View
23
Download
1
Category
Preview:
DESCRIPTION
Doutrinas Políticas - Liberalismo
Citation preview
LIBERALISMO
MDULO NICO - LIBERALISMO
Estamos no incio de um curso sobre Doutrinas Polticas Contemporneas:
Liberalismo. Convm, assim, esclarecer alguns pontos sobre o significado do
ttulo e a forma do curso.
O que so doutrinas polticas contemporneas?
Na perspectiva que aqui adotamos, so aquelas correntes de pensamento que
inspiram e orientam os partidos polticos importantes em termos de influncia,
voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas
correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os
meios recomendados para alcanar esses objetivos.
O critrio, portanto, prtico. No vamos discutir correntes de pensamento que
alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. No
vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje
nenhum partido de peso defende o retorno ordem econmica, social e poltica
pr-moderna. Pela mesma razo, no discutiremos a corrente anarquista, uma
vez que os partidos dessa tendncia perderam peso, nos pases onde ainda
eram importantes, no perodo entre as duas guerras mundiais.
Um esclarecimento final necessrio. Grandes correntes de pensamento
poltico no so objetos que possam ser estudados a partir de uma definio
clara, unvoca, aceita por todos. Adversrios e partidrios tm interpretaes
diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas
encontramos divises importantes. A seleo de assuntos e autores feita no
curso , portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores
consagrados que tratam de temas que a maior parte dos novos esquerdistas
considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez to
importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma
mais precisa, uma seleo de temas e autores importantes para esta corrente.
Assim, para que o aluno possa melhor absorver o contedo desse curso e
atender aos objetivos a que se prope, encontra-se disponibilizado em PDF o
livro Partidos polticos brasileiros. Programas e diretrizes doutrinrias,
organizado por Nerione Nunes Cardoso Jnior, editado pelas Edies
Tcnicas do Senado Federal.
Mdulo I - Liberalismo
Ao trmino deste Mdulo, esperamos que voc possa :
1) Compreender as relaes historicamente estabelecidas entre
Liberalismo e Democracia.
2) Discutir os argumentos favorveis e contrrios ao pensamento e
prtica liberais.
3) Distinguir o Liberalismo econmico do Liberalismo poltico.
4) Analisar as diferentes formas de organizao democrtica.
5) Defender a centralidade dos direitos humanos fundamentais no
pensamento liberal.
Liberalismo
Vamos examinar o liberalismo nos trs prximos mdulos.
No primeiro deles, procuramos uma definio geral da corrente e uma
apresentao de alguns de seus temas mais importantes. Usamos para essa
finalidade o livro de Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, que, como
indica seu ttulo, define o liberalismo por meio de sua comparao sistemtica
com outra corrente de pensamento, com a qual muitas vezes confundido: a
democracia.
Aps essa abordagem geral, examinaremos trs conjuntos de temas centrais
para essa linha de pensamento, a partir de autores e obras considerados
importantes por boa parte dos liberais. O primeiro conjunto refere-se ao papel
do mercado, ou seja, ao liberalismo econmico. Nosso guia para a discusso
ser o livro O caminho da servido, de Friedrich Hayek, publicado pela primeira
vez em 1944.
Logo depois, veremos o liberalismo poltico, a partir da argumentao de
Robert Dahl desenvolvida em Prefcio a uma teoria democrtica.
Finalmente, vamos estudar os argumentos que apresentam a garantia dos
direitos individuais como o fundamento de toda a perspectiva liberal. Para esse
assunto usaremos o livro de Ronald Dworkin, Levando os Direitos a Srio.
Mais informaes sobre liberalismo como corrente de pensamento e seus
autores representativos podem ser encontradas no livro de Jos Guilherme
Merquior, O Liberalismo antigo e moderno.
Na Biblioteca deste curso, voc encontrar discursos proferidos pelo senador
Marco Maciel e palestras realizadas no "Frum Merquior" abordando a
problemtica liberal.
Unidade 1 - Liberalismo e democracia
Liberalismo e Democracia
O propsito da primeira unidade do curso debater as caractersticas mais
gerais constitutivas do liberalismo. Para tal, um dos caminhos mais
interessantes acompanhar o roteiro que Norberto Bobbio, em Liberalismo e
Democracia, nos oferece, uma tentativa de compreender o liberalismo a partir
de sua contraposio a uma corrente definida como democrtica. A
comparao entre liberalismo e democracia esclarece as afinidades e conflitos
que, historicamente, tm permeado as relaes entre essas duas correntes,
bem como abre caminho para pensar uma relao que se desenvolveu
posteriormente: a do liberalismo com o socialismo, em todas as suas variantes.
Seguiremos, portanto, a sequncia de tpicos que o autor prope para nossa
discusso.
Nesta unidade, estudaremos sobre liberalismo e democracia:
a) Definies, pontos em comum e diferenas entre ambos;
b) Direitos humanos fundamentais;
c) Limitao do poder do Estado;
d) Liberdade negativa;
e) Elogio da diversidade;
f) Democracia ontem e hoje;
g) Liberalismo e democracia hoje;
h) Liberalismo e democracia no sculo XIX.
Pg. 2 - Definies
1. Definies
O fato evidente de que as democracias mais slidas do mundo contemporneo
reivindicam, simultaneamente, sua presena nas tradies liberais e
democrticas induz crena de que ambas as tradies so idnticas. No
fundo, liberalismo e democracia seriam sinnimos, e eventuais conflitos,
tericos e polticos, entre ambas as doutrinas seriam apenas equvocos
histricos passageiros.
Benjamim Constant
Na verdade, embora a confluncia entre liberais e democratas na atualidade
seja fato, no se pode perder de vista a especificidade de cada tradio.
Liberalismo e democracia so correntes definidas, e a relao entre ambas
pode ser de afinidade, mas tambm pode ser de conflito, como veremos.
Liberalismo e Democracia - o que caracteriza cada uma dessas correntes e,
consequentemente, a diferena entre ambas?
Para o nosso autor, liberalismo uma concepo de Estado, de um Estado
limitado. Seu trao principal, portanto, a convico de que o poder do Estado
no pode ser exercido em todos os campos, mas que existem esferas sujeitas
deliberao individual, classicamente os mbitos da economia e da vida
privada.
A democracia, em contraste, antes que concepo de Estado uma forma de
governo. Caracteriza-se, desde a antiguidade, pela atribuio de poder
maioria; o governo de muitos, em oposio ao governo de poucos e ao de um
s.
Para o liberalismo, portanto, o essencial limitar o poder; para a democracia,
distribuir o poder. Trata-se de dois problemas diferentes, cuja soluo
simultnea , s vezes, impossvel.
Essa distino remonta, na verdade, conhecida separao de Benjamim
Constant entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Para esse
autor, na plis (cidade-estado) da Grcia antiga, liberdade era compreendida
como participao no processo de deliberao. Era a possibilidade de
comparecer assembleia que reunia os cidados e nela votar. Predominava
ento uma concepo positiva de liberdade. Entre ns, modernos, pelo
contrrio, a liberdade vista como a "segurana nas fruies privadas", ou
seja, a garantia de que os direitos do indivduo no sero feridos pelo Estado.
Essa concepo de liberdade pode ser descrita como negativa.
Pg. 3 - Os direitos do homem
2. Os direitos do homem
Mas qual a razo para o poder do Estado deter-se perante alguma esfera,
algum limite?
A resposta est na doutrina dos direitos humanos, pressuposto filosfico de
grande parte das verses do Estado liberal.
Conforme essa doutrina, h um conjunto de direitos inatos aos seres humanos,
direitos que a associao poltica no pode violentar ao sabor de sua
convenincia. O direito vida, liberdade, segurana, busca da felicidade,
por exemplo, nascem com cada indivduo. Todos podemos agir de forma a
efetiv-los e podemos, legitimamente, resistir a qualquer tentativa de sua
violao.
Esses direitos so naturais, portanto. No dependem de outorga da
coletividade ou do governo. No podem, em consequncia, ser por eles
revogados. Tm como fundamento uma concepo geral da natureza humana,
que, como diz Bobbio, no precisa estar fundamentada em pesquisa emprica
ou provas histricas. Podemos chegar a essa concepo com o uso exclusivo
da razo.
Na verdade, essa ideia de um conjunto de direitos humanos j presentes em
um hipottico Estado de natureza, anterior constituio da sociedade,
justificao, no plano da ideologia, de um processo histrico determinado, de
limitao do poder do rei. O marco inicial desse processo pode ser considerado
o ano de 1215, quando o rei ingls Joo "outorga" uma carta, na qual
determinadas "liberdades" dos nobres so garantidas contra o poder real.
No momento em que o soberano encontra limites sua vontade, a relao com
o sdito adquire o carter de um pacto. Cabe ao rei o dever de proteo e ao
sdito o de obedincia. Este ltimo, no entanto, no mais irrestrito, mas exclui
certas esferas, definidas por consenso entre os sditos e entre esses e o
soberano.
Os marcos finais do processo encontram-se nas declaraes de direitos,
afirmadas pela Revoluo Norte-Americana (1776) e pela Revoluo Francesa
(1789).
Para saber mais sobre a Revoluo Francesa clique aqui.
Para aperfeioar ainda mais os seus conhecimentos sobre a Revoluo
Francesa, assista ao vdeo abaixo. (6min 26)
Os direitos do homem (cont.)
Enquanto o processo histrico real mostra uma situao inicial de poder
absoluto do soberano, poder que sofre uma eroso progressiva, no plano das
idias o movimento inverso. Parte-se de um hipottico ponto zero, o estado
de natureza, no qual os indivduos so livres e no existe corpo poltico.
Mediante um contrato social, esses indivduos abrem mo de parte de sua
autonomia em troca das vantagens da associao, principalmente a
segurana. Funda-se, ento, a sociedade poltica, que no pode ser desptica
porque deriva seu poder dos indivduos que a formam.
O pressuposto dos direitos naturais encontra-se, assim, estreitamente
vinculado ao contratualismo, ideia de contrato social como origem da
sociedade. O contratualismo postula que a sociedade no um fato natural,
mas artificial, fruto da vontade humana; que a sociedade no um fim, ao qual
os indivduos devem se devotar, mas um meio para a satisfao de
necessidades e interesses individuais. Postula, enfim, a precedncia, histrica
e lgica, dos indivduos sobre o coletivo: primeiro existem indivduos
singulares com suas necessidades, depois a sociedade.
A idia de direitos naturais do homem e a concepo contratualista de
sociedade so inseparveis de uma posio individualista. O individualismo,
segundo Bobbio, a condio do liberalismo.
Assista ao vdeo abaixo com a entrevista do professor Celso Lafer, e observe
os direitos humanos pela viso de diversos autores polticos.
Direitos Humanos parte 1
Pg. 4
3. O Estado limitado
Vimos que o problema que define o liberalismo a limitao do poder do
Estado. Essa limitao se d em dois aspectos diferentes:
Primeiro: nos poderes do Estado;
Segundo: nas funes do Estado;
A limitao dos poderes do Estado d lugar ao chamado estado de direito,
oposto ao estado absoluto. Estado de direito implica a limitao dos poderes do
Estado em pelo menos dois planos distintos. No primeiro, dizemos que os
poderes pblicos so limitados quando se encontram regulados por normas
gerais, normalmente inscritas numa Constituio, e s podem ser exercidos de
acordo com essas normas.
Esse primeiro plano, no entanto, no suficiente, uma vez que as normas
constitucionais podem descuidar da defesa dos direitos individuais. Pode
haver, como de fato houve, despotismo consagrado pelas leis. O segundo
plano se produz, portanto, quando as prprias normas incorporam o respeito
aos direitos considerados fundamentais.
O Estado de direito implica tambm a vigncia de mecanismos de controle do
poder. Normalmente, esses mecanismos enquadram-se num dos seguintes
tipos: controle do Executivo pelo Legislativo, controle do Legislativo por uma
Corte de Justia, autonomia local e autonomia do Judicirio frente aos demais
poderes.
A limitao das funes do Estado, por sua vez, desenha uma segunda faceta
da utopia liberal: o Estado mnimo, cujo antnimo o Estado mximo (que
considera legtimo agir em esferas reservadas pelos liberais para a iniciativa
individual).
Em sntese, o projeto liberal demanda um Estado com as seguintes
caractersticas:
Primeira: exerccio do poder regulado por normas gerais, normalmente
reunidas em uma Constituio;
Segunda: incorporao, nesse conjunto de normas, de garantias aos direitos
considerados fundamentais;
Terceira: presena de mecanismos efetivos de controle do poder; e
Quarta: reduo da ao do Estado ao mnimo indispensvel.
Pg. 5
4. A liberdade negativa
A concepo de liberdade implcita no ideal de limitao do poder do Estado ,
como vimos, a de liberdade negativa. Em sua anlise, liberdade e poder
constituem termos que se excluem mutuamente. S h liberdade onde o
indivduo no tolhido por determinaes externas a ele, como aquelas
provenientes de um poder pblico. Em outras palavras, quanto mais as leis so
amplas e numerosas, menos livres so os indivduos a elas sujeitos. Nessa
perspectiva, os dois tipos de limites acima mencionados reforam-se um ao
outro. Quanto menores as funes atribudas ao Estado, mais fcil ser o
controle de seus poderes.
No entanto, para os liberais h um limite a essa "minimizao" do Estado.
Afinal, se o Estado um mal, no seu ponto de vista, um mal necessrio.
Postular o Estado como um mal que pode ser eliminado a clssica posio
anarquista, no a liberal. Conforme esta ltima, a emancipao do indivduo em
relao ao Poder, da sociedade civil em relao ao Estado, obrigatria em
certas esferas, mas sempre permanecero funes impossveis de serem
efetuadas com o esforo exclusivo da iniciativa de particulares.
Do lado dos campos reservados aos indivduos sobressaem o religioso e o
econmico. A liberdade de conscincia considerada fundamental por todas
as variantes do liberalismo. Iniciada com a conquista da liberdade religiosa, no
sculo XVII, ampliou-se progressivamente para a esfera da opo poltica, dos
costumes, do estilo de vida
Para saber mais sobre a atual viso liberal dos limites de interveno do
Estado, clique aqui.
Pg. 6
A liberdade econmica, por sua vez, implantou-se contra os privilgios e
vnculos feudais, que determinavam, no momento do nascimento, a profisso,
o local de trabalho e as oportunidades de comrcio de cada um. As liberdades
de escolher a profisso, o local de trabalho, de livre circulao de homens e
mercadorias, consolidaram-se, na Inglaterra, no decorrer do sculo XVIII.
Ambas as esferas so o terreno da primeira leva histrica de direitos, os
direitos civis, na periodizao proposta por Marshall.
Importa ressaltar a posio radicalmente antipaternalista assumida pelos
liberais. Religio, estilo de vida, costumes, profisso, negcio, so todas
esferas em que cada um o melhor juiz de seu interesse. A intromisso de
regras externas, mesmo as da lei, que digam aos indivduos o que devem fazer
e como devem comportar-se, resulta sempre em perdas para os interessados.
O paternalismo, na viso de diversos expoentes do pensamento liberal, a pior
forma de despotismo.
Que papel resta ao Estado, nessa perspectiva?
Cabe ao Estado prover as condies necessrias ao livre desenvolvimento dos
indivduos. Na frmula clssica de Adam Smith, so suas funes exclusivas a
garantia da segurana, externa e interna, e a realizao de obras pblicas que
os agentes privados no possam realizar.
Pg. 7
5. O elogio da diversidade
Chegamos neste ponto a outro trao distintivo do pensamento liberal: o apreo
pela variedade.
Na verdade, na tica liberal, esse tema encontra-se estreitamente vinculado ao
anterior. O propsito do governo sempre a produo da ordem e do bem-
estar; dessa maneira, sua interferncia sobre esferas que deveriam reservar-se
ao mbito do privado tende sempre a produzir efeitos homogeneizadores sobre
os cidados. O Estado age por meio do poder administrativo, de regras
impessoais, aplicveis a todos, regras cuja boa aplicao fiscalizada por
estamentos burocrticos especializados. Quanto maior, portanto, o nmero e
alcance dessas regras, mais o Estado estar exigindo dos cidados que se
comportem de forma semelhante.
Para os liberais, quanto mais avanam o Estado, as regras, a burocracia, sobre
as esferas de deciso individual, menor o espao da liberdade. A grande
tentao, no caso, o paternalismo, j citado: a tentao de converter o Estado
em provedor da vida do cidado. A segurana, a ausncia de risco que a opo
implica, tem, como contrapartida, a perda de autonomia, a uniformidade e a
estagnao. Haveria, nesse caso, perda em eficincia, mas tambm perda em
liberdade.
Abrir espao para a autonomia dos indivduos abrir espao para sua
diversidade e seus conflitos. Ao contrrio das concepes holistas, que Bobbio
denomina tambm organicistas, que prezam a harmonia e a concrdia e
consideram o conflito sintoma de desordem e desagregao social, a
perspectiva liberal aceita a diversidade e o conflito como fontes da inovao, da
mudana e do progresso. O avano cientfico, o crescimento econmico, a
seleo dos melhores lderes polticos, so processos de aperfeioamento
continuado, que o conflito torna possveis.
Para saber mais sobre os prejuzos que a interveno estatal pode causar
sociedade, na viso liberal, clique aqui.
Essa a origem da diferena, trabalhada pelo pensamento liberal desde seus
primrdios, entre o dinamismo dos pases europeus livres e a estagnao
prpria do despotismo oriental.
Pg. 8
6. Democracia ontem e hoje
Enquanto o liberalismo produto moderno, a democracia tem seu nascimento
na antiguidade. No entanto, a democracia moderna difere da antiga em um
aspecto fundamental: os antigos deliberavam na gora, praa de reunio dos
cidados de Atenas; os modernos delegam a deliberao a seus
representantes.
claro que as dimenses dos Estados modernos tornam invivel a democracia
direta. No entanto, os tericos do liberalismo levantaram argumentos outros,
alm da viabilidade, em favor da democracia representativa. A manifestao
direta da vontade do eleitor produziria decises excessivamente coladas aos
interesses particulares dos cidados. Da a propenso ao facciosismo e
demagogia, caractersticas da democracia antiga.
Nas democracias modernas, a representao diminui esses efeitos da
manifestao da vontade popular, ainda mais quando so tomadas precaues
contra a prtica do mandato imperativo. Ou seja, no momento em que o
mandatrio se considera representante de uma parte do povo, de um distrito,
por exemplo, e no do povo inteiro, estariam abertos os caminhos, de um ponto
de vista liberal clssico, para a reproduo dos defeitos da velha democracia.
Alis, democracia antiga e liberalismo moderno so claramente incompatveis.
A primeira desconhecia limite ao poder da sociedade sobre os indivduos. O
segundo, historicamente, desconfia do voto popular.
A confluncia entre liberalismo e democracia a que nos referimos
anteriormente implica um grau elevado de consenso acerca do significado da
igualdade que a democracia busca. A igualdade que o liberalismo aceita,
aquela compatvel, a seu ver, com o princpio da limitao do poder, a de
cunho jurdico-formal, no aquela tica; a procedimental, no a substantiva;
a de regras igualmente aplicveis a todos, no a que procura uma situao de
igualdade ao fim do processo.
A confuso entre os dois tipos de igualdade levou a polmicas reiteradas entre
liberais e socialistas acerca da comparao entre uma situao de democracia
formal, sem igualdade material, e outra, na qual a igualdade das situaes de
cada um era obtida ao preo das liberdades.
Pg. 9
A divergncia, segundo Bobbio, insolvel. Liberdade e igualdade, no campo
da produo material, da economia, so dois valores excludentes. De um lado
temos os liberais, que prezam o individualismo, o conflito, a diversidade. Para
eles, o fim principal o desenvolvimento dos indivduos, mesmo que o
desenvolvimento daqueles "mais capazes" se faa em detrimento dos demais.
De outro lado, temos os igualitaristas, partidrios de uma viso holista, que
valorizam a harmonia. Seu ideal o desenvolvimento equnime e no conflitivo
da coletividade como um todo.
Para os liberais, a igualdade compatvel com a manuteno da liberdade a
igualdade perante a lei, no sentido de no existirem privilgios, e a igualdade
no gozo dos direitos fundamentais, reconhecidos a todos os seres humanos. O
igualitarismo democrtico, por sua vez, procura realizar, com o auxlio do
Estado, a igualdade no fim do processo, a igualdade substantiva, uma situao
na qual no s as oportunidades sejam iguais para todos, mas as condies de
vida dos cidados sejam semelhantes.
Pg. 10
7. Liberalismo e democracia hoje
Do exposto decorre que a democracia poltica, entendida como a vigncia do
sufrgio universal, compatvel com o liberalismo. No entanto, essa
compatibilidade longe de ser bvia. Muitos dos clssicos liberais
preocuparam-se em desenvolver argumentos a favor do voto censitrio. Para
eles, fundamentalmente, o governo lida com a despesa pblica e no deve
estar aberto opinio de quem no contribui para a receita pblica. No sculo
XIX, alis, o sufrgio universal era exceo e os Estados liberais tendiam a ser
no democrticos, por esse critrio.
Hoje no fcil imaginar um Estado democrtico que no seja liberal, nem
tampouco um Estado liberal no democrtico. Em favor dessa simbiose, dois
argumentos so levantados.
Em primeiro lugar, a salvaguarda dos direitos fundamentais exige a regra
democrtica. A garantia da vigncia desses direitos ser to mais eficaz quanto
maior o nmero de interessados com possibilidade de se manifestarem, por
meio da voz e do voto. Consequentemente, a garantia mxima dos direitos est
numa situao de sufrgio universal.
Em segundo lugar, o voto s eficaz como instrumento de medida da vontade
popular se os votantes so livres, ou seja, se votam com a proteo a seus
direitos fundamentais assegurados. Do contrrio, o voto mediria apenas o
medo da retaliao de poderosos ou a submisso ao poder econmico. Da
que, hoje, democracia e liberalismo precisem um do outro.
Pg. 11
8. Liberalismo e democracia no sculo XIX
No sculo XIX, contudo, como vimos, essa relao de afinidade no era
evidente por si mesma. Examinando os dois grandes laboratrios polticos da
poca, vemos, na Inglaterra, uma situao de progresso da liberdade que se
estende do fim do sculo XVII ao incio do sculo XX. o processo de
desdobramento dos direitos individuais: primeiro conquistam-se os direitos
civis, num segundo momento os direitos polticos e, finalmente, os direitos
sociais. Trata-se de um progresso suave, sem grandes perturbaes polticas,
mas que se processou no interior de uma sociedade eminentemente
aristocrtica. Em outros termos, com a manuteno de um grau elevado de
desigualdade social.
Na Frana, em contraste, o percurso foi mais acidentado, apresentando
retrocessos no plano da liberdade, simultaneamente a progressos no da
igualdade. Basta lembrar o perodo do terror na poca da Revoluo e o golpe
do segundo Bonaparte, imediatamente aps a implantao do sufrgio
universal.
Esse quadro ensejou a diviso dos dois grandes campos. Os liberais tenderam
a se dividir em radicais, aqueles que aceitavam a democracia, e
conservadores, contrrios ao sufrgio universal. Os democratas, por sua vez,
dividiram-se em liberais e no liberais, conforme sua posio face s garantias
individuais. Evidentemente, liberais radicais e democratas liberais tenderam
indistino. O liberalismo conservador foi a matriz de uma srie de
agrupamentos polticos influentes em vrios pases europeus. Por sua vez, os
democratas no liberais deram origem a diversos partidos radicais, de posio
vizinha a dos socialistas.
Pg. 12
Da experincia e reflexo do sculo XIX, possvel construir um quadro das
relaes possveis entre democracia e liberalismo.
A primeira relao de possibilidade. Sob esse aspecto a democracia e o
liberalismo so compatveis, embora sejam tambm possveis Estados liberais
no democrticos e Estados democrticos no liberais.
A segunda relao a impossibilidade. Liberalismo e democracia so
excludentes e, nesse ponto, teriam razo tanto os liberais conservadores
quanto os democratas no liberais.
A terceira relao a necessidade. No existe um dos termos na ausncia do
outro. Esta , como vimos, a opinio prevalecente nas democracias modernas.
Dois dos principais tericos do liberalismo do sculo XIX representam bem as
vertentes conservadora e radical do movimento: Alexis de Tocqueville e John
Stuart Mill.
Tocqueville tinha como preocupao maior a manuteno da liberdade no
mundo moderno. A seu ver, o progresso da igualdade, no sentido de condies
sociais semelhantes, era inevitvel. Processo iniciado na Idade Mdia,
expandia-se irresistivelmente desde ento. A igualdade era, para ele,
providencial, era uma necessidade histrica.
Pg. 13
A liberdade, no entanto, era contingente. Poderia ou no se realizar, uma vez
que a igualdade absoluta to possvel na liberdade quanto no despotismo. A
experincia inglesa preservara a liberdade com o sacrifcio da igualdade. Na
Frana, por sua vez, o avano da igualdade ocorre na perda da liberdade. A
experincia americana parecia a nica a conciliar de forma harmoniosa os dois
valores. Cumpria ento estud-la e dela extrair as lies pertinentes.
No seria possvel apresentar uma viso razovel do pensamento de
Tocqueville nesse espao limitado. Abordaremos um tema, um dos fantasmas
do pensamento liberal, por ele explorado com genialidade: a tirania da maioria.
Mesmo no experimento americano viu o autor sintomas do despotismo. A
maioria ali reinava absoluta e no havia instncia a que se pudesse recorrer
em caso de uma deciso tirnica do maior nmero. Executivo e Legislativo
obedecem maioria, o jri integrado por cidados eleitos, a fora policial a
maioria em armas, os rgos da opinio pblica expressam o seu pensamento.
Em suma, um cidado prejudicado por uma deciso injusta da maioria no tem
a quem recorrer.
Mais grave ainda, o poder da maioria se exerce sobre o pensamento, de
maneira que a livre discusso cessa no momento em que se forma uma
opinio majoritria slida sobre ela. A partir desse momento, ningum ousa
divergir, sob pena de converter-se em pria na sociedade. O tema de
Tocqueville, no fundo, o da dificuldade da dissidncia, do dissenso, nas
democracias de massa, tema retomado por diversos pensadores, liberais e no
liberais, deste sculo.
Pg. 14
John Stuart Mill , o expoente da vertente radical do liberalismo, merece
registro por vrias caractersticas de sua obra. Em primeiro lugar, por filiar-se a
uma tradio filosfica, o utilitarismo, que prescinde do jusnaturalismo como
fundamento de uma posio liberal.
Para os utilitaristas, a ideia de direitos naturais, inalienveis, do ser humano
no passa de uma fico. A limitao do poder deve obedecer a outro critrio,
este sim, emprico, verificvel: a utilidade, ou seja, a maior felicidade do maior
nmero de cidados. Nessa perspectiva, felicidade igual presena de
prazer e ausncia de dor e constitui o nico critrio capaz de limitar,
legitimamente, a liberdade. Precisamos de poder, de governo, apenas para
impedir danos aos outros e manter o nvel de felicidade timo da sociedade.
Contra a ameaa da tirania da maioria, Mill defende a adoo do sufrgio
universal. O voto de todos impede a ocupao da "maioria" por apenas uma
camada da sociedade. Alm disso, o voto pedaggico, e seu exerccio torna
as minorias conscientes dos possveis atentados a seus direitos. Como
segunda preveno, o autor recomenda o voto proporcional, que permite a
representao de grupos minoritrios, excludos pela sistemtica do voto
majoritrio.
Vale lembrar que o sufrgio universal no inclua, para Mill, os falidos, os
devedores fraudulentos, os analfabetos e os indigentes. Inclua, sim, as
mulheres, que, a seu ver, precisavam mais das leis, por serem fisicamente
mais fracas que os homens. Propunha tambm o voto plural, cabendo um
nmero maior de votos aos cidados mais instrudos, conforme verificado em
exames pblicos.
Pg. 15
Nesta primeira unidade, examinamos as definies de liberalismo e
democracia, os direitos humanos e as doutrinas contratualistas, a limitao do
Estado, a importncia da diversidade e do conflito, assim como as relaes
possveis entre liberalismo e democracia.
Todos esses temas so fundamentais na tradio liberal. Estamos agora em
condies de passar para o assunto da nossa segunda Unidade: O Argumento
Neoliberal.
Parabns! Voc concluiu a primeira unidade. Vamos prosseguir?
Unidade 2 - Argumento neoliberal
Para o exame do argumento neoliberal, usaremos como guia a obra mais
conhecida de Friedrich Hayek, O Caminho da Servido. O livro data de 1944 e
constitui uma das exposies mais coerentes dos argumentos levantados pelos
liberais contra a economia planejada e a favor da livre iniciativa individual
nesse campo. O autor considerado precursor da onda neoliberal que se
apossa dos governos europeus e norte-americano a partir dos ltimos anos da
dcada de 1970.
Depois do diagnstico inicial e das definies bsicas com que o autor
trabalha, vamos examinar o conjunto de argumentos que a obra apresenta:
primeiro, a refutao dos argumentos em favor do socialismo; e, em segundo
lugar, a exposio dos argumentos contrrios ao socialismo, que dariam
justificativa alternativa liberal.
Sobre o argumento neoliberal, estudaremos, portanto, na Unidade 2:
1. diagnstico do momento histrico poca da Segunda Guerra Mundial;
2. definies de socialismo e liberalismo.
3. Argumentos do autor:
A favor do socialismo
Inevitabilidade
Racionalidade
Contra o socialismo
Dficit democrtico
Fim do Estado de direito
A favor do liberalismo
Justia
Segurana
Moral
Pg. 2
1. Diagnstico
preciso, em primeiro lugar, fazer meno s circunstncias polticas
presentes no momento em que a obra foi escrita, com clara influncia sobre o
seu desenvolvimento. O texto foi elaborado nos anos da Segunda Guerra
Mundial, o que implica dizer que o nazismo e as diversas formas de fascismo
constituam opes polticas de grande importncia prtica. O perodo entre as
duas guerras mundiais, de 1918 a 1939, foi, alis, bastante desfavorvel ao
iderio liberal, acossado simultaneamente pelas extremas esquerda e direita.
Essa realidade reflete-se na obra e explica seu tom geral, de polmica e
proselitismo.
O campo poltico em que o autor se encontra esse: um mundo em que trs
grandes correntes - liberalismo, fascismo e comunismo - disputam a
hegemonia, poltica, intelectual e at blica. No entanto, o seu diagnstico
sobre a prpria poca parte de uma viso das relaes entre essas correntes
muito diferente da que prevalecia no senso comum da poca e tambm de
hoje. Em vez de postular uma oposio radical entre os extremos da esquerda
e da direita, entre nazistas e comunistas, deixando aos liberais um espao no
centro poltico, Hayek sustenta que a verdadeira oposio se d entre liberais,
de um lado, e totalitrios, de outro, estes ltimos divididos nas faces de
esquerda e direita. Para ele, portanto, o nazismo no foi uma reao ao
comunismo, com base nas classes mdias empobrecidas, alimentada pelos
capitalistas temerosos da revoluo. Foi, sim, um resultado poltico especfico
da mesma tendncia geral que produzia, na poca, o fortalecimento do
socialismo.
O argumento explorado ao longo de todo o livro. Supe, no entanto, uma
viso da histria exposta, em poucas palavras, no diagnstico apresentado de
incio. Liberalismo um desdobramento poltico e econmico de uma idia
maior: o individualismo, no sentido de respeito pela pessoa, por suas
preferncias e opes. Essa atitude mais ampla tem seu marco histrico inicial
na Renascena. Ali as amarras que tolhiam a espontaneidade humana
comeam a ser retiradas e a coero sobre os indivduos comea a retroceder.
O resultado foi um perodo de enorme criatividade artstica, cientfica e
tecnolgica, com efeitos sobre a economia e a poltica.
Pg. 3
2. Definies
Antes da exposio sistemtica de seus argumentos, Hayek procede a
definies mnimas dos dois sistemas que ir contrapor: o socialismo e o
liberalismo.
O socialismo tem por fins manifestos, assumidos por seus adeptos, a
promoo da justia social, da igualdade entre os cidados e a garantia de um
mnimo de segurana econmica para eles. No entanto, para o autor, mais
importantes que esses objetivos so os meios que se pretende usar para
alcan-los. No caso dos socialistas, o instrumento a ser utilizado a
interferncia do Estado na vida econmica. A interferncia pode ser completa e
radical, como no experimento sovitico, ou gradual e localizada, como
propunha a maioria dos socialistas britnicos poca. Mas o fator comum s
duas vertentes era a interveno do Estado para dar ordem economia e
direcion-la busca de um determinado fim.
O emprego desse meio, o planejamento econmico em suas diversas
dimenses, caracterizaria uma espcie mais geral, da qual o socialismo seria
apenas um dos gneros: o coletivismo. Toda tentativa de substituir o
mecanismo impessoal e annimo das foras de mercado por alguma conduo
coletiva das foras sociais em direo a objetivos previamente determinados
constitui, para Hayek, uma forma de coletivismo. O tipo de coletivismo, o
gnero, no caso, seria definido pelos objetivos de cada um: a igualdade, no
caso do socialismo; a supremacia de uma raa, no caso do nazismo.
Por outro lado, no liberalismo, o sistema da livre iniciativa, o Estado nunca
procura definir objetivos comuns para o conjunto da sociedade. Sua meta
criar uma estrutura, legal e material, que permita a cada indivduo perseguir os
objetivos que julgue mais adequados.
A grande vantagem desse sistema seria prescindir da ao da autoridade, ou
seja, de um controle social consciente das aes individuais no plano da
economia. No se trata absolutamente de um laissez-faire, de uma postura
passiva de simples absteno, de deixar os atores agirem livremente no
mercado. A tarefa do Estado agir no sentido de potencializar ativamente os
mecanismos de concorrncia e supri-los, mediante ao planejada, nos setores
em que no so adequados.
Pg. 4
claro que o Estado deve zelar pela liberdade de produo, compra e venda,
abstendo-se de intervir nesses processos. Deve zelar, consequentemente, pela
livre formao dos preos, tomando todo cuidado para no influenci-los, por
meio de subsdio ou de impostos excessivos e diferenciados. Mas deve
tambm garantir ativamente, com aes positivas nesse sentido, a sanidade da
moeda, a liberdade dos mercados e a preveno do monoplio, a livre
circulao das informaes. Importncia especial cabe liberdade no processo
de formao de preos, uma vez que os preos so os indicadores que
informam, automtica e constantemente, aos atores as variaes da
disponibilidade de cada bem, possibilitando a tomada de decises racionais.
Deve o Estado, alm disso, agir, de forma planificada, em todos os setores nos
quais a concorrncia seja impossvel ou incua. O recurso ao plano, portanto,
no excludo de maneira absoluta por Hayek, mas ganha um carter
complementar concorrncia e no substitutivo a ela.
Importa lembrar tambm que, na viso do autor, no toda interferncia do
Estado que distorce a concorrncia. Medidas que afetam por igual a todos os
atores, como a legislao trabalhista ou ambiental, no introduzem vis algum
no processo. Sua pertinncia, portanto, deve ser avaliada segundo um clculo
simples de custos e benefcios.
Pg. 5
3. Primeiro argumento a favor do socialismo: a inevitabilidade
Uma vez apresentado o diagnstico e as definies fundamentais, o autor
passa a examinar os argumentos favorveis e contrrios ao socialismo. claro
que, para ele, destruir os argumentos favorveis ao socialismo e mostrar, por
outro lado, a correo daqueles contrrios a esse sistema argumentar a favor
do sistema alternativo, o liberalismo.
O primeiro argumento analisado pelo autor, a favor do socialismo, a suposta
inevitabilidade histrica da economia centralmente planejada. O argumento,
apresentado, entre outros, por Marx, postula que o progresso tecnolgico exige
unidades de produo cada vez maiores para a obteno dos ganhos de
escala timos. Quanto mais avanada a tecnologia, maiores seriam as
unidades mnimas de capital necessrias ao investimento, maiores as fbricas,
maiores as empresas. As empresas menores, incapazes de conseguir o
mnimo de capital necessrio aos investimentos que as novas tecnologias
demandam, estariam condenadas falncia, deixando espao aberto para
poucas e grandes empresas. Num mercado dominado por poucas empresas, a
tendncia inexorvel, portanto, seria a substituio, com o tempo, da
competio entre os grupos empresariais por acordos, por uma economia de
monoplios e cartis.
Alcanado esse estgio, o passo natural seria a substituio do monoplio
privado pelo pblico. Afinal, se os benefcios da concorrncia desaparecem,
no h razo para permitir a imposio de lucros extraordinrios por agentes
privados em prejuzo dos consumidores. Melhor do que deixar as empresas
gigantes explorarem a populao seria estatizar a produo e transferir a
definio de preos e lucros ao planejamento racional.
Pg. 6
Os socialistas, portanto, no aceitam a acusao de que seu objetivo dar fim
concorrncia na economia. Para eles, o prprio capitalismo est fazendo
esse trabalho e caber ao socialismo apenas a substituio do monoplio
privado, que tem como objetivo o lucro de poucos, pelo monoplio pblico, que
tem por fim a perseguio, racional, do bem comum.
Para Hayek, a falha desse argumento consiste em supor que os resultados do
desenvolvimento tecnolgico levam sempre a uma nica direo: a eficincia
maior das grandes unidades. Para ele, o avano da tecnologia pode vir a exigir
unidades de investimento maiores, mas esse no o nico resultado possvel.
Ao contrrio, pode ser at previsvel que, em certos casos, a maior capacidade
tcnica faa inclusive cair, em montante absoluto, o ponto timo, em termos de
retorno, da escala de produo. O resultado, nesse caso, seria o contrrio:
tornar viveis empresas menores, que antes no tinham como concorrer com
as maiores.
Mas, se esse argumento procede, se no existe determinismo tecnolgico, qual
seria a razo do progresso evidente dos monoplios nas economias
capitalistas? Na opinio de Hayek, as causas desse fenmeno seriam
essencialmente polticas. A ao do Estado, na forma de favorecimentos e
facilidades variadas, principalmente tarifas protecionistas contra produtos
estrangeiros, pe obstculos ao processo de concorrncia e cria, assim, as
condies do surgimento e prosperidade dos monoplios. Grandes empresas
s excluem sistematicamente as menores e substituem a competio pelos
acordos quando o Estado cria as condies polticas para isso.
Portanto, o primeiro argumento dos socialistas, a inevitabilidade da substituio
da concorrncia pelo monoplio privado e, num segundo momento, pelo
controle estatal, , na opinio de Hayek, falso.
Pg. 7
4. Segundo argumento a favor do socialismo: a racionalidade
O argumento da racionalidade recorrente na tradio socialista. Aponta a
irracionalidade do funcionamento do mercado como consequncia da falta de
coordenao das aes dos diferentes agentes econmicos. Num regime de
livre iniciativa, no qual a propriedade dos meios de produo pulverizada nas
mos de capitalistas individuais, no existe mecanismo de coordenao
eficiente das decises de produtores e consumidores. O ajuste para solucionar
qualquer descompasso entre produo e consumo feito posteriormente, pelo
mercado. Se algum bem falta, o preo sobe e sua produo estimulada. Se
existe sobra de outro, seu preo cai e a produo diminui.
O problema do ajuste pelo mercado era a ocorrncia de crises econmicas
peridicas. Os capitalistas individuais aumentavam sua produo sempre que
podiam, a economia passava por um ciclo de expanso at o momento em
que os mercados saturavam-se, ou seja, havia mais mercadoria que
consumidores. Tinha incio ento um ciclo recessivo, com retrao da
atividade econmica e a proliferao de falncias.
Pg. 8
Nessas condies, o argumento socialista diz que sem uma forma de
coordenao prvia, que s o planejamento central poderia garantir, o
descompasso entre as decises de vendedores e compradores apresenta
efeitos acumulativos, que culminam na ecloso de uma crise, no decorrer da
qual boa parte das foras produtivas destruda e o desemprego e a misria
so multiplicados.
Na percepo dos socialistas, um sistema como esse, que alterna momentos
de expanso e crise, representa um desperdcio enorme de recursos materiais
e humanos. O planejamento, adequando periodicamente produo e consumo,
permitiria um crescimento econmico continuado, na medida das necessidades
sociais. Para tal bastaria substituir a iniciativa de um grande nmero de
capitalistas pela iniciativa do Estado, transferindo a propriedade de mos
privadas para o controle pblico.
Para Hayek, o argumento deve ser invertido. O nus da irracionalidade deve
pesar no sobre o mercado, mas sobre o planejamento centralizado. Numa
economia complexa, a quantidade de informaes em circulao necessrias a
seu bom funcionamento enorme e sua atualizao, constante. impossvel
um nico agente gerir a totalidade dessas informaes, sempre em mudana.
Qualquer tentativa de faz-lo tem como consequncia, portanto, alguma
medida de ineficincia econmica.
Pg. 9
Apenas o mercado teria condies de operar essas economias complexas. Em
primeiro lugar, as decises, no sistema de mercado, so descentralizadas, de
responsabilidade de uma multiplicidade de agentes econmicos. Em segundo
lugar, a coordenao de suas aes se d de maneira impessoal e automtica,
por meio do sistema de preos. Os preos constituem os mostradores que
sinalizam as informaes necessrias aos agentes. Por isso to importante
sua formao livre: qualquer interferncia do Estado distorce a formao de
preos e leva os agentes a tomarem decises com base em informaes
equivocadas.
A concorrncia , portanto, dotada de racionalidade maior que qualquer tipo de
planejamento. Aciona, automaticamente, mecanismos de correo de todos os
desequilbrios momentneos que provoca. O planejamento, por sua vez, seria
tanto mais ineficiente quanto maior fosse a complexidade da economia.
Na avaliao de alguns autores, o argumento de Hayek no tinha fundamentos
empricos na poca em que foi elaborado. Afinal, at a dcada de 1950,
economias centralmente planificadas, como a sovitica, mostraram
desempenho superior, em termos de crescimento, ao do mundo capitalista. No
entanto, a evoluo tecnolgica recente teria aumentado em muito a
complexidade dos ambientes econmicos, de maneira a conferir, hoje, validade
ao argumento.
Em sntese, Hayek descarta, tambm, o segundo grande argumento
apresentado em defesa do socialismo.
Pg. 10
5. Primeiro argumento contrrio ao socialismo: o dficit democrtico
A seguir, Hayek desenvolve os argumentos contrrios ao socialismo. O
primeiro a ser abordado sustenta a existncia, em algum grau, de um dficit
democrtico em toda forma de socialismo.
A razo, para o autor, simples. A eficincia de todo planejamento decorre da
adequao entre os fins procurados e os meios empregados. Portanto, o
sucesso do planejamento centralizado da economia exigiria uma clara definio
dos fins pretendidos pelo conjunto da sociedade e a mobilizao de todos os
esforos sociais para o seu alcance. De uma maneira ou outra, trata-se de
definir um objetivo, supostamente mais relevante que os demais, e imp-lo
sociedade. Com a promessa de reduo da incerteza, do risco, procura-se
conseguir uma maior uniformidade entre os cidados, pelo menos no que diz
respeito a esse objetivo primeiro.
Alguns poderiam argumentar que no se trata de produzir a uniformidade em
todos os objetivos e finalidades que os cidados possam ter. Apenas os
objetivos maiores, como a igualdade e a prosperidade, seriam definidos
previamente e exigiriam a aprovao de toda a sociedade. Abaixo desses,
todos os fins da atividade humana seriam definidos livremente.
Pg. 11
Para Hayek, no possvel sustentar que apenas o fim maior, o objetivo mais
importante seria predefinido pelo plano. A eficincia do planejamento ser to
mais completa quanto maior for a possibilidade de previso posta disposio
do planejador. Da que, uma vez definido o objetivo maior a ser perseguido,
todos os objetivos secundrios devem passar a hierarquizar-se entre si, de
uma nica maneira, vlida para todos. Na verdade, o controle por meio do
plano supe um cdigo moral completo, aceito pela sociedade. Nesse sentido,
o planejamento centralizado supe um Estado "moral", que persegue
determinadas formas de vida consideradas "boas" e reprime ou desvaloriza
aquelas outras consideradas "indesejveis". Um Estado moral que tenderia
sempre, por conseguinte, ao fundamentalismo. Um estado liberal, por sua vez,
seria neutro em relao s diferentes formas de vida presentes na sociedade,
seria no moral, mas "laico".
Num contexto de sociedades complexas, a possibilidade de se obter, pela
persuaso, consenso sobre um cdigo moral completo, qualquer que seja ele,
nula. O plano exige, portanto, um grau de consenso maior do que o existente
e do que seria possvel nas sociedades contemporneas. O dficit necessrio
de consenso deve, portanto, sempre ser suprido por algum grau, maior ou
menor, de coero.
Isso pode ocorrer de diversas formas. A coero pode ser aberta, como nos
regimes autoritrios, ou velada, como acontece em muitas democracias. Nesse
ltimo caso, uma das maneiras mais frequentes de implementar alguma
estrutura de objetivos hierarquizados consiste em retir-la da apreciao do
parlamento. Conjuntos de decises relevantes so delegadas pelos
parlamentares regulamentao posterior. Deixam, assim, o mbito da poltica
e passam ao da simples "tcnica".
Pg. 12
Para o autor, esse processo, que ocorre todos os dias em vrios pases,
perfeitamente lgico. A forma de governo adequada a uma sociedade que
adota coletivamente alguns objetivos como mais importantes no passa pela
representao dos cidados, mas por equipes de peritos, encarregadas da
produo dos meios mais eficientes, subordinadas a um lder, guardio dos
objetivos ltimos da coletividade. Mesmo quando o autoritarismo no aberto,
uma situao como essa representa um passo no caminho da servido.
importante lembrar que, para Hayek, uma situao de fim da democracia ou
de risco alto de sua perda, no exige o controle estatal da totalidade da
economia. Altos percentuais de controle pblico so suficientes para pr em
risco a democracia. Numa situao como a que vivia a Alemanha em 1928, na
qual o Estado controlava diretamente 53% da vida econmica, as decises
privadas nos 47% restantes dependiam sempre de alguma deciso no mbito
do monoplio pblico. O caminho estava aberto para o sacrifcio completo da
democracia, que veio a ocorrer somente em 1933, com a ascenso dos
nazistas.
Pg. 13
6. Segundo argumento contrrio ao coletivismo: o fim do Estado de
direito
No entanto, o controle da economia por meio de planos centralizados no seria
incompatvel apenas com a democracia, mas com o prprio Estado de direito.
Em outras palavras, Hayek afirma que a adoo de toda inclinao socialista
no apenas leva o Estado a tomar decises fora das instncias democrticas,
mas o leva, tambm, a uma tendncia a violentar os limites da lei.
Num regime que respeita a concorrncia, o Estado limitado. As leis tm como
caracterstica principal seu aspecto formal. Em outras palavras, definem formas
e procedimentos necessrios consecuo de uma ao.
No momento em que o Estado ultrapassa esse limite e pretende definir
objetivos a serem alcanados e as aes necessrias para tanto, adquire, na
legislao, mais importncia seu aspecto material. A pretenso de incidir sobre
casos particulares, de previso impossvel em seus pormenores, deixa
necessariamente margem para decises arbitrrias por parte do Poder Pblico.
Maior margem de arbtrio do Estado equivale a imprevisibilidade maior de suas
aes e, consequentemente, menor liberdade para o cidado. Conforme o
exemplo extremado do autor, no Estado limitado as leis so comparveis a um
cdigo de trnsito: dizem como o cidado deve se locomover; no Estado
intervencionista, as leis dizem aonde o cidado deve ir.
Segundo o autor, portanto, a interveno do Estado na economia, em busca de
objetivos previamente fixados, gera perdas perigosas, em termos de
democracia e de legalidade.
Pg. 14
7. Argumento a favor da concorrncia: a justia
A favor da concorrncia, Hayek levanta, em primeiro lugar, o argumento da
justia. O processo seria justo por ser impessoal e automtico. Nenhum dos
agentes envolvidos dispe da possibilidade de conferir um vis de maneira a
prever o resultado final de uma operao, ou seja, concretamente, quem ser
beneficiado e quem ser prejudicado. O resultado depende da quantidade de
recursos com que conta cada um dos envolvidos, do seu desempenho e de
uma dose varivel de sorte. A concorrncia, portanto, fundamentalmente no
discriminatria.
certo que no h igualdade de oportunidades. A propriedade privada
requisito do processo e sua distribuio desigual. No entanto, a escassez
relativa de oportunidades compensada, segundo o autor, pelo maior grau de
liberdade que beneficia a todos, ricos e pobres. Da que o pobre ingls seja,
para ele, mais livre que um empresrio de pequeno porte ou o executivo de
uma grande empresa em um pas como a Alemanha nazista.
O direito de herana, responsvel por desigualdades de recursos que no
dependem do mrito individual, no indispensvel ao bom funcionamento do
sistema. O direito propriedade privada, contudo, seu fundamento. Na sua
ausncia, as decises sobre rendimentos individuais diferenciados poderiam
caber apenas ao Estado, o que bastaria para nos mergulhar no mundo da
servido.
Mesmo no caso de concorrncia fraca ou inexistente, como a que se verifica
numa economia dominada por monoplios, a propriedade privada seria
prefervel, do ponto de vista da liberdade, ao monoplio pblico, na viso do
autor. Num mundo dominado por um nmero pequeno de corporaes, a
margem de autonomia dos indivduos, embora pequena, ainda maior que
numa situao de controle absoluto da vida econmica em seu todo por um s
agente: o Estado. Um sistema em que os ricos so poderosos prefervel a
outro, em que s os poderosos so ricos.
O centro do argumento est na impessoalidade da concorrncia. Ao contrrio
do Estado, o mercado, quando opera em condies livres, no pode ser
apropriado por indivduos e posto ao servio de seus interesses. A liberdade
dos atores e a justia do resultado est no carter indeterminado do processo.
Pg. 15
8. Os argumentos da segurana
No que respeita questo da segurana individual, liberais e coletivistas
afirmam a superioridade de suas propostas. Evidentemente, este debate funda-
se, na maior parte das vezes, em concepes distintas do que seja a
segurana do indivduo.
Para Hayek, o coletivismo promete a segurana do indivduo contra as
vicissitudes do mercado. A garantia da manuteno de seu emprego, em
qualquer circunstncia, e, mais ainda, a da manuteno de sua renda, de seu
salrio, mesmo que as condies que tornavam seu trabalho mais valorizado
tenham desaparecido.
Ambas as garantias, quando implementadas, geralmente por fora das
corporaes sindicais, redundam, para os liberais, em prejuzo dos
consumidores e dos trabalhadores menos protegidos: os desempregados e
aqueles integrantes de categorias no organizadas.
As tentativas de manter artificialmente empregos tornados obsoletos pelo
progresso tecnolgico privam a sociedade dos benefcios econmicos desse
progresso. Bens e servios que poderiam ser ofertados a custo menor, passam
a onerar desnecessariamente o consumidor. O efeito acumulado de decises
dessa ordem traduz-se em perda de competitividade e de crescimento
econmico, em perda de novos empregos, portanto. Do outro lado da balana,
os ganhos da deciso concentram-se na categoria beneficiada pela deciso de
preserv-la.
Da mesma forma, mudanas que reduzam o custo do trabalho de alguns
setores no devem ser reprimidas. Se o salrio puder refletir, nesses casos,
exatamente o que a sociedade est disposta a pagar por ele, esses
trabalhadores passaro a ganhar menos, mas outros podero conseguir, por
sua vez, emprego ou salrios melhores.
Pg. 16
O problema punha-se com toda atualidade poca do livro de Hayek, em
razo dos empregos criados pela economia de guerra que iriam desaparecer
ou pagar salrios menores depois da paz. Alguns socialistas propunham a
continuidade da economia de guerra mesmo em tempo de paz. O autor
defendia, coerentemente, o exerccio exclusivo da concorrncia para a
definio dos novos patamares de salrios.
Os defensores do liberalismo, por sua vez, apresentavam um conceito mais
restrito de segurana. O Estado liberal no ofereceria proteo contra o
mercado, mas poderia garantir toda forma de segurana compatvel com o
sistema de seguros; a segurana previdenciria, custeada pelos beneficirios;
a assistncia social em casos de calamidade pblica; e alguma forma de
auxlio para sobrevivncia, no caso de desemprego. Nenhuma dessas medidas
fere, segundo o autor, os princpios do liberalismo. A questo a ser discutida,
na sua opinio, se esses cidados, enquanto durasse a situao de
dependncia para com o Estado, poderiam dispor de seus direitos polticos. Em
outras palavras, o problema, clssico para os liberais, est em saber se a
pessoa que no prov a prpria subsistncia pode emitir um voto autnomo ou
no.
Depois de negar a necessidade histrica do socialismo, de negar sua validade
em nome da racionalidade, da democracia, da legalidade e da justia, Hayek
ataca o conceito de segurana individual compatvel com o socialismo e o
contrape ao entendimento liberal de segurana.
Pg. 17
9. Os argumentos morais
preciso esclarecer, de incio, o que se entende, neste curso, por argumentos
morais, uma vez que o autor estudado no utiliza essa expresso em sua obra.
Inclumos neste tpico os argumentos que dizem respeito ao tipo de cidado e
de sociedade que uma economia regida pelo planejamento centralizado
produz. Todos eles esto fundados em premissas valorativas a respeito do que
constitui, para o autor, o ideal de cidado e de sociedade.
Em primeiro lugar, temos o tipo de cidado que cada sistema produz, em sua
aplicao continuada. Uma sociedade liberal, em que o Estado cria as
condies para o exerccio da livre iniciativa do cidado, preza um tipo
especfico de virtudes: a autonomia, a responsabilidade e a tolerncia. O
reconhecimento social devido ao cidado que exerce sua autonomia, toma
decises, assume os nus e benefcios delas decorrentes.
Uma sociedade regida por uma ideologia coletivista, por sua vez, preza outro
tipo de qualidades: o altrusmo, o desprendimento individual, especialmente se
em benefcio do coletivo; a obedincia; o respeito hierarquia; a segurana. O
prottipo do indivduo digno de respeito o burocrata, o servidor pblico que
tem seus honorrios assegurados para sempre, cujo cdigo de valores exige a
obedincia cega e impessoal norma.
Esse tipo de valores adequado a algumas instituies, cuja prpria finalidade
incompatvel com o regime da concorrncia, como as burocracias civil e
militar. No entanto, diz Hayek, o ponto liberal consiste justamente em resistir
organizao da sociedade como um todo em moldes militares ou burocrticos.
O segundo argumento diz respeito ao tipo de militante que os partidos de
iderio coletivista recrutam. Convencidos da superioridade dos fins por que se
batem, esses partidos se organizam maneira militar. Buscam criar fileiras de
partidrios numerosas, homogneas e disciplinadas. Seu apelo maior junto
aos menos instrudos, para quem a homogeneidade de idias mais palatvel;
aos mais dceis e simplrios, que aceitam com mais facilidade a disciplina
rgida; aos mais particularistas, que respondem aos apelos de mobilizao
contra os pretensos inimigos da causa; e aos mais intolerantes.
Pg. 18
O tipo humano que faz carreira partidria nessas organizaes o pior que se
pode encontrar na sociedade, na opinio do autor. Alm disso, a prpria lgica
do cdigo moral completo e absoluto deixa pouco espao para consideraes
sobre regras de comportamento situadas acima dos fins perseguidos. A
tendncia , enfim, a de todo e qualquer meio ser julgado vlido, se eficaz em
termos dos fins procurados. A liderana desses partidos seria selecionada
entre aqueles que melhor percebessem e aplicassem essa mxima.
Finalmente, uma sociedade em que a planificao econmica haja substitudo
por completo a iniciativa individual, com todas as consequncias polticas
desse fato, assistiria ao fim da verdade. Para o autor, a verdade, na cincia
como na poltica, resulta do contraditrio, da oposio de argumentos entre
dois atores, entre ego (eu) e alter (outro). Uma sociedade sujeita a uma nica
escala de valores, indiscutvel, uma sociedade onde s h ego e no existe
alter. Sem possibilidade de dilogo, de crtica, a verdade passa a ser uma
questo de propaganda. estatizao da produo segue-se a estatizao da
conscincia.
Pg. 19
Nesta unidade, examinamos o diagnstico que o autor apresenta da
conjuntura poltica em que a obra apareceu; as definies que oferece de
socialismo e liberalismo; as refutaes que apresenta aos argumentos mais
importantes em defesa do socialismo, a saber, a sua inevitabilidade e
racionalidade superior; e, finalmente, os argumentos que levanta contra o
socialismo e a favor do liberalismo, relativos democracia, legalidade,
justia, segurana e moralidade.
Parabns! Voc concluiu a segunda unidade. Vamos prosseguir?
Mdulo II - Para uma teoria da democracia
Vimos, na ltima unidade, uma srie de argumentos levantados, de um ponto
de vista liberal, a favor da liberdade econmica, da livre iniciativa individual
nesse campo. No entanto, a discusso da democracia poltica, sua
possibilidade e formas de realizao, ocupa um espao igualmente importante
no iderio liberal. Acompanharemos o debate a respeito dessa questo a partir
de um trabalho do cientista poltico norte-americano Robert Dahl , publicado em
1956: "Um Prefcio Teoria Democrtica".
Constaro desta unidade, sobre democracia:
modelo madisoniano;
modelo polirquico;
modelo populista.
O autor parte da constatao da precariedade das teorias sobre a democracia
em discusso at aquele momento, seja do ponto de vista de sua capacidade
descritiva, seja do ponto de vista de sua capacidade normativa. Em outras
palavras, as teorias disponveis no conseguiam descrever de forma adequada
as democracias realmente existentes, nem apontar caminhos para outras
formas de democracia entendidas como superiores.
Na tentativa de sanar essas deficincias, o autor agrupa esse conjunto de
teorias sobre a democracia em dois grandes modelos gerais, de influncia mais
profunda, terica e prtica: a democracia madisoniana e a democracia
populista. Procede, em seguida, a sua anlise e, a partir das lacunas e
inconsistncias neles localizadas, constri um modelo alternativo de
democracia, que denomina poliarquia.
Pg. 2
1. A Democracia Madisoniana
O modelo tem esse nome em homenagem a um de seus primeiros e mais
lcidos proponentes, James Madison, membro da Conveno que redigiu a
Constituio norte-americana. Na verdade, as premissas aceitas por esse
modelo permearam todos os trabalhos daqueles constituintes e presidiram,
portanto, a arquitetura da Constituio dos Estados Unidos da Amrica. Mais
ainda, ganharam de tal maneira o senso comum do cidado que essa
concepo especfica de democracia equivale, para os norte-americanos de
hoje, democracia em geral.
A idia fundamental a necessidade de conciliar dois princpios aparentemente
contraditrios: o poder de deciso da maioria e o poder das minorias de vetar
algumas decises dessa maioria, quando consideradas injustas ou tirnicas.
Essa vertente tenta abrigar simultaneamente as regras da igualdade poltica e
da limitao do poder. apresentada por Dahl na forma de uma sequncia de
seis hipteses, sequncia que iremos seguir.
Pg. 3
Hiptese 1
Na ausncia de controles externos, quaisquer indivduos ou grupos de
indivduos tentaro tiranizar os demais.
Controle externo significa basicamente recompensa ou punio aplicada por
outra pessoa. Tirania, por sua vez, entendida como grave privao de um
direito natural. Pe-se, evidentemente, a questo: que um direito natural?
Trata-se de um conjunto de direitos inviolveis por qualquer parte da
sociedade, mas como defini-los? Por outro lado, quo grave deve ser a
privao para resultar em tirania? Aparentemente, um critrio possvel deve
ser o da presena ou ausncia de consentimento dos atores envolvidos. De
toda maneira, dessas lacunas fundamentais derivam inconsistncias lgicas
que o autor explorar posteriormente e considerar na elaborao de seu
modelo alternativo.
Hiptese 2
A acumulao dos trs poderes (Legislativo, Executivo e Judicirio) nas
mesmas mos equivale ausncia de controle externo. Da que, numa
situao como essa, podem ocorrer as Hipteses 3 ou 4.
Hiptese 3
A maioria tiranizar a minoria.
Hiptese 4
A minoria tiranizar a maioria.
Como comprovar esse conjunto de hipteses? A de nmero 1 uma
proposio emprica e os proponentes do modelo levantavam a seu favor
exemplos histricos, da antiguidade clssica, ou axiomas psicolgicos
derivados de Hobbes; os homens sempre so guiados por seus desejos e na
busca de sua satisfao s se detm diante de obstculos externos.
Pg. 4
Cabe assinalar tambm que o grande perigo contra o qual se volta o modelo
a hiptese 3 (a maioria tiranizar a minoria), uma vez que a simples aplicao
do princpio republicano, a tomada de decises por maioria de votos, torna
difcil a manuteno de uma tirania de um grupo minoritrio. H que se criar,
ento, mecanismos de preveno da tirania da maioria, ou seja, de
salvaguarda dos direitos da minoria.
Na sequncia da argumentao, o modelo fornece uma definio de repblica
como o sistema no qual o poder deriva do povo e administrado por
mandatrios eleitos pelo povo, por um perodo determinado. A repblica tida
como condio necessria, porm no suficiente, de uma situao de ausncia
de tirania. Alternativas como a monarquia constitucional so, portanto,
excludas a priori por essa vertente.
Se os direitos naturais devem ser respeitados, se a ausncia de tirania o
estado desejvel, se a repblica condio necessria mas no suficiente, o
problema a ser enfrentado o da criao de uma repblica no tirnica. Quais
as condies para a existncia de uma repblica desse tipo?
Pg. 5
Hiptese 5
So condies para uma repblica no tirnica:
a separao de poderes; e
o controle das faces.
No entanto, h uma hiptese implcita no enunciado anterior que deve ser
explicitada. Uma repblica implica controle do povo sobre o governo e a eleio
peridica dos mandatrios. Dizer que condies adicionais so necessrias
para no haver tirania implica dizer que as condies presentes na definio
so insuficientes para prevenir a tirania. Segue-se, portanto, que:
Hiptese 6
Eleies frequentes no criam controles externos suficientes para evitar a
tirania.
Se a simples prtica do voto no basta, mecanismos constitucionais que criem
controles externos sobre os centros de poder devem ser criados. A
Constituio americana se fundamenta em toda uma rede de pesos e
contrapesos, que dividem o exerccio do poder e impem controles mtuos
entre as partes. Entre outros mecanismos, podem ser lembrados a separao
de poderes, o federalismo, o bicameralismo, o veto presidencial o controle
judicial da legislao, a nomeao de alguns funcionrios por um poder e sua
confirmao por outro, a existncia de eleitorados separados.
Pg. 6
Como atender, no entanto, ao segundo requisito, o controle das faces?
Faco, no enfoque madisoniano (James Madisom), todo grupo de cidados
que se rene com objetivos que impliquem a violao dos direitos de outros
cidados ou o prejuzo dos interesses da coletividade. Num regime
democrtico, a diferenciao das opinies natural e no pode ser evitada. A
faco no deve ser controlada em sua formao, o que chegaria perto da
tirania, mas nos seus efeitos indesejveis e prejudiciais.
Na lgica do modelo, como vimos, as faces minoritrias so controladas pelo
princpio republicano. As faces majoritrias, por sua vez, veriam a sua ao
dificultada ou mesmo impossibilitada numa das seguintes situaes previstas
pelo modelo: quando o eleitorado numeroso, quando variado em
composio e quando diversificado em interesses. Ou seja, o nmero e a
diversidade dos cidados tornam difcil a formao de maiorias organizadas em
torno de objetivos tirnicos sobre a parte minoritria do eleitorado
Pesam, no entender de Dahl contra essa teoria, diversas objees, de carter
lgico e emprico, de difcil refutao. Em primeiro lugar, a nfase nos freios
constitucionais obscurece a importncia dos chamados controles internos.
Trata-se aqui do que consideramos hoje as bases da cultura democrtica de
uma sociedade. Sabemos que, quando a democracia est ausente dos hbitos
e da cultura de um povo, de nada valem os dispositivos constitucionais e
legais. Diversos pases do mundo adotaram estruturas legais inspiradas no
modelo norte-americano e nem por isso garantiram uma histria de
desenvolvimento democrtico.
Pg. 7
Os madisonianos podem argumentar que os controles internos so importantes
mas no infalveis e os mecanismos constitucionais de pesos e contrapesos
estariam presentes para resolver os casos que escapam aos controles
internos. Mas, nesse caso, os controles externos de cunho social antes que
constitucional, dos quais o mais importante o voto, no so mais eficientes?
No plano emprico, est claro que existem diversas democracias, todas as que
adotam o sistema parlamentarista, a comear pela Gr- Bretanha, nas quais a
separao de poderes no vige. Pelo contrrio, a regra a subordinao
integral do Executivo ao Legislativo.
Do ponto de vista lgico, a teoria falha ainda em oferecer uma definio
plausvel do que sejam os direitos naturais. Excludo o apelo a uma
determinao de ordem transcendente, como a divindade, por exemplo, quem
define quais so esses direitos? Se cabe maioria faz-lo, a prpria idia de
uma tirania da maioria perde sentido e, com ela, a razo de toda a arquitetura
constitucional que caracteriza o modelo.
Analogamente, como distinguir uma faco de um agrupamento legtimo de
cidados? Nenhum grupo declara ser seu propsito violentar os direitos de
outros cidados ou os interesses da coletividade. A impossibilidade de definir o
que seja faco leva a que os mecanismos de limitao disposio das
minorias sirvam para impedir qualquer deciso da maioria, justa ou injusta. A
aplicao consequente do sistema de pesos e contrapesos leva simplesmente,
portanto, limitao do poder da maioria, em qualquer caso, por algum tipo de
minoria. um sistema em que as decises no dependem apenas da vontade
da maioria, mas da inexistncia de vetos por parte daquelas minorias em
condies de imp-los.
Pg. 8
2. A Democracia Populista
Vimos que a teoria madisoniana consiste num esforo para conciliar dois
princpios contraditrios: poder da maioria e poderes limitadores das minorias.
Se o princpio do poder das minorias tornado absoluto, samos do campo da
democracia e ingressamos no terreno dos diversos regimes oligrquicos. A
segunda alternativa, a maximizao da regra da maioria, ou seja, postular que
a regra da maioria aplicada em todos os casos e sempre tem a ltima
palavra, nos leva ao segundo modelo analisado: a democracia populista.
Importa lembrar que o modelo no defende o poder absoluto e imediato da
maioria. evidente que sobre esse poder pesam controles internos, presentes
na cultura poltica do cidado, controles sociais recprocos e, tambm aqui,
controles de carter constitucional. O modelo no nega a existncia desses
controles, simplesmente reconhece seu fundamento, imediato ou no, na
vontade da maioria.
Pg. 9
Tal como no caso anterior, o autor apresenta a teoria a partir de uma
sequncia de definies.
Definio 1
Duas so as condies da democracia:
Primeira: a soberania popular; e
Segunda: a igualdade poltica.
Definio 2
H soberania popular quando a alternativa escolhida a preferida da maioria.
Definio 3
H igualdade poltica quando o voto de cada pessoa tem o mesmo valor.
Da aplicao conjunta das trs definies precedentes, chega-se regra
democrtica, que chamaremos doravante simplesmente regra:
Definio 4
A regra democrtica aplicada quando, entre duas alternativas, a escolhida
a preferida pelo maior nmero.
Finalmente, uma proposio importante, como veremos, diz que a regra deve
ser aplicada como ltimo recurso, esgotadas as possibilidades de obteno de
um consenso pela via argumentativa.
Pg. 10
Em primeiro lugar, no que se refere ao aspecto tcnico, h a considerar a
questo dos eleitores indiferentes. Como computar o posicionamento
indiferente para alcanar uma deciso majoritria? Normalmente esses votos
so desconsiderados, como abstenes, e a maioria procurada entre os
votos definidos, a favor ou contra. Essa soluo permite, contudo, a definio
de decises que no contam com a preferncia da maioria dos cidados, mas
apenas da maioria dos cidados definidos.
Em segundo lugar, h o problema do empate. A regra no nos oferece uma
soluo para o caso de o nmero de votos favorveis e contrrios a uma
alternativa determinada ser igual. O voto de Minerva violenta a regra de forma
clara. Sem soluo, esses casos conduzem ao impasse e, no limite,
secesso do corpo poltico e guerra civil. O exemplo histrico mais evidente
no caso norte-americano foi a deciso de no permitir a escravido nos novos
territrios do oeste, que levou o pas guerra civil.
O autor lembra que, quanto mais uma deciso aproxima-se de uma diviso de
opinies em 50%, mais perde a regra legitimidade. Se as posies, alm de
opostas, so defendidas com intensidade, so percebidas como relevantes
pelos atores, a separao do corpo poltico parece ser a nica sada.
A simples inao no resolve situaes como essa, dado que, normalmente,
uma das opes em jogo. A polarizao d-se entre propostas de mudana do
status quo e outras, que buscam sua conservao. No fazer algo representa
normalmente tomar partido por um dos lados da disputa.
Pg. 11
A maioria das pessoas no quer realmente a liberdade, pois liberdade envolve
responsabilidade, e a maioria das pessoas tem medo de responsabilidade.
(Sigmund Freud)
Em terceiro lugar, h objeo no que diz respeito existncia de mais de duas
alternativas em jogo. Nesse caso, a apurao da maioria depender sempre de
uma regra que confira peso s segundas opes de cada eleitor, com alguma
forma de segundo turno, ou recuse esse peso, possibilitando a formao de
maiorias inferiores metade do eleitorado. Segue-se que a regra funciona bem
em situaes relativamente simples, em que as alternativas so apresentadas
aos pares aos votantes.
Um segundo grupo de objees discute as limitaes do contedo da regra.
A primeira diz que a regra incapaz de resolver a questo da intensidade das
preferncias dos eleitores. A situao relevante aqui a de uma maioria
pequena e aptica quanto a uma posio qualquer prevalecer, conforme a
regra, sobre uma minoria significativa que opta, intensamente, pela alternativa
oposta. Exemplificando: 51% dos membros de um determinado colgio opta
pela alternativa A num problema que no to significativo para eles, mas vital
para os 49% que preferem a alternativa perdedora. Trata-se de uma nova
verso do problema da tirania da maioria, discutido a seguir com mais
pormenores pelo autor. Em todo caso, importante assinalar que esse tipo de
problema ganha hoje um significado que no apresentava na poca da
publicao do livro. Nesse mais de meio sculo as sociedades ganharam em
diversidade cultural, de maneira que a heterogeneidade de valores tende a
tornar prtica e frequente essa questo outrora rara ou terica.
Pg. 12
Conforme uma segunda crtica, a democracia populista maximiza apenas dois
valores: a igualdade poltica e a soberania popular. A pergunta : est o
cidado sempre disposto a optar por esses dois valores, sacrificando
sistematicamente todos os demais quando se apresentem como contraditrios
queles? At que ponto estamos dispostos a sacrificar, por exemplo,
prosperidade material e segurana democracia? H um ponto em que
possvel optar por restringir a democracia em nome de algum outro objetivo?
Se esse ponto existe, a teoria no nos diz nada sobre ele.
Um terceiro grupo de crticos alega que o governo da maioria impossvel.
Sempre as elites governam de fato, mesmo quando, de direito, o poder
pertence ao povo. Embora a tirania da maioria seja impossvel, nessa
perspectiva, o modelo madisoniano seria mais interessante, por prever alguma
forma de diviso do poder entre parcelas dessa elite e seu controle mtuo.
Finalmente, os partidrios da democracia populista no informam o que fazer
quando a vontade da maioria se inclina para a supresso do prprio sistema
democrtico. Quando a democracia populista tenta cometer suicdio elegendo
candidatos e partidos declaradamente autoritrios, que fundamentam sua
campanha na supresso das eleies, por exemplo, qual o mecanismo de
preservao proposto? Cabem, nesse caso, mecanismos de veto de minorias,
como no modelo anterior, na forma de clusulas ptreas na Constituio ou de
controle judicial das decises legislativas por uma corte especfica?
Pg. 13
O autor faz questo de lembrar que a experincia norte-americana indica,
contudo, que a ao da Suprema Corte, nos casos de declarao de
inconstitucionalidade de leis sempre (at 1956, pelo menos) dirigiu-se no
sentido de restringir direitos do cidado, no no de ampli-los. As seis decises
relativas a leis sobre os direitos civis dos negros contrariaram decises
legislativas que ampliavam os direitos dessa parcela da populao. A principal
crtica que o modelo merece, na viso do autor, contudo, seu carter
abstratamente normativo. A teoria diz o que deve ser uma democracia, mas
no nos oferece instrumentos para reconhecer quando e como uma
determinada organizao social opera democraticamente.
Veremos a seguir como o autor tenta superar as imperfeies dos dois
modelos analisados com a elaborao de uma terceira alternativa: a poliarquia.
Pg. 14
3. A democracia polirquica
A maior preocupao do modelo elaborado pelo autor encontra-se justamente
na dimenso emprica. Quais as condies necessrias e suficientes para
maximizar a democracia no mundo real? Ou seja, que conselho daramos a
uma coletividade que pretendesse operar democraticamente? Quais os
eventos que temos que observar para concluir pela existncia de um regime
democrtico? Trata-se, enfim, da busca de marcadores adequados, uma vez
que a simples realizao de eleies peridicas no suficiente para nos dizer
algo a esse respeito.
Para responder a essas perguntas o autor elabora uma relao de oito
condies necessrias existncia de democracia no mundo real. Trata-se de
um tipo ideal, ou seja, de uma situao de democracia tima que no se
encontra, em sua forma pura, em nenhuma organizao existente. Como ideal,
serve tambm para medir o grau de aproximao ou distanciamento das
democracias existentes e, consequentemente, para compar-las entre si.
As oito condies so:
Primeira: todos votam;
Segunda: todos os votos tm o mesmo valor;
Terceira: a alternativa majoritria declarada vencedora.
Pg. 15
At o momento no superamos ainda a regra que define as democracias
populistas. No entanto, sabemos todos, as eleies realizadas em regimes
totalitrios cumprem igualmente essas regras, sem conformarem democracias
de fato. Algo mais necessrio, portanto:
Quarta: todos os participantes podem inserir alternativas na eleio; e
Quinta: todos os participantes tm acesso s mesmas informaes sobre as
alternativas.
Alm disso, a democracia exige alguns procedimentos no perodo
imediatamente posterior s eleies:
Sexta: as alternativas mais votadas substituem as menos votadas;
Stima: as ordens dos servidores eleitos so obedecidas;
Oitava: as decises nos intervalos eleitorais so subordinadas s decises
tomadas na eleio ou seguem as mesmas regras da eleio.
Fcil verificar que o conjunto das regras no vale em sua integridade em
nenhuma democracia conhecida no mundo. Nos Estados Unidos da Amrica, a
segunda, terceira e sexta regras funcionam bem. A primeira est ausente, pois
a absteno atingia, na dcada de 1950, a 50% dos eleitores. A quarta no
existe em sua plenitude em nenhuma organizao estatal, uma vez que a
capacidade de incluir alternativas encontra-se desigualmente distribuda. A
quinta tambm de difcil aplicao, dado que o acesso igual informao
meta ainda no atingida, mesmo nos pases em que vigora uma relativa
liberdade de imprensa.
Pg. 16
Na verdade, as oito regras constituem os eixos de uma escala que permite
comparar as democracias reais em termos de sua aproximao a um ideal
democrtico normativo. Formam algo como uma rgua oitavada, em que cada
face permite medir o grau de democracia em uma das dimenses. Atribuindo
valores, em cada eixo, entre 0 e 1 e combinando as notas de alguma maneira,
poderamos encontrar organizaes que o autor denomina hierarquias (com
pontuao ente 0 e 0,25), oligarquias (entre 0,25 e 0,50), poliarquias (entre
0,50 e 0,75) e poliarquias igualitrias (entre 0,75 e 1).
Uma vez que tornou-se possvel a identificao das poliarquias, resta indagar
das condies que permitem ou favorecem seu surgimento e estabilidade. A
primeira e mais importante o grau de consenso existente entre os cidados a
respeito da regra e da aplicao das oito condies assinaladas.
Trata-se de um problema de cultura poltica de uma determinada populao.
Quanto mais democrtica for essa cultura, maior a possibilidade de
desenvolvimento contnuo de regimes democrticos.
No entanto, a cultura no imutvel. Pesquisas clssicas apontavam uma
cultura poltica autoritria entre os alemes na dcada de 1950, em contraste
com os pendores democrticos que os britnicos apresentavam. Duas dcadas
mais tarde a repetio da pesquisa indicava uma reduo acentuada das
diferenas antes observadas entre os dois pases, com uma aceitao
crescente da democracia entre os alemes.
Pg. 17
Ocorre que esses vinte anos haviam sido de treinamento democrtico para os
alemes, fortalecendo a aceitao das oito condies. O treinamento, portanto,
relevante, e no apenas aquele que se observa na esfera poltica no sentido
estrito. Tambm conta aquele ministrado nas instituies no estatais, como a
famlia, o sindicato e todo tipo de associao.
Alm do consenso procedimental, relativo s condies, um certo consenso em
relao aos fins perseguidos necessrio. A heterogeneidade excessiva
quanto a valores leva a situaes de divergncias intensas, prximas da
diviso da coletividade em metades iguais. Nessas situaes, como vimos, a
aplicao da regra torna-se problemtica.
Finalmente, a poliarquia parece ser tambm funo da atividade poltica de
seus membros. Quanto maior a atividade, a participao, maior o treinamento
democrtico e maior o consenso quanto s condies da regra.
O autor finaliza analisando o caso norte-americano, particularmente sua
capacidade de lidar com as situaes de "tirania da maioria" em sua definio
moderna: imposio da vontade de uma maioria indiferente sobre a de uma
minoria ardorosa.
O sistema de vetos de minorias que a Constituio norte-americana prescreve
divide-se em trs grandes vertentes: a reviso judicial, o Senado e a rede de
relaes que o eleitorado, o presidente e as duas casas legislativas
estabelecem entre si. A anlise do autor detm-se nos dois primeiros casos.
Pg. 18
Na reviso judicial, a declarao de inconstitucionalidade de uma lei pela
Suprema Corte significa a recusa, a no validade, de uma deciso majoritria
do Legislativo. Vamos supor que a maioria, presente no Legislativo, queira
persistir na sua vontade, contra a posio da Suprema Corte. A nica
possibilidade a mudana da Constituio. Ocorre que para a mudana da
Constituio a maioria no suficiente, mas exigido um qurum qualificado.
No caso dos EUA, dois teros das duas Casas, Cmara e Senado, e trs
quartos dos Estados membros da Unio, cuja posio definida pelas
Cmaras estaduais. Esse dispositivo habilita a minorias sucessivas de um tero
mais um dos integrantes de cada Casa e de um quarto mais um dos Estados a
vetarem, durante algum tempo, a vontade da maioria, expressa na Cmara, no
Senado e na sano presidencial.
O exemplo citado de retardo na implementao da vontade majoritria o da
legislao nacional sobre o trabalho infantil. Entre a aprovao da primeira lei
protegendo o trabalho infantil no Congresso e a declarao final de
constitucionalidade por parte da Suprema Corte, transcorreram 25 anos.
Durante um quarto de sculo a proteo ao trabalho inf
Recommended