dos limites do direito prpria cultura. 17 v. Cultural Dynamics and the unconscious in suicide in Japan, p.252. 18 v. , p. 400. 19 Neste sentido, v. MARIA FERNANDA PALMA, O princpio da desculpa, p.162 e s. 20 Este problema pode ser suscitado (com solues divergentes) quer no quadro da definio da amplitude da proibiopenal,quando,porexemplo,odireitoprpriaculturacolidecomproibiesdecarcter administrativo,cujaviolaointegraoilcitotpicopenal,quernoquadrodoconcretoconflitodedireitos, quandoodireitoprpriaculturacolidecomosdireitosintegridadefsicaeintegridadepsquicadas vtimas - sobre o tema v. MARIA FERNANDA PALMA, O princpio da desculpa, p.150 e s. 21v.oart.27doPactoInternacionaldosDireitosCivisePolticos,oComitdosDireitosHumanosde16de Dezembro de 1966, o art.30 daConveno sobre os Direitos da Criana de 20 de Novembro de 1989, o art.2 n1daDeclaraosobreosDireitosdasPessoasPertencentesaMinoriasNacionaisoutnicas,Religiosase Lingusticas de 1992 (ONU), o art.5 da Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001 (UNESCO), os arts.3 e 5 da Declarao de Friburg de 7 de Maio de 2007. 7 Squandoaquestodoexercciodeumdireitoresolvidanegativamentesobeaoprimeiro planodaresponsabilidadeaquestodacensurapessoaldoagenteeadquireentorelevo aquele quadro emocional, numa perspectiva, no j padronizada, mas individualizante. oque se passa, em meu entender, no caso Kimura. Dos pontos de vista moral e jurdico seja qual for o ordenamento jurdico considerado - no se discute se Kimura tem o direito de envolver a vida dosfilhosnasuadecisodesuicdio,masse,tendoemcontaoseutiposocial,queinclui necessariamenteasuafiliaocultural,asuavivnciapessoal,asuaconcepodeboame, pode ela ser censurada por essa deciso. A resposta requer uma apreciao cuidadosa do modo como a pessoa em concreto conseguiu gerir internamente a relao entre identidade cultural e emoes. 3.2. Apreciao paralela na esfera do leigo e dilogo intercultural Estaapreciaodeparacomcertosbloqueiosedistores,geradospeladistnciacultural,que designeigenericamentecomoincomunicao.Umdelesconhecidopeloerrodeprojeco. Trata-sedeumconceitooriundodaantropologia,maisexactamentedaobradeFRANZBOAS, quealertaparaodefeitodeinterpretarmosprticaseusosculturaisalheios,quese assemelham,nasuaexterioridade,aosqueocorremnanossaformadevida,deacordocom conceitos,significaeseimagensdanossamundividnciacultural.Ditodeumoutromodo,o erroemcausaassentaemdoisrequisitos:porumlado,naconstataodequeaacodo forasteirodealgummodosemelhanteaacespraticadasporpessoasdanossacultura;por outrolado,nodesconhecimentodasmotivaesculturaisquelevaramoforasteiroaagir 22.O erro de projeco consiste pois em atender analogia externa, sacrificando a diferena interna das aces, isto , o sentido que lhes conferido pelo cdigo cultural do forasteiro. Como se a aco praticada pelo forasteiro fosse simple 23. Esta postura assimilante presta-se aos maiores equvocos, tanto no labor antropolgico como na administraodajustiapenal.Oerrodeprojecoimpedeojulgadordeentenderoregisto culturalemqueoagenteactuoueainflunciaquetevenoquadroemocionalqueconduziu aco. Pode levar facilmente patologizao da identidade cultural do agente 24 e vedar assim o acesso aos motivos reais que explicam a aco e, por arrastamento, frustrao de uma justia 22 Sobre o erro de projeco v. JOHN COOK, Morality and cultural differences, ed. Oxford University Press, 1999, p.89 e ss. 23 A este propsito defendia FRANZ BOAS,The aims of Ethnology,in Race, Language and culture, ed. The Free libertar destes grilhes. Isto s possvel queles que se adaptam aos modos estranhos de pensar e de sentir dos povos primitivos. Se tentarmos interpretar as aces dos nossos antepassados remotos atravs das nossas atitudesracionaiseemocionaisjamaisalcanaremosresultadoscorrectos,poisoseumododepensarede 1 24 Uma anlise desta tendncia na jurisprudncia norte-americana feita por SITA REDDY, Temporarily insane: pathologising cultural difference in american criminal courts, in Sociology of Health & Illness, vo.24 (2002) n5, p.667 e ss., debruando- k S eraadmitida,comoemPeoplev.Kimura,adefesaapoiava- estava psiquicamente incapaz de realizar o homicdio premeditado dos seus dois filhos. Mas procedendo assim, otribunaleliminouarealidadeculturaldooyako-shinju(...)queKimuraalegouterpraticadoreduzindo-o n esta anlise a outros crimes culturalmente motivados e muito menos quando cinderepresentaes culturais e identidade cultural, enquanto dimenso da identidade pessoal. 8 A 25eporissonopodesercorrectamenteentendidoomodocomoelafiltrouese relacionou com a mensagem normativa da proibio.Podeargumentar-sequeestametodologiadeficientenotevenocasoKimuraconsequncias graves,mastalveznosejabemassim,porquetendoodefensor,oprocuradoreojulgador descuradoofactorcultural,ficouporapuraratquepontoKimuraseencontravaarreigada sua cultura de origem e at que ponto esta ter influenciado a tenso emocional por ela vivida. TalvezKimuranoestivesseemcondiesderesponderfavoravelmentesdeterminaesdo Direito e no tivesse outra opo que no seguir o oyako-shinju, encontrando-se numa situao quecaracterizariacomoestadodenecessidadeexistencialequepoderialevardispensaou atenuaoespecialdapena,poranalogiacomoart.35n2doCP 26.Nosepodecensurar pelo menos, no de uma forma plena -uma pessoa a quem a vivncia de uma tenso emocional intensa,causadaporvnculosculturaiscomosquaisnoconsegueromper,privadereais alternativasdeaco.Massejacomofor,seofactorculturaltivessesidodevidamente considerado, Kimura no teria sido seguramente sujeita obrigao, decorrente da aplicao da probation,detratamentopsiquitricodurante5anos,comosedeumadoentementalse tratasse. A forma de evitar este tipo de distores introduzir no dilogo de culpa o dilogo intercultural, isto , abrir o processo e a deciso judicial diferena e singularidade cultural do agente. Esta via exigida desde logo pelo princpio da culpa, nas suas decorrncias de imputao subjectiva e de censurapessoal.Umaeoutraentroncammetodolo 27, um procedimento que implica uma mediao pelo juiz entre as valoraes do Direitoeouniversodesignificadosevaloraesemqueoagentesemove.Noscrimes culturalmentemotivadosoleigoooutro,oestrangeiro,oquevemdefora.Porisso,essa mediaonopodedispensaraindagaodograudefiliaoculturaldoagenteedasua capacidadedegerir,tambmemocionalmente,osditamesdasuacultura.Ambososaspectos escapamhabitualmenteexperinciadevidaescompetnciascognitivasdojulgador.Este algum socializado numa cultura diferente, exposto interferncia de esteretipos e ao erro de projeco.Porisso,naqueleprocedimentocomunicativo,areconstituiodainflunciado factorculturalnaacorequerumaculturalevidencesuportadaespecialmenteporpercias efectuadasporantroplogos,psiclogossociaiseespecialistasempsiquiatriatransculturalque conheamcomprofundidadeaformadevidaeaculturadeorigemdoagente.Aexignciade um conhecimento especfico imposta no s pelo instituto da percia, pois o perito tem de ser umespecialistanaquestofcticacontrovertida,mastambmpelaevidnciadequesdesse modoaperciapoderauxiliarotribunalareconstituirasfiliaesculturaiseasreaces 25 Neste sentido, v. RASHMI GOEL, Can I call Kimura crazy?, p.451 e s., reportando-se ao caso Kimura. 26 Admite a possibilidade de alargamento do contedo da desculpa, designadamente do estado de necessidade MA8lA lL8nAnuA ALMA O princpio da desculpa, ps.165, 168 e s. e 232 e s 27Nestesentido,ARTHURKAUFMANN,DieParallelwertunginderLaiensphre:einsprachphilosophischer BeitragzurallgemeinenVerbrechenslehre,ed.BayerischeAkademiederWissenschaften,1982,p.37ess.; FilosofiadoDireito,ed.Gulbenkian,2004,p.193ess.;AUGUSTOSILVADIAS, , p.370 e ss.; Faz sentido punir o ritual do fanado?, p.35 e s.